A cultura musical da Zona Portuária carioca nos embalos do G.R.B.C. Fala Meu Louro

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

A cultura musical da Zona Portuária carioca nos embalos do G.R.B.C. Fala Meu Louro

Raphael Sousa dos Santos

Rio de Janeiro, RJ 2013


Raphael Sousa dos Santos

A cultura musical da Zona Portuária carioca nos embalos do G.R.B.C. Fala Meu Louro

Monografia apresentada ao curso Projeto Experimental em Jornalismo como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em Comunicação Social/ Jornalismo.

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RESUMO

De todas as maneiras que já me envolvi com a cultura da região portuária carioca, esta deve ter sido a mais desafiadora. Da composição de um samba à descoberta da uma fachada “nova” construída antes do nascimento de meus bisavós, nada se assemelha ao percurso histórico do Fala Meu Louro que tracei nas páginas a seguir. A quadra do bloco, na Rua Waldemar Dutra, 17, fez parte de alguns momentos de minha infância e adolescência, mas nenhum deles ligados ao samba, muito menos à agremiação. O local era alugado para festividades de famílias locais. No ano passado, quando alguns amigos resolveram assumir a diretoria do Louro e colocá-lo na rua, resolvi me debruçar na história do bloco que emociona tantos conhecidos que vivem há mais de 30 anos na região. E entendi o porquê da euforia. A cada depoimento me senti um missionário com um único objetivo: tornar acessível a trajetória de um dos bloco mais antigos da história do carnaval carioca. A seguir, apresento o resultado de quase um ano de estudo sobre essa pedra preciosa da cultura brasileira, que ainda merece ser lapidada por muitas outras mãos. Uma história que começa a ganhar força no encontro de Sinhô, o Rei do Samba, com os atletas do time Atília Futebol Clube, formado no Morro do Pinto, até hoje existente na Zona Portuária. Localidade que por sinal foi berço do pianista e compositor Ernesto Nazareth anos antes e até hoje nunca recebeu reconhecimento à altura de seu valor histórico. Oficialmente, o G.R.B.C. Fala Meu Louro existe desde 1938. Para manter a agremiação e semear divertidos carnavais pela região portuária, o Louro filiou-se à Liga de Blocos da Zona Portuária e transformou diversas vezes seu formato de banda e alas. Antes desse período, a banda que originou no bloco levava o mesmo nome do time do Morro do Pinto. As transformações da cidade desde o Brasil Império refletiram diretamente na região estudada, tanto geograficamente como socialmente. Esses reflexos são analisados no capítulo “O jeitinho luso-afro-carioca”. Em seguida, cabe abordar as peculiaridades da agremiação e sua fase áurea durante o século 19. De acordo com todos os entrevistados para esta pesquisa, na década de 1970 o Louro se destacava em todas as batalhas de confetes e banhos de mar realizados na Praia do Flamengo. Contam que nesta época o bloco chegou a ter sócios que contribuíam financeiramente para manter a estrutura e fazer o carnaval, conforme relatado em “O Louro voa alto”. Na década seguinte, o Fala Meu Louro fechou as portas por diversos fatores. Alguns são contados no capítulo “Acertos com a história”. Foram trinta anos silenciados, “mas o papagaio não se intimida”, como diz o samba. E em 2013 a ave de bico azul voltou às ruas da região.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------------

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O JEITINHO LUSO-AFRO-CARIOCA --------------------------------------------

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O LOURO VOA ALTO ---------------------------------------------------------------

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ACERTOS COM A HISTÓRIA -----------------------------------------------------

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ---------------------------------------------------------

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ANEXOS --------------------------------------------------------------------------------

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ENTREVISTA --------------------------------------------------------------------------

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -----------------------------------------------

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INTRODUÇÃO

Se atualmente temos a sensação de que as fronteiras culturais estão menores e o fluxo mundial de informação é cada vez mais rápido, é bom saber que nem sempre foi assim. Durante muito tempo as cidades se desenvolveram em torno das proximidades portuárias, já que o mar era o único canal de acesso ao exterior. “O porto carioca era o terceiro maior do continente americano em volume de comércio, no início do século XX1", além de operar como porta de entrada de diversos imigrantes no país. “O levantamento industrial realizado em 1907 pelo Centro Industrial do Brasil afirma a supremacia do Distrito Federal no panorama deste setor. A cidade do Rio de Janeiro detinha 33% da produção nacional, contra 16% de São Paulo e 15% do Rio Grande do Sul. Concentrava 56 % da produção dos moinhos de trigo, 55% das indústrias de vestuário, 53% do setor de construção naval, 41% de bebidas (sobretudo cerveja) e 25% da produção de tecidos. Além disso, contava com a indústria mais diversificada do país, abrigando 78 dos 98 grupos de produtos que constavam do censo, sendo que 20 com exclusividade.” 2

Os anos de ouro da primeira fase do samba carioca germinaram diretamente no solo da região portuária. Mais precisamente no trecho apelidado “por Heitor dos Prazeres de ‘Pequena África’, que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, tendo como capital a Praça Onze” 3. Entre as principais manifestações populares destacaram-se os cordões, ranchos – de caráter mais disciplinado – e os blocos de sujos – que cresceram à margem dos foliões das camadas médias e altas da sociedade, como o próprio nome denuncia. Além das histórias perdidas no tempo ou narradas descontinuamente, a Zona Portuária comportou uma série de episódios que, registrados ou não, influenciaram os rumos da canção popular brasileira. Um deles é a parceria entre a banda do Bloco Carnavalesco Fala Meu Louro, existente desde a primeira década do século 20, e José Barbosa da Silva (Sinhô), um dos líderes dos encontros nos terreiros da Cidade Nova, de onde o samba criou sua primeira linguagem coletiva. Se não fosse a briga que o sambista arrumou com sua turma da Cidade Nova, talvez esse encontro com os músicos do Morro 1

LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer. Dos Trapiches ao Porto. 2ªed. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio, 2006, p.94. 2 Id. Ibid., p.96. 3 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. 2ª ed. 1995. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, p. 93.

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do Pinto jamais tivesse ocorrido. No entanto, a aproximação resultou em bons frutos a partir da emblemática canção “Pé de Anjo”, que entrou para a história como a pioneira marchinha satírica a ser trilha do carnaval de rua. Posteriormente, o ritmo carioca passou por uma série de adaptações por seus diversos seguidores até ser consagrado na cultura brasileira: “Este estilo, que desceu o morro com compositores como Ismael Silva, Newton bastos, Armando Marçal e Bide, ultrapassou os limites das agremiações carnavalescas e cristalizou-se como a mais importante contribuição das camadas populares urbanas do Rio de Janeiro à história da música. De sua base rítmica e melódica desenvolveu-se toda uma linha da música popular brasileira, de Noel Rosa e Ari Barroso a Chico Buarque de Holanda”.4

