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Sedução Fatal

por LSFerreira


SEDUÇÃO FATAL


LSFerreira

SEDUÇÃO FATAL

PAKA-TATU


Distribua Livremente Você tem permissão para distribuir este ebook como quiser, enviar por email, imprimir e citar partes ou todo em seu web site ou blog, desde que não altere o conteúdo e mencione as fontes originais. www.literatura-leo.com DADOS INTERNACIONAIS PARA CATLOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO(CIP) F3831 Ferreira,L.S. Sedução Fatal/L.S. Ferreira- Belém Paka-Tatu,2005 230p.;14x21cm ISBN 85-87945-72-6 Literatura brasileira-Romance.I.Título CDD 869.93


À memória de minha mãe, Nazaré


SUMÁRIO Apresentação …............................................................... …..........06 Capítulo 1...................................................................................... 08 Capítulo 2 …................................................................................... 12 Capítulo 3.......................................................................................20 Capítulo 4......................................................................................36 Capítulo 5.......................................................................................53 Capítulo 6.......................................................................................66 Capítulo 7........................................................................................69 Capítulo 8..........................................................................................80 Capítulo 9.........................................................................................91 Cpítulo 10.......................................................................................102 Capítulo 11.....................................................................................119 Capítulo 12.....................................................................................124 Capítulo 13.......................................................................................128 Capítulo 14......................................................................................133 Capítulo 15......................................................................................136 Capítulo 16.......................................................................................139


APRESENTAÇÃO A Editora Paka-Tatu tem a satisfação de apresentar ao público leitor a obra Sedução Fatal de L.S.Ferreira. Trata-se de um romance em que o autor, tradicionalmente voltado à pesquisa e à produção acadêmica na área das Ciências Exatas (o autor é Livre Docente e Doutor em Física), demonstra uma outra qualidade: a de grande observador do cotidiano dos homens, suas relações e implicações. LSFerreira, através dos personagens que integram Sedução Fatal, nos fala, sem fidelidade cronológica, de um contexto em que o contraditório entre poder e contrapoder é uma constante, constituindo-se numa revelação de que às pretensões dos poderosos existem articulações que se contrapõem. A relação das forças que norteiam a sociedade são demostradas pelo autor como um permanente e profundo exercício dialético, em que, mais uma vez, o sexo feminino é colocado em destaque e transformado no objeto de anseios e disputas. Cleyde, personagem central do romance, é uma mulher de origem humilde que trabalha como doméstica na residência de um importante burocrata do governo. Permanentemente assediada, ela se utiliza de suas utopias e de sua perspicácia para tirar proveito da situação e revirar o jogo. Cleyde aposta em suas estratégias como recurso para mudar sua condição social. É uma trama em que até mesmo o que poderíamos chamar de filigranas literárias ganha colorido e força. A todo momento o autor nos surpreende, quer pela atuação dos personagens, quer pela descrição de cada episódio. Além de leitura prazeirosa, Sedução Fatal revela-nos um contexto social caracterizado pela corrupção, pelo oportunismo e pelas alianças que ainda permeiam nossa sociedade contemporânea. Os Editores


Nenhum homem ĂŠ igual ao seu livro. O melhor da sua atividade mental vai para o livro, separado da massa dos produtos inferiores com os quais se acham misturados na tarefa diĂĄria. Herbert Spencer


SEDUÇÃO FATAL

Capítulo I

Cleyde dormia de dorso sobre o enxergão do catre. Estremunhada por um impulso inconsciente, abriu os olhos. Nódoas cinzentas, que se disseminavam no teto e nas paredes do quarto pequeno, amorteciam mais a claridade matinal que atravessava o vidro empoeirado de uma clarabóia. A esperança de uma vida nova foi também quebrantada pelo desânimo que estava consumindo sua alma desde o acometimento que a infelicitara no seu último emprego. Lembrou-se da casa do dr. Waldomiro. Às cinco da manhã já estava de pé, movida pelos repetidos gritos de D. Creuza, que a chamava para preparar o desjejum. “Acorda, menina! Dormes muito! É por isso que estás preguiçosa!” Cleyde se levantava e banhava o rosto no pequeno lavatório. Olhava-se no espelho. Seus olhos, recobertos pelas pálpebras intumescidas, tinham a cor das águas-marinhas; ela se orgulhava deles. Depois de fazer o asseio pessoal e a simples maquiagem, colocava o avental branco para iniciar a rotina dos afazeres enfadonhos. Sua mente estava limitada por essas atividades. Para ela, a manhãs eram as mesmas dos dias passados. “Bom dia, D. Creuza, estava indisposta, por isso não lavei a louça; mas é pra já!” Ela resmungava para si: “Ah, a minha patroa é muito exigente!” Lembrou-se que certa noite, o dr. Waldomiro, encontrando-a casualmente dentro de casa, inesperadamente a puxara pelo braço, e disse: “Depois que ela morrer, vou casar contigo!” O dr. Waldomiro era funcionário aposentado da Alfândega. Ele controlava a importação de insumos diversos, bens de consumo, equipamentos eletrônicos e automóveis de luxo. Recebia elevadas propinas para deixar passar ilegalmente muitos desses produtos valiosos. Nos leilões, os carros contrabandeados eram vistos sem uma das portas, sendo arrematados por um preço muito aquém do valor real por alguém aparentemente desinteressado nessa falta. Depois do leilão, o dono do carro recebia a porta, que era colocada em alguma oficina. A compensação pecuniária para o dr. Waldomiro vinha breve. Assim, ele enriquecia à vista de todos com a conivência das autoridades superiores entre as


quais estava o representante do Governo, que, segundo diziam, era um sibarita impudente e corrupto. Depois de aprontar o lauto desjejum, Cleyde continuava na preparação do almoço. O dr. Waldomiro chegava a casa por volta do meio dia. “Cleyde, arruma a mesa!”, gritava D. Creuza. Depois do banho, ele vinha sentar-se à mesa, ocupando a cabeceira desta. À sua direita ficava D. Creuza; ao lado desta, a jovem Zoraia. E à sua esquerda, o Ricardo, sempre atirado quando via Cleyde. D. Creuza segurava um pequeno sino de prata e, com um gesto calculado, dobrava o mesmo, avisando a Cleyde que já deveria trazer o almoço. Às vezes, quando ela virava a cabeça para falar com a filha, o dr. Waldomiro aproveitava a oportunidade para acariciar a coxa de Cleyde, que permitia essa licenciosidade com medo de perder o emprego, ou, talvez, porque se lembrava da promessa do velho desbriado. Após o almoço, ela continuava a rotina diária com a limpeza dos três carros contrabandeados, mas já legalizados, que ocupavam uma garagem do tamanho de uma casa média. Após o jantar, continuava em atividade na preparação da ceia. Quase todas as noites o dr. Waldomiro recebia visitas, o que prolongava o trabalho dela até alta hora da noite. Depois, já extenuada, só lhe restava ir para a cama na qual repousava seu belo corpo de mulher já feita. Como vivia em “casa de família”, só tinha folga parcialmente aos domingos. Cleyde tinha dezoito anos. Ela nascera de uma família de empregadas domésticas, dessa espécie de família que abunda neste vasto país, indolente pela própria natureza, mas cheio de esperteza marota; esse tipo de família da qual a prole fecunda vem da pobreza que lhe permite de graça, entre os poucos prazeres, o pequeno espaço de uma cama. Novas gerações vêm com a mesma sina, sujeitas, quem sabe, ao inexorável jogo da competição. “Hoje, eu vou procurar um novo emprego, ou aceito a proposta daquela mulher?”, pensou ela, ainda com os olhos fixos no teto do quarto. “Não tenho coragem para fazer isso! Mas eu também poderia ir à casa do dr. Waldomiro e exigir meus direitos. Aquele canalha do filho dele ainda vai me pagar! Preciso ter coragem! Ele precisa reparar isso!” Cleyde era, de certo modo, uma exceção entre a maioria das pessoas da sua classe. Observe o leitor o seu nome próprio. Seus pais lhe deram esse nome, talvez, tirando-o de algum almanaque, ou, talvez, tomando-o das personagens de novelas ou filmes. A mesma coisa se poderia dizer de sua fala. O dr. Waldomiro se admirava das expressões quase corretas dessa moça que, provavelmente, viera de uma família sem a necessária escolaridade. “Escuta, Cleyde! Algum dia ainda vou te amparar. Você é tão bonita! Minha mulher é uma megera!”, sussurrava ele ao ouvido dela, ocasionalmente. Talvez ele fosse sincero com ela. Suas trapaças eram extradomésticas e, sobretudo, ligadas ao contrabando. Era rico. Poderia alugar um apartamento e tê-la como sua amante. Devido a sua condição social, ela almejava ter segurança. Pensava consigo: “Ah! não quero ter casos com certos homens bonitos que só querem se aproveitar; depois desaparecem e ainda deixam um filho pra gente criar. Dizem que eles não gostam de usar camisinha!...”


Cleyde não pensava no amor como meta para a felicidade. Como quase toda mulher, ela possuía o espírito prático: Queria uma casa com algum conforto doméstico, talvez um carro e algum dinheiro para satisfazer suas vaidades e também para alguma viagem de férias; uma casa de praia ou de campo viria com o tempo; não queria empregada doméstica; ela mesma faria o serviço leve de casa, e o resto ficaria a cargo de pessoas contratadas eventualmente. O dr. Waldomiro, cerca de sessenta anos, ainda aparentava algum resquício de sua mocidade; tinha a estatura acima da média dos homens; seus olhos eram vivos; o nariz um pouco adunco lhe dava uma certa sedução; sua tez clara, quase branca, contrastava com seus cabelos negros e lisos; tinha um sotaque peculiar que enobrecia sua fala; e seu modo de andar lhe emprestava a elegância de certos homens de sociedade. Contudo, era um homem frustrado emotivamente. Ele, freqüentemente pensava consigo: “Minha menina Cleyde, ainda vou viver contigo. Vou te tirar dessa profissão que maltrata a tua beleza. A minha mulher parece uma górgona!. Ela nunca foi bonita! Casei com ela por interesse financeiro; o que foi bom, não nego! Foi assim que comecei a prosperar na vida!” Cleyde ainda permanecia no quarto, envolvida em seus pensamentos. Precisava tomar uma decisão. A nossa heroína queria uma reparação pelo mal que a infelicitara. Uma festiva recepção noturna que acontecera na mansão do dr. Waldomiro, quase a deixara sem forças, mesmo com o auxílio da criadagem extra que o alfandegueiro pagara para as diversas atividades desse festim. O uísque escocês, o champanha importado e os melhores vinhos das adegas européias exaltaram a euforia alcoólica dos seus ilustres convidados. Seu filho Ricardo, um estróina mimado pela mãe, quase todas as noites chegava embriagado; nesse estado, ia à porta do quarto de Cleyde e a espreitava pelo buraco da fechadura. Ela, por causa do calor, se acostumara a dormir quase nua, o que permitia ao voyeur se masturbar, não tendo o cuidado de limpar a imundície que ficava na porta. Ele já tentara entrar no quarto, porém a jovem deixava a porta fechada a chave, pois já suspeitara de suas intenções. Também tampara o buraco da fechadura com pedaços de rolha das garrafas de champanha. Naquela noite, contudo, depois que todos os convidados se retiraram, ela foi para o seu quarto e, como era seu hábito, se ajoelhou ao lado da cama para rezar. Depois deitou-se e adormeceu, esquecendo-se de trancar a porta que ficou apenas encostada. Ricardo ficou excitado ao notar pela soleira que a porta não estava trancada. Instigado pela imaginação e pelo álcool, pensou que a moça deixara a porta assim de propósito como se fosse um convite para ele entrar no quarto. Ele não perdeu tempo. Lançou-se sobre o corpo inerte de Cleyde, que dormia profundamente. Estuprou-a, lançando seu sêmen de ejaculador precoce. Ela sentiu a dor inesperada que rompeu brutalmente sua virgindade. Estremunhada, repeliu o intruso com energia, que caiu pesadamente no chão. Ele, percebendo a reação dela, levantou-se cambaleante, e, com o dedo em riste, disse: “Vou te matar se contares isso ao pai.” Saiu do quarto às pressas, deixando-a desolada.


Cleyde passara o resto da noite acordada. Parecia que tivera um pesadelo. O desânimo de sua pobre alma fora ainda mais cruel do que a dor causada pelo estupro. Nunca pensara que fosse perder sua virgindade por meio de uma violência. Ela se mantivera virgem para se valorizar na sua luta pela sobrevivência. Ainda pensava que esse estado lhe poderia dar alguma vantagem sobre as outras mulheres, que achavam que isso já era coisa do passado. Todavia, surpreendentemente, ela fora violentada por um crápula, deixando-a ainda mais desvalida de espírito do que de bens materiais; estes, eram umas poucas peças de roupas, um estojo de maquiagem e um sapato já surrado; o dinheiro que recebia no fim do mês não lhe permitia comprar outras coisas ou desfrutar de algum lazer. Cleyde, mesmo trabalhando na casa de um homem rico, era explorada em demasia. Sem carteira assinada, não ganhava o salário mínimo. Não havia horário para o trabalho; era qualquer hora do dia ou da noite. Ela ficava observando essa gente afortunada de bens materiais, principalmente os homens, bebendo o uísque que custava mais caro do que o seu salário de doméstica. Ela ouvia alguns empresários reclamando do Governo, que ás vezes faltava com a cobertura monetária para cobrir o prejuízo de suas empresas – provavelmente em virtude de mau gerenciamento ou desvios de verbas financiadas, para a compra de automóveis, jóias para suas esposas, viagens de férias, festas, propinas para os fiscais, etc. E era essa mesma gente que esbanjava o dinheiro supérfluo, do qual apenas uma pequena parte lhe daria o suficiente para vestir-se bem, para divertir-se, ou até ter um namorado de outra classe. Olhara-se no espelho. O que faria? A ameaça de Ricardo ainda soava em seu ouvido. Tomou banho. Limpou-se bem. Mas sentia que algo a penetrara profundamente. No seu útero latejava alguma coisa. Teve vontade de pegar suas coisas e desaparecer para sempre. Pensou consigo: “Minha menstruação terminou há uma semana; ah, meu Deus! Posso engravidar!” Ela estava no seu período fértil. Tivera alguns namorados mas sem relações íntimas. Ainda tinha esperança de se casar na igreja e no cartório. Queria um marido que a tirasse de sua pobreza. Não precisaria ser rico. Bastaria que fosse trabalhador e honesto. E ainda contava com a promessa do dr. Waldomiro que, certamente, não vivia bem com a mulher que ele considerava uma megera. Ele ainda era bonito. Quanto a idade, não seria incômodo. Já vira muita jovem casada ou amigada com pessoas idosas; como aquele ator de setenta anos que casara com uma jovem de dezoito; e ela estava com esta idade. Entretanto, agora seu destino havia mudado. Se ela denunciasse o delito de Ricardo à D. Creuza, poderia ser demitida imediatamente. Ela jamais concordaria que seu filho se casasse ou se amigasse com uma empregada doméstica. Ela se referia a esta gente como “pé de chinelo” ou “pé rapado.” Teria que tomar uma decisão; e foi esta: “Não vou contar nada!”

Capítulo II

A família do dr. Waldomiro não surgiu da chamada classe social dos “barões”, a qual nosso povo humilde denomina os que tem certo poder aquisitivo elevado; ou da


dos “doutores”, assim chamados pelos empregados domésticos, lavadores de carro, vendedores de quinquilharias, operários, funcionários de lojas – quando querem bajular algum cliente que vai comprar alguma coisa –, etc. Ele veio de certa classe média, que ainda não têm posses para pagar os custosos cursos das escolas particulares; por isso, não cursara uma faculdade; só tinha o curso médio ou equivalente. Entrara na Alfândega por apadrinhamento de um pistolão numa época em que os raros concursos não eram obrigatórios para ingressar no serviço público. Nessa repartição, galgara de posto sucessivamente ao longo dos anos, sem faltar algum, pois na verdade ele se mostrara bastante operante no trato da burocracia exigida para a importação de quase tudo que vinha de fora do país. Por isso, seu título de “doutor”, que lhe fora outorgado por seus submissos subalternos. A fortuna do dr. Waldomiro crescia desapercebida do público, que ignorava suas transações escusas com o contrabando generalizado, mas que era tolerado publicamente sem nenhum pudor. O Ricardo, era ainda muito jovem quando o pai “comprou” seu primeiro automóvel importado. Ele orgulhosamente dizia para os colegas: “Meu pai é inteligente! Os de vocês vão continuar pobres!” Além dos automóveis, o dr. Waldomiro não deixava de lado o legítimo uísque escocês, perfumes franceses, isqueiros americanos, relógios suíços, pulseiras e outras quinquilharias de valor. D. Creuza o ajudava, vendendo esses produtos numa das garagens da casa; seus fregueses eram profissionais liberais, funcionários públicos graduados, policiais, magistrados, militares, empresários, comerciantes, e toda a gente afortunada da alta sociedade. As damas do “alto mundo” preferiam os legítimos e caros perfumes franceses; quem passava na rua sentia o aroma dessas essências, que parecia vir de alguma perfumaria. Já sem espaço para tanta mercadoria, D. Creuza achou melhor ocupar também a calçada da própria casa. A moda pegou. Outros funcionários da Alfândega e os contrabandistas conhecidos passaram a fazer o mesmo. A permissividade foi geral, com a venda daqueles produtos dentro dos quartéis por parentes de militares que faziam disso seu meio de sobrevivência. O representante do Governo, supostamente envolvido também com o contrabando, fazia vista grossa, de modo que essa atividade ilegal era vista como normal num país que estava à beira duma “Revolução.” Depois da revolução burguesa – na verdade um golpe de estado –, aqueles que se locupletaram daquela atividade continuaram ricos e livres das sanções impostas pelas novas autoridades do poder discricionário, porque não eram considerados filiados ao Partido Comunista de então. Quase todos pertenciam ao “sistema” e aquele mesmo representante do Governo, que fora exonerado do cargo que ocupava, escapou de outras sanções administrativas e judiciais. Já o intemerato irmão do dr. Waldomiro, também funcionário graduado da Alfândega, que aparentemente nunca se metera em atividades escusas, morreu esquecido dos seus afortunados colegas. Antes de morrer ele disse ao dr. Waldomiro: “Meu irmão, parece que você acertou! Aqui o crime compensa!...”


Para o dr. Waldomiro, os lucros do contrabando se tornaram aparentemente deficitários como conseqüência da “nova ordem” estabelecida no país. Acabou com o mercado de mercadorias contrabandeadas e a ostensiva exposição desses produtos na calçada. Entretanto, ele não perdeu tempo. Com a influência que tinha nas repartições comerciais, abriu uma loja com os produtos que sobraram em grande quantidade, já legalmente selados, como tendo sido adquiridos no mercado internacional. D. Creuza era a gerente. A jovem Zoraia assumiu o caixa da empresa e o Ricardo apenas ajudava a gastar com mais parcimônia, obrigado pela disciplina imposta pelo pai, mas ainda com o beneplácito da mãe. O seu sólido patrimônio, proveniente do dinheiro fácil, incluía várias propriedades: uma mansão na Capital, fazendas, um iate, e, para lhe garantir mais segurança, abrira contas bancárias no exterior. Todo ano ia com a família para a Europa. No outono, visitava os Estados Unidos para ver as folhas caírem nos parques de Nova Iorque. No inverno, ia esquiar nos Alpes Suíços. No verão, ficava por aqui mesmo porque dizia: “O verão daqui é menos quente do que o dos Estados Unidos e o da Europa; e temos a melhores praias do mundo!” Foi assim que o farto dinheiro da família Waldomiro deu continuidade a mesma vida social que tivera antes. Seus antigos amigos eram os mesmos, e, como sua recente atividade comercial se ampliava cada vez mais em direção a novos mercados, outras pessoas vieram compartilhar das festivas noitadas na mansão da família; em uma destas, a desditada Cleyde perdera seu melhor capital. Cleyde saíra cabisbaixa de seu quarto com uma leve maquiagem no rosto para encobrir os vestígios das lágrimas que brotavam de vez em quando dos seus olhos. Ainda continuava na dúvida anterior e hesitava em prosseguir andando em a direção à cozinha. Não ouviu barulho algum. Subiu as escadas que davam para os aposentos superiores. O quarto do casal estava com a porta aberta. Olhou para dentro. O leito estava vazio. O quarto de Zoraia estava também vazio. Teve medo de olhar para o quarto de Ricardo. Estava fechado. Tudo silêncio. Desceu as escadas e foi para a garagem. Nenhum carro. O jardineiro já começara seu trabalho rotineiro. - Seu João, viu os patrões? – perguntou ela - Saíram mais cedo, acho que foram para a loja – respondeu João com a cabeça baixa. Cleyde voltou à ante-sala. Olhou para dentro da casa e teve vontade de partir; mas faltoulhe coragem. Sua mãe morava no interior do Estado. Desde que se separara do marido, levava a vida vendendo roupas, perfumes, utensílios de cozinha e outras quinquilharias de baixo valor. Ainda sustentava as netas que outras duas filhas arranjaram; também eram empregadas domésticas; um de seus dois filhos só ganhava para sustentar muito mal a família; o outro, desempregado, vivia de pequenos serviços. Depois se envolveu com o tráfico de drogas e estava preso. Enfim, uma família da qual a Cleyde não poderia pedir auxílio. Assim, só lhe restara esse emprego. Procurar outro? Precisaria de referências. Se contasse a D. Creuza o que acontecera nessa noite, provavelmente seria despedida. Ela não gostaria de ver seu


filho envolvido com uma doméstica. Teria ainda que fazer o exame de conjunção carnal para provar o estupro. E mesmo que provasse o delito de Ricardo, a influência do pai abafaria tudo. Desse modo, ficaria sem jeito para pedir a carta de referência. Por outro lado, o dr. Waldomiro prometera ampará-la depois que a patroa morresse. Poderia ser ainda a dona de todo aquele patrimônio. E Ricardo iria pagar pelo mal que lhe fizera. Poderia morrer de desastre de carro ou de avião ou de alguma doença. Pelo que ouvira ocasionalmente, ele tivera muitas doenças venéreas. Um dos médicos da família era urologista. “Ah, que coisa! Peço a Deus que ele não tenha me contaminado”, pensou ela. Sentia algo estranho no seu útero. Uma espécie de latejo. Será que era alguma doença? Fora sua primeira “relação sexual.” Bem que seus namorados tentaram. Um deles queria casar com ela ; mas era um operário de salário mínimo e ela não queria ter muitos filhos. Um operário chega em casa, cansado do serviço, janta – se tiver algo para comer –, depois vai para a cama, e, em seguida, cai em sono profundo. A mulher fica só. Os anos se passam. A casa se enche de filhos. Vem a velhice. Depois a morte. E o ciclo das empregadas domésticas se repete. Outras “Cleydes” e outros “Joãos.” Cleyde era fisicamente saudável. Não era insensível à beleza masculina. Sozinha, criava fantasias sexuais com seu ilusório amado. Sua preferência era imaginar um homem jovem e bonito que a amasse, como sói acontecer nas novelas que via diariamente. Mas depois daquela noite, seu pensamento passou a oscilar entre o prazer e o desprazer do sexo. Desprazer, porque fora violento. E como seria se fosse de outro modo? Os namorados que tivera não foram muito íntimos e só alguns passaram um pouco de alguns afagos. Ela temia perder a virgindade. Para ela, em uma relação sexual deveria haver o ritual amoroso preliminar; depois, então, o excitamento recíproco aplacaria o possível incômodo da penetração. Ao contrário dela, suas colegas perderam cedo a virgindade. A maioria delas tinha vergonha de ser virgem. Uma delas lhe dissera: “Ora, Cleyde! A primeira vez não é tão ruim assim como dizem; isso são estórias antigas; ontem mesmo facilitei tudo para o meu namorado; agora sinto que sou mulher.” “Usaste camisinha?” perguntara Cleyde. “Não, foi tudo muito rápido!”, respondera a outra. Nove meses depois nascia mais uma “Maria.” - Vai, e vê se cria vergonha! No Rio podes fazer o que quiseres com outras domésticas; mas aqui abusaste dentro da minha casa. Um estupro pode complicar minha vida; quero distância da polícia. Todo mês vou te mandar uma mesada. Não repete na casa do teu tio o que fizeste aqui. Adeus! – Fora assim que o dr. Waldomiro despachou o filho para a casa de certo tio que morava no Rio de Janeiro. Ricardo sempre fora um problema para a família. Não gostava de namorar as moças da sociedade. Nas reuniões de família, mantinha-se distante. Pouco conversava. Nas festas da casa ele não comparecia. Sempre dava um jeito de escapulir. Preferia as boates da periferia. As garotas de programas eram suas mulheres preferidas. Ia para a cama com várias delas. Antes, praticava toda sorte de libidinagem. Mas depois, tudo era esquecido quando vinha a conta para pagar. Ele começava a discussão, questionando o preço da bebida. O guarda de segurança era chamado, mas não resistia ao ataque do corpulento rapaz. Vinha outro, e o mesmo acontecia. Enquanto isso, as mulheres gritavam e apanhavam porque ele também se recusava a lhes pagar por seus serviços. Os outros


clientes, apavorados diante de tanta pancadaria, fugiam dos quartos sem pagar também as contas, que depois eram debitadas pelo patrão no salário dos empregados do motel. Finalmente, vinha a polícia. O dr. Waldomiro era chamado porque o filho invocara seu nome: “Sabes com quem estás falando? Sou filho do dr. Waldomiro; podes perder teu emprego se me prenderes!” De outra feita, um policial respondeu: “Estou falando com um canalha!” No dia seguinte, ele perdeu o emprego. Além do conceito social que gozava na alta sociedade local, o dr. Waldomiro tinha influência política, pois já financiara muitas campanhas para certos políticos. Conhecia juízes, desembargadores e a alta cúpula policial. Portanto, tudo que o filho fazia de errado não era registrado em qualquer delegacia da cidade, porque o prestígio do pai lhe dava guarida. - Creuza, pelo tempo que passou, o “menino” já chegou ao Rio. Talvez lá, longe da tua influência, ele crie vergonha na cara; logo mais ele estará telefonando – comentara o dr. Waldomiro. - Acho que estás contente com a ida dele; afinal, tu também és culpado de ele ser o que é. Quem o induziu a ser machão foste tu; agora agüenta as conseqüências! – acusara D. Creuza, com lágrimas nos olhos. O dr. Waldomiro ficou calado, porque na verdade ele também incentivara esse comportamento anti-social do filho. Quando este tinha seis anos, ele o exibia com orgulho para os amigos e colegas, como o protótipo de um futuro macho na família. Ele dizia: “Vejam o pinto dele, como é grande! Amanhã vou comprar uma cama de casal para a empregada dormir com ele. Cedo, meu filho vai seduzir a mulher que cruzar sua frente.” Ele tinha medo que seu filho tivesse algum desvio sexual, vindo da parte da família da mãe cujo irmão era o que se diz um “homossexual assumido.” Ele havia lido em algumas revistas que esse desviou poderia ser genético. Isso confirmava, segundo ele, o que vira desde cedo naquele rapaz. Um seu parente indiscreto lhe chamara a atenção: “Waldomiro, veja como ele já desmunheca! Olha como ele rebola!” O tio de Ricardo tinha ainda sete anos. Por isso, a preocupação do dr. Waldomiro quanto a masculinidade do filho. O dr. Waldomiro não estava brincando sobre sua intenção. Comprou uma cama de casal e disse à empregada para dormir com o menino, sob o pretexto de que ele não poderia ficar só à noite; como toda criança, precisava de companhia. A partir desse dia, o asseio do menino era feito também pela empregada. O dr. Waldomiro incentivava: “Leva ele para o banheiro quando fores tomar banho e aproveita para asseá-lo; ele ainda é um menino! Não tenhas vergonha dele!” Certo dia, a pobre empregada chamou D. Creuza ao banheiro. “Patroa, veja como esse menino é saliente! Olhe como o pinto dele está levantado!” “Benedita, não sejas maldosa, ele ainda é uma criança!” Assim, o menino ia crescendo, mais sob os cuidados das sucessivas empregadas, que vinham e iam, do que da própria mãe. Esta apenas o mimava demais, fazendo-lhe todos os gostos e comprando-lhe os brinquedos mais caros. Esse hábito de tomar banho junto com as empregadas foi até uns doze anos, quando uma delas sentiu que o vigor do menino já


dava para fazer alguma coisa. D. Creuza percebeu os gemidos da empregada, e a demitiu imediatamente. A desenvoltura do rapaz foi crescendo com o tempo até que culminou com o estupro da infeliz Cleyde. Naquela festa, Zoraia estivera no jardim da casa com alguns rapazes da sociedade, que constantemente a assediavam. Ela não se impressionava muito com isso. Afinal, era rica e bonita, e era natural que esses rapazes a cortejassem. Naquela noite ela não se achava disposta para conversas frívolas; sentia-se desanimada. Toda vez que isso acontecia, seu rosto revelava um ar enigmático. O olhar suave e distante mostrava uma tonalidade variada. Seu corpo perfeito e insinuante despertava desejo e luxúria. Ela continuava calada, enquanto os rapazes tagarelavam sob o efeito do uísque ou do champanha. Ela pensou consigo: “Esses rapazes só falam bobagens. Futebol? eu não gosto! piadas? também não!” Ela era diferente das moças levianas que conhecia, e que apareciam como convidadas todas as vezes que havia festa em sua casa. Elas riam de qualquer asneira que os rapazes diziam, não obstante a falta de graça desses disparates. Zoraia fora educada nos melhores colégios da Capital, e no início do ano participava de cursos de férias no Rio ou em São Paulo. Já estivera em Londres e Nova Iorque para aprender o inglês britânico e o americano. Gostava também do francês, mas pretendia apenas saber o suficiente para ler. Ela ouvira também o conselho do pai que lhe indicara a advocacia como uma boa profissão para ocupar cargos no Governo e na política. Outra alternativa seria a ciência médica, bem apropriada para uma mulher bonita, e ser futuramente a consorte de um medalhão. “Veja só minha filha, quem manda neste país e quem tem prestígio em todos escalões do Governo! São os bacharéis! Estes, conseguem os melhores cargos do país, que também servem de pepineira para a parentela deles. Por tudo isso, nem pense exercer o árduo magistério!” “Ora, pai! Ninguém sabe disso melhor que o senhor!...” dissera Zoraia com um ar de ironia. “Ah! Não suporto mais a conversa desses janotas, vou entrar!”, resmungou Zoraia. Sem mais palavras, deu boa noite e subiu a escada de mármore que levava para o salão de festas. Neste estavam as principais figuras da cidade entre as quais o Prefeito e um representante do Governador que ela já conhecia do tribunal. Vários juizes e suas esposas formavam um círculo isolado. Em outro círculo, delegados de polícia debatiam a crescente violência nas grandes cidades e a falta de verbas para a segurança pública. A maioria dos políticos da terra estava presente, empresários, banqueiros do jogo do bicho e outros da agiotagem oficializada. De longe, esse agrupamento de pessoas ilustres parecia uma confraria com a mesma afinidade nobre e insuspeita. Mas em cada grupo, os diversos assuntos recaiam na moeda de troca de uma taberna. Não faltavam também certas pessoas indiscretas que gostam de alfinetar as outras com insinuações maldosas, sobretudo entre as mulheres. - Creuza, eu não entendo como o teu “doutor” marido consegue atrair tanta gente importante que são doutores de verdade ... – dissera uma delas.


- Não vejo aqui nenhum doutor diplomado; esses aí são apenas bacharéis em direito, inclusive o teu marido que é juiz, graças ao nosso Governador – retrucara D. Creuza. Em outro grupo. - Você já viu, querida, a empregada da Creuza? Que mulher bonita! Ela faria melhor figura ao lado do dr. Waldomiro do que essa jararaca que ele arranjou, sabe lá de onde. Já a filha dela, ao contrário, é bonita mas é reservada; nunca viram ela com um namorado! Bem que meu filho já tentou!... - Ah, não é difícil acreditar que o filho dela já seduziu a doméstica! Esse tarado não pode ver uma vassoura de saia; imaginem, a ela! Comentaram que ele fez um escândalo na boate daquele coronel que está ali; só porque ele queria fechar a boate em uma noite de Sexta- feira. Até agora ele não foi preso devido ao prestígio que o pai tem com essa gente de toga que aí está. Dizem que suas mulheres preferidas são as prostitutas e as empregadas domésticas. Estas, então, poucas vezes param nesta casa; não sei com a Cleyde ainda não foi daqui. - Como é que você sabe o nome dela? – atacou outra tagarela. – As de casa eu só chamo “Maria.” Coitadas! Nem sobrenome elas têm! Elas servem mesmo é para agradar nossos filhos; eu tenho pavor que eles peguem uma doença venérea; por isso, quando uma doméstica vem para casa, mando logo fazer um exame ginecológico nela. Meu marido já disse que é mais seguro eles fazerem dentro de casa. Cada um tem um quarto de modo a não haver muita promiscuidade. Todas elas são jeitosas! Eles que se virem! Esta saíra do grupo para atender ao chamado do marido. -

Ela é uma ingênua! – disse uma outra mulher, ainda mais tagarela do que as outras do mesmo grupo – Se ela soubesse, não teria uma terceira empregada! Dizem que um dos filhos dela fica afeminado quando bebe. Depois, faz que se esqueceu de tudo. Vocês acreditam? E já ouviram falar que a mulher daquele bicheiro é lésbica? Disseram que ela freqüenta certo bar suspeito e que desfilou disfarçada no “dia do orgulho gay.” Com certeza, a filha vai pelo mesmo caminho! Dizem que ele sabe de tudo, mas não se importa com isso. Também pudera! O que ele tem é graças a ela; ele era um pobretão que vendia peixe no mercado. Ah, está chegando a hora de minha novela predileta! Vejam, quem está chegando, aquela hipócrita! A irmã do Pregador da igreja... dizem coisas horríveis dela! O nosso pedreiro, que é um palrador de primeira e que freqüenta essa igreja, me disse que ele e outros são convidados a lavar o templo, inclusive os sanitários; levam papel higiênico e desinfetantes à custa do próprio dinheiro minguado que ganham, além do dízimo que chega a dez por cento. Eu perguntei a ele: “Como é que eles sabem quanto tu ganhas, se não tens contracheque nem carteira assinada?” Ele respondeu: “Eles sabem, sim, porque juramos para não mentir, caso contrário, pecamos. Desses quinhentos que a senhora vai


me pagar, hoje mesmo vou dar cinqüenta.” Gente ingênua essa! Ah, já ia me esquecendo sobre o que eu sei sobre aquela fulana! Ela é mais esperta do que certos políticos! Ela administra a verba da maioria dessas igrejas que vem de gente ingênua e até de certos empresários. Um deles, conhecido do meu marido, quase vai à falência. Essa fulana fatura tão alto que já tem um carro importado. Está ficando rica à custa dessa gente. A minha empregada é outra! Eu já disse a ela: “Maria, deixa de ser tola! Toda vez tu tens que levar essas tuas moedas pra eles!” Mas não adianta! No dia seguinte lá vai ela outra vez. Parece que essa gente recebeu uma lavagem cerebral deles. Veja aquele outro Pregador! Todo dia faz milagres. Muito simpático e bem vestido, fala com convicção e autoridade. Dia desses vi na televisão uma pobre mulher dizer que era surda de nascimento, e ficou curada imediatamente. Outras pessoas também ficaram curadas. Quem não me diz que essa gente não é contratada antes para fingir? Deus me perdoe! Eles não têm medo da justiça divina? Mais adiante, um revoltado estudante universitário, fazia parte de um grupo de jovens que discutiam entre si. -

Ora a justiça! Aqui neste país a justiça só é cega de um olho: cadeia suja é só para pobre, preto, e prostituta. Alguns políticos importantes fazem leis para beneficiar a eles mesmos e a essa gentalha de colarinho branco. Os que têm nível superior têm direito à cela especial, visitas íntimas, celulares, televisão e outras mordomias. Os piores assassinos têm suas penas reduzidas; basta fingir que é bom moço para conseguir esse benefício; alguns deles fazem até turismo pelas cadeias dos Estados. Alguns juizes cooperam, vendendo habeas-corpus para beneficiar esses bandidos engravatados, que dominam o comércio ilegal, o tráfego de drogas e de seres humanos, a lavagem de dinheiro e toda bandalheira imaginável.

Um outro estudante, mais circunspecto, pensava consigo, enquanto ouvia a arenga do seu colega: “Esse ingênuo pretensioso não sabe que o pai dele estudou em uma dessas faculdades que vendem diplomas. Vou me afastar desses idiotas que são valentes só quando estão com um copo de uísque na mão; fazem uma revolução na mesa de um bar; e aqui é ainda melhor porque tudo é de graça. Bom mesmo seria se eu me encontrasse com a Cleyde! É estranho que ela não esteja aqui, servindo os convidados do velho Waldomiro! Talvez a mulher dele tenha vergonha de mostrar uma serviçal que é mais bonita do que ela. Não sei por que a Cleyde é empregada doméstica! Não dá para entender! E ainda tem que suportar aquele boçal do Ricardo, que é uma besta em pessoa...” O baile continuava festivo. O dr. Waldomiro ainda não se adaptara totalmente aos novos modismos da sociedade atual. Ele não admitia a liberdade da mulher com a invenção da pílula. Não gostava da chamada música jovem, e nos seus bailes ele dava preferência às valsas vienenses, o que deixava os jovens enfarados e arredios, exceto em algumas ocasiões quando alguns universitários tratavam de diversos assuntos, sobretudo os de natureza política, que envolviam os figurões locais. Alguns destes já haviam ultrapassado os


limites da mídia regional, não por honra e mérito próprios, mas por meio de escândalos e o esbulho de milhões dos cofres públicos. O dr. Waldomiro, apesar da aparência de homem honesto, era também um desses beneficiários. Zoraia já se sentia cansada de ouvir sempre as mesmas conversas dos bailes anteriores. Dizia ela consigo: “Eles sempre falam a mesma coisa. Todos os dias os jornais e a televisão publicam esses mesmos assuntos, que não têm mais segredo pra ninguém. Sabe-se quem são os corruptos e eles mesmos fazem questão de não esconder suas falcatruas. E quanto ao meu pai? Parece que quase todos se acostumaram a ser roubados... Vou lá pra trás... a Cleyde já está dormindo... ela que é feliz! Não se preocupa com essas coisas; faz só seu serviço de doméstica. Pobre menina! Poderia ter outro destino! Quem sabe? Não elegeram um ex-operário?...” A lua cheia estava pendurada no zênite de um céu sem nuvens. Zoraia caminhava quase inconsciente. Seus olhos, normalmente serenos, pareciam agora aboticados e sangüíneos; parecia que a lua se tornara mais vermelha, como o sol no poente de uma tarde de verão. Seu corpo se aquecera mas não suava. Ela correu. Jogou-se contra a porta do quarto de Cleyde, e viu o que acontecera. Esta, chorando, procurou os braços de Zoraia, que ainda sentia a excitação que a invadira. Tentou consolar sua infeliz serviçal, mas não havia o que dizer; as duas choraram abraçadas; acabara naquele momento a diferença social entre a senhora e a empregada. Cleyde permanecia seminua, mas dava para ver o contorno do seu corpo através da roupa de dormir transparente, que trocara antes de deitar-se na cama. Ela media cerca de um metro e setenta e cinco de altura. Seus olhos pareciam duas águas marinhas que mudavam de cor conforme a luminosidade, mostrando uma discreta diferença entre o dia e a noite. O nariz parecia o de uma escultura cinzelada pelas mãos de um artista; mal dava para acreditar que ela respirava. Os lábios cheios e naturalmente róseos denotavam uma sensualidade provocante. Duas fileiras de dentes brancos e brilhantes realçavam ainda mais sua beleza quando sorria. Adornavam seu rosto esmaecido seus cabelos quase louroscacheados, que caíam como cascatas sobre seus ombros delicados. Os seus seios rijos terminavam em mamilos discretamente rombos, rodeados por uma nódoa róseo-escura intumescida. Da sua esbelta cintura sobressaía o contorno sensual do resto do seu corpo, adornado pela roupa de baixo, e terminando nas belas pernas torneadas. Zoraia, vendo que Cleyde já se tinha reabilitado um pouco da brutal agressão, procurou animá-la, fazendo-lhe carícias com as mãos que deslizavam em seu corpo. Ela continuava calada, a partir do momento em que chegara apressadamente ao quarto. Aquela sensação estranha que sentira ainda não se havia desvanecido totalmente. Estava inquieta com essa invasão de sua intimidade interior por algum demônio que aquecera seu sangue de um modo estranho até então. Olhou a cama. Os lençóis estavam amarrotados. Finalmente, rompeu o silêncio. -

Conte-me como isso aconteceu...


-

Foi tudo muito rápido... – pronunciou Cleyde com os olhos baixos. – Eu dormia quando senti um peso enorme sobre mim...depois a patroa chegou...

-

Não me chame de patroa! – reprovou Zoraia suavemente. – Para sua segurança você não pode ficar nesta casa. Vou providenciar para arranjar outro lugar para você. Agora tenho que ir! – Beijou-a no rosto e saiu.

Zoraia deixou o quarto de Cleyde com a intenção de voltar para o salão de festa. Parou um instante. Voltou outra vez aquela sensação que sentira antes de entrar no quarto. Seu sangue fluía mais rápido e aquecia sua pélvis. Sua cabeça parecia ingurgitada, deixando-a quase desfalecida. Uma de suas amigas que vinha do banheiro, amparou-a.

Capítulo III

Após a festa, a intenção de Cleyde de permanecer na mansão do dr. Waldomiro não se concretizou, contrária a decisão que tomara. Zoraia lhe arranjara uma acomodação em um bairro afastado. Era um pequeno quarto de uma vila – ocupada na maioria por homens e mulheres solteiras. Quando ainda olhava para o teto redondo do quarto, que parecia a tampa de um poço, pensou em aceitar a proposta de uma mulher que conhecera recentemente. Relutava intimamente. Por enquanto, ainda tinha uma pequena economia e mais a ajuda que Zoraia lhe dava. Mas essa situação não poderia durar. Ela não gostava de viver dependendo de outras pessoas, embora o dr. Waldomiro lhe tivesse prometido comprar uma casa e lhe dar uma mesada para reparar o erro do filho. Entretanto, os comentários dos vizinhos se espalharam pela vila, que viam um carro importado estacionado quase diariamente junto à entrada cuja largura não permitia o acesso de veículos largos. Uma de suas vizinhas, a Raimunda, que atende por alcunha Negona, comentou para uma outra: -

Nunca vi duas mulheres tão bonitas com esse tipo de amizade!

-

Ora, – disse a Zenóbia – eu já vi e muitas! Lembra-se daquelas duas cantoras? A que vem de carro deve ser a que paga tudo. Essa menina merecia outra vida. Ela poderia fisgar logo um barão. Se ela gosta de mulher, deveria deixar isso para as horas vagas...

O Cambão, zelador da vila, estava próximo e ouviu o que as mulheres falaram. Comentou consigo mesmo: “Essas vagabundas não têm mesmo o que fazer! Ficam falando da vida dos outros. Eu ainda não essas duas fazerem nada de mais. Já olhei pelo buraco da fechadura, e até de noite nada acontece. Elas se sentam, cada uma na sua cadeira, e conversam, e conversam, e conversam e nem sequer olham pra cama que está logo adiante. Ainda não


ouvi nenhum gemido. Já vi a grã-fina entrar e sair do mesmo jeito. Ah, mas tem o banheiro!...” -

Por que você não fala com a comadre Brasilina? – perguntou Negona – Talvez ela arranje alguma coisa para ela na Agência de Modelos.

-

Eu prefiro não meter essa menina naquele lugar podre – respondeu a Zenóbia. – As drogas correm soltas lá. Não a conheço, mas acho que ela merece outra vida .

-

Veja! A comadre está vindo! – disse a Negona. – Quando ela aparece com essa cara, vem com novidades. O que será agora? Ela precisa saber que tem gente disponível para a Agência. É uma boa oportunidade de arranjar moças especiais para os barões. Pelaio, o testa-de-ferro do Ricardo, quer gente nova no “negócio”; por isso, pensei nessa menina, nossa vizinha, que está desempregada. Parece que deram um chute nela de alguma casa importante, daquele bairro grã-fino, como é mesmo o nome? Ah, minha memória está ficando fraca!

-

Vou facilitar as coisas para ela – disse a Zenóbia. – Essa menina está precisando mesmo sair desta favela e experimentar uma vida nova. Vou falar a ela hoje mesmo depois que sua amiga for embora, caso ela seja acessível.

Quase nenhuma região deste país enorme está livre da praga da miséria que se vê nos aglomerados humanos da periferia das grandes cidades, que mais parecem cortiços para criação de abelhas. A vila onde fora morar a Cleyde era dessa espécie, com a maioria das pessoas desempregadas ou quando tinham alguma ocupação o salário mal dava para se alimentar durante uma semana. Sem ocupação fixa, essas pessoas se dedicavam a fazer trabalhos domésticos ou biscates de porta em porta ou mesmo na rua. Entretanto, nas horas vagas certas pessoas se ocupavam da vida alheia, como é o hábito das três mulheres já referidas. Vou começar com a Brasilina ou simplesmente a “comadre”, como é mais conhecida na vila. Ela era uma cabocla pitorra de cerca de quarenta anos. Pele escura quase negra e os cabelos lisos e corridos como os de índio. Tinha o nariz chato e os olhos escuros. A testa brilhava talvez pela excessiva oleosidade da pele. A sobrancelha fina e quase sem cabelo deixava em destaque as pálpebras que caíam sobre os olhos. Quase no canto da boca esquerda, ostentava um sinal protuberante com alguns cabelos. Quando sorria, mostrava os dentes amarelados adquiridos talvez pelo habito de mascar tabaco. Às vezes, talvez sem notar, deixava escorrer dos cantos da boca quase sem lábios dois filetes de baba da cor do alcatrão. Contudo, trescalava um cheiro de ervas aromáticas nativas, e gostava de prosear com os vizinhos da vila, tornando-se agradável e simpática. Tinha duas filhas: a Marinete, que ela dizia ser sua filha legítima e uma outra, a Matilde, que ela adotara. Além destas, morava com ela um rapaz que ela dizia ser um agregado da família, conhecido pela alcunha de “Mão de Tracajá”, por ter nascido com os dedos atrofiados de ambas as mãos, e que davam a aparência das patas da tartaruga amazônica. Diziam que ele nasceu assim porque sua mãe olhara para esse animal quando se encontrava gestante dele.


Já a “Negona”, de prenome Raimunda, como o próprio apelido sugere, era uma mulher encorpada do tipo comum com trinta e cinco anos, e a tez típica do cafuzo com os cabelos corridos e grossos. A testa muito estreita e os olhos embaçados, aparentemente lhe davam um aspecto obtuso. Mas era só aparência porque ela se mostrava bastante versátil nas conversas de rua e em outras atividades. Tinha uma filha, a Natalina, apelidada por “Birita”, que morava com ela e era mal falada na vizinhança. A Zenóbia era de um mestiço sarará de cabelos arruivados e olhos castanhos. Quase magra parecia mais alta que as outras duas. Ela omitia sua idade nas conversas com as duas outras mulheres já citadas. Mas aparentava ter uns quarenta e cinco e era solteirona. Ela usava um antigo óculos bifocal que lhe dava uma outra aparência quando não o usava. Seu nariz adunco e o corpo encurvado a envelheciam mais. Contudo, parecia ser mais sensata do que as outras duas, mas a convivência com elas habituou-a também a ser uma mexeriqueira. O zelador da vila, o “Cambão”, era o mais excêntrico da vila. Do tipo esfenocéfalo, isto é, de cabeça pontiaguda, tinha quase todo o corpo encoberto por densos cabelos negros encaracolados, de modo que mesmo nu – a Zenóbia já o tinha visto nesse estado – só apareciam os pés quase brancos, o pescoço, a testa e parte do rosto ao redor do nariz. Este, anormalmente grande e grosso, tinha na ponta também cabelos encaracolados. Da cabeça desciam os cabelos negros que chegavam quase até a metade da testa. Seus olhos pequeninos eram vivos , que sob a luz brilhavam como fagulhas. Para completar seu perfil, era baixo e entroncado. Ele também não escapava dos chistes daquelas três mulheres. Cambão passava nesse momento com uma vassoura na mão. - Cambão, vem cá, por favor! – chamou-o a comadre. -

O que foi, comadre!

-

A Negona quer te fazer um favor!

-

Qual é!

-

Queria cortar esses cabelos do teu nariz! – disse rindo, a Negona – eles me dão uma comichão nos dedos. Vais ficar mais bonito...

-

Ora, vá cortar os seus!...

-

Olha, respeita, hein?

-

Corta sim! Corta sim! – disse a Zenóbia, levantando-se de uma cadeira, e pulando como uma macaca. – Até parece que usas pulôver!... Nem precisas usar roupa!...

Enquanto a Zenóbia falava, a Negona tirou uma tesoura do bolso da saia. Basílio, o português, dono de padaria e mercadinho, que se aproximava sem ser visto por Cambão, agarrou este por trás. A Negona não perdeu tempo! Com um movimento rápido esticou os cabelos da ponta do nariz de Cambão, cortando-os com a tesoura. Nesse ínterim quase toda as pessoas da vila caíam na pândega, e o próprio Cambão levou tudo na brincadeira.


No meio dessa gente estava o “Pojó”, que era o guarda-noturno da vila, e também morava aí. Ele era um negro retinto. De perfil, via-se sua testa levemente inclinada do sobrolho saliente para o crânio pequeno e achatado. O nariz excessivamente chato e aberto, quase escondia os pequenos olhos amarelados. A boca simiesca só mostrava os dentes carcomidos quando comia ou abria a boca para bocejar. Não passava de um metro e sessenta. Tinha dois filhos: um era o “Colorido”, magro e estatura mediana, de um cafuzo acentuado, e o cabelo vermelho, que dera origem a sua alcunha; vivia o dia inteiro bêbado. O outro era o “Ludião”, o brutamontes de uma boate, que dormia quase o dia inteiro. Tinha a tez do alcatrão, era quase careca, de barriga grande e dura como couro esticado; grosso e de estatura elevada, mal passava em uma porta. O rosto apoplético exteriorizava toda sua obtusidade. No meio da confusão que se instalou no pátio da vila, o Pojó, querendo exercer sua autoridade, chamou o Ludião, que naquela hora dormia. Este, acostumado com esse tipo de fuzarca, acordou de mau humor. Sem falar nada, o primeiro que levou uma saraivada de socos foi o Cambão – que acabou pagando o pato – que se desequilibrou e caiu. Os outros correram e se esconderam em suas casas. Pojó, satisfeito, pegou seu cassetete e foi para a entrada da vila. Logo mais saíam para lá, a comadre Brasilina, a Negona e a Zenóbia. Com estas, o Pojó e seu brutal filho tinham uma certa deferência, pois diziam que a Birita já fora vista com o Ludião em afagos escusos. A despedida de Zoraia e Cleyde foi, aparentemente, nesse dia, como das outras vezes, apenas beijos recíprocos no rosto; parece que nada de mais havia acontecido no interior do cubículo, pois a porta da frente permanecera aberta até o início do tumulto que se instalara na vila. A comadre e suas duas amigas viram quando a grã-fina saiu de lá, passando por elas sem cumprimentá-las, e caminhou até o carro. - Vejam como ela está agora! – comentou a Negona. – Nem parece aquela que chegou há pouco! Parece que está tonta! Vocês viram o filme de ontem? Os olhos dela parecem com o daquele vampiro! Deus nos acuda! Até parece que está drogada! Nunca vi coisa igual... -

Ora, você já deveria estar acostumada com isso e não ficar com tantos “pareces” – disse a comadre. – Aqui, nesta vila, isto não é novidade. O Colorido, por exemplo, se não está bêbado, está drogado. E a filha do carteiro já está grávida do dono do mercadinho.

-

Mas você pensa que ela tola? – exclamou a Zenóbia – a intenção dela foi comprometer o português, esse idiota. Essa será a terceira vez que ele vai se envolver com a justiça. Ele está para ir à falência! Ah, isto pouco me interessa! Eu não gosto de mexerico!...

Cleyde ficou a remoer seus pensamentos. Lembrou-se da mulher que lhe oferecera algum trabalho que ela não sabia exatamente o que era. Disse que se tratava de um trabalho em uma certa agência de turismo ou coisa parecida; ou como recepcionista em um consultório médico, ou em uma empresa, ou, talvez, no hotel cinco estrelas da cidade; que ela teria oportunidade de conhecer gente importante cuja influência poderia arranjar-lhe um


emprego ainda melhor; que ela era bonita, alta e seu andar era daqueles de “fechar o comércio.” As sugestões dessa mulher sempre lhe acorriam à mente quando ficava só, desde a época em que trabalhara na casa do dr. Waldomiro. A promessa deste de reparar o erro cometido pelo filho ainda lhe soava ao ouvido, mas agora muito distante de suas aspirações. Apenas as visitas de Zoraia ainda lhe davam algum alento, pois esta não faltava com o recibo do dinheiro depositado no banco, em uma conta aberta por ela mesma. O dinheiro não era muito, mas dava para pagar o quarto e manter sua subsistência. Perfumes, batons, roupas íntimas e outras quinquilharias vinham das sobras de Zoraia. Essas roupas íntimas eram o que de melhor poderia adornar o corpo de uma mulher. Não pareciam que foram usadas. Eram muito diferentes das que se vendem nos melhores magazines, feitas em série pelas indústrias de roupas. Pareciam que eram produzidas artesanalmente. Cleyde as experimentava, mirando-se no pedaço de espelho que encimava seu pobre toucador. Quando trazia essas roupas, Zoraia lhe pedia que as experimentasse antes, tendo o cuidado de tapar o buraco da fechadura; ela já suspeitara que alguém as espreitava. Esse ritual demorava o tempo suficiente para Cleyde experimentar até a última peça. Depois ela se despedia e ia embora. Mas dessa vez, ao caminhar até o carro, ela parecia transformada como da primeira vez que fora ao quarto de Cleyde, ainda em sua casa. Os vizinhos notaram essa metamorfose, sobretudo as três mulheres já referidas que não saíam da rua. A noite caiu. As lâmpadas das ruas acenderam de uma vez com o a ignição de centenas de fotocélulas. As luzes das casas pouco a pouco se acendiam, algumas delas se aproveitando da luminosidade que vinha da rua. O Pojó já estava no seu posto junto à entrada da vila com o cassetete na mão. Sua figura grotesca intimidava os pequenos marginais da redondeza que freqüentemente assaltavam as pessoas que se postavam nas paradas de ônibus. Até os marginais que os usavam para roubar tinham medo dele. Nessa noite, porém, a súbita falta de energia elétrica deixou a rua às escuras. Uma correria de pessoas de todos os lados convergiu para o mercadinho do português Basílio para comprar velas. Também o Cambão, a mandado dos moradores da vila, acorreu ao mercadinho com o mesmo propósito. No trajeto, ele cruzou com o Pojó quando algumas crianças passavam perto deles desapercebidas. Uma delas, entretanto, olhou para a essa dupla sinistra, assustou-se, e gritou desesperada. -

Pai! Mãe! Socorro!!!... Têm dois bichos na vila...

As crianças e outras pessoas que vinham logo atrás também viram as duas figuras e saíram correndo; o alarido se propagou rapidamente. -

Socorro!!!... Chamem os bombeiros! A polícia!

-

Credo! Cruzes! Eles vieram daquela mata!...

-

Eles fugiram do Zoológico!...Corram!...

-

Chamem a Defesa Civil!.. O Exército!...


-

Vamos matá-los!...

-

Meu Deus! Eles querem nossas crianças!..

-

Foram aquelas três bruxas que trouxeram eles!...

-

O homem peludo é um lobisomem! Ele quer sangue!..

-

O outro é o capeta!...

O tumulto já estava se alastrando para outras quadras do bairro quando chegaram quase ao mesmo tempo vários carros da polícia e um do corpo de bombeiros. As pessoas que estavam próximas começaram a falar ao mesmo tempo. -

Aquela vila é mal assobrada!..

-

Têm três feiticeiras lá!...

-

Eu já vi aquele bicho peludo comendo um cachorro!...

-

E o outro bicho fica trepado na mangueira!..

Enquanto isso, o Pojó e o Cambão, vendo que o tumulto fora provocado por eles, procuraram se esconder, trepando na árvore mais próxima. Mas alguém os viu e gritou. -

Eles estão trepados naquela mangueira!..

O Cambão e o Pojó estavam homiziados no mesmo galho da árvore. Aquele, para se vingar da surra que pegara de Ludião, empurrou o Pojó que caiu estatelado sobre uma mesa de madeira que rodeava a árvore no exato momento que chegavam os policiais e alguns bombeiros. Logo em seguida, o galho da árvore que já estava partido, quebrou de uma vez, e o Cambão caiu em cima do Pojó. Na escuridão da noite, os policiais apenas divisaram essas figuras que lhes pareciam dois animais desconhecidos. Corajosamente eles os algemaram e os colocaram em uma jaula da viatura do Jardim Zoológico que também fora chamada. Com a prisão de ambos, os ânimos foram se arrefecendo e as pessoas se dispersaram. Enquanto mexericavam, a comadre Brasilina, a Zenóbia e a Negona viram o tumulto sem entender o que se passava. Estavam postadas junto à porta do mercadinho do Basílio que trancara o mesmo com medo de um assalto. Nesse momento, veio correndo a Birita em direção a elas. -

Mãe! – exclamou ela para Negona. – Prenderam o Cambão e o Pojó num carro do Zoológico...

