7 minute read

Comportamento

Já ouviu falar em “bolhas sociais”?

Será que você tem vivido em uma bolha social? Ter difi culdades para se relacionar com quem pensa diferente, torce para outro time ou gosta de músicas que você não curte, por exemplo, pode indicar isso

Advertisement

Texto Heloiza Helena C Zanzotti Foto Arquivo pessoal

Vamos imaginar que você está agora em um ambiente diferente daqueles que costuma frequentar. Uma festa ou reunião onde você não conhece ninguém; uma viagem para um lugar desconhecido... Por acaso, você conhece uma pessoa e começam a conversar. O tempo passa voando de tão bom que é o papo e você já pensa que essa pessoa é muito “gente boa”.

É assim que criamos as primeiras impressões sobre uma pessoa que acabamos de conhecer. Pode ser através de uma boa conversa acerca de coisas que gostamos, ou talvez porque ela esteja usando a camisa do time para o qual torcemos, ou ainda algum detalhe que nos seja familiar. A conversa flui e descobrimos muitas coisas em comum, e a pessoa que era desconhecida pode se tornar uma amizade para a vida toda.

PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Boa parte das novas amizades que fazemos, sobretudo na fase adulta, começa assim, ou seja, a gente acaba usando as primeiras impressões para julgar características e virtudes dos outros.

O psicólogo Fritz Heider queria entender como as pessoas justificavam esse tipo de comportamento e suas consequências e desenvolveu pela primeira vez a Teoria da Atribuição em seu livro de 1958 “The Psychology of Interpersonal Relations”. Ele chamou de “Atribuição” o comportamento que nos leva a determinar rapidamente quem faz parte do meu grupo e quem não faz. Algo essencial para a sobrevivência de uma espécie tão social quanto o ser humano.

A RE conversou com a psicoterapeuta Seide Marangoni, que esclarece: “Enquanto estudiosa de patologias relacionadas à fobia social, pânico e ansiedade, compreendo a necessidade de um ambiente acolhedor, que valide o posicionamento do indivíduo para que exista uma capacidade de diálogo, mesmo que esse vá em sentidos diferentes. Deste modo, é comum que exista uma aproximação de pessoas com os mesmos ideais que não confrontem a posição estabelecida e que tenham alguma identificação, justamente para transmitir algum tipo de segurança, controle e previsibilidade”.

PRECONCEITO

São as nossas experiências que determinam se uma determinada pessoa nos parecerá mais familiar ou mais estranha, e boa parte do julgamento por preconceito é baseado em atribuição. Por exemplo, quando nos deparamos com uma pessoa com orientação sexual, gênero ou origem étnica diferentes da nossa e não temos informações precisas sobre essa pessoa, costumamos associar traços dessa pessoa com coisas que já conhecemos, como: “Ah, oriental é tudo igual”, ou “quem torce para esse time é muito sem noção”, ou ainda “quem mora naquele bairro não deve ser gente boa”. Nesse contexto, construímos bolhas onde guardamos as pessoas com as quais nos identificamos e deixamos de fora as pessoas que não são parecidas conosco.

AS TAIS BOLHAS SOCIAIS

De acordo com a neuropsicóloga Vanessa Dockhorn, “uma bolha social é entendida como um grupo de pessoas que se unem por interesses semelhantes e acabam por excluir a participação de quem tem pensamentos contrários”. Para ela, isso limita as relações e, de certa forma, protege o grupo, mantendo um equilíbrio, afinal, há pouca margem para conflito ou discordância. No entanto, se essa bolha traz aspectos positivos como a intimidade e a segurança de relacionamentos próximos, também apresenta elementos negativos, já que conviver apenas com quem concorda conosco é perder oportunidades de crescimento.

A psicoterapeuta Seide Marangoni pontua: “na minha opinião, a tendência ao isolamento exacerbado ou dificuldade de confrontar-se com opiniões ou filosofias que vão na contramão das suas crenças e valores pode estar diretamente relacionada à insegurança pessoal. Lembrando um pouco os aspectos de uma fobia social, pode-se compreender a aversão a opiniões contrárias à sua como uma evitação do desconforto ou da experimentação de emoções negativas provocadas pelo outro. Neste mesmo raciocínio é natural que indivíduos que se sentem ameaçados em suas convicções tenham dificuldade em se relacionar com pessoas com as quais não concordam, ou com teorias que não vão de encontro com sua opinião pessoal sobre o mundo ou qualquer outra temática”.

O PAPEL DA INTERNET

A internet amplificou essa nossa tendência a fugir de informações diferentes daquilo que a gente acredita ao criar os algoritmos, onde são compartilhadas nas redes sociais apenas coisas que a gente já gosta e pessoas com quem a gente tem maior afinidade. Mas é preciso entender que a rede social não busca nosso bem-estar, ela busca prender nossa atenção pelo máximo de tempo possível para nos manter dentro da rede.