Quando o assunto é escola de samba, não podemos deixar de citar a valorosa Vizinha Faladeira. Fundada no início da década de 30, na Zona Portuária, a agremiação representou a região durante os primeiros concursos oficiais promovidos pelo governo em parceria com jornais da época. Suas contribuições ao carnaval de passarela são indispensáveis a qualquer estudo sobre a história dos desfiles apoteóticos, que até hoje alimentam a imagem de exportação cultural do Brasil por meio de espetáculos produzidos em cima de enredos. Foi a Vizinha Faladeira a primeira escola a apontar como “impossível estabelecer critérios precisos para julgar versos de improviso e sugerir que o samba se atrelasse ao enredo” 5, por exemplo. Antes, os sambas apresentados nos desfiles se baseavam no partido-alto, onde apenas o refrão é decorado. E ainda, os versos poderiam não respeitar o tema proposto pelas alas e alegorias, tornando confusa a compreensão dos espectadores. O comportamento questionador da direção da Vizinha Faladeira resultou em diversas polêmicas durante seu período entre as líderes. E para surpresa de seus representantes, em 1938 a escola foi desclassificada do carnaval por trazer um tema internacional no enredo (Branca de Neve e os Sete Anões). A exclusividade de temas patrióticos era exigida pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, que fez com que os sambistas se organizassem para que o restante da sociedade aceitasse melhor a festa popular. O episódio gerou imediato declínio da Vizinha Faladeira no carnaval e dura até

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MUSSA, Alberto, SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp.15 e 14. 5 Id. Ibid., p.18

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hoje. Diversos grupos de moradores e trabalhadores portuários tentaram reestruturar a agremiação, mas nunca conseguiram restabelecê-la ao lado das pioneiras. Por se inserir numa conjuntura menos complexa, o Fala Meu Louro ganhou uma projeção que se sustentou aproximadamente cinquenta anos. Milhares de foliões dos bairros Santo Cristo, Saúde e Gamboa lotavam as ruas do Centro em nome do papagaio tagarela. O segundo apogeu do bloco foi durante a década de 70, quando se tornou recorrente a visita de grandes nomes do samba em seus ensaios na Praça Santo Cristo. De acordo com a ex-presidente da época, Eunice, o Louro foi palco de apresentações de músicos como Dicró, Zeca Pagodinho e Almir Guineto. Neste mesmo período, o bloco colecionou alguns dos principais títulos de desfile, que eram disputados páreo a páreo com “Cacique de Ramos” e “Bafo da Onça”, por exemplo. É de suma importância reviver a trajetória do papagaio de bico azul da Zona Portuária para desvelar alguns episódios desconhecidos na historiografia musical da cidade. É também oportuno evidenciar o legado dos blocos de rua da região por meio da trajetória do Fala Meu Louro, já que a agremiação retornou as atividades após pouco mais de duas décadas parado. No carnaval de 2013, o Louro voltou às ruas da região portuária graças a uma comissão formada por moradores do Morro do Pinto, herdeiros de antigos responsáveis pelo bloco. A memória que se perdia foi o principal incentivo para a ação. E ainda, a recente retomada de atenções para a região portuária, impulsionada pelo projeto Porto Maravilha, representa um momento fértil para o resgate desse pedacinho de história que intervém anualmente em nosso instinto folião.

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O jeitinho Luso-afro-carioca A vinda de D. João VI ao Brasil em 1808, acompanhado de sua corte com 15 mil pessoas, foi suficiente para desequilibrar a estrutura social e econômica da cidade do Rio de Janeiro durante o século 19. “Em menos de duas décadas, sua população duplicou, alcançando 100.000 habitantes, aproximadamente, em 1822, e 135.000, em 1840. Entre 1808 e 1816, foram construídas cerca de 600 casas no perímetro da cidade, onde os sobrados começaram a suplantar as toscas casas térreas dos tempos da colônia, e 150 nos arredores - chácaras, em sua maioria, para a residência de verão dos senhores e sua numerosa escravaria domestica.” 6

O aumento populacional também contribuiu para que as áreas do Centro e da Zona Portuária fossem avaliadas como nobres, já que formavam a região urbana da cidade com o maior número de colonos residindo. Nesta fase, os novos habitantes se expandiram para a área que ficou conhecida por Cidade Nova, assim nomeada para se diferir à região vizinha, hoje conhecida como Centro do Rio Antigo. O novo bairro se estendia do Campo de Santana ao início de São Cristóvão, que já fazia parte da “freguesia do Engenho Velho, onde antigos sítios e fazendas cederam lugar a moradias aristocráticas, sobretudo na área compreendida entre a Quinta da boa Vista e a ponta do Caju.” 7 A proibição do tráfico negreiro, em 1845, foi outro fator que alterou a configuração social da região portuária. Mais especificamente no bairro da Gamboa, que passou a receber os escravos no Cais do Valongo, por ser um local mais discreto da mira das autoridades. Em pouco tempo, o bairro tornou-se populoso e insalubre, composto por armazéns e trapiches. Entre a Praça Mauá e a Rua da Quitanda, a orla passou a ser ocupada pelo fluxo cafeeiro, que logo tornou-se a atividade mais lucrativa da colônia. Com o crescimento do setor, a utilização de mão de obra escrava era cada vez mais intensificada. Por outro lado, “com a proibição do tráfico, aumentaram os preços dos escravos e cada vez menos pessoas podiam comprá-los.” 8

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BENCHIMOL, Jayme Larry. Pereira Passos - um Haussmann tropical. 1ª ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1992, p.25. 7 Id. Ibid, p.26. 8 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de e FILHO, Walter Fraga. Uma história do negro no Brasil. 1ªed. Bahia: Centro de Estudos Afro-Orientais, 2006, p.174.

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Em 1849 já havia 10.732 negros libertos nas freguesias urbanas, deixando apreensivos os administradores da corte, temerosos, como fora a administração colonial, de um levante negro na cidade que ultrapassasse o desafio permanente com as fugas e com os quilombos. Temores que haviam crescido com a revolta de iorubás e malês em Salvador em 1835, provocando duras medidas municipais contra os negros dentro do perímetro urbano, que repercutiam nas atitudes do poder imperial e de sua polícia com os escravos em todo país.9

Após a Lei Áurea, os negros passaram a povoar diversas freguesias da cidade, inclusive as já citadas Santana e Santa Rita por serem as mais baratas e estarem localizadas próximas ao cais do porto, onde podiam trabalhar como estivadores. Muitos recém-libertos da Bahia também viriam reorganizar suas vidas na capital, fugindo das práticas repreensivas que havia em Salvador. E ainda, a decadência do café no Vale do Paraíba proporcionou a chegada de mais trabalhadores para as docas, que absorviam a mão de obra barata disponível na cidade. As transformações urbanas do século 19 trouxeram as primeiras características de uma cidade moderna ao Rio de Janeiro. A Zona Portuária foi a região de maior interferência a partir da implementação dos bondes, da reestruturação do porto carioca e, em seguida, das reformas do prefeito Pereira Passos. Desde lá, as fronteiras sociais eram delineadas pela geografia da cidade, levando em consideração o potencial econômico de seus habitantes. Demarcações que se estendem aos dias atuais. “No final do século XIX, a cidade, fora do centro comercial, está dividida em áreas aristocráticas e populares. Copacabana e Botafogo já se configuram como bairro de elite e os subúrbios, por exemplo, Irajá e Inhaúma, como uma alternativa para as camadas menos favorecidas, muito embora a maior parte dos trabalhadores continuasse a residir no coração da cidade, amontoada em cortiços, casas de cômodos ou no fundo do quintal das pequenas fábricas e oficinas onde trabalham.” 10

A capital da República passava por grandes transformações. Nesta época, o carnaval já era marcado pelos festejos populares proporcionados por diversos ranchos e agremiações espalhados pela Zona Central do Rio de Janeiro. Nas primeiras linhas da

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NOGUEIRA, Nilcemar, THEODORO, Helena, JUPIARA Aloy, VALENÇA, Rachel. Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro. 1ª ed. Produção do Centro Cultural Cartola. Rio de Janeiro: Iphan/MinC, 2006, p. 15. 10 ROCHA, Oswaldo Porto. A Era das demolições - cidade do Rio de Janeiro 1870-1920. 2ª ed. 1995. Coleção Biblioteca Carioca, pp, 41 e 42.