-

Deixa de bobagem, menina! Eles são feios mas não são animais!...

-

É verdade! Alguém disse que o Cambão estava comendo um gato vivo. E que o Pojó agarrou uma criança..


-

Deus nos livre! – exclamou a Zenóbia. Pensou consigo: “E a Negona besta ainda deixa a Birita se agarrar com o Ludião; ela faz que não vê.”

-

Não faz nem uma semana que eles estão aqui, e já estão fazendo das suas!... – sentenciou a comadre Brasilina. – Por mim, não tinha contratado eles! Nunca vi gente tão feia!...

Nesse momento passava perto delas o Ludião, amparando o Colorido que estava bêbado. Vou...matar...o cacho...cacho... cacho... rro..que...me... deu... esta ... be...bida... – arrastava a língua o Colorido. O Ludião olhou para a Birita e piscou um dos olhos. A Negona viu mas disfarçou. Birita saiu atrás deles. -

Parece que vai chover!... – disse ela olhando para o céu.

-

Só se for na tua casa... – disse com um ar de ironia a Zenóbia.

Não demorou muito, e o Ludião irrrompeu entre elas, gritando esbaforido. -

Onde está meu pai?! Onde está meu pai?! Que desgraça!...

-

Então, tu não sabes? – perguntou Zenóbia atônita – Ele foi preso num carro do Zoológico...

-

E também o Cambão! – cortou a comadre. – Houve um tumulto aqui por causa deles. O Cambão foi flagrado comendo o cabrito do leiteiro e o teu pai agarrado com a macaca do borracheiro...

-

Isso não vai ficar assim! – gritou o Ludião, bufando de raiva – Vou resolver isso na marra! – E saiu correndo em direção à parada de ônibus.

- Há! há! há!... – gargalhou a comadre. – Ele vai é ficar preso junto com eles! Longe de tumulto, Zoraia pusera o carro em movimento rápido, mas quase não via o que estava à sua frente. Parou logo em seguida para respirar fundo, pois sentia sua região genital intumescida e úmida. Um súbito desejo de posse aliado à imagem de Cleyde, provocou-lhe uma descarga nervosa que a fez desfalecer. Despertou. Já estava noite. Alguém olhava para dentro do carro. Era um guarda de trânsito. Ela se espantou. Baixou o vidro. O guarda olhou-a atentamente e disse: “A senhora estacionou em lugar proibido, posso multá-la!” “Não há de quê, Seu guarda!” Ao mesmo tempo passou a ele uma nota de.dez...O guarda agradeceu e disse: “Se está esperando alguém, pode ficar; o meu colega lhe dará cobertura. Houve uma alteração ali. A senhora não viu? ” Cleyde, supondo que a amiga já pegara o carro, animou-se a sair um pouco até à rua, que poucas vezes freqüentava. A noite estava quente. Na vila fazia pouca ventilação porque o vento que vinha de nordeste se alinhava obliquamente com a rua principal e somente as casas ou sobrados de um lado da rua eram ventilados. Era verão e a chuva que caía no meio da tarde provocava intensa evaporação do asfalto, que esquentava ainda mais o tempo.


Quando a chuva caía por volta das cinco ou seis da tarde o tempo ficava mais ameno. Mas na vila continuava o calor, porque o outro lado da mesma ficava a pouco menos de três metros. Ao sair, ela notou que uma quarta mulher conversava com a comadre. Era a mesma que lhe prometera emprego em uma agência de modelos ou de recepcionista em algum escritório ou hotel. Não se lembrava mais exatamente o que seria. Hesitou um pouco, querendo retroceder, mas já fora vista por aquela mulher e as outras que só viviam na rua bisbilhotando a vida dos outros. Resolveu ir em frente. Passou pelas mulheres e as cumprimentou com um aceno de mão, sem dar atenção especial à quarta mulher. -

Josefa! Olha o assunto do dia! – disse a comadre. – Flagraram o Cambão comendo um porco vivo e o Pojó em cima duma negra velha. Os dois estão presos no Zoológico.

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Bem feito! – exclamou a Josefa – É lá que é o lugar deles!... – Pensou consigo: “Nem posso falar deles!...”

Foi assim que Cleyde tomou conhecimento parcial do que ocorrera perto da vila. Continuou andando até a calçada da rua e foi sentar-se em um banco de madeira que circundava o tronco de uma frondosa mangueira. O banco estava desocupado o qual só mais tarde seria ocupado por casais de estudantes de um colégio que ficava próximo, que iam lá para namorar. Olhou ao longo da rua e viu o carro de Zoraia ainda parado e junto a ele um homem; viu este meter algo no bolso. O carro deu partida e foi embora. Cleyde ficou pensativa, tentando adivinhar por que ela demorara tanto naquele local. Disse para si mesma: “Será que ela tem algum namorado por aqui? Não é possível! Ela quase não dava confiança para os rapazes de sua classe! Eu me lembro da noite do baile. Valha-me Deus! Não queria me lembrar dessa noite. O dr. Waldomiro me disse: “É um baile de gala! Vai cedo para o teu quarto! Vem muito rufião e não quero que olhem pra ti!” O meu pensamento voa; quero me fixar em um ponto, mas ele escapa e vai para aquela noite maldita. Depois daquele pesadelo, chegou a Zoraia e me consolou. Ela me acariciou com as mãos. Elas são tão macias! Eu senti sua respiração bem perto de mim. Parecia muito quente. Eu não me lembro, mas parece que ela encostou a cabeça nos meus seios. Senti seus lábios bem próximos; e como eles são bonitos! O batom que ela usava era vermelho e cheiroso! Eu me lembro do que ela disse: “Você errou de profissão! Veja-se no espelho! Não se menospreze! Valorize-se!” Mas como eu posso me valorizar se não conheço gente importante? Em todo lugar que eu vou, tem uma fila enorme de gente procurando emprego. Ainda me lembro das conversas do dr. Waldomiro: “Neste país não adiante você saber muito, ter títulos disto e daquilo se não tiver um pistolão.” E onde eu vou conseguir um pistolão? Tem mulher que tem sorte! A esperta Carlinha foi logo ser secretária do patrão; ela que nada sabe de computador, mas é bonita e viva. Ela me disse: “Cleyde, não seja assim tão fechada! Não custa nada você fazer um serviço extra para seu patrão; além disso, você recebe presentes e mais dinheiro. Vê aqueles operários? Eles trabalham o dia inteiro para ganhar um salário mínimo no fim do mês. Dia desses, eu precisei de um deles para fazer um serviço em casa; durou o dia inteiro e ele só me cobrou trinta. Fiquei com


pena dele e dei cem, porque na noite anterior eu consegui quinhentos, só para acompanhar o patrão em uma festa. Ele disse que é para fazer inveja aos amigos que só conseguem tarascas.” A Carlinha quer mesmo é arranjar um marido rico! Um patrão aqui, outro ali até chegar ao que ela quer, um ricaço, talvez. E por que eu não faço o mesmo em vez de ficar me maldizendo? Não sou tão ignorante quanto ela! Na casa do dr. Waldomiro eu aprendi a digitar no computador de Zoraia, que ficava no quarto de dormir. Ela gostava de pegar a minha mão quando eu errava alguma coisa. Ela ficava por trás de mim e eu sentia sua respiração nos meus cabelos. Uma vez, ela deixou cair uma caneta dentro da minha blusa. Ela mesma a tirou. Foi muito bom... Mas estava pensando na Carlinha. É assim mesmo! Não consigo segurar meu pensamento. Logo vem a imagem de Zoraia. Sim, a Carlinha! Ela me disse que também vai se meter numa agência de modelos de moças e rapazes. “Eu não quero só dinheiro. Quero fama. E fama só se consegue em uma agência melhor, no Rio ou em São Paulo. De lá eu posso ir a Paris, Nova Iorque, Londres, Roma...” Ah, como essa menina sonha acordada! Talvez ela tenha razão! Eu me lembro do que o dr.Waldomiro dizia para seu filho tarado, o Ricardo: “Assim que terminares a universidade, vou te mandar embora. Não adianta ficar aqui! É um lugar sem futuro para quem quer ser conhecido! Nada sai daqui! Nem nossas músicas! Se aquele cantor fosse estrangeiro, o mundo todo as conheceria. O mesmo não acontece no Rio ou São Paulo. De lá sai alguma coisa para o mundo.” Eu admiro o dr. Waldomiro. Ele só quer o melhor para sua família, mesmo para o Ricardo! E D. Creuza? Talvez ela sinta falta de mim. Os filhos não a tratavam bem. A Zoraia não gostava de acompanhá-la na rua ou em alguma visita. Eu, não! Eu saía com ela e via muita gente parar e rir um pouco. Ela gostava de usar aqueles chapéus floridos de turista americana; um vestido de tafetá preto sobre uma anágua cor de rosa; as mangas muito curtas mostravam as pelancas dos braços expostas; uma pelerine servia para encobrir as costas nuas e o peito. O seu perfume preferido era o da raiz de paticholi. A Zoraia dizia: “Isso é perfume de velha! use um mais jovial!” “Mas eu já sou quase velha!”, lembrava ela. Ela mandava o criado na feira comprar as raízes de paticholi e o colocava numa garrafa com álcool. Ela dizia que era para ficar de infusão. Quando voltávamos do passeio, depois das seis e meia da tarde, havia sempre um bilhete do dr. Waldomiro, dizendo que estava “numa reunião.” Ela resmungava, mas eu ouvia ela dizer “Depois que ele inventou essas reuniões nunca mais dormiu comigo na cama; prefere dormir no quarto de hóspedes; por mim, não tenho mais aquela disposição; ele que se vire! O Ricardo puxou pra ele! Deve ter alguma rapariga por aí! O que importa é o conforto que ele me dá!” A Carlinha também me disse que o que mais lhe interessa é o conforto; é por isso que ela não se cansa de procurar homem rico para garantir seu futuro; para mim ela é muito interesseira. Ah, aquela mulher! Ela está vindo para cá. Não sei o que ela quer comigo. Se fosse a Carlinha, já teria pegado a oferta dela, desde que lhe pagassem bem. Vou me preparar. Ela me dá calafrios...” A mulher a qual se referiu a Cleyde era a Josefa, a quarta mulher que se juntara ao grupo das três mulheres mexeriqueiras. Ela era de estatura baixa, um pouco gorda, cor acobreada, cabelos negros corridos e partidos ao meio até a nuca, formando dois cachos grossos de cada lado. Seu rosto era redondo, o nariz pequeno e chato. Seus olhos eram pequenos e azeitonados. Era o tipo da cabocla originada da mestiçagem de índio e branco, o mameluco. Andava bamboleando, e tinha o jeito de uma proxeneta. O que mais impressiona nessa mulher eram seus olhos quase parados. Mal se via a pupila que ficava


escondida sob a córnea escura que quase não se distinguia da esclerótica. Pareciam os olhos vampíricos das personagens de filmes de terror que se transformam diante de suas vítimas. A rua mal iluminada e a copa da mangueira formavam um ambiente lôbrego. Por isso, o temor de Cleyde, que tremia um pouco com a aproximação da mulher. -

Ando querendo falar com você há dias – disse Josefa. – Foi a comadre Brasilina que me deu suas características, e eu não tive dúvida que se tratava de você. Por que saiu da casa do dr. Waldomiro?

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Eu quis mudar de profissão... – mentiu Cleyde.

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Mas a filha dele continua te visitando, não é? – disse Josefa com um ar maroto – Minha querida, pouco me interessa a vida dos outros e não vivo de fofocas. O meu “trabalho” é prático como você vai ver depois. Não sou como aquelas três que estão ali, que passam quase o dia inteiro falando mal dos vizinhos e nada ganham com isso. Aposto que você é o assunto preferido delas; mas deixa pra lá! Está aqui este endereço; se puder, vá lá amanhã mesmo. Há muita concorrência! Não perca a oportunidade!..Até a vista!

Josefa deu meia volta e dirigiu-se para uma parada de ônibus próxima. Cleyde continuou sentada até quando a mulher pegou o ônibus. Levantou-se, mas viu que as outras três mulheres ainda estavam na entrada da vila. Ficou com vergonha. Os estudantes ainda não haviam saído do colégio, de modo que o lugar continuava com o banco livre. Sentou-se outra vez. As mulheres conversavam e olhavam na sua direção. Cleyde voltou aos seus pensamentos: “O que elas querem de mim? O que a mulher quis dizer “a filha dele continua te visitando?” Não vejo mal nenhum nisso! Ela quer apenas me ajudar e me acaricia como fosse sua irmã. Nós, as mulheres, temos certos hábitos que os homens não têm; de andar de braço dado na praça, beijar-se em público ou mesmo tomar banho juntas. Eu me lembro que a Zoraia, quando ia ao banheiro tomar banho, me chamava para esfregar suas costas. Ela sentia cócegas e também me limpava. Eu gostava quando ela ...ah, como era bom! nós ficávamos muito tempo na brincadeira. Ela dizia: “Vamos apostar um beijo na boca, se uma de nós ficar menos tempo mergulhada na banheira?” A banheira era grande, que cabia nós duas mergulhadas. Ela perdia quase todas as vezes. A primeira vez que ela me beijou, eu senti a diferença entre o beijo de um homem e o de uma mulher. Ah, quem dera que o homem tivesse a delicadeza dos lábios de uma mulher e o hálito fresco, sem cheiro de bebida ou tabaco! O meu namorado não me agradava porque eu sentia alguma coisa forte que saía do seu corpo; já o corpo da Zoraia tem um cheiro suave e não tem os músculos dos homens e seus pêlos encaracolados. O dr. Waldomiro era um desses que me dava medo quando tirava a camisa para tomar banho na piscina. Eu ficava imaginando como ele seria se tirasse toda roupa. D. Creuza, que o diga!. Certa vez ela gritou de dentro do quarto : “Corta mais esses cabelos daí. Estão entrando na minha...” Ela possuía também cabelos negros e grossos e dava para ver que eram assim em outras partes. A Zoraia não puxou nada dela. Tem os cabelos castanhos e as feições finas. É alta, tem a pele bronzeada e toda certinha de cima a baixo. Ela me disse que só gostaria de ter os lábios como os meus. Num daqueles beijos na banheira ela quase me mordeu; depois pediu desculpas devido a água que estava muito quente. Ela gostava de


aumentar o calor da água porque ela dizia que ajuda a circulação do sangue. Eu notava que o meu corpo também ficava quente; uma espécie de febre que esquentava a cabeça. Numa dessas brincadeiras eu quase desmaiei e parece que sonhei como se estivesse dormindo. Eu via a Zoraia me beijar toda e ficar em cima de mim. Alguma coisa macia me excitava. Depois eu via o meu primeiro namorado que depois era o dr. Waldomiro e até o Ricardo. Quando acordei, vi a Zoraia ao meu lado ainda nua e parecia que dormia. Ainda bem que a banheira não tinha muita água. Fiquei um bom tempo olhando pra ela. Estava muito pálida. Toquei nela. Acordou. Olhou-me com ternura e disse: “Foi a água!” Depois ouvimos os gritos de D. Creuza: “Por que demoram tanto no banheiro?! Parece que a Cleyde ainda não aprendeu a te lavar. Saiam logo daí! O Waldomiro já está chegando!” Eu já estava acostumada com esses banhos demorados, principalmente quando D. Creuza saía de casa. Ela também me chamava para limpar seu atelier que tinha uma bonita vista para a baía. Ela pintava algumas coisas que eu não entendia; ela dizia que era arte moderna. Desenhou a cara do jardineiro que me fez rir. Um dia ela me disse: “Agora vou pintar a natureza viva e tu vais ser meu primeiro modelo.” Mandou me despir. Eu fiquei com vergonha. Hesitei. Ela se aproximou pra bem perto de mim: “Vai ser como no banheiro. A mamãe não está e nada há de mal nisto; é assim que os artistas fazem com seus modelos. Vou te ensinar a primeira pose.” Ela começou a me despir. Primeiro foi a blusa. Olhando para mim, ela desabotoou cada botão da frente até tirar toda a blusa pelos meus braços. Depois foi a vez do soutien que foi despregado por trás. Quando ela viu meus seios, começou a tremer como das outras vezes na banheira; depois baixou a saia e me deixou quase nua. Sua tremedeira aumentou. Ela parou um instante. Parece que ficou sem coragem de baixar minha calcinha; eu mesma a baixei, deixando um pouco enviesada sem ficar toda nua. Ela sorriu. “Agora vou começar!... Não se mexa!.. Ainda não está bom!... Vou ajeitá-la!...” Abaixou-se e depois...” -

Olá! Está se sentindo bem? – perguntou um jovem que chegara um pouco antes.

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Oh, meu Deus! Estava falando sozinha – disse ela mussitando. – Estou, sim, obrigada!

Um grupo de jovens chegara para o namoro diário no final das aulas. Cleyde levantou-se do banco e passou além das três mulheres que ainda conversavam, e foi se encafuar no seu humilde cubículo. Ela possuía o hábito de dormir cedo, depois da principal novela da noite, desde a época do seu primeiro emprego como criada doméstica.. As tarefas extenuantes do dia-a-dia só lhe davam oportunidade para ir aos domingos a alguma festa de pessoas de sua classe em clubes de bairros pobres; todavia não demorava muito porque cedo tinha que se levantar para fazer o café da família. A expectativa do que poderia acontecer na Agência de Modelos tirou totalmente seu sono. Na verdade ela não sabia qual seria sua função naquele local. O hábito de pensar e fazer coisas pequenas só lhe mostrava atividades como a de tomar conta da cozinha, lavar a roupa dos modelos, fazer comida e outras coisas que a vida lhe reservara até aquele momento. Seu melhor emprego fora na casa do dr.Waldomiro e mesmo lá terminara em uma tragédia pessoal para ela. Ela temia sobre o que poderia dizer na entrevista ou responder a alguma pergunta mais sutil. Apesar disso, ela adquirira uma certa confiança em


si no trato com pessoas da sociedade nos alegres bailes da mansão do dr. Waldomiro. Ela andava com graça no meio daquela gente e fazia isso de propósito, pois via na cara das ilustres damas um certo desgosto quando os homens volviam indiscretamente as cabeças á sua passagem e só queriam ser servidos por ela. Quando os ânimos se exaltavam pela energia do álcool, alguns deles a seguiam sem medo da reprovação das suas mulheres. Na festa de dezoito anos de Zoraia, um deles não se conteve e cortejou-a para todo mundo ver. Tirou-lhe a bandeja de prata das mãos e iniciou com ela uma valsa que viera a propósito. Adriano envolveu-a elegantemente e fez parar as pessoas presentes. Suas manobras eram perfeitas e davam a impressão que Cleyde flutuava com ele. Naquele raro momento de deleite em sua vida, ela esqueceu de sua triste condição de empregada doméstica; ela vivia um conto de fadas! As outras mulheres não esconderam sua decepção com esse homem arrojado e injetaram todo seu ódio em Cleyde. Algumas chegaram a ver isso como uma afronta aos seus ilustres nomes; outras como uma humilhação; mas não faltaram as que viram nisso um quadro ridículo, e caíram na risada. Ao terminar a valsa, Adriano fez um salamaleque clássico para Cleyde. Ela voltou a si e, como se nada tivera acontecido, tomou novamente a bandeja e reiniciou o serviço. Por um momento, o salão ficou silencioso. Adriano, sob o efeito do álcool, ensaiou um discurso que logo veio. “Senhores e senhoras! Eu cometi algum ato insano? Não!!! Essa mulher que é uma doméstica, bem merecia estar em outro lugar. Entretanto, ela continua servindo, humilde e naturalmente, essas iguarias que vocês degustam frugalmente; mas seus estômagos estão vazios e desejosos de se fartar; por isso, depois, furtivamente, em algum recanto deste salão, pegam uma porção desta lagosta e a devoram caninamente; em uma outra ocasião, fazem a mesma coisa com o caviar e o faisão; e não faltam os que gostam duma cachaça e que neste momento bebem uísque ou champanha do nosso exagerado anfitrião. Essas suas valiosas roupas, sapatos, e bolsas não têm o mesmo encanto daquele avental – apontou na direção de Cleyde. O perfume que usam não tem a fragrância daqueles cabelos que exalam um cheiro afrodisíaco.” – Ele fez uma pausa. Voltou-se, então, para um grupo que estava isolado, e apontou para um almofadinha que estava com a boca aberta. “Agora, a conversa é outra: Tu, canalha! Teu pai vende habeascorpus para traficantes de drogas! – juiz não se encontrava aí. – Disseram-me também que ficas alegre quando bebes, e depois se esquece de tudo; e teu pai diz para todo mundo que és um machão. Ora essa! O diabo que te goze!” – A gargalhada foi geral, exceto das autoridades que estavam perplexas. Uma mulher de quarenta, toda enfeitada, tomando as dores do rapaz ofendido – provavelmente sua aparentada –, não se conteve e avançou na direção de Adriano com um dos sapatos na mão, aplicou-o na cabeça dele, abrindo uma brecha no couro cabeludo que fez o sangue jorrar; ele não se perturbou e continuou o achincalhe sob o jugo de alguns guardas de segurança que tentavam tirá-lo à força do salão. No alvoroço que se formou , os protestos eram gerais. Quase todos reprovaram o comportamento do Adriano, principalmente as mulheres que se reuniram em grupos, cada um com a afinidade respectiva das profissões de seus respectivos maridos: mulheres de médicos e engenheiros, de políticos, de magistrados e advogados, de empresários e


comerciantes; enfim, de outras profissões liberais menos afortunadas, como a de professor. “Esse sem-vergonha não tem jeito mesmo! – dissera uma delas – Em todas as festas ele sempre apronta um escândalo.” “O dr. Waldomiro não devia tê-lo convidado, já sabendo como ele é – dissera uma outra. – Você se lembra do que ele disse na festa do Prefeito? Que o desembargador Malaquias fez uma prótese peniana porque não dava mas conta do recado. Que audácia, hein ?” “E se é verdade o que ele disse da mulher do comendador Teixeira, é ainda pior do que essa – dissera uma terceira, que ouvira os comentários e estava em um grupo próximo; – que ela é hermafrodita e o marido gosta disso. Que coisa horrível, hein!” Entretanto, Adriano ainda se debatia nos braços dos que o seguravam. A tensão aumentava entre os homens. O pelintra queria vingança e a mulher do sapato dizia que ele deveria ser jogado para fora do salão. A primeira cadeira partiu de um grupo de jovens que se divertia com a confusão. A resposta veio em seguida com outras cadeiradas, bolos confeitados que voavam na direção das madamas, que tinham seus ricos vestidos estragados por maionese; um gerente de banco caiu de quatro e seu óculo foi esmagado por um dos vândalos que tentava se apoiar em uma mesa; um outro homem, totalmente embriagado, vendo-o naquela posição, aproveitou-se para fazê-lo de cavalo e gritava: “Agora tu vás me pagar com juros e correção monetária o que tu me roubaste naquele empréstimo, miserável f.d.p.” Para completar o pandemônio, as garrafas de uísque eram usadas como “coquetel molotov” na direção da calçada, explodindo do lado de fora. A correria foi geral. Parecia que a mansão do dr Waldomiro se transformara em um campo de batalha. Chegou a polícia. E assim terminou o aniversário de Zoraia. Todas essas recordações vinham como imagens na mente de Cleyde e davam uma trégua às suas preocupações sobre o que iria acontecer no dia seguinte. Enquanto pensava, escolhia sua melhor roupa, uma das que Zoraia lhe dera. Falou consigo: “Devo impressionar eles. O dr. Waldomiro sempre dizia: “A primeira impressão é a que fica. Olhe seu interlocutor no tronco do nariz; imagine-o de cueca ou sentado num vaso sanitário; fale com convicção mesmo que esteja mentindo.” O dr.Waldomiro é mesmo um homem sábio, bem diferente daquele seu filho tarado. Zoraia me disse que eu teria um futuro melhor se tivesse paciência para esperar. Ela estava com um projeto de fazer um curso lá fora e que eu iria com ela, pois tinha medo de morar só, e seria também uma oportunidade para mim aprender uma boa profissão. Enquanto isso não sai, vou ver o que vem agora para mim. Não é possível que eu nunca encontre alguém de boa fé que me ajude! Os homens só querem olhar para o meu corpo e se aproveitar de mim. Eu não entendo porque escolhem uma mulher feia para se casar e querem uma mulher bonita para passar só umas horas; e eles continuam o resto da vida com a feia! O dr.Waldomiro é um deles! Mas ele quer que a mulher morra pra viver comigo. Por que então se casou com ela? Ah, lembro-me! Alguém falou que foi por dinheiro. Não acreditei muito nessa conversa dele. Quem sabe, ele só queria se aproveitar de mim como os outros! E agora, o que vai acontecer a partir de amanhã comigo? As horas se passam e eu não consigo adivinhar o que eles vão me dar para fazer. Não queria mais serviço de cozinha. Já me disseram que eu mereço outra coisa. Ah, foi a Zoraia que me disse! Eu preciso dormir mas o sono não vem. Por que isso acontece quando a gente está preocupada? Preciso estar com boa aparência para impressionar quem me atender. E se for uma mulher? E se for feia? E se for bonita? Prefiro que ela seja


mais bonita do que eu, porque assim ela não vai ficar com inveja de mim. Será por isso que era difícil eu arranjar emprego em casa de família, quando era a dona da casa que me entrevistava? Mandavam-me embora, dizendo que empregada bonita ficava o tempo todo se enfeitando para namorar. Só deu certo na casa do dr.Waldomiro porque foi a Zoraia que me entrevistou e fincou pé com a mãe para que eu fosse contratada. Quando o dr.Waldomiro me viu pela primeira vez, disse: “Até que enfim tiveram pena de mim!” Na hora eu não entendi o que ele quis dizer com isto. Mas depois começou com suas saliências, mas não passou disso. Logo no início senti que ele fingia que não me olhava quando eu andava de um lado para outro para atender os chamados de D. Creuza. Se ele estava sentado, lendo alguma coisa, parecia que não se importava com a minha presença. Ficava de cabeça baixa, mas eu via que os seus olhos se moviam e me acompanhavam até eu entrar no quarto de D. Creuza. Quando ele falava comigo, ficava nervoso e às vezes corava; e me deu ordem para fazer só o serviço leve da casa, e que não era mais preciso eu atender seus convidados nas noites de bailes. Isso aconteceu logo depois do aniversário de Zoraia, que terminou em briga por minha causa. D. Creuza pensou em me despedir, mas foi ele que a convenceu para mim ficar, pois já tinha visto que a filha se sentia bem comigo. Foi assim que eu fiquei na casa dele até aquele dia desgraçado. Oh, meu Deus! O que está acontecendo comigo? Faz quinze dias que a minha menstruação não vem. E se eu estiver grávida? Logo de quem! O que vou fazer? Não tenho dinheiro para ir a um médico particular; só se eu falar com a Zoraia. Não! Vou ao posto de saúde. Mas a Carlinha me disse que lá não se faz esse tipo de serviço. Ela bem que está acostumada com isso! Já mandou tirar uns três filhos. Eu disse que ela iria para o inferno quando morresse. Ela me respondeu: “Tô nem aí! O inferno é aqui mesmo! Ninguém aceita mulher com filho na barriga para trabalhar; é a primeira coisa que os patrões querem saber; eles não querem perder mais dinheiro por causa dos tais de encargos sociais. Por isso, eu trabalho e me viro por fora; e só fiquei grávida porque os homens não gostam de “transar” com camisinha; eles dizem que ela isola e por isso tira todo o prazer. Mas não faço por pouco dinheiro. O meu patrão não gozava nunca e toda vez ele ficava aborrecido e triste. Até que um dia ele me disse: “Te dou o dobro do que te dou se deixares eu tirar a camisinha.” Eu aceitei. Ele ficou tão alegre que me deu ainda mais do que prometeu. Mas não é com todo mundo que eu vou sem camisinha. É só com ele; é bom de cama! Estou usando agora um anticoncepcional. Sabes, né? Eu também sentia que não tinha muito prazer com a camisinha; e na hora da loucura a gente deixa de pensar, e lá vai! Mas é melhor prevenir do que remediar; ainda tem a maldita Aids; sempre aparece alguma desgraça para atormentar a nossa vida, principalmente a do pobre. E tu, Cleyde, eu queria ter o teu corpo que eu já estaria rica! Não deves ficar o tempo todo nessa de empregada doméstica, ganhando pouco e sendo explorada dia e noite pelos patrões. Deixa de morar na casa deles que tua vida vai melhorar. Só tu mesma pra aceitar isso! E ainda podes te virar como eu faço. Mas não te metas com gigolôs. Só mulher burra ou feia fica sustentando esses parasitas. Trabalha só, como eu. Logo mais vou ter minha casa própria com tudo que tenho direito. E o resto que se dane!...” Ah, eu poderia fazer o mesmo! Mas na missa eu ouvi o padre dizer que sexo fora do casamento é pecado. Eu me lembro que o dr. Waldomiro dizia : “Os pobres aumentam suas desgraças, fazendo mais filhos para servirem aos ricos quase de graça; isso sempre foi assim desde o início do mundo.” Se eu ficar nesta vida que levo, não vou ter nunca o que eu quero; mas amanhã tudo vai ser resolvido. Estou com um palpite


que vou subir agora sem precisar fazer como a Carlinha. E, se não for assim como estou pensando? Ai de mim! Será uma desgraça! Ainda mais com este filho que está se formando! Não! Vou ter que dar um jeito! A Zoraia pode pagar um médico pra me livrar disto. Estou muito nova e não tenho dinheiro para sustentar sozinha um filho. E mesmo ela não iria gostar! E meu corpo, como iria ficar depois? Talvez gorda e com os seios caídos. A minha única riqueza indo embora por causa deste filho asqueroso. Já estou com ódio dele! Não foi por minha vontade que ele se abriga no meu ventre ! Por isso, posso matá-lo! Oh, que pensamento horrível! Parece que é o diabo que entra na nossa cabeça. Mesmo que tivesse muito dinheiro, eu não iria querer este filho. Pobre coitado! Enjeitado por todos! O pai tarado! o dr. Waldomiro e D. Creuza não iriam aceitar um neto de empregada doméstica; Portanto, o destino dele é a lata de lixo. Ui! o que eu disse? É o capeta mesmo que vem sem avisar. Se a Zoraia não der um jeito, vou falar com a Carlinha. Se ela não fizesse o que fez, já estaria com três filhos para sustentar sem poder mais sair com seu patrão e levar uma vida folgada e de luxo. Foi ela mesma que disse que é menos bonita que eu; não é orgulhosa, por isso gosto dela; é meio doida! Ela disse que não gosta de pensar muito; atrapalha com muitos detalhes e cada vez mais vai enrolando até fazer a gente desistir de uma aventura. Com os homens ela é prática. Não fica se dedicando a só um. Finge que é fiel, mas trai todos eles e nunca sai com homem sem futuro. Só o primeiro foi por amor. Ela disse que isto não enche barriga e que é melhor o conforto do que palavras bonitas. Não quer saber nem de se casar ou se amigar. Prefere morar só. Não quer ser escrava de um único homem. Antigamente era assim! Às vezes ele não prestava e a mulher tinha que conviver com o traste o resto da vida. Ter filhos e nada mais! Essa história de que a mulher só tem prazer com o homem amado é pura conversa fiada de novela, filme antigo e romance. Ela também disse que sente prazer com aquele que lhe dá prazer. Não é amor! É só atração física! E o que é o amor? Eu ouvia o dr.Waldomiro discutir com os amigos essas coisas: “...nenhuma definição de amor convence. É um sentimento que deve ser vivido. Defini-lo com palavras é inútil e só adensa mais o mistério. É aí que está o segredo da felicidade...” Eu talvez não amei alguém porque nunca fui feliz. Os homens me querem para outra coisa e eu ainda não sou uma Carlinha que não liga para esse troço de moral e religião. Também não é só ela que é assim! Uma de suas amigas vivia no pé do marido o dia inteiro; espalhava para todo mundo que o amava e que não podia viver sem ele; não o largava nem no serviço. De repente, ele morreu. Um mês depois ela já estava com outro dentro de casa, vivendo à custa da pensão e do seguro de vida que o marido deixou. Mamãe me contou que uma vizinha dela, no enterro do marido, queria se jogar dentro do caixão com ele; gritava como uma louca; que iria se matar se não a deixassem ir com ele para o outro mundo. Uma semana depois, ela tirou o luto e se amigou com o jardineiro. Uma outra, enquanto o marido estava estendido na sala, transou com o amigo dele na própria cama, que tinha ido dar os pêsames para ela. E minha tia fez a mesma coisa com um militar que era colega do seu marido. E eu, por que tenho que ser tão diferente das outras? Não sei quem meteu isso na minha cabeça! Parece que foi o papai que disse: “Minhas filhas têm que se casar de véu e grinalda. Não fica bem para a mulher ter mais de um homem; quanto aos homens, que se virem! Têm que ser macho!...” Ah, meu Deus! Já é muito tarde! Já está tudo pronto! Esta roupa que a Zoraia me deu é de gente fina. Vou deitar! O sono tem que vir!...”


Apagou a luz. Deitou-se. Estava calor. O ventilador jogava um ar quente. Preferiu desligálo. Fechou os olhos. Virava-se de um lado para outro e nada do sono vir. Levantou-se e foi tomar um banho. A água estava tépida. Molhada, deitou-se outra vez. Agora o sono veio suave e a levou... Amanheceu. No Jardim Zoológico, o Cambão e o Pojó dormiam em uma jaula bem fortificada. Em uma outra jaula também dormia Ludião. Este fora ao Zoológico ainda na noite anterior. Chegou lá com a fúria de um animal selvagem. Os guardas, ainda no escuro, pensaram que ele era algum animal que tivesse se soltado. Manietaram-no, prendendo-o em uma jaula próxima aos dois. Os raios solares invadiram forte as grades das jaula. Quase em sincronia os três acordaram. Pojó olhou para Cambão que examinava o interior da jaula. Ficou atônito. Parecia que não se lembrava do que acontecera na noite anterior. Ele e Cambão apresentavam hematomas no corpo devido a queda da árvore. Não demorou muito para ele se lembrar que Cambão o empurrara do galho da árvore onde se homiziaram. E não demorou muito também para se vingar em Cambão, socando-lhe a cara com um potente soco. Cambão reagiu e os dois se engalfinharam, enquanto Ludião começava a urrar como um animal ferido. Um guarda ainda sonolento foi despertado de vez com o barulho. Já sabia de onde vinha tamanha bulha. Com uma mangueira de borracha em punho correu para o local. Sem titubear lançou um potente jato de água nas duas jaulas. Os três, com a água fria, se conscientizaram de vez da trapalhada cômica que se envolveram. Ludião foi o primeiro a reagir. -

Miserável! Ouve a minha voz! Eu não sou animal...

O guarda ao ouvir a voz do suposto animal saiu correndo e gritando. - Tem um bicho falando!. É um daqueles de ontem! Socorro! Socorro! Socorro!!!... Outros guardas, que já tinham ouvido o alarido, foram de encontro ao guarda que vinha correndo. Ao mesmo tempo apareceram várias pessoas da vila entre as quais a Birita que correu entre os guardas e foi diretamente para a jaula do Ludião e o abraçou através das grades. Só então os guardas entenderam toda trapalhada da noite anterior! Correram todos para a sala do diretor e narraram o acontecido. Mas já era tarde demais! Os vizinhos da vila já haviam avisado os jornais, a televisão e várias Ongs. Algumas emissoras de rádio se anteciparam às suas congêneres e invadiram o Zoológico. Não demorou muito, e uma enorme multidão se formou ao redor do parque, pois a polícia fizera um cordão de isolamento na entrada do mesmo. Enquanto isso, um batalhão de fotógrafos acionava suas máquinas. Um deles tirou várias fotos de Birita agarrada ao pescoço do Ludião. Um outro convenceu Pojó a apertar a mão de Cambão. Os dois idiotas, esquecendo suas desavenças, acederam ao pedido, sendo fotografados de diversos ângulos pelo repórter. O circo estava armado. Um gaiato que assistia a tudo, aproximou-se das jaulas. - Falem que eu quero ouvir! – disse ele. Nenhum deles falou, mas Cambão respondeu com um gesto obsceno. -

Mete na tua mãe, lobisomem de circo!


O riso foi geral. O coordenador de certa Ong se aproximou da jaula . Fez várias perguntas aos três encarcerados. O Diretor do Zoológico, acompanhado por vários guardas armados, chegaram logo em seguida. Um deles abriu as jaulas. Os três homens ainda molhados obedeceram a ordem para sair das jaulas. O último a sair foi Ludião. Olhou para o guarda que ainda estava com a mangueira na mão. Não se conteve. Avançou para ele, levantandoo pelo pescoço. Um outro guarda, vendo o perigo que corria o seu colega pegou uma arma, acionando-a. Ludião caiu pesado sobre o guarda. Estava anestesiado! Enquanto isso, o diretor do Zoológico procurava justificar-se com a imprensa, colocando a culpa na polícia que não verificara direito aquelas personagens. Por sua vez, esta colocava a culpa na central elétrica que provocara o blecaute. Os jornais vespertinos estamparam suas manchetes com as fotografias dos três homens. A mais grotesca foi a de Birita abraçada a Ludião. As Ongs queriam processar o Governo por desrespeito aos direitos humanos. Levaram o caso aos tribunais internacionais. E o país foi motivo de chacota no mundo inteiro.

Capítulo IV

Uma enorme fila de pessoas circundava uma quadra inteira. O anúncio saíra durante vários domingos. Era um desses pequenos impressos em negrito que são vistos nos classificados dos jornais, e repetidos de modo a chamar a atenção dos candidatos. Certa agência estava recrutando moças de boa aparência para uma oportunidade de emprego em hotéis, clubes sociais, escritórios, empresas de diversos ramos, agências de turismo, modelos para divulgar as grifes da moda, enfim uma parafernália de atividades. O prédio onde ficava essa agência tinha uma bonita fachada, pois fora redecorado com uma espécie de arquitetura greco-romana, o que lhe emprestava uma aparência vetusta, mas também alegre devido a cor amarelo-abóbora. Na entrada do prédio, sobressaia uma réplica pequena da Estátua da Liberdade. O interior começava com uma escadaria que levava ao primeiro pavimento no qual a fila também já chegara. Uma grade de metal com


uma porta dava acesso a outra escadaria que levava ao segundo pavimento. Simetricamente a essas escadarias havia vários escritórios tanto à esquerda como à direita. O prédio ao todo dava aparência de algum colégio antigo, um hospital ou um hospício se não fossem as cores vivas e a estátua. Mas notava-se logo que estas inovações foram agregadas posteriormente à construção do prédio cuja data de inauguração era do início do século vinte, com suas paredes grossas e colunas encimadas por capitéis. Na porta de ferro, postava-se um homem corpulento vestido com um uniforme desses de porteiros de prédios. Ele fazia entrar de cada vez um grupo de dez pessoas que caminhava em fila até o segundo pavimento que tinha a mesma disposição do primeiro. A fila parava diante de uma porta fechada na qual as pessoas esperavam a vez de entrar à chamada de um segundo porteiro ainda mais corpulento. Uma outra porta ao lado dava acesso a uma ampla sala na qual havia uma mesa central moderna e funcional e atrás desta uma cadeira revestida de couro. Na frente da mesa havia uma cadeira isolada. Outras cadeiras se situavam atrás desta em semicírculo, como as que existem em algumas repartições, nas quais os clientes aguardam sua vez. Na parede do lado esquerdo havia uma pequena janela de vidro retangular, semelhante a que a polícia usa para identificar os suspeitos de delitos sem que estes vejam os seus acusadores. Do outro lado da parede, havia um banco comprido de madeira que ia até o final da parede posterior. Vários biombos se dispunham irregularmente. Quem estava lá dentro não dava para ver a janela de vidro que fora disfarçada com uma decoração erótica de mau gosto. O que de melhor havia nessa sala era o ar condicionado, um requisito necessário para quem estivesse lá dentro, devido ao sufocante calor equatorial. Quase no fim dessa parede havia uma porta estreita que dava para a sala principal. Nesta, três homens conversavam. Um deles, que vamos chamá-lo Pelaio, era o gerente da agência. Era de estatura alta. Tinha os cabelos negros e bem aparados, olhos castanhos, sobrancelhas grossas e nariz levemente aquilino. Usava um bigode estreito que realçava sua boca bem feita. Quando sorria mostrava uma fileira de dentes perfeitos. Era simpático e bem a contento com a posição que exercia na empresa, usando freqüentemente terno completo. Tinha cerca de trinta anos. O outro homem que atende pelo prenome Márcio tinha o porte atlético, bem realçado pelo paletó apertado que usava. A calça de cano estreito mostrava que suas pernas eram ligeiramente arqueadas. Tinha olhos e cabelos castanhos partidos de um lado e um sobrolho estreito. O nariz era um pouco virado para o lado e parecia ter sofrido alguma contusão. O queixo quadrado e os lábios finos completavam sua aparência de um homem audacioso e temido. Tinha aproximadamente vinte e cinco anos. Enfim, o terceiro homem era Juan cujo nome se ajusta a sua fama de conquistador. Era alto e esguio. Seus cabelos negros e compridos eram amarrados atrás por um cordão amarelo, deixando bem visível o rabo de cavalo. Seus olhos negros e penetrantes brilhavam sob uma espessa sobrancelha. O nariz afilado parecia que estava sempre farejando alguma coisa. Usava um bigode que emendava com um cavanhaque arredondado, deixando bem visível sua boca sensual. Falava melifluamente.


As primeiras candidatas já estavam dentro da sala dos biombos à espera do entrevistador, que às dez horas da manhã ainda não as havia atendido. Elas conversavam animadamente entre si. A esperança de conseguir um emprego ou outra atividade que as levasse ao sucesso se estampava em seus olhos. Embora milhares de candidatas ainda esperassem a vez de entrar, essas já se consideravam as preferidas, pois cada uma delas pensava que nenhuma outra poderia ter o desempenho igual ao seu – é um mistério da natureza humana que faz cada um pensar que é o centro de tudo. O que está a nossa volta não tem o mesmo valor que o nosso ego pressupõe ter. Para aquelas moças, o entrevistador era um demiurgo que iria apenas ratificar os seus pedidos da noite anterior aos seus santos preferidos. Cada uma delas pensava desse modo e o santo da outra não valia nada perante o seu; o seu pedido fora feito com muita fé e o da outra não. No entanto, à medida que o tempo passava, elas começavam a sentir uma pitada de decepção, pois a campainha que anunciava a ordem de entrada não soara nenhuma vez. Depois de um longo tempo de espera, abriu-se a porta do fundo. Juan adentrou, pedindo que elas ficassem nos trajes combinados com a recepcionista para a inspeção visual. Ele voltou ao gabinete no qual estavam os outros dois homens já referidos; Pelaio estava sentado atrás da mesa principal, com a postura de chefe. - Patrão, as moças estão prontas para serem inspecionadas – disse Juan para Pelaio – o senhor vai ver que elas não são o que esperávamos. O gerente levantou-se e se postou diante da janela de vidro. Fez uma careta. Voltou e disse: - Volta lá e diz a elas para preencherem o formulário e depois devolvê-lo pelo correio; mas faz isso com seriedade para não lhes matar a esperança. Depois manda entrar mais dez. Os outros dois homens gargalharam. - Essa armação do Ricardo é um muito cara como isca para pegar o que ele quer, principalmente a sua preferida – disse Márcio –, mas como o pai dele é rico e nós estamos sendo bem pagos, vamos cumprir as ordens do chefão. - É isso mesmo! – disse o gerente. – Essa operação deve ter o máximo de sigilo, pois envolve muitos dólares com o pagamento de passaportes, passagens aéreas, transporte terrestre, alimentação e outros gastos que se têm com as mulheres. Vocês são peritos nisso! Enquanto estiverem em solo pátrio tudo deve ser feito dentro da lei. Nada de economia. A contrapartida virá com milhares de dólares. Vocês podem ficar ricos. Mulheres é que não faltam, principalmente domésticas bonitas e algumas ainda virgens. Novamente o gerente foi à janela de vidro e voltou ainda mais decepcionado do que da primeira vez.


- Credo! Até agora nada! Deve ser a alimentação dessa pobre gente. Bem que o governo com o Fome Zero poderia nos ajudar, alimentando melhor essas meninas. Essas só servem mesmo para os companheiros que gostam de mulher feia, igual a lavadeira daquela eleição de... Lembram-se dela? Coitada! O Companheiro deveria dar a ela o cargo daquele ministro que tem cara de rato faminto... – Os outros homens riram às bandeiras despregadas. Enquanto isso, lá fora, a enorme fila não se movia mais. Já por volta das cinco da tarde, alguém anunciou em um megafone que a seleção continuaria no dia seguinte. Muitas mulheres se revoltaram e gritaram palavrões porque chegaram cedo e não foram atendidas. Só conseguiram a tal de entrevista as que pernoitaram desde o dia anterior e assim mesmo a maioria só conseguiu um formulário que deveria ser preenchido e devolvido pelo correio. Entre as retardatárias estava Cleyde que já perdera a esperança de ser atendida nesse dia. Ela não conseguira dormir direito, tendo acordado um pouco tarde e ainda levou muito tempo se vestindo e fazendo a maquiagem. Para ela, não haveria fila porque já tinha uma espécie de pistolão ou coisa parecida na pessoa de Josefa que lhe dera esperança de ser entrevistada e selecionada. Esta deveria estar lá e até agora não a tinha visto. Será que esquecera dela? Logo que chegou e viu a extensão da fila, pensou em voltar porque muitas jovens estavam bem mais vestidas do que ela e algumas lhes pareceram até mais bonitas. Não sabia calcular quantas havia a sua frente. Ela estava em uma rua transversal e não dava para ver a tal agência. Por isso, começou a fazer conjecturas sobre o que aconteceria lá dentro. Uma pessoa educada iria entrevistá-la e logo a convidaria para ser modelo ou secretária de algum homem de negócios; também serviria ser recepcionista do hotel cinco estrelas que ficava no centro da cidade; ou seria selecionada para uma agência de turismo. Intimamente ela preferia esta última. Gostaria de viajar para outros lugares onde haveria praias, piscinas em clubes elegantes; cavalgaria em pradarias que já vira em filmes; ou navegaria em transatlânticos luxuosos ou em iates de gente rica. A sua beleza poderia ajudá-la nessa entrevista. A Carlinha lhe dissera que um empresário a colocou como propagandista de um produto que sua firma inventara. Ela fazia o serviço trajando um vestido bem decotado, e, enquanto ela falava com o cliente sobre a eficácia do produto, ele só olhava para seu decote, tentando imaginar talvez como seriam seus seios, e acabava aceitando o serviço sem muita resistência. Além disso, alguns deles ainda a recompensaram muito bem. “É assim que se faz!”, dizia ela “Não deves ser tão fácil para os homens porque eles vão te desvalorizar; mas não sejas tão difícil que faças eles desistirem; só poucos são persistentes; a maioria é como ladrão de carro: procura outro mais fácil para roubar.” “A Carlinha é mesmo esperta!”, disse Cleyde para si. “Se não der certo aqui, vou ver se consigo um emprego assim!” Uma das candidatas que entraram nas primeiras levas passou perto da fila. “Escutem! Não esperem mais porque as entrevistas já foram encerradas! Só amanhã! Nem fui entrevistada! Parece-me que aquilo é coisa de vigarista!” A jovem seguiu seu caminho, demonstrando com gestos seu descontentamento. Uma da fila disse: “Também, com essa


cara! Não vai ganhar nada! É melhor ela continuar como doméstica!” Cleyde ouviu isto e pensou consigo: “Nossa classe é mesmo desunida. Mal ela sabe que sou doméstica. Aquela menina é mesmo feia e por isso nem foi entrevistada. Comigo vai ser diferente... Vou seguir os conselhos da Carlinha. Ah, meu Deus! Estou esquecendo o tal de filho que está na minha barriga. Estou sentindo uma coisa ruim! Aquele desgraçado do Ricardo ainda vai me pagar um dia. Se eu fosse de menor eu iria à justiça. Talvez algum juiz o obrigasse a me amparar. Mas ele é rico e dizem que rico não vai para cadeia. Estou perdida!” A fila começava a se desfazer pouco a pouco. Uma delas disse à Cleyde: “Mana, tu moras perto daqui? Bem que nós poderíamos arranjar uma camilha e dormir na calçada para sermos as primeiras da fila de amanhã.” Cleyde olhou para ela e respondeu secamente: “Moro muito longe e não sei se venho mais.” Pensou consigo: “Não adianta eu me juntar com ela. Pode dar azar. É feia de corpo e de cara. Coitada! Vai ser doméstica!” Riu-se do que pensou. Na verdade, a maioria das jovens que estava na fila, ou se vestia mal ou não tinha os dotes necessários para uma passarela ou uma recepção de hotel de classe. Quase todas elas vinham das classes socialmente inferiores, como as domésticas, ou da classe média que morava na periferia. A fila ainda não se desfizera de toda. De repente, uma gritaria se propagou como uma onda e despertou Cleyde. “É um arrastão!” Disse uma delas que passou correndo. “O que é isso?” Perguntou Cleyde. “Oh, sua tonta, não sabes o que é um arrastão? Vieste da lua? Corre! se não queres ser roubada.” Ela se sentiu ofendida com a palavra “tonta”, mas obedeceu a ordem de correr e acabou perdendo um dos saltos do único sapato bom que possuía. Quando pensava que estava a salvo em uma parada de ônibus, chegaram alguns moleques armados com facas, e começaram a saquear as pessoas que possuíam celulares, cordões, pulseiras, relógios, bolsas e tudo que podiam levar. Desta vez, Cleyde já estava mais alerta e correu para atravessar a rua no exato momento em que um carro da polícia perseguia outro carro. O choque inevitável projetou-a sobre um reservatório de lixo, evitando que ela caísse sobre o asfalto. Muitos transeuntes curiosos pararam para ver o que acontecera. Alguns correram em direção ao reservatório para socorrer a vítima. O carro da polícia havia parado um pouco adiante, tendo desistido de perseguir os prováveis criminosos. Saíram do carro três homens; um deles falava no telefone celular com alguém; não demorou muito chegou uma ambulância.

*****

-

Esta moça teve sorte! Nenhum traumatismo... Apenas uma hemorragia uterina; tudo indica que ela estava gestante, talvez de um mês – disse o médico plantonista.

-

O que aconteceu com ela doutor? – perguntou uma enfermeira.

-

Foi um acidente de trânsito. Alguém chamou a ambulância e a pessoa que a deixou aqui disse à recepcionista que era da polícia. Foi embora rapidamente


sem dizer mais nada; se precisar de mim, chame-me! – terminou o médico secamente. -

Boa noite, doutor! Ah, vou também descansar um pouco!

Cleyde ouviu alguns sons virem de longe, a princípio quase imperceptíveis e depois mais nítidos, até escutar as últimas palavras da enfermeira que dera boa noite ao doutor. As suas pálpebras estavam pesadas, e com os olhos entreabertos via vultos de pessoas que se moviam, indo de um lado para outro. Outras corriam como se fossem perseguidas por algo que não poderia ver direito. De repente, ela se sentiu flutuando e caindo em um lugar fétido e viscoso. Ouviu um choro de criança. Seus movimentos pareciam tolhidos como em um pesadelo. Suas pálpebras ainda continuavam pesadas. As palavras da enfermeira não foram suficientes para acordá-la totalmente, e um sono conturbado por imagens furtivas e sem rosto voltaram a se aproximar dela. Uma delas, transformou-se em um feto com o rosto de Ricardo. Ela gritou. Sentiu algo apertar seu pulso. Com a pressão, ela finalmente acordou. Olhou em frente. Viu muitas camas ocupadas. Olhou para si. Estava vestida com uma camisola branca. Uma pessoa de uniforme branco segurava seu pulso. Ficou atônita. Sua voz não saiu. A enfermeira a segurou mais firme. -

Acalme-se, menina! O médico disse que está tudo bem contigo. O pior já passou – disse a enfermeira.

-

Onde estou, o que foi que aconteceu comigo? – Perguntou Cleyde, ainda assustada.

-

Foi um acidente de trânsito – respondeu a enfermeira. – Parece que tu foste atravessar a rua correndo e um carro te pegou. Alguém veio te deixar, dizendo que era da polícia. E depois sumiu! É sempre assim! Eles atropelam e depois jogam as pessoas aqui e vão embora sem se identificar, apesar de ter um policial na portaria. Outros são piores; deixam suas vítimas na rua ao deus-dará. Amanhã, já estarás melhor. Tiveste apenas um sangramento. Estás com incômodo?

-

Não – respondeu Cleyde. – Eu me feri?

-

Felizmente, não! – disse a enfermeira. – Parece que foi uma hemorragia. Amanhã o médico vai te explicar. Agora dorme. Boa noite.

A enfermeira afastou-se. Cleyde ficou olhando para ela. Seus olhos ficaram pesados outra vez. Novas imagens vinham ao seu encontro. Aparecia um homem lhe entregado um cartão. No cartão havia um convite para ela comparecer à agência e iniciar o treinamento para desfilar como modelo de uma marca famosa. A entrevista fora um sucesso. Sentiu-se feliz. Pulou de alegria. Mas Ricardo lhe apareceu outra vez. Tinha o aspecto de um sátiro. Correu atrás dela até derrubá-la. Uma mancha de sangue rubro-negra saiu do seu corpo. Depois ele fugiu.


Suas pálpebras começaram a ficar leves, mas se sentia ainda engrunhida. Abriu os olhos. Algumas pessoas que estavam nas camas gemiam. Várias delas jaziam no chão. Outra parecia sentir muita dor e se contorcia toda. Um homem idoso a confortava, mas parecia impaciente e aborrecido. Em um momento ele gritou: -

Enfermeira! Meu filho vai morrer e ninguém aparece!... – A mesma enfermeira veio andando sonolenta ; cruzou os braços e disse:

-

O que o senhor quer que eu faça? O médico está dormindo e mesmo que estivesse acordado não poderia fazer nada. Os analgésicos terminaram.

-

E por que não arranjam uma maca para ele? – insistiu o homem.

-

Também não temos macas! – exclamou irritada a enfermeira. – Ele está com sorte de estar nesta enfermaria. Um monte de pessoas está no corredor, esperando a vez de vir pra cá.

-

Que vergonha! – comentou o homem. – Esses hospitais do governo são umas merdas...

-

É isso mesmo! – concordou a enfermeira. – O meu salário está atrasado há três meses; os médicos ganham também uma porcaria. Só estou aqui porque gosto da minha profissão. Se fosse depender do governo já teria morrido de fome; me viro por fora como fazem os médicos. Todo dia morre gente aqui dentro e no corredor. Muitos só chegam até a porta. Os papa-defuntos é que gostam! Eles têm uma máfia aqui dentro. Mal a pessoa fica moribunda e eles já estão apoquentando os parentes para fazer o enterro. O que mais tem no estacionamento é carro de defunto! E ambulância? Só temos uma e assim mesmo vive escangalhada. E a comida? Só servem caldo de asa de galinha sem sal e tempero. Dizem para os pacientes que isso é “comida de doente.” Mentira! Os doentes só comem melhor quando os parentes trazem alguma coisa. A maioria é pobre e não tem nem o que comer em casa. É uma lástima! Veja aquela bonita moça! Ela nem sabe onde está. Se soubesse já teria ido embora. Tem gente que entra aqui com uma coisinha de nada e sai morta. Dia desses, tiraram o único rim de uma mulher que havia sido transplantado em São Paulo. Já deve ter morrido! Em outro deixaram uma tesoura na barriga...

Cleyde já estava mais consciente e ouviu distintamente o que a enfermeira falava para o homem. Ficou com medo. Ela lhe disse que tivera uma hemorragia. Suspendeu o lençol que a cobria e começou a apalpar-se. Não sentiu dor onde amassava. Virou-se de um lado e sentiu dor nas costas. Virou-se para o outro lado e de novo doeu. Parecia dor muscular como as contusões comuns. O que então teria acontecido? A enfermeira falou em acidente de trânsito. Lembrou-se que tinha visto um carro em grande velocidade a sua frente e ouvido uma sirene cujo som abafou-lhe um grito de pavor. Depois só a escuridão e nada mais.


