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A narrativa para crianças nos livros ilustrados
Gostaria de saber, disse para si mesmo, o que se passa dentro de um livro quando ele está fechado. É claro que lá dentro só há letras impressas em papel, mas, apesar disso, deve acontecer alguma coisa, porque quando o abro, existe ali uma história completa.
Michael Ende
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O livro A pequena semente enquadra-se no gênero narrativo (fábulas originais, da literatura universal e da tradição popular etc.). O termo narrativa é usado quando nos referimos a contos, romances, novelas, fábulas etc. que apresentam estruturas e elementos específicos. Quando falamos em gênero narrativo nos livros infantis, geralmente estamos no “território” dos contos.
Na literatura mundial e brasileira, temos uma variedade de contos que atendem a diferentes leitores em diferentes idades, como os contos populares, os contos de fadas, de assombração, de mistério, de esperteza, entre outros. A estrutura composicional do conto clássico geralmente apresenta: a introdução, que insere o leitor no universo a ser relatado, tecendo-lhe as particularidades do espaço onde desenvolve a ação e apresentando-lhe, paulatinamente, os personagens que transitarão pelo mundo exposto; o conflito, que implica o surgimento de um problema, um impasse que desencadeará todas as peripécias e infortúnios necessários para o encaminhamento da trama; o clímax, que se institui como a ação mais impactante da obra; o desfecho, em que o conflito configurado na narrativa é solucionado (ou não, pois nem todas as narrativas terminam em final feliz).
A pequena semente, escrito em 2013, tem uma estrutura distinta dos contos tradicionais. Trata-se de uma narrativa descritiva em que a personagem/narradora explora e compartilha com o leitor suas descobertas.
Acompanhamos a transformação da semente em árvore por meio da sequência narrativa das ilustrações, como fotografias de uma criança a crescer: vemos o nascer do broto, das folhas, dos galhos, a chegada dos animais que habitarão a árvore. A narrativa vai acontecendo aos olhos da narradora e do leitor concomitantemente, o tempo cronológico não é pautado pelas palavras do texto, mas pelas imagens que anunciam a passagem do tempo.
Nesse livro, assim como acontece nos livros ilustrados, o texto verbal e o texto visual (ilustrações) atuam juntos para favorecer a compreensão do leitor. Ora um, ora outro, trazem novas informações sobre a história para o leitor. Complementam-se e permitem novas descobertas.
“os gêneros da literatura infantil se caracterizam pelo equilibrado diálogo entre as imagens visuais e o texto verbal. Essa configuração, que lhe é peculiar, instaura modos de ler sensíveis aos efeitos produzidos pelo e no entrelaçamento dessas linguagens. Para isso, é preciso contar com a percepção de elementos como a cor, as formas, os traços da composição visual, tomados como componentes das escolhas de estilo que dividem as páginas com os textos verbais.”

(Machado, 2014)
Na Educação Infantil, sobretudo, é fundamental que possamos valorizar a leitura desses dois signos (verbal e visual) durante a situação de mediação para que as crianças possam explorar e relacionar os elementos disponíveis para a compreensão da narrativa. “Quanto mais conhecimento textual o leitor tiver, quanto maior a sua exposição a todo tipo de texto, mais fácil será sua compreensão.” (KLEIMAN, 2009).
Como mediador de leitura na primeira infância, o papel do professor ultrapassa a ação restrita de apenas ler o livro em voz alta. Nosso maior desafio é introduzir o aluno no universo da literacia
Literacia, numeracia e linguagem em textos infantis
Para desenvolver a linguagem da criança na primeiríssima e primeira infância, é sempre muito importante que a família e a escola ofereçam atividades de leitura por meio de livros ilustrados que possam ser vistos e manuseados pelas crianças.
[...] a escuta das palavras diante das imagens que as representam permite à criança estabelecer a relação entre palavra e objeto. Essas primeiras experiências exigem a mediação do adulto que lê para o pequeno, oportuniza situações para a criança realizar atividades com o livro, as quais inicialmente passam pelos órgãos de sentido como: olhar, agarrar, apalpar, cheirar, levar o livro à boca, ouvir seus sons.
Na primeiríssima infância, a criança na faixa etária de 06 meses a 3 anos é muito sensível ao desenvolvimento da linguagem. Ela aprende a pronunciar os sons e domina um pequeno vocabulário.
Modesto-Silva e Motoyama (2020, ficha 1, p.1).
As atividades de leitura na família e na escola precisam considerar que o processo de desenvolvimento de cada criança é particular quanto ao tempo e modo como se relaciona com a linguagem verbal e visual.