Você já achou estranha a “coincidência” de ver nas redes sociais exatamente o assunto que estava conversando com os amigos? Já percebeu que elas praticamente “adivinham” o estamos querendo comprar? Quem já viu o documentário “O Dilema das Redes”, da Netflix, vai entender melhor que o acaso não existe e as plataformas das Big Techs têm sido usadas para prever o comportamento humano e impulsionar mudanças – de preferência aquelas que dão mais lucro. (guiadoestudante.abril.com.br).

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Acabamos criando, então, uma realidade simplificada, onde tudo é familiar, como forma de gerar uma ilusão de controle sobre o que escolhemos e o que gostamos. Na verdade, ape-

nas uma forma de reduzir a nossa ansiedade em um ambiente previsível, para que a gente passe mais tempo sendo exposto a propagandas e anúncios. Há um emaranhado de decisões sendo silenciosamente tomadas para povoar nosso feed de notícias apenas com tópicos considerados de nosso interesse. Esse é um efeito colateral da seleção automática de conteúdo pelos algoritmos de inteligência artifi cial das plataformas, mas isso é assunto para uma próxima edição.

NA SALA DE AULA

A RE conversou com o professor de fi losofi a e sociologia Heraldo Bello da Silva Júnior, que trabalha com alunos dos ensinos fundamental e médio. Ele explica que os alunos estão, de forma geral, presos dentro dessas bolhas sociais e é muito difícil quebrá-las, uma vez que o algoritmo envia apenas assuntos e notícias de interesse do próprio aluno. Segundo ele “para quebrar essa bolha social é muito importante que a escola ofereça outras fontes de conhecimento como livros, documentários, coisas que ele não está acostumado a receber no celular. Hoje, a principal fonte de busca de conhecimento é a internet, o celular pessoal, então ele está acostumado a receber só aquilo que quer ouvir”.

Mas Heraldo chama a atenção para um detalhe: “se pessoas diferentes em seus aparelhos pessoais fi zerem uma pesquisa no Google, os resultados serão diferentes. Para quem gosta de viajar, se pesquisar Jerusalém aparecerão pacotes de viagens; já para quem se interessa por guerras, aparecerão confl itos em Israel. Por isso é importante abrir janelas anônimas, que escapam dos algoritmos”.

APRENDER COM O OUTRO

O professor esclarece: “dentro da escola temos uma diversidade de alunos com valores e princípios diferentes, culturas diferentes, e podemos valorizar essa diversidade cultural, explorar isso em uma aula invertida, em que um aluno ensina o outro. Um aluno que é evangélico, por exemplo, pode aprender com outro sobre uma religião de origem africana, e isso vai tirando o aluno da sua bolha social, ele vai vendo que o mundo não se limita apenas à sua família, suas preferências ou estilo de vida”. Neste contexto, Heraldo faz um alerta: “para isso, o professor precisa estar muito bem preparado para não gerar dentro da sala de aula críticas, deboches, humilhações. Isso tem que ser muito bem trabalhado para que os alunos entendam que o outro não é nem pior, nem melhor, apenas diferente. Como dizia o fi lósofo Immanuel Kant: ‘tratar igualmente os desiguais, pouco importando a medida da sua desigualdade’, porque nos igualamos pelo fato de que todos nós pertencemos ao mesmo gênero, o humano. Generosidade é entender que as diferenças pressupõem um tratamento igual”.

É POSSÍVEL ESTOURAR ESSA BOLHA?

As opiniões baseadas apenas em nossas próprias experiências, sem espaço para o debate de ideias, podem nos levar a uma zona de conforto arriscada, afi nal, viver apenas apoiado em nossas conclusões pode nos tornar pessoas culturalmente limitadas e menos empáticas, sobretudo com aqueles que não compartilham da mesma vida que a gente. Mas é possível furar essas bolhas, sim, não no sentido de fazer as pessoas mudarem de ideia, mas apenas para trazer assuntos, temas e posicionamentos de uma certa bolha para dentro de outra e vice-versa.

Para a psicoterapeuta Seide, “algumas possibilidades para manejar esta tendência seria lançar mão de uma boa comunicação, como por exemplo, utilizar técnicas da CNV (Comunicação Não Violenta) a fi m de ser assertivo em seu discurso, sem que exista agressividade em sua dialética. Outra possibilidade, obviamente, seria a psicoterapia, pois através dela é possível desenvolver a segurança e autoconfi ança tão importantes para respeitar os diferentes posicionamentos, valores e crenças do mundo sem que isso tenha um efeito potencializado em seu estado emocional. Podemos pensar, também, em um treino através do colocar-se em contato com diferentes abordagens de um mesmo tema através de interações verbais, vídeos, leituras e até mesmo discussões que tenham o respeito e a empatia como principais ferramentas”. 