Voltou-se para o mesmo lado e não viu mais a enfermeira. O rapaz continuava gemendo e o pai mostrava um ar desconsolado. Aproveitou a oportunidade para ir ao banheiro. Levantou-se. Não sentiu nada. Começou a andar. Estava apenas um pouco tonta. No banheiro, viu que estava com uma absorvente. “Oba, minha menstruação voltou!”, pensou ela, “dever ser a tal de hemorragia que ela falou; foi o susto.” Cleyde voltou para a cama. Viu que sua roupa estava ao lado, no braço de uma cadeira. Puxou sua blusa na qual guardara o dinheiro para a passagem de ônibus. Junto com o dinheiro, estava um cartão no qual havia o número de um telefone. Seria da pessoa que a atropelou? “Amanhã eu ligo pra esse número e aí vou saber quem é”, pensou ela. O rapaz continuava gemendo mais alto e o pai andava de um lado para outro. Outras pessoas também gemiam e praguejavam. Já era de madrugada. Seu medo aumentou. Lembrou-se do modelo que fora fazer uma cirurgia reparadora do nariz em uma clínica e morreu por negligência do anestesista; e ela queria ser modelo. “Se os modelos morrem desse jeito, imagine essa gente! E eu aqui com eles!”, pensou ela . “Vou fugir!” Ela voltou ao banheiro com sua roupa. Vestiu-se. Voltou e seguiu pé ante pé por um corredor longo que terminava em uma porta semi-aberta através da qual podia-se ver o movimento de veículos. Andou mais rápido e silenciosamente. Na portaria o vigia dormia. Transpôs a porta que estava apenas encostada. Ao sair deparou uma imensa fila de pessoas que dobrava a esquina. Algumas estavam em pé. Outras dormiam em enxergões na calçada com garrafas térmicas ao lado. Vendedores já haviam espalhado suas barraquinhas ao longo da fila. Quase todos vendiam as mesmas coisas: bolinhos de carne, de camarão, de galinha; café; pães; sucos; peixe frito; tapioca quente na margarina; tacacá; bombons; balas de hortelã e até cachaça. Alguns bordeleiros com suas companheiras aproveitavam a oportunidade para tirar a ressaca com o tacacá que, segundo o costume local, é bom para isso. Cleyde olhava toda essa fartura com os olhos lânguidos e o estômago vazio. Consultou a bolsa. Só tinha o dinheiro do ônibus. Olhou para os bordéis do outro lado da rua. Algumas prostitutas bebiam cerveja e comiam aquelas iguarias regionais. Sua boca salivava ao cheiro da fumaça que vinha do churrasquinho assado na brasa. Deu-lhe vontade de atravessar a rua e sentar-se em uma daquelas mesas e esperar alguém que a levasse para um bordel e lhe fartasse de dinheiro. Afinal, era bonita! Alguém lhe pagaria bem! A fome a empurrava para o outro lado. Pensou consigo: “Não! Prefiro morrer!” E se fosse a Carlinha? O que ela faria? “A Carlinha não iria! Ela me disse que só anda com gente fina. Não se mete com homem pobre porque só sabe trabalhar duro e fazer filho. Não se diverte bem. Só bebe cachaça e freqüenta bordéis de terceira categoria. E esses que estão aí em frente são isso mesmo. Sabe lá se as mulheres são bonitas! De noite tudo parece bonito. Os homens também. Felizmente! Aí vem um ônibus. Vou embora assim mesmo.” Cleyde chegou a casa já quase de manhã. O sol, ainda escondido, irradiava entre as nuvens um leque sanguíneo de luz que inundava o céu, até que despontou glorioso e flamejante. A rua estava tranqüila. A vila ainda dormia. Ninguém a viu entrar. Deitou-se. Continuava com fome. Criou coragem. Preparou um café. O leite em pó estava acabando e também a margarina. Ainda tinha algum dinheiro e uns trocados. Saiu e foi até a padaria comprar pão.


O taberneiro deu um sorriso maroto. Talvez pensou que ela fora “fazer a vida.” Ela não deu importância. Voltou. O café já estava frio. Tornou aquecê-lo. Estranhamente, a fome já havia passado. Mesmo assim, sorveu o café pausadamente com o pão ainda quente. Sua desilusão era grande. Tudo havia saído errado, contrariamente ao que ela pensara. Por que era sempre assim? Toda vez que ela planejava alguma coisa, acontecia o contrário. A Carlinha lhe dissera : “Tu pensas muito. Faz aquilo que teu coração manda, sem medo. As pessoas sentem isso.” Ela havia ensaiado a entrevista na véspera diante do pedaço de espelho. O cabelo fora dividido ao meio e cada lado caía sobre os ombros, formando duas cascatas douradas. Duas pequenas flores vermelhas foram colocadas assimetricamente de cada lado do cabelo, e o delicado perfume de verbena trescalava do seu corpo. O seu entrevistador poderia senti-lo. A cor róseo-clara do batom realçava seus lábios carnudos e sensuais que escondiam duas fileiras de dentes brancos e brilhantes. O seu sorriso, tornava-a ainda mais bela. Sentara-se de modo a mostrar parcialmente suas pernas perfeitas e proporcionais com o resto do corpo, naturalmente bronzeado. Ela olhara para seu reflexo no espelho e perguntara: “Por que sou uma doméstica?” Ficou com raiva da Carlinha porque lhe dissera que ela era ingênua. Que ela ainda iria acabar se amigando com um “caboco” de beira de rio ou um empregado de salário mínimo. Certa vez ela lhe disse: “Deixa de ser boba! Procura um homem idoso com muita grana e deixa a onda levar. Não esquece do teu futuro. Hoje tu estás bonita. Depois, vem a velhice, e daí?” O sol já estava alto quando Cleyde despertou. Estava deitada na cama ainda vestida como viera do hospital. Estava suada. Levantou-se. A fome voltou. Tomou a blusa, lavou-a em uma bacia de água com sabão em pó e estendeu-a em uma corda que ficava no vão da janela. A comadre e suas amigas estavam na entrada da vila, conversando como sempre. Elas notaram que Cleyde estava estendendo uma blusa. Voltaram ao assunto de sempre. - Eu a vi chegar quase de manhã – disse baixinho, a comadre. – Na situação que ela está, com certeza foi fazer a vida por ai. Elas não querem mais trabalhar em casa de família; já viram que dá mais lucro sair com dois ou três homens numa noite para ganhar mais do que o salário mínimo. - Ora, comadre! Até a senhora faria isso se não tivesse de idade! – disse a Zenóbia, rindo – Teve sorte de arranjar o seu homem. A situação está difícil. Esse emprego de doméstica dá mais duro que um trabalhador braçal e o patrão ainda quer se servir dela quando a patroa pisca um olho. - Eu não tive tanta sorte como a senhora pensa! – exclamou a comadre se defendendo – Imagine que depois de trinta anos de amigados, passo o Natal e o Ano Novo sozinha. Todo dia ele começa a beber cachaça nove horas da manhã e vai até quatro da tarde; depois vai dormir e só acorda de madrugada para comer, fazendo um barulho do diabo com as panelas e a bota que ele quase nunca tira do pé. Depois dorme outra vez para acordar de manhã e começar tudo de novo. -

E as suas filhas? E o rapaz? O que fazem? – perguntou a Zenóbia.


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Aquela moça que está ali, a Matilde (não sei se ela é ainda virgem) – sussurrou baixinho a comadre – não é minha filha. Ela só faz comer e dormir e engorda cada vez mais. Foi fruto do sem-vergonha, o meu marido, com uma empregada doméstica. Expulsei-a de casa, mas fiquei com pena da menina e a criei. Antes tivesse mandado ela junto com a mãe. Quanto ao outro, é um agregado que chegou aqui do interior e foi ficando até hoje. Sentou praça e ia muito bem, quando veio o governo com uma tal de economia globalizada e mandou milhares de praças para casa. Agora vem o ex-operário e continua fazendo a mesma coisa. Não sei mais o que fazer com tanta despesa! E você, comeu abiu? Ainda não deu uma palavra hoje! – exclamou a comadre, referindo-se à Negona.

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É isso mesmo comadre! Tem dias que a gente amanhece com a macaca no couro e só dá vontade de matar os outros – disse aborrecida a Negona. – O meu homem jogou ontem no “bicho” e ganhou. Ficamos tão contentes que esquecemos por um minuto o dinheiro em cima da mesa da cozinha para comprar umas cervejas, lá no seu Basílio. Quando voltamos não encontramos mais o dinheiro. Alguém viu uns pivetes saindo da vila lá para aquela baixada maldita. Lá só dá ladrão e prostitutas. E onde estava a polícia? Deve estar comemorando junto com eles!...

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Aquela menina estendeu a roupa dela ali naquela corda; ela pensa que está vivendo no lugar que morou – disse a comadre, referindo-se à Cleyde. – Não sei onde ela consegue tanta roupa bonita, já que não trabalha. Como já disse, dever se virar por aí noite a noite inteira. É uma pena! É uma bela mulher! O português me disse que largaria tudo por ela. Mas logo ele! Ela não é pro “bico” dele, aquele cainho!

Depois de tirar a blusa da corda, Cleyde ansiosamente procurava algo no interior do bolsinho interno da blusa. Revirou o bolso e lá estava o cartão feito um bolo de papel molhado. Nervosamente, tentou desdobrá-lo com os dedos tremendo, e cada vez mais o cartão se despedaçava, tornando-se quase irrecuperável. Mal se podia ver a tinta impressa borrada no papel. Como o sol esta bastante forte, resolveu colocar os pedaços do cartão no parapeito da janela para secá-los. Depois tentaria recompor o cartão. Mas angustiava-se com sua sina. Dizia para si: “Oh, cabeça dura! Como foste esquecer o cartão dentro do bolso?! Eu vi! Era um número de telefone; nem para mim decorar logo o número. Alguém o colocou no meu bolso na hora do acidente; se fez isso, é porque era uma pessoa bem intencionada. Talvez foi o próprio atropelador. A enfermeira disse que o homem que esteve lá no hospital era da polícia. Mas quem será? Ora! Deixa de te preocupar! Não adianta querer adivinhar! Sabe lá quem é! Se eu conseguir ver o número do telefone, aí, o que é que eu faço? Deixa de ser besta! Telefona para ele! Parece até que eu estou falando com a Carlinha. Ela está sempre na minha cabeça quando faço uma besteira. Se fosse ela faria tudo para descobrir esse número. Mas como? Existe alguma maneira ? Não sei até agora! Vou já ver! Ah, eles já estão quase secos! Estou vendo um algarismo! Mas faltam ainda seis! Vou esperar mais um pouco... Vou deixar a janela mais aberta.”


Enquanto isso, ela foi ao banheiro. Estava um pouco aliviada porque sua provável menstruação viera com o acidente e agora estava livre de um possível filho indesejável. Mas um baque pode fazer isso? Ela olhou-se, mudou o absorvente e voltou para a saleta. Nesse momento, uma rajada de vento dispersou os pequenos pedaços secos do cartão para fora. Ela correu desesperada, tentando agarrar o que podia. Era quase impossível. Alguns pedacinhos, ainda enrolados, tinham ido parar mais longe de encontro à parede do fundo da vila. O alvoroço provocado por Cleyde despertou a atenção dos moradores da vila, inclusive da comadre e suas duas inseparáveis amigas. Alguns perguntavam o que havia acontecido, e ao mesmo tempo acompanhavam os movimentos desordenados de Cleyde, como se ela procurasse uma jóia perdida. Outros riam do ridículo que essa cena provocava, pois ninguém sabia realmente o que procurava a não ser a dona do possível objeto perdido. Depois de muita procura, foram recolhidos todos os fragmentos com os algarismos fracamente visíveis. Ela voltou para dentro de casa, depois de agradecer aos que a ajudaram. Sentou-se em uma cadeira e começou a matutar. Colocou os pedacinhos de papel sobre a mesa, um ao lado do outro, para ver se eles formavam alguma seqüência conhecida. Sabia muitos prefixos de telefones, pois era ela que quase sempre atendia as chamadas quando estava na mansão do dr Waldomiro. Achou um que identificava uma zona do centro da cidade. Sem saber nada sobre probabilidades, arranjos e combinações, a pobre Cleyde ingenuamente começou a especular sobre os outros quatro prováveis algarismos em uma vã tentativa de acertar um deles. Viu também que esse número de tentativas era demasiadamente grande e o tempo despendido também, e o pior: onde conseguiria dinheiro para telefonar? Mesmo assim não desistiu. Ainda tinha algum dinheiro que daria para fazer inicialmente umas dez chamadas. Foi para um “orelhão” que ficava próximo da mangueira e começou o trabalho. Já tinha na cabeça uma frase feita para um possível contato com a pessoa que deixara o cartão na sua blusa no dia do acidente: “Eu sou a Cleyde, aquela que o senhor (ou a senhora) deixou no hospital.” Tentou o primeiro número; era de uma empresa de táxi; o segundo, de uma padaria; o terceiro, dos Correios, até chegar ao último, também sem resultado. Voltou para casa e pegou outros números que estavam anotados em um papel e riscou aqueles dez primeiros. Novamente foi para o orelhão e empreendeu a tarefa anterior. Mas desta vez a coisa seria diferente, se não fosse um homem que começou a trabalhar com um britador bem próximo a ela, abafando a voz feminina que vinha do outro lado da linha: “Senhorita, vou transmitir sua informação ao meu chefe. Amanhã volte a ligar.” Cleyde colocou o telefone no gancho no exato momento que o homem desligou o britador para descansar e não ouviu o que aquela pessoa lhe dissera. Desconsolada, deixou o orelhão ao qual já começavam a chegar outras pessoas. Enquanto isso, na Agência de Modelos o trabalho dos três homens continuava na seleção de novas candidatas que tiveram a sorte – ou o azar – de alcançar o segundo pavimento do prédio. Juan acenou para o gerente com uma das mãos. -

Venha ver chefinho! – Disse ele. – Vou logo lhe dizendo que ainda não está aqui a beldade que o chefão procura.


O gerente levantou-se e foi para a janela de vidro que o leitor já conhece. -

É! Pelo jeito ela não mordeu a isca ou ainda está naquela enorme fila – comentou ele. – Mas eu tenho uma idéia. Aqui está uma foto dela que o Ricardo deixou para que a gente a identificasse. Toma! Desce e percorre a fila de ponta a ponta e vê se ela está lá. Caso positivo, dá teu jeito de tirá-la de lá sem que as outras desconfiem que ela vai furar a fila. E ela não precisa ficar na saleta com essas tarascas. Está OK?

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O senhor é que manda, chefinho! – disse Juan. – Quando me virem com ela, as outras vão ficar babando para o meu tipo. As mulheres são assim mesmo! Quando estamos sós, elas fazem que não nos vêem. Basta arranjarmos uma gostosura que elas vêm como gafanhoto. Vou acabar arranjando algumas delas para o fim de semana.

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Mas vê o que vais fazer! – disse o gerente, aconselhando. – Não tira gracinha com essa beldade que ela não é para o teu “bico.” Ela é do chefão! Se ele souber que tiraste confiança com ela, ele te mata. Sabes como ele é!

O referido homem desceu as escadarias e foi para a rua. A fila continuava como nos dias anteriores. Ele começou a verificação desde o início da fila, próximo à porta de edifício. Foi andando devagar e examinando cada uma delas para ver se conferia com o retrato que tinha em uma das mãos. Algumas delas já haviam visto aquele homem na porta do prédio e pensavam que ele as estavam examinando para alguma finalidade da seleção. Uma delas pensou: “Como sou mais bonita do que as que estão aqui, ele vai logo me escolher.” O homem prosseguiu seu caminho até que chegou ao fim da fila que dobrava a esquina, mas não encontrou a jovem que procurava. Ele pensou consigo: “Bem que o chefe poderia vir aqui em baixo e ver que só tem “bagulho.” Esta menina da fotografia não vem para um negócio deste. Ela está é com algum barão. Hoje em dia mulher bonita e boa não fica só. Ah, lá vem a Josefa! Com essa eu iria pra cama só se me pagassem um milhão...” Josefa, quando viu Juan, apressou os passos em direção a ele que ao mesmo tempo fazia a mesma coisa em relação a ela. -

Pelo jeito, o senhor está procurando aquela menina, hein? – disse Josefa. – Pois eu lhe digo que ela não virá tão cedo porque me disseram que ela sofreu um acidente próximo daqui. Talvez ela tenha estado aqui e desistiu da fila.

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É isso mesmo! – disse Juan, um pouco desanimado – O chefe me mandou aqui procurá-la e abreviar as coisas. O chefão já está ficando inquieto. Parece que ele já tinha feito um negócio com um gringo...

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Eu posso trazer ela desde que me recompensem bem – disse Josefa, esfregando os dedos – o senhor sabe! A vida anda difícil e estou precisando de dinheiro.

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Você sabe onde ela se encontra? – perguntou Juan, com um ar interesseiro.


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Ah, isso é comigo! – respondeu Josefa, arregalando os horríveis olhos azeitonados. – Se eu lhe disser onde ela está não tem mais graça. Se quiser mesmo ela quero cinco vezes o valor de uma dessas que estão aí; ela é “filé mignon.” Você e aquele crápula sabem disso!...

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Vou levar sua proposta para o chefe – disse Juan com um olhar atravessado – Se ele topar te telefono logo. A propósito, vê se consegue mais meninas virgens. A cotação delas é maior e a tua recompensa dobra.

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Está OK! Vou providenciar – finalizou Josefa.

*****

Em um edifício no centro da cidade, uma jovem conversava com um homem de meia-idade. - Capitão Viriato, parece que aquela mulher que o senhor anda procurando ligou para cá de um telefone público; a do acidente! O nome dela é Cleyde. O número que ficou registrado é este aqui. Ela é bonita? -

Por que está interessada? – perguntou o capitão, sorrindo. – Você com sua mente maliciosa!

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Eu só quero que o senhor não encontre outra vigarista como aquela que lhe deu um enorme prejuízo – respondeu Mionete, aconselhando-o. – O senhor não tem mais idade para aventuras romanescas.

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Ora, menina! Estou querendo apenas reparar um erro, o de tê-la jogado naquele hospital – disse o capitão, com um ar de arrependimento . – Eu estava tratando de uma emergência quando ela atravessou a rua correndo. O motorista foi muito rápido. Por isso, ela não se machucou muito. Eu apenas não tive mais tempo de voltar ao hospital onde a deixei. Quando fui no dia seguinte, a enfermeira me informou que ela havia fugido de madrugada. Não sei porque ela fez isso!

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O senhor sabe como são esses hospitais públicos! – exclamou Mionete. – Mais parecem matadouros do que casas de saúde. O que o senhor vai fazer agora?

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Por favor, chame aquele mesmo motorista que estava comigo no dia do acidente. – Mionete saiu do gabinete e logo mais estava de volta com o motorista.

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Anote o número deste telefone – disse o capitão ao motorista. – Quero que descubra em que rua do bairro se localiza e depois procure saber nas imediações se alguém conhece uma moça por este nome. Depois que a localizar, você vai reconhecê-la; comunique-me imediatamente.


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O que o senhor vai fazer com ela? – perguntou Mionete.

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Não sei! – respondeu o capitão, piscando um olho. – Como está o seu caso com aquele jovem?

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Ah, capitão! Ele ainda não me esquentou como eu queria – respondeu Mionete com um trejeito nos braços.

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Oh, não sabia que você era tão “moderna” , hein? – disse o capitão sorrindo e se levantando. – Gostaria que me trouxesse aqui o detetive Toquinho que trabalha no caso das escravas brancas. – Mionete saiu outra vez do gabinete e minutos depois entrou junto com um homem de cerca de trinta anos, um pouco atarracado.

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Muito bem, meu caro Sherlock, como anda aquele caso da Agência de Modelos? – perguntou o capitão ao detetive.

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Patrão!... Já coloquei naquela fila monstruosa uma pessoa de confiança que vai ser minha informante – disse o detetive, com a voz pausada. – Não vai ser fácil porque eles estão instalados legalmente e até agora só temos evidências de que eles estão traficando mulheres de qualquer cor e outras coisas mais que vamos descobrir. Tem outra dificuldade: é que nesse negócio tem o filho de um figurão que parece ser o chefe da quadrilha. O senhor sabe como funcionam nossas leis. Parece que elas foram feitas sob medida para proteger certos bandidos. E como esse figurão tem muito dinheiro, ele vai ter muitos advogados bons e no final ainda vão rir na nossa cara. Que país é este?

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Ora, não comece a filosofar sobre “que país é este!” – brincou o capitão. – Vamos cumprir com nossa obrigação... Essa idéia de colocar um informante é boa, mas também é perigosa. Essa quadrilha também age no mundo da droga com gente poderosa por trás, inclusive alguns políticos. Al Capone não faria melhor! Só faltam aqueles carros pretos das décadas de vinte e trinta!

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Há, há, há!– gargalhou o detetive atarracado. – E eu nem me pareço com o Eliot Ness! Com aquele seu sobretudo cinza eu ficaria mais vistoso. Mas com este calor infernal a gente poderia derreter. Gostaria que fosse frio para usar esse sobretudo em vez deste guarda-chuva que só serve para me atrapalhar quando corro atrás de bandidos. Nem temos um carro decente! E o nosso salário? Só posso dar à informante uns trocados. Também a coitada só vive de bico e de outras coisas. Mas ela não é interesseira, pelo menos comigo. Ela é bonita e bem feita de corpo. Eles vão gostar dela! Nesse momento ela já está naquela sala sendo espionada pelos patifes. Depois que elas são selecionadas, mostram uma fita cassete com tudo que elas vão ter no exterior como “modelos.” Depois, compram roupas e perfumes do Paraguai que eles dizem ser da França. Tiram os passaportes, que as bestas recebem com tanta alegria, como se tivessem ganho a sorte grande. Vem a viagem de


avião e o orgulho de estarem sentadas ao lado de pessoas importantes. Descem do avião. Entram num carro. Os passaportes são requisitados com gentileza para serem apresentados na portaria do hotel. Desembarcam do carro. Adentram em uma residência com fachada de hotel, e adeus à liberdade... -

Precisamos pegá-los em flagrante – disse o capitão, interrompendo o detetive. – Essa sua informante sabe o risco que está correndo?

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Sabe, sim! – afirmou Toquinho. – Ela é muito esperta e vamos pegá-los aqui mesmo. Senão, a Interpol já tem um informante no local de recepção das meninas; no “hotel” que lhe falei. Desta vez eles não escapam! Ela vai conhecer o exterior de graça à custa dos bandidos..

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OK! Mantenha-me informado sobre o caso dessas mulheres que querem mandar para o exterior. Por hora, é só! – o capitão encerrou a entrevista com o detetive, levantando a mão direita.

O capitão Viriato era reformado do Exército e agora exercia a função de Delegado Geral, cargo que ele conseguira por influência política junto ao Governador do Estado. Ele mantinha estreito contato com os delegados de polícia de outras seccionais e montara em seu gabinete um serviço policial mais efetivo com pessoas de sua confiança. Tinha cerca de cinqüenta anos. Seus cabelos negros, lisos como tala, contrastavam com sua tez quase branca. Seus olhos castanhos se moviam com muita vivacidade. Seu nariz, um pouco adunco, e o queijo quadrado, davam-lhe a fisionomia das pessoas que nasceram para mandar. Sua altura de um metro e oitenta e o tórax espadaúdo completavam o seu perfil de atleta e aparência máscula. Era tido como homem honesto e da linha dura. O policiamento da cidade era vistoriado e comandado por ele mesmo e estendido a todos os bairros da cidade, inclusive os da periferia. Não dava trégua aos marginais, tratando-os com energia. Os casos de estupro eram punidos com mais rigor, deixando os tarados entregues a própria sorte na mão de outros bandidos que não gostavam desse tipo de gente. Não permitia que outras regalias fossem concedidas às pessoas portadores de diplomas de nível superior, a não ser a cela especial permitida por lei, o que ele achava um absurdo. As delegacias do interior mais próximas eram vistoriadas freqüentemente por ele junto com uma equipe de policias civis e militares. Acabou com a animosidade freqüente entre essas duas corporações com uma política de boa vizinhança, que envolvia a prática de esportes e outras atividades sociais entre os clubes dessas polícias. Contudo, as enormes dimensões do Estado e as indesculpáveis faltas de verbas, deixavam a maior parte da criminalidade livre, da qual proliferavam o contrabando de ouro, drogas e armas através das fronteiras dos países andinos. E para completar, uma variante do crime organizado estendia seus tentáculos com o tráfico de mulheres brancas para as Guianas e Europa. Atingia também as regiões auríferas da Serra Pelada e da região do Tapajós com o comércio de menores, que ficavam prisioneiras dos donos de bordéis, e serviam de mercadoria de troca com o ouro dos garimpeiros. As raríssimas denúncias que chegavam à capital, por via da imprensa, eram logo esquecidas. Os poucos policiais


existentes nessas regiões eram subornados pelos donos de garimpo com pepitas de ouro ou dinheiro. Prevalecia a lei do mais forte, sustentada por seu poder econômico. Na verdade, a exploração de ouro naquelas regiões era totalmente livre, sem o controle das autoridades competentes, que se omitiam na fiscalização do contrabando de ouro para o exterior. Dos milhares de garimpeiros e aventureiros que demandaram para aqueles lugares, somente poucos enriqueceram. Alguns deles possuíam dezenas de pequenos aviões que usavam pistas clandestinas para o transporte de garimpeiros, ou ouro para o exterior. As autoridades municipais também pouco se empenhavam nessa fiscalização, quiçá, por motivos escusos. Enquanto isso, as populações dessas regiões morriam de malária, doenças hepáticas ou simplesmente de fome. Os garimpeiros que morriam dessas doenças eram enterrados nesses mesmos lugares, sem atestado de óbito. Empregados domésticos eram assassinados pelos próprios patrões por motivos banais, como o foi o caso do servente, só porque teria quebrado uma xícara de café. Muitas pessoas foram mortas de emboscada porque falaram demais. A lei residia no arbítrio do dono de garimpo. A conivência das autoridades locais com os donos de garimpos era pouco conhecida na capital. Os prefeitos daquelas regiões, após deixarem seus cargos, continuavam exercendo o poder através da oligarquia local que conseguia “eleger” o seu candidato. Mesmo com o advento da urna eletrônica, o sistema continuou inalterado com a compra de votos ostensiva nos próprios locais de votação. Este tipo de crime chegou ao tribunal eleitoral, mas certa juíza negou o preito dos prejudicados, alegando corretamente que a urna eletrônica contava somente o número de votos e não tinha um sensor moral para mostrar que houvera compra dos mesmos. O trabalho escravo era outra variante de crime que preocupava o capitão Viriato. Os fazendeiros que exploravam esse tipo de trabalho aviltante agiam com extrema crueldade, como foi o caso relatado nos jornais e levado aos tribunais: homens eram contratados para cortar madeira em certo latifúndio por um determinado tempo. Quando voltavam para receber o dinheiro acordado com o patrão, eram mortos e jogados dentro de poços préfabricados para esse fim. A escravidão de “mulheres brancas” funcionava de um modo semelhante com atrativos que lhes enchiam os olhos até caírem em uma armadilha apropriada. Foi em uma dessas levas de mulheres para os garimpos, que Josefa, a mulher de olhos azeitonados, em chegando lá, ainda virgem, foi entregue para o dono de um prostíbulo; sua virgindade foi paga em pepitas de ouro ao seu “protetor” por um garimpeiro que, entre outros, vinha nos fins de semana para as costumeiras farras nos bordéis da cidade. Foi desse modo que a maior parte da adolescência de Josefa foi consumida sobre um colchão de palha e sem travesseiro no catre podre do lupanar. O suor dos garimpeiros, impregnado de cachaça, molhava o colchão ralo e passava para o estrado de madeira branca no qual se formava uma camada sebosa que exalava fartum. Ela se acostumou com esse ambiente, e o cheiro mefítico do leito já não afetava suas narinas, talvez disfarçado pelo perfume barato que usava quando recebia seus clientes garimpeiros.


A maioria daqueles homens, após passar uma semana em trabalho árduo, não distinguia o bonito do feio, tal a potencialidade da sexualidade reprimida e sonhada durante a vigília e mesmo à noite naqueles lugares longínquos. À luz de velas, candeeiros ou luzes vermelhas, a fealdade de Josefa passava desapercebida para aqueles homens, cegos pela concupiscência e encharcados de álcool. Ela sabia se enfeitar; o seu corpo aparentemente atrativo atraía esses homens grosseiros que a viam na penumbra. Assim, durante a noite, ela parecia bonita para os garimpeiros, e com a aurora ela escondia sua fealdade da implacável luz do sol, mas ninguém poderia afirmar com certeza qual seria a verdadeira Josefa. Apesar disso, ela cultivava sua esperteza e até um resquício de inteligência que se abrigava no seu crânio simiesco. Os homens dopados pela cachaça, dificilmente tinham um bom desempenho, e logo adormeciam em sono profundo. Josefa se aproveitava disso para examinar suas carteiras e sacolas das quais furtava pequenas quantidades de ouro de modo a não levantar suspeita no dia seguinte. Além disso, o preço da noitada já fora paga ao patrão que só lhe dava uma pequena quantia para comprar cigarro ou alguma quinquilharia. Assim, ela foi juntando o ouro furtado o qual guardava em uma lata enterrada em um sítio que só ela sabia. O tempo passou e ela chegou à maioridade cada vez mais feia durante o dia. O seu patrão, vendo que ela ia perdendo a juventude, já não fazia questão de mantê-la em seu domínio, pois novas levas de meninas chegavam freqüentemente à região, de modo que ela começou a lhe dar prejuízo à vista da concorrência das novatas. Portanto, ele a deixou livre para seguir seu destino e foi o que ela fez em uma Segunda-feira ao tomar um pequeno avião para a Capital, sem esquecer sua lata quase cheia de ouro. Na Capital, Josefa estabeleceu seu próprio negócio com o lucro da venda do ouro furtado. Ela havia aprendido toda sorte de falcatruas e engodos durante seus anos de garimpo e estava ciente que iria enriquecer ou viver bem à custa da prostituição de adolescentes que vinham das classes pobres dos bairros da periferia. Ela mesma se deu a esse trabalho no qual se tornara especialista com o aprendizado que tivera. Não quis a princípio se envolver com terceiros no aliciamento de menores, e a própria polícia lhe dava cobertura em troca dos favores de suas meninas. Algumas destas, ainda virgens, tinham cotação elevada para homens da alta sociedade que não barganhavam preço, desde que não lhe trouxessem problemas. Esse tipo de negócio crescia com o aumento da pobreza, de modo que a Capital se enchia de motéis e prostíbulos, com incidência maior em um bairro de classe média que chegou a ser motivo de pilhéria: o piloto de um avião confundiu as luzes do aeroporto com as luzes vermelhas dos motéis, que linearmente se dispunham em ambos os lados de uma longa avenida desse bairro. Josefa, vendo os inúmeros casos de impunidade garantidos pelas brechas leis brasileiras, resolveu diversificar seu negócio com ramificações para o exterior, e naturalmente o tráfico de drogas veio aportar em seu estabelecimento. Foi quando conheceu os homens que usavam a Agência de Modelos como fachada para disfarçar a venda de cocaína, maconha, e o tráfico de mulheres para a Venezuela, Guiana, Espanha, Holanda, entre outros países.


Além do seu próprio negócio local, Josefa aliciava jovens para aluguel e até a venda para estrangeiros que não poupavam dólares em retribuí-la por esses favores. Ela se gabava por ter dado a essas jovens pobres um outro destino. Eis um caso relatado por ela mesma: Arranjou uma jovem de uma cidadezinha próxima da capital para um universitário sueco. Este se apaixonou por essa moça e foi ela a intermediária no negócio para ele. Casou com ela e a levou para a Suécia. Lá teve um filho com ele, e já voltou ao Brasil duas vezes para ajudar a família que é pobre.

Capítulo V

Cleyde voltou para seu pequeno quarto, desiludida com a pesquisa telefônica que fizera, gastando quase seus últimos trocados que serviriam para pagar as passagens de ônibus. Sentou-se pensativa e olhou para a fileira de números que ela escrevera em uma folha de papel. “É quase impossível arranjar os outros números”, disse para si. “Já estou com a cabeça tonta de tanto pensar e cada vez aparecem mais números novos. Como é que pode isso! Bem que aquele professor nos dizia que os números nunca terminam. O que ele queria dizer com isso? Ah, isso pouco importa agora! Se eu tivesse mais dinheiro não me cansaria de ficar o dia inteiro naquele telefone. As pessoas iriam logo falar: “Ela deve estar telefonando para os seus namorados” ou outra coisa parecida. Essa gente mexeriqueira nunca deixa de falar da vida dos outros. Aquelas três mulheres daqui da vila passam quase o dia inteiro naquele canto conversando. Eu já vi uma delas chamar a outra de “comadre.” E a tal de Josefa! Ela não veio mais aqui. Tenho medo dela! Os olhos dela! Eu volto ou não para me inscrever naquela Agência? Não sei! Estou agora mais interessada nestes números. A pessoa que deixou aquele cartão tinha algum interesse em mim; mas por que me abandonou só naquele hospital? Se for homem já sei o que quer, como todos os outros; antes eu fosse um pouco feia pra não despertar tanto interesse nos homens. A Carlinha se acha menos bonita do que eu. E ela tem sorte com os homens! Diz ela que não é só a beleza que a gente deve usar para conquistá-los. Charme e veneno no corpo também são importantes. Procurar falar pouco para esconder o que pensamos, deixa eles curiosos pra saber o que estamos achando deles. Eles são vaidosos com sua masculinidade, e ficam sem saber o que fazer para nos conquistar. Diz ela que devemos fazer mistério de tudo e não se


abrir totalmente para eles, senão pegam nosso fraco e exploram até nos deixar. Eles logo se aborrecem de mulheres fáceis. Devemos dificultar até que eles se apaixonem. Aí se pode amarrar uma coleira no pescoço deles, e pronto! Ficam como cachorrinhos lambendo nossos pés. Essa Carlinha é mesmo esperta! Nunca mais a vi! E ela não mentia porque eu via tudo que fazia e o que acontecia com os homens que ela conhecia. Eles ficavam babando por ela o tempo todo, e quando obtinha o que queria dava um chute neles sem dó e piedade. Aí que eles continuavam atrás dela! Para alguns deles ela me disse que fazia isso de propósito só pra explorar eles cada vez mais. De um deles ela já conseguiu um apartamento novinho em folha. Ela quer agora um carro “zero.” Talvez consiga daquele velho que ela arranjou no leilão da Alfândega. Oh, meu Deus! Que mania essa agora de falar só! Também não tenho com quem conversar! Por que sou tão difícil pra tomar uma decisão? Fico nessa angústia dia e noite sem saber o que fazer da minha vida. Tinha a proposta da Josefa que não deu certo. Ah, aquela fila enorme! E ainda me deu problema com o arrastão e os pivetes na parada de ônibus! Foi aí que eu corri como louca e fui atropelada por aquele carro. Agora estou me lembrando que era um carro da polícia. Ah, eu não sou tão burra assim! A pessoa que deixou aquele cartão pode ser da polícia. Ah, logo a polícia! Não sei por que não tenho sorte. Poderia ser o carro de alguém importante. Ah, já estou pensando igual a interesseira Carlinha! Mas ela tem vencido na vida assim; e eu? Tão honesta e pobre! Se continuar desse jeito, vou acabar me amigando com algum “salário mínimo” e ter uma dúzia de filhos. A pobreza é ruim. Eu ouvia a conversa do dr. Waldomiro com seus amigos e ele dizia que “a honestidade é uma virtude que enobrece a alma mas trás pobreza ao corpo, principalmente aqui onde o crime compensa, porque parece que as nossas leis foram feitas de propósito para proteger certos bandidos.” Será que ele roubou? Ainda davam gargalhadas! Metiam o pau nos pobres, chamando eles de burros, que só serviam mesmo para escravos dos ricos que não tinham pena deles. Eles diziam também que os pobres deveriam continuar pobres, pois o mundo sempre foi assim desde o começo. Que se houvesse só rico ou só pobre o mundo não teria progredido. Que não haveria carros, aviões, televisão, telefones celulares, navios e todas as máquinas domésticas, nem o homem teria ido à Lua e que até a bomba atômica era necessária... Não sei por que, mas minha memória está ficando melhor. Talvez seja a solidão. Lembro-me de tudo isso como se fosse hoje. Está como um retrato na minha cabeça. Até os meus sonhos são diferentes. Ontem sonhei com a Zoraia...” Bateram na porta. Cleyde se levantou assustada com o coração em pânico. Quem será? Abriu a porta com cuidado. Tomou outro susto. -

O que foi menina, viu algum fantasma? – perguntou Josefa. – O dr. te espera há dias; por que não foi se inscrever?

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Estive lá. – respondeu Cleyde – mas não consegui chegar até a porta por causa da fila.

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Eu te avisei que deverias se apresentar ao porteiro para te levar direto ao escritório – retrucou Josefa, um pouco aborrecida. – Logo tu irias ser entrevistada. Mas agora apareceu um problema e vais entrar disfarçada. Está


aqui este uniforme de enfermeira. Uma ambulância vem te pegar aqui pela manhã. Esteja pronta! -

Por que tenho de me vestir de enfermeira?

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Já te disse! Apareceu um problema na fila. Uma briga entre as concorrentes. Como tu vais furar a fila, é melhor evitar outra briga – justificou Josefa. – No prédio existem muitos consultórios médicos e não vão suspeitar que tu és uma concorrente. Até outra vez...

Cleyde fechou a porta. Estava nas mãos com uma sacola. Abriu-a. Duas peças de roupa branca formavam o uniforme: uma blusa com uma cruz hospitalar no peito e uma saia plissada. Esfregou o pano entre os dedos. Sentiu que o tecido era de boa qualidade; ela se acostumara a esse teste na casa do dr.Waldomiro, ao comparar a roupa da família com o tecido da roupa da criadagem. Por isso, sabia distinguir a roupa cara da de qualidade inferior que a maioria das pessoas pobres usa no dia-a-dia. Por um momento, sentiu-se importante. A Agência de Modelos estava mesmo interessada em contratá-la; talvez a entrevista seria só uma formalidade como acontece quando se tem um pistolão. Ela ouvira o dr. Waldomiro dizer aos amigos: “Enquanto essas bestas enfrentam filas enormes para conseguir um emprego em um concurso, já tem gente ocupando o cargo e sem trabalhar. A nossa assembléia legislativa tem a população de uma cidadezinha e a Alfândega está cheia de apadrinhados de políticos...” “Vou ficar com pena daquela gente que está agora naquela fila”, disse Cleyde para si, já acostumada a falar só. “Eu não furei a fila naquele dia porque não gosto de fazer isso. Certa vez uma mulher bem vestida passou na minha frente na fila do banco; eu fui reclamar e ela me disse: “Sabes com quem estás falando?” Outra mulher que estava logo atrás de mim respondeu: “Talvez ela não saiba mas eu sei: estou falando com uma vaca!” A mulher saiu envergonhada e foi para o fim da fila com as pessoas rindo e xingando dela. Mas por que eles estão tão interessados em mim? Já ouvi dizer que quando a esmola é grande o santo desconfia. Já estou pensando muito outra vez. Talvez isso seja um defeito meu. Fico pensando muito antes de decidir. É por isso que a Carlinha diz que eu não vou para frente. É mesmo! Se fosse ela já estaria lá com toda sua faceirice, fazendo inveja para as outras. Só desconfio dessa Josefa. Ela tem um cheiro esquisito. Ela apareceu na minha vida não sei como. Ah, sim... Já sei! Eu estava em uma fila do supermercado e ela me deu a vez, dizendo: “Ah, esqueci de pesar estes tomates!” Saiu da fila e logo mais voltou com o carrinho e saímos quase juntas. Ela perguntou onde eu morava e se despediu. Fiquei desconfiada porque uma vez eu a vi passando em frente da casa do dr.Waldomiro, quando eu chegava de carro com D. Creuza e a Zoraia. Depois não sei como ela me encontrou aqui e falou que tinha um negócio bom pra mim; e naquele dia veio me convidar para mim se inscrever na Agência. E agora veio com este uniforme de enfermeira para furar a fila sem que as outras candidatas suspeitem. Eu tenho pena daquelas meninas! Vou fazer igual aquela “vaca” da fila do banco. E eu não sou uma vaca. Mas também a fila é muito longa. Tenho preguiça de ficar numa fila seja lá do que for. Mas essa promete! É meu futuro! Se eu não me espertar, as outras passam na minha frente e não vão ter pena de mim. É meu mal ter pena dos outros. Que diabo! Por que sou assim?”


Enquanto Cleyde falava consigo sem tomar uma decisão, no gabinete do capitão Viriato a rotina prosseguia como nos outros dias, com o movimento de pessoas que entravam e saíam. As comunicações interfônicas eram feitas por uma meia dúzia de assistentes que repassavam as informações à Mionete que as escrevia em uma agenda e depois a entregava ao capitão quando este tinha uma folga do telefone que tocava quase ininterruptamente. Eram ocorrências de todas as espécies que ele fazia questão de saber dos delegados das seccionais dos diversos bairros da cidade. Os assaltos a ônibus e agências de bancos eram quase diários, como também em residências, escritórios particulares, hospitais, clínicas de saúde, transeuntes e até em igrejas; estupros de mulheres e crianças e seqüestros não ficavam atrás. O aparato policial do Estado era insuficiente para reprimir toda essa sorte de delinqüência que se alastrava pela cidade inteira como uma epidemia. Os registros daquelas ocorrências nas delegacias só serviam para instaurar inquéritos mal formulados, freqüentemente rejeitados pela justiça que dava margem a soltura de marginais de todas as espécies, entre eles assassinos perigosos. Os adolescentes, ancorados na impunidade que lhes faculta a irracionalidade de limites temporais ditados pela lei, também praticavam homicídios com requintes de crueldades, assaltos, estupros e toda sorte de malvadeza que a mente humana já trás quiçá do berço. O capitão Viriato estava sentado em sua mesa com o pensamento em um caso de estupro e homicídio de uma jovem, que fora cometido por um adolescente de dezesseis anos, e por um momento deixou de atender os telefonemas, transferindo-os à Mionete. “Esses políticos não vêem que esse maldito Estatuto tem que ser modificado?! Eu não acredito que haja limite de idade para a maldade humana . Eu me lembro que quando tinha sete anos já sabia distinguir o que era bom e o que era ruim. Matava passarinho com baladeira por mero divertimento... Ah, preciso falar com o Toquinho sobre o caso da atropelada! Ela não me sai da cabeça! Fui uma besta! Por que a deixei naquele hospital só para fazer mais um flagrante? Essa mania de cumprir o dever não me sai da cabeça. Queria deixar de pensar como militar. Agora estou numa função civil e preciso ser mais flexível, ou, como dizem os políticos, “ter mais jogo de cintura.” Desde jovem, quando comecei a cumprir e dar ordens rígidas dentro do figurino militar, que adquiri essa mania de ser certo o tempo todo. A doutrina militar foi feita sob medida para meter essas coisas na cabeça da gente, principalmente da tropa, e depois passa da cabeça para o sangue e vai para os filhos. O idiota do meu compadre parece que passou esse tipo de gene para os filhos. Um deles já levanta de manhã com a corneta em punho, acordando toda família. Que coisa horrível! A filha vai se casar com um tenente e não demora muito toda a família vira um pelotão. Há, há, há!..” -

Está sonhando, capitão Viriato? – espantou-se Mionete.

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Não, estava tentando resolver um caso – mentiu o capitão. – Por favor, D. Mionete, verifique se o detetive Toquinho está por aí e mande-o subir.

Mionete é a secretária do capitão Viriato, e Toquinho é o detetive que está no caso da agência de modelos. Enquanto a secretaria descia a escadaria que dá para o térreo do edifício, o capitão Viriato voltou aos seus pensamentos, defasado da barulheira dos telefones e do falatório dos funcionários. “Esse meu compadre meteu na cabeça que seu


filho vai ser general e por isso ele precisa se mudar pra Brasília, pois lá ele está mais perto do Presidente que é quem promove. Melhor ele faria se levasse o filho para a política. Ele ainda não sabe que um general ganha quase igual a um vereador daqui. É um absurdo! Depois, quando estiver velho, vai reclamar da sorte por ter perdido tantos anos servindo não sabe o que... Ah, aquela menina não sai do meu pensamento! Espero que o Toquinho me traga boas notícias. Aí vem ele...” -

Bom dia capitão, trago-lhe más notícias. – disse o detetive, adentrando no gabinete – É uma coisa horrível!

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Fale de uma vez! – ordenou o capitão. – Não me venha com delongas.

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Aquela minha informante da Agência foi assassinada, e depois foi jogada dentro de um depósito de lixo! – disse o detetive quase gritando e com raiva. – Mas, antes, ela foi estuprada!

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Que depósito de lixo é esse? – perguntou o capitão.

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O mesmo que a atropelada caiu, capitão! A mulher que o senhor está procurando...

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Acalme-se! – levantou-se o capitão – Sente-se e me conte mais!

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Ainda ontem falei com ela e graças a Deus ela conseguiu dados importantes da quadrilha – disse o investigador com certo orgulho. – Está aqui a relação das meninas selecionadas com os números das identidades e dos passaportes de cada uma. De toda aquela gente, os bandidos conseguiram selecionar umas três dúzias e agora só têm poucas na fila. Aqui temos quinze que vão numa primeira remessa.

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Entre em contato com a nossa conexão na Espanha para pegá-los em flagrante na entrada do hotel – disse o capitão, examinando os documentos. – Se isto for feito aqui, pode estragar tudo, porque cada uma delas está com o seu passaporte e isso não é proibido.

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Mas capitão, a nossa polícia ganharia um tento se prendêssemos eles aqui no aeroporto – disse o investigador meio desapontado.

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Nada disso! – disse o capitão com firmeza. – Nada de egoísmo! Pense que sua filha poderia estar lá ou a minha se a tivesse. As instruções são para vigiar o passo deles dia e noite. Um elemento da interpol vai no mesmo avião, é claro, sem que eles saibam. E o que tem mais a me informar?

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Ah, sim! O caso da atropelada! – disse o detetive agora mais calmo. – Os outros meus informantes não a viram mais na fila que já está curta, como eu disse. Ela pode ter desistido. Quem sabe ela não adivinhou alguma coisa? As mulheres têm um sexto sentido...


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Isso mesmo! – confirmou a secretária. – E o meu sexto sentido diz que vou ter um aumento este mês. Nosso salário já está achatado nove anos. Pensei que o seu Companheiro iria muda a coisa; mas veio para piorar...

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Ora, não diga isso, D. Mionete! – disse o capitão. – Você está chorando com a barriga cheia. Não se importe! Vou lhe arranjar um DA-5 quando se aposentar. Oh, o celular! “Sim?” Interrogou o capitão. “Capitão, consegui localizar o endereço da senhorita Cleyde. Mas a mulher que estava lá não é esta da fotografia. Era uma mulher bonita, mas diferente dela. Ela já ia saindo da casa e me disse que não tinha tempo a perder e foi embora. Pensei que fosse alguma visita. Bati na porta enquanto ela se afastava mas ninguém mais atendeu. E o endereço é o mesmo da senhorita Cleyde. Aquilo mais parece uma favela...” “Ora, deixe de falar bobagem! Continue investigando e só me telefone para me dar boas notícias...” – repreendeu ao interlocutor, que era o motorista do acidente. – D. Mionete, dê-me novamente a agenda de hoje.

O capitão Viriato despachou o detetive e continuou a folhear a agenda sem muito interesse. A secretária se afastou para atender os telefones que tocavam. A sala já se esvaziava com a saída dos funcionários para o almoço. O pessoal da limpeza entrava em cena. Às quatorze horas, toda aquela rotina recomeçaria outra vez. A secretária resolveu também descer para o almoço. Antes de fechar a porta ela olhou para o capitão que parecia preocupado com alguma coisa. Ela desceu os vários lances da escadaria até o primeiro patamar do qual se podia ver o pátio dos detentos através de uma vidraça suja de poeira. O pátio era coberto por uma espessa tela de arame sobre a qual pombos vinham catar migalhas que eram jogadas pelas janelas por funcionários da delegacia. Alguns detentos se movimentavam nervosamente de um lado para outro; outros permaneciam sentados conversando entre si; um outro grupo treinava lutas marciais e os mais fracos eram derrubados com violência. Quem parava para olha-los através da vidraça era apupado com palavrões e acenos indecorosos, principalmente se fosse mulher. Mionete ficou parada, olhando-os à socapa de modo que não era vista pelos detentos. Viu dois deles se moverem dentro da penumbra de um labirinto de alvenaria. Estavam semidespidos com andrajos que quase nada serviam para encobrir a nudez visível através dos trapos. Um deles, ajoelhou-se e por algum tempo fez sexo oral com o outro que permanecia de pé, contorcendo-se. Depois completaram o ato, deitados em uma feroz batalha de corpos e gemidos que chamaram a atenção dos outros detentos, que se aproximaram. O que fazia o ato passivo continuou deitado. Veio um outro e repetiu a cena com mais energia até completar mais três. Mionete permanecia escondida. Sentiu que estava se molhando. Pensou consigo: “Ah! Meu Deus, que pecado!” Neste momento passou ao seu lado um funcionário da dactiloscopia que pilheriou: “Imagine se a senhora estivesse lá dentro!...” “Quem sabe se já não estivestes lá com eles!...”, retrucou ela ao funcionário que era um homossexual assumido. Depois disso, ouviu gritos e palavrões dos detentos. Um deles berrava: “Seus idiotas! Ele está com Aids! Vocês estão fud...! É aquele estuprador que virou ‘boneca’!” O que estava no labirinto saiu à luz do sol. Era um espectro macilento cheio de manchas vermelhas. Sua pele era quase transparente que permitia ver os ossos das espáduas salientes; talvez no passado fosse um homem robusto e musculoso. Seus olhos eram encovados e o nariz descarnado. O pômulo do rosto havia praticamente


desaparecido, deixando os ossos quase expostos. Em resumo, o rosto do homem parecia o de uma caveira. Do seu tórax, contavam-se as costelas e para baixo em direção aos membros inferiores, destacavam-se estranhamente as nádegas ainda carnudas Os detentos que estavam mais próximos, afastaram-se dele rapidamente. Aqueles que praticaram a sodomia com o homem tomavam banho totalmente nus e procuravam limpar-se. De repente, entrou um detento novato. Um homenzarrão negro empurrou-o em direção a uma espécie de solitária, ao mesmo tempo que lhe aplicava um potente murro nas costas que o fez vomitar um jorro de sangue. O indivíduo bateu com a cabeça na porta da solitária que se abriu automaticamente, e o recolheu em seu interior fétido. O carcereiro fechou a porta e trancou-a. Deu meia-volta e afastou-se sob os olhares temerosos dos detentos. O aspecto geral do detento que chegara não era muito diferente dos outros. Todos estavam com a cabeça raspada, talvez para evitar a proliferação de piolhos dentro dessa cadeia que, pelo aspecto exterior e pela sua importância, poderia ter melhores instalações e condições de higiene. O único sanitário parecia estar cheio e entupido de excrementos e urina, pois transbordava para o pátio do qual tresandava o cheiro acre do amoníaco. Mionete permanecia no seu posto de observação com um lenço no nariz, vendo o movimento dos detentos. Alguns cheiravam cola e provavelmente fumavam maconha. Um homem franzino entrou com um container do qual retirou várias “quentinhas”, entregando-as aos detentos que pareciam desinteressados ou sem apetite. Um deles pegou a sua quentinha e devolveu-a na direção da cara do homem que saiu correndo com medo dos outros que gritavam, perseguindo-o até a porta de entrada do pátio. Podia-se ver o conteúdo da quentinha espalhado no chão: uma aza de galinha e um caldo branco que se misturava com a urina. A agitação dos homens continuava com a chegada de outros criminosos que já começavam a exceder a capacidade do pátio. Em certo momento, um homem de cerca de quarenta anos foi empurrado com violência para dentro do pátio e alguém gritou: “Vais virar boneca! Ei pessoal! Ele estuprou o enteado de dois anos.” Era o aviso para começar o festim do inferno. Rapidamente, o novato foi jogado no chão e despojado de toda a roupa. Arrastaram-no para dentro do labirinto de alvenaria, e cada um que entrava refestelava-se na vítima que sentia na própria carne o que fizera com o enteado. Mionete quase diariamente vias essas cenas na hora do almoço. Elas se repetiam com outras personagens que modificavam o cenário conforme a personalidade de cada um. O expediente logo mais iria recomeçar. Estava atrasada! Não teria mais tempo para almoçar! “Vou descer e fazer um lanche”, disse ela para si. Desceu o último lance da escadaria. Vários funcionários do turno da tarde começavam a subir. Um deles que cruzava com ela sussurrou para o colega: “Não sei o que essa secretária do capitão Viriato faz todo dia parada nessa janela de vidro.” O outro disse rindo: “Ora! Ela gosta de ver os presos se masturbando; acho que sabem que todo dia ela fica a observar eles...” O capitão Viriato terminou o almoço que um dos serventes lhe trouxera de um restaurante que ficava próximo da delegacia. Ele preferia almoçar no gabinete e depois se repimpar na confortável cadeira estofada; tirava uma soneca em vez de ir para casa, e depois ter de voltar com o calor tórrido da tarde. Nessa hora ele trancava a porta do


gabinete. Tirava do gancho todos os telefones e deixava só o seu celular ligado cujo número só poucas pessoas sabiam, entre elas o Governador. Ele estava quase dormindo, quando o som característico do seu celular o fez voltar a si. Um caso estranho acontecera. O cadáver de um empresário, que fora assassinado na véspera, foi subtraído do serviço médico legal do Estado, e depois enterrado clandestinamente em um cemitério. O autor era um ex-cabo da polícia militar. “Era só o que faltava!”, falou consigo, “Vou entregar este caso ao Toquinho. Tenho um caso que eu mesmo pretendo resolver; vou aproveitar o momento político para tirar do arquivo o processo desse espertalhão, o tal dr. Waldomiro. Agora ele me paga!” Dito isto, o capitão levantou-se no exato instante que Mionete adentrava no gabinete. Notou que ela estava pálida e um pouco debilitada. Pensou consigo: “Essa moça é muito dedicada ao serviço. Ela já acumula dois períodos de férias e só larga o serviço quando eu a dispenso.” Em seguida, pediu-lhe para convocar o detetive Toquinho. À distância, via-se que a mansão do dr. Waldomiro estava movimentada. Homens parecidos com porteiros de boates chegavam e depois partiam em carros que ficavam estacionados um pouco além da garagem principal da mansão. No interior desta, em uma sala, o dr.Waldomiro andava de um lado para outro com o semblante carregado e abatido. Seus cabelos estavam pintados com uma tintura bronzeada já fazia algum tempo, pois mostravam raízes quase brancas, denotando que eles tinham ficado mais grisalhos em pouco tempo. Falava e gesticulava com os homens depois de ouvi-los, e em seguida dava ordens em voz alta com o dedo em riste na cara de cada um deles. Entre eles havia um que portava um gravador escondido. D. Creuza permanecia à distância, aparentemente distraída com o crochê que fazia, seguindo um desenho feito por ela ou copiado de alguma revista. Uma servente trazia de vez em quando uma jarra com água e servia aos homens que bebiam bastante a cada grito do dr. Waldomiro. Não havia dúvida que ele exercia um domínio completo sobre esses brutamontes. Ele se habituara a tratar com essa gente desde a época do contrabando. No fundo de toda essa descompostura, ouvia-se o fundo melodioso do som do piano, dedilhado por Zoraia que quase sempre ficava alheia ao que se passava dentro de casa. Enquanto percutia o piano, seu pensamento não saía de Cleyde. Estivera em sua casa diversas vezes e não a encontrara; em uma dessas, viu um homem batendo na porta com um retrato na mão. Inquiriu-o. Ele olhou várias vezes para ela e para o retrato, querendo verificar alguma coincidência. Desistiu e foi embora. Para ela, Cleyde havia desaparecido misteriosamente; por isso não conseguia tirá-la do pensamento. Lembrou-se das vezes que ficavam juntas sós em sua casa. Não houvera melhores momentos de sua vida. Lembravase da banheira e das apostas dos beijos; das carícias veladas quando saíam juntas no mesmo carro com D. Creuza. Sua obsessão por tudo que pertencia a Cleyde ia desde um simples prendedor de cabelo ao avental às vezes manchado de tomate. O rastro dela deixado na terra úmida do pomar, despertava-lhe desejos insopitáveis. Seu perfume barato mas capitoso deixava-a agitada e parecia agora que fluía de sua mente e penetrava em suas narinas como se ela estivesse presente.


São as recordações do passado, mesmo distante, que ficam registradas indelevelmente na nossa mente, e brotam inesperadamente como uma torrente e invadem os sentidos, fazendo-nos emergir das sombras à luz de uma aurora que renasce. Ora é a essência de um perfume, ora é uma roupa cuja cor está pintada no substrato invisível da mente, e cheganos à retina como uma sensação luminosa, projetada de uma fonte de luz etérea que vem pelo caminho inverso do mundo físico. Uma melodia ecoa, vibrando nossos tímpanos pelo mesmo misterioso caminho inverso. E para corporificar o ente querido ou outra qualquer recordação feliz, as vibrações sensoriais dos outros sentidos acodem em ressonância, levando-nos a um convívio tão íntimo que parece real. Quando sentimos no nosso interior a chama do divino, não estamos presos a teorias ontológicas que podem excluir uma mensagem exterior, independente de sermos o que somos; estamos recebendo o fluxo de formas do mundo das idéias ou algo superior que deu origem a isso. Não é só um conceito antropomórfico das religiões em geral, mas um sentimento que vem de formas subjacentes a um universo de cuja estrutura participamos intrinsecamente. E neste universo existem as pessoas que vivem em comunhão, independentemente dos preconceitos e das restrições das convenções sociais. Só a aparente ingenuidade de Cleyde existia como barreira para uma conjunção total com Zoraia. Esta respeitava a naturalidade da sua companheira de um modo que escondia sua intenção velada, mas insinuava-se por gestos e carinhos displicentes ou apostas aparentemente desinteressadas, como acontecia na sala de banho. Essas lembranças nasciam freqüentemente em sua mente como uma obsessão ou em seus sonhos de um modo mais licencioso. A sua personalidade introvertida não lhe permitia ir mais além daquela barreira, mas desamarrava-se na liberdade total da atividade onírica de modo que ela gozava daquelas sensações que a tolhiam no mundo real. Portanto, procurou no sono a compensação para seus desejos e não perdia oportunidade para dormir mesmo nas horas de vigília ou quando as capitosas recordações a deixavam em um estado de torpor sonolento. Foi neste estado que ela se viu na banheira junto com Cleyde, dando evasão aos desejos que estavam aprisionados há vários dias. Porém, um grito mais alto do dr. Waldomiro, despertou-a do seu delírio, fazendo-a voltar ao piano e ao mundo que já começava a odiar sem a presença da sua companheira. Na fila da Agência de Modelos o movimento estava aparentemente calmo. Há dias a fila vinha diminuindo. O descontentamento das jovens que desciam a escadaria do prédio, refletia-se nos seus gestos e palavrões ao passar perto das outras que ainda esperavam a sua vez para serem entrevistadas. Uma delas disse: “Eu não entendo porque aqueles canalhas mandam a gente trocar a roupa por aquele traje de desfile e depois de algum tempo mandam a gente embora. É uma palhaçada!” Uma que estava na fila disse: “Também não entendo porque algumas que entram naquela porta do lado depois não voltam; é como se elas tivessem saído por outra porta.” Entretanto, na sala do gerente o ânimo não era diferente. -

Seu asno! Por que teve de fazer agora aquilo com aquela mulher? – disse o Pelaio, dirigindo-se a Márcio. – Isso pode despertar a atenção da polícia e aí


estaremos fritos. O chefão está furioso! Se não fosse aquela outra que já está no “papo” para ele não sei o que aconteceria com vocês. -

Chefe! Não havia outra saída – defendeu-se Márcio. – Ela acabaria dando com a língua nos dentes não sei pra quem e as coisas se tornariam piores

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E para complicar mais, aquele praça idiota fez o que fez. Só porque o empresário era amante dela – disse o gerente agora visivelmente nervoso, esfregando as mãos. – E agora não tem outro jeito! Vais “apagá-lo” também!