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crônica “Os cordões”, do livro “A alma encantadora das ruas”, o escritor João do Rio descreve a sensação de estar num desfile de cordões já no início do século 20.

Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipo que berravam pilhérias. A pleitora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que o Largo de S. Francisco à Rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinquenta mil pessoas.11

Os primeiros anos do século ficaram marcados pelo governo de Rodrigues Alves, que nomeou o engenheiro Pereira Passos ao cargo de prefeito do Distrito Federal. Ele "tomou posse em 3 de janeiro de 1903, antes mesmo da publicação do decreto de sua nomeação. O projeto político-administrativo de Rodrigues Alves tinha dois pontos chaves: a remodelação da capital e a política de imigração.”

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É importante ressaltar as

ações políticas da época para que se perceba o distanciamento entre os sambistas e o governo, já que, nesta fase, as comunidades praticantes do samba/ maxixe foram as mais reprimidas pelo poder público. Por outro lado, era favorável ao governo que as principais modificações ocorressem no entorno da região portuária, pois era preciso modernizar as instalações e operações do setor, ainda incompatíveis com os moldes europeus. No projeto de construção da Av. Central (atual Av. Rio Branco) a festa do carnaval foi mencionada apenas uma vez. Mesmo assim, como um dos argumentos direcionados à aristocracia da época: "Imagine-se por um momento o que serão, quando edificada a nova rua, as grandes festas de carnaval e outras, que tão grandiosamente se fazem nesta capital, quando os ricos préstitos percorrerem aquela extensão e desembocarem na vasta praça, em vez de andarem acanhadamente pelas ruas estreitas e tortuosas que hoje temos." 13

Para esta construção, inspirada no modelo francês, foram derrubados alguns morros vizinhos, como o Morro de Santo Antônio e o Morro do Castelo, que abrigavam antigos escravos, além de retirantes de regiões do Norte e Nordeste do Brasil. Esta ação 11

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1995, p. 89. ROCHA, op.cit., p. 58. 13 BENCHIMOL, op.cit., p.199. 12

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era determinante para que o Centro da capital aludisse às largas avenidas francesas. Parte desta população exilada tratou de se instalar na região da Cidade Nova, próximo à Praça Onze e ao Estácio, onde já havia alguns casarões e cortiços de famílias baianas. Este foi o cenário em que os primeiros sambas-maxixes surgiram. Nestas comunidades eram marcantes as figuras das tias baianas. “Uma delas foi a Tia Ciata, que proporcionou a integração de músicos durante as festas que oferecia em sua casa14”. A musicalidade herdada do batuque do candomblé africano, praticado nesta região, se confundiu com outros ritmos e contribuiu para o surgimento e amadurecimento do maxixe: “(...) essa nova dança, marcada pelas tradições corporais do negro e por sua sensualidade, passa a ocupar as fantasias dos homens das classes médias, e consequentemente a atrair a atenção da censura de costumes, fazendo parte de um tipo de divertimento 15 urbano moderno que transcorre fora do âmbito da família.”

Assim também nasceram os primeiros sambas de terreiro. Diretamente do território das tias baianas para as gafieiras e bares da Zona Central. José Barbosa da Silva, mais conhecido como Sinhô, era um dos músicos que liderava os encontros de criação musical coletiva, numa roda, com direito a todo tipo de improviso. Alguns historiadores relatam que o samba “Pelo Telefone”, reconhecidamente o primeiro a ter registro (em novembro de 1916 por Donga), foi criado nesta montagem espontânea, em grupo. No entanto, a polêmica nunca ficou esclarecida. Sinhô é um dos personagens centrais desta pesquisa. Mas antes de mencionar sua importância, vale analisar a formação sociocultural da cidade durante primeira metade do século 20 Uma das obras urbanas herdadas pela geração de Sinhô, por exemplo, foi o aterramento do trecho da pedreira de São Diogo (atual morro do King Kong) até o Cais da Imperatriz (atual rua Barão de Tefé) para a construção da primeira estação ferroviária do Centro da cidade.

"Uma vez construído o cais e aterrado todo aquele espaço triangular formado pelo Saco de São Diogo, seria instalada ali a E. F. D. Pedro II. Um ramal ferroviário acompanharia a margem esquerda do canal até o cais e prosseguiria sobre uma ponte de 14 15

MOURA, op.cit., p.51. MOURA, op.cit., p.65.

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mais de 500m de extensão, até encontrar fundo suficiente para a atracação de navios de grande calado. O objetivo deste ramal e do novo cais era evitar os prejuízos financeiros decorrentes do congestionamento das ruas estreitas do centro pelo trânsito de mercadorias (incluindo os pesados artefatos metálicos empregados nas obras públicas), entre a estação ferroviária e o porto.” 16

Foi graças a estas e outras obras de abertura de ruas que o Morro do Pinto teve condições de receber seus primeiros moradores. Conforme estudos feitos por Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão, em meados do século 19 a localidade teve seus primeiros investimentos urbanísticos. "O que mais chama a atenção na área de estudo é a rápida e repentina abertura de vias no morro do Pinto, possibilitando sua progressiva ocupação. As plantas de 1852 e 1864 retratam o morro como um verdadeiro vazio, que conta apenas com a antiga Rua de Santa Teresa e a Rua do Pinto (presente somente na de 1864). Já o mapa de 1875 apresenta um quadro totalmente novo: o morro aparece cortado de vias em suas duas vertentes e mesmo na cumeira, verificamos que o Morro do Pinto serviu de palco a dois processos simultâneos, através dos quais foram adquiridas e posteriormente loteadas muitas das chácaras aí existentes" 17

Ao mesmo tempo em que a capital da República se transformava estruturalmente, as agremiações carnavalescas populares nasciam no berço das comunidades remanejadas pelo poder público. O primeiro rancho que se tem notícia, por exemplo, é o Rei de Ouro, de Hilário Jovino, que em 1884 “apresentou-se no Itamaraty – numa evidente manifestação de prestígio – para o presidente Floriano Peixoto.” 18 Ainda na primeira década do século seguinte, o Jornal do Brasil realizou o primeiro concurso de ranchos da história, determinando em regulamento as sociedades organizadas em “abre-alas, comissão de frente, alegorias, mestre-sala e porta-estandarte, mestres de canto, coro feminino, figurantes, corpo coral masculino e orquestra.” 19 Esta formalização dos ranchos era o que os distinguiam dos blocos de sujos, que saiam às ruas sem organização e eram marcados pela presença de muitos negros. A origem destes blocos se perdeu na historiografia brasileira, já que a manifestação não estava entre os interesses da elite carioca, embora nunca tenha sido extinta do carnaval.