De maneira geral, observamos que, à medida que cresce o interesse das crianças pelo mundo que a cerca, pelos seres e objetos que as rodeiam, cresce também a necessidade de compreender e dominar a linguagem.
Todos que convivem com crianças em fase de aquisição da linguagem se surpreendem com o deslumbramento e entusiasmo quando elas são apresentadas a pequenas narrativas, parlendas, cantigas e textos poéticos. Esse é o momento ideal para ampliar e motivar a atenção para a escuta de palavras, frases e textos curtos, para trabalhar a significação e apresentar as diferentes funções de um personagem na história.
Por meio de atividades lúdicas e brincantes (antes, durante e depois da leitura), as crianças aprendem a “imitar” o adulto, assimilam a linguagem da comunicação, reproduzem o manuseio com o livro, desenvolvem a imaginação e a memória. Todas essas relações com a leitura são possíveis na Educação Infantil antes de a criança se alfabetizar formalmente.
Pesquisadores da primeiríssima e primeira infância utilizam a expressão literacia emergente, ou apenas literacia, ao definirem os comportamentos das crianças muito novas quando começam a responder e se aproximar de atos de leitura e escrita. A literacia, porém, vai além da leitura e da escrita, abrange a inter-relação da linguagem: falar, ouvir, ler, escrever e ver. Assim, há muitas maneiras de crianças pequenas, incluindo bebês, se envolverem com os livros: segurar, provar (literalmente, colocar na boca) e virar as páginas; engatinhar buscando um livro (quando bebê); ir até uma estante e escolher um livro; apontar e falar o nome de objetos ou de algum acontecimento representado nas ilustrações; repetir alguma palavra, expressão ou frase do texto; perguntar para o adulto sobre a história por meio de pronomes interrogativos “o quê”, “quando”, “como”, “quem”, “por quê”; conversar, questionar ou manifestar opiniões sobre o tema; recontar um texto do seu jeito, reinventando-o.

A família coloca em prática a literacia familiar quando propicia à criança que se relacione, se familiarize e aprenda sobre os textos escritos antes de frequentar a escola ou quando está em casa (Mata, 2006). As relações precoces com o texto escrito nas interações do dia a dia em ambiente familiar (histórias, listas de compras, jornais, livros infantis, bilhetes etc.) são essenciais e parte integrante do processo de aprendizagem como um procedimento social, funcional e participativo (Teale e Sulzby, 1995).
O Plano Nacional de Alfabetização (Brasil, PNA, 2019) afirma que o cérebro humano não foi biologicamente programado para aprender a ler e escrever e que “Aprender a ler e a escrever faz criar no cérebro um caminho que liga as áreas de processamento fonológico com as de processamento visual, de modo que uma palavra, quando é vista, ativa no cérebro as mesmas áreas que uma palavra quando é ouvida” (p.26).
Estudos desenvolvidos nos últimos anos sobre a aprendizagem da linguagem escrita reforçam conceitos da literacia emergente, em que se considera o processo de descoberta e apreensão da linguagem escrita como um processo precoce, no qual a criança desempenha um papel ativo e participativo.
Pesquisadores revelam o caráter positivo e lúdico da leitura de histórias pelas famílias nos aspectos de aquisição da linguagem.
Foi identificada uma associação significativa entre a frequência de leitura, os conhecimentos sobre literacia das crianças aos 5 anos e sua compreensão em leitura. Também se evidenciaram a aquisição e a ampliação de vocabulário, bons índices de alfabetização, de compreensão, de conhecimentos de literacia e de mundo.
A pesquisadora portuguesa Lourdes Mata mostrou que as crianças cujas mães utilizavam, durante os momentos de leitura de histórias, intervenções “não imediatas” (questões, comentários, inferências, predições...) apresentavam melhor resultado na compreensão e interação com o texto escrito. A prática de leitura no ambiente familiar torna-se, assim, uma atividade significativa que proporciona variedade e riqueza de intercâmbios, facilitando o desenvolvimento de algumas aquisições e competências de literacia, como também a motivação positiva à leitura e à escrita.

Já quando a criança está na escola, motivá-la para a leitura, verificar seu desenvolvimento, reconhecer do que ela gosta e “modelar” suas práticas é papel e competência do professor. E sobre isso discutiremos a seguir: a função do “moldar” e do “mediar” na Educação Infantil.