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Mas chefe! Está difícil fazer isso porque ele está preso no batalhão de polícia . Como é que eu vou entrar lá?

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Chefe! Tenho uma idéia! – exclamou Juan, dando um salto da cadeira. – Um parente meu que já foi de lá deixou uma farda em casa. Dá bem nele! Vai lá á noite e pronto! Mais um “presunto!”...

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E por que não tu? – indagou Márcio, apontando o dedo na direção de Juan. – Por que só eu que é obrigado a fazer esse serviço sujo?

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Vais tu mesmo! – disse o gerente em voz alta e autoritária. – Já esqueceu nosso contrato? Além disso és bom de “porrada.” Se o plano falhar, podes usar o teu conhecimento de lutas marciais. Esse ai, não! Ele tem mais jeito para conquistar mulheres. E por falar em mulher, onde anda aquela megera, a Josefa?

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Ela está tratando a “menina” – respondeu Juan. – Dessa vez o chefão vai arrasar; eu queria ficar com ela pelo menos um minuto.

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Ai de ti se ele te pega com ela! – advertiu Pelaio. – Depois que ele se fartar, ela vai para a mão daquele gringo que dizem que só quer ver e nada mais. Bom pra ela que vai descansar! Mas vocês estão desviando o assunto. Depois de apagar o milico vem coisa mais importante. O pai do chefão corre perigo! Já sabem do plano, não é? Agora o assunto do dia é a próxima remessa de garotas. Todas as escolhidas são boas e bonitas; daquele montão de gente só conseguimos cinqüenta exatas. As que estão lá fora ainda têm esperança. Talvez seja melhor para elas! Essas pobres coitadas que foram selecionadas vão comer o pão que o diabo amassou! Ainda bem que não tenho irmãs! Os documentos já estão prontos... O nosso contato no consulado facilitou tudo, mas ele quer hoje à noite uma menina. Eu arranjei um “filé” para ele, mas é a empresa que paga as despesas. Ela é de programa mesmo! Ele vai gostar!

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Bem que nós poderíamos fazer um “programão” com algumas dessas cinqüenta que estão ai – disse Juan. – Eu já pesquisei várias delas, e elas parecem que topam. Talvez elas queiram nos recompensar. Elas estão crentes que vão desfilar nas passarelas da Europa. Coitadas! Taí, chefe, quem está chegando! – disse sussurrando. – A Josefa! A preferida do Drácula!


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Quais são as novidades? – perguntou o gerente à Josefa.

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Chefe! Está tudo sob controle! – respondeu Josefa. – A menina está bem e só falta sua ordem para ser dopada.

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A minha ordem depende de força maior – disse o gerente com precaução. – Ma esteja sempre alerta. Pode ser a qualquer hora. Ninguém pode saber que o chefão vem para cá. É secreto! Nem o pai pode saber! Depois de tudo, ele volta satisfeito e parte para outra. Mas acho que ele tem uma obsessão por essa menina. É a mais bonita que eu já vi! Ela desconfia de alguma coisa? Ela está bem confortável? Que tem mais a me dizer?

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Eu fiz tudo para ela não desconfiar de nada. – respondeu Josefa com certo orgulho. – Tirei-a daquela favela, dizendo-lhe que o gerente da Agência já a tinha visto na fila e que não precisaria mais se sacrificar. A entrevista depois era só uma formalidade exigida pelos nossos contratantes na Europa. Ela quis saber quanto iria ganhar. Eu disse que era em dólares. Acho que ela não ficou deslumbrada como outras que tenho conhecido. Se fosse lá no garimpo ela iria ficar rica na base do ouro puro. Quanto ao local que ela está é digno de uma princesa. Ela também não ficou muito entusiasmada quando viu tudo. A menina tem bom gosto e traquejo social. Ela dever ter adquirido tudo isso na mansão do dr. Waldomiro. Sabe como é! O meio faz a pessoa! Ela conviveu com gente fina de modo que até agora nada lhe impressionou. Se alguém ouvir dizer que ela foi empregada doméstica, não vai acreditar. Ela bem que merecia outro destino em vez de cair nas garras desse crápula...

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Veja como fala! – interrompeu o gerente. – Estás sendo paga para fazer esse serviço e não filantropia. O nosso negócio não pode se misturar com sentimentos. Isto aqui não é uma agência matrimonial ou uma casa de benemerência. Bem sabes disso de tua própria experiência nos garimpos do Tapajós. Se não fosses esperta não terias vindo de lá com uma lata cheia de ouro puro e não farias teu próprio negócio.

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Ora! Não queira ensinar padre nosso a vigário! - retrucou Josefa um pouco aborrecida – Ah, você está esquecendo que aquela “boca de fumo” ao lado acaba estragando o nosso negócio! É daquele traficante barato! Ele já esteve envolvido com a polícia com a venda ilegal de maconha – O gerente e os outros homens deram gargalhadas sobre o “ilegal” –, essa droga de pobre. Acho que seus homens podem estourar essa “boca maldita.” O chefão não vai querer perder os milhões da coca por essas folhas baratas.

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Acho que em matéria de economia, estás por fora! – criticou Juan. – Eu conheço gente fina que “transa” um “baseado” porque não agüenta mais o preço alto da coca. A cotação é em dólar e está indo tudo para os gringos e...

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Pouco importa essa discussão agora! – interrompeu o gerente. – Quero saber como vai nosso negócio com a criançada.


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Vai bem!... – respondeu Josefa, um pouco insegura, – Vamos manter esse negócio fora da internet. A polícia daqui e a de fora estão de olho. Vamos continuar com as fotos e os filmes. É mais seguro desde que não se faça besteira como aquele médico pedófilo que dopava as crianças para transar com elas. Ofertamos o serviço e depois que se virem!

“Satanás perto dessa mulher é um anjinho do mal”, pensou o gerente. “Nunca vi tanta maldade numa só cabeça! Esse negócio com crianças pode mesmo dar problemas. Mas é ela que é a testa-de-ferro do chefão. Eu não teria coragem de fazer isso pessoalmente.” -

Agora vou voltar para minha Cleyde – continuou Josefa. – Ela não pode ficar por muito tempo sozinha. Aquela empregada não pode desconfiar que ela está num cárcere privado. Até outro dia...

Josefa deu meia-volta e saiu, deixando os homens da Agência meio desconfiados com sua desenvoltura, pois falava com convicção como se comandasse todo o negócio. Por certo ela gozava da confiança do homem que eles chamavam “chefão”, e não duvidavam que ela tinha ambição em expandir seu próprio negócio e talvez até ficar independente deles. E era o que estava ocorrendo. Desde que chegara de Itaituba, Josefa não parou um só minuto. Tinha sofrido silenciosamente todos seus anos de sua juventude, e agora havia chegado sua vez de mandar em um negócio que ela aprendera com maestria, diferente de suas colegas que gastavam todas as suas economias em farras, vestidos, e perfumes só para agradar os garimpeiros boçais que não sabiam distinguir uma vassoura vestida de uma mulher bonita. Ela mesma fora o exemplo disso. Reconhecia sua feiura mas tinha jeito de agradar aqueles animais que só completavam o sexo com muita paciência da parceira, pois o álcool os dopava de tal modo que muitos deles dormiam sem fazer o principal. Era nesses momentos que ela ia verificar os bolsos e os pertences deles; furtava-os discretamente sem que eles depois sentissem falta. Com o dinheiro adquirido do ouro, ela partiu para o lenocínio, certa de ter lucro fácil. A matéria prima estava nas ruas dos bairros pobres, nos colégios da periferia, no centro comercial, nos shoppings, nas paradas de ônibus, nas praias e até nos prostíbulos de seus concorrentes. Como era uma boa aliciadora de jovens, logo compôs um grupo de mulheres selecionadas cujas fotos eram mostradas para certos políticos e empresários que ela mesma conseguia abordar com muita sagacidade. O potencial de clientes era grande e cada um deles passava a novidade para os outros. A novidade estava no fato de que a garota era “de graça” e só a despesa era cobrada, mas por um preço que na verdade dava para ter muito lucro e pagar a garota. Também não faltavam entre seus clientes os viciados em drogas que eram veladamente negociadas por traficantes. Foi por intermédio de um destes que ela expandiu seu negócio e o dinheiro começou a entrar em cascata. Como ela não tinha renda declarada ou um emprego fixo, achou prudente não abrir uma conta bancária. Por isso, usou do mesmo expediente realizado no garimpo para esconder as pepitas de ouro furtadas dos sonolentos garimpeiros: Ela mesma cavou um buraco quadrado em seu quarto; revestiu-o com isopor e mandou fazer uma tampa que tinha o mesmo desenho do piso, de modo a passar desapercebida de algum visitante inesperado. Para levantá-la, usava


uma afiada lâmina de aço rígida que ela escondia atrás do guarda-roupa. Pronto! O seu dinheiro estava ali mais seguro do que em um banco. Foi com o negócio de drogas que ela conhecera o principal dono da Agência e por intermédio deste galgou um outro patamar da sordidez humana: a pedofilia. E não faltaram clientes! Assim, com mais esta fonte de lucro, o dinheiro se acumulava no buraco do quarto e a solução óbvia foi investí-lo na compra de propriedades em diversos lugares do interior do Estado onde o fisco era quase inexistente. Foram abertos ainda outros estabelecimentos para explorar o lenocínio, e sua renda crescia cada vez mais que ela já não tinha onde guardar tanto dinheiro. Para não ter problemas com a polícia em caso de desordens, roubos, ou mesmo em caso de estupro, ela subornava detetives, policiais militares e ainda tinha o beneplácito dos escalões superiores dessas corporações, aos quais lhes dava de graça as mulheres que eles queriam. Só tinham mesmo que pagar as despesas, várias vezes mais caras que em outras casas. Entretanto, a maioria desses profissionais não lhe dava essa proteção, de modo que seus estabelecimentos eram freqüentemente inspecionados pôr eles. Esse método da velha cabocla surpreendeu seus clientes mais refinados que se sentiam constrangidos quando, em outros lugares, tinham de pagar o “serviço” da mulher de um modo que lhes causava vexame e também à própria companheira. Isto foi uma maneira sutil que evitava a grosseria de pagar com dinheiro em espécie uma noite de prazer, o que dava a impressão de um romance desinteressado. O cliente voltava outra vez e já houvera casos de romances verdadeiros que resultaram na carta de alforria da jovem, em troca de altas somas em dinheiro que a esperta cabocla guardava em seu novo cofre secreto. Agora ela já se sentia independente e quase não precisava mais dos seus antigos e atuais comparsas do crime organizado. E foi com esse novo sentimento que ela saiu da Agência de Modelos. Intimamente, não gostava do negócio da pedofilia e mesmo não precisava disso. Mas a ambição por dinheiro fácil era mais alta. Não gostava também daquele que os homens da Agência chamavam “chefão.” Era um indivíduo brutal e totalmente sem escrúpulos. Já estava na hora de ficar independente deles. Seu plano era ousado: Acabar com eles de um só golpe. Mas antes tinha que receber sua parte no negócio das garotas selecionadas. Ela financiara parte da operação da Agência. Mas acontecera um incidente inesperado: a morte de uma provável informante da polícia que descobrira quase tudo e depois a do empresário, seu cliente e amigo de há muito tempo. Qual a relação entre os dois? Ela suspeitava que o empresário também fora morto por um daqueles homens. Ela representara muito bem seu papel na frente deles de modo a não despertar suspeita sobre suas futuras intenções. Tinha um plano em mente. Enquanto ela descia as escadarias do prédio da Agência, parava subitamente. Depois continuava a descer e ainda parou por três vezes, matutando com a mão no queixo. Pensou consigo: “Depois de resolver o caso desse crápula com a Cleyde, vou ficar independente, e deixar de receber ordens de um homem que só quer se aproveitar de meu conhecimento com certas pessoas da alta sociedade. Eu mesma não sei por que fui me meter com essa gente. Se me livrar dele, vou dominar todo esse negócio. Ainda tem o jogo do bicho que me está favorecendo. Amanhã vou acertar com o Paulinho o controle de diversos pontos.


Depois posso também me livrar dele e usufruir só a proteção de certas autoridades em troco dos meus favores pecuniários, e outras coisas que eles muito gostam. Tive vontade de rir quando aquele idiota da Agência me disse que eu estava por fora de economia. Ele nem adivinha o que tenho guardado! Posso ser feia, mas não sou burra como esses três patetas da Agência que só sabem receber ordens daquele tarado, só porque o pai dele tem muito dinheiro. E dinheiro roubado! Após cumprir o contrato com ele, vou me preocupar mais com a menina Cleyde. Também é só! Se ele quiser mais, vou vender para ele outras meninas dignas de suas façanhas sexuais. A menina Cleyde é uma flor rara que eu preciso cultivar no meu jardim; mas não quero que ela saiba das minhas intenções agora. Sabe como são as pessoas! Depois que se vêem satisfeitas dão um chute no nosso traseiro e, adeus! Já tive muita experiência que não deu certo porque eu era uma boba. Dava tudo antes do tempo em vez de dar primeiro as migalhas para elas sentirem o gosto do benefício. Aprendi também a dar “porrada” para matar de uma vez só, em vez de ficar alfinetando e criando inimizade. Agora me lembro daquele garimpeiro que me flagrou roubando suas pepitas. O desgraçado fingiu que estava dormindo e quando dei fé ele partiu para cima de mim. Matei-o com uma tesoura e joguei o corpo na porta da cozinha do patrão. De manhã, ele mesmo se livrou do corpo para não dizerem que foi ele. A vida é assim mesmo! O mais esperto vence! E vou ensinar as minhas espertezas pra essa menina ingênua.” Depois que Josefa saiu, o gerente disse ao segundo homem: “Apressa-te! Avisa ao chefão que está tudo pronto para hoje à noite. Dá o endereço para ele. A empregada já foi subornada.”

Capítulo VI

Desta vez Cleyde abriu os olhos e viu um ambiente diferente do cubículo que até então morava. O teto não parecia com a tampa de poço que via do fundo do seu catre, desde que saíra da mansão do dr. Waldomiro; eram cenas eróticas, entre homens e mulheres nuas, pintadas na superfície de um espelho que cobria todo o teto. Ela, também, e toda a cama refletiam-se ao longo do teto. Olhou para frente e viu sua imagem e a da cama também


refletida da mesma maneira. Olhou para cada parede lateral e pensou que estava enlouquecendo: ela não via outra coisa senão a si mesma e a cama que se reproduziam em todo espaço que a rodeava. Mexeu um braço. Ele se moveu simultaneamente com as outras imagens. Moveu o outro. Viu a mesma coisa. Pensou em levantar-se, mas conteve-se com medo de cair em um espaço vazio. Um perfume suave de fragrância francesa vinha da colcha ricamente bordada que cobria a cama. Olhou-se de ponta a ponta. Estava coberta com um lençol de cambraia cor de rosa que permitia entrever todo seu belo corpo; sentiuse adormecida quando levantou um dos braços. Continuou deitada e estendida como se a tivessem colocado nessa posição propositalmente, como um cadáver. Seus cabelos, normalmente presos por laços para não atrapalharem seus movimentos, estavam emaranhados e muitos fios de cabelos estavam espalhados ao seu lado. Baixou um pouco o lençol. Espantou-se. Manchas roxas espalhavam-se sobre seus seios e pelo ventre. Olhou para o teto. Dava para ver que seu pescoço estava também com aquelas manchas. Lembrou-se dos filmes de vampiros que costumava ver na mansão do dr. Waldomiro. Seu pensamento encontrou Josefa no meio deles. Lembrou-se que Josefa estivera com ela na vila. Ela a convenceu mudar-se para um apartamento que foi alugado pela agência de modelos, pois fora selecionada por sua interferência junto ao chefe que a dispensou da formalidade da entrevista. A vestidura de enfermeira não fora necessária. Ela deveria aguardar ai até que todos os documentos estivessem prontos. Lembrou-se também que um homem acompanhava Josefa, e de um carro preto que estava estacionado na entrada da vila. Não demorou muito para se arrumar porque tinha pouca coisa. E com quem ficou a chave do quarto? Quando saiu notou que a comadre e as suas duas amigas não estavam no local costumeiro onde conversavam. Por isso, deduziu que deveria ser tarde da noite. Entrou no carro. O homem que acompanhava Josefa sentou ao lado do motorista. Ele usava óculo escuro. O motorista também. Este deu partida ao carro. Os vidros deste estavam cobertos por uma película escura. Quase não dava para ver o que se passava fora. Além disso, as ruas estavam mal iluminadas. Depois de muito tempo, chegaram em uma casa. Não havia vizinhos. Entraram na casa. Uma mulher jovem recebeu-as, enquanto os dois homens ficaram no carro preto. Josefa despediu-se, dizendo: “Esta é tua residência até o embarque. Não sai daqui.! Volto pra te ver!” Depois disse para a mulher jovem: “Cuide bem a moça! Tchau!” Viu Josefa sumir na escuridão que ocultava o carro. Este arrancou, “cantando” os pneus. Então foi encaminhada para onde se encontrava agora. Não se lembrou se tinha falado alguma coisa à mulher que a recebeu. Tudo parecia envolto em uma densa neblina. Sentia vertigem toda vez que olhava para o teto ou para os lados. Tudo à sua vista se multiplicava. Não sabia se era dia ou noite. A luz do ambiente era indireta e difusa. Não havia um relógio. Parecia que havia dormido vários dias. Sua boca estava amarga. Tentou levantar-se, apoiando-se nos cotovelos. Não conseguiu. Deitou-se outra vez. Sua mão havia pegado em alguma coisa viscosa. Olhou-a. Deu um grito de pavor. Parecia sangue coagulado. Descobriu-se, afastando o lençol de cambraia para o lado, e virou-se. O reflexo do seu corpo apareceu manchado de sangue até o infinito. Apalpou-se. Sentiu dor nas suas entranhas. Só agora compreendeu que tinha sido novamente violentada. Apenas duas lágrimas rolaram de seus olhos e caíram na colcha salpicada de sangue. Veio à sua mente a figura nefasta de Josefa e da empregada (a mulher jovem). Por


um momento resignou-se, criou coragem e com dificuldade sentou-se na cama. Olhou em volta. Cada vez que se mexia, uma multidão de imagens acompanhava seu movimento. Ela nunca tinha visto isso. Espelhos! Já tinha visto os que deformam as pessoas. Outros que jogam as imagens para muito longe. Mas aqueles lhe davam a impressão de que não se encontrava sozinha. Tudo ocorreu em um ambiente virtual de múltiplas imagens eróticas entre as quais ela mesma tinha sido a protagonista principal. Alguém previamente armara esse sensual leito de orgia no qual ela, inerte, foi mais uma vez a vítima de sua própria beleza. A figura de Josefa aparecia e sumia de sua mente e acusava a ela de ser seu algoz. Lembrou-se de seus olhos, e como era supersticiosa, associou-os às personagens dos filmes de vampiro que assistia na televisão. Mas não era possível que vampiros andassem à luz do dia. Por várias vezes ela se encontrou com Josefa durante o dia, mas mesmo assim ela lhe infundia terror. Quando esteve ao seu lado no carro que a trouxera, não conseguiu ter coragem de olhá-la. Pegou no pescoço, pressentindo alguma dor. Mas nada! Olhou-se no espelho e deu um sorriso de desesperança. Apareciam marcas roxas no seu pescoço, antes imaculado. Ela pensou: “Isto aqui parece um sonho! Já sonhei que morria, e acordei com meus gritos; também sonhei falando com pessoas mortas, mas pessoas mortas não falam; já sonhei voando, e não caí. Nos sonhos a gente vê essas coisas, e logo elas fogem e nunca ficam como estas que estão aqui. Mas sinto o meu corpo e vejo a minha mão vermelha de sangue. Não me lembro de ter visto cores nos meus sonhos. Só há o movimento desses fantasmas que me rodeiam quando me movo. Então, sou também um fantasma? Será que morri? Não. Logo mais vou acordar, e olhar para o teto do meu quarto amigo... A Zoraia gostaria de estar aqui. Nós duas se movendo seria mais divertido. Ah, e o desgraçado que esteve aqui!. Ele fez o que quis comigo, e nada vi, e nada senti. Como é possível? Minha boca está amarga. Não sentimos gosto das coisas nos sonhos. Isto talvez não seja um sonho! Quando eu era criança, às vezes sonhava que fazia xixi, e quando acordava o colchão estava molhado. Era tão gostoso! Parece que nunca terminava. Já deveria estar acordada com essa dor que me vem da barriga. Quem é esse outro monstro que me feriu as entranhas? Os homens parecem tão brutos. Talvez eu nunca me acostume com eles. Seus corpos são rudes e feios. Seus músculos me amedrontam. A Josefa tem músculos. Sem querer, uma vez eu vi o dr. Waldomiro na cama com D. Creuza. Fiquei espantada com tanta violência, e parecia que ela gostava. Zoraia gritou bem alto: “Parem com essa pouca-vergonha!” Ela também não gostava de ver o pai sem camisa. Parecia um macaco. Eu me lembrava dele na cama com D. Creuza, e ficava com medo quando ele tirava graça comigo...” Cleyde ouviu um rangido áspero, mas baixo. Uma portinhola abriu-se e alguém deixou uma vasilha prateada e uma garrafa, e em seguida fechou-a com um trinco. Era uma dessas portinhas de motéis que servem para atender os fregueses. Ela levantou-se com dificuldade; caminhou até a parede e viu que se tratava de uma “quentinha.” Não tinha fome. Em seguida, dirigiu-se para a porta de entrada. Verificou que estava trancada. Forçou-a. Empurrou-a com mais força mas a porta não cedeu. Voltou, e foi ao banheiro. Despiu-se. Viu seu corpo multiplicar-se várias vezes. Começava a odiar os espelhos. Ficou pensando. Abriu o chuveiro. A água fria parecia penetrar em seu corpo e fazia arder suas entranhas. Criou mais coragem e conseguiu fazer sua higiene. Saiu debaixo do chuveiro e foi olhar-se mais de perto. Seus cabelos, que eram soltos normalmente, pareciam


encarapinhados. Seus lábios tinham várias marcas de mordidas e sentia-os machucados. Seus olhos estavam aboticados. Olhou para o pescoço agora mais de perto sob luz direta. Estava todo pintado de equimoses. Sentiu medo de encontrar dois furos na veia jugular. Tocou-a. Apertou-a. Não viu sair sangue. Animou-se um pouco. Lembrou-se do que a Carlinha lhe dissera: “Os homens gostam de deixar essas marcas só por vaidade; para que eles sejam lembrados. Tive um que pagava mais para fazer nos meus seios. Só não deixava fazer no pescoço para evitar falatórios. E mesmo achava feio ficar desse jeito! E o pior é quando aparecem os que só gozam enchendo a mulher de porrada; eu nunca entrei nessa por dinheiro nenhum. Outros, querem apanhar. Um deles pediu para mim algemá-lo nos ferros da cama e usar com força um chicote que ele trazia. Era um homem franzino e educado; gratificou-me bem.” Parece que o dr.Waldomiro era desse jeito porque eu ouvia os gritos de D. Creuza quando eles iam dormir. Era um inferno! A Zoraia gritava alto: “Parem com isso! Que vergonha! Os vizinhos vão ouvir!” Lembro-me que uma vez umas crianças saíram correndo de frente de casa, dizendo: “Papai, tem um homem matando uma mulher!” Eu já estava acostumada e ri. Outra vez, Zoraia também quase grita com as nossas brincadeiras da aposta do beijo. Eu senti seu corpo tremer. Ela me apertou mais. Eu gostava disso. Agora estou sozinha aqui neste lugar. Parece que o mundo está se acabando. Quero morrer. Não dá para viver tropeçando aqui e acolá . Nem a beleza do meu corpo me salvou. Se eu ainda sair daqui vou ser igual a Carlinha: interesseira e sem coração. Vou fazer que os homens se apaixonem por mim e depois deixá-los sem piedade. Ela me disse que é desse jeito que eles gostam. Quanto mais a gente faz por eles menos merece. É isso mesmo! Ela tem razão!” Cleyde ouviu um barulho na porta ao lado da portinhola. Ficou assustada. Correu para o quarto. Olhou para a roupa. Era a mesma que vestira quando saiu da vila. Ainda estava limpa. Vestiu-se rápidamente, apesar da dor que sentia nos músculos e entre as pernas. Ficou escutando. Aproximou-se da porta com cautela. Viu uma luz pela fresta entre a porta e a parede. Sentiu o tefe-tefe forte do coração. Parecia que queria saltar do peito. Empurrou a porta devagarzinho. Ela abriu. Sentiu uma lufada de ar frio no rosto. Um odor de éter invadiu suas narinas. Depois o silêncio.

Capítulo VII

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O que você quer agora mãezinha? Não me diga que é outro serviço – disse um homem para Josefa que lhe segurava as mãos –, daqueles que são para fazer justiça!

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É desse tipo mesmo! – respondeu Josefa com os olhos injetados de ódio. – Eu quero que façam com aquela mulher a mesma coisa que fizeram com a minha pobre menina e na mesma cama que você já sabe. Com isto, começa a guerra. Quero ainda que contrate aqueles brutamontes para continuar o serviço. Eles não deveriam ter feito isso com a Cleyde. Eu tenho um pouco de culpa nisso. E quero chegar ao principal deles. Ele vai se arrepender de ter


nascido! Ele e toda a família! Você sabe que o pai dele tem contas a pagar com a terra e os céus! O que eu vi naquele quarto me deu náuseas. Ela ainda dormia sob o efeito da droga, quase dois dias depois. Que coisa horrível esse tal de “Rupinol.” -

Ora, mãezinha ! Tem algumas das suas meninas que usam essa droga com certos otários – observou o homem.

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Mas a dose que elas usam é graduada – retrucou Josefa – e não dá pra matar; só ficam algumas horas dormindo e nada mais acontece. E elas só fazem isso fora do meu estabelecimento. Lá não fazem isso porque vai espantar meus clientes. Lá não entram pés-de-chinelo como naquelas boates dos garimpos. Todos eles vão me pagar, inclusive o teu pai que nos deixou à míngua por outra mulher. Bem feito! Ela mete chifre nele todo dia. Dizem que dia desses, ele arrebentou o caixilho da porta com um dos chifres que já está grande demais.

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Há, há, há! Por isso, não me caso nem me amigo, enquanto tiver as meninas de minha mãezinha. Talvez só se fosse aquela que tu tanto falas. Mas parece que ela não é grão para o meu bico.

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Ela não é um grão para o bico de ninguém – concordou Josefa. – É um monumento, um avião supersônico que vai valorizar meu estabelecimento e me dar muito lucro. Se ela fosse desfilar em Paris, iria ganhar aquela magrela que só tem osso. Elas são todas fininhas. Esses gringos não têm mesmo gosto para mulher! Lembra daquele alemão que agarrou aquela negrinha espevitada logo que a viu ? Que coisa!

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É questão de gosto, mãezinha! Tu me disseste que aquele príncipe deixou a mulher por outra que tem cara de cavalo. Sabe lá o sabor que ela tem! A outra parecia muito insossa. Tem gente bonita que não desperta paixão. Como diz o meu chefe: “É preciso ter veneno no corpo para dar tesão.”

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Upa! Já estamos longe demais daquele assunto – interrompeu Joseja. – Vê se faz aquele serviço ainda hoje. Quero que eles fiquem apavorados. Aquele cafajeste vai ver como vai ficar a irmã dele. Apressa-te filho!

Enquanto isso, na delegacia Central, o capitão Viriato batia cabeça com o caso ainda não esclarecido do empresário morto e da informante de Toquinho. Mionete atendia os telefones que tocavam quase continuamente. Um deles, fê-la parar um instante de boca aberta. O capitão, ao vê-la nessa atitude, já sabia que algo de ruim acontecera. Era o costume dela ao receber uma má notícia. Ela sabia que isso, além de atormentar o chefe, subtraía muito tempo de seu horário de folga. Não que ele exigisse esse cumprimento por parte de sua dedicada funcionária. Era por vontade própria que ela fazia esse trabalho extra e nunca reclamara de ir além do expediente normal. O capitão tirou-a desse pasmo,


pegando delicadamente o telefone de sua mão. O aparelho já estava desligado. O capitão reclamou: -

D. Mionete! Espero que tenha gravado o recado ou seja lá o que for.

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Desculpe, capitão. Foi o detetive Toquinho. Ela já vem para cá. Ele disse que... – nesse momento o detetive já adentrava na sala.

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Capitão! Tenho más notícias. O praça que furtou o cadáver do empresário foi assassinado dentro da cela – disse o detetive, ainda sem fôlego por ter subido vários lances de escada. – Tudo indica que há uma relação com a minha informante e esse empresário...

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Ora, Toquinho! Precisamos de provas e não suposições. E o que diz a guarnição que trabalhou ontem à noite no quartel? – Perguntou o capitão.

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Quase nada! Menos um deles que eu trouxe para lhe falar diretamente o que viu ou deixou de ver. Vem cá, corneteiro Chabrega! – gritou o detetive para um homem pequeno de tez morena que ficara quase desapercebido em um canto da sala barulhenta. O homem caminhou humildemente até chegar próximo à mesa do capitão. – Desembucha para o capitão o que sabes!

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Capitão!... Fiquei acordado quase a noite inteira devido a minha insônia – disse o homenzinho meio sonolento – que não me deixa dormir há vários dias. Já estava quase na hora de tocar a corneta para acordar os recrutas, quando um praça corpulento passou perto de mim e me disse: “Bom dia. Vou até o sanitário.” Passado algum tempo, dei por mim que não havia sanitário no rumo que ele tomou. Fiquei desconfiado! Matutei um bom tempo e resolvi seguir o mesmo caminho que ele tinha ido. Estava escuro e os galos ainda não cantavam. De repente, o mesmo praça saiu da escuridão e passou por mim ligeiro, dizendo: “Obrigado, companheiro. Já fiz o serviço. Foi tranqüilo.” Mal olhei para trás e ele já havia sumido da minha vista. Segui em frente. Os presos das celas especiais ainda dormiam. Quando cheguei perto da última cela, ouvi um gemido. Apressei os passos. Quando cheguei em frente a dita cuja reparei que a porta estava aberta. Aumentei o foco da minha lanterna – aquelas chinesas que graduam o foco – e mandei um facho para dentro da cela. Aí vi o estrago! O praça que roubou o cadáver empresário tentava tirar um punhal cravado na sua jugular. O sangue esguichava como daquelas torneiras de jardim. Ele tentava puxar o punhal, mas vi que não tinha mais força. Gritei: “Valha-me Deus! Acudam-me! Tem um homem morrendo aqui!” De repente, como se minha voz tivesse chegado a Deus, uma meia dúzia de soldados apareceu correndo. Quando viram o negócio, pensaram que havia sido eu; tive vontade de correr, mas vi quando o moribundo levantou uma das mãos e acenou com o dedo indicador, querendo dizer que não era eu o assassino. Eles compreenderam, e quando retiraram o punhal do pescoço do homem, ele já estava morto. Ai o alarme foi dado. Toda a tropa de plantão acorreu às pressas e começou a vasculhar


cada beco do quartel. Mas já era tarde demais! Aí me lembrei que o praça que passou perto de mim estava com um boné de pala que encobria quase todo o rosto. Só vi os dentes dele muito brancos. Parece que ele até sorriu para mim. Era quase preto. Não tenho certeza porque estava muito escuro. Era Alto e forte. Andava gingando como aqueles malandros dos morros cariocas. Eu sou carioca... -

Muito bom, sargento Chabrega! – interrompeu o capitão suavemente reconheceu se o sotaque do praça era mesmo de carioca?

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Ah...Não me lembro bem! Já estou acostumado aqui. Parecia mais com o daqueles caboclos de Abaeté...Ah, e tem mais! Ele usava um perfume francês. Eu sei porque meu genro é marinheiro mercante e me trouxe um da França ou sabe lá de onde...

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Ok, sargento Chabrega! Foi muito bom ter vindo aqui – disse o capitão com um ar que não se sabia se era de agradecimento ou ironia. – O sargento corneteiro sorriu satisfeito para o detetive que já ouvira a mesma conversa, menos a referência ao perfume francês. “Um perfume no meio de toda essa confusão”, pensou o detetive. “Aquele pessoal da Agência de Modelos só usa perfume importado. Se esse corneteiro burro pudesse identificar que tipo de perfume o praça usava seria mais fácil para mim ligar os fatos. A Agência de Modelos... minha informante e seu amante empresário assassinados... o praça dentro do quartel... o perfume francês. Pode ser perfume espanhol. É para lá que aqueles bandidos querem mandar as meninas. Também pode ser holandês. Ah! Só ele pode identificar pelo cheiro. Não tem outro jeito! Vou tentar levar esse corneteiro até lá, escondido do capitão. Não quero que ele conheça os meus planos. Ele é muito bom mas também é vaidoso. No final, pode chamar a imprensa e dizer que tudo foi resolvido por ele.” O capitão, quem sabe, adivinhou os pensamentos do seu detetive, não deixando passar a idéia que lhe veio à cabeça. Chamou-o de lado e lhe confidenciou: “Você me disse que o pessoal da agência gosta de usar perfume importado. Leve esse seu amigo lá com cuidado e veja o que faz. Ele pode ter bom faro.”

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Dona Mionete e sua eficiência! – disse sorrindo o capitão à sua secretária. – Já gravou toda essa conversa, não é? Depois vamos reunir todos esses dados num tabuleiro de xadrez. Já temos o rei, a rainha, as torres, os bispos e os peões. Já começamos o jogo e no final vem o xeque-mate. Essa seqüência de assassinatos pode ter uma ligação ou não. Quando acharmos o elo perdido, o jogo termina. – Aqui, o capitão fez uma pausa e pensou consigo: “Para mim, a peça mais importante está desaparecida. Deveria ter amparado a Cleyde no momento exato que aquela oportunidade me deu. Sabe lá onde ela se encontra! Já pode estar longe e fora do meu alcance! Já fiz tudo para encontrá-la, e cada vez aumenta mais o mistério do seu desaparecimento. Aquele idiota do motorista chegou a falar com uma pessoa que poderia ser ela ou não. Ele me afirmou não ser ela porque essa outra parecia menos


bonita. Mas o que esse idiota entende de beleza!? E sua timidez pode ter atrapalhado na identificação. Ele não olha direito para as pessoas. Olha de soslaio e nunca diretamente. Pode ter ficado intimidado pelo porte da menina. Acho que foi ela que ele viu sair da casa de tarde. Por outro lado, uma tal de “comadre” a viu pegar um carro preto já tarde da noite. Alguém a acompanhava e no carro havia outras pessoas. Ela pode ter voltado naquele mesmo dia, e de noite partiu para algum lugar. Ou foi seqüestrada? Que pensamento absurdo! Não é tão absurdo como estou pensando! Existem quadrilhas que raptam essas moças na marra e as mandam para fora do país. Sei que ela foi empregada doméstica do Waldomiro. Não sei porque este patife a pôs para fora de casa, e ao mesmo tempo despachou para o Rio o filho bastardo que ele criou. Esta vasilha ordinária ainda vai me pagar pela insolência que respondia ao ser preso por suas trapalhadas, e era logo solto por seus padrinhos. Agora acabou essa proteção. Os seus padrinhos perderam a eleição, e agora estão no ostracismo. Ainda vou prendê-los numa ratoeira. Essa gentalha de colarinho branco!..” Pela segunda vez, Mionete olhou assustada para o capitão Viriato. Sem inquiri-la, ele gentilmente pegou o telefone da mão da sua secretária. Do outro lado da linha, uma voz rouca de mulher disse: “Capitão, venha ver um belo presunto para sua geladeira. Está na casa vermelha da Estrada Solitária...O senhor sabe...” O detetive Toquinho e o sargento Chabrega já haviam saído. O capitão Viriato resolveu ele mesmo verificar. Poderia ser um trote. Essa Estrada Solitária fica na região de Pau Amarelo, uma localidade distante 35 quilômetros da Capital. Era o local preferido para “desova” de cadáveres. Saiu às pressas. Já era noite quando o capitão chegou na localidade de Pau Amarelo. Estava acompanhado só pelo motorista. Tomou a estrada vicinal cujo nome revela a solidão do lugar. Não havia iluminação. Entretanto, o céu sem nuvens mostrava um céu estelífero no qual se podia ver nitidamente o rastro leitoso do Caminho de São Tiago – a Via-Láctea. Naquele momento cruzava o céu um dos diversos satélites artificiais que gravitam ao longo do Equador, e cuja direção aparente coincidia com o pára-brisa do carro. O motorista olhou de relance para o capitão: “Senhor, veja! Veja! Um disco voador!..” O capitão olhou para ele surpreso, mas logo entendeu a ignorância do homem e ficou calado e pensou consigo: “Não adiante explicar para ele o que é um satélite artificial. Ele é de uma ingenuidade patética. Ainda acredita que existam Selenitas e que o planeta Marte é povoado por almas daqui da Terra. Santa ignorância!” O satélite logo desapareceu da visada de ambos. A estrada era reta e bem asfaltada. De vez em quando, aparecia uma lâmpada solitária das poucas casas de pau-a-pique de caboclos dessa região. Algumas casas de alvenaria se erguiam em sítios de pessoas mais abastadas que moravam na capital. Em ambas as margens da estrada, uma barreira escura erguia-se contra o céu. Para um visitante peregrino daria a impressão de uma estrada fortificada ou coisa semelhante. Na verdade, era a vegetação aparentemente uniforme característica da bacia do Rio Amazonas. Não há contraste na topografia dessa planície e a floresta verde apresenta a mesma monotonia que logo cansa a vista. A mesma paisagem se vê ao longo


dos rios e igarapés. Nossos visitantes noturnos já estavam habituados a essa paisagem enfadonha e olhavam a superfície plana da estrada que parecia não ter mais fim. De vez em quando, o capitão olhava para o motorista para certificar-se se ele não estava dormindo. Uma vez ou outra uma raposa atravessava a estrada. Finalmente, uma depressão no terreno. O carro desacelerou um pouco. A estrada continuava em declive até uma ponte de madeira sobre o Igarapé das Almas, e depois continuava em aclive. Ainda deu para ouvir o marulho suave da água que deslizava por baixo da ponte. A subida continuou suave e longa até o topo do qual se via uma luz bruxuleante que se escondia atrás das árvores. Mais um pouco, e o carro parou em frente a um portão de madeira com duas colunas grossas, imitando o estilo greco-romano, encimadas por uma cobertura de telha. O portão estava aberto. Entraram. Uma espécie de pérgula sustentada por duas colunatas e revestida de jasmim branco, formava o caminho até uma casa de aspecto vetusto na penumbra da noite. O silêncio era absoluto. Os dois homens saltaram do carro, que ficou estacionado em baixo de uma árvore. O capitão caminhava na frente com sua arma em punho, seguido pelo motorista que parecia nervoso. O capitão experimentou a porta que parecia trancada. Ela cedeu com mais força, rangendo nos ferrolhos e no soalho da porta, pois devia estar empenada. Entraram. Seguiram por um vestíbulo até uma pequena escadaria com apenas alguns lanços de escada que terminava em outra porta. Esta estava semi-aberta. O capitão projetou um feixe de luz de sua lanterna para o interior. Era uma sala retangular com sofás rente às paredes da frente, laterais e do fundo, e cuja saída era por uma porta central que estava aparentemente fechada. Várias mesas e cadeiras em desordem ocupavam o resto sala. Uma mesa de centro com tampa de mármore e pés torneados estava virada. Rosas vermelhas estavam espalhadas no chão entre garrafas de uísque e de outras bebidas. Um candelabro pesado de metal amarelo com vários braços, provido de lâmpadas vermelhas e roxas, pendia do teto. As paredes estavam revestidas de papel decorado com desenhos multifários de homens e mulheres nuas em poses eróticas. Um odor intenso de fumaça ainda impregnava a sala, e muitas pontas de cigarro se espalhavam pelo chão. O capitão pegou uma delas. Era de maconha. Nos sofás havia muitas camisinhas e seringas injetáveis. Vibradores, lubrificantes e elixires exóticos estavam espalhados por toda parte. Um pó branco fora adsorvido na capa de alguns sofás, e que já era bem conhecido do capitão e do seu auxiliar motorista. Não havia dúvida que ali fora palco de uma orgia com todos os ingredientes necessários para o prazer. Os seus participantes não pouparam esforços para ter tudo que excita o corpo e a mente. Depois de examinar tudo nos mínimos detalhes,. o capitão dirigiu-se à porta do fundo e ordenou que o motorista ficasse vigiando a sala. Abriu a porta que estava apenas encostada, mas sem emperro. Desta vez não foi preciso usar sua lanterna. A luz bruxuleante de duas velas grossas vermelhas reproduzia nos espelhos um quadro que jamais ele vira. Apesar de sua experiência de policial que já presenciara quase tudo que a maldade humana pode engendrar, recuou dois passos atrás e quase deu evasão ao seu espanto e horror com uma precipitada carreira. Sobre a cama jazia o espectro que parecia ser uma mulher, cujo cabelo estava todo encharcado de sangue. Seu corpo totalmente exangue estava reduzido a uma mortalha de pele translúcida que envolvia o esqueleto, cujos ossos pareciam se mover com o reflexo que as luzes das velas produziam nos


espelhos. O capitão continuava com a boca aberta, pasmado com essa cena tétrica e grotesca. Finalmente criou coragem e procurou um interruptor de luz; acendeu-a. Agora via em detalhes essa cena macabra que parecia um sacrifício satânico ou a obra de um rematado louco varrido. Sentiu-se mais tranqüilo e seguro de si. Começou a vistoria de praxe em todo quarto. Ao contrário da sala, não havia garrafas de bebida, pontas de cigarro, camisinhas, instrumentos eróticos etc. Concentrou-se na cama que estava coberta com uma colcha ricamente decorada, mas toda manchada de sangue. Não havia espaço para se debruçar e ver mais de perto o cadáver. O odor acre de sangue coagulado o enjoava e lhe dava vontade de vomitar. Instintivamente, focalizou a lanterna no pescoço da mulher; parecia que fora cortado com alguma coisa afiada. Na jugular havia várias perfurações entupidas de sangue pisado. Os olhos estavam encovados na face cadavérica e os dentes alvos sorriam macabramente para ele. Na penumbra do foco de luz havia um lenço de cambraia. Pegou-o. Levou-o às narinas. Um suave perfume mascarou brevemente o cheiro de sangue. Subitamente, um grito ecoou pela casa e os espelhos refletiram o rosto contorcido de um homem: era o motorista que deixara seu posto na sala e veio procurar o capitão. Ele tremia todo e gaguejava. O capitão já acostumado à cena, reagiu com energia. Pegou o homem pelo colarinho, suspendeu-o acima do chão e o sacudiu com vigor até que ele voltou a si. Disse gritando na cara do motorista: “Chame imediatamente uma ambulância!” Depois de quase duas horas a ambulância ainda não havia chegado. O capitão estava impaciente, andando de um lado para o outro, enquanto o motorista desconfiado e medroso estava de pé na porta de entrada da casa. Do lado de fora, sapos coaxavam monocordiamente em estribilho; aves noturnas, de vez em quando, atravessavam o fundo negro do céu salpicado de estrelas. Um passarinho em fuga de algum predador noturno entrou na sala, debatendo-se em torno das luzes do candelabro até que caiu exaurido de cansado. Uma coruja circulava a casa. Inesperadamentte, um bólido incandescente assomou no oriente, deixando por alguns segundos uma esteira leitosa no céu azevichado. Um estrondo rebôou no silêncio da noite. Dezenas de caboclos saíram assustados de suas tocas rústicas e demandaram em direção à única luz que viam acesa na circunvizinhança. Não demorou muito para que a frente da casa se enchesse dessa gente, que ainda trajava seus andrajos noturnos. O capitão Viriato e seu assistente motorista procuravam conter as pessoas que continuavam agitadas com o barulho inusitado ouvido no silêncio da madrugada. Alguns noctívagos que vinham de festas nas redondezas também viram o bólido e a explosão posterior, e espalharam logo o evento para os que ainda estavam em suas casas. Mas a versão do bólido que caíra não coincidia com o fato astronômico já bastante conhecido. Havia muitos boatos que corriam de boca em boca sobre o aparecimento de “discos voadores” nessa região e de contatos que algumas pessoas tiveram com supostos extraterrestres, e que chegaram a ser noticiados pela mídia da Capital. Com esses precedentes em mente, não foi difícil para aqueles noctívagos difundir entre os nativos da região a versão de que um disco voador explodira na selva. Alguns chegaram a ver o incêndio provocado pela explosão, e já pensavam em organizar uma expedição para


descobrir o local. Para isso, as autoridades deveriam ser notificadas do ocorrido, e até o Exército poderia ser convocado para explorar a região. Os dois homens permaneciam nos seus postos preocupados com o aparecimento de mais pessoas que surgiam misteriosamente de lugares escondidos pela noite e pelas copas das árvores da floresta densa. O último comunicado do motorista da única ambulância disponível àquela hora do amanhecer dava conta ao desolado capitão Viriato que o combustível acabara. No meio de todo o alvoroço o policial ainda pensava consigo: “Polícia sem combustível e sem bala é mesmo que um médico sem anestesia e bisturi para fazer uma operação de emergência. Essa pobre mulher que está aí poderia ser a Cleyde. Que coisa horrível!...” O capitão ainda não concluíra seu pensamento, quando viu um homem sair dos fundos da casa em direção à pequena multidão, gritando: “O “Chupa-chupa” matou uma mulher. É ele! É ele!” O capitão e seu assistente compreenderam imediatamente o significado dessas palavras. Correram em direção ao carro que permanecia com as portas abertas e partiram velozmente; e não chegaram a ver que a pequena multidão também se dispersava em todas as direções. Antes de o carro alcançar o portal do sítio, o estampido de uma arma de fogo atingiu os tímpanos do capitão, que vergou sobre o braço do motorista. O dia amanhecia. Os primeiros relatos sobre a aparição dos supostos discos voadores naquela região coincidiram com o achado de animais domésticos totalmente exangues e com sinais de perfurações no pescoço; assim se podia inferir, aparentemente, que o sangue fora totalmente exaurido por sucção. A notícia se espalhou rapidamente por toda a vizinhança, e não era raro o dia que cães, cabritos, galinhas, novilhos e outros animais caseiros eram encontrados naquele estado de exaustão sangüínea. O medo se apoderou das pessoas de toda região de Pau Amarelo, tendo sido o fato amplamente noticiado pela mídia. O corpo exangue da mulher deu margem a associação entre esses achados macabros e os supostos extraterrestres dos discos voadores (Há décadas que a mídia mundial vem imputando qualidades morais nefastas e aspectos teratológicos aos supostos habitantes de outros mundos). Assim, esse último caso mudou o ânimo de toda a comunidade de Pau Amarelo, crescendo em amplitude até a beira do pânico. Não mais se tratava de animais domésticos imolados na calada da noite, mas de um ser humano que se transformara em um espectro e depois foi visto por um curioso que entrou pela porta do fundo da casa. Espavorido, o homem difundiu o fato, associando o capitão e o motorista aos supostos extraterrestres, e, como uma onda que cresce em amplitude sob a força de um vendaval, o acontecido chegou à sede do município, depois à Capital e a todo Estado. À princípio, as pessoas mais cultas não acreditaram naquilo que parecia ser mais uma peça acrescentada ao folclore local, e ridicularizaram as comitivas que iam e vinham para esse município com o objetivo de constatar a veracidade das suas teorias que pareciam sem fundamento. Os relatos sem objetividade davam margem a versões que desfiguravam o provável fato original, e crescia como uma bola de neve. Desse modo, os comentários de rua alimentavam a imaginação das pessoas, e o que parecia ser pau aqui logo mais ali se transformava em pedra e algures em uma montanha. Na esquina da vila, a comadre e as


suas duas amigas estavam rodeadas por uma pequena multidão que ouvia o que elas diziam. Cada um queria sua vez para dar sua opinião com versões ainda mais escalafobéticas que tinha ouvido na rua. Em um momento, ouviu-se a comadre Brasilina dizer: -

Aquela menina sumiu daqui desde aquela noite que ela entrou num carro preto que estava estacionado ali. Haviam uns homens lá dentro. A que aparecia no jornal tinha o cabelo da mesma cor. Quem sabe se não é ela?!

-

Que nada! A uma hora dessa ela já deve estar desfilando por aí – disse a Negona. – Ela ia ser contratada pela Agência de Modelos lá do Centro... Minha filha tentou mas eles disseram que ela possuía mais talento para atriz. Queria que ela fosse alguém! Esse emprego de doméstica não dá!...

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Estão dizendo por aí que o Chupa-chupa prefere as domésticas – interrompeu a comadre –, mas ele só gosta de empregada bonita como a de Pau Amarelo e não qualquer uma que vai se oferecer na Agência. – Negona entendeu a alfinetada e corou; mas se conteve porque certa vez, em uma discussão, ela pegara um tapa da comadre. Um homem que acabara de chegar disse:

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Dizem que o Exercito vai pra lá. O Chupa-chupa deu um tiro no chefe de polícia que está quase morrendo. Alguém viu ele descer de um disco voador; ele tem uma enorme asa de morcego, orelha de burro, pé de cabrito, focinho de tamanduá, rabo de jacaré e um chifre que não tem mais tamanho..

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Ora, homem! Essa de chifre não é novidade! – disse a comadre rindo. – O que mais tem aqui é gente com chifre e orelha de burro. Tá bom do seu Basílio ir fazer companhia pro Chupa-chupa! Ele pegou a mulher no sofá da sala com o padeiro numa boa e ainda perguntou: “O que estás a fazer?” O padeiro respondeu: “Tô fermentando a massa!” – Os demais circunstantes deram gargalhadas e assobios.

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Tem gente aqui que também tem rabo de jacaré – disse a Negona, olhando de esguelha par a comadre – porque quando sai de casa sempre deixa a porta aberta. – Desta vez quem corou foi a comadre. Tinha fama de ter paviocurto e não levava desaforo para casa; era brigona, mas parece que tinha receio da Negona se vingar do tapa que recebera, porque esta era avantajada de corpo e também de briga. O ânimo já estava alto entre as mulheres, quando um homem idoso que passava na rua gritou:

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O Chupa-chupa já está na cidade! Encontraram um homem com uma estaca espetada no traseiro naquele edifício amarelo...

Imediatamente os circunstantes se dispersaram. Os que moravam na vila entraram em suas casas e se trancaram. As duas mulheres mexeriqueiras que tinham deixado as portas trancadas não conseguiam acertar as chaves nas fechaduras. Acabaram se homiziando na casa da comadre que deixara a porta aberta. Esta aproveitou a oportunidade para dar o


troco à Negona, dizendo: “Se eu não tivesse rabo de jacaré vocês já estariam no papo do Chupa-chupa.” O edifício amarelo que o homem se referira era o mesmo da Agência de Modelos. A polícia tinha isolado o edifício como sói acontecer quando há alguma alteração grave. Havia se formado uma multidão de curiosos que se apertava e gritava pedindo explicações aos policiais que formavam um cordão de isolamento em frente ao edifício. Uns queriam saber dos parentes que trabalhavam no edifício; outros estavam à procura das mulheres que tinham ido ao dentista ou ao médico. Um deles comentou: “Tá na hora de saber mesmo se a mulher foi ao dentista!...” Um dos circunstantes que estava próximo não se conteve e desferiu um potente soco na cara do homem que fizera a insinuação. As pessoas que estavam próximas tomaram as dores do agredido – que era um homem franzino – e avançaram sobre o agressor que, achando-se em desvantagem, saiu correndo por entre a multidão, empurrando e atropelando as pessoas que bloqueavam o seu caminho; as que estavam mais afastadas, não sabendo o que havia ocorrido, começaram a gritar, potencializando o pânico que se propagava como uma onda de choque ao longo de toda rua. Os policiais que formavam o cordão de isolamento, sem mais força para conter a multidão, ficaram esprimidos contra a parede do edifício. Em um dado momento, o cordão de isolamento se rompeu, exatamente na porta de entrada do edifício. A pressão vinda da rua abriu as duas folhas da porta com efeito, projetando as pessoas para dentro, caindo umas sobre as outras; a primeira que olhou para a escadaria não conteve o grito. O que parecia um homem se reduziu a uma armação de pele e osso semelhante a que fora encontrado em Pau Amarelo, e que depois foi identificada como sendo de uma mulher. Só que desta vez o homem fora morto com uma estaca enfiada no ânus – um antigo suplicio conhecido como empalação. Provavelmente, a maior parte de seu sangue foi exaurido lentamente por esse orifício, mas também apresentava as mesmas perfurações na jugular. Os testículos junto com o pênis foram extraídos e pendiam grotescamente da boca do homem. Via-se que a maior parte dos dentes foi arrancada e alguns destes serviam de calço para sustentar os testículos. Tudo indicava que esse suplício fora feito enquanto o homem era empalado, o que se notava na terrível expressão facial. O terror era grande entre as pessoas que olhavam para cima da escadaria, parecendo que estavam grudadas no chão; a estaca que espetava o homem foi colocada encravada em um pedestal de metal de modo que ele parecia um inefável espantalho. Os que estavam fora do edifício se deslocavam apertando-se entre si em direção à porta do edifício, movidos pela curiosidade. Ao mesmo tempo, ouviam-se as sirenes dos carros da polícia e ambulâncias que socorriam as pessoas desfalecidas pelo estouro do pânico. O detetive Toquinho desceu de um dos carros da polícia, sendo acompanhado por vários policiais que saíam de outros carros. Entraram no prédio, apertando-se entre as pessoas que disputavam um espaço para ver o homem assassinado. Toquinho subiu a escadaria e passou perto do cadáver sem se surpreender, enquanto os outros policiais ficavam boquiabertos com a imagem cadavérica que não parecia ser humana. Dirigiu-se à Agência de Modelos na qual Márcio e Juan pareciam nervosos e discutiam entre si. Falou com eles sobre o cadáver que fora colocado no último patamar em frente a porta de entrada da agência. Fez as perguntas de praxe que os policiais fazem em caso de homicídio sem se importar muito com certas respostas que


eles davam, apenas anotando aquelas que ele achava mais importantes. Enquanto falava com eles, perscrutava com os olhos todo o escritório com a esperança de encontrar alguma pista que relacionasse os crimes recentes com os homens da agência. Suas atividades criminosas já estavam evidenciadas em suas investigações, mas ainda não encontrara as provas suficientes para prender a quadrilha que tinha ramificações internacionais com drogas, tráfico de mulheres e prostituição infantil. Depois entrou na sala contígua, na qual as candidatas eram observadas pela janela de vidro camuflada. Um perfume suave de origem estrangeira impregnava o salão. Lembrou-se do sargento-corneteiro Chabrega; este adoecera e não pode acompanhá-lo. Procurou ver se encontrava algum frasco que identificasse a marca do perfume. Olhou por trás dos biombos, nos cantos das paredes, em baixo dos sofás, mas nada encontrou. Voltou à sala onde os dois homens falavam em voz baixa. Ele sabia que existia um terceiro homem que eles chamavam de “chefinho” – o Pelaio –, mas na verdade era o testa-de-ferro da empresa. Inquiriu-os sobre o paradeiro do gerente. Eles responderam que ele viajara à serviço para uma sucursal no Rio. Sem se despedir, voltou-lhes as costas e novamente foi acompanhado pelos policiais que já haviam providenciado a remoção do cadáver para autópsia. Lembrou-se que, quando passara perto do cadáver, sentiu a mesma fragrância do perfume da sala da agência. Já eram agora três os cadáveres que pareciam usar o mesmo perfume, ou que fora deixado pelo criminoso em contato com os mesmos: o primeiro foi o do soldado que fora morto na cela, quando um suposto praça, usando esse perfume, passou perto do corneteiro Chabrega ( Lembramos ao leitor que esse soldado foi o que removera o cadáver do empresário do Instituto Médico Legal, e o enterrou clandestinamente em um cemitério; que esse empresário possivelmente era amante da informante do detetive Toquinho, a qual foi encontrada morta em um lugar próximo ao prédio da agência); o segundo foi o da jovem encontrada na mansão de Pau Amarelo, e o último agora na agência de modelos. O detetive saiu do edifício. Olhou de um dado para outro. A multidão se dispersara. Apenas pequenos grupos de pessoas provavelmente falavam sobre o assunto. Entretanto, o boato de que um extraterrestre estava na cidade se propagou como uma ventania. Os jornais do dia publicaram manchetes espalhafatosas com charges sobre o Chupa-chupa. A histeria tomou conta da cidade, e o medo se via estampado no rosto e no andar apressado das pessoas. Alguns colocaram a culpa no prefeito que não providenciara a tempo o envio da polícia a Pau Amarelo para prender e matar o suposto extraterrestre que um dos nativos viu desembarcar de um disco voador. Outros advogavam a presença do Exército naquela região, pois já se tratava de um caso de segurança nacional. Invasões do território nacional por outra nação era caso para as forças armadas, ainda mais em se tratando de habitantes de outros mundos. Em um dos grupos alguém falava: “Ora! A polícia já não pode com os bandidos daqui, imaginem com essa gente que veio de Marte armada até os dentes! E para que serve o Exército? Milhares de soldados estão dentro dos quartéis e não vão para rua por causa dessa Carta foliona.” Um outro argumentava: “Vejam que esses assassinatos em série podem ser o resultado da tara de algum maníaco como aqueles que a gente vê no cinema e na tv! Isso não é coisa de gente de outro mundo que veio para cá em algum disco voador, como crêem aqueles “cabocos” ignorantes de Pau Amarelo, que nada têm o que fazer, senão inventar estórias absurdas e outras besteiras.” Em um outro grupo certas


pessoas faziam propostas mais abrangentes. Uma delas dizia: “Bem que o nosso Presidente-aviador, que anda deslumbrado por essa gente do “primeiro mundo”, poderia resolver esse caso. É só reunir com eles para dialogar com esse extraterrestre, ou então mandar logo uma missão a Marte e fazer lá o que fizeram no Iraque.” Uma outra disse: “Eles não vão fazer isso, amigo! Parece que lá não tem petróleo...” Alguém deu uma risada, e falou: “Chamem a ONU! Lá só tem alienígena!” Uma mulher baixinha pôs a cabeça fora do grupo e perguntou: “Quem é essa tal Onu ?” Um gaiato respondeu: “É a mulher do pai Bastião...” A mulher encolheu a cabeça no mesmo instante que um indivíduo corpulento bradava: “Não admito gozação com minha mulher, seu f.d.p...” , e incontinente atacou o engraçado que se defendeu do soco e atingiu um outro homem ainda mais corpulento. De longe, o detetive Toquinho viu o grupo embolar-se com socos, pontapés e palavrões de todos os graus. Pessoas de outros grupos também discutiam entre si coisas semelhantes, e de repente o ânimo culminava com a mesma sorte de violência por motivos fúteis alheios aos fatos acontecidos. “É sempre a mesma coisa!”, pensou consigo Toquinho, “Um boato se propaga como fogo num palheiro; ou se espalha como uma peste. Vai ver que o resto da cidade também está brigando sem saber o porquê. E eu aqui querendo saber quem é o indivíduo que foi empalado. A vítima de Pau Amarelo ainda não foi identificada. O laboratório está demorando com o exame de DNA. Parece que não há material para fazer o exame. Os corpos ficam tão desfigurados, que nem os parentes identificam! Ah, que besteira! E que parentes? Até hoje não apareceu ninguém para reclamar os corpos. Vou lá com o capitão.”