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BENCHIMOL, op.cit., p.144. LAMARÃO, op.cit., pp.96 e 97. 18 MUSSA, SIMAS, op.cit., p.11. 19 MUSSA, SIMAS, op.cit., p.12 17

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Portanto, restam-nos principalmente os imprecisos relatos perdurados por mais de um século. Já bastante habitado, o Morro do Pinto tornou-se cenário para o surgimento do time Atília Futebol Clube, que logo ganhou fama em toda a região. Por volta de 1910, os atletas do Atília fundaram uma banda carnavalesca a fim de desfilar pelo bairro do Santo Cristo durante o período carnavalesco. Nesta época - é importante lembrar - esta iniciativa passava longe dos olhos da elite carioca e, principalmente, da imprensa da época. Alguns anos após sua fundação, já se sabia na região que a banda dos atletas era tecnicamente aprimorada, em relação às demais. E foi justamente essa a notícia que aproximou o sambista Sinhô de uma das suas futuras bandas de embalo. José Barbosa da Silva, conhecido nos anos 20 como o Rei do Samba, frequentava muito a antiga Vila Formosa, na Zona Portuária, onde fundou e acompanhou blocos e ranchos. O sambista também era bastante respeitado por seu destaque musical nas festas realizadas em comunidades baianas do bairro do Estácio. Quando o violonista Donga registrou o pioneiro samba “Pelo Telefone” sem mencionar a contribuição de Sinhô à obra, provocou no sambista a maior inspiração para mudar seu estilo de compor, além de uma grande implicância com os bambas dos terreiros baianos. O embate foi suficiente para que Sinhô passasse a frequentar mais o outro lado da Zona Central da cidade, onde moravam os componentes do Atília. Segundo o historiador e musico Nei Lopes, a briga, “que acabou por opor cariocas e baianos e projetar o nome de Sinhô, representou a primeira crise da música brasileira” 20. Nestas circunstâncias, a banda do Atília Futebol Clube acabou sendo escalada para o time de bambas do Rio de Janeiro. A parceria com a malandragem do Rei do Samba tornou a banda dos atletas umas das mais respeitadas durante os encontros de sambistas. A princípio, a fusão resultou no lançamento de duas canções inéditas, determinantes para alavancar a carreira de Sinhô: “Pé de anjo” e “Fala Meu Louro”. Ambas sucesso no carnaval de 1920. A primeira delas ficou reconhecida como a pioneira marchinha carnavalesca ao lado de “Pois não”, de Eduardo Souto. Mérito que também deveria ser dado à banda do Atília, mas acabou abafado, devido à projeção da carreira de Sinhô, com o decorrer dos anos seguintes.

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LOPES, Nei. Quem foi mesmo que renovou o Samba, hein? neilopes.blogger.com.br. 12 de abril, 2012. http://www.neilopes.blogger.com.br/2012_04_01_archive.html

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“Sucesso absoluto em todo o Brasil, no O Pé de anjo Sinhô mais uma vez provocava seus desafetos. A marcha ao que tudo indica era endereçada ao China (Otávio da Rocha Viana), irmão do Pixinguinha, um dos elementos mais visados pelo irrequieto compositor.” 21

A segunda canção trouxe tanta fama aos rapazes do Atília, que acabou sendo o novo nome do grupo. Desta vez, o sambista escolheu satirizar a derrota de Rui Barbosa nas eleições presidenciais daquele ano nos versos da canção “Fala Meu Louro”. “Por isso mesmo o ousado compositor o interpreta graciosamente no seu grande samba, que logo se espalha por todo o Brasil”.22 Daí em diante, a banda do Louro era presença certa nas festas da Penha ao lado de Sinhô. Vale lembrar que, devido ao forte temperamento e vaidade de Sinhô, o Louro, assim como os demais grupos que o acompanhou, jamais teve o devido reconhecimento por parte do sambista ou da crítica, que o perseguia. A informalidade assombrou os rapazes do Atília até os anos 70. Coincidência ou não, situação semelhante aconteceu com a Escola de Samba Vizinha Faladeira, também da região portuária. A agremiação conviveu todos esses anos com ofuscamento histórico após desrespeitar o regulamento nacionalista, sugerido pelos sambistas, durante o Estado Novo de Vargas. O mais irônico é que a escola saiu de cena no mesmo ano em que o Fala Meu Louro foi oficialmente registrado. “Em 1938 o primeiro artigo do regulamento proposto pela União das Escolas de Samba dizia o seguinte. De acordo com a música nacional, as escolas não poderão apresentar os seus enredos no carnaval, por ocasião dos préstitos, com carros alegóricos ou carretas, assim como não serão permitidas histórias internacionais em sonhos ou imaginação (...). Foi este polêmico artigo do regulamento de 1938 que gerou a desclassificação, no carnaval seguinte, da Vizinha Faladeira. A escola desfilou com o enredo ‘Branca de Neve’, baseado no desenho de Walt Disney.” 23

O fato que mais nos interessa é que neste ano o Fala Meu Louro obteve reconhecimento da Polícia Militar e incorporou as iniciais “Grêmio Recreativo Bloco Carnavalesco” ao seu nome. Após a morte de Sinhô, em 1930, não há relatos oficiais

21

ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do samba. Edição ilustrada. Rio de Janeiro, 1968: Civilização Brasileira, p. 60. 22 Id. Ibid., p.40. 23 MUSSA, SIMAS, op.cit., p. 51.

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sobre as atividades da agremiação. Este é o período em que a história do Louro começa a ser remendada exclusivamente pelos relatos e fotografias de seus antigos integrantes. A primeira fase do bloco após seu registro se estendeu até a década de 60. Segundo Waldir Trindade de Aviz, mais conhecido como Waldirzinho, esse período foi marcado pela presença de uma banda de sopro - sem instrumento de percussão -, e o descuido estético e organizacional de seus desfiles. As últimas características renderam aos integrantes do Louro a fama de brigões, como reconhecem muitos dos que acompanharam a transição do bloco nos anos 70. Conta-se que o pessoal do Louro se envolvia em brigas na maioria dos encontros entre blocos. Por episódios semelhantes a esses, “a polícia proibira o pandeiro de tarraxa, mas os choques entre as escolas eram frequentes”24

24

CARNEIRO, Edison. Unidos do Salgueiro, 1953. Correio da Manhã, Minas Gerais, 14 set. 1968. Segundo Caderno, p.4.

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O Louro voa alto As escolas de samba já haviam tomado conta da cena carnavalesca e o samba já era elemento de aproximação popular à política do governo Vargas. Fator este que contribuiu para que os blocos recebessem menos atenção das autoridades e tendessem ao ostracismo cultural. Os quatro anos seguintes ao registro do Fala Meu Louro foram marcados pelas consecutivas vitórias da Portela, graças à dedicação do diretor Paulo da Portela. O sucesso da agremiação de Oswaldo Cruz é relacionado à diversas atuações pioneiras. “A Portela marcou de maneira decisiva a história das escolas de samba. Dentre outras coisas foi a primeira agremiação a desfilar com alegorias, uniformizou a comissão de frente e introduziu a caixa-surda e o apito de bateria. Não bastasse isso, foi a pioneira, através da figura do presidente Natal, da ligação entre as escolas de samba e o jogo do bicho.” 25

De fato, todas as contribuições da Portela, citadas acima, foram incorporadas pelo Fala Meu Louro na década de 70, quando o bloco decidiu alterar o formato musical, tendo sua primeira banda de bateria durante os ensaios. Antes disso, a banda do Louro mantinha o tradicionalismo da sonoridade das bandas de baile de salão. O legado deixado pelos contemporâneos de Sinhô fazia a festa dos foliões pelas ruas da região portuária. No centenário da Independência, o Brasil teve sua primeira experiência com a radiodifusão. Era quase improvável arriscar que, anos mais tarde, a Zona Portuária seria palco de amadurecimento do recente fenômeno. E foi na década de 40, marcada pela febre do rádio, que a música brasileira alcançou as massas pela primeira vez e se singularizou em território nacional. As rádios de maior sucesso tinham suas sedes no centro do Rio. Entre elas, a Radio Nacional, instalada no famoso edifício “A noite”. “O edifício A Noite dá ao Brasil um título muito especial: primeiro país no mundo a ter construído um "arranha-céu" (como eram chamados na época) com mais de 100 metros de altura (102,8 metros para ser exato), inteiramente de concreto armado. Os mais altos edifícios do mundo até então — o Dayton (Estados Unidos), com 71,1 metros, e o Sterling (Canadá), com 77,5 metros — haviam sido construídos em estrutura metálica. O edifício A Noite, chamado na época de "prodígio arquitetônico", 25