Todos nós, desde pequenos, tivemos alguém a quem seguíamos como modelo, alguém que admirávamos e queríamos imitar. Existe uma relação especial entre a criança e o professor, principalmente nos primeiros anos da infância. É por esse motivo que o termo modelagem, utilizado nos Estados Unidos desde a década de 1980, começou a ser usado em escolas brasileiras.
Alguns professores chamam “modelagem como inspiração” o papel do docente em ajudar as crianças a pensar além do óbvio, sem ser instrutivo, controlador ou muito influente no processo. O professor não dá respostas prontas, ele questiona para fazer que as crianças pensem além do que é evidente.
A modelagem é um princípio da metacognição; ao “modelar” uma ideia, o professor fala em voz alta para que as crianças ouçam seu pensamento e, a seguir, no debate com o grupo, ele desafia os alunos e os ajuda a tomar decisões. Dessa forma, o professor não modela apenas o processo, mas motiva, por meio de perguntas estratégicas, uma troca de pontos de vistas, ponderando as intervenções.
Como professores da Educação Infantil, algumas vezes nos apressamos e emitimos nossas opiniões antes de promover o debate. Nesses momentos, o grande desafio é fazer que nossos alunos saiam das respostas monológicas (“porque sim”, “é”, “não gosto”, “porque não”) e expressem oralmente suas ideias, aprofundando e elaborando melhor as respostas.
Vejamos um breve exemplo do que vem a ser a modelagem em uma situação didática.
O professor está em uma roda de conversa com crianças da Creche (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses de idade) segurando alguns círculos de papel-cartão colorido nas mãos. Seus alunos também têm o mesmo material. Ela fala:

Professor (P) — “Hummm, acho que vou usar esses círculos para fazer uma fileira.”
Aluno C — “Usei círculos grandes e pequenos”, mostrando no chão sua sequência.
P — “Minha fileira de círculos parece uma lagarta. Acho que vou desenhar algumas pernas de lagarta.”
Aluna J — “Ela também precisa de olhos e boca.”
Aluno T — “Boa ideia, assim ela fica uma lagarta feliz!”
Aluno C — “Olha, fiz um triângulo com meus três círculos!”
P — “Sim, você tem três cantos!”
O aluno C decide usar uma caneta hidrocor para conectar seus três círculos.
Nesse caso, quando o professor diz que havia três cantos e a criança desenha um triângulo a partir da junção dos círculos, percebe que há duas formas geométricas sendo exploradas.
Geralmente, o professor modela do início ao fim um processo e então deixa as crianças livres; ele não assume o controle inteiro da discussão, mas inicia a conversa com seu pensamento (fazer pernas no círculo) e deixa as crianças dialogarem com os seus (fazer um triângulo com os círculos). Quando o professor percebe que os alunos estão inseridos na discussão, ele pode incitar a conversa e ficar disponível para ouvir outras ideias, ou deixar o aluno livre para trabalhar sozinho com seus conceitos e imagens.
Modelar é diferente de mediar, muito embora, ao modelar, o professor esteja mediando. Há uma linha muito tênue entre esses dois conceitos.
Vejamos como o conceito difere e/ou se complementa: Vygotsky fala em aprendizagem mediada quando o professor representa um elo entre o aluno e o conhecimento disponível no ambiente. A mediação, nesse sentido, é relevante para o desenvolvimento dos chamados processos mentais superiores, ou seja – planejar ações, perceber consequências para uma decisão, imaginar objetos etc. Se passarmos a relacionar a definição de Vygotsky com o papel do professor na mediação de leitura, podemos dizer que sua função é a de compartilhar conhecimentos, histórias, poesias para que a criança se desenvolva como leitor.
Mediar a leitura, porém, não significa apenas oferecer livros ou outros tipos de materiais impressos às crianças, mas fomentar o hábito da leitura, ser “modelo” de leitor, modelar a leitura.
Parte 2
Sobre o livro e a autora
O livro
Uma menina planta uma semente e a partir desse pequeno gesto todo um mundo brota em torno dela. A semente se transforma em um pequeno broto, depois em uma pequena árvore. Quando esta cresce, suas folhas e frutas, seus galhos e sombra dão início a um novo ciclo de vida que se organiza ao redor da inventiva garota... Um mundo de outras pequenas vidas: pássaros, animais, insetos. O ciclo da vida que se perpetua.
O livro começa com traços simples e poucas cores e, à medida que a natureza se desenvolve, toda sua exuberância é representada pela invasão de cores e de novas técnicas, entre elas a colagem de tecidos florais africanos que vão preenchendo o cenário, que se enche de vida.