Capítulo VIII

A expectativa era grande na Delegacia Central de Polícia. Mionete andava de um lado para outro, esfregando as mãos. Os outros funcionários faziam de conta que trabalhavam, folheando processos carcomidos pelo tempo e que ainda não haviam sido encaminhados à justiça. Permaneciam engavetados como reféns de futuras propinas que os interessados deveriam pagar para movê-los até os escalões superiores, depois de passarem de mão em mão e de gaveta em gaveta. O motivo de tanto nervosismo era o capitão Viriato. Este fora atingido por arma de fogo quando se retirava às pressas da localidade de Pau Amarelo, onde fazia diligências sobre o caso da mulher misteriosa encontrada na cama totalmente exangue e com perfurações estranhas na jugular. Felizmente, a bala que o acertou apenas passara de raspão na cabeça, arrancando uma pequena parte do couro cabeludo. Em dado momento a porta se abriu abruptamente, no mesmo momento que Mionete dava mais uma meia-volta.


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Valha-me nossa Senhora de Nazaré! O capitão...Ah! Toquinho! Por que não te anunciaste? E eu aqui sofrendo...

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Poupe seu sofrimento, D. Mionete! Vai sofrer mais quando ver a cabeça do capitão... – nesse momento o capitão adentrou no gabinete, e por um instante todos ficaram parados; depois levantaram e gritaram em uníssono: “Viva o nosso chefe! Ele está vivo!”

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Claro que estou! – respondeu o capitão Viriato com um gesto que demonstrava agradecimento aos seus subordinados. – Mas já vi que temos problemas, não é Toquinho? – O capitão logo que entrou viu na fisionomia do detetive seu ar pensativo, o que ele sempre demonstrava quando tinha um caso sério a tratar com ele. Por intermédio dele soubera com detalhes o caso do homem empalado, que fora encontrado no patamar do edifício onde se estabelecia a Agência de Modelos. O que seria agora? O detetive ainda titubeou um pouco à pergunta que lhe fora feita. Ainda não queria que os que estavam ali soubessem o que acontecera a bordo do avião que transportara a primeira leva de mulheres selecionadas pela Agência de Modelos e que seriam entregues ao cativeiro no país de destino. Chamou o capitão de lado e lhe confidenciou: “Sinto muito ter que lhe comunicar uma má notícia, logo no seu regresso.” “Fale logo homem! Deixe de rodeios!”, exclamou baixinho, o capitão. “O nosso informante que viajava no avião foi encontrado morto no sanitário; ainda não sabemos a causa da morte, mas não foi natural”, informou pesaroso, o detetive. “Isso é demais! Eles estão sempre à nossa frente! Investigue!”, disse o capitão com energia.

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D. Mionete, por favor! Verifique os resultados das autópsias dos cadáveres de Pau Amarelo e da Agência – era a primeira vez que o capitão Viriato falava a sua secretária desde que entrara no gabinete; ela ainda estava nervosa e um pouco decepcionada com a aparente frieza do chefe que ainda não lhe dera a devida atenção. Mas estava enganada! O capitão fazia isso de propósito para observar suas reações, e ver até que ponto chegava sua dedicação ao trabalho.

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Eis aqui o que o senhor pediu – disse Mionete, agora mostrando indiferença.

Ele rasgou um envelope lacrado do qual retirou alguns papéis que leu e releu. Faltava o principal: os exames de DNA que permitiriam a identificação dos cadáveres. Como ele já estava acostumado a esse desencontro entre a tecnologia e a burocracia, deixou de lado os papéis e pensou consigo: “Por enquanto, o Toquinho vai investigar o caso do informante encontrado morto no banheiro do avião; a esta hora aquelas pobres meninas já estão no cativeiro. Tenho quase certeza que a Cleyde não está entre elas; mas me resta uma dúvida: Onde estará ela neste momento? Nem posso admitir que aqueles crápulas a tenham seqüestrado.” Apesar de Mionete ser completamente bonita, aparentemente não despertava a libido do capitão Viriato, a ponto de este pensar seriamente em uma possível união com ela. Não


queria só uma aventura! Ela não serviria para esse fim! Fora feita para ter uma relação permanente com outro homem. Ele poderia ser esse homem, mas parece que ela só lhe inspirava amor fraternal. Ele sentia em si essa frieza ante as tentações que ela propositalmente exibia nos gestos, no modo de sentar, nas curvas do corpo cujo contorno era veladamente exposto pela roupa desenhada para esse fim, e até na audácia das palavras que às vezes jorravam sem querer de sua ingênua pretensão. Era solteira e provavelmente acalentava a esperança de algum dia fisgar o capitão Viriato, que até então se mantinha solteiro por convicção. Ele, como policial, via diariamente o desenlace de uniões aparentemente estáveis que vinham parar na delegacia, muitas vezes com vítimas causadas pela violência de um dos cônjuges ou outros motivos que vão além da nossa compreensão. Um dos casos mais recentes era o de uma mulher que fora solicitar ao ministério público a separação do marido por este ter sido flagrado por ela com outro homem na sua própria cama. Era um homem já idoso com uma prole de seis descendentes, inclusive netos. O resultado foi a separação do casal e a conseqüente amigação do idoso com seu amante. Outro caso que lhe chamou a atenção foi o de um jovem que vivia maritalmente com uma bela mulher. Ele tinha uma rica propriedade na localidade de Pau Amarelo, na qual se reunia com os amigos nos fins de semana. Certo domingo, um destes o chamou a parte e disse: “Vai até a piscina e vê o que tua mulher está fazendo.” Ele flagrou a mulher se beijando com uma das convidadas que também era casada. O resultado óbvio foi também a separação do casal e a união marital das duas mulheres. Esses casos e outros eram corriqueiros na crônica policial do dia-a-dia e serviam de aviso para o capitão não querer uniões permanentes. Além disso, observava que os casais que conhecia procuravam disfarçar nas reuniões sociais o pesado tédio que a união em comum já os havia saturado. As beijocas em cada face na chegada e na despedida resvalavam em lábios sedentos por um beijo diferente; os velados toques de mão, cujo calor parecia ser diferente; os achincalhes dirigidos ao consorte em tom de brincadeira; o delírio alcoólico dos homens que os levava a tomar liberdade com as mulheres dos amigos; e em rodas mais restritas, a quase banal troca de casais. Um caso destes foi parar na polícia. Um homem que mantinha relações sexuais com várias mulheres, de repente começou a se abster de participar desse conúbio coletivo. Certo dia, algumas delas descobriram que tinham sido preteridas por outra do mesmo grupo. Despeitadas e decepcionadas, atearam fogo na residência do casal que passara a viver sob o mesmo teto. Os exemplos não faltavam para o capitão Viriato, que olhava sempre com desconfiança o afago de mulheres jovens que viam nele um bom partido. A idéia de casamento ou união marital lhe repugnava, e logo se imaginava na mesma situação dos seus colegas e amigos, desencantados com aquelas que foram as musas de seus sonhos, e estas com seus “príncipes encantados.” Entretanto, desde que conhecera Cleyde no acidente que a levara a um hospital público, começou a reavaliar suas convicções antigas, tendo em vista um novo sentimento que vinha nascendo em relação a essa moça que não lhe saía da cabeça; bastava lembrar-se dela que seu sangue fluía mais rápido, ingurgitando suas forças viris, coisa que raramente sentia em relação a qualquer mulher. Além disso, foi acometido por


um sentimento de bem-aventurança, que permanecia subjacente em sua mente por muito tempo, que o fazia esquecer de si mesmo, deixando-o à deriva por outros caminhos. Fáceis são os caminhos que levam as pessoas à perdição, senhor capitão Viriato! Alguns deles são tão tortuosos que alguém inexperiente fica sem direção e sujeito à forças inexoráveis. Seu destino vem do capricho de outras pessoas cujos interesses se sobrepõem aos verdadeiros direitos humanos das criaturas desamparadas. Ao caminhar por este mundo cheio de meandros, uma alma desamparada está sujeita a toda sorte de ciladas feitas por flibusteiros de diversas facções, que não regateiam esforços para transviar suas vítimas para o inferno das ilusões de uma passarela, de um concurso de beleza ou do dinheiro fácil dos prostíbulos de alto coturno. Dificilmente uma jovem pobre pode escapar da teia engenhosa dos corruptores de corpos e almas, que sabem manipular os anseios e as necessidades de cada uma, conforme a tendência que mostra. Entre esses entes que vivem nas trevas assomou ao encontro de Cleyde a Josefa, de índole nefasta, que desde cedo se agregou à escória da sociedade, e depois ao alto mundo da prostituição para satisfazer a luxúria de certos barões sem genealogia de família. Estes senhores, aparentemente castos nos recessos dos seus lares, que transmitem aos filhos e filhas uma postura de probidade e decência, são os mesmos que em certos horários do dia – após o meio-dia ou às cinco da tarde – saem dos seus escritórios para os lupanares de luxo. Ao se viajar por este país continental, pode-se ver que, na maioria dos Estados, não há diferença no processo de corrupção e exploração de todo tipo de atividade humana, inclusive a ligada à prostituição. Caminhando nas terras do interior amazônico ou do sertão, o leitor pode ver com os próprios olhos o contraste entre as cidades litorâneas, cheias de aparente encanto, e a miséria do caboclo ou do nordestino, exposta nas ruas, nos seus lares e nas doenças endêmicas provocadas pelo desvio de recursos destinados para isso, e que vão aumentar alhures a riqueza dos senhores desses males. O Governo, pressionado politicamente por estes senhores, realimenta essa situação de falência com mais dinheiro, que é escamoteado para os mesmos fins escusos; e para completar esse círculo vicioso nefasto, a riqueza potencial daquelas regiões é explorada por grandes empresas que exaurem o solo, deixando no fim enormes crateras em redor das quais prolifera a prostituição e a peregrina miséria. Agora, convido o leitor para andar mais e ver mais. “Ora! – diria alguém – se é para ver miséria, fico aqui mesmo!” Talvez tenha razão! Mas é um outro lado. Vamos conhecer como vive o caboclo amazônida. Ao longo do imenso caudal de água doce do Rio Amazonas convergem dezenas de outros grandes rios e incontáveis igarapés, cuja configuração à distância poderia dar a impressão de um gigantesco esqueleto de peixe, se não fossem as diversas ilhas fluviais, os lagos e os meandros quilométricos dos seus afluentes. Alguns desses lagos estão próximos do rio e outros se perdem na imensidão da planície verde cuja vista aérea ocupa quase todos os quadrantes do horizonte. Desta perspectiva não se vê um morro ou qualquer outra formação geológica mais significativa, e o tédio toma conta de quem viaja nas alturas do


Equador. De vez em quando, aparece uma pequena casa à margem de um rio ou igarapé até que se avista um lugarejo mais denso. O leitor pode imaginar-se que está pilotando o avião, e que por mera curiosidade resolve amerissar com segurança em um daqueles rios. Depois de parar os motores, emerge da cabine e joga na água uma âncora para reter o hidroavião, e em seguida enche um pequeno barco inflável para chegar à terra firme na qual está o casebre do caboclo. Ao aportar, tem dificuldade de saltar do barco para o primeiro degrau de uma escada escavada no barranco, que vai até o terreno que está acima do nível da água do rio. Vencido o obstáculo, é recebido com curiosidade pelo caboclo e sua família: a mulher e uma prole que faz uma escadinha que começa com um recém-nascido, que está agarrado ao peito da mãe, e termina em um adulto que pode ter mais de vinte anos. Atrás está a casinha de pau-apique. Depois da formalidade das apresentações desajeitadas e tímidas, o pai da família, ainda desconfiado, convida o visitante para entrar no casebre. Este só tem uma porta e uma janela na frente. A cobertura é de palha. A mobília da saleta é uma mesinha rústica e alguns tamboretes. Na parede que dá para os fundos está pendurado um calendário antigo com a imagem do Sagrado Coração de Jesus ou de Nossa Senhora de Nazaré. As outras paredes estão cobertas de folhas de revistas impressas com os artistas preferidos, automóveis, motocicletas, cortinados e móveis luxuosos, jardins floridos, paisagens exóticas de outros lugares, etc. Em um canto da sala há um pequeno e humilde oratório com a imagem da santa padroeira da vila. Do outro lado da parede da sala estão os pequenos quartos geminados com portas que dão para um corredor que tem duas a três janelas laterais, e que termina na cozinha. Em cada quarto as redes de dormir ainda estão penduradas em suas argolas ou simplesmente suspensas pelos punhos; aqui também as paredes podem exibir outras gravuras, agora com mulheres seminuas ou belos rapazes. Um catre com colchão de palha é um luxo para o casal. A cozinha tem um fogão de barro que pode usar carvão ou simplesmente lenha; uma mesa rústica de madeira e tamboretes; uma espécie de armário para guardar os pratos, geralmente rachados e cheios de estrias negras; o talher é usualmente a faca e a colher; alguns vasilhames de lata ou vidro guardam – quando tem – o arroz, o açúcar, o café pilado, o feijão da roça, e a farinha de mandioca. Uma janela, da qual sai um estrado de madeira para fora – o jirau –, serve para lavar pratos, panelas e outros utensílios de cozinha . Ao lado, uma porta estreita dá passagem para o quintal. Neste, algumas galinhas e pintinhos ciscam o chão a procura de insetos e resíduos de alimentos. Talvez o visitante encontre alguns porcos. Um pilão de madeira serve para triturar o café em grão, comprado na vila que fica cerca de doze quilômetros em caminho sinuoso pelo mato ou algumas horas de canoa pelo rio. Sem o café, a família se contenta com o chibé – água com açúcar e farinha de mandioca. O visitante perscruta com o olhar para ver se há algum banheiro. Não encontra. Fala ao ouvido do caboclo o que quer fazer. Este lhe indica um caminho que entra no mato. O visitante segue pelo mesmo até um sítio no qual estão algumas pedras que servem de apoio quando se fica de cócoras. Os excrementos misturados à urina encharcam o solo; estão cobertos de moscas azuis; exala fartum. Uma frondosa mangueira apinhada de mangas maduras serve de cobertura. O visitante volta com o rosto lívido e tontura.


Talvez seja a hora do almoço. O fogo ainda não foi feito. O caboclo se desculpa, e acompanhado de dois filhos homens entram em uma pequena canoa feita de uma tora única de madeira. A canoa mal flutua com o peso dos três homens. Os dois rapazes remam em lados opostos e o pai segura um remo que serve de leme. A certa distância da margem, um deles amarra a canoa em uma estaca fincada no leito rio. A correnteza é um pouco forte. Cada um lança seu caniço com anzol e isca de minhoca. O sol a pino parece que não incomoda os homens, que têm a pele escurecida; cada um protege a cabeça com chapéu de palha . O tempo corre. As horas passam. Nenhum peixe fisga a minhoca. Os homens desistem. Recolhem seus caniços e regressam decepcionados e com vergonha. Os homens encostam os caniços a um canto da casa. Possivelmente não vai haver almoço. Um deles pega uma velha espingarda de cartucho com escumilha. Com certeza vão caçar. Voltam ao escaler e seguem costeando a margem do rio até um lugar onde se vê um bando de ciganas – uma espécie de ave que vive nas copas das arvores que deitam ramos sobre as águas do rio. Alguns tiros disparados a esmo, derrubam uma delas. As outras se dispersam mato adentro talvez com algumas delas feridas. De onde estão situados não há meio de entrar na mata densa, pois a água do rio dá continuidade ao igapó que invade a terra firme. Os caçadores voltam com a ave. Desembarcam. Agora se pode ver mais de perto a ave. Esta é mais ou menos do tamanho de uma galinha com penas multicoloridas nas quais se destaca o vermelho. Uma crista vermelha encima a cabeça. A ave é depenada em água quente e depois esquartejada e colocada em uma panela que parece de alumínio, mas, com o uso prolongado no fogo à lenha, está quase preta. Depois de muita fervura, a mulher do caboclo espeta uma coxa com uma faca para sentir se a carne está mole. Tampa a panela e espera mais. Volta outra vez e nada. Espera mais. O tempo passa nostalgicamente. Volta seguidas vezes e conclui com um muxoxo que não há jeito de a carne da ave amolecer. Os comensais famélicos, agora sem pejo, tomam pedaços da ave e tentam arrancar alguns fiapos de carne. Só conseguem a muito custo. Suam com a ingestão do caldo quente misturado com farinha de mandioca. Quando terminam o almoço, o sol já declina no ocidente. O céu ainda cerúleo é manchado lentamente por uma esteira sangüínea de luz que permeia as filíferas nuvens brancas quase translúcidas. As primeiras guaribas – espécie de macaco conhecida genericamente por bugio – começam seu lamento nostálgico que ecoa altissonante na floresta, e amedronta o visitante que pela primeira vez aporta esses ermos esquecidos da civilização. A noite estende seu manto azevichado sobre a floresta. Ainda se ouvem os últimos guinchos das guaribas que agora vão em bandos para seu habitat; quase ao mesmo tempo desperta o macaco-da-noite cujo timbre de voz se assemelha ao de ave com um tom mais grave e cadenciado. Os primeiros mosquitos da espécie carapanã chegam em revoada com sede de sangue. Seus ferrões, como a ponta da aguilhada, solertemente penetram na pele dos animais e das pessoas, provocando um ardume agudo. Os ouvidos sofrem com o zinido que azoina e provoca cócegas nas orelhas. Das poças de água e dos charcos vem o rouquejar dos sapos e o coaxar das rãs que se afinam em uma orquestra regida por um maestro invisível, entronizado no céu salpicado de lantejoulas. De repente, ouve-se o farfalhar das asas negras de morcegos que surgem da escuridão, voando em desordenadas


evoluções que deslocam o ar que está em volta. O bramido de uma onça que ronda a mata em torno da choupana provoca o terror nos caboclos que correm para dentro do casebre, e se trancam em seus quartos. De vez em quando, uma coruja crocita seu canto fúnebre, que os caboclos tiram como augúrio de algum mal, prestes a acontecer. O visitante olha para seu corpo e não consegue enxergá-lo. Vasculha com olhos a escuridão em volta de si e nada vê. Ergue a cabeça e não sabe por que o brilho de mundos infinitos, não ilumina, mesmo com uma luz tênue, esse manto escuro que cobre a planície infernal. Agora só se ouve o ronco alternado das pessoas que dormem, cujos corpos estão negros de carapanãs e anestesiados pelo sono profundo. Amanhece. O sol se esconde atrás de nuvens negras que nessa época do ano prenunciam a chegada do inverno amazônico. Cada um dos membros da família toma sua rotina diária. As mulheres cuidam de preparar o desjejum; os homens cortam lenha para fazer o café. Este é adoçado com caldo de cana, pois não há açúcar na despensa. O café é ralo e o pão é substituído pela farinha de tapioca. Um deles coloca no café um líquido branco e viscoso – é o leite do amapá, de uso medicinal, e que pode substituir o leite de gado. – Terminado o café, os homens adentram o mato na esperança de encontrar alguma caça. As mulheres descem o barranco, cada uma com uma lata. Retiram a água do rio e sobem o barranco com a lata na cabeça, bem equilibrada que não vasa uma gota d’água. Uma delas derrama a água em um pote de barro que a deixa fresca para beber. As outras latas são derramadas em um recipiente de madeira que fora escavado de um grosso tronco de árvore. Voltam várias vezes ao rio até abastecer toda a casa. Depois uma delas vai lavar pratos e colheres. Outras colocam sobre uma armação de madeira no quintal – o quarador – algumas roupas molhadas. Alguns trapos ainda vão ser lavados. O sabão é grosso e sem perfume. Um galo preto cacareja solitariamente no fundo do quintal próximo à densa floresta. É o seu último canto. Um enorme gavião em vôo rasante prende o pobre animal em suas garras poderosas e afiadas. Alça vôo, e é acompanhado pelos olhos tristes das mulheres. Ele era a esperança de uma prole fecunda de pintinhos que estavam por vir das tenras frangas. O sol ainda escondido já caminhara bastante no firmamento. Um menino começa a tremer. Sua mãe corre para dentro da casa e traz um saco grosso de pano e o envolve, deitando-o sobre outro estendido no chão. O sol agora se mostra por entre falhas de nuvens, irradiando sua intensa luminosidade que deixa os olhos pesados e preguiçosos. O menino treme cada vez mais, mesmo sob o intenso calor do meio-dia. O pano grosso começa a encharcar-se de suor. A mulher traz outro pano e o envolve. É inútil. O menino agora tem convulsões, e delira, falando palavras ininteligíveis, talvez assolado de visões tenebrosas. Depois de algum tempo, ele começa amolecer e o tremor se esvai aos poucos. Está molhado de suor, e quente; é a febre que provavelmente passa de quarenta graus. Não há remédio e socorro médico próximo. Seu suplício diário vinha acontecendo há várias semanas. Agora não resiste mais. Dá seu ultimo suspiro. A mãe e as outras mulheres resignadas não vertem sequer uma lágrima. O menino era o último entre os outros que partiram cedo demais, vitimados pelo terrível paludismo. Os homens chegam tarde da caçada. Dois deles, um na frente e o outro mais atrás, trazem um macaco bugio pendurado em uma vara que repousa sobre seus ombros. Era a única caça. Aparentemente, os homens não mostram tristeza pela morte da criança. Novamente


começa o lamento das preguiças. As mulheres tomam o cadáver da criança, e o colocam em uma rede, que é pendurada pelos dois punhos na mesma vara que trouxera a preguiça. Está pronto o enterro que seguirá cedo, no dia seguinte, para a vila. Vamos agora com o leitor para a vila que parece ser a sede do município da região. É uma localidade típica das comunidades que vivem à beira do rio: apresenta apenas uma rua, tendo as casas dispostas uma ao lado da outra. O que sobra para trás são os fundos dos quintais e vários caminhos que penetram a floresta. Algumas casas se espalham por entre o matagal com terras de limites indefinidos. Em uma pequena praça, uma casa de alvenaria, apenas rebocada na frente, é a prefeitura. Mais adiante, uma igrejinha branca está alinhada com a casa da prefeitura, e tem uma cruz de metal encimada na extremidade dianteira da cumeeira. A partir daqui, um caminho tortuoso leva ao cemitério, cujo terreno têm várias cruzes dispostas desordenadamente sobre monturos de terra, que cobrem as sepulturas. Uma delas, ainda está com a terra fresca. Provavelmente é a da criança que morrera no dia anterior, naquele sítio que o leitor esteve imaginariamente, mas que ocorrera de fato em umas dessas coincidências inexplicáveis, que casam a nossa imaginação com a realidade. Na beira do rio, muitas canoas ficam atracadas por cordas em paus fincados no chão ao lado de escadas, que são escavadas no barranco de argila amarela, que levam até à rua. A maioria das canoas é de pescadores que saíram na véspera, ao cair da tarde, e passaram a noite pescando os diversos peixes da região; e outras mais que trazem sacos de farinha de mandioca, banana verde, açaí, e certas frutas sazonais como o piquiá, o uxi, o mari, etc. Algumas delas trazem animais silvestres ainda inteiros, que foram caçados na tarde anterior e durante a noite, como o porco do mato, a capivara, a paca, o veado e outros roedores menores. Tudo isso é vendido nas próprias canoas e o que sobra vai para um pequeno mercado. Como não há frigorífico, os peixes e as carnes dos animais silvestres são conservados no sal, e depois são vendidos para a população, quando não há essa relativa fartura temporária de carnes frescas. A orla da cidade é quase convexa para quem a vê do rio, mas em uma das suas extremidades a jusante ela se encurva para dentro, ficando quase escondida para quem se aproxima via marítima a montante, da outra extremidade. É nessa parte ribeirinha côncava que a pequena vila muda abruptamente de feição. Agora muitos barcos maiores, com visível espaço para redes de dormir e outros com camarotes, se enfileiram ao longo da orla que, vista à distância, aparece com um insólito movimento de pessoas. Chegando lá se pode ver que há um próspero comércio de peles de animais silvestres, proibido pela legislação pertinente. Muitas adolescentes estão em outros barcos menores e acenam com a mão para os transeuntes. Mais de perto se pode ouvir que elas pedem dinheiro. Algumas delas, mais audaciosas, levantam as saias e mostram suas partes intimas sem nenhum pudor. Em um certo instante um homem retira uma delas do barco e se homizia em outro que tem camarote. Enquanto isso, uma outra diz para uma mulher idosa que está no mesmo barco: “Agora é minha vez, não é mãe?” A velha responde: “Tu vais para a Capital com aquela dona. Ela disse pra mim conservar tu.” Não demorou muito para chegar a “dona” que foi referida pela velha para uma das filhas. Não foi difícil identificá-la . Era Josefa, pelo andar gingado e os terríveis olhos azeitonados. Ela conversou com a velha durante alguns minutos. Esta recebeu uma certa importância em


notas, e entregou a menina com uma sacola de roupas pobres e sapatos rotos. Enquanto isso, outras adolescentes estavam um pouco à distância, e, a um aceno de Josefa, correram em sua direção. Seguiram-na até um daqueles barcos com redes de dormir e camarotes no andar de cima. Elas entraram no barco. Logo depois subiu um homem já conhecido do leitor. Era Juan, da agência de modelos. Em seguida subiu outro homem que parecia ser o comandante, em vista do quepe de oficial que usava. Um marinheiro levantou a âncora pelo cabrestante e o barco deu partida. Ele era também o piloto do barco. Este era o que se chamava de “batelão” que servia para o transporte de cargas e passageiros. Alguns tinham somente um camarote na parte superior, e o andar de baixo servia para os passageiros que passavam a maior parte do tempo deitados em redes quando o trajeto era curto. O porão armazenava cargas. Para distâncias maiores, esses batelões tinham mais camarotes para atender pessoas de maior poder aquisitivo, que se deslocavam a negócios ou a passeio entre a Capital e outras cidades. O batelão que transportava Josefa e suas meninas, entre outros passageiros, era deste tipo. Josefa ocupou um dos camarotes que já fora previamente alugado, e as meninas ficaram no andar de baixo nas redes que eram ocupadas por homens e mulheres separados. A higiene era precária com sanitário e banheiro conjugados para homens e mulheres dessa classe. A alimentação pouca e de má qualidade provocava freqüentes casos de intoxicação alimentar, que eram apenas citados informalmente para as autoridades portuárias nos locais de destino. A superlotação desses barcos, a pouca disponibilidade de salva-vidas, e a sinalização náutica insuficiente haviam provocado vários naufrágios com vítimas fatais. Outro perigo freqüente estava no encontro de grandes toras de madeira, parcialmente submersas, que, mesmo de dia, não eram visíveis ao piloto, principalmente nos estreitos de grande profundidade. O batelão que transportava Josefa e suas meninas estava sujeito a tudo isso Apesar de tudo, o batelão de Josefa singrava as águas tranqüilas com relativa facilidade. Os passageiros já estavam em suas redes; alguns já dormiam enquanto outros ouviam seus rádios de pilha ou conversavam entre si casos banais. Josefa no andar de cima conversava com o homem da Agência de Modelos. - Seu calhorda! Não vim aqui para facilitar as coisas pra ti – disse Josefa aborrecida. – Eu já tinha contratado essas meninas muito antes. Chegaste atrasado, porque és um babaca e só sabia ser mandado por aquele outro que já era. Parece que agora vais assumir o lugar de testa-de-ferro do chefão que está sempre ausente e mexe os pauzinhos lá de fora sem ser apoquentado pela polícia. -

Veja lá como fala, dona! – respondeu Juan, levantando-se visivelmente contrariado. – Posso até ser um calhorda, mas tu és também uma vasilha ordinária que veio de lá, nos cafundós do Judas, e agora quer posar de madama, só porque arranjou dinheiro não sei como. – Pensou consigo: “Só pode ser dinheiro roubado! Essa tarasca não arranja nem para o cafezinho...” – O homem não teve tempo de concluir seu pensamento. Josefa, melindrada por ter sido chamada de “vasilha ordinária”, sacou um punhal e o enfiou no umbigo do adversário, que dobrou sob o próprio peso na amurada do andar


superior, caindo na água turva. O barco estava quase todo às escuras, exceto por uma réstia de luz que vinha da sala do comandante, que dormia a sono solto. Josefa olhou para a esteira branca borbulhante que parecia uma estrada de água deixada a jusante pelo batelão. Como se nada tivera acontecido, sentou-se outra vez. Olhou para o punhal. Trouxe-o próximo ao nariz. Fez uma careta. Aproximou-o dos lábios. Seus olhos brilharam na escuridão. Seu sangue entrava e saía do coração como uma torrente de águas que encontra a garganta de um desfiladeiro. Suas cordoveias ficaram intumescidas a ponto de estourar. Sua boca salivava intensamente, e um estranho apetite levou sua língua ao fio do punhal. Seu corpo relaxou lentamente até que pode sentir o ar fresco que acariciava seu pescoço. Levantou-se. Abriu a porta do camarote e entrou. Acendeu uma vela. Olhou outra vez para o punhal. Estava limpo. Deitou-se e adormeceu. O barco aportou em um cais de arrimo da orla da capital já quase ao alvorecer. Josefa foi a primeira a saltar com suas meninas enfileiradas até atravessar a ponte de madeira entre o barco e o cais. Uma camioneta coberta com lona as esperava. Entraram e partiram com os faróis apagados. Os outros passageiros tomaram seus rumos. Ninguém foi identificado por seus nomes. Era um trabalho a menos para o comandante que não se importava com os rostos desconhecidos dos passageiros. A camioneta passou em frente ao edifício, onde estava instalada a Agência de Modelos. Josefa olhou pensativa para o frontispício do prédio. Pensou consigo: “Aquele desgraçado é carta fora do baralho. Ele não vai mais me importunar com suas diretas sobre minha pessoa. Reconheço que sou feia mas, em compensação, sou mais esperta que um cabrito. E não é só isso! Ele e os outros estavam atrapalhando os meus negócios. Queriam sempre levar vantagem. Eles controlam pontos de prostituição e eu tenho meu negócio privado. Queriam participação nos lucros porque minha casa fica num daqueles pontos. Era só o que faltava!...” Enquanto o carro se movia, Josefa continuou com seus pensamentos. “Já estou com saudade daquela menina... Acho que ela tem medo de mim... Apesar de tudo, eu gosto dela e vou lhe dar carta branca entre as outras meninas. Vou lhe ensinar a arte da sedução. Imagina se eu fosse bonita! Não tinha comido o pão que o diabo amassou! O início foi duro e agora esses malandros querem tirar proveito da minha sorte. Mas, voltando à minha menina. Vou fazer dela uma princesa e ela não vai para cama com qualquer um. Tem barão ai que vai dar o que eu quiser só para ficar uma horinha com ela. Vou preparar um esquema que vai dar água na boca deles. Tenho medo que uns coroas tenham infarto só de ver ela levantar o vestido. Ela não vai usar essas calças jeans apertadas que logo mostram as curvas da gente. Isso tira muito o tesão do homem que já imagina o que está por baixo da calça. Quero que eles fiquem imaginando mil coisas antes da transa. Tem alguns que nem conseguem porque ficam nervosos e acabam desistindo. Depois voltam outra vez para ver se conseguem. Teve um que voltou umas dez vezes até que conseguiu. Lembro-me do que ele disse: “Passei três anos com um analista, gastando uma fortuna e o desgraçado não deu jeito. E tua menina me curou.” Nesse dia ele ficou tão alegre que me deu dez mil. Era um senhor barão. Outro tinha feito uma prótese peniana


com um urologista. Mas não adiantou nada! O negócio ficava duro o tempo todo mas depois de meter não gozava. Foi ao médico que fez a operação e nada! Foi a outros médicos e continuava com o mesmo problema. Desesperado, contou-me tudo. Dei-lhe uma fórmula minha. Experimentou. Gozou depois de muitos anos. Nesse dia ele fechou a casa e pagou tudo para as outras meninas. Depois me deu um cheque que quando vi o valor quase caio para trás. Esses homens são mesmo complicados! As mulheres também! A maioria faz que goza para agradar o parceiro ou por esperteza. Quase todas fingem. Parece que com a mulher o negócio é mais complicado. Lembro-me que gozei poucas vezes, e foi com os garimpeiros. Alguns tinham um cheiro esquisito que me dava tesão. Ficava fula comigo se permanecia fria com uma pessoa mais educada e cheirando a perfume bom. Gostava mais dos perfumes baratos misturados com suor daqueles cabras. Na penumbra eu bem que disfarçava. Parecia bonita. Mas não é só eu que sou assim! Tem umas grã-finas que só gozam com o marido, pensando no jardineiro ou no mecânico sujo de graxa. Conheço uma que vem comigo só para mim levar ela em boates bem vagabundas. Ela dança a noite toda, bebendo batida e depois vai “transar” com qualquer um. Ela me disse: “Ah, Josefa, o meu marido só faz o convencional.” Outra me disse que só goza fazendo sexo oral depois que o homem goza dentro dela. Ah, que nojo! Acho que a minha menina é normal; e se não for, que faça o que quiser, contanto que me dê lucro.” – D. Josefa! Chegamos! – disse o motorista que já havia parado o carro e fitava Josefa que parecia com o olhar distante. O motorista saiu do carro e abriu a porta. Josefa saltou primeiro e em seguida suas meninas. Um serviçal veio abrir um portão de ferro de uma casa cercada por um muro de alvenaria de cerca de quatro metros de altura. Josefa entrou acompanhada por suas meninas. Uma piscina de forma irregular, quase de tamanho olímpica, ficava a esquerda de uma grande casa de campo, circundada por um pátio de cerca de quatro metros de largura. Via-se do pátio frontal uma churrasqueira do tamanho daquelas usadas em churrascarias comerciais. Vários móveis estavam arrumados em conjuntos em toda a extensão do pátio: Mesas de centro com tampa de vidro e cadeiras estofadas formavam cada grupo. Sobre cada mesa havia um buquê de flores que pareciam ser silvestres. Vários assentos estofados individuais se espalhavam aleatoriamente pelo chão. Junto à parede, um imenso sofá rodeava completamente a casa; dava a idéia que tinha sido feito lá mesmo. Outros estofados serviam de apoio para as costas na parede. Externamente à casa, várias pequenas edificações com cobertura de palha – semelhante às habitações dos indígenas, chamadas malocas – se distribuíam pelo terreno que dava a idéia de ser bastante grande. Em cada uma havia uma pequena churrasqueira e uma caixa grande de isopor que provavelmente servia para conservar gelo e bebida. Uma mesa de assentos rústicos circulava o único esteio central da maloca. Todas elas ficavam entre as árvores que formavam um bosque. Por isso, pouco sol penetrava nesse local, ficando quase totalmente à sombra. Quem quisesse se bronzear poderia ir à piscina, elevada cerca de quase dois metros; do convés começava uma rampa gramada e florida que chegava até o chão. Sobre o convés havia mesas com chapéus-de-sol e espreguiçadeiras. No interior, existiam várias mesas de pé de galo cravadas no fundo da piscina. As paredes internas mostravam altos-relêvos de figuras eróticas de homens e mulheres nuas. Um perfume


suave de lavanda recendia da água aparentemente azul, emitida do reflexo da alvenaria de azulejos; ainda havia sobre a água muitas pétalas de rosas vermelhas e de açucenas. Todo esse cenário ocupava parte dos primeiros trezentos metros da propriedade. A partir de uma casa rústica – morada do caseiro – partia um caminho estreito através da mata fechada com algumas clareiras alternadas. Em um certo trecho do caminho, começava uma ponte estreita de madeira, de cerca de trinta metros de comprimento, que terminava em uma construção semelhante a uma maloca. Uma escada de madeira descia até as águas de um igarapé, do qual se podia ver que a maloca era uma palafita com estacas fincadas no fundo do mesmo. Da outra margem do igarapé, começava a mata virgem típica da floresta amazônica, que ainda pertencia à propriedade até o limite de mil metros – grande demais para a região metropolitana da capital. Josefa chamou algumas mulheres – provavelmente empregadas domésticas – e deu ordens que diziam respeito ao agasalho das jovens recém-chegadas. Depois, abriu a porta principal da frente que dava para o interior da casa. Entrou. Uma sala tinha a mesma disposição de móveis da casa de Pau Amarelo na qual foi sacrificada a jovem encontrada pelo capitão Viriato. Prosseguiu andando por um longo corredor que tinha de cada lado um conjunto de quartos separados, até que desembocou em uma varanda. Havia uma longa mesa retangular com cadeiras. Na parede, em frente, estava pendurado o quadro da Santa Ceia. Completava com uma geladeira, freezer, um balcão com vários utensílios de cozinha e dois lavatórios com espelho. Nada de mais especial. Duas janelas laterais permitiam a circulação de ar. Na mesma direção do corredor uma outra porta dava acesso a outros aposentos com a mesma simetria do primeiro bloco. No término do corredor uma outra varanda com o mesmo mobiliário da primeira. Parecia que o cenário ia se repetir com outra porta de acesso. Josefa abiu-a com uma chave. Olhou para dentro. Seus olhos azeitonados brilharam...

Capítulo IX

Cleyde só abriu os olhos no dia seguinte à sua saída do quarto dos espelhos. Estava com dor de cabeça. Sentia tontura como se tivesse tomado alguma bebida alcoólica. Olhou o teto do aposento. Novamente outras imagens eróticas de homens e mulheres nuas pareciam saltar do alto relevo para coabitar com ela. Olhou para as paredes. Outras desenhos de homens musculosos e barbudos com o pênis ereto pareciam penetrar em figuras de mulheres frágeis como sílfides. Ela sentiu um arrepio. Tinha medo de certos homens, embora sentisse que seu íntimo os aceitava de um modo muito especial. Preferia que eles fossem mais suaves. Não suportava a idéia de se submeter a um homem como o que estava no alto-relevo do teto. Pensou consigo: “Ele não deveria ter esses músculos fortes e essa barba feia. Sem essas coisas e com o corpo de Zoraia eu queria. Parece que ela me abandonou. Vejo tudo muito distante. Parece que faz um ano que saí da vila. A Josefa é culpada de tudo. Agora estou aqui sem saber de onde vim.”


Olhou mais uma vez para cima. Do teto, um dossel de cambraia fina franjada descia sobre a cama. Em cada lado da cama, ramos de flores de matizes diversas estavam em vasos colocados em cima de criados-mudos. A cama estava embutida no centro de um grande guarda-roupa de mogno com portas de espelho bordado em ouro. No canto de duas paredes, uma mesa circular formava um bar com prateleiras embutidas, das quais dependuravam copos de cristal. Havia muitas garrafas com rótulos de bebidas importadas. Uma meia dúzia de tamboretes revestidos de couro completava o bar. Em cada um dos outros cantos das paredes havia um nicho ornado de flores, com alguma imagem das entidades do culto afro-brasileiro. Grossas velas brancas, vermelhas, azuis e roxas emitiam luz bruxuleante que se refletia em cada imagem, cuja sombra dava a impressão que ela se movia. Contrastando com esse cenário erótico-religioso, havia uma estante de cedro embutida na parede que se elevava até o teto. O bom gosto aparente dos livros era visto na encadernação dourada desenhada no papel negro ou vermelho das capas. Um conjunto de vinte livros do mesmo formato parecia ser a coleção de um mesmo autor; um outro denotava ser uma enciclopédia. Havia também uma escrivaninha com gavetas, embutida na parte central da estante. Na tampa de madeira estavam distribuídas algumas fotografias de pessoas e uma coleção de papel-moeda antiga, que ficavam protegidas por uma grossa lâmina de vidro. Sobre esta repousavam agendas, cadernos de anotação, calendários, canetas e outros materiais de escritório. Uma cadeira giratória completava o mobiliário da estante. Cleyde olhou para o espaço perto da cama. Em torno desta havia três confortáveis sofás com espaço entre eles para dar passagem somente a uma pessoa de cada vez. A sua direita havia uma porta ao lado do bar. Levantou-se da cama. Desta vez não sentiu dor como da outra vez, quando acordara no quarto dos espelhos. Abriu a porta. Era um amplo banheiro parecido com o da casa de Zoraia. Tinha uma banheira de mármore com tonalidade cor de rosa e outras facilidades de um banheiro moderno com torneiras banhadas em ouro. Olhou para os lados: As paredes e o teto formavam um só espelho e, como da outra vez, refletiam sua figura indefinidamente. Teve vontade de se despir. Agora notou que estava bem vestida; não era nenhuma das roupas que Zoraia lhe dera. Vestia uma blusa decotada que lhe mostrava a parte superior dos seios viçosos. Através dela podia ver no espelho a formação róseo-escura da região mamilar, que lhe despertava o próprio desejo. “Por que sinto isso?” Perguntava a si mesma toda vez que se mirava no espelho. Parecia que era outra mulher que via. Outra vez seu corpo se encheu de luxúria. A outra peça cobria o resto do corpo veladamente, deixando entrever suas belas curvas. Desabotoou-a. Deixou-a saia cair lentamente. Continuava a olhar seu corpo. Vestia uma calcinha bordada feita à mão, deixando entrever através de furos no desenho sua púbis de cabelos quase negros, que contrastavam com sua pele naturalmente bronzeada. Virou-se de perfil. A discreta proeminência de suas nádegas se curvava suavemente até as coxas roliças em proporção com as pernas bem torneadas. Seus cabelos caiam desordenadamente sobre os ombros e desciam até a cintura. Virou-se de costa. Dava para ver no espelho oposto seu dorso combinando em proporção com o resto do corpo. Sorriu. Pensou consigo: “Por que não aproveitar tudo isto?” A Carlinha lhe dissera muitas vezes: “Deixa de ser boba! Por que não ganhas dinheiro com esse teu corpo? Se fosse eu já teria um apartamento de luxo e um carrão. Se quiseres, eu te


apresento a uns magnatas que eu conheço. É só gente da “alta.” Deixa de ser doméstica! Só ganha salário! E o patrão ainda quer se aproveitar do nosso corpo!” Cleyde voltou a se mirar, enquanto sua imagem se refletia em todas as direções. Pensou consigo: “Talvez a Carlinha tenha razão! O tempo passa e eu na casa dos outros só trabalhando. Se fosse só isso, ainda bem! Mas tem outras coisas! Ela me disse que eu posso entrar no mundo desses barões, freqüentando exposições de pinturas e dando uma de entendida no assunto; ou então indo ao Jockey, fingindo que apostou em algum cavalo. Tem essas que também freqüentam autódromos e outras que pescam algum jogador famoso. Mas para isso tenho que me vestir bem. Acho que vou comprar um chapéu para ver a corrida de cavalo.” Completamente despida, Cleyde olhou para a banheira e se lembrou de Zoraia. Seu corpo estremeceu e o sangue correu mais rápido nas veias. Sentiu a vagina intumescer ao mesmo tempo que sua vista ficava turva e um desejo incontrolado a impulsionou para o interior da banheira. A água jorrava tépida e o calor parecia afagá-la como os braços de Zoraia. Lembrou-se da brincadeira do beijo. Notou sua imagem refletida no teto. Instintivamente, ela se via em uma posição receptiva. Pensou na figura do homem musculoso e barbudo do quarto. Outro desejo a invadiu. Sua posição de fêmea combinava com sua imaginação, levando o homem a uma posição de posse que a subjugava, e aos poucos vencia suas forças; suas mãos vigorosas entrelaçaram-se às suas e levaram seus braços acima da cabeça; os músculos vigorosos de suas coxas abriram as suas e a prenderam inelutavelmente para a cópula. Mas um desvio inexplicável de sua fantasia mudou sua libido para a meiguice do enlace carinhoso de Zoraia, que a beijava com seus lábios perfumados; sentiu o contato de sua língua que se mexia em torvelinho, e criava sensações estranhas em cada parte do seu corpo. O movimento deste acompanhava seu louco frenesi que a fazia chapinhar a água que saía para fora da banheira. Parecia uma pessoa que se afogava, mas se comprazia com isso ao falar palavras que pediam mais intensidade do estrênuo esforço da amante imaginária. Finalmente, seu êxtase chegou ao ponto sem retorno que explodiu em convulsões, gemidos e gritos que a estremunharam de sua alucinação erótica. Josefa abrira a porta da última varanda. Viu que a cama estava vazia, mas notou uma réstia de luz que saía da soleira da porta. Imediatamente voltou ao seu aposento. Sentou-se na cama com a costa apoiada no espelho da mesma. Acionou um controle remoto de um circuito fechado de vídeo e viu todos os movimentos de Cleyde, desde sua entrada na banheira até o ritual que a levou ao orgasmo. Acompanhou-a desde o início nesse ritual, despindo-se gradualmente até ficar completamente nua. Sem saber a real motivação erótica de Cleyde, Josefa, que há tempo não experimentava o prazer do sexo com outra pessoa, aproveitou essa oportunidade para lhe despertar antigas sensações. Colocou-se na mesma posição dela, e lentamente introduziu o corpo do vibrador que retirara de baixo da cama. Procurava reproduzir os mesmos movimentos visuais do vídeo e se imaginava no antigo lupanar do garimpo com o homem que mais lhe impressionou a vista e os sentidos. Não demorou muito para aumentar sua libido com a ação mecânica do aparelho, casada com sua imaginação erótica. As suas convulsões aumentavam, acompanhadas por palavras obscenas que lhe despertava cada vez mais o desejo reprimido. No auge do paroxismo, seus gritos chegaram aos ouvidos da criadagem, que não se impressionava mais com o que já se tornara banal no dia-a-dia de uma casa de tolerância.


Entretanto, alguém chegara e ouviu o estertor erótico das duas mulheres, que também já se acostumara a essas explosões orgásmicas que para ele não passavam de mistificações feitas por prostitutas ou mulheres de programa. Enquanto caminhava, pensou consigo: “Essas meninas são bem treinadas pela mãezinha. Elas logo aprendem a arte da profissão. E os otários vão na onda sem saber que elas estão fingindo. Comigo já não é assim! Arranjo logo um xodó que me dá até dinheiro. Queria aquela que ela arranjou ultimamente. Mas ela disse que é só para os barões. Vai lhe render muito dinheiro! Essa velha é esperta demais! Passou a perna no pessoal da Agência. O outro já virou presunto. Parece que vão todos. Aí vem ela!” -

Olá, mãezinha! Chegou cedo da viagem, não é? – disse o homem.

-

Consegui o que queria. Trouxe só “filé” – disse Josefa aparentando jovialidade.

-

Tu tens sorte, mãezinha! Não encontraram nem o esqueleto do homem. Parece que no local onde ele mergulhou tinha muita piranha e candiru. Um caboclo que passava numa canoa chegou a ver um braço de gente na boca de um jacaré. Parece que não sobrou nada. O jornal disse que ele se suicidou.

-

Como é que o jornal soube? – perguntou Josefa meio desconfiada.

-

Ah, alguém que estava no batelão avisou a polícia que um homem tinha pulado n’água! Daí para o jornal foi pouco.

-

É bom! Aquele canalha não valia nada – disse Josefa cruzando os braços –, só queria boca rica. Agora já está no inferno com os outros...

-

E quando vai chegar a vez do último, mãezinha? – perguntou o homem, rindo.

-

Está para acontecer! – exclamou Josefa. – Vou preparar tudo para deixar o pai dele também no chão. Já está velho mesmo! E a velha também!

-

Pois saiba uma coisa! – disse o homem, com o dedo indicador apontado para cima – Não precisa se preocupar mais com essa velha. Ela morreu hoje de um infarto quando viu o barão na própria cama com a empregada. É mesmo uma raça de patifes!...

-

E o que aconteceu com a empregada? – perguntou Josefa com interesse.

-

Foi colocada no olho da rua pela filha dele...

-

Pois procura ver onde ela está e traga ela pra mim. Estou precisando de mais meninas. O carnaval está chegando... – Josefa viu um carro entrar no portão que dava para o estacionamento. Um homem de meia-idade saiu do carro e veio de encontro aos dois que estavam calados. O que estava com Josefa olhou para esta, que estava sorrindo com a mão esticada para o recémchegado. Pensou consigo: “Esse cara vem ver se a “preferida” já está pronta


para ele. Acho que ele não agüenta ela. Vai ter um infarto quando a ver nua. Agora me lembro dele. É gerente de um banco.” O de meia-idade depois dos cumprimentos, perguntou a Josefa como estava a “menina.” -

Amigão, ela ainda não está preparada! Preciso de mais tempo; o senhor sabe, ela não é como as outras; é noviça e cheia de dengo. Se o senhor quiser, eu contrato uma psicóloga para apressar o assunto. Preciso... Venha cá um pouco. – Josefa pegou o braço do de meia-idade e se afastou um pouco do outro homem, falando baixinho. – Este olhou para o outro e pensou consigo: “Essa estória de psicólogo é outra artimanha da mãezinha. Ele já está metendo a mão no bolso; tem tanto idiota neste mundo!...” – o de meia-idade tirou um maço de notas e o colocou em um dos bolsos de Josefa. Esta sorriu alegre. Ele se despediu e foi para o carro, enquanto Josefa vinha ao encontro do outro que sacudia a cabeça sorrindo.

-

Quanto tem aí, mãezinha? – perguntou o homem com a mão estendida para Josefa. Esta meteu a mão no bolso e tirou uma nota de cem e a entregou ao homem.

-

Esta é tua comissão, por enquanto – disse Josefa. – Vem mais por aí. Já tenho vários candidatos para ela. É só gente fina! Por enquanto, vou fazer mistério e aguçar a vontade deles. Tu como homem sabes disso muito bem! Quanto mais a gente esconde mais vocês dão valor. – Enquanto ela falava, um grupo de meninas se dirigia para a piscina. Cada uma se cobria com uma espécie de chambre transparente de cores variegadas, deixando entrever o corpo seminu.(Doravante vamos chamar o “homem”, aparentemente amigo de Josefa, de sr. X). Seu olhar foi direto para uma das meninas que caminhava um pouco atrás das demais. Josefa desviou seus olhos do visitante para ele e sorriu, não deixando de fazer uma observação.

-

Seu mulherengo! Já está dando em cima dessa outra, não é? Olha que a filha da comadre ainda não te esqueceu! – coincidentemente entrou no cenário a mulher que conhecemos por “comadre”, de prenome Brasilina. Ela estava acompanhada por suas duas inseparáveis amigas, que o leitor já conhece da vila onde morava Cleyde. As três mulheres vieram ter com Josefa, enquanto o sr. X falava com a menina que era seu mais recente xodó. A comadre adiantou-se, deixando as duas outras um pouco atrás. Ela estava ressentida com o sr. X por este ter desprezado sua filha, a Marinete, em troca de outra. Se ela pudesse mataria esse homem, e só não o fazia pela inexplicável relação de amizade que ele tinha com Josefa. Esta a contratara e as suas duas amigas para trabalharem no seu estabelecimento. Também vieram com elas, o Cambão, o Pojó, e o Ludião Elas praticamente se mudarem para este local por exigência da atividade diuturna que empregavam na limpeza dos quartos e de outros afazeres domésticos. Contudo, a comadre teve o privilégio de dirigir toda a criadagem e também fazia parte da administração do negócio de Josefa. Esta disse:


-

Pois bem, comadre, como vai a menina?

-

Ela ainda está um pouco abatida. Ela já tomou banho de sol na piscina. Parece que o conforto a fez esquecer o mundo lá de fora. Acho mesmo que foi uma crueldade o que fizeram com ela... – O sr. X se aproximou silenciosamente. A comadre constrangeu-se com sua presença. Ela baixou a cabeça quando ele começou a falar. Afastou-se um pouco.

-

Mãezinha, agora que quase todo serviço foi feito sem nenhum problema, queria saber qual vai ser o próximo passo. Parece que o chefão está chegando por esses dias. Vai ser uma boa oportunidade; pelo menos tu vais economizar o gasto que iria ter para fazer essa caridade longe daqui. – Josefa olhou para a comadre, acenando para ela se retirar. As duas mulheres que ficaram esperando a distância, comentaram baixinho:

-

Veja como a vida é! – disse a Negona. – A filha dela era tão orgulhosa e agora veio parar aqui. Primeiro tentou a agência. Depois se meteu com esse aí que a deixou, quando conseguiu o que queria. Deus me livre que minha filha tenha esse destino! – A Zenóbia ouvia e ao mesmo tempo pensava “Essa besta mal sabe que a filha dela anda com um homem casado e já está com uma “barriguinha.” Logo mais ela também vem pra cá como essa outra...” – Ela interrompeu seu pensamento quando a Negona completou o que dizia com uma observação. – Dizem que a Marinete vai bater forte naquela que está andando agora com esse aí...