MUSSA, SIMAS, op.cit., p.131

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foi construído entre os anos de 1926 e 1928, a partir de um projeto e cálculos de Emílio Baumgart, um autêntico teutobrasileiro, nascido em Blumenau em 1880.” 26

“Na sexta-feira, 8 de março de 1940, o presidente Getúlio Vargas assinou o decreto-lei 2.073”27 em que instituiu a Radio Nacional como parte das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União. Desta forma, o Estado Novo incorporou a rádio, promovendo-a como instrumento de afirmação nacionalista, assim como o samba. No entanto, era incomum que os poetas do morro fossem aos auditórios de rádios, mas algumas de suas canções eram interpretadas por outros cantores, atualmente consagrados na historiografia musical. Um deles foi “Jorge Goulart, que foi o primeiro cantor popular a interpretar sambas-enredo para uma escola de samba, a Império Serrano”.28 Os bairros da Zona Portuária, formados por famílias portuguesas, além das descendentes de escravos e nordestinos, respiravam a moda regida pelas cantoras de rádio em seu tempo de ouro. Era comum que muitas donas de casa da região se deslocassem para a porta de uma rádio e tentassem se infiltrar nos disputados auditórios atrás do sonho de conhecer algum cantor ou cantora da época. Dona Julieta da Silva Roseira, 91, conta que morava no Santo Cristo quando a Radio Nacional montou seus primeiros programas de auditório. Ela lembra que até tentou participar como calouro em outros programas, mas nunca conseguiu. Na década de 50, os blocos de rua já eram instituições regionalizadas, perdidas do controle e interesse da cidade em geral. O eixo da música carioca/brasileira já não estava na região central da cidade. No fim da década, os holofotes se voltaram para a Zona Sul, de onde surgiu o movimento Bossa Nova, tendo como expoente o jovem João Gilberto. Pela primeira, vez a legitimidade da canção produzida em território nacional gerava ruídos polêmicos. Estaria ameaçado o tradicionalismo do samba, criado por Sinhô e sua turma? “O aparecimento da chamada bossa nova na música urbana do Rio de Janeiro marcou o afastamento definitivo do samba de suas origens populares.”

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Pela primeira

vez, a música brasileira se ramificava a partir de uma comunidade de alto poder aquisitivo. A bossa nova introduziu na canção brasileira a fusão entre o popular e algumas influências clássicas, sendo o segundo elemento fundamental para sua projeção. 26

AGUIAR, Ronaldo Conde. ALMANAQUE DA RÁDIO NACIONAL. 1ªed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. 27 Id. Ibid., p.16 28 Id. Ibid., p.37 29 TINHORÃO, José Ramos. Música popular - um tema em debate. 2ª ed. Rio e Janeiro: JCM, 1969.

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“Ora, a década de 50 marcava, no Rio de janeiro, o advento da primeira geração de jovens do após-guerra e após-ditadura. Estabelecida pela corrida imobiliária a divisão econômica da população da cidade – os pobres na Zona Norte e nos morros, os ricos e remediados na Zona Sul – a apareceria logicamente na zona grã-fina de Copacabana uma camada de jovens completamente desligados da tradição, isto é, divorciados da espécie de promiscuidade social que permitira até então, aos representantes da classe média, participar de certa maneira, em matéria de música popular, do contexto cultural da classe colocada um degrau abaixo em escala social.” 30

O rompimento com a sonoridade encontrada por Sinhô e a turma da Cidade Nova levou a música brasileira às discussões sociológicas acadêmicas, além de torná-la universal. Por outro lado, os blocos de rua foram cada vez mais afastados da discussão cultural da cidade e a espontaneidade de seus foliões temperava o discurso amedrontado das elites. As novidades musicais e as transformações sociais causavam dúvidas e críticas por parte dos conservadores. Em fevereiro de 1957, o jornal carioca “Para Todos” aborda a decadência do carnaval através dos depoimentos de Ary Barroso e Mario Lago. A repórter Thereza Camargo escolhe o formato de texto declarativo, divulgando a entrevista na íntegra. Pergunta ela a Ary Barroso se ele acha que o carnaval está em decadência. Ary foi categórico: “Está e posso apontar quatro razões para fundamentar a minha afirmativa: 1º) – A oficialização do carnaval, que deu aos clubes, ranchos e escolas de samba a sensação de beneficiários do poder público, tirando aquilo que fez realmente a grandeza do folguedo carnavalesco, a iniciativa particular (...). 2º) - A ausência do corso que constituía um dos detalhes tipicamente cariocas do nosso carnaval (...). 3º) - A morte dos blocos, hoje substituídos pelos ‘sujos’ insuportáveis e perigosos que infestam a cidade e os subúrbios (...). 4º) – A mediocridade do repertório, pois a música deixou de ser inspiração, brasilidade e beleza, para se transformar em indústria de medíocres, sufocando o muito pouco que nos resta de estro e ternura (...).” 31

Nota-se que o músico, já em 1957, sustentava a crítica sobre a perda de “brasilidade e beleza” nas canções carnavalescas – tipicamente tradicionais. Em sua terceira justificativa, Ari toca na questão que nos interessa nesta análise: a rejeição dos blocos de sujos. A categoria que fazia parte o Fala Meu Louro naquele momento era 30 31

TINHORÃO, op.cit., p.36 CAMARGO, Thereza. Está ou não em decadência o carnaval? Para Todos, Rio de Janeiro, set. 1957. p,23.

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rejeitada por quase a totalidade dos cariocas. A principal alegação era a permissividade dos membros das agremiações. Para muitos eles eram considerados socialmente perigosos. O morador do morro do Pinto Wilson Carneiro desfilou no Louro durante este período. De acordo com ele, muitos comerciantes até fechavam as portas quando sabiam que por ali iriam passar os integrantes do bloco durante o desfile. Wilson conta que membros da agremiação já chegaram a roubar cavalos da Polícia Militar e usá-los na comissão de frente do Louro. A ex-presidente Eunice reforça o discurso ao afirmar que havia briga em quase todos os encontros de blocos. Sempre envolvendo os integrantes do Louro. É evidente que os grandes acontecimentos musicais da cidade sequer passavam pela região, muito menos pelo Fala Meu Louro. O contexto foi composto apenas como título de ilustração, para que entendamos como a localidade tornou-se indiferente para as autoridades em tão pouco tempo. Por outro lado, é de suma importância para qualquer instituição cultural autossustentável que haja liberdade de atuação. Desta forma, é possível reformular os padrões ou se equilibrar de maneira espontânea. E sem muita resistência, o Fala Meu Louro começou a traçar seu novo rumo. Primeiro alterou seu formato de banda, passando a adotar apenas percussões em seus ensaios. Waldirzinho Fez parte da primeira montagem de bateria do Louro. Eunice conta que entrou para a diretoria do bloco em 1966, apoiada por seu namorado na época, que era bastante influente no bairro. Neste período, o Fala Meu Louro ainda não tinha um local fixo para ensaiar. Os foliões ocuparam diversos locais emprestados ou alugados da região para manter constantes os encontros. A comissão organizadora estava determinada a reestruturar o tradicional grêmio recreativo. Com o decorrer dos anos, já na década de 70, o Louro se afiliou à Liga dos Blocos Carnavalescos da Zona Portuária e teve que reformular sua identidade. Passou a ser classificado como “bloco de embalo” e não mais “de sujos”. Passou a ter eleições anuais para escolha de rainha e princesa, além de ser composto um novo samba/marcha de embalo para cada desfile. A música mais marcante para o ex-presidente Carneiro foi o samba que homenageou o clube que deu asas ao bloco no início do século:

Fala Meu Louro Deixa esse Louro falar 18


Esse louro é bastante inteligente Fala como gente que o Atília vai ganhar A asa branca O bico azul Esse louro é Atília pra chuchu Outra grande mudança foi estrutural, já que a disposição dos foliões passou a ser em alas vestidas com uniformes. Para Wilson Carneiro, uma das melhorias mais significativas foi a introdução de um carro de som – concedido pela prefeitura – aos intérpretes do bloco, já que a agremiação havia se organizado junto à Liga. Ele conta que, quando o Louro ainda era bloco de sujo, o recurso era negado pelo poder público. Além das novidades, o ritual de gravar discos voltou a ser exercido pela agremiação, sempre que possível. De certa forma, o Fala Meu Louro deve muito aos governantes. Suely Azevedo, esposa do Waldirzinho, lembra que foi graças à influencia de seu marido no gabinete do prefeito que o Fala Meu Louro obteve a concessão da atual quadra. Segundo ela, no lugar funcionava uma agência da Caixa Econômica Federal já desativada, quando o espaço foi destinado aos bambas. Fato semelhante ocorreu em 1996, quando o “vereador Jorge Pereira viabilizou obras de reforma nos banheiros, instalações hidráulicas e instalações elétricas, além da cobertura da quadra”

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. O fato é que, na década de 70, o Louro

decolava cada vez mais alto. Além do advento da quadra, a época ficou marcada pela refinada estrutura proporcionada pelo bicheiro conhecido como Tesoura. Apaixonado pelo carnaval do Fala Meu Louro, Tesoura resolveu entrar na comissão organizadora do bloco como financiador das reformas e das festividades oferecidas aos sócios e moradores. O Louro funcionava como um clube, só que sem catraca na entrada. Havia sócios que todo mês contribuíam financeiramente com o bloco, mas o grande patrocinador do período era o bicheiro, que fazia ponto da Praça Santo Cristo. Foi graças ao Tesoura que o Fala Meu Louro passou a ser frequentado por grandes personalidades do samba. O cantor e compositor Almir Guineto não hesita ao responder como foi parar no Fala Meu Louro através do Tesoura que o contratou na época. Segundo o músico, os dois ainda são grandes amigos desde essa época. Almir Guineto participava das rodas de samba do bloco acompanhado pelos grupos Samba Som Sete, Exporta Samba ou Nosso 32

POVÃO, Marlene. Sonho antigo dos moradores será realizado. Jornal do bairro – Zona Portuária, Rio de Janeiro, maio. 1996, p.4.

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Samba, que embalavam as festas da agremiação. O cavaquinhista do grupo, conhecido como Ratinho, acompanha Almir Guineto até hoje em seus shows pelo Brasil. Nesta época a região portuária comportava muitos blocos de embalo. Alguns deles são: Coração das Meninas, Eles que Digam, Independente do Morro do Pinto, Unidos do Moreira Pinto e o Fala Meu Louro. Havia ainda o rancho Unidos do Morro do Pinto, que por ter outra classificação acadêmica, já vinha conquistando mais espaço na imprensa da época. “Passavam das 22 horas quando o primeiro rancho, o Tomara Que Chova, abriu o desfile, apresentando-se na Av. Presidente Vargas, vindo dos lados da Central do Brasil, em direção à Candelária. O Grupo, que não era dos maiores, trazia como enredo “Curiosidades do Brasil”. O Unidos do Morro do Pinto veio em seguida, com a “História da Galeota Imperial, de 1908 a 1922”, e permaneceu demoradamente frente à Comissão Julgadora.” 33

De qualquer forma, ao contrário das bandas de MPB e outras de grande projeção nacional, essas agremiações passavam longe dos censores do Regime Militar. Nenhum bloco da área chegou a sofrer repressão do governo. Enquanto os artistas populares deixavam o país, os movimentos dos blocos cariocas aumentavam cada vez mais. Além dos clássicos desfiles, o evento mais disputado do ano pelos blocos carnavalescos era o “Banho de Mar”, promovido no Aterro do Flamengo. Segundo os antigos integrantes, o Fala Meu Louro ganhou o concurso durante seis anos consecutivos, em sua fase áurea. A década de 80 poderia ter sido melhor para o bloco, não fosse o afastamento do Tesoura. De acordo com ele, o Fala Meu Louro só fez parte da sua vida até o ano de 1976. De lá pra cá nada mais ele soube. Moradores contam que o motivo de tanto rancor se deve à retirada de seu nome da parede da quadra do Louro. Vaidoso, Tesoura se sentiu esquecido pelos membros da instituição que tanto ajudou a crescer. Almir Guineto conta que o bicheiro também enfrentou uma série de problemas devido à ilegalidade da profissão, que o fez quebrar financeiramente. De qualquer forma, é interessante o fato de que os dois mantêm até hoje a amizade decorrente dos encontros no Fala Meu louro. O cantor e compositor orgulha-se ao dizer que ajuda o amigo em qualquer situação. Os anos 80 foram de declínio para o Louro, que continuou no pique de seus desfiles até encerrar as atividades no final da década. A ex-presidente Eunice conta que a 33

Jornal O Globo. Ranchos êste ano mais aplaudidos. Rio de Janeiro, 28 fev. 1968, p, 7.

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maioria dos foliões do bloco migrou para a Escola de Samba Tradição, dissidente da Portela, que surgia naquele momento. De acordo com ela, os ritmistas se sentiram atraídos pela proposta de boa remuneração oferecida pela nova escola. Em 1996, Wilson Carneiro passou a tomar conta da quadra do Fala Meu Louro, que ainda manteve a razão social enquanto bloco carnavalesco. O local era alugado para festas familiares e eventos em geral para que fossem pagas as contas cobradas de impostos e contas de água e luz. No ano de 2012 um grupo de moradores do Morro do Pinto resolveu assumir a presidência da Fala Meu Louro e colocá-lo novamente na rua. Para isso foi necessária uma reunião com representantes da prefeitura, já que a quadra do bloco estava ameaçada de ser tomada pelo poder público devido às dívidas multiplicadas ao longo destes anos. O prefeito Eduardo Paes, via Twitter, informou que o bloco continuaria na quadra. A partir daí, o ano de 2013 foi marcado pela volta da agremiação às ruas da Zona Portuária. O bloco retomou as atividades, escolhendo samba, ritmistas e intérpretes para o carnaval.