Da simples ação de plantar, repleta de significado, surgem percepções poéticas acerca da natureza e da relação que o homem desenvolve com ela, instigando o pequeno leitor a imaginar interações tão criativas e divertidas quanto as da personagem do livro.
A autora
Véronique Vernette nasceu na França, em 1972. Durante e depois de ter cursado a Escola de Belas-Artes, Véronique realizou diversas viagens para Burkina Faso, país situado no oeste da África, cuja língua oficial é o francês. Seu trabalho como autora e ilustradora reflete, direta ou indiretamente, suas vivências no continente africano. Em A pequena semente, as ilustrações recriam a organização do espaço de maneira particular e autoral. A artista promove diferentes formas de olhar, lançando mão de técnicas mistas, como pintura e colagens de tecidos com estampas africanas, que surpreendem e realçam cores e formas dos elementos da natureza.
Nossa sugestão para o trabalho
Organizamos propostas, comentários e abordagens em tópicos cujos títulos dialogam com o ato de plantar, observar, cuidar e colher.
ESPAÇO DA LEITURA: preparando o solo e o cenário para receber o leitor.
ANTES DA LEITURA: separando a semente para o plantio de novas ideias.
DURANTE A LEITURA: regando o broto com histórias e conversas.
LINGUAGEM: um mundo inteiro de palavras e sentidos.
APÓS A LEITURA/INTERDISCIPLINARIDADE: coisas que acontecem em volta do livro.
LITERACIA FAMILIAR: espalhando e colhendo frutos.
Procuramos fazer uma abordagem interdisciplinar que busca sensibilizar as crianças ao componente curricular Ciências, explorando a curiosidade natural dessa faixa etária, o entusiasmo para investigação e descobertas, a capacidade para imaginar.
Essa intencionalidade consiste na organização e proposição, pelo educador, de experiências que permitam às crianças conhecer a si e ao outro e de conhecer e compreender as relações com a natureza, com a cultura e com a produção científica [...] (BNCC, p. 55)
Dessa forma, as propostas sugeridas foram pensadas para motivar: a acuidade visual, motora e auditiva; a prática da direcionalidade horizontal da linguagem escrita; a familiarização da criança com textos orais e escritos; o desenvolvimento sociocognitivo das crianças.
Espa O Da Leitura
Preparando o solo e o cenário para receber o leitor
Quem gosta de ler sabe que qualquer experiência de leitura é intensamente sensorial desde o momento em que o leitor recebe ou pega o livro em suas mãos, começa a manuseá-lo, a virar as páginas, a sentir a textura do papel da capa, o cheiro da tinta da impressão etc.
Os livros ilustrados trafegam em três camadas de significação: nos discursos do texto verbal (por escrito), no texto visual (das ilustrações) e no projeto gráfico (formato, tipo e gramatura do papel, encadernação, disposição das palavras e das imagens na obra). Quando lemos um livro ilustrado de qualidade estética, percebemos que essas três dimensões de leitura, essas três camadas de significação se entrelaçam e contribuem ainda mais para gerar a vontade de ler aquele livro.
Para favorecer esse encontro entre o leitor e o livro, nada melhor do que a preparação cuidadosa para que essa experiência sensorial literária aconteça, mesmo entre os pequenos leitores.
Aqui falamos de experiência sensorial, ou seja, atividades que explorem em maior ou menor intensidade os cinco sentidos: tátil, visual, auditivo, olfativo e gustativo. As crianças da Creche, como sabemos, são particularmente receptivas ao desenvolvimento dos sentidos.
Assim sendo, é muito bem-vinda a iniciativa de arrumar o ambiente da sala de aula para receber os alunos antes da leitura, propiciando, dessa forma, uma aproximação lúdica com o tema do livro por meio de elementos que remetam ao que será abordado.
Atiçar a curiosidade das crianças é um caminho para enriquecer a leitura e já fazer que, aos poucos, entrem em contato com a narrativa, percebendo o tema, envolvendo-se com a história. Analogamente, ao avançar pela capa ilustrada, página a página, o aluno da Educação Infantil vai se familiarizando com as características materiais do livro e abraçando o enredo.
Como o campo de experiência “Espaços, Tempos, Quantidades e Transformações” é o que apresenta maior possibilidade de articulação com o livro A pequena semente, propusemos vivências que podem sensibilizar os pequenos leitores a explorarem: experiências com a natureza e os ciclos de vidas; diversidade de espécies; relações entre seres vivos; afinidades desses mesmos seres vivos com o ambiente; germinação e experiências com botânica.