- Vai sair um pau danado! – disse a Zenóbia, sacudindo a mão direita, fazendo o indicador bater no dedo médio – Quero ver o que a Josefa vai fazer; dizem que ela tem um quarto só para castigar as meninas quando elas saem do trilho. – A comadre já estava perto quando um tumulto surgiu no meio das meninas. A filha da comadre, vendo que o sr. X afagava seu novo amor, não conteve o ciúme e partiu em direção ao casal, mas foi contida pelas outras companheiras que se agarraram à jovem que parecia tresloucada. A comadre, vendo a filha nessa situação, hesitava em socorrê-la e ao mesmo tempo obedecer à Josefa que a mandou se afastar com gestos firmes e seu olhar significativo que dava medo mesmo de dia. A comadre a temia e a obedecia sem restrições. Ela retirou-se, sem olhar para trás, deixando a filha ao alvedrio voraz de Josefa que não perdoava esse tipo de transgressão. A jovem se debatia nas mãos de suas companheiras e de alguns brutamontes que acorreram ao local. Ela gritava e falava quase ao mesmo tempo. Com as nádegas totalmente expostas, dizia aos berros: -

Isto aqui – disse ela, pegando as nádegas exuberantes –, que agora não queres mais, era o que te ajudava a comer e beber. Teu salário não dava pra nada, e eu vendia isto pra comprar roupa e perfume pra ti, sem-vergonha desalmado! Vou te matar... – Ela não terminou de falar, pois a mão de Josefa tapou sua boca com um potente tapa, fazendo-a cair dobrada nos braços de


um brutamontes; este correu com ela, sendo seguido por Josefa que vertia toda sua cólera através dos olhos azeitonados e da baba que saía da sua boca. O brutamontes foi com sua presa para um sítio no qual ficava uma casa com grades nas paredes laterais e apenas uma porta de entrada. O homem entrou com a infeliz, saindo de lá imediatamente, ao mesmo tempo que Josefa adentrava pela dita porta como um vendaval. A jovem estava estendida no chão. Josefa pegou um relho que estava pendurado na parede e aplicou-o no corpo quase desnudo da infeliz que gritava de dor. A ponta do relho era bifurcada como a língua de certas serpentes, e deixava estrias vermelhas no corpo da vítima; mais algumas chicotadas, e a jovem perdeu os sentidos. A insensível mulher continuou na sessão de tortura até que sua baba nojenta deixou de verter da boca sem lábios. Seus olhos faiscavam como na noite que apunhalou o homem que viajava no barco com ela e suas meninas. Novamente sua sede de sangue lhe deu água na boca. Um filete de sangue escorria das nádegas da jovem, justamente do lado que ela orgulhosamente mostrara ao seu ex-amante e o culpara por sua desdita. Ainda era dia. Ficou com receio de ser bisbilhotada, por isso se conteve. Subitamente suas feições mudaram. Via-se agora um pouco de ternura naquela cara terrível. Delicadamente, mas mostrando uma força fora do comum, carregou a jovem nos braços e a deitou em uma cama. Era umas dessas camas antigas com quatro colunas de madeira de lei e uma cobertura; desta pendia um dossel de cambraia enfestoada que descia até o chão, rente a cama. As fronhas dos travesseiros eram vermelhas entretecidas com fios de ouro, formando desenhos em relevo de figuras de homens e mulheres em poses eróticas. O colchão estava coberto com um decido branco adamascado, e também formando brocados com homens e mulheres nuas. As paredes estavam revestidas de papel. O mobiliário era formado apenas por uma cadeira e um guarda-roupa. Uma porta dava entrada a um banheiro. Josefa ficou olhando a jovem desacordada por algum tempo; do seu corpo trescalava certo odor que mexia com seus sentidos primitivos de primata. Mais uma vez se conteve. Pensou consigo: “Essa também vai me render muito dinheiro. O desembargador só transa com mulheres maltratadas com sinais de chicote. Dizem que ele é um sádico teórico. Nunca tinha visto isto! Nesta profissão aprendo melhor que um psiquiatra de consultório. Tem um outro que só tem tesão quando a mulher está menstruada. Bem, menina! Vou avisar o desembargador!” Josefa achava que esse comportamento de suas “protegidas” afugentava seus clientes cuja maioria era gente da alta sociedade, autoridades, e incluindo, segundo ela, o próprio representante do Governo, considerado um sibarita impudente e renegado por essa mesma sociedade. Diziam que ele raramente era convidado para participar de festas nos clubes grã-finos da cidade por seu comportamento escandaloso, principalmente quando bebia. Por isso, ele gostava mais de prostitutas e não se inibia de aparecer publicamente com elas. Contava-se que certa vez ele usou um navio turístico de uma empresa estatal e foi se homiziar com várias delas em um conhecido balneário de uma cidade interiorana, tendo passado aí cerca de quinze dias, deixando como representante seu subordinado imediato cuja fama de libertino era igual ou pior do que a dele. Outra de suas


extravagâncias propalada pelo povo era que ele gostava de tomar banho nu nas piscinas dos seus lupanares prediletos entre os quais incluía o de Josefa. Em um desses bacanais, ele reagiu ao afago indecoroso de um jornalista de um conhecido jornal da cidade com a reprimenda mansa: “Respeita-me que eu sou uma autoridade!” Ao que outro respondera: “Tu és autoridade lá para tuas negas! Cuidado com a minha coluna social!” Assim, suas excentricidades passaram a fazer parte do folclore da cidade. Com essa clientela o estabelecimento de Josefa criou fama até fora do Estado, estando incluído cinicamente no menu dos agentes turísticos do próprio Governo. A maioria de seus fregueses era discreta, e junto com a disciplina imposta por ela não havia escândalos, embora todas as licenciosidades fossem permitidas no terreno da sua propriedade em sítios com casebres rústicos para os amantes da natureza, que queriam total privacidade fora dos olhos indiscretos dos outros clientes. Alguns levavam suas próprias esposas com o fim de sair da rotina doméstica; para não revelarem suas identidades, eles entravam pelos portões laterais da propriedade. Lésbicas, homossexuais assumidos e os enrustidos, preferiam esses sítios, nos quais podiam fazer o que queriam com seus pares, longe dos olhos e da má língua dos outros freqüentadores. Portanto, tudo o que acontecia de extraordinário era sufocado pela autoridade da terrível Josefa. Aquelas cenas recentes se passaram em um horário em que não havia muitos clientes. Os disparates de Marinete, ex-amante do sr. X, e seus gritos de dor foram ouvidos por todos os empregados de Josefa. Era mais uma transgressão que foi punida severamente pela mulher que praticamente controlava suas vidas. Quem não quisesse sujeitar-se a sua disciplina, que procurasse outro emprego! Mas o desemprego crescia cada vez mais no governo do ex-operário. A comadre e as suas duas amigas foram contratadas por ela, a fim de obedecê-la sem restrições. Marinete também veio a reboque da mãe que já tinha se desencantado com o comportamento dela, e não se importava mais com os falatórios do pessoal da vila; se fosse para se prostituir, melhor seria em um ambiente de classe no qual talvez algum homem solitário a levasse para si, como tem acontecido em muitos desses ambientes. Não eram raros os “casamentos” simulados, que, às vezes, se transformavam em uma união estável, sem antes o pretendente ter enchido os bolsos de Josefa. Agora ela guardava uma menina que estava esperando sua vez, e que iria abarrotar sua conta bancária com muito dinheiro, assim esperava. O que eram alguns milhares para um banqueiro? Também não descartava a entrega da menina para algum poderoso que não a importunasse no seu negócio escuso, e lhe concedesse carta branca para transgredir sem empecilhos. O exemplo que ela acabara de dar deixava seus subordinados ainda mais temerosos de futuras represálias. Se eles já andavam pisando em ovos, agora os cuidados seriam redobrados para cumprir à risca todas as ordens da terrível megera. Essa atitude dos serviçais se refletiu na tibieza da comadre que deixou a filha desamparada nas garras afiadas da terrível algoz. Ela ouvira os primeiros gritos da filha, mas depois tampou os ouvidos com as mãos, para não sentir na alma a dor dos golpes que eram desferidos pelo temível chicote que dilacerou a carne que saíra do seu ventre. E ela deveria demonstrar à


Josefa sua aprovação, fingindo que nada acontecera. Era doído demais para ela imaginar como se encontrava a filha, depois da tremenda surra que recebeu, apenas por demonstrar seu descontentamento ao homem que a abandonou por outra. Ela não sabia explicar porque Josefa facilitava tudo para esse homem, que aparecia lá para aproveitar-se das suas meninas de graça, pois havia ordem dela para elas não receberem dinheiro em troca de seus favores amorosos. E ela sabia também que agora chegara a vez de sua própria filha para satisfazer um dos clientes de Josefa, que possuía a tara de se relacionar sexualmente com mulheres que haviam sofrido alguma espécie de constrangimento. Isso já havia acontecido outras vezes com mulheres que tinham tendência masoquista, e por isso mesmo se ofereciam para esse tipo de relação, depois de se sujeitarem a algum cliente sádico, que não era difícil de encontrar. Brasilina continuou olhando para o cárcere privado até o anoitecer. Teve vontade de ver a filha, mas seu intento não se concretizou porque viu um homem de meia-idade entrar na dita casa. Era o mesmo homem que gostava de mulheres violentadas. Diziam os criados que ele era desembargador e viúvo de uma das mulheres mais ricas da cidade. Ficou mais resignada ao pensar que esse mesmo homem poderia amparar sua filha. Ela era nova e bonita, e ele um homem que parecia inofensivo e educado. Quanto a essa sua tara se daria um jeito. O que ela queria era assegurar o futuro da filha, livrando-a da pobreza irremediável. Ela despertou com os gritos de Josefa que a mandava continuar o trabalho interrompido. Toda essa confusão não alterou o ânimo do sr. X que continuava a afagar sua mais recente namorada, mesmo depois de ter saído de um dos quartos da casa principal. Mais uma vez ele se encontrou com Josefa. -

Mãezinha, não deveria ter sido tão rigorosa com a menina. Lembre-se que ela foi minha namorada e é filha da sua amiga comadre.

-

Não se meta no meu negócio! É melhor tratar de pensar em como vai ser a emboscada que tu vais preparar para aquele safado. Quero o negócio bem feito! Não deixa pistas para teu próprio benefício! Tu ainda vais ser gente grande naquela repartição!

-

Isso não me preocupa, mãezinha! O que eu quero é terminar todo esse trabalho que tu vens me dando. Prometeste uma boa grana para mim montar o meu próprio negócio. Ensinaste que devo começar de baixo. Espero ainda que me deixe uma boa herança...

-

Vai pra lá com essa tua língua, diabo! Eu ainda vou enterrar muita gente! Agora cuida! Hoje é Sexta-feira e o movimento já está começando. Não quero arruaças aqui. Providencia logo os teus brutamontes. Quanto a essa tua nova namorada, alerta ela para não se meter a besta como a outra; senão vai transar com o desembargador.


-

Ora, mãezinha! Tu gostas disso! Quanto ele te paga por uma dessas enjeitadas? Queria só ver como ele faz. Há!, há, há!...

-

Olha! Ai vem o português no seu carrão! Ele me encomendou a tua namorada. Depois te dou uma ponta. Parece que ele está se apaixonando por ela. Ele só quer sair com ela. Já lhe ofereci outras meninas e ele não quis. – O português saiu do carro e veio em direção aos dois, que se separaram. Logo em seguida, a namorada do sr. X se aproximou, e, aparentando intimidade, beijou o português na boca, enquanto olhava de soslaio para o namorado que se afastava. Josefa continuava no mesmo lugar. O português tinha o hábito de conversar com sua anfitrioa, tomando uísque que ela mesma servia. Para ele vinha a bebida legítima, enquanto para sua companheira era chá: burla corriqueira que acontece em qualquer casa desse tipo. Entretanto, os olhos de Josefa não se afastavam do portão. Ela havia recebido um telefonema de alguém importante. De repente, um carro da polícia adentrou na propriedade. Vinha apenas uma pessoa. Josefa correu de encontro ao carro do qual já saía o capitão Viriato.

-

Boa noite, boa mulher! – disse o capitão Viriato com um certo tom de ironia na voz. – Vim fazer a inspeção que a senhora já sabe.

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Boa noite, meu bom capitão. O senhor está com sorte! Todas elas estão aqui! – disse Josefa com reverência e aparentando humildade. O capitão Viriato olhou de relance para as mulheres que estavam na piscina, para as que estavam sentadas ao redor de mesas distribuídas pelo quintal e também para as que estavam no pátio da casa principal. Depois começou a andar de vagar, acompanhado por Josefa. Discretamente ele olhava para cada uma das jovens sem insistência, pois era um homem educado. Andava como se estivesse a procura de uma companheira para mais uma noitada (Elas prestavam seus serviços amorosos para policiais importantes por ordem da própria Josefa, em troca da proteção que recebia). Depois de olhar para todas elas, sentou-se em um sofá desocupado e falou à Josefa.

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A moça que procuro não está aqui. Gostaria de saber se não está faltando alguma. – Josefa pensou um pouco e respondeu com uma mentira.

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Não falta nenhuma, doutor!...

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Mulher! Eu não sou doutor, esqueceu-se? – disse o capitão repreendendo Josefa suavemente. Ele havia notado em certo nervosismo quando ela lhe chamou de “doutor.” Seu tino de policial o avisava que ela estava mentindo. Mas não quis precipitar-se. Ele já havia andado em todas as casas que exploram a prostituição com a esperança de encontrar Cleyde. Entretanto, foi na vila onde ela morava que um estudante lhe deu uma boa pista. Certa noite ele a viu sentada em um banco que ficava sob uma mangueira. Passados alguns dias o estudante tornou a vê-la entrar em um carro preto acompanhada por uma mulher cuja descrição coincidia com o tipo de Josefa.


Embora ele tivesse encarregado o detetive Toquinho de inspecionar o lupanar de Josefa, até então aquele não havia visto uma mulher parecida com Cleyde. Ela também não foi vista entre as mulheres que foram enviadas para a Espanha, durante o embarque. Ademais, o informante da polícia que as acompanhou foi encontrado morto no banheiro de bordo do avião, frustrando o plano para prender a quadrilha na hora do desembarque. Como ela se envolveu ingenuamente com essa quadrilha de traficantes de mulheres, seria bem provável que estivesse em uma dessas casas de tolerância. Daí sua esperança de encontrá-la em um desses lugares. O capitão Viriato fez um aceno com uma das mãos em sinal de despedida, sem falar nada; mas não deu a entender que estava contrariado. Entrou no carro e saiu pelo mesmo portão que entrou. Depois de percorrer alguns metros fora da propriedade, o capitão Viriato parou o carro. Do assento de trás levantou-se uma mulher. A rua estava escura e ninguém poderia identificá-la, poucos metros além. O capitão ajudou-a a descer do carro. Ela sorriu e se recostou ao ombro do oficial que a afagou com carinho, beijando-a na boca com paixão. -

Agora estou mais tranqüila – disse Mionete, esfregando seus lábios no rosto do capitão –, pensei que alguém fosse me ver. Vi um vulto se aproximar do carro, mas depois sumiu na escuridão. Ainda não consegui atinar quem era...

-

Não se preocupe! Aqui ninguém a conhece! Vamos agora para aquele nosso motel aconchegante. Não agüento mais...

-

Ah, meu amor, eu gosto de vê-lo nesse estado! Mexe comigo por dentro! Não vejo chegar o dia em que vamos deixar de nos esconder! Depois que chego em casa sinto mais sua falta. Gostaria de acordar de manhã e vê-lo ao meu lado com a certeza de não pensar em perdê-lo. Quando isso vai acontecer?

-

Ora, Mionete! Não vamos nos preocupar com isso – respondeu o capitão com aparente segurança na voz. – Não esqueça que você é minha funcionária de confiança. Todo mundo vai compreender quando me virem com você em outra situação. A sua beleza e seu encanto vão contribuir pra isso. As pessoas que vivem conosco o dia-a-dia não pensam que sou um babaca solteirão a ponto de desprezar suas belas pernas quando estou a sós com você.

Sem que Mionete percebesse, o capitão sentiu-se consternado. Ele estava à procura de uma mulher que não o conhecia mas não lhe saía da cabeça. Ele a viu somente uma vez no dia do acidente em que ela fora jogada pelo carro da polícia em um depósito de lixo da via pública. Depois a deixou no hospital com a esperança de vê-la no dia seguinte. Soube também que ela fugiu do hospital sem deixar vestígios, até que foi descoberto o local que ela morava pelo mesmo motorista que a atropelou, sem, no entanto, tê-la visto. Em seguida ela desapareceu outra vez, supostamente seqüestrada pela quadrilha da Agência de Modelos. E agora ouvia mais uma vez a declaração de amor de sua honesta funcionária cuja conduta moral contribuía para apertar seu coração, como se a estivesse traindo com outra mulher. Mas ele não tinha certeza que seu suposto amor por Cleyde viesse a ser


correspondido, em vista da diferença de idade que os separava. Entretanto, o seu conhecimento prático da psicologia feminina lhe dava segurança quando pretendia conquistar alguma mulher, quase sempre com sucesso. E também não era a primeira vez que tinha relações com mulheres jovens; e Mionete era uma delas. Mionete tinha razão. Atrás de uma árvore, oculto pela escuridão da noite, um par de olhos irrequietos os observava. O desconhecido viu Mionete entrar no carro, enquanto o capitão dava partida ao mesmo. Ele pensou consigo: “Logo mais ela estará nos braços dele em uma confortável cama ; mas isso não vai durar muito. Eu sei quem ele procura. Depois que ela souber que ele é apaixonado por outra, vai vir para mim. E eu vou cooperar com ele para que isso aconteça.” O desconhecido saiu do seu esconderijo e foi para o motel de Josefa. Entrou sem ser visto por uma das portões laterais. Notou que o ambiente ainda não estava agitado. Os freqüentadores habituais só chegavam tarde da noite; alguns só vinham de madrugada para terminar a noite festiva que começara em algum lugar. Caminhou sorrateiramente entre os jambeiros que apontavam suas densas copas cônicas para o céu estrelado. Ele estava vestido de preto e isto colaborava para torná-lo quase invisível. Uma luz morna saía pelas seteiras do quarto de Cleyde. Ele se aproximou sorrateiramente, sem fazer barulho. Ele conhecia bem a casa. Tirou um molho de chaves. Com os dedos ia experimentando pelo tato o formato e o tamanho de cada chave, até que encontrou uma especial. Com muito cuidado, introduziu-a no buraco da fechadura; deu duas voltas. Abriu-a. Sacou um punhal da cintura. Viu Cleyde deitada na cama, com a cabeça voltada para a entrada da porta. Caminhou pé ante pé. A luz bruxuleante de uma vela ondulava as sombras projetadas na parede oposta. Contornou a cama. Viu que ela dormia. Aproximou-se mais, e curvou-se sobre ela. Rapidamente selou sua boca com uma fita aderente. Estremunhada, ela arregalou os olhos, tentando livrar-se das mãos do desconhecido. Com a outra mão levantada ele segurava o punhal em posição de ataque. Seus joelhos pressionavam e imobilizavam o resto do corpo dela, que se contorcia vigorosamente em um ato desesperado de sobrevivência. Sentiu que sua hora tinha chegado. Pediu perdão a Deus por seus pecados e fechou os olhos...

Capítulo X

Cleyde esperou sentir como era a dor da morte. Seu algoz permaneceu silencioso. Pensou que estivesse sonhando. Novamente abriu os olhos. O homem a estava olhando. Encostou o punhal na sua garganta e o pressionou um pouco. Ela sentiu uma leve espetada. Pensou consigo: “Vai ser agora!” Fechou outra vez os olhos. O homem disse: -

Não vou fazer mal pra você. Quero só ajudar. Você está em um cativeiro. A Josefa vai transformar você em uma escrava. Portanto, se quiser sua liberdade, ouça-me direitinho – em seguida o homem baixou o punhal e o


jogou no chão. Depois começou a remover lentamente a fita. – Se me prometer com um aceno de cabeça que não vai gritar, eu tiro toda a fita. – Para sua segurança o homem continuou pressionando o corpo dela. Ela poderia gritar. Ela fez um gesto com a cabeça para cada lado, querendo dizer não. O homem retirou o resto da fita. Ela o fitou. Já o tinha visto em algum lugar, mas não se lembrava de onde; a penumbra do quarto não lhe permitia reconhecê-lo. Mas parecia que não era mau. Ele sorriu, e deixou de pressioná-la. Ele pegou em uma de suas mãos e a ajudou a sentar-se na cama. Confiante de que ela não iria gritar, pegou uma cadeira que estava próxima, sentando-se ao lado da cama. Disse: -

Escute, moça! Sei todo o seu drama. Desde o dia em que foi atropelada e as outras coisas que aconteceram com você. Os homens que cometeram malvadezas contra você estão pagando pelo que fizeram. Só falta um! O mais perigoso de todos! Vai ser logo em breve! Agora, se você cooperar comigo vai ter tudo o que quer. Primeiro, fique aqui mais um pouco que eu vou libertála. Tem uma pessoa, um homem que a socorreu no dia do acidente, que está muito interessado em protegê-la. Ele é bom e vai fazer você feliz.

-

Quem é ele? – perguntou ela, de chofre. – O homem olhou-a longamente. Esta pergunta deixou-o embaraçado. Ela continuava esperando uma resposta, enquanto ele permanecia pensativo. De repente, ouviram-se passos apresados no longo corredor. Ele deu um salto. Pegou o punhal, e disse:

-

Espere por mim! – ao mesmo tempo saiu pela mesma porta que entrou, deixando-a trancada.

Alguém abriu a porta da frente. Cleyde também havia percebido os passos no corredor. Recompôs-se, e fingiu que dormia. Ouviu o ruído da porta se abrindo. Josefa olhou em volta de si. Depois se aproximou da cama e viu que ela parecia dormir. Pensou consigo: “Essa menina é bem comportada; até agora não vi sinal de rebeldia nela. Já falta pouco pra começar as lições que eu pretendo lhe dar pra ela seduzir esses otários. Ela vai ser minha galinha dos ovos de ouro. Vou vendê-la muito caro ou trocar por favores que valem até mais que dinheiro. No fundo do coração eu gosto de ti. Até amanhã, meu bem!” Josefa olhou mais uma vez para ela, e saiu. A noite já ia alta. O movimento de pessoas que chegavam e saíam era grande. O pátio de estacionamento estava lotado de carros de luxo. Através da penumbra, via-se o movimento de pessoas no convés da piscina. Mais de perto, casais quase desnudos mergulhavam na piscina. Outros estavam escondidos nos sítios formados pelo contorno irregular da piscina, adredemente feito para isso. As roupas que usavam antes estavam à mostra. Sussurros e gemidos se ouviam desses nichos eróticos, e davam motivos para excitar a imaginação de outros casais que ainda relutavam entrar na piscina. A esperta Josefa havia inventado esses nichos. Ela sabia por sua estatística rudimentar que a maioria dos casais que ia para a piscina não ocupava depois os quartos ou apartamentos que estavam arrumados com roupas de cama entretecidas com fios de ouro. Sua clientela


era de elite e exigente. Mas o desejo dos casais que mergulhavam nas águas tépidas da piscina, fazia-os esquecer o luxo que os esperava nos quartos, e, por isso, o lucro de Josefa aumentava porque havia economia na lavagem do enxoval de cama. Por outro lado, outros casais não usavam a camisinha, tão recomendada pela propaganda oficial. O resultado era que as roupas de cama tinham que ser bem lavadas para evitar a contaminação entre eles. Certamente, meninas ainda virgens estavam entre esses casais. A maioria das jovens que foram aliciadas por Josefa e vieram com ela da vila, conhecida do leitor, estava nesta condição. Ela as comprou por “preço de banana” e iria vendê-las “a peso de ouro” para pessoas que aparentemente tinham uma conduta ilibada. Nessa noite elas já tinham aprendido a arte da sedução com Josefa e se consideravam veteranas em companhia de gente importante. O preço alto de tudo, inclusive do material humano, impedia a entrada de gente de baixo poder aquisitivo. Por isso, raramente acontecia um escândalo. E se este fosse provocado por uma de suas meninas, o castigo severo serviria de exemplo, como aconteceu com a filha da comadre.

***** Na delegacia central de polícia o capitão Viriato recebia algumas pessoas, enquanto Mionete atendia um telefonema. A expressão do seu rosto foi se modificando à medida que ouvia o interlocutor no outro lado da linha. Ela se sentia feliz e esperava que esse dia fosse tranqüilo na delegacia. A noite passada com o capitão era a responsável por sua felicidade. Entretanto, nada transpareceu de seu rosto quando ela olhou para o capitão e disse: -

Alguém que não se identificou na linha tem uma mensagem urgente para o senhor. – O capitão tomou gentilmente o aparelho da mão de sua secretária. Ele se sentia agitado e com o coração irrequieto. Mas não dava demonstração disso. Ele via que sua relação com a secretária ia cada vez mais se aprofundando por parte dela, e por isso ficava com remorso no dia seguinte. Colocou o telefone no ouvido. Uma voz abafada, provavelmente por pano disse: “Capitão, encontraram uma mulher morta na piscina da megera, sua amiga Josefa. Alguém chamou uma patrulha que passava no local. Encontraram também uma jovem no cativeiro.” O rosto do capitão mudou de cor. Seu coração pulsou mais forte. Seu pensamento foi direto em Cleyde. Disse alguma coisa para seu interlocutor. Levantou-se rapidamente.

-

D. Mionete, preciso sair. Coloque na minha agenda qualquer compromisso importante.

-

Capitão, o senhor tem um encontro com o Secretário – disse Mionete, mostrando preocupação.

-

Não importa! Diga-lhe que foi um caso urgente de polícia. Até mais... – O capitão desceu às pressas a escadaria até chegar ao carro que ficava a sua disposição. Deu o endereço para o motorista (o mesmo que atropelou Cleyde) e partiu veloz.


O local já estava tomado por curiosos. Alguns policiais já tinham feito um cordão de isolamento. Quando viram o capitão acorreram a ele, que seguiu imediatamente para a piscina. Sobre o convés jazia uma jovem seminua. Uma mulher chorava sobre o corpo inerte. Era a comadre Brasilina. O capitão pediu que afastassem a mulher. Com um olhar resignado ela mirou o capitão que se compadeceu dela com um abraço fraterno. O corpo da jovem estava todo marcado de chicotadas. O capitão chamou Josefa que se mantinha à distância. Nesse momento a comadre passou perto dela com a cabeça baixa. Josefa aproximou-se. O capitão a olhou severamente e apenas disse: -

Seu estabelecimento será fechado. – Em seguida, deu algumas ordens para os policiais enquanto aguardavam a ambulância para transportar o cadáver de Marinete para o Instituto Médico Legal. Disse aos policiais que o aguardassem. Seguiu para a casa que ficava ao lado. Ele já sabia onde era o local do cativeiro. Era para lá que as jovens iam para ser iniciadas com as instruções de Josefa. Seu pensamento estava em Cleyde. E como se ela tivesse nascido do seu pensamento, foi encontrada pelo capitão na segunda varanda, sentada em uma cadeira, e sendo vigiada por dois policiais. O capitão mandou que eles voltassem ao trabalho. Ele estava com a voz presa na garganta. Enfim ele a encontrou! E toda sua preocupação e a busca que empreendera para encontrá-la não foi em vão! Desta vez ela não escaparia mais de sua mão!

À medida que ele olhava-a pensativo, Cleyde via nele o seu provável protetor, pois na noite anterior aquele desconhecido falou em uma pessoa que queria protegê-la. Como ela já havia se acostumado com os sucessivos insucessos que tivera, pouco lhe importava o que esse homem lhe reservava. Pelo modo de ele falar com os policiais, parecia ser alguém importante. Provavelmente talvez fosse ser sua empregada! Ela pensou consigo: “Se ele for saliente como o dr. Waldomiro, eu não quero. Ele me prometeu tanta coisa e no fim me mandou embora. Só a Zoraia ficou com pena de mim.” Finalmente, o capitão arranjou um jeito de começar a falar. Disse: -

Você não estaria aqui se não tivesse fugido do hospital em que eu lhe deixei. Não tivemos culpa no acidente! Você se atirou na frente do carro! Eu pensei que você estava se suicidando. Quando voltei ao hospital você não estava mais lá. Depois eu soube o que aconteceu na casa do dr. Waldomiro e também se repetiu em outro local. Sinto muito por tudo isso! Eu sou o capitão Viriato, chefe de polícia. Daqui você vai para um local no qual esteja segura. Você tem a minha proteção.

-

Eu acredito no senhor – disse laconicamente Cleyde. – O capitão puxou seu celular do bolso e solicitou ao motorista que trouxesse o carro para uma entrada lateral da propriedade. Não demorou muito. O mesmo motorista que atropelou Cleyde, quando a viu, arregalou os olhos e levou uma das mãos à boca, o que provocou um sorriso dela. O capitão não deixou de observá-lo.

-

O que foi, homem?! Está vendo algum fantasma? – Em seguida para Cleyde:


-

Moça! Por favor, acompanhe-o! Ele vai levá-la para o local que lhe falei.

Obediente, o motorista pegou uma sacola de roupa que estava no chão. Cleyde olhou para o capitão com um ar de agradecimento. Ele aproximou-se dela e estendeu-lhe a mão. Ela também. Saiu. Viu-a entrar no carro e afastar-se. Sentiu-se aliviado. Nesse momento a imagem de Mionete lhe veio à mente. Sentiu outra vez remorso. Agora aparecia um outro problema para resolver. Talvez mais difícil do que foi o de encontrar Cleyde. Uma outra mulher fê-lo sofrer na pele com uma separação que lhe parecia normal. Quase a mata por isso. E não queria repetir a mesma coisa com Mionete. Esta tinha uma pretensão ainda maior: casar com ele. Mas ele não foi o único responsável por seu relacionamento amoroso com Mionete, da qual partiu a sedução. Contudo, ela cada dia parecia mais dependente de sua própria obsessão sentimental, que lhe tirava as forças na relação sexual, a exemplo da última, deixando o capitão surpreso apesar de sua experiência com todos os tipos de mulheres. Ele também irradiava sedução. Sua meia-idade, com fios de cabelos grisalhos nas têmporas, dava dignidade ao seu porte atlético e ágil. Ele pensou consigo: “Uma pessoa rejeitada é capaz de tudo! Já está na hora de eu arranjar uma mulher que acabe de vez com essas minhas aventuras amorosas; uma mulher que substitua todas as outras e que me faça vê-las como irmãs; talvez isso seja o verdadeiro amor que encontrei casualmente nessa jovem; ela preenche todas as minhas exigências e não será Mionete que vai atrapalhar! Ela não me inspira só sexo! E se ela não gostar de mim? Só se ela for a única exceção na minha vida! Ah, não devo me preocupar com isso! A primeira medida é não me precipitar! Vou mostrar-lhe que toda violência que sofreu foi uma fatalidade, e que nem todos os homens são maus. Depois vou comprar algumas roupas e outras coisas de mulher; ela pode estar precisando...” Os pensamentos do capitão foram interrompidos pelo carro que retornava do local no qual o motorista referido deixara Cleyde. Ele entrou no carro e seguiu para a delegacia central. Cleyde sorriu de sua própria situação que já lhe parecia cômica. Era a terceira vez, em pouco tempo, que a colocavam em um local estranho. Por que tanto interesse em uma empregada doméstica? Ela tentou responder para si: “A Carlinha me disse que uma mulher do meu tipo estimula a cobiça de muito barão que quer ter uma amante. Dão tudo o que ela pede. Uma tal de Marquesa de Santos teve tudo o que quis. A própria Carlinha já tem o apartamento que tanto sonhou. Ela agora é amante de um industrial. Agora vou ver o que tem neste apartamento... A sala...Ah!... Está totalmente mobiliada! Esses sofás bonitos parecem com os do dr.Waldomiro; e essa mesa de centro com tampa de mármore e as rosas! As cortinas vermelhas e o tapete que a Zoraia dizia que era da Pérsia. Vou olhar pela janela. Ah, que coisa! Daqui se vê a baía! O porto está cheio de navios! É muito alto! E esses quadros na parede! Olha o retrato dele! Nem se parece com o dr.Waldomiro que já está velho! Tem televisão e telefone! Oh, estas rosas! Como cheiram! São naturais! Ah! Ali dá pra um gabinete... Uma biblioteca... Uma mesa toda polida e esta cadeira de coro. Um computador... Daqui dá também pra ver a Baía. Tem ar condicionado. E este tapete bonito. Dá pra deitar nele. Ah, uma pele de onça! E este outro bichinho aqui... Parece um quati. Vou ver o resto... São três quartos. Este primeiro aqui. Tem ar condicionado. Uma cama de


casal com quatro colunas e cortinas rendadas que vêm do teto. Dois travesseiros rendados. Será que ele é casado? Que colcha bonita! Não tem aquelas figuras de homens e mulheres nuas como na casa de Josefa. Que indecência! Um aparelho de som! Que legal! Ah, esses tapetes macios! As rosas ali no criado-mudo. O banheiro... Que coisa chique! Igual a banheira de Zoraia com ducha e tudo o mais. Agora este outro quarto. Quase a mesma coisa! Só que a cama é de solteiro. Será que ele tem filho? ...” Antes de concluir seu pensamento, Cleyde foi surpreendida pela chegada de uma mulher que lhe provocou um susto que quase a fez desfalecer. Ela disse: “Não se assuste! Meu nome é Josina. Sou a empregada do capitão Viriato. Ele me disse para lhe atender em tudo que a senhora precisar. Mas que é melhor ficar em casa porque ainda corre perigo... A senhora sabe, o capitão tem muitos inimigos... Ele é como se fosse meu filho...Aquele lá é meu quarto. Depois vem a cozinha. Chame quando precisar.” Josina se retirou, deixando Cleyde boquiaberta. A empregada do capitão Viriato era uma mulher de cerca cinqüenta anos. Seus cabelos lisos já estavam um pouco grisalhos e desciam até os ombros. Seu rosto era suave no qual um par de olhos castanhos compassivos irradiava ternura. Seu nariz era pequeno e bem feito. Sua tez branca contrastava naquele momento com seu vestido quase todo negro. Tinha cerca de um metro e setenta de altura, e o corpo ainda bem feito, sem ser gorda nem magra. Ao todo mostrava que tinha sido uma mulher bonita, quando ainda era jovem. Ela impunha respeito à primeira vista. Cleyde já estava recuperada do susto e pensou consigo: “Pela primeira vez me chamam de “senhora.” Se ela não for maluca, vou ficar sem entender nada. Mas ela é simpática. Bem que poderia ser minha mãe. Ah, Essa minha mania de confiar logo nas pessoas que mal conheço! Até agora todo mundo me enganou. Estou desconfiando de tudo isso. Como diz aquele ditado: “Esmola grande o santo desconfia.” Mas eu não tenho pra onde ir. Se for embora daqui podem me pegar outra vez. Aquele bandido do Ricardo ainda vai me pagar! Ele merece morrer!” Alguém tocou a campainha. Josina foi atender. Ela voltou e entregou um buquê de rosas com um cartão anexo. “É para a senhora – disse Josina.” Cleyde recebeu o buquê de rosas com um ar de incredulidade. Olhou o cartão e leu: “Estas rosas são para perfumar o seu quarto. Viriato.” Do cartão emanava um perfume suave. Na mente de Cleyde veio a imagem do capitão. Sentiu que uma outra atmosfera a envolvia. Não era aquela da casa onde sofreu sua segunda violência sexual ou do quarto de Josefa no qual seu corpo vivia constantemente sob o assédio das figuras páticas de homens e mulheres nuas, que exibiam cenas de sexo explícito, e provocavam sua libido durante a vigília e nos sonhos. Lembrou-se da banheira na qual sentiu aquela estranha sensação de dubiedade sexual, que ora a levava para um homem viril ora para o afago suave e feminino de Zoraia. Sua mente parecia que havia se dividido em duas partes, que a deixava inquieta e infeliz, sem saber se era uma mulher ou um homem; esses sentimentos antagônicos a deixavam sem identidade própria como se não existisse. Mas ao olhar-se no espelho, convencia-se que era mulher. Agora, o que sentia com aquelas flores na mão, mudava seu pensamento para uma relação sadia. Seria verdade o que estava acontecendo ou era mais um dos seus delírios que, de vez em quando, a deixava absorta?


O cheiro de comida a fez sair do seu devaneio. Resolveu ir até à cozinha. Pensou consigo: “Talvez o capitão me tenha mandado para ser ajudante de cozinha ou para fazer a limpeza da casa. É isso mesmo! Ainda tenho o meu uniforme de empregada da casa do dr.Waldomiro. Vou logo vesti-lo pra mostrar a essa empregada que não sou uma molenga. Assim ela vai gostar de mim e o patrão também. Ah, está aqui! Vou me trocar no banheiro... Assim tá bom! Está um pouco amarrotado! É agora! Quero ver o que ela vai dizer!” Resolutamente, Cleyde atravessou a espaçosa varanda e foi até à cozinha. Aqui Josina pensava consigo: “É mais uma do capitão! Ele não se emenda! Parece que já se esqueceu do que lhe aconteceu com aquela doida que até hoje liga pra cá. Os homens são assim mesmo! Mas igual a essa que está ai eu nunca vi igual! Que mulher bonita! Ele tem sorte! Tomara que não seja doida! Não gosto de ver ele sofrer. É um homem muito bom e honrado. Vou torcer para que esta aí não lhe traga problemas. Ele bem que merece um descanso e uma esposa equilibrada. Aí vem ela! Mas o que é isso?” Cleyde adentrou na cozinha e viu a mulher de boca aberta. - O que estou vendo? – disse esta surpresa. - Estou aqui pra lhe ajudar, D. Josina – respondeu Cleyde sorrindo. - O seu lugar não é aqui, D. Cleyde – retrucou Josina, ainda surpresa. – Aqui eu sou a empregada, e tenho ordens do capitão para lhe dar todo conforto. Por favor, tire esse uniforme e volte pra sala. É hora da novela! – Cleyde ficou sem jeito de voltar atrás. Josina vendo sua indecisão, tomou-a pelo braço e a levou para o quarto de solteiro. Em cima da cama estavam várias sacolas. Cleyde ainda atônita, voltou aos seus pensamentos: “Queria ver um médico. Parece que estou ficando doida. Ela me chamou “D. Cleyde.” Só pode ser um daqueles meus sonhos malucos de empregada doméstica. Até agora só sei mesmo é tomar conta de casa. Aprendi ser empregada de gente grã-fina com D. Creuza e o dr. Waldomiro. Ainda bem que isso de lavar pratos ficava sempre para outra empregada! Agora entendo pra quê ele me queria. Para ser sua amante! Parece que agora chegou a minha vez! Ora, por que não!? A Carlinha me disse que eu deveria me meter com gente fina e não com esses moleques filhinhos de papai ou esses pés-de-chinelo que ganham salário. Agora vou ver estas sacolas...” Ansiosa, ela espalhou o conteúdo das sacolas sobre a cama. Eram blusas, calças e vestidos sociais, roupas de praia e de dormir; uma outra sacola separada continha perfumes, sabonetes, desodorantes, filtros solares, e todas as utilidades de luxo do toucador de uma mulher elegante. De outras saíram sandálias e sapatos que pareciam ter sido feitos sob medida para seus pés. Enquanto examinava todas essas peças com a alegria de uma criança, alguém bateu na porta do quarto. Ela abriu. Era outra vez Josina que segurava mais duas sacolas. “O capitão me pediu que eu comprasse estas peças de baixo. Vai gostar!” Josina saiu discretamente. Cleyde agradeceu, fechando outra vez a porta do quarto. Examinou as sacolas. Pensou consigo: “Esse homem não esquece nada! Mandou comprar as calcinhas que eu gosto! E as cores também! Vou colocar tudo isso no guarda-roupa. Ah, minhas coisas de pobre! Esta aqui, não! Foi a Zoraia que me deu este vestido. É usado mas é bom.” Cleyde perdeu-se no tempo e quando deu por si já era noite. Ligou a televisão. Estava cansada. Adormeceu.

Com o estabelecimento interditado por ordem da justiça, Josefa mantinha os portões fechados para a maioria de sua clientela. Suas meninas se recolheram cedo aos


seus aposentos. Entretanto, alguns clientes especiais não perderam a noite e entraram no estabelecimento sob as vistas grossas de policiais que aceitavam suborno. Porém um fato intrigava Josefa: a comadre e suas amigas haviam desaparecido. O resultado da autópsia da filha da comadre foi afogamento. Entretanto, muitos viram que ela foi seviciada por Josefa na noite anterior, mas mantinham a lei do silêncio. Alguém ouviu a comadre dizer que iria se vingar da morte da filha. Isto preocupava Josefa que agora ficava com medo de sair de sua pousada. Como o movimento estava fraco, resolveu recolher-se mais cedo. Foi para seu quarto que tinha um circuito fechado de televisão. Os vídeos estavam apagados. Não deu importância. Pensou que alguém da segurança havia desligado o sistema nessa noite sem movimento. O ar estava pesado como em um velório. A morte de um ser humano conhecido cria essa atmosfera tétrica que nos faz pensar na transitoriedade da vida. Até a mente primitiva de Josefa se ressentia disso, embora ela mesma tivesse contribuído involuntariamente para a morte de sua menina. Deitou-se. O sono veio rápido e pesado. Não demorou muito. Acordou gritando. Um terrível pesadelo interrompeu seu sono tranqüilo. Ela teve a impressão de ver três mulheres abandonando o quarto na penumbra da única vela acesa em um dos seus nichos sagrados. Correu em direção à porta. Estava semi-aberta. Tinha certeza que havia fechado a porta antes de se deitar. Seu coração batia forte. Lembrou-se do pesadelo: Estava nua. A comadre, ajudada pelas outras duas mulheres, algemou-a no espelho da cama. Seus pés foram imobilizados por grilhões. A comadre segurava um punhal cuja lâmina luzia de encontro a luz tremeluzente da vela de cera. As outras duas mulheres acenderam velas e se aproximaram com um sorriso diabólico. A comadre desferiu o primeiro golpe no sue peito. Ela gritou e acordou. Pegou nos pulsos. Teve a impressão de ver as marcas das algemas. Olhou para os tornozelos. Pareciam ter marcas de correntes. Seu medo aumentou quando constatou que a porta do quarto não estava trancada como ela havia deixado. Pensou consigo: “Eu nunca me esqueci de fechar essa porta. E por que agora este pesadelo com a comadre e aquelas duas mexeriqueiras? Também não me lembro de ter dado ordem para desligar o circuito de tv. Tudo está coincidindo com a morte daquela pobre infeliz. Não devia ter surrado a menina. Não pensei que ela fosse tão sensível. Logo a filha da comadre!” O cérebro simiesco de Josefa não demorou muito a ficar cansado com seus temores. Logo mais adormeceu outra vez como um animal primitivo. Não demorou muito e outro pesadelo mais sinistro a fez urrar como um animal ferido. Desta vez foi o espectro descarnado da filha da comadre que pairava sobre a cama, rodeado por morcegos de dentes afiados. Um deles abocanhou sua jugular que a despertou com um grito medonho. Passou os dedos no pescoço. Teve a impressão de sentir alguma coisa pegajosa. Olhou para os dedos. Estavam untados de seu suor nauseabundo. Pensou consigo: “Agora estou com medo até de dormir. Noite passada sonhei com o homem do barco que eu apunhalei. Ele queria me afogar dentro de rio. O que está acontecendo comigo? Vou tomar uns passes pra ver se essa mandinga sai do meu corpo. Que o diabo os leve pro inferno!” Os gritos de Josefa haviam despertado todas as meninas que dormiam em seus quartos. Os uivos dos cães respondiam a cada um dos seus gritos, dando a impressão de um concerto infernal regido por Belzebu que atemorizava até os guardas mais corajosos. Havia se espalhado no meio dessa gente supersticiosa que Josefa tinha parte com o diabo porque enriquecera rapidamente sem uma explicação razoável. A morte recente da filha


da comadre completou o ambiente de terror na mente dos que ouviram aqueles gritos e o uivo dos cães que ressoavam em uníssono. Outros pesadelos perturbaram o sono de Josefa durante essa noite, não deixando ninguém dormir até quando o primeiro galo anunciou a chegada da aurora. As pessoas que passaram essa noite insones ficaram aliviadas quando ouviram esse canto amigo, que vinha como um anúncio de salvação para afugentar os demônios que atormentavam Josefa. Os primeiros raios do sol iluminaram o horizonte, e afugentaram os morcegos que visitaram Josefa nessa noite infernal. Alguns deles se refugiaram nas árvores mais próximas; outros se esconderam nos porões da casa. Já era Sexta-feira 13. Eles voltariam com sede do sangue negro de Josefa cuja alma já estava vendida ao diabo. O dia amanheceu radiante e feliz para Cleyde. Sua disposição de corpo e espírito lhe dava ensejo para sair e caminhar pelas ruas e dizer para todos que pela primeira vez se sentia feliz sem saber o porquê. Mas esse seu impulso foi refreado pela recomendação do capitão de não se arriscar sem necessidade. Pensou consigo: “Ele deve ter chegado tarde e me viu aqui dormindo. Que vergonha!” Nesse momento Josina bateu na porta. Cleyde se levantou e abriu-a. “Bom dia patroa. Aqui está seu desjejum. Chame se quiser mais alguma coisa.” A circunspecta empregada logo se afastou antes que ela a interrompesse com uma palavra. Esta disse para si: “Ela me chamou de “patroa.” Eu preciso me acostumar com essa mulher. Preferia que me tratasse pelo meu nome.” O desjejum veio em um desses carros próprios que se usam em hotéis de luxo, com todos os ingredientes nutricionais para uma primeira refeição matinal. Cleyde sentiu-se um pouco envergonhada como se alguém a espreitasse através da fechadura do quarto. Ela aprendeu a comer com todo tipo de talher, inclusive o que se usa para comer peixe. Ela ouvira na casa do dr. Waldomiro os comentários graciosos que se faziam sobre certas pessoas que não acertavam comer peixe com esse tipo de talher quando ele dava um jantar. Agora se envergonhava por saber de mais, e queria mostrar à Josina que não era a pessoa grã-fina que ela supunha ser. Até agora ela ignorava sua função no apartamento do capitão Viriato. Ele ainda não havia aparecido desde a véspera, quando a descobriu no estabelecimento suspeito de Josefa. Ela falou consigo: “Quando ouvi sua voz pela primeira vez fiquei sem saber o que dizer. Tremi toda quando ele olhou para mim. A Carlinha me disse que um dia iria chegar minha vez. Ela disse: “Aproveita! Não deixa escapar! Isso só aparece uma vez na vida da gente!” Parece que ela tinha razão. Deixei escapar muita oportunidade na minha vida. De hoje em diante vou pensar mais em mim. Não quero ficar velha trabalhando pros outros e depois levar um coice como aconteceu na casa do dr. Waldomiro. Aquele miserável do filho dele ainda vai me pagar caro! E a Josefa também tem muito pecado nas costas. Acho que ela matou aquela menina só porque ela fez um escandalozinho.” Na casa de tolerância de Josefa o ânimo era outro. Ela estava de resseca da noite maldormida. Continuava dentro do seu quarto, examinando obsessivamente a porta que ela pensava ter fechado antes de dormir. Falou consigo: “Aquelas três mulheres estiveram aqui. Uma delas parecia com a comadre. Vou deixar um vigilante escondido hoje a noite aqui por perto. Já estou com medo de dormir. Toda vez que o sono me pegava elas vinham


querer me matar; a maldita filha da comadre toda desossada; o homem do barco querendo me afogar; o garimpeiro; a do Pau Amarelo e outros que eu nem me lembro mais. E aqueles morcegos terríveis...” Bateram na porta. Josefa deu um salto para trás com o coração em pânico. -

Quem é? – perguntou ela com a voz trêmula.

-

Sou eu, mãezinha! – respondeu uma voz conhecida. – Josefa reconheceu a voz, o que lhe deu outro ânimo. Abriu a porta com cuidado, prestes a reagir. Encarou o sr. X. Este a olhou ternamente.

- Mãezinha, sua casa já vai abrir amanhã. Consegui uma liminar que lhe inocenta do caso da menina. O laudo final foi suicídio. Mas tem uma coisa: As meninas estão deixando o “barco.” Corre solto por aí que a senhora está com o capeta no couro. Elas estão com medo. Algumas já estão na “casa” da agência. Mas não se preocupe! Vou agir mais rápido... - E deve agir mais rápido mesmo! Aquele patife já deve estar no circuito outra vez. Sinto a sua presença. Quando vai ser a vez dele? - Não fique ansiosa, mãezinha! Já está tudo arrumado para o bote final. Tudo está sob o meu controle. -

Por que está escurecendo? – perguntou Josefa nervosa, esfregando as mãos. – Os pesadelos me assustam. Eles vêm me buscar. Querem meu sangue...

-

Ora, mãezinha, não se preocupe com isso. Se pesadelo matasse, eu já estaria morto. Acho bom a senhora tirar umas férias...

-

Por que férias? Eu ainda estou viva e não descanso enquanto não me vingar daquele crápula – respondeu Josefa visivelmente irritada. O suor corria através de suas têmporas sebosas. Os seus olhos mostravam que ela estava à beira do pânico. O sr. X procurou tranqüilizá-la.

-

Seria melhor a mãezinha sair deste quarto e dar uma volta lá fora. Já temos alguns visitantes ilustres. Lembre-se: hoje é Sexta-feira 13...

-

O que? Não pode ser! – gritou Josefa, tremendo – Vá você mesmo e mande já um guarda pra cá...

-

Já vou mãezinha! Não se preocupe com seus pesadelos! Vou mandar o pai Bastião fazer uma mandinga. Por enquanto fique com este caborje pra lhe proteger. Até amanhã. – O sr. X deu um beijo na testa de Josefa, enquanto esta olhava para o saquinho pendurado em seu pescoço.

Josefa começou a ouvir o som dos atabaques que ecoavam dos terreiros próximos. Era a Sexta-feira 13 que vibrava seus misteriosos desígnios que chegavam até ela junto com o farfalhar das asas dos morcegos hematófagos que saíam dos seus esconderijos soturnos. Até pouco tempo, seus demiurgos pais-de-santo lhe davam instruções para fazer


sortilégios com essas criaturas que pareciam influir no destino dos seus algozes. Mas agora o crocito de uma coruja que passava perto, provocava-lhe arrepios; o coaxar dos saposcururus adormecia seu cérebro, trazendo um sono que ela não queria; começava a sentir o corpo entorpecido, e seu esforço para vence-lo foi em vão. Seu corpo caiu pesadamente sobre o colchão da cama, que afundou inexplicavelmente, parecendo a cova de uma sepultura. A sentinela encarregada de vigiar o quarto de Josefa, vendo que sua patroa parecia dormir tranqüilamente, agasalhou-se em uma poltrona e dormiu. O som dos atabaques continuava mais intenso à medida que chegava a meia-noite. Josefa, que a princípio parecia dormir também tranqüila, começou a contorcer o corpo seguido pelo rosto que se transformou em uma máscara mortuária. Seus olhos azeitonados extrapolaram as órbitas e se mexiam em movimentos rápidos; a garganta fazia esforço para gritar, mas não saía som algum. A comadre e as duas outras mulheres, vestidas com seus costumes dos terreiros de umbanda, rodeavam a cama de Josefa com a dança característica de pessoas em transe. Cada uma delas fumava um cachimbo do qual emanava o perfume característico da maconha; e o som intenso dos atabaques vibrava o corpo das mulheres e o de Josefa no qual entravam os fantasmas dos seus pesadelos. As duas mulheres, ensandecidas, cravaram com punhais as duas mãos de Josefa no espelho da cama, enquanto a comadre lhe abria a barriga flácida de cima a baixo, deixando-lhe as vísceras expostas. O sangue tingiu a cama de um vermelho-rubro. A comadre abriu a tampa de um cesto de vime do qual saiu um bando de morcegos que voavam sobre a cama, tirando rasantes e aplicando ao mesmo tempo seus afiados dentes nas jugulares enfartadas de Josefa. Sua face moribunda ainda procurava força para gritar, o que se via nos jatos de sangue que saíam do seu pescoço. As duas mulheres cortaram a grenha negra de Josefa, e dela fizeram uma corda e a enrolaram no pescoço dela, cada uma puxando uma das pontas em lados opostos da cama. O sangue esguichou com mais velocidade, atingindo o teto do quarto. O chão ficou escorregadio. A comadre tomou duas velas acesas e as aproximou do rosto de Josefa. Esta colocou a língua de fora, tentando falar ou gritar. Mas já era tarde! As chamas das velas fritaram os olhos de Josefa, que se fundiram nas covas negras das quais saiu um líquido azeitonado. Com um esforço supremo a quase moribunda conseguiu soltar um grito feroz de presa acuada. O grito de Josefa ecoou no prostíbulo. O primeiro a acordar foi o vigia, encarregado de darlhe proteção, que dormia repoltreado na cadeira. Ele correu na direção do quarto de Josefa. Encontrou a porta encostada. Quando abriu a porta, um bando de morcegos saiu em debandada, farfalhando suas asas em torno do seu corpo. Ele corajosamente os enfrentou e entrou no quarto. Josefa estava estatelada na cama. Seu rosto cadavérico exprimia uma terrível máscara mortuária. Uma réstia de luz iluminou o quarto. Josefa olhou o vigia e desfaleceu. O sr. X foi avisado e chegou ao prostíbulo sem demora. No caminho encontrou algumas meninas ainda assustadas com o terrível grito de Josefa. Outras mais resolutas saíam dos quartos com sacolas de viagem e abandonavam o lupanar. O sr. X tentou convence-las de que a patroa sempre sofreu desses pesadelos horríveis que não tinham relação com o sobrenatural. Mas já havia se espalhado entre elas que Josefa havia feito um pacto com o diabo, e agora ele estava cobrando dela mais vítimas, a exemplo do que acontecera com a filha da comadre. A superstição infundada das garotas foi maior, e a maioria já estava disposta a abandonar a casa mal assombrada. Os fregueses também ouviram o boato e aos poucos abandonaram os quartos que ocuparam durante a noite e resolvidos a não mais retornar. O sr. X se dirigiu ao quarto de Josefa. Encontrou-a exaurida de forças. Só seus olhos mexiam. Parecia que estava petrificada. O sr. X pensou consigo: “Se essas coisas continuam, ela não vai resistir muito. Quem não a conhece pensa que ela é forte; não é nada disso! Ela só quer impressionar. E esses pesadelos!” Ele ficou parado diante de Josefa,


que finalmente pode articular algumas palavras, embora estas fossem quase inaudíveis. Foi preciso ele colocar a ouvido próximo aos lábios de Josefa. -

Filho, manda chamar aquele médico da cabeça... Estou ficando doida... É a comadre; a filha dela; o garimpeiro...Todas as noites eles vêm me atormentar. A comadre esteve aqui ontem. Ela abriu minha barriga com uma faca. As duas megeras me crucificaram com punhais. Olha aqui minha mão. Tinha muito morcego chupando meu pescoço. O chão ficou ensopado com o meu sangue. Elas cortaram o meu cabelo e me enforcaram com ele...

-

Veja, mãezinha! É tudo impressão sua! Os seus cabelos estão no lugar. Passe a mão na cabeça. As suas mãos não estão feridas e não há sangue no chão...

-

Mas eu vi as três desgraçadas dançando em volta da cama. O quarto ficou cheio de fumaça de baseado. A comadre furou meus olhos com aquelas velas...

-

Não pode ser mãezinha! A senhora está me vendo; eu sei disso! Foi tudo pesadelo. Vou chamar um médico. Ele vai passar um remédio pra dormir. Por enquanto, vou deixar alguém para lhe fazer companhia. – O sr. X deu um beijo na testa de Josefa e saiu apressado.

No caminho pelo corredor ele notou que a maioria dos quartos estava desocupada. O silêncio reinava absoluto. Nuvens escuras bloqueavam a luz do sol, contribuindo para deixar o ambiente mais soturno. Ao sair da casa, viu algumas meninas do prostíbulo comentando em voz alta que Josefa havia ficado doida. Outras diziam que tinham visto um bando de morcegos voando pelo corredor em direção ao quarto dela; e que um homem peludo, parecido com um lobisomem, acompanhava os morcegos. Outra jurou que viu um gorila na porta do mesmo quarto. O sr. X foi de encontro a elas e tranqüilizou-as um pouco, dizendo-lhes que nessa época do ano apareciam muitos morcegos predadores de pequenos animais que vinham se alimentar de mangas e outras frutas silvestres sazonais próprias da região. E que o homem peludo poderia ser o Cambão que era um dos zeladores da casa. Elas olharam uma para outra e só ficaram mais tranqüilas com a chegada da namorada do sr. X que também lhes prometeu ficar de vigília durante a noite desse dia. Ouviu-se a sirene de uma ambulância. Logo mais descia da mesma um homem em traje branco. O médico, já ciente do caso de Josefa, entregou ao sr. X uma receita com a indicação de um sonífero. O sr. X pensou consigo: “Preciso organizar isto porque senão vai virar bagunça e eu não quero perder este negócio, caso a mãezinha não melhore. Para isso, tenho que impedir a saída delas para o prostíbulo da Agência de Modelos que não demora vai a falência, quando eu resolver o problema com aquele patife. Ele está pra chegar! Vai ser o fim dele!...” A comadre e as suas duas amigas encontraram-se no terreiro do pai Bastião, um negro velho pai-de-santo muito conhecido na cidade. A comadre havia mandado fazer uma boneca de pano com a estatura da Josefa. O artesão não poupou esforços para confeccionar a boneca, que, desde o cabelo e os olhos azeitonados, dava a impressão de ser a Josefa em pessoa ali presente. Prepararam uma cama parecida com a que ela dormia. As velas vermelhas estavam em cada nicho dos cantos de um quarto. Terríveis punhais afiados reverberavam dependurados do teto sobre a cama. De um turíbulo, emanava fumaça cujo odor era uma mistura de incenso e maconha. Já era tarde da noite. Enquanto isso, Josefa se esforçava para dormir em seu quarto do prostíbulo, acompanhada por uma serviçal que dormia em um sofá-cama. No limiar entre a vigília e o sono provocado pelo sonífero, ela via o próprio corpo sendo velado pela comadre e as duas outras mulheres, no meio de eflúvios de corpos em decomposição. Um deles era a filha da comadre. Seu corpo, vencido pelo entorpecimento, não resistiu ao sono provocado e cedeu à sanha das mulheres que apontavam os punhais em sua direção. Um ronco de moribundo ecoou pelo quarto. Sua acompanhante levantou-


se. Viu Josefa suando como uma torneira. Tocou sua fronte oleosa. Estava ardendo em febre alta. A mulher murmurou: “Até que enfim ela vai morrer! Vou deixar ela assim mesmo! A comadre vai ficar alegre!” E foi dormir outra vez. Em outro lugar, no terreiro do pai Bastião, um bacanal, ao som de atabaques, incorporava as entidades do culto afro-brasileiro em pessoas que voluteavam inconscientes. Em um canto, sob a penumbra de uma árvore, a elegante Mionete assistia o culto. Sem ela mesma perceber, entrou em transe. Tresloucada, invadiu o terreiro e se misturou às mães-de-santo que a rodearam no embalo da dança. Seu vestuário elegante junto aos das mulheres induziu outras pessoas da sua mesma classe a entrar na roda. Pai Bastião a olhava de longe. Ele se dirigiu a ela. Tirou-a do meio do grupo. Com um gesto enigmático, fê-la voltar a si. Ela sentou-se ao seu lado quase aos seus pés. Murmurou-lhe: -

Pai, ele tem outra mulher! Todo dia, pelo telefone, uma voz rouca me diz:“Olha, boba! O teu homem tem outra!” E desliga.

-

É voz de homem ou mulher? – perguntou pai Bastião.

-

Não sei se é de homem ou mulher. É uma voz rouca. – respondeu Mionete com os olhos tristes.