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Acertos com a história É incontestável a contribuição do Fala Meu Louro para a cultura popular carnavalesca do Rio de Janeiro. O bloco atravessou gerações e acompanhou as principais transformações sociais da cidade, além de introduzir uma série de tendências ao carnaval de rua em suas primeiras décadas. A partir da trajetória do Fala Meu Louro é possível construir a musicalidade que embalou as festas populares da Zona Portuária durante o século 20. Em muitas vezes, a história do Louro coincide com o desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro. Sua popularidade alcançada na segunda década de vida, por exemplo, acompanha a efervescência das ruas do Centro do Distrito Federal, que ainda concentravam as principais atividades urbanas de todo o município. Em seguida, o espaço metropolitano foi se alargando de acordo com a demanda migratória, impulsionada pela necessidade de expansão do estado que se formava. “A estrutura espacial de uma cidade capitalista não pode ser dissociada das práticas sociais e dos conflitos existentes entre as classes urbanas. Com efeito, a luta de classes também reflete-se na luta pelo domínio do espaço, marcando a forma de ocupação do solo urbano. Por outro lado, a recíproca é verdadeira: nas cidades capitalistas, a forma de organização do espaço tende a condicionar e assegurar a concentração de renda e de poder na mão de poucos, realimentando assim os conflitos de classe.” 34

Com a definição dos espaços nobres da cidade, concentrados na Zona Sul, o samba passou a figurar como elemento quase que folclórico das camadas mais pobres. Os poetas de morro não se infiltravam nas sociedades refinadas e vice-versa. Na época de ouro do rádio, por exemplo, não havia espaço para que estes personagens atuassem nos auditórios lotados. Noel Rosa, que não era do morro, foi um dos poucos sambistas tradicionais a passar pelo rádio. No entanto, vale ressaltar que, o sambista mangueirense Cartola atraiu as atenções de futuros intérpretes do rádio desde muito cedo. O fundador da Estação Primeira de Mangueira era visto como ótimo letrista e músico, mas nunca houve convite para que ele cantasse no rádio.

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ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997, p. 9.

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“Em 1931, Mario Reis veio a morro. Ele chegou com um rapaz chamado Clóvis, que era guarda municipal e que tinha dito que era meu primo, coisa e tal. O Clóvis subiu para falar comigo, mas o Mário ficou lá embaixo. Chegou dizendo que o Mário queria comprar um samba meu. Pensei que ele estava maluco. Como, vender samba? Clóvis disse que era para o Mário gravar, e tanto insistiu que eu acabei descendo e cantando um samba pra ele, que, por sinal, ele já conhecia. Perguntou quanto eu queria. Fiquei sem resposta. Já pedir uns cinquenta mil-réis, mas Clóvis cochichou pra eu pedir quinhentos. Aí eu pedi trezentos. Ele me deu.” 35

Nota-se que a prática de vender samba era anterior ao advento da radiodifusão no Brasil. Neste momento, as agremiações carnavalescas de caráter espontâneo patinavam na informalidade e terminavam expulsas da discussão social, tanto acadêmica, quanto informal. Apenas em 1935, na prefeitura de Pedro Ernesto, que os desfiles dos “ranchos e de grandes sociedades”

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do samba passaram a fazer parte do programa oficial do

carnaval, elaborado pelo Departamento de Turismo. A União das Escolas de Samba, criada um ano antes, facilitou a aceitação oficial. O mesmo não se pode dizer das agremiações bairristas. Assim como o Fala Meu Louro, estes blocos só foram reconhecidos pelas instituições públicas em 1938, quando se tornou obrigatório o registro de todas as sociedades carnavalescas da cidade, até mesmo as que só existiam no papel. Dessa forma, a política de Vargas pretendia controlar as ações comunitárias a fim de medir o poder e aceitação de seu governo. Legitimar o samba como identidade de uma nação majoritariamente excluída desta prática cultural, demonstra bem o aspecto de sua política. A partir de raciocínio feito por Hannah Arendt, a antropóloga Marilena Chauí reitera a percepção a respeito desta prática. “O poder é a coerção mediada pela lei, a qual pode ser tanto fonte de liberdade como de dominação, e seu fundamento é o consentimento – quando o consentimento é voluntário, o poder propicia a liberdade; quando o consentimento é forçado, torna-se dominação e opressão. Para Arendt, a força opera por meio da violência com finalidade de eliminar diferenças; a formação opera pela formação do sentimento comunitário, considerando as diferenças como secundárias.” 37

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SILVA, Marília T. Barboza da, Filho, Arthur L. de Oliveira. Cartola: os tempos idos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003. 36 SILVA, Marília T. Barboza da, MACIEL, Lígia dos Santos. Paulo da Portela, traço de união entre duas culturas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Funarte, 1979. 37 CHAUI, Marilena. O que é política? 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.

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Com todos os obstáculos instituídos, os sambistas ligados aos blocos de rua se marginalizavam cada vez mais aos olhos de uma sociedade moralista. Era necessário vestir a carapuça para conquistar uma abertura na história do carnaval de rua. O Fala Meu Louro agiu como um emblema desta conduta. Bandidos do Morro da Favela (atual Providência) praticamente só saiam do morro para desfilar no bloco, que recebia incentivo financeiro de bicheiros e dos chamados malandros. Esses e outros motivos que feriam os critérios de noticiabilidade dos veículos impressos, e da mídia em geral, afastavam o Fala Meu Louro das colunas carnavalescas. Até mesmo na década de 70, quando o bloco teve um desempenho acima da média dos demais, o nome da agremiação apareceu poucas vezes em jornais populares. Todos os depoimentos de pessoas que acompanharam o bloco neste período são coincidentes, ao citar os anos em que o bloco liderou o concurso do Banho de Mar, no Aterro do Flamengo, por exemplo. Para a surpresa de todos, no dia seguinte os veículos de maior alcance não noticiavam as conquistas do bloco. Definitivamente, é necessário estar infiltrado entre os sobreviventes da agremiação para que se possa medir a importância dela para o legado da cultura musical da região. Desde as primeiras modinhas de Catulo Cearense da Paixão − um dos primeiros compositores de modinhas do século 19 e também estivador − até os dias atuais, não houve banda, movimento ou grupo que tenha perdurado na região por tantos anos como o Bloco Carnavalesco Fala Meu Louro. É evidente que ao lidarmos com a memória de uma instituição como esta esbarramos na problemática do tempo. Devido à ausência de provas ou documentos mais contundentes, referentes a certos períodos, nos apegamos aos relatos daqueles que viveram o bloco, de alguma forma. No entanto, é comum ao ser humano incorporar fatores pessoais às histórias narradas. Afinal, essa é uma das condições para que ele tenha se apegado à ocasião. Cabe ao pesquisador equilibrar no texto a maneira romântica que um personagem narra um acontecimento infiltrado em sua memória. “A lembrança diz respeito ao passado, e quando ela é contada, sabemos que a memória se atualiza sempre a partir de um ponto do presente. Os relatos da vida estão sempre contaminados pelas vivências posteriores ao fato relatado, e vêm carregados de um significado, de uma avaliação que se faz tendo como centro o momento da rememorização (...). O passado é descrito muitas vezes em termos românticos, como se os indivíduos vivessem um tempo áureo no qual tudo era permitido.” 38 38

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. 5ª ed. São Paulo: Braziliense, 2006.