-

Não se preocupe! Se for mulher, pode ser ciúme. Se for homem pode ser alguém que gosta de você. Em todo caso, vou preparar o trabalho que você me pediu. Mas já lhe avisei! É perigoso! Pode voltar pra você!...

-

Não me importa! Corro todos os riscos por ele... Sei que ele gosta de mim... Pode ser apenas uma atração passageira por ela. Vai dar certo!...

Enquanto isso, a comadre e suas duas amigas continuavam a fustigar a boneca Josefa que parecia ter adquirido vida, com os olhos lançando chispas toda vez que um punhal feria uma parte do corpo de pano. A comadre dizia: -

Logo mais vai haver festa no inferno, bruxa velha! O sangue da minha filha vai te sufocar lentamente até estourares os pulmões. Agora este punhal é pra arrancar o útero que abrigou teu filho bastardo, filho da escória dos garimpeiros.

Dito isto, a comadre desferiu um violento golpe no ventre da boneca do qual saiu um saquinho transparente de cor rubro-negra. Um simulacro de um sapo saltou do mesmo. A Negona agarrou o objeto e o lançou em uma fogueira que ardia próxima aos pés da boneca, de cuja combustão saiu fumaça que impregnou o ambiente com o cheiro da maconha. A Zenóbia fumava um cachimbo do qual aspirava fumaça e a soprava nas narinas da boneca, que parecia se sufocar. A cena vista de cada ângulo do ambiente mudava de aparência conforme a ondulação das chamas das velas, que ardiam em cada nicho das paredes. Outras pessoas chegaram ao local do ritual, atraídas pelo silvo dos chicotes, que cada uma das três mulheres aplicava na boneca que parecia sentir cada golpe desferido. Um dos circunstantes observou: “Essa boneca parece que tem vida... Olha os olhos dela! Faiscam como um raio!” Já a comadre não se cansava de lançar imprecações diante da boneca que parecia ouvir cada uma das suas palavras. Em um dado momento ela parou e disse: -

Ela continua resistindo!. Mas não vai durar muito!. Com um pouco mais de mandinga ela embarca pro inferno!... Não tenho pressa!... Quanto mais lento, melhor!...

-

Parece que ela tem o corpo fechado – disse a Negona. – Mas vou abrir ele pelo coração. – Incontinente, trespassou o coração da bruxa com um punhal luzídio que abriu uma fenda, deixando escapar o ar preso que soou como um grito medonho entre


os presentes, que debandaram apavorados com o ritual satânico. Zenóbia, a um aceno da comadre, jogou sal nos olhos azeitonados da boneca que estremeceu como um ser vivo. Os circunstantes que ficaram, olhavam apavorados as convulsões da boneca que dava a impressão de querer falar alguma coisa. A comadre disse: -

Maldita! Repete agora o que disseste de minha filha! Agora quer falar e não pode, né?! Estás presa na cama do teu prostíbulo, e lá vás morrer como o garimpeiro que mataste pra roubar ouro. Ele está aqui e vai se vingar! E o outro do navio que lambeste seu sangue do punhal que enfiaste nele e depois, ainda vivo, acabou morrendo afogado! Ele também quer se vingar! Agora é teu sangue que ele quer!... – Com efeito, Zenóbia cortou o pescoço da boneca com uma lâmina de barbear, que deixou exposto uma fita de pano vermelho, que, para quem estava distante, parecia um filete de sangue. No entanto, um dos espectadores que estavam perto do cenário se persignou e disse: “É sangue mesmo! Está molhando o travesseiro. Isso só pode ser arte do diabo, credo!” – Só não vê quem não quer! – disse a Zenóbia, sacudindo a cabeça com um gesto de aprovação. – Agora, vem irmão, e recupera o sangue que perdeste! Ela vai ficar tísica antes de morrer. Farta-te! Depois volta e avisa ao diabo que ela já está quase pronta! – O homem que viu o sangue escorrer disse: “Tem uma coisa lambendo o pescoço dela!” Seu companheiro, que estava ao lado, observou: “Acho que bebeste muito! Não vejo senão essa boneca ridícula de olhos negros-vidrados. Ela parece com Josefa, a dona daquele prostíbulo grã-fino.” Acomadre, que dava continuidade ao ritual, ouviu a conversa dos dois homens, pensou consigo: “Esse aí tem mesmo razão! Estou vendo ela morrer aos poucos, estrebuchando como um porco; mas ainda não é o fim! Algumas seções a mais, e ela vai! E ainda queria a Cleyde pra enriquecer mais. Agora é tarde!”

Cleyde não se encontrava muito longe. Enquanto o ritual de maldade se abatia sobre o simulacro de Josefa sob a direção da comadre, um casal se esgueirava para não ser visto, fora do terreiro do pai Bastião. O capitão Viriato, colado ao corpo de Cleyde, comentou: -

A Josefa bem que merece esse tipo de tratamento! É pena que não seja ela mesma!

-

É mesmo! – observou Cleyde que parecia outra mulher com a roupa que vestia. – Se não fosse você eu ainda estaria no cativeiro daquela bruxa. Só ainda não sei como você soube que eu estava lá. Toda vez você desvia do assunto quando quero saber disso. Mas deixa pra lá! O que importa é que estou aqui viva!

-

Ora, querida! Você sabe que eu sou um policial e por isso mesmo é meu dever estar informado de tudo. O seu caso foi um exemplo...

-

Agora, também não entendo seu interesse por uma mulher como eu...

-

Você quer dizer uma mulher bonita como eu nunca vi antes! – disse o capitão, acariciando os cabelos dela. – A mulher que eu quero desposar. A mulher que vai causar inveja aos meus amigos e até ao Governador. – acrescentou o capitão sorrindo e, ao mesmo tempo, rodopiando com Cleyde na ponta dos pés.

-

Eu só quero ver sua cara quando alguém me reconhecer como a doméstica da casa do dr. Waldomiro – disse Cleyde, olhando o capitão com os olhos abaixados. – Eu não tenho coragem de enfrentar aquelas pessoas que iam lá. Vão dizer: “Vejam quem está aqui! Quem diria!...Uma empregadinha no nosso meio...E sabe usar o talher...Foi bem ele que mandou ela fazer um curso...Essa espertinha!...Fisgou o capitão!” E assim por diante. Aí você vai ficar com vergonha e nunca mais vai sair comigo, não é?


-

Se eu ouvir deles isso que você disse, vou gritar pra todos ouvirem: “Querem uma igual a esta?! Então fiquem ricos como o rei Midas!” As mulheres vão ficar humilhadas e os homens com inveja. Estou sentindo eles me imaginarem com você em outra situação. Acho que eles nunca tiveram uma igual a você. São despeitados porque só conseguiram umas tarascas ricas, e magras como um palito...

-

Opa, capitão! Não aumente muito! Eu queria mais!.. Queria ser culta...Aí eu seria completa...

-

Não se importe muito com isso! – disse o capitão, um pouco contrariado. – As mulheres deles têm diplomas comprados em certas Faculdades...E só falam trivialidades...Quem tem o vestido mais caro...O carro do ano...Viagens ao exterior...etc. E muitas delas enchem os maridos de chifres, que as toleram por conveniência. Não invejo essa gentalha endinheirada!

-

Não se aborreça!... – disse Cleyde, displicentemente – Vou aprender tudo com o tempo, sem me importar com diplomas. “Eu já tenho o que quero!”, pensou Cleyde, “Aprendi com Carlinha!” – Este pensamento passou como um relâmpago pela mente dela, que se surpreendeu com a própria aleivosia inesperada. O capitão ainda estava de frente para ela, quando viu de esguelha que Mionete deixava o terreiro, entrava em seu carro, e partia “cantando” pneu, o que também o surpreendeu devido ao temperamento aparentemente tranqüilo de sua secretária. Em seguida, notou que um outro carro, saindo de um lugar ermo, fazia o mesmo, seguindo-a em disparada. Pensou em seguílos, mas logo viu que eles levavam vantagem, pois seu carro também estava escondido em um lugar afastado. E mesmo não quis levantar qualquer suspeita por parte de Cleyde. Com a saída de Mionete, entraram discretamente no terreiro do pai Bastião.

Aparentemente, o capitão Viriato tinha conquistado o coração de Cleyde. Nos dias que se sucederam a chegada desta ao apartamento, ele procurou não dormir no mesmo e só a seduzia por meio de flores e cartões com mensagens, a princípio discretas, e depois, passo a passo, colocando mais paixão nas palavras. Finalmente, com habilidade e ternura, levou-a para a cama naturalmente, sem traumas e com certo respeito, o que chegou a surpreender Cleyde que já tivera práticas sexuais forçadas, como é do conhecimento do leitor. Por outro lado, ela já sentira o estranho prazer que lhe despertara Zoraia, e também o seu auto-erotismo quando se via nua na frente de um espelho. Com o capitão Viriato, essas imagens freqüentemente afloravam em suja mente à socapa, e lhe provocavam certa infelicidade que a impedia de assumir inteiramente sua identidade de mulher. Se não tinha a felicidade total, contudo, o que lhe restava a deixava quase feliz, como agora que estava vendo pela primeira vez uma seção de macumba com um homem que lhe dava relativa segurança. Por sua vez, o capitão Viriato andava com a cabeça nas nuvens, embora fosse obrigado a manter os pés no chão por sua condição de policial, o que fazia com determinação. Nesse instante ele gozava esse estado de felicidade, tentando fingir que não vira sua ex-amante Mionete. Como homem honrado que era, desde que encontrara Cleyde pela segunda vez, deixou de ver Mionete secretamente. Esta, vendo que o capitão não a procurava mais depois do expediente na Delegacia Central, passou a vigiá-lo secretamente, após saber por telefonemas anônimos que ele arranjara uma outra namorada. A profunda mágoa que a abateu, fê-la desatenta no serviço da referida repartição. O capitão, percebendo que isso se devia ao seu rompimento com ela, fez vistagrossa, encarregando outra pessoa para completar algum serviço que fora deixado por fazer. Tendo-a visto atordoada junta ao pai Bastião, ficou surpreso e um pouco apreensivo, mas não deixou que isso perturbasse o deleite que sentia por ter Cleyde em seus braços.


Mal adentraram por um portão lateral do terreiro, uma mulher correu na direção deles. Logo atrás dela vinha um homem bem vestido. Nesse momento, Cleyde levou a mão direita à boca, em sinal de inusitada surpresa, que também deixava transparecer nos seus olhos arregalados. -

Meu Deus, é Carlinha!... disse Cleyde com um ar de incredulidade.

-

Oh, sua cachorra! Como é que tu sumiste! – disse Carlinha, e ao mesmo tempo beijava Cleyde com sincera alegria, como sói acontecer com pessoas que há muito tempo não se vêem. - Ai, mana! Estou quase gozando! Nem este aqui me deu tanta alegria! – E olhou para o homem que já a abraçava pela cintura. – Conta-me tudo! Conta-me tudo! Que fizeste para conseguir este homem bonito que está contigo!?...Logo tu, sua molenga!...Oh, Deus!...

O capitão Viriato quase corou com o elogio de Carlinha, mas se conteve e esboçou um sorriso de agradecimento a referência de “homem bonito.” Cleyde ficou embaraçada. Seu coração palpitava. O homem que estava com Carlinha era Adriano, o mesmo que a tirou para dançar na festa de aniversário dos dezoito anos de Zoraia. Ele a reconheceu, mas ficou calado. - Vamos filha, solte a língua! – disse o capitão Viriato com entusiasmo – Estou vendo que vocês são muito amigas e não se vêem há muito tempo, não é senhorita? -

Carla, mas para os amigos sou Carlinha, não é, mana? - em seguida apresentou o seu companheiro pelo nome. Cleyde aproveitou a oportunidade para apresentar o capitão Viriato. Logo em seguida, este foi chamado ao telefone para atender uma emergência policial que envolvia um figurão da sociedade.

-

Filha, vou lhe deixar em casa, e depois,... ao serviço! – disse o capitão, mostrando-se apressado.

-

Não é preciso, capitão! – interferiu Carlinha. – Vamos deixá-la! Basta ela me dar o endereço. – O capitão assentiu com a proposta e se despediu deles. Olhou ternamente para Cleyde:

-

Até mais, amor! Vou procurar resolver esse abacaxi e logo mais estarei com você – ele beijou-a, e partiu. Enquanto isso, os atabaques continuavam em cadência rítmica, aumentando a temperatura do ritual de tortura que a comadre e as duas mulheres praticavam na boneca. O casal e Cleyde tomaram o carro e partiram para o endereço desta. Carlinha resolveu ficar. Despediu-se do namorado e subiu ao apartamento de Cleyde. -

Mana, estou curiosa! – exclamou Carlinha, tomando uma das mãos de Cleyde. – Contaram-me muita coisa sobre ti desde que saíste da casa do dr. Waldomiro. Contame tudo! Sabes! Sou tua melhor amiga!

Cleyde contou a amiga todo seu rosário de sofrimento, até que fora salvo das garras de Josefa pelo capitão Viriato. Carlinha a ouviu atentamente mas, de vez em quando, sacudia a cabeça com um sorriso de compaixão, até que não agüentou mais: -

Mana, acorda! – disse Carlinha meneando a cabeça com desânimo. – Esse homem pode ter sido muito bom pra ti. Mas vê! Ele pode ser lá o que for, mas só ganha salário; é claro, um salário alto, mas é salário! Logo mais a política muda e ele está na rua. E só vai viver da aposentadoria de militar. Este apartamento perto do meu é um galinheiro...


-

Mas Carlinha! Estou vivendo bem aqui; é seguro! – ponderou Cleyde, com resignação. – Ainda mais não sou ingrata com as pessoas, tu sabes disso!

-

Eu sei, querida! – concordou enfática Carlinha. – Mas já estou vendo o que vai acontecer contigo! Ele usa camisinha?

-

Não! – respondeu Cleyde.

-

Então, minha filha, te prepara! Conheço esse tipo de homem! O tipo classe média! Vai querer ter filhos; logo mais ele te peja e pronto! Vai começar a família! Um ano depois vem outro, e sabe lá quantos mais. Começas a engordar. Como ele é policial, vai te deixar só a qualquer hora da noite; e aí pode transar com outra mais jovem. Depois volta e diz que está cansado. Começa o desgaste com a rotina. Ele te abandona! E vás comer o pão que o diabo amassou!...

-

E o que tu achas que eu devo fazer? – inquiriu a inexperiente Cleyde. – Não tenho pra onde ir...

-

Primeira coisa: gostas ou amas ele?

-

Eu gosto dele, sim! – respondeu Cleyde com um ar de dúvida. – Amar? Não sei o que é isso...

-

Ainda bem que não sentiste isso! – disse Carlinha, fechando os olhos. – Quando dá certo é o céu na terra; o contrário é pior do que o inferno. Mas, pela tua resposta, ainda estás salva! – Nesse momento Josina apareceu e disse: – D. Cleyde já está na hora de dormir! O capitão vai chegar tarde! A sua amiga pode ocupar o quarto de hóspedes. Boa noite! – E saiu.

-

Quem é essa bruxa, mana?! – mussitou Carlinha.

-

É Josina, a empregada! – respondeu Cleyde.

-

-

Tá vendo?! Estão te tratando como uma criança! Até parece que gostas de cativeiro!.. E tu transas sem camisinha! Isso só se faz uma vez na vida... é com o homem que a gente ama de verdade...Agora, esse? Só chega tarde da noite! Vê lá que te acorda e vai transar com ele sem vontade! Escuta! Não seja fácil! É a primeira coisa que deves fazer! Inventa de vez em quando uma dor de cabeça. Ele ronca? Sim... – respondeu Cleyde, fazendo um muxoxo e meio aborrecida. Que inferno, hein?! – interpretou Carlinha, arregalando os olhos. – Pois então não dorme ao lado dele. Vai para o outro quarto. E quando ele te procurar, faze-te difícil! Não deixa ele te beijar a vontade. Volta o rosto quando ele insistir muito. E os teus seios, tão belos e afrodisíacos! Não deixa que ele chupe muito! Ficam flácidos! Não abre as pernas como uma prostituta! Não deixa ele te penetrar toda! Deixa ele gozar no seco! Isso vai excitá-lo ainda mais!... Ele não vai mais deixar de pensar em ti. Até no trabalho ele vai ficar distraído. Logo mais ele estará louco por ti. E é aí que tua sedução vai render lucros. Sabes, grana! Pede pra ele comprar roupas e sapatos caros, mas sem ele sentir que tu estás cobrando alguma coisa. Com o tempo, ele vai abrir uma conta bancária pra ti. Insinua que queres receber visitas; talvez um apartamento maior seja mais conveniente. No momento apropriado, convence-o a pôr o apartamento no teu nome. Mas faz isso aos poucos!... Ele não vai sentir a diferença. E mesmo que sinta, ele não vai mais te deixar. Foi assim que eu fiz com o


Adriano. Tua beleza vale ouro enquanto a tiveres; depois não se sabe o que vai acontecer... -

E se ele não tiver dinheiro para comprar um apartamento? – perguntou ingenuamente Cleyde. A referência a Adriano fez outra vez seu coração palpitar.

-

Escuta, minha filha! – exclamou Carlinha com um gesto professoral.. – Eu tenho outro esquema pra ti, aliás pra nós. Outro dia te conto! É melhor a gente ir dormir, senão a bruxa vem te ninar! – ambas riram baixinho – Dá duro nela!...

Capítulo XI

Cleyde quase não dormiu essa noite com as palavras de Carlinha martelando sua cabeça. Pela primeira vez não sentiu a falta do capitão Viriato. Ela até desejou que ele não voltasse essa noite! Pensou também que seria melhor que ele nunca mais voltasse. Lembrou-se daquele seu pensamento no terreiro do pai Bastião. A Carlinha tinha razão. Ela estava se abrindo muito para ele. Essa noite foi a primeira vez que ela saiu com ele na rua. E logo para visitar um terreiro de macumba! Por que não a levou para um restaurante grã-fino? E ela estava aceitando tudo passivamente. Desconfiou que Josina falava dela para o capitão. Sua vigilância era ostensiva. Certa vez ela a ouviu dizer baixinho ao telefone: “Ela está aqui,sim! Não se preocupe! Ela é mansinha!” Isto a deixou triste. Mas não reagiu. O capitão só chegava tarde da noite. Ia sempre acordá-la para fornicar com ele. Ela ia sem vontade. Depois ele se virava para o lado e não a deixava dormir, roncando como um porco a noite inteira. Acordava indisposta. Quase sempre ele já tinha saído. Começou a se sentir prisioneira como no prostíbulo de Josefa. Que destino o seu! Outras mulheres menos bonitas que ela davam ordens para o marido. Ela viu isso na casa do dr. Waldomiro. D. Creuza não dava folga para o marido. Tratava-o como um objeto usado. E ele a agradava como um cachorrinho. Será que todos os homens eram assim? Agora esse capitão Viriato! Só a tinha visto uma vez, no dia do acidente. Depois, sem que ela fosse consultada, tirou-a do prostíbulo de Josefa para um destino ignorado. Entretanto, nessa noite as coisas pareciam que iam mudar. Ele resolveu sair com ela. Prometeu-lhe casamento. Seria verdade? Carlinha já lhe dissera que um homem quando quer conseguir uma mulher, promete tudo o que tem e o que não tem. Depois dá o fora. Será que Viriato era assim? “Ah, que coisa! Pela primeira vez não digo o posto dele”, pensou ela. Talvez o capitão Viriato estivesse preparando um futuro tranqüilo ao lado de uma mulher bonita e sem ambição. O padrão de vida dele condizia bem com esse tipo de mulher. Jamais ele seria rico. Talvez um apartamento, um carro de classe média e um sítio fossem o que ele de melhor ambicionara. Nunca iria se dar bem com Carlinha que era esperta e ambiciosa. Esta procurava logo vantagens materiais. Ela lhe alertara: “Escuta, boba! Finge sempre. Faz que não quer, querendo. Quando quiseres alguma coisa, esconde o motivo. Dissimula os teus desejos; se ele adivinhar, vem correndo pra te satisfazer. Recusa uma vez, duas, quantas forem necessárias até um ponto em que ele não desconfie; também não seja exagerada de modo a lhe cansar a paciência. Tem um ponto que a gente deve ceder, mas antes com muita sedução.” “Ah, é isso que eu vou ser: sedutora!”, pensou Cleyde, “E rica como a Carlinha que não tem pena dos homens. Ela esfola o couro deles. Ela sempre foi assim. Não sei porque eu sou tão besta! De hoje em diante o Viriato, não, não é “Viriato”, é “capitão Viriato”, ele vai ter o que merece. Ele tem idade de ser meu pai. Vou fazer como a Carlinha que chama de “pai” para os homens mais velhos que ela. Parece que ela tem vergonha deles; mas não liga pra isso. Ela quer mesmo é conforto e dinheiro. E eu, uma besta!


Servindo de empregada doméstica... Não sei qual é o plano da Carlinha, mas vou topar. Já é hora de me fazer. Só eu mesma! Ficando há dias trancada neste apartamento com a Josina me olhando o tempo todo. Vou sair!... Que ela vá pro inferno!...” As palavras de Carlinha começaram a surtir efeito em Cleyde. A peçonha inoculada em seu ouvido permeou sua mente, despertando-a de sua letargia, causada pelo preconceito de classe que sofrera desde tenra idade. Sua vida diária no trato com fogão, panelas e outros utensílios domésticos a fizeram escravas deles. Quando ela via uma panela suja de tisna pegava logo a palha de aço e a esfregava até ficar reluzente como se fora nova. A vassoura lhe servia como uma espécie de bastão, que usava não somente para varrer a casa, mas também para enxotar as galinhas que vinham ciscar em baixo do jirau. Só lhes davam presentes que tivessem utilidade doméstica: um jogo de copos ou de pratos, uma frigideira de aço inoxidável, uma toalha de mesa e outras coisas que o patrão sabia que iriam ser usadas em benefício da família. Um de seus poucos namorados lhe deu uma garrafa térmica que, todavia, servia para ela lhe trazer café ou refrigerante. Ela ascendeu nessa profissão, trabalhando de casa em casa, desde a de classe média até a mansão do dr. Waldomiro na qual pensava ter outro destino. Poderia tê-lo? Talvez! Contudo sua beleza era o seu único tesouro que ela reservara para algum príncipe encantado. Se tivesse menos pudor teria rompido essa servidão de empregada doméstica, passando à classe das patroas. Estas a invejavam quando ela aparecia no salão e fazia volver os olhos dos seus maridos que a queriam para amante. E a pagariam muito bem se, ademais, ela fosse esperta como sua amiga Carlinha, que também viera dessa mesma classe, mas logo percebeu que uma mulher bonita é um objeto de alto valor, desde que bem negociado. O erro de Cleyde foi não saber explorar a cupidez dos homens com maestria, como fizera sua amiga. Mas parece que agora as circunstâncias a estavam empurrando para um outro destino. Fazia muito tempo que Cleyde não via a luz do sol ao ar livre. Ela andava a esmo, olhando para todos os lados. Parecia que era a primeira vez que via essa cidade. Os edifícios, as lojas com vitrines mostrando roupas bonitas, e o ar que a envolvia; as pessoas passavam apressadas, às vezes apertando-se entre si; as buzinas dos carros, que emitiam sons impacientes; o som da sirene de uma ambulância que avançava o sinal, lembrou-lhe de quando foi acidentada; o barulho atroante de um avião a jato que voava baixo, assustou-a; vozes entrecortadas pelas chamados de ambulantes; crianças puxadas por adultos no meio da multidão; rostos anônimos que procuravam seus destinos. Tudo isso lhe dava uma sensação de liberdade e a fazia emergir de sua tumular solidão. Notou que os homens paravam para olhá-la; outros mais tímidos, depois de passar por ela, viravam a cabeça para trás; um deles chegou a dar de encontro com outro homem, que vinha em sentido contrário e não tirava os olhos do movimento do seu corpo. Em certo momento ela parou, e olhou-se de cima a baixo. Pensou: “Parece que nasci outra vez! Quanto tempo perdido! Eu vivia anestesiada! Não preciso mais ficar trancada em casa!Vou viver minha própria vida! Mas como? Ah, a Carlinha! Ela vai me ajudar. Um emprego em uma loja pra começar; ou então, como disse ela, conhecer as pessoas certas, importantes... Emprego em loja só dá salário mínimo!” Envolvida em seus pensamentos, Cleyde se perdeu. Em dado momento ela não sabia onde estava. De repente, um carro estacionou perto do meio-fio. Uma voz de homem, fez-se ouvir: “Cleyde, que faz aqui!? Está perdida?” Ela olhou para quem a chamava. Era Adriano. Seu coração palpitou. -

Eu estava andando sem rumo – disse ela um pouco acanhada. – Parece mesmo que me perdi. – Adriano saltou do carro, contornou-o pela frente, abriu a porta, e convidou-a a entrar com um gesto de cortesia. Ela aquiesceu. Adriano pôs o carro em movimento.

Cleyde usava um vestido que cobria a metade das suas belas coxas, sedutoramente expostas. Ela notou que ele parecia aturdido. Ela perguntou:


-

Onde está Carlinha?

-

Ah, a Carlinha! – respondeu ele ainda nervoso. Ela foi ao cabeleireiro e depois...Ah! Disse também que ia a sua casa... não, apartamento...

Adriano continuava visivelmente nervoso. Parecia um colegial que pela primeira vez falava com uma mulher. A beleza de Cleyde deixava os homens embaraçados. Nesse momento ele não parecia ser o empresário experiente e mandão. Ao contrário, Cleyde se mostrava segura de si. Admirou-se! Mas na verdade estava exercitando inconscientemente sua arte natural de fêmea sedutora; e ali estava diante de si a espécie de macho que faz tudo por uma mulher do seu tipo. Ela notara sua desfaçatez na noite em que dançara com ela no salão de festa do dr. Waldomiro. Mas agora ele parecia desamparado e confuso. De vez em quando, mudava de cor. Articulava as palavras como um garoto embaraçado. A beleza de Cleyde o perturbava. -

Ela sempre me falava de você – disse ele agora, um pouco mais seguro de si. – Mas ultimamente ela não a viu mais. Ela me disse que você havia viajado para a Europa com a família Waldomiro... – Cleyde ficou sem saber o que dizer. Europa! Era mais uma da Carlinha! Que boa amiga era ela! Guardou em segredo toda desventura que sofrera. Adriano olhava de soslaio para ela. Ele havia dirigido o carro no rumo do apartamento que Cleyde morava. Ao chegar, ele disse:

-

Pronto! Chegamos em sua casa! É pena que as coisas nunca ocorram como a gente quer...

-

Não estou entendendo! – disse Cleyde, um pouco contrafeita – Ah! Eu ainda tenho o que fazer! Vou comprar algumas coisas!...

-

Poço deixá-la aonde quiser – disse Adriano se recuperando. – E gostaria de ficar o tempo todo com você...

-

O que quer dizer o “tempo todo?” – inquiriu Cleyde, fingindo-se desentendida

-

Sem a Carlinha!... – respondeu Adriano, corajosamente.

-

A Carlinha é minha amiga... – disse Cleyde, ao mesmo tempo que, sem olhar para Adriano, abriu a porta e desceu do carro. Adriano fez a mesma coisa. Colocou-se em frente a Cleyde que já começara a andar. Ele estava transformado. Seu coração dava saltos. Seu rosto estava branco. Suas mãos estavam geladas e tremiam. Quase não se agüentava em pé. Se estivesse bêbado, como naquela noite na casa do dr. Waldomiro, ajoelhar-se-ia aos pés de Cleyde. Com a voz quase sumida disse:

-

Por favor, não me deixe!... Eu a amo!... Nunca mais a tinha visto!... Fiz amizade com a Carlinha pra encontrar você...Por favor... – Cleyde, agora senhora de si, deu de andar, deixando Adriano perplexo. As pessoas passavam. Ele se controlou. Ficou um bom tempo olhando-a, até que esta dobrou a primeira esquina. Deu-lhe vontade de correr atrás dela, mas conteve-se. Resignou-se. Haveria tempo para conquistá-la.

Cleyde caminhava ouvindo as palavras de Adriano. Regozijava-se por dentro. Finalmente, havia aprendido a seduzir os homens. Sua professora Carlinha tinha razão. Mas agora sua lembrança de Carlinha a trouxe como uma intrusa em sua mente. De repente, ela lhe pareceu como um estorvo em sua caminhada. Ficou com vontade de parar e sentar em algum lugar. Naquele momento, começou a sentir um certo aborrecimento pela amiga. “Que coisa horrível!” pensou ela. Entretanto, a figura de Adriano, mesmo submisso, lhe fascinava. Ele não era daqueles homens másculos que exibiam seus músculos para impressionar as mulheres e intimidar os


homens. Tinha uma certa ternura de mulher como a Zoraia. Não era como o capitão Viriato, que parecia elegante, mas com uma armadura física intimidadora. Quando pensou no capitão, não sentiu mais vontade de voltar para o apartamento; mas não tinha para onde ir; também não tinha dinheiro para alugar um quarto ou uma casa. Sentia que tudo isto estava a sua disposição, todavia precisava ganhar tempo e ter paciência para não estragar o que lhe parecia estar à mão, com a recente declaração de Adriano. Continuaria com suas evasivas para tornar as coisas mais difíceis, não só para o capitão Viriato, mas também para Adriano. Os homens teriam que ceder aos seus caprichos. Seria dissimulada a ponto de extorquí-los sem eles sentirem. Com estes pensamentos, Cleyde voltou ao apartamento. Josina a esperava ansiosa. -

O que foi? – perguntou ela secamente para a empregada.

-

O patrão havia me dado ordens para lhe dizer que não saísse de casa – disse Josina, temerosa.

-

Pois ninguém vai mais me impedir de sair! – disse Cleyde com autoridade. – Vou para o meu quarto e não quero que me aborreçam. – Dito isto, ela foi para o quarto de hóspede. Seu pensamento estava em Adriano. “Vou dobrá-lo até ele ceder a todos os meus desejos. Quanto a Carlinha, que se lixe! Ela já tem tudo o que quer! Ainda mais, ela me disse que não gosta dele. Ela me deu a entender que ele tem um vício que ela não suporta; e que nunca transou com ele. É estranho! Ah! Tem gente batendo!” Cleyde abriu a porta. Era o capitão Viriato. Ele estava cabisbaixo. Ela se preparou para enfrentá-lo. Esperou a reação dele, por tê-lo desobedecido Não veio. Ele disse:

-

Sabe, meu bem! Estava ainda preocupado com a sua segurança. Foi por isso que dei aquela ordem à Josina.

-

Não se preocupe! Estou bem! – disse Cleyde, mostrando indiferença. O capitão se aproximou dela. Ela se afastou um pouco. – Estou indisposta... Andei muito... Por favor, quero descansar...

O capitão Viriato mostrou um ar de surpresa. A mulher que estava a sua frente não era mais a dócil Cleyde. Seu rosto era outro. Até sua voz se modificara. A sua recusa soou aos seus ouvidos como um tiro de canhão cujo barulho o deixou atordoado. Como um autômato ele recuou. E como um autômato ele foi empurrado delicadamente para fora do quarto. “O que foi que eu fiz?” Perguntou a si mesmo. Foi para o seu quarto e deitou na cama. “Eu não entendo mesmo as mulheres!”, pensou, “Enquanto eu corro de uma, a outra me dispensa. A Mionete agora me assedia na frente de todo mundo. Enquanto essa que está ai me recusa. É a primeira mulher que me faz isto. Será que ela arranjou alguém nessa sua caminhada pela rua? Mas eu sei como conquistar as mulheres. Elas não resistem a um presente valioso. Amanhã mesmo vou providenciar isso. Não posso deixar que ela esfrie de vez comigo. Já tive este tipo de experiência. As mulheres são imprevisíveis. Nunca se sabe o que elas querem. Quando a gente pensa que está ganhando, elas nos decepcionam; quando é o contrário, a gente é surpreendido. Vou ver se durmo. Amanhã terei de volta o meu tesouro.” Cleyde trancou-se no quarto. Josina bateu na porta. Trouxe-lhe uma ceia. Ela agradeceu. Deitou-se na cama, mergulhada em seus pensamentos. “Esses homens me surpreendem! Pensei que ele fosse me dar uma esculhambação! Que nada! Agiu como um cordeirinho! Fiquei até com pena dele! Mas cuidado! A Carlinha me disse que os homens são uns sacanas, e que não se deve deixar cair em suas lábias. Depois que eles se enjoam, dão um chute na gente e vão procurar outra. Até esse capitão Viriato! Mas nós temos as nossas armas. E eu sabia disso e na as usava. Por isso sofri muito. E esse Adriano?! Carlinha me disse que nunca transou com ele, e que ele tem um vício


que ela não suporta. O que será então? Ele me disse que me ama. Notei que ele olhava muito meus lábios. Ainda vou descobrir que vício é esse! Ah! Só se eu for no terreiro do pai Bastião. Dizem também que ele é vidente. Mas o Adriano tem que estar lá, também. Vou telefonar. Convido a Carlinha. Enquanto eles se distraem, eu falo com o pai Bastião. Cleyde saiu do apartamento sem que Josina a visse. O capitão Viriato dormia. Entrou no carro de Adriano que estava acompanhado por Carlinha e rumaram para o terreiro do pai Bastião. Este, como de hábito, estava se embalando em sua confortável cadeira de vime. Algumas mães-de-santo o rodeavam. Outras pessoas se aproximavam dele e pediam sua bênção. Ainda não era a oportunidade para Cleyde se aproximar dele. Ainda um pouco tímida, não tinha coragem nem sabia como iniciar o assunto que havia despertado sua curiosidade. Afinal, deveria saber que espécie de vício tinha o homem que declarara em público que a amava. De repente, ouviram gritos que vinha do fundo do terreiro. Incitado pela curiosidade, o trio recém-chegado foi para lá. Eram as três endiabradas mulheres que proferiam toda sorte de praga para a boneca de pano que já se encontrava quase toda estraçalhada. A comadre gritava e as duas mulheres faziam coro com os açoites em punho. A cada golpe, ouvia-se um gemido que vinha do fundo da cama, provavelmente de alguma pessoa encarregada de dar mais realidade ao flagelo. Adriano ficou boquiaberto e não conteve o espanto. -

Vejam! Essa boneca é a cara da cafetina Josefa! Dizem que ela anda muito mal...

-

Você não acredita no que essas loucas estão fazendo! – exclamou Carlinha com ironia na voz. – É só para atrair a atenção das pessoas! Enquanto isso, o pai Bastião fatura alto. O apelido disso é Vodu. Só queria saber quem está gemendo tão feio... – Cleyde, que até então se mantinha calada, deu sua opinião:

-

Pois eu acredito! Uma mulher fina, que nem sabia o que era macumba, foi pega por um “caboco” que a deixou de cama por vários dias... – Carlinha riu e disparou:

-

Ora, minha filha! Agora eu acredito! Dependendo do “caboco” a gente fica mesmo de cama...

-

Há, há, há!... – gargalhou Adriano que estava entre as duas amigas. – Enquanto ria e fingia que olhava a cena de Vodu, tentava segurar a mão de Cleyde. A escuridão escondia o movimento de sua mão que passava desapercebido para Carlinha. Esta, em dado momento, não conteve a curiosidade e se desapartou dos dois, e correu para tentar ver de onde vinha o gemido. Adriano não perdeu tempo. Com energia, agarrou Cleyde pela cintura, beijando-a na boca com paixão. Ela o empurrou com força.

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Você está louco! – disse Cleyde, desvencilhando-se de Adriano. – Ela é minha amiga! E eu vou me casar com o Viriato...

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O quê?! – exclamou Adriano com os olhos arregalados. – não acredito! Você não entende?! Eu a amo!... Farei tudo o que você quiser e o que você desejar!... Sou rico!...Não acredito que você ame aquele “coroa”!... Ele não serve pra você!... A vida dele é tratar com bandidos!...Por favor!... Desculpe-me... De hoje em diante vou ser mais paciente com você...A gente vai pra Europa... A gente vai morar lá... Não preciso mais viver aqui... A Carlinha não é fiel pra mim... Ela só quer meu dinheiro....

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Deixe de se lamentar! Aí vem ela!... – disse Cleyde com um tom de voz que a surpreendeu, porque até pouco tempo ela estava habituada a obedecer as pessoas e dificilmente dava sua própria opinião. Ai estava um homem de classe social superior,


implorando o amor de uma empregada doméstica. Sentiu pena dele. Agora era só aproveitar. Adriano tinha razão, em parte, em relação ao capitão Viriato. A vida de um policial, mesmo graduado, é se envolver indiretamente com toda espécie de gente. Isso lhe tomava quase o dia inteiro e mal tinha tempo para dormir. Carlinha chegou. A presença da amiga começava a perturbar-lhe os sentimentos. -

O gemido parece que vinha do fundo da terra – disse Carlinha –, e ouvi também uma voz que dizia: “Chega! Chega! Não agüento mais! Perdoe-me, comadre!...”

“A comadre da vila”, pensou Cleyde, “está se vingando de Josefa; lembro-me que Josefa dizia: “Tua filha é uma puta, ela ainda vai comer do meu pão.” E foi mesmo! Coitada! Ela pegou uma surra de Josefa e depois apareceu morta na piscina. Essa Josefa parece que tem parte com o diabo. Credo! E a comadre não fica atrás!...” -

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O que foi que aconteceu, Cleyde? – perguntou Carlinha, ao ver que ela estava distraída e Adriano calado. Estava pensando...Ah! É bobagem!...

Carlinha saíra de propósito para localizar o gemido que vinha do sítio onde a comadre e as duas mulheres supliciavam a efígie de Josefa. Desde a noite anterior, ela já vinha desconfiando do comportamento de Adriano que não a procurou para satisfazer seu vício que ela tolerava a contragosto. Era vício porque sua atividade sexual era exclusivamente a felação como fim e não como um meio para conseguir o orgasmo. E nada mais! Somente a primeira vez houve a conjunção carnal entre os dois, mas sem o ato final da ejaculação. Depois disso ele confessou a ela sua tara. E ela o tolerava, a princípio, porque tinha pretensões outras que não o prazer sexual. E ela as materializou em coisas reais como uma polpuda conta bancária e um apartamento de luxo. Mas agora se sentia ameaçada pela amiga. Sua intuição de mulher a avisava que o perigo a rondava, embora ela considerasse Cleyde ainda muito ingênua para cometer uma vilania. Contudo, a prudência a aconselhava a ficar de olho aberto. A beleza de Cleyde fascinava qualquer homem e Adriano já lhe havia contado o que acontecera no baile do dr. Waldomiro. De vez em quando, ele se lembrava dela e elogiava sua beleza. E agora encontrava os dois calados. Ela possuía bastante experiência para saber que algo acontecera na sua ausência. Cleyde sempre lhe parecera sonsa mas não a tinha como rival até há pouco tempo. Por isso, resolveu levá-la para o apartamento do capitão Viriato. Já era tarde da noite. Já noite avançada, o capitão Viriato atendeu ao telefone. Era um chamado urgente para decidir sobre o envio de tropa militar para desocupar uma estrada bloqueada por trabalhadores rurais. Desceu o elevador. Um carro da polícia o aguardava a poucos metros do portão do edifício. Ele entrou no carro. Uma coronhada violenta na nuca, fê-lo perder os sentidos. O carro partiu veloz. Nesse momento, chegava Cleyde com os amigos. Eles a esperaram entrar no edifício. Ela ainda olhou para um dos lados da rua. Viu um homem entroncado esgueirando-se por entre as árvores do passeio central que divide a rua. Depois tomou um carro que estava estacionado no escuro, e partiu célere. Isso tudo ocorreu em menos de um minuto.

Capítulo XII

No dia seguinte, os principais jornais da cidade publicaram manchetes como esta: “Chefe de Polícia é encontrado morto no lixão do Piriá.” Segundo o noticiário, o capitão Viriato fora morto com um tiro na nuca, e deixado em um local que servia de depósito de lixo urbano. Os criminosos aparentemente não deixaram pistas para o início das investigações. Na central de polícia, o ex-


detetive e agora delegado Toquinho tomou as rédeas da administração, para evitar que notícias desencontradas tumultuassem o ambiente que parecia caótico. Era natural que os boatos surgissem em cascata. Alguns propalavam que o capitão fora morto por vingança dos banqueiros do jogo do bicho, que o odiavam pelas freqüentes embates que a polícia tinha com eles. Outros atribuíam sua morte a um possível envolvimento dele com o tráfico de drogas, em vista dos recentes escândalos que envolveram autoridades do judiciário e da própria polícia. E não faltavam aqueles que diziam que ele fora assassinado por uma amante que ele mantinha oculta por conveniência social. Mionete, aparentemente desconsolada, estava sentada ao lado da mesa na qual despachava o capitão, e agora ocupada pelo delegado Toquinho. Este não deu tempo para que o cargo do capitão Viriato fosse preenchido por algum afilhado político do Secretário. Imediatamente mexeu seus pauzinhos e logo foi nomeado provisoriamente para o referido cargo. Ele sabia que isso seria permanente, pois alguns políticos importantes que ele conhecia tinham ligações com os banqueiros do jogo bicho por motivos óbvios, aos quais ele dava cobertura nas pirotécnicas e hipócritas caçadas às fortalezas dos bicheiros, em certas épocas que exigiam a intervenção do poder público nesse tipo de contravenção. Ele observava Mionete de soslaio para estudar seu humor, que de vez em quando parecia alterado. Ela corava e depois ficava pálida como uma folha de papel branco. A rápida ascensão de Toquinho surpreendeu-a. Começou a acha-lo simpático, mesmo com a cabeça em desordem. Sua pose na cadeira do ex-chefe lhe dava um ar augusto que ela ainda não notara, pois ele era de estatura mediana, embora bem proporcionado fisicamente. Ele não era feio! Serviria como marido! “Que coisa feia estou pensando!”, cogitou ela, “Logo no dia da morte dele; parece que é o diabo que me tenta com estes pensamentos; mas quem pode evitar isto?” -

Dona Mionete! – chamou-a Toquinho com um sorriso convidativo. – Envie pela internet esta nota à imprensa falada e escrita. Estão espalhando muitos boatos sobre a morte do capitão Viriato. É preciso dar um basta nisso. Vamos nos concentrar em fatos e não em hipóteses. E vocês aí! – dirigindo-se aos funcionários que comentavam o assunto do dia. – Vamos trabalhar! Hoje à tarde terão bastante tempo para lamentar a morte do chefe. – Dito isto, voltou a examinar a agenda desse dia e outros relatos sobre a investigação da morte do capitão. Mionete recebeu o papel timbrado das mãos de Toquinho que casualmente tocou as suas. Sentiu que eram mãos delicadas, mas firmes. Uma certa volúpia invadiu seu corpo. Era a fêmea carente de carinho que precisava de um homem para preencher o vazio deixado pelo capitão Viriato. Sua cabeça tinha volvido cento e oitenta graus e já esquecia o luto que invadira sua alma de mulher.

Adriano acordou tarde. Pegou o jornal que fora deixado pela empregada sobre um mesa. Tomou um susto ao ler o noticiário. Carlinha ainda dormia. Ele acordou-a. -

Veja o que aconteceu ontem à noite! – disse ele apontando para o jornal.

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Oh! Deixa-me dormir mais um pouco, seu pervertido! – disse Carlinha, aborrecida com a luz que feria seus olhos. – Será que tu nunca te satisfaz?! Vai procurar uma puta pra te chupar o dia inteiro...

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Não é nada disso, querida! – disse ele com um tom de desculpa – Mataram o capitão Viriato...

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O quê? – perguntou ela assustada, tomando o jornal da mão de Adriano. – Não é possível!..

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É sim, possível! – discordou Adriano. – As autoridades também morrem...Somos todos mortais...


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Ora, deixe sua filosofia barata pra lá! – reprovou Carlinha com um ar de desprezo. – a Cleyde...aquela...

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Esse “aquela” me soa mal – comentou Adriano com ironia - , algo como uma acusação leviana.

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E o que você quer que eu diga? – inquiriu furiosamente Carlinha. – Ah, deixa pra lá!...Ela é minha amiga. – Nesse momento o telefone tocou. Carlinha arrebatou o aparelho da mão de Adriano. Era Cleyde choramingando.

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Mantenha-se calma, querida! – disse Carlinha, consolando a amiga. – Vou já pra lá...Não saia de casa! – Carlinha pulou da cama e foi para o banheiro. Adriano a seguiu – não venha pra cá! – Disse ela empurrando-o e trancando a porta do banheiro. – Já estou farta dessa sua coisa desenxabida; preciso gozar como antes... – enquanto dizia isto, ela se preocupava com o interesse velado de Adriano por Cleyde. No entanto, foi ter com a amiga, deixando Adriano no caminho para tratar dos seus negócios.

*****

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Gostaria de ficar a sós com ela – disse Carlinha para Josina que permanecia em pé, ao lado da cama de Cleyde. – Sem falar, a empregada entregou uma correspondência nas mãos de Cleyde, que a colocou em cima do criado-mudo. Depois saiu.

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Eu soube pelos jornais – disse Carlinha com voz pausada –, quase não acreditei no que lia...

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A Josina me falou – sussurrou Cleyde com um suspiro –, mas não me deu detalhes...Isso pouco importa...Ele está morto...

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Quero ajudá-la! não pode ficar prostrada nessa cama! – disse Carlinha, tentando reanimá-la.

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Obrigada! Já estou bem...Gostaria de ficar só...Tenho muito que pensar. – Cleyde disse essas palavras secamente, dando a entender a Carlinha que queria ficar mesmo sozinha. Esta, sem mais uma palavra, deixou-a. Cleyde olhou para a correspondência que estava no criado-mudo; pegou-a, mas não a abriu; colocou-a na gaveta sem prestar atenção que o envelope estava sobrescrito em seu nome.

Adriano observou Carlinha sair do edifício, enquanto tentava esconder-se atrás do tronco uma frondosa mangueira que ficava a poucos metros do portão. Ficou pensando em subir até o apartamento de Cleyde, mas estava temeroso de não ser bem recebido por ela. Ele já fora repelido por ela mais de uma vez. Sua indecisão foi resolvida com a chegada de uma viatura policial da qual desceu um homem que visivelmente portava uma arma de fogo. Ele passou pelo portão e abordou algumas pessoas que conversavam no períbolo. Fez algumas anotações. Em seguida entrou no edifício. Adriano desistiu. O féretro do capitão Viriato teve o merecido reconhecimento das autoridades do Estado. O caixão foi transportado por uma viatura do Corpo de Bombeiros, acompanhada por dezenas de outros carros que soavam suas sirenes continuamente. No cemitério houve a missa de corpopresente e depois os discursos e as salvas de tiro de fuzil antes que o corpo descesse à cova pré-


fabricada. Mionete, de óculos escuro, mostrava certa atimia. Ela retirou o óculos. Ao seu lado, o delegado Toquinho lhe ofereceu um lenço com o qual ela enxugou algumas gotas de lágrimas. A despedida lutuosa estava terminada. Os circunstantes se afastaram tagarelando. A quase viúva deu o braço ao companheiro cujo regozijo fê-lo dar um sorriso vitorioso; retiraram-se de mãos dadas até o carro particular do delegado. Ocultas atrás de um mausoléu, Cleyde e Josina saíam à socapa. O capitão Viriato caía no esquecimento. Adriano estava certo que Cleyde compareceria ao féretro do capitão Viriato. Na hora da cerimônia fúnebre ele estava postado em frente ao portão principal do cemitério, oculto por barracas de ambulantes que vendiam flores, velas e outros paramentos para sepulcros. Depois que a maioria das pessoas saiu, ele aguardou que ela também aparecesse. Depois de uma longa espera, resolveu entrar no cemitério. Dirigiu-se ao jazido do capitão Viriato. Começava a escurecer. Sentiu um calafrio quando ouviu passos atrás de si. Era Cleyde que vinha com uma coroa de flores artificiais e ainda não notara sua presença, pois caminhava de cabeça baixa. Assustou-se com a presença de Adriano que trajava um costume escuro. -

Por que não me deixa em paz? – perguntou ela melancolicamente.

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Sei que está em dificuldade, por isso vim procurá-la – respondeu Adriano com calma.

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Isso não vem á propósito – comentou ela –, principalmente neste momento...

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Vim oferecer minha ajuda, caso necessário – insistiu Adriano.

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Já lhe disse que não preciso de nada, só quero ficar em paz... Por que não veio com sua mulher? – Perguntou Cleyde, referindo-se à Carlinha.

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Ela não é minha mulher! – respondeu Adriano, com firmeza na voz.

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Pois então arranje uma!...

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É você que eu quero! – retorquiu Adriano com a voz trêmula. – Deixo a Carlinha agora mesmo, se você quiser. Hoje mesmo ela não entra mais em casa...Vou colocála no olho da rua...Vem comigo e eu caso contigo agora mesmo... – Um longo silêncio se passou entre os dois. Cleyde olhava o infinito com a coroa de flores dependurada de sua mão. Adriano pensou que ela não lhe ouvira e tornou a insistir. – Não estou brincando, Cleyde! Quero você como minha mulher, nem que seja só para ficar ao seu lado! – Ele pensou: “Vou acabar com esse meu vício. Tomara que a Carlinha não tenha dito nada a ela sobre isso. As mulheres não guardam segredo. Esses malditos psiquiatras não resolveram meu caso. Mas Cleyde me dá um tesão diferente. Tenho vontade de penetrá-la. Coisa que nunca aconteceu com outra mulher.” – Nesse momento, ele ouviu a voz de Cleyde – Vou-me embora! Volte pra sua mulher!.. – Adriano ajoelhou-se, agarrando as pernas dela, implorando que não o deixasse. Ela olhou de cima para o primeiro homem que implorava o seu amor em um lugar sem vida aparente. De repente, o silêncio sepulcral do campo inanimado foi quebrado por um tiro de revólver, e uma exclamação funesta.

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Desgraçada! Tu vais morrer também! Falsa! Melieira!... – Era Carlinha que descarregava toda sua ira na sua ex-amiga. Adriano saltou como um felino de sua posição agachada, conseguindo desviar o segundo tiro que provavelmente seria dirigido a Cleyde ou a ele mesmo. Segurou o pulso de Carlinha, e elevou a arma para cima, acionando o gatilho até que o último tiro foi dado. A pressão exercida sobre


Carlinha, fê-la cair ao lado de Cleyde, que ainda segurava a coroa de flores manchada de sangue... Adriano andava de um lado para outro no corredor de um hospital particular. Sua preocupação era visível no rosto sombrio e nos olhos esbugalhados. O tiro acertou Cleyde na altura do coração. No momento ela era submetida a uma cirurgia para retirar a bala. O médico veio avisá-lo que ela iria permanecer na UTI até passar o perigo pós-operatório. Seria melhor que ele voltasse no dia seguinte, tendo-lhe dado o número do seu celular para qualquer eventualidade. Adriano resignou-se com a fatalidade. Retirou-se do hospital. Iria resolver o seu caso com Carlinha de uma vez por todas. Dirigiu-se ao seu apartamento. Carlinha ainda não havia chegado. Assim era melhor! Quando caíra ao lado de Cleyde, junto ao sepulcro do capitão Viriato, Carlinha fingiu que perdera os sentidos, tentando chamar a atenção de Adriano sobre si. Esperou em vão e só percebeu que estava só quando ouviu o som do pneu de um carro que saía em disparada. Ergueu-se apavorada. Correu e, quando podia, saltava sobre as sepulturas baixas sem enxergar o que estava a sua frente. Velas curtas tremeluziam ao vento, provavelmente restos de outras homenagens fúnebres para defuntos frescos. O seu medo aumentava. Seu cepticismo em relação ao alémtúmulo se desfazia como gelo derretido, inundando sua alma com o frio da morte. Ao mesmo tempo, seu coração parecia que saltava do peito. Uma visão fantasmagórica como o fosfeno iluminou seus olhos. Sua mente se estilhaçou como uma vidraça, e foi invadida pela parestesia dos alucinados. Um homem que passava junto ao portão do cemitério deu de frente com ela que adejava seu vestido negro como uma mortalha. O grito do homem chamou a atenção de uma viatura policial que fazia ronda noturna. -

Policial! Esta mulher sofreu um forte abalo emocional – disse o médico plantonista – que parece irreversível. Entre seus pertences só achamos este cartão...É do sr. Adriano...

Os dois policiais entreolharam-se. O nome Adriano lhes era bem conhecido. Um deles disse sussurrando ao ouvido do outro: “Deixa pra lá! Não te mete em bronca! É o chefão!.” O médico encolheu os ombros e já ia saindo quando um dos policiais interveio. -

dr...talvez a gente possa identificar o homem do cartão...

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Pois não! Aqui está...Voltem aqui amanhã...

Os dois policiais se retiraram. O que estava com o cartão na mão, rasgou-o e jogou-o na lixeira. Adriano era bem conhecido dos policiais pelas propinas que ele distribuía generosamente entre eles. Ele era o banqueiro mais forte do jogo do bicho e adquirira uma fortuna que supria as diversas atividades de suas empresas e também alguns políticos que precisavam de suas benesses para financiar suas campanhas publicitárias e outras mais escusas. O aparelho policial também se beneficiava e fazia vista grossa para a contravenção generalizada. Portanto o “chefão” deveria ser preservado de um escândalo. Que a “moça se lixasse!”

Capítulo XIII

No dia seguinte, Adriano foi avisado por um daqueles policiais sobre o que acontecera com Carlinha. Ele se regozijou com isso, pois já estava certo que o seu caso com ela chegara ao fim. O seu


“vício”, como dizia ela, parecia até pouco tempo ser incurável. Desde sua puberdade que ele sofria dessa disfunção sexual cujo orgasmo extra-vaginal deixava-o frustrado. Contudo, agora via em Cleyde uma esperança que se manifestava em sonhos e pensamentos nos quais pressentia sua atividade sexual “normalmente.” Suas tentativas com Carlinha haviam sido em vão, e só conseguia o prazer através da felação. O diabo é que ela não estava acostumada a isso e só se submetia a ele depois de receber um bom cheque. Com o tempo, ela amealhou uma pequena fortuna que, no entanto, para Adriano não era nada comparada com a que vinha da fauna que aparecia nos sonhos das pessoas simples, cuja cupidez não era menor que a sua. Entretanto, sua mão aberta ajudava as pessoas necessitadas, não sendo um somítico empedernido cujo prazer era só guardar dinheiro. Estava disposto a manter Carlinha longe de si, mesmo gastando muito. Arrumou seus pertences em uma mala e a despachou para uma clínica psiquiátrica na qual ela já se encontrava internada. Agora livre, o seu objetivo era conquistar Cleyde. O ritual que se prepara para a conquista de uma mulher está bem arraigado no consciente coletivo do macho-homem, desde o início dos tempos. Alguns homens já nascem com um instinto apurado para esse mister; outros ainda precisam desenvolvê-lo com o apoio da inteligência; e uma classe menos privilegiada quase nunca alcança os favores das esquivas damas, principalmente as que são naturalmente belas. Estes, contentam-se com as que a natureza relegou a um plano inferior da estética, nas quais apenas uma parte do amor exerce sua função procriadora, e a outra parte é como a neblina que se esvai sob o sol do alvorecer. Afora sua disfunção sexual, Adriano estava no primeiro grupo em relação às virtudes que se deve ter para uma conquista vitoriosa. Uma delas é a audácia. Esta virtude se casa plenamente com o exibicionismo inato da mulher. Não importa a hora e o lugar, a mulher deseja ser conquistada à vista de todos. Isto mostra sua importância de fêmea que cede ao mais apto. Os seus genes estão milenarmente preparados para essa conquista pelo macho vencedor da batalha entre seus pares. Adriano já dera o primeiro passo. A outra virtude é a paciência. Esta deve permear a audácia do macho como o sangue que sai do coração para irrigar todo o corpo e volta a lhe dar mais força. Finalmente, a terceira virtude mais importante é a liberalidade nos gastos com a mulher; ela gosta de presentes, principalmente os que custam caro; e visitar os magazines e as joalherias está entre seus afazeres prediletos. Um pão-duro jamais conquistará uma bela mulher. Adriano inconscientemente já dera também o segundo passo. Só faltava agora o terceiro. Cleyde se recuperou rapidamente. Adriano havia contratado os melhores médicos para tratá-la no pós-operatório de modo a não haver traumas psicológicos. A perfuração da bala sumiu com uma cirurgia plástica, não deixando sequer vestígios de corte. Quando o médico lhe deu alta, para não ferir sua suscetibilidade, mandou que a levassem para o apartamento do finado capitão Viriato com recomendação à Josina para lhe dar todo conforto possível e que o avisasse de qualquer eventualidade. Depois de três semanas, Cleyde já estava completamente recuperada. Adriano sabia disso e não perdeu tempo. Sua disponibilidade financeira fê-lo comprar um belo conjunto de jóias: pingentes, pulseira e cordão, todos de ouro cravejados com pedras preciosas. Uma fortuna que eqüivalia o que Carlinha amealhara ao longo de sua convivência com ele. Finalmente, foi dado o terceiro passo. Agora vejamos a reação da fêmeamulher. A resposta de Cleyde veio em forma de gratidão dissimulada. Ao receber o presente refreou seu deslumbramento na frente de Josina que também já vira o capitão Viriato empregar a mesma tática com as mulheres que ele queria ganhar. Se ela fosse uma mulher rica talvez devolvesse o presente, e outras alternativas estariam na imaginação do conquistador. Mas Cleyde ouviu de longe sua ex-amiga Carlinha segredar-lhe ao ouvido da consciência: “Recebe o presente mais resiste aos seus carinhos; mostra-te distante e ele vai pensar que estás pensando em outro. Assim, outros presentes virão até chegar a um ponto em que ele vai te fazer uma proposta de casamento ou te dar uma gorda conta bancária que vai te deixar tranqüila pro resto da vida.” Este conselho, contudo, contradizia os fatos recentes que aconteceram com Carlinha. Ela conseguiu uma conta bancária que lhe satisfazia os caprichos de mulher e um apartamento, mas o


casamento nunca lhe fora proposto por Adriano que poderia ter a qualquer hora uma bela garota de programa. Para ele, o casamento era uma instituição falida que sucumbiu às facilidades e licenciosidades da vida moderna. Entretanto, ele estava obstinado a conquistar Cleyde, sem medir esforços ou gastar o que lhe fosse possível. Seus delírios com ela vinham à tona quase toda hora do dia, formando um círculo vicioso que o prendia como uma obsessão. Ele se surpreendia ao ser visitado constantemente por esses pensamentos e imagens que fugiam ao controle de sua inteligência. Ele estava no centro de uma roda que girava sem parar, e da qual partiam forças que convergiam para ele e não o deixavam escapar. O destino lhe armara uma cilada cuja isca lhe prendeu irreversivelmente. O jeito agora era se submeter a ela para salvar o que lhe parecia a última esperança de conseguir o que sempre ele quisera como homem: compartilhar com a mulher amada as delícias da conjunção carnal recíproca e de inefável prazer. Cumprido os primeiros três passos, faltava só o arremate: Fazer uma visita à Cleyde, e verificar sua reação. Isto foi feito em um fim de semana, justamente a Sexta-feira que é o dia mais apreciado desse período. Não faltou o buquê de flores naturais e o tradicional chocolate. Previamente avisada por meio de Josina, Cleyde preparou-se a seu modo, com simplicidade no traje e discrição no perfume, deixando sua beleza em destaque, junto com sua intrínseca maneira de seduzir os homens, mas com recato e finura. Esse seu refinamento foi adquirido na convivência com a família dr. Waldomiro, mas seu perfume natural e o jeito de mulher sedutora e bonita vieram do berço. Ela ainda dava os últimos retoques na pintura, quando Josina anunciou a chegada de Adriano. -

D. Cleyde, o dr. Adriano chegou... – disse Josina com voz baixa. – Ele está na sala...

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Diga a ele que espere um minuto – disse Cleyde com voz natural.

A subjetividade ou a relatividade do tempo veio a calhar para Adriano. Enquanto Cleyde pacientemente retocava sua pintura – ela não tinha necessidade de pintura –, Adriano contava os minutos passar. A princípio, sentado em uma confortável poltrona de couro com os olhos fitos no relógio de ouro, contou os primeiros dez minutos. Levantou-se para olhar alguns quadros artísticos pendurados na parede. Notou que o capitão Viriato tinha bom gosto. De vez em quando, olhava o relógio e voltava os olhos para os quadros. Um deles era a pintura do retrato de Ginevra de’ Benci, datado de 1474, por Leonardo da Vinci – evidentemente uma cópia. A “requintada beleza melancólica” da senhora lhe lembrava Cleyde distante, embora ela estivesse a poucos passos da sala. Ela parecia lhe dizer: “Foi um gênio que fez o meu retrato. Vivi há muito tempo atrás e agora voltei para essa que está bem perto de ti, mas que te parece tão distante, quanto os séculos que nos separam.” Adriano tomou um susto. Aquela figura lhe parecia viva e pensou que ela sorria como Mona Lisa. Mas ela não sorria. Esboçava um olhar altivo que aniquilava sua disposição anterior de ver Cleyde rapidamente. Ele ouviu passos no corredor. “É ela!”, disse ele, mas os passos se distanciaram com o tempo que recuava para um passado distante, e se fixava à mulher que o humilhava com seu olhar de desprezo. Mas o seu “tempo” ia passando rápido e aumentando sua angústia. Em dado momento ele se sentiu arrebatado para dentro do quadro por uma voragem que o jogou às margens de um possível lago que faz pano de fundo do retrato. Na superfície do lago ele viu Cleyde sorrindo. Olhou para trás. Um ramo de junípero estava no chão. Estendeu o braço para segurá-lo, mas ele desapareceu. Volveu a cabeça para o lago. Agora era a senhora que se refletia na água com o ramo de junípero atrás da cabeça. Aturdido com essas miragens, olhou mais uma vez para o relógio. Os ponteiros andavam para trás. “Estou enlouquecendo!”, exclamou. “Não, não está!”, ouviu uma voz de mulher lhe sussurrando ao ouvido, “Vem! Mergulha na água!....”; reconheceu a voz da Carlinha cuja imagem aparecia na água com o ramo de junípero entre os dentes. Adriano meteu a mão na água para agarrar o ramo. Um redemoinho sugou sua mão, quase levando-o para o fundo do lago. Ele sentiu a água fria enregelar seus braços... - O que foi dr Adriano? Está se sentindo bem? – Era a voz de Josina que segurava um copo vazio. Enquanto olhava o quadro, assustou-se e bateu no copo. A água havia entornado no seu braço.


Consultou o relógio. Já havia passado mais de uma hora. Enquanto isso, Cleyde olhava o criado mudo. Lembrou-se da correspondência que colocara na gaveta. Resolveu deixá-la no mesmo lugar. Não deveria ser importante! Quem iria se lembrar dela? Chamou Josina. Pediu que esta a acompanhasse até a sala. Josina ponderou que não estava correta sua atitude. Ela iria servir de “pastel” para os dois. Cleyde insistiu com firmeza. Josina acedeu e foram para a sala. A emoção de Adriano impediu-o de ver Josina ao lado de Cleyde. Em uma atitude tresloucada, ele segurou as mãos dela e as beijava repetidas vezes. Ela sentiu as mãos dele molhadas. Josina, envergonhada, afastou-se para um canto da sala. Os apelos inconscientes de Adriano comoveram Cleyde, mas conteve-se. Lembrou-se do que lhe dissera a Carlinha: “Não tem pena! Aproveita a fraqueza deles para conseguir o que queres. Só cedas quando for conveniente pra ti.” E foi o que ela fez com estas palavras: - Dr. Adriano! – exclamou ela com vou pausada e firme, – Estou com dor de cabeça! Não me leve a mal! Posso vê-lo outro dia!... - Josina! Acompanhe o dr. Adriano até a porta. Dito isto, desvencilhou-se das mãos de Adriano, e retirou-se. Este ficou perplexo e confuso. Ainda se encontrava com as mãos no ar, quando se aproximou Josina. Recompôs-se. Cabisbaixo, seguiu-a até a porta. Voltou-se e olhou para o quadro. A senhora Benci continuava a olhá-lo com desdém. Saiu. Entrou no primeiro bar que encontrou. E afogou seu infortúnio numa garrafa de uísque. Cleyde sentou-se na cama. Carlinha não saía de sua cabeça. Apesar do mal que lhe causara, não sentia ódio por ela que continuava sendo sua interlocutora invisível. Chegava a conversar com ela na sua solidão. Todavia, ela se culpava pelo que acontecera com a amiga que perdera a sanidade mental. E tudo por culpa dela e Adriano. Ela se lembrou da cena patética que acontecera na sala. Um homem da estatura de Adriano, tremendo diante dela, uma ex-empregada doméstica! Parece que o destino a estava recompensando por tudo que fizeram com ela no passado. Chegou a sua vez de construir um futuro sólido com um homem que a amasse. Seria Adriano? As recentes demonstrações de afeto que ele lhe dera, algumas até ridículas, mostravam que estava disposto a rasgar as etiquetas da sociedade que ele freqüentava. Porém, mais uma vez lembrou-se dos conselhos da Carlinha: “Cuidado com os dramas que eles fazem com o intuito de explorar teu lado materno! Depois que se satisfazem, agem como a criança, que, após amamentar-se, empurra com a mãozinha o seio da mãe.” Sim! Ela iria resistir o quanto pudesse até subjugá-lo completamente. Com certeza, ele estava acostumado a encontrar mulheres fáceis com o dinheiro que possuía. Isso era verdade! Adriano quase sempre conseguia a mulher solteira que queria. Ele já tinha uma relação delas, além de Carlinha que tolerava seu vício; as outras não faziam bem o negócio e o deixavam insatisfeito. Pensou em voltar ao apartamento para ver Cleyde. Mas foi prudente. Ela poderia recusá-lo definitivamente. A frieza com que ela agiu nesse dia não foi diferente da que viu na mulher do quadro de Leonardo. Lembrou-se do delírio que teve quando se sentiu arrebatado para dentro de quadro. Cleyde se comportou como a dama do retrato. Achou-as parecidas. Pensou na reencarnação. Que coisa absurda! Uma dama da nobreza, reencarnando-se em uma empregada doméstica! Aonde ele chegara! Humilhar-se aos pés de uma serviçal! Mas a sua realidade era essa. Ele estava apaixonado por Cleyde. Sua única salvação era casar-se com ela. Essa idéia o consolou. Viu-a contente ao fazer-lhe o pedido de casamento. Finalmente, ele havia encontrado a mulher dos seus sonhos, e que acabaria com sua solidão de solteiro. Ele havia feito um voto de nunca se casar. Enganou-se! Lembrou-se do pai Bastião para concretizar seu sonho. O sr. X, oculto entre as árvores, olhava a malhação da efígie de Josefa que a comadre e as outras duas mulheres incansavelmene lhe aplicavam toda noite. A boneca já estava quase toda estraçalhada, devido aos golpes de porretes e punhaladas que expunham hematomas e feridas que pareciam reais. “A mãezinha está sofrendo muito”, disse ele consigo, “com essas danadas que parecem ter o diabo no corpo.


Mas isso não pode ser verdade! É só coincidência! Elas ainda vão pagar por esse desaforo!” O homem retirou-se. Depois de algumas horas, chegaram o delegado Toquinho e Mionete. Esta estava sorridente, e o ex-detetive parecia estar com a cabeça nas nuvens. Outrossim, a mesma disposição não se via em Adriano que acabara de chegar. Ele dirigiu-se diretamente ao pai Bastião. A uma certa distância uma mulher de olhos vidrados observava Adriano. Um véu negro dissimulava seu rosto e seu ombro estava coberto com um xale da mesma cor. Aproximou-se à socapa dele. Com um movimento rápido ela sacou de uma bolsa um punhal reluzente que desceu como um raio sobre as costas de Adriano, tombando-o ensangüentado aos pés de pai Bastião. O delegado Toquinho, que estava próximo, saltou como um gato em direção a mulher que empreendia fuga, e a algemou. Levantou o véu do seu rosto. Tomou um susto. Era Carlinha. Quase ao mesmo tempo tomou conta de Adriano que já estava nos braços de pai Bastião. Ele foi para o hospital; e Carlinha, autuada em flagrante. O delegado Toquinho que estava a par de tudo, encaminhou-a depois para a clinica psiquiátrica. Cleyde soube no mesmo dia da tragédia. Não perdeu tempo. Acompanhada por Josina, foi ao hospital. Ela estava abalada mas se mantinha altiva e sem demonstrar emoção. Adriano se submetia a uma cirurgia delicada. O punhal havia feito um estrago nas costas, conforme lhes dissera uma enfermeira. Um homem passou cabisbaixo um pouco adiante delas. Cleyde olhou-o, despertada pela lembrança de que o havia visto em algum lugar. Era o sr. X que logo sumiu por uma porta lateral.

*****

-

Mãezinha! – disse o sr. X ao lado da cama de Josefa, que ainda se conservava lúcida. – O chefão da agência já está aqui. Quais são suas ordens?

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Morte! Não o deixe escapar outra vez... – disse Josefa com voz sumida.

-

Como a mãezinha quer que a gente faça o serviço? – perguntou em voz baixa o sr. X.

-

Faz ele comer “aquilo” assado; depois leva ele pra casa do pai e o resto... – nesse momento Josefa soltou uma golfada de sangue cuja força manchou a parede. O sr. X olhou para ela penalizado. Josefa ainda tinha força para falar.

-

Alguma coisa... me espeta... me quebra... o corpo todo...quero morrer...mas...a morte não vem...essa desgraçada...

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Acalme-se, mãezinha! Vou ligar pro médico; ele vem já!

-

Enfermeira! Tome conta dela! – disse o sr. X para uma mulher que estava no corredor, retirando-se em seguida com a cabeça enterrada em um chapéu que dissimulava seu rosto. “A velha está pra morrer!”, pensou ele, “Mas mesmo assim ela não esquece o patife. Finalmente hoje ele vai saber com quem se meteu. Vou chamar o pessoal para fazer o serviço hoje a noite.”

O terreiro do pai Bastião estava repleto de pessoas. Vários grupos destas se distribuíam nos diversos sítios que lhes interessavam. Em um deles, o espetáculo da malhação da boneca já não despertava muita atenção, porque o ritual de maldades da comadre e suas amigas estava quase esgotado. Contudo, elas não se cansavam de proferir pragas para Josefa, que nesse momento mergulhava no exício inexorável, produzido por alguma doença mortal. (O médico já tinha um diagnostico preliminar, mas não queria se precipitar, porque esperava os resultado de outros exames mais demorados).


Em um sítio mais afastado, estacionou um carro com cinco homens, incluindo o motorista. Saltaram. Um deles estava algemado e amordaçado. Entraram em uma espécie de cabana com apenas uma porta da qual saía uma luz morna de vela. Despiram-no totalmente. Seus pulsos e seus pés foram agrilhoados com correntes. Um deles, portando uma afiada faca, com uma habilidade incrível, extirpou de uma vez o pênis e os testículos do agrilhoado, que estrebuchava como um porco esfaqueado, e os enfiou em um espeto de fazer churrasco. O sangue escorria de seu ventre como uma torneira. O espeto foi colocado em uma pequena churrasqueira da qual emanava um fogo intenso. Em poucos minutos estava assado. Um cheiro nauseabundo se espalhou pelo ambiente. O suplício do homem era abafado pelo som dos atabaques que percutia intensamente, acompanhado pelo cântico das mães-de-santo e a vozearia das pessoas. Eles forçaram o homem a escancarar a boca, deslocando o maxilar inferior dele; a expressão dos seus olhos esbugalhados era de inefável terror. Lágrimas escorriam como goteiras dos seus olhos que pareciam verter toda dor que sentia. Lentamente foi fenecendo, vencido pela dor extrema, enquanto os homens empurravam, em intervalos, seu aparelho viril boca adentro. O homem ainda com vida foi colocado em um saco plástico e jogado dentro da mala do carro. Um homem disse: “A moça foi vingada!” No dia seguinte as manchetes dos jornais estamparam: “Conhecido homem de sociedade é encontrado morto na cama.” Os principais jornais procuraram abafar a identidade do morto. Entretanto, foi a arrumadeira da casa que se incumbiu de espalhar o boato de que ele estava com os restos dos órgãos genitais cremados na boca e portava pendurado no pescoço um dístico que dizia: “Pai, por que me estupraste quando eu era menino?” Dias depois o pai do supliciado morria de depressão profunda. Na noite desse mesmo dia, o sr. X foi chamado pelo médico de Josefa. Deitada no leito, ela pediu para ir ao banheiro. Quando voltou, vomitou jatos de sangue que ensopou o sr. X , as paredes e o chão. Uma enfermeira avisou: “O senhor está contaminado!” O sangue vertia por todos os orifícios do corpo de Josefa. Ela foi colocada em uma bacia que em pouco tempo ficou quase cheia. Como a sangria continuava, ela foi colocada de volta à cama e não demorou muito para ensopar o colchão . Das feridas e tolontros do seu corpo, saíam enormes vermes que se misturavam ao sangue coagulado e se locupletavam com ele. Seus olhos azeitonados adquiriram um tom rubro-negro e extrapolaram as órbitas que deixaram vazar um líquido purulento. Ela fez um sinal com a mão na direção do sr. X. Este foi até ela. Segredoulhe ao ouvido: “Sua ordem foi executada!” Com a voz sumida ela disse: “Ele vai pro inferno comigo!...” E expirou com o ronco gutural dos comatosos. O médico, finalmente, deu seu diagnóstico: “É hepatite-C! Só não entendo o porquê de tantos vermes...” O sr. X fez as recomendações para o enterro de Josefa, e saiu com a cabeça enterrada no chapéu. Era tarde da noite no terreiro do pai Bastião. A maioria das pessoas já havia se retirado. Ao longe se via o tremeluzir da luz que vinha do sítio no qual fora supliciado o homem cujos órgãos genitais foram metidos na sua boca. De lá saíram a comadre e as duas mulheres, que se regozijavam entre si. Na verdade, a sevícia final da boneca veio com a notícia da morte de Josefa. Daquela só restaram trapos misturados com sangue coagulado. Um odor acre do vômito de uma das mulheres trescalava do lugar. A noite terminava gloriosa para a comadre que assim se expressou: “Minha filha foi vingada! A Josefa que vá para o inferno...”

Capítulo XIV

Cleyde não demorou muito tempo no hospital. As informações eram que Adriano ficaria na UTI até passar o perigo pós-operatório. Ela estava desalentada. Não pela tragédia dele. Ela fora cumprir apenas um gesto humanitário para uma pessoa que a presenteara e a cortejava tresloucadamente. A morte do capitão Viriato ainda lhe inibia a mente para uma aventura da qual não sabia as conseqüências. Algo a


avisava disto. Deveria ser cautelosa. No quarto do apartamento, olhou para o criado mudo. Lembrou-se da correspondência. Não teve ânimo para abrir a gaveta. Josina veio lhe informar que Carlinha voltara para a clinica psiquiátrica. Deu-lhe vontade de fazer uma visita. Afinal, ela não haveria de reconhecê-la. Estava louca e os loucos vivem no mundo deles. “Mas ela pode se lembrar de alguma coisa”, pensou consigo, “alguma coisa nos meus olhos ou no meu corpo; dizem que os loucos têm seus momentos de lucidez, como nós, que, às vezes, fazemos coisas iguais a eles. Como o Adriano! Josina me disse que durante o tempo que ele estava na sala me esperando, ela o viu conversando com o quadro daquela mulher bonita. Chamou ela por meu nome e disse: “Sai daí que eu quero te beijar.” Depois tomou distância e se jogou contra a parede. Josina pensou que ele estava passando mal e trouxe um copo d’água. Ele bateu o copo com força que derramou água no braço dele. Ela ficou com medo porque os olhos dele estavam vermelhos. Parecia que tinha visto uma assombração. Depois ficou tremendo. Ah!.. a Carlinha, é meu dever ir lá com ela; era minha amiga.” A clínica psiquiátrica era um das melhores da cidade. A diária era a de um hotel cinco estrelas. Os quartos eram espaçosos, com mobília de primeira qualidade e ar condicionado. Havia quadra de esportes, piscina e um bom refeitório. Psicólogos e psiquiatras faziam plantão dia e noite com uma boa equipe de enfermeiros e guardas de segurança. Com tudo isso, não fora difícil para Carlinha fugir da clínica para ir ao terreiro do pai Bastião. Ela seduzira um dos guardas, que a deixou sair no horário de visita, disfarçada de enfermeira. Naquele dia ela teve seu momento de lucidez para vingar-se de Adriano. Mas como o leitor sabe, sua mente fora seriamente abalada pela lugubridade noturna do cemitério, com suas fantasmagóricas figuras luminosas, produzidas por material orgânico em decomposição. Adriano se aproveitou disso para interná-la, porque queria há muito tempo livrar-se dela cuja cobiça por dinheiro já não suportava mais. Cleyde entrou dissimulada na clínica, ocultando-se em um lugar que não poderia ser vista por Carlinha. Observou-a todo tempo. Ela parecia normal, pois conversava animadamente com outros pacientes. Um pouco afastado do grupo, um rapaz magro tocava piano – parecia uma música erudita. Em dado momento, o rapaz, proferindo palavras desconexas, levantou-se e ameaçou o grupo com o cabo de uma vassoura que apareceu não se sabe de onde. No mesmo instante, três enfermeiros dominaram o rapaz, que gritava: “Sai, Satanás! Sai!” Espetaram-lhe uma agulha no braço e o rapaz desfaleceu quase instantaneamente. O grupo no qual estava Carlinha continuou impassível como se nada acontecera. Nenhuma reação e nem um olhar para o rapaz, que era carregado por um dos enfermeiros. Depois, uma cena hilariante fez Cleyde rir: Um homem magro de meia-idade, de sobretudo – o clima tórrido da região não permite esse traje – e bengala, andava de um lado para outro com um livro em baixo do braço e alguns papéis nas mãos. Usava um antigo óculos bifocal. Dava a impressão de ser um professor. Em dado momento, ele parou e começou a falar. Ninguém lhe deu atenção. O homem se aborreceu. Ele abriu a braguilha e mostrou os órgãos genitais. Ninguém olhou para ele. Ele se aborreceu mais e se jogou na piscina. Os enfermeiros fizeram a mesma coisa. O homem foi manietado e saiu da piscina como um pinto-molhado. Cleyde não suportou mais o riso reprimido com a mão, e deu uma gargalhada. Um enfermeiro, pensando que ela era um dos pacientes, perguntou-lhe: “Está de novo com suas crises de riso?” Ela pensou consigo: “É melhor eu ir embora daqui; senão vou fazer companhia pra Carlinha.” Incontinenti, ela saiu do lugar onde estava. Uma sirene alertou os pacientes. Um alvoroço propagou-se entre eles. Era a hora do jantar. Inesperadamente, Cleyde se viu frente a frente com Carlinha. Duas gotas de lágrimas rolaram dos olhos de Carlinha. As duas mulheres deram de andar com as cabeças viradas para trás, até que Cleyde sumiu à saída do portão. Cleyde, já fora da clínica, caminhava a esmo, sem destino. Sentia-se melancólica e sem vontade de voltar para o apartamento. Sua vida estava sendo levada pelas circunstâncias que apareciam como predestinadas só para ela. Pensou em morrer. Que adiantaria viver sem um objetivo na vida? Quando os eventos começavam a favorecê-la, vinha o imprevisto destruir o que parecia uma dádiva para seus infortúnios. A morte do capitão Viriato e a tragédia com Adriano foram as últimas, além de ela mesma ter sido vítima do ciúme de Carlinha. E uma coisa a deixava incomodada, quanto a sua sobrevivência: De onde vinha o dinheiro para Josina manter as despesas domésticas? Queria perguntar a ela, mas tinha medo


que sua resposta fosse negativa. Aparentemente, nada modificara na rotina do apartamento. A alimentação, o pagamento do condomínio, as despesas com energia elétrica e de supermercado e outras continuavam inalteradas, como se a renda do capitão Viriato não tivesse sido alterada com sua morte. Só Josina sabia disso! Sua caminhada aleatória deu-lhe um susto quando se deparou com o mesmo hospital no qual fora internada depois do acidente de trânsito. Uma imensa fila de pessoas começava à porta do prédio a fim de elas conseguirem uma senha para a consulta do dia seguinte ou sabe lá quando. Muitas lacunas na fila eram preenchidas por pedras que marcavam a ausência do dono do lugar, ou eram mantidas ali para a venda da vaga a pessoas que não queriam madrugar na vila. Seu pensamento voltou ao dia que fora internada nesse hospital. Como sua vida fora determinada por coincidências, um carro da polícia passou com a sirene tocando. De relance, ela viu o mesmo homem que encontrara no hospital onde fora internado Adriano. Essa coincidência fê-la lembrar-se do mesmo homem que vira no bordel de Josefa. “É ele mesmo!”, disse consigo, “Aquele que eu vi falando com Josefa no dia que o capitão Viriato me tirou de lá. Parece que essas pessoas me perseguem com se eu fosse uma criminosa. Vou-me embora daqui antes que me peguem.” Esse homem era o sr. X. Ele também reconheceu Cleyde. “Essa menina está se soltando!”, pensou ele consigo, enquanto o carro continuava a perseguição a um bando que assaltara um banco. “Foi só o capitão Viriato morrer pra ela mostrar as unhas. Essas mulheres não podem viver sem um homem! O Adriano é o que vai aproveitar essa beleza de mulher! Cara de sorte! Mas também não posso me queixar! Essa que eu tenho agora não é bonita como ela mas me satisfaz. Também?! Eu não iria achar coisa melhor! Só se o Adriano morrer. Dizem que ele está mal. O punhal parece que atingiu uma das vértebras. Se ele ficar paraplégico, adeus Cleyde! Ela não vai querer viver com um impotente! Isso que é azar!” De repente, o carro parou. O motorista avisou: “A gasolina acabou!” O sr. X já estava acostumado com essas falhas. Só fez praguejar: “Maldito governo! Não tem dinheiro pra gasolina, mas tem pra essa assembléia de vagabundos que a gente elegeu.” Dito isto, saltou do carro junto com o motorista e o empurraram para não atrapalhar o trânsito. Quanto aos bandidos, escafederam-se mais uma vez. Cleyde continuou sua caminhada, mas agora com um objetivo: Voltar para o apartamento e saber com Josina de onde vinha o dinheiro para as despesas. Já estava perto do edifício que morava. Entretanto, não notou que era seguida discretamente por um homem que disfarçava a cara com um chapéu de palha que lhe cobria parcialmente a vista. Cleyde ingenuamente ostentava a pulseira que Adriano lhe dera de presente. Já estava escuro e poucas pessoas estavam na rua. O estranho aproveitou essa oportunidade, e, acelerando os passos, arrancou a pulseira do seu braço direito. Ela gritou mas já era tarde. O ladrão, célere como uma gazela sumiu na escuridão. Ela se refez do susto e entrou rápido no edifico. A portaria do prédio estava praticamente abandonada. Fora, os vigilantes e zeladores jogavam dominó em uma mesa; a vigilância voltara ao estado normal, não obstante o prédio tivesse sido assaltado há poucos dias. Cleyde, já dentro do apartamento, estava desalentada com o roubo da pulseira. Embora ela não soubesse o real valor da mesma, era a primeira vez que tinha um objeto caro que lhe fora dado de presente. Foi ao toucador e retirou de um estojo o colar e os brincos. Sentou-se na cama e ficou a admiralos. O brilho das pedras inundava seus olhos de luz com matizes multicoloridas de vermelho, verde e diamantino. Sua vista cansou e um leve sono quase fechou suas pálpebras, enquanto o lusco-fusco da penumbra onírica aparecia no seu estado semiconsciente. Do chuveiro de luzes saía Zoraia seminua, insinuante e fogosa, mostrando-lhe o púbis devassado. Ouviu sua voz melíflua: “Vamos apostar um beijo na banheira.” As luzes se turvaram na mente de Cleyde. Seu sangue fluiu veloz para baixo e a abrasou de volúpia estranha, como sói acontecer com os amantes desnaturados. Semi-inconsciente, ela levantou-se e foi para a banheira. Zoraia volteava etérea em volta de si. Já dentro da banheira, o corpo dela parecia materializar-se à força da libido incontrolável . Sentiu seus beijos; sua mão que deslizava sofregamente por seu ventre; a língua que a penetrava lesta como uma serpente, inoculando no seu corpo e na sua mente o veneno da luxúria sáfica. Veio o orgasmo como uma descarga nervosa que a deixou desalentada, mas


com a inefável sensação de felicidade... “D. Cleyde! D. Cleyde! Acorde! É perigoso dormir na banheira!” Era Josina que a despertava do seu sonho revelador.

Capítulo XV

No dia seguinte, Cleyde acordou preguiçosa e feliz. Josina serviu o desjejum na cama, como se ela tivesse em seu leito nupcial. Mas logo depois chegou a notícia triste: Adriano sobreviveu à cirurgia, mas estava irremediavelmente paraplégico. O punhal assassino o transfixara, perfurando-lhe uma vértebra. Cumpria-se o vaticínio do sr. X. Ela sentiu-se pesarosa e imediatamente arrumou-se para visitálo. Ao mesmo tempo corria entre as facções do jogo do bicho que o “chefão” iria perder o controle dos pontos da contravenção para um dos seus rivais. Mas o sr. X estava atento e foi logo comunicar a Adriano o que estava acontecendo. -

Chefe! Aquele bilontra já está se articulando rapidamente – disse o sr. X, que estava sentado ao lado da cama de Adriano.

-

Não há tempo a perder! – exclamou Adriano com a calma de um homem resignado com a sorte. – Você sabe o que tem a fazer! E não poupe quem resistir! Logo mais vou receber uma visita. – Nesse momento entrou Cleyde, que logo reconheceu o homem de outros eventos. Adriano olhou para o sr. X com um olhar significativo que o mandava sair. Cleyde esperou um pouco até que ele saiu. Adriano sorriu.

-

Não se preocupe! Estou bem ! Só não quero que me deixe agora...depois você faz o que quiser...mas saiba, eu a amo... – Cleyde o olhava sem saber o que dizer. Estava perplexa com a vivacidade de Adriano, que aparentemente estava pouco se incomodando com o que lhe acontecera. Mas resolveu arriscar.

-

Sinto muito! Não pensei que fosse tão sério; um punhal! Ah! Desculpe! – ela se referiu ao punhal usado por Carlinha, sem querer. Adriano compreendeu imediatamente e sorriu.

-

Sim! Um simples punhal! Mas vou ser recompensado com a mulher que eu vou ter... – arriscou ele com segurança.

-

Eu não sei...

-

Eu compreendo, não precisa me dar a resposta agora – concordou ele, tentando adivinhar o pensamento de Cleyde. Mas não foi isso que ela pensou. Seu pensamento havia voltado como um relâmpago para a noite anterior. A imagem de Zoraia e a banheira. Mas disfarçou com um sorriso e mudou de assunto.

-

A minha pulseira.... um ladrão arrancou-a do meu braço... – disse ela hesitante e corando um pouco.

-

Não se preocupe! Vou lhe dar quantas quiser! É só pedir! – disse ele pegando em sua mão e chamando-a para perto de si. Pela segunda vez ele a beijou e agora ela acedeu sem repulsa. Mas um beijo diferente daquele de seus sonhos com Zoraia. Não a excitava tanto como os afagos que esta lhe dava. Entretanto, sentiu seu coração de mulher pulsar como de qualquer fêmea e isto a confundia. Por isso, não recusou o carinho que ele fazia com ternura e emoção. Era patético ver um homem, experiente com todo tipo de mulher, entregar-se afetuosamente a devaneios de um colegial apaixonado. Não sentia desejo sexual, mas este era compensado pela energia etérea do amor, que


pode permear os sentidos e suscitar um estado quase sempiterno de felicidade. Um pouco de silêncio entre eles foi interrompido por uma voz que se fez anunciar. -

Desculpe dr. Adriano, queria dizer-lhe algo importante – era seu médico que esboçava um sorriso matreiro.

-

Pode falar, não temos segredos! – disse ele referindo-se à Cleyde. – Esta, acostumada a ser discreta, afastou-se de perto do leito e sentou-se em uma poltrona. Pegou uma revista e fingiu que a lia. O médico aproximou-se mais, inclinando-se sobre Adriano.

-

Uma prótese peniana pode resolver em parte seu problema – sussurrou ele ao ouvido do paciente – , mas não lhe garante o prazer físico.

-

Não importa! – disse Adriano corajosamente. – Já tenho uma compensação...

-

OK! mas só depois de seu completo restabelecimento. Pode fazê-lo aqui, se quiser, ou no exterior – aconselhou o médico.

-

Confio na nossa medicina – afirmou Adriano. – O senhor mesmo disse que depois da cirurgia, o paciente pode andar. Que besteira eu disse! Quem me dera!..

-

Nada é impossível – discordou o médico – ,desde que tenha paciência e fé...

-

O senhor acredita em fé? – Exclamou Adriano.

-

Sim, sou médico mas não sou agnóstico. Acredite e verá! – respondeu o médico piscando um olho. Cleyde ouviu toda a conversa. Só não sabia o que era uma prótese peniana. O médico afastou-se. Ela olhou para Adriano que parecia radiante de alegria. A causa era a sugestão dada pelo médico. Ela levantou-se e outra vez se aproximou da cama. Mantinha-se em guarda sem necessidade; ela bem o sabia, mas lembrava-se dos conselhos da Carlinha e resistia discretamente para não turbar o ânimo de Adriano.

-

Estou indo... – disse Cleyde abruptamente.

-

Espere um pouco! – suplicou Adriano – Vou lhe fazer um pedido...

-

Diga!...

-

Case comigo! Só quero sua compreensão e nada mais; você continuará livre – Ele olhou para ela, esperando uma resposta. Cleyde continuou em pé, sem mostrar alguma emoção. Adriano pensou consigo: “Se fosse a Carlinha, já estaria dando pulos de alegria; e outra qualquer pensaria que eu teria ficado doido; mas esta, a primeira que eu amo, apenas me olha como aquela do quadro de Leonardo.” Cleyde continuou calada até que respondeu:

-

Não sei, ainda... Preciso de tempo pra pensar... – Ela, na verdade, estava confusa e surpresa com essa proposta séria de casamento. Era a segunda vez que ouvia isso; a primeira, foi a do capitão Viriato, cuja morte a deixou viúva antes do tempo. E agora, partia de um homem parcialmente inutilizado. Adriano deu a entender que concordava com ela. Inesperadamente, ela se aproximou e o beijou. Adriano sentiu-se um bem-aventurado. Ao sair do hospital, ela notou que o sr. X conversava com um grupo de homens malencarados. Quando eles a viram deram de costas e entraram em um bar. Cleyde pensou consigo: “Parece que esse homem está em todos os lugares. Por que Adriano tem amizade com ele? E a Josefa também? Ah! Ela está morta! Dizem que a comadre e suas duas amigas fizeram uma feitiçaria pra ela.” Coincidindo com o seu pensamento, ela viu as três referidas mulheres passarem


em frente ao bar no qual estava o sr. X e seus possíveis capangas. Cleyde teve um calafrio. Foi só pensar na comadre e ela apareceu com suas amigas sinistras. Alguma coisa estava para acontecer. Toda vez que havia uma tragédia, essas mulheres pareciam envolvidas nesses episódios sinistros. Foi o caso de Pau Amarelo, da Agência de Modelos e o último, um homem da sociedade, que foi supliciado em um possível ritual de macumba; sem levar em conta os que, aparentemente, tinham alguma relação com Josefa. Ela mesma fora refém dela por duas vezes, mas inexplicavelmente procurou defendê-la das mãos de Ricardo após o segundo estupro que sofrera dele. Enquanto andava, viu um jornal no chão com uma fotografia de Ricardo na primeira página. O homem que a fizera sofrer os horrores de dois estupros, tivera uma morte humilhante que só agora vinha a lume por meio de um jornal sensacionalista. Era o mesmo homem que fora supliciado próximo ao terreiro do pai Bastião, aquele cujos testículos foram assados em um fogareiro e metidos na boca do nefasto vilão. Só agora ela vinha saber que o dr. Waldomiro, não suportando a terrível morte do filho, que fora colocado pelos assassinos na sua própria cama, morreu pouco tempo depois, acometido por uma terrível depressão. Ela ria e chorava ao mesmo tempo. Seu corpo tremia como o sintoma da malária. Através das lágrimas ela viu a comadre e as outras duas mulheres refratadas como três fantasmas. Sem pensar, ela saiu correndo sem direção. Nesse momento, passava um carro da polícia com as sirenes abertas. O ranger de freios se fez ouvir e parou os pedestres. Cleyde havia atravessado a frente do carro, que quase a atingiu de cheio. Dentro do carro, o sr. X e o motorista ficaram lívidos. Aquele não suportou a coincidência e praguejou: “Diabo! É a namorada do chefão! Livre-nos Deus de tal desgraça !” Depois do susto, Cleyde ainda continuava com a folha de jornal segura em uma das mãos. Algumas pessoas olhavam-na atônitas. Deu de andar rápido para se livrar da curiosidade das mesmas. Finalmente, vislumbrou o pórtico do edifício onde morava. Estava aliviada. Continuou com o jornal seguro nas mãos. Iria deleitar-se com a leitura no aconchego do seu quarto. Josina sabia de todos os detalhes da morte de Ricardo, pois lia os jornais diariamente, logo cedo. Escondia-os de Cleyde para não perturbá-la com as tragédias do dia-a-dia, que estressam as pessoas e as tornam vítimas de suas próprias mazelas, além da violência que diariamente enfrentam nas ruas. Contudo, a partir desse dia, Cleyde passou a interessar-se com a leitura diária de jornais. Pediu a Josina que os comprasse diariamente. Mas também queria saber de onde vinha o dinheiro para as despesas. Tentou tocar no assunto para Josina, mas esta disse apenas que o capitão Viriato deixara o suficiente para manter todas as despesas. No dia seguinte, os jornais publicaram manchetes como esta: “Conhecido banqueiro do jogo do bicho é encontrado morto.” Os jornais faziam referência à guerra entre os banqueiros pelo controle dos principais pontos da cidade. A polícia, como das outras vezes, fez sua pirotecnia, invadindo as fortalezas dos banqueiros, prendendo cambistas e outros rompantes, só para enganar mais uma vez a opinião pública, que já se acostumara com esses episódios. Cleyde não se importou muito com essa manchete, mas na página seguinte o jornal mostrava uma foto do delegado Toquinho que, segundo o mesmo noticiário, iria dar o “golpe mortal na contravenção instituída.” Ela pensou: “Parece com aquele homem que ontem estava com o Adriano. A gente quase não vê a cara dele com aquele chapéu.” Lembrou-se também que ele dissimuladamente freqüentava o bordel de Josefa, enquanto o capitão Viriato ainda era vivo. Também o viu no dia em que era transportada para o apartamento do capitão. Coincidências tão evidentes, mostravamlhe que sr. X e o delegado Toquinho eram uma só pessoa, e parecia ter com Adriano alguma atividade em comum, incluindo também o capitão Viriato, enquanto vivia. Cleyde jogou o jornal em cima do criado-mudo. Ela não gostava de ler muito; por isso, postergou mais uma vez a abertura da correspondência que estava em um das gavetas do móvel. Voltou a pensar na proposta de Adriano. Gostava e não gostava da idéia de viver com um homem.


A barba dos homens a incomodava. Não gostava de sentir os cabelos que lhes faziam cócegas. Não era o caso de Adriano que se barbeava muito bem e não era musculoso. Entretanto, nunca o vira de outra forma. Poderia ser que por baixo da roupa ele fosse igual aos outros. Mas o dia-a-dia da vida em comum poderia modificá-la, e a paixão de Adriano por ela seria como a montanha que aparece ao longe, quebrando a monotonia da planície conjugal, ou a própria incerteza dos seus sentimentos por ele, talvez tivesse o mesmo efeito. E não seria isto o próprio amor, esse afeto indecifrável que vive de incertezas e contradições? Cleyde resolveu casar com Adriano.

Capítulo XVI

O casamento de Cleyde e Adriano não foi o que os amigos deste esperavam. A pedido de Cleyde, eles casaram em outra cidade, sem a pompa que seria esperada de um homem que tinha tudo para sair nas colunas sociais dos principais jornais da capital. Ela não quis ser exposta à curiosidade pública em uma cerimônia que iria chamar atenção sobre si e gerar comentários que surgiriam de sua antiga condição de doméstica. – Ela era bem conhecida por seus dotes de beleza desde a casa do dr. Waldomiro na qual era disputada veladamente pelos maridos das damas da sociedade. Mas nunca eles conseguiram tal façanha pela maneira discreta com que ela os atendia, sem dar a menor oportunidade para que eles conseguissem seus intentos. Adriano continuava na cadeira de rodas, dando seguimento ao intensivo tratamento fisioterápico a que se submetera. Cleyde aceitara essa situação, e a noite de núpcias não passou de conversas e carinhos à maneira platônica sem, contudo, chegar ao ato final. Entrementes, ela não deixou de externar sua latente feminilidade, embora houvesse ambigüidade na sua libido e nos seus sentimentos. Na verdade, ela gostou da maneira como Adriano a conduziu, de modo que a noite de núpcias foi mais aprazível do que ele e ela esperavam. Durante o dia, Cleyde dividia seu tempo entre o apartamento que moravam e o do capitão Viriato, no qual ficara Josina temporariamente; depois ela passaria a morar com eles conforme a vontade de Cleyde. Adriano aproveitava a ausência de Cleyde para tratar de seus negócios escusos com o sr. X . Ele não queria que ela suspeitasse de suas relações com o mundo da contravenção, embora esta fosse tolerada por toda sociedade e já se tornara banal para o povo, que também usufruía uma ínfima parcela em dinheiro do montante que enriquecia os banqueiros. Em um destas ocasiões, o sr. X prestava contas. - Chefe! Tudo foi feito como o sr. planejou – disse ele, orgulhoso de si. – O velhaco já está comendo raiz de capim e seus comparsas já estão do nosso lado. Tudo vai bem... -

Quero agora que me faça outro serviço – disse Adriano, sussurrando com se estivesse sendo ouvido por outra pessoa, embora se encontrassem sós – com todo o cuidado possível para não levantar suspeitas.

-

É só dizer, dr. Adriano! – disse solícito o sr. X.

-

Quero que mande um dos seus homens seguir os passos de minha mulher... Sabe, minha confiança nas mulheres tem restrições, embora confie nos propósitos de minha mulher.

-

É pra hoje mesmo senhor! Isso faz parte da nossa especialidade. – disse o sr. X com um gesto de obediência.


-

Bem, por hoje é só! – disse Adriano com um gesto autoritário. O sr. X despediu-se com um salamaleque servil, como um gesto de obediência e fidelidade. Há muitos anos ele fora colocado nos quadros da polícia pela ação política de Adriano. Além disso, seu patrimônio crescia com a cobertura policial que ele dava aos negócios do patrão. O sistema já estava viciado, envolvendo todo tipo de autoridade, com a impunidade garantindo a desenvoltura dos poderosos. Já dentro do seu carro, o sr. X não perdeu tempo. Imediatamente cumpriu a ordem da Adriano, encarregando um dos seus homens para vigiar todos os passos de Cleyde. Nesse mesmo dia começou a vigilância, sem ela perceber que estava sendo seguida no táxi que a transportava – ela não usava o carro que Adriano lhe dera de presente, porque tinha medo de dirigir, embora já tivesse sido habilitada para isso. – O primeiro comunicado do sr. X para Adriano, deixou-o tranqüilo. Os outros também. O tempo passava sem que a vigilância relaxasse até que certo dia o sr. X foi visto por Cleyde, saindo de um carro que ficava estacionado um pouco depois da entrada do edifício no qual havia morado. Agora ela estava certa que se tratava do mesmo homem que vira no jornal, isto é, era de fato o delegado Toquinho. Mas não ligou esse fato com a vigilância feita pôr ele e ficou despreocupada porque não era a primeira vez que via esse mesmo homem nas imediações do prédio. O delegado Toquinho, de fato, a vigiava há muito tempo desde que Josefa era viva a qual o tratava por filho e Cleyde por sobrinha. Josefa fora companheira de profissão da mãe de Cleyde, quando esta ainda era criança. Por isso, o desvelo velado mas interesseiro de Josefa por ela e as conseqüências funestas que esta sofreu. A suposta filiação entre Toquinho e Josefa parecia evidente, mas não havia provas. O delegado Toquinho, vendo que era observado por Cleyde da janela do apartamento, procurou disfarçar-se, enterrando o chapéu surrado na cabeça. “Não vejo a hora de deixar esta profissão e me dedicar exclusivamente ao meu negócio e à minha mulher”, falou consigo (Toquinho já vivia amasiado com Mionete que cuidava do seu negócio, enquanto ele cumpria suas obrigações na Delegacia Central), “e para isso já dei sumiço a todas as provas desses crimes para não deixar o nome da mãezinha – que Deus a tenha! – e o meu em maus lençóis, inclusive o da morte do capitão Viriato. Quem mandou ele se meter no negócio do Adriano?!” Depois que o delegado deixou o carro, o vigilante, que já estava cansado de tanto ficar na mesma posição, adormeceu. Cleyde tornou a olhar para baixo e viu o mesmo carro continuar estacionado. Desconfiou, portanto, que estava sendo vigiada. Adriano fizera a tal prótese com sucesso e já estava completamente restabelecido da cirurgia, embora continuasse na cadeira de rodas, dirigindo seu império da contravenção. Cleyde voltou para casa. Já sabia o que a esperava... Há várias noites que Adriano incansavelmente a levava para a cama. A cópula dos dois era a coisa mais desajeitada que se poderia imaginar, em se tratando da arte que se emprega nas preliminares do sexo. O pênis de Adriano, sempre ereto, não tufava; era uma pelanca sustentada por duas hastes plásticas. Todo o esforço que fazia para ela chegar ao orgasmo era em vão. E ele mesmo não conseguia isso devido a paraplexia que inibiu seus membros inferiores. Ele só tinha um consolo: admirar o belo corpo da Cleyde que cada dia o fascinava mais. Todavia, essas práticas infrutíferas começaram a cansar e aborrecer Cleyde que nada sentia com o membro flácido e sem vida do marido. Em vista disto, ficava a maior parte do tempo no apartamento do finado capitão Viriato. Nessa noite, quando voltou, a rotina continuou a mesma. Foi dormir. Teve um sono agitado pela incompleteza da ridícula cópula. Adriano compreendia a frustração da Cleyde, e que a causa era ele e não ela. Para compensar isso ele lhe dava presentes caros. Prometera-lhe também uma viagem ao exterior, logo que pudesse


se livrar de alguns compromissos. Ela se alegrou com essa promessa e já contava os dias para o início da viagem. -

Adriano! Já providenciou meu passaporte? – perguntou Cleyde logo depois do café.

-

Está aqui, amor! Esta sua fotografia me inspirou a fazer um quadro por um pintor famoso. Quero viver lá dentro dele quando você não estiver aqui.

-

Ora, deixe de bobagem! Não mereço tanto! – disse Cleyde com modéstia.

-

É verdade! Gosto de entrar no mundo fantástico da pintura e ver o que tem lá dentro.

-

Mas como?! Entrar em um quadro? Aquilo é só tinta! Já viu os quadros do capitão Viriato? Ele passava horas olhando para eles...

-

Não fale nele! Tenho ciúme, mesmo com ele morto. Por falar nisso, quando vai deixar de vez aquele apartamento?

-

Não sei!... – disse Cleyde, indecisa – vou tratar desse caso com a Josina.

-

Traga-a pra cá, já que você gosta do serviço dela. Logo mais algum parente do capitão vai reclamar a posse do apartamento...

- Desculpe interromper, dr. Adriano! – uma serviçal havia adentrado na sala de chá – um doutor está no telefone. “Doutor coisa nenhuma! Não sei por que esse idiota está me ligando agora”, pensou Adriano, movendo a cadeira de rodas, para fora da sala. “Fala!” Do outro lado da linha: “Doutor! sua esposa continua na mesma rotina. É daí pra lá e de lá pra aí. Não acha que deveria suspender?...” Adriano interrompeu: “Nada disso! Não acho nada! Mande o preguiçoso do seu homem continuar vigiando! E só liga quando tiver uma novidade!” Adriano bateu o telefone na cara do delegado Toquinho que se irritou com a grosseria do seu benfeitor. “Tomara que ela te meta um chifre, desgraçado! Não vai durar muito! Conheço as mulheres melhor que tu. Esse cretino!” -

Amor! Vou receber a visita do Comendador Nunes, gostaria que o conhecesse – disse Adriano, já outra vez na sala de chá.

-

Hoje, não! Vou ao apartamento ver se está tudo arrumado. A Josina está adoentada. – Cleyde deu um beijo na testa de Adriano e foi arrumar-se.

Não demorou muito chegou o Comendador. Para não encontrá-lo, ela desceu pelo elevador de serviço. Algumas empregadas domésticas cochicharam entre si. Uma delas disse: “Essa aí foi empregada igual a gente; agora olha só a pose dela!” A outra: “Cuidado! Se o doutor souber que falaste isso, manda te matar. Aquela outra ficou doida e está no hospício.” A primeira disse: “Mesmo assim eu queria ele pra mim só pra ganhar no bicho todo dia.” Cleyde ouviu um pouco a conversa e sorriu. As mulheres perceberam e saíram do elevador no andar seguinte. Cleyde pensou consigo: “Eu queria ser elas... Prefiro ser doméstica... Vou ter que acabar com isso... Vou fugir... Ele não vai me encontrar... Mas que doidice! Ele me ama, com certeza! Se fosse a Carlinha não estaria se preocupando com isso! Ela que sabia viver! Só era fraca da cabeça! Que coisa triste!” Cleyde saiu do elevador e depois cruzou a porta do edifício. O mesmo carro que a seguia estava estacionado logo adiante. Um motorista sonolento dormia ao volante. Cleyde resolveu ir a pé. No quarto do apartamento do capitão Viriato, Cleyde olhou para o criado-mudo. Lembrou-se da correspondência. Puxou a gaveta e retirou o envelope. Abriu-o. Nesse momento, Josina a chamou: “D. Cleyde! Tem uma visita pra senhora!” Cleyde colocou o envelope dentro da blusa. Saiu do quarto e foi


para a sala. Seu coração deu um salto. Era a Zoraia. Olharam-se por um longo tempo. Zoraia baixou a cabeça. Josina voltou e disse que ia comprar alguma coisa no supermercado. Retirou-se, deixando-as sós. - Lembrei-me daquela nossa brincadeira... a aposta do beijo... – disse Zoraia, olhando para Cleyde, com os seios arfando. -

Faz muito tempo! – comentou Cleyde, um pouco desajeitada.

-

Tem banheira aqui? – perguntou Zoraia, agitando-se – Ambas olharam para o banheiro. Zoraia tomou os braços de Cleyde que a seguiu como um autômato. Entraram. A banheira estava funcionando, exalando vapores de eucalipto.

Zoraia tomou a iniciativa. Despia-se rapidamente com uma das mãos, enquanto a outra fazia a mesma coisa com a roupa de Cleyde. Os belos seios de Cleyde apareceram intumescidos de luxúria. O mamilo viçoso e redondo estava rodeado por uma sombra róseo-escura, e logo começou a ser sugado avidamente pela boca de Zoraia, que não parava de se desfazer do resto das roupas de baixo. Já totalmente despidas, entraram às pressas na banheira fumegante. Seus lábios e suas mãos trabalhavam freneticamente, e seus corpos se alternavam, ora de lado a lado, ora se invertendo da cabeça aos pés à fúria do desejo reprimido de há muito tempo, consumindo-se mutuamente com beijos recíprocos e mordidas quase sangrentas. A língua lesta de Zoraia intumescia cada fibra do corpo de Cleyde que extravasava em gritos e grunhidos infernais o inefável prazer da luxúria sáfica despertada pela companheira desvairada. Parecia que seus corpos se fundiam numa só pessoa. Porém, em um desses movimentos, Zoraia assumiu a posição de macho. Seus olhos ficaram vidrados e seu rosto enrubescido; Cleyde viu um pênis pequeno, ereto, e rubicundo em posição de penetrá-la; um pavor repentino fê-la saltar da banheira e correr para a sala. Zoraia acompanhou-a, e gritou suplicante: “Vem cá, meu amor! Não me deixa!..” O impulso que ela deu ao correr, fê-la escorregar no piso encerado. A vidraça da janela partiu-se, e Cleyde se projetou no espaço. Num átimo, ela ainda sentiu a carícia feminina de Zoraia... Junto ao corpo, no chão, apareceu um envelope aberto com uma carta fazendo-lhe um pedido de casamento do capitão Viriato. Josina cobriu-a com um lençol branco.


Sobre o Autor Breve Perfil de Leopoldino Ferreira Físico e escritor. Tem cinco livros publicados. Mestre em Ciências pela COPPE-UFRJ. Doutor e Livre Docente em Física pela UFPA. Foi estagiário no Instituto de Pesquisa Nuclear de Jülch, Alemanha. Orientador de teses de mestrado na UFPA. Controlador de Vôo. Coluna de divulgação científica, Físicos e Filósofos, no jornal O Liberal em Belém. Artigos em jornais. Veja também em ´busca´do Google assim: “leopoldino dos santos ferreira.” www.literatura-leo.com

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O autor do livro Sedução Fatal mereceu uma resenha no site polonês Wyborcza como se vê na cópia abaaixo.

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brutalistyczny Realismo Domosławski Arthur, Brasil 2005/03/21, última actualização 2005/03/21 00:00

Já famoso em polonês em todo o mundo do último livro de Gabriel Garcia Márquez? A única coisa sobre a minha dziwkach triste?. No entanto, uma nova geração de escritores latinoamericanos se revoltaram contra seus mestres. Eles preferem escrever sobre os dramas sociais, e não no estilo do realismo mágico, que nos anos 60 e 70criaram uma moda para a literatura latino-americana no mundo VEJA TAMBÉM

Estreia da nova Márquez

Ele diz, "Gazeta" prof. Hermenegildo Bastos, um historiador da literatura na Universidade de Brasília - América Latina contemporânea é fortemente marcada por aquilo que é arcaica, atrasada e totalmente niewspółczesne. literatura de hoje corresponde à região de choque, que faz com que a presença em nossa realidade de fenômenos oriundos do século XVII, tal como existe no Brasil trabalham półniewolnicza. Descrevendo este tipo de fenômeno social, através da fantasia do realismo mágico é simplesmente impossível. Praktikomania Atak Super Cen w Praktikerze. Raty 20 x 0% na wybrane produkty! katalog-praktiker.pl

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Nightmare favelas Uma nova geração de escritores quero descrever dramas angustiantes do continente social. Paulo Lins, um proeminente escritor brasileiro da nova geração, que ficou famoso no mundo graças ao filme baseado em seu livro "Cidade de Deus", ele diz francamente que este romance põe em causa a política interna brasileira, uma vez que apareceu uma questão de favelas e afins pesadelo. " - Se no Brasil - diz Lins - as pessoas ainda se queixam de fome, crime, policiais corruptos, o analfabetismo, é o resultado da política ainda. Basta perceber que nosso país sofreu 300 anos de colonização e da escravidão de 400 anos, esta cem anos do domínio americano e as duas ditaduras. Times pseudodemokracji Literatura criado por escritores de brasileiro nascido por volta de 1960, às vezes chamada "geração de 90" é uma acusação furiosa da realidade, que se diz Lins. Sam Lins, e Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato, Fernando Bonassi, Marcelo Mirisola, Nelson de Oliveira escreve essencialmente sobre a realidade desesperadora da periferia das grandes cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte - pobreza, violência, guerras das drogas, gangues, prostituição infantil, e também sobre a corrupção do poder, em uma palavra - sobre a devastação social e cultural da região. Para os escritores mais velhos juntar os seus quarenta anos. Leopoldino dos Santos Ferreira, escritor da geração mais velha, que só fez sua estréia com a idade de aposentadoria agora como romancista, narra a história de Cleyde, produtos de limpeza doméstica, que desce para a rua, onde ele se entrega a alguns centavos, torna-se envolvido no tráfico de drogas. Ferreira admite que seu romance é, por definição envolvidos crítica social, expondo a discriminação contra pessoas pobres, sem oportunidades e perspectivas. - Vivemos em um mundo pseudodemokracji - diz Ferreira - onde comprar congressistas, em que a corrupção consome todos os estratos sociais. Quanto ao desenvolvimento social, e muitas práticas, estamos no século XVIII.Discriminação, que se reúne Cleyde, é o resultado de seu baixo estatuto social. Não perder, porque sua personalidade é "defeituoso", mas porque não há "armas" para lutar no mundo moderno - o conhecimento, acesso à educação, sem chance de ascensão na sociedade cruelmente competitiva e discriminatória, organizado pelos ricos pobres.

Mito Márquez Realismo Mágico principalmente sob o signo de Gabriel Garcia Marquez criou um mito na América Latina como um nostálgico terras, exóticas e tropicais, onde, embora haja muitas atrocidades, mas também muitas belezas "milagrosa" e magia. Uma nova geração de escritores do Brasil, e ainda mais de todos os países da América Espanhola - geração de escritores como Daniel Sada do México, Jaime Bayly do Peru, Santiago Gamboa, da Colômbia, Pedro Juan Gutiérrez de Cuba - impiedosamente erradicado esse mito. A magia ea maravilha da literatura latino-americana, quase nada resta, e envolto em uma linguagem de conto de fadas de crueldade ganhou uma nova - a expressão - um bruto, brutal, muitas vezes arcywulgarną. nova Carta povoado: viciados, assassinos, pervertidos, suicídio, mendigos, prostitutas e żigolacy, torturadores e cafetões. Os autores apresentam um mundo (cf. questão pendente da "World Literature" 9-10/2004) podre, sujo, desesperada e dolorosamente autêntico. Como a tarefa de um escritor é - como o herói confessa, "Dirty Havana Trilogy, de Pedro Juan Gutierrez -" merda rozgrzebywanie ", a arte só tem sentido quando se acorda pesadelos ea raiva, provocando, provocante, indignado. Em tempos desagradável - como o narrador conta a história - você não pode escrever com delicadeza, sutileza. A escrita tem a irritar ", outros a força para a merda do cheiro." - Só a arte de rebelde, irritado, arrogante, violento e brutal, pode nos mostrar o outro lado do mundo nunca vai ver ou melhor, não quero ver, de modo a não perturbar a paz de espírito. Apenas uma língua vulgar Estas palavras podem ser considerados quase como um credo de uma nova geração de escritores latinos.


- Nova literatura latino-americana - diz o Prof. Bartos - hoje é uma expressão de um voto crítico sobre a exclusão, muitas vezes a votação do mesmo outs. Por exemplo, Paulo Lins passou a maior parte de sua vida em uma das favelas do Rio de Janeiro. Brutal e linguagem violenta é uma parte importante dessa crítica. O que, aliás, outra língua, podemos falar do escândalo social que vemos todos os dias na rua? Eu prefiro ficar nua do que usar os estereótipos | CONCURSO - Renovação Global REKLAMA PUBLICIDADE

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