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O mais interessante dessa estrutura de análise são os registros e transformações da memória coletiva das pessoas que a tecem diariamente. Pode ser que se pergunte sobre o Louro a um ex-morador do bairro desgostoso do carnaval e se encontre uma nova adjetivação ao bloco. Pode ser que um daqueles comerciantes furtado anualmente pelos antigos integrantes da agremiação se recorde do pior que ela lhe proporcionou e teça uma narrativa recriminando o Louro. Entretanto, tanto essa como todas as demais percepções a respeito do Fala Meu louro são igualmente relevantes para que se alcance ao máximo o percurso historiográfico da agremiação incentivada pelo Rei do Samba, no início do século 20. É provável nessa teia de depoimentos e verdades contornadas pelo tempo haja outros temas que mereçam o esforço de uma pesquisa, afinal a Zona Portuária está entre os espaços urbanos do Rio de Janeiro mais esquecidos pelo poder público no século passado. A situação piora quando consideramos falar sobre uma das primeiras regiões habitadas da cidade, principalmente após a vinda da família real, em 1908. “O príncipe regente, D. João ainda na Bahia em 28 de janeiro de 1808, assinou uma carta regia abrindo os portos do Brasil ao comércio com todas as nações que estivessem em paz com o seu governo, isso significou o fim do monopólio comercial. Significou também o fim das restrições impostas pelos colonizadores portugueses aos colonos e colonizados, como o fim da censura à entrada de livros, proibição da imprensa, as medidas que dificultavam a entrada de estrangeiros para o Brasil e o controle sobre quaisquer idéias contrárias aos colonizadores portugueses e a igreja católica. Tais transformações trouxeram diversas implicações para o cotidiano da cidade, e sem sombra de dúvida nenhum outro fato de tamanha magnitude política até então ocorrera na cidade do Rio de janeiro que pudesse se responsabilizar por tantas mudanças no âmbito econômico, cultural e urbanístico quanto à decisão estratégica de ‘transplantar a Metrópole’ para a colônia.” 39

Nessa conjuntura social, a região portuária foi a primeira a sofrer influências de imigrantes que se instalavam na localidade. Imagina quantas histórias não se perderam no tempo ou simplesmente não cativaram os olhares dos colonizadores que permaneceram entre os becos e sobrados até mesmo após o decreto abolicionista. Este é o caminho que o Fala Meu Louro não merece inclusive da perspectiva moralista, que tanto contribuiu para que ele fosse abafado ao longo do século. 39

BERNARDES, Lysia Maria Cavalcanti. Evolução da paisagem urbana do Rio de Janeiro até o século XX. Boletim Carioca da Geografia. Rio de Janeiro, nº 1 e 2, 1959.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A princípio, como entusiasta do carnaval de rua e amante da historiografia musical do Rio de Janeiro, escolhi trazer ao ambiente acadêmico a trajetória do bloco Fala Meu Louro. Já sabia a respeito de sua importância para o desenvolvimento cultural da região próxima ao porto e à sonoridade do samba tal como o conhecemos. No entanto, percebi que o tempo me forçaria a adiar o mergulho nas minúcias do bloco, já que me deparei com um projeto muito mais complexo na prática, tendo alguns meses para concretizá-lo apenas. Outra descoberta, não tão surpreendente, foi sobre a dificuldade em obter informações a respeito dos blocos de rua, conhecidos como blocos de sujos. Há muitos estudos em torno das agremiações carnavalescas consagradas pela grande mídia – aquelas que têm seus desfiles transmitidos em tempo real pelas emissoras de TV e sustentam financeiramente o setor de turismo devido ao assédio dos visitantes de outras nações. Uma gama de autores já explorou o tema de maneira excepcional. Sem esgotá-lo. Percebi que para ter acesso à história do carnaval informal de rua, é necessário ligar o gravador e se valer de entrevistas calorosas sobre o do assunto, salvo a exceção de poucas publicações sobre o tema. De fato, tive a sorte de lidar com personagens tão cativantes quanto à agremiação que os fizeram felizes. Moradores e ex-moradores do bairro guardam na memória as mais graciosas histórias vividas em algum encontro do Fala Meu Louro. O depoimento do compositor e sambista Almir Guineto também contribuiu muito para percebermos o alcance da fama que a agremiação criou entre os sambistas da cidade. O bloco merece muito mais espaço para além destes corações saudosos. No ano passado, diversos blogueiros fizeram matérias dando apoio à volta do bloco, que também mereceu espaço na coluna do Ancelmo Góis, no jornal O Globo, alertando para a tentativa de retirada da quadra por parte da prefeitura. Se o Louro, que fica numa região de fácil acesso, foi ignorado pela imprensa, o que dirá uma agremiação perdida nos confins da Zona Norte, por exemplo, que possivelmente tenha sido um fenômeno popular? O silêncio na história do carnaval de rua foi a percepção mais intrigante desta pesquisa.

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ANEXOS

Sinh么 (ao centro) e a banda do Fala Meu Louro (anos 20)

Folionas do Fala Meu Louro antes do desfile (anos 40)

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Capa de LP do Fala Meu Louro (1961)

Desfile do bloco (1963)

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Desfile que marcou a volta do Louro às ruas (2013)

O Louro voltou a decolar* A vez dos retirantes está perto

E pra além do cais da Guanabara

Tão perto, que ofusca o nosso olhar

O Louro bate asas

Das cinzas refinaram a arquitetura

Neste céu de possibilidades

E essa mistura irá nos consagrar

Resgatar a identidade de quem te criou

Quanto às partituras esquecidas

A voz dos portuários chegou longe

Haverá uma saída

Tão longe, que se perdeu no mar

É que entre becos e sobrados

Respeite o cenário de origem

Sobrevoa um papagaio troglodita

Dos bambas e mestres de capoeira

O louro voltou

Desde os precursores da modinha

Trazendo na ponta da língua

Aos batuques da Vizinha

Um grito que vai acionar

Querem evitar os nossos passos

A nossa saudade contida

Mas o papagaio não se intimida

*Samba de minha autoria que embalou os foliões em 2013.

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ENTREVISTA

Almir Guineto (sambista, cantor, compositor popular brasileiro) Almir, como você conheceu o bloco Fala Meu Louro? - Conheci lá através do Tesoura, que era o bicheiro que bancava a agremiação. Eu cantava lá à beça. Fiz muito show com o Samba Som Sete, Exporta Samba e Nosso samba. Íamos eu, Jorginho do Império, Dicró e era o Tesoura quem proporcionava isso. Então a gente saía muito cedo no fim de semana e eu frequentava muito ali, mas eu nunca desfilei no bloco. Esses shows eram promovidos durante o ano inteiro ou apenas próximo ao carnaval? - Não, era fora do carnaval, durante todo o ano. Eu fazia muito show. Qualquer festa no Louro eu estava sempre presente, convidado pelo Tesoura. Hoje não sei porque ele não quer mais falar sobre o bloco. Eu ia neste bloco, mas tinham outros que já nem lembro o nome. Sempre levado pelo tesoura, que era um bicheiro muito poderoso, na época. O ponto de bicho dele era em frente à Praça do Santo Cristo. Hoje já não é mais porque ele quebrou. Isso era mais ou menos em 72, 73. Nesta época você desfilava em algum bloco carnavalesco? - Não. Eu fui do Cacique (de Ramos), mas também não desfilava. Só participava dos ensaios, mas nunca gostei de desfile. Só saí mesmo no Salgueiro, que era a minha escola, lá do Morro do Salgueiro. Você chegou a ser influenciado pelo Samba Amaxixado, cultivado pelo Louro? - Não. Eu não peguei esta época. Como você analisa a importância do Fala Meu Louro para a cultura popular de rua? - O bloco antigamente era muito importante para o bairro, para a área, onde o pessoal descia para desfilar nas épocas carnavalescas antigas. Parece que a Prefeitura dava uma ajuda, ou algo assim, para o desfile. Você percebe contribuição do Fala Meu Louro para a sua carreira? - Ah, claro. A gente (os sambistas) sempre estava ali se apresentando. Pelo ao menos tinha um dinheiro para a gente. Um cachê. E era o Tesoura que pagava diretamente. Ele me ajudou muito. Hoje quem ajuda ele sou eu. Aquilo era a alegria do bairro. Ai, o Tesoura saiu em 76, mais ou menos e eu parei de ir. Antes eu ia em muito bloco por ali. Tinha um conjunto ali muito bom: Nosso Samba. Eles acompanhavam a Clara Nunes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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