Revista EXP_2020_1 - Experiência

Page 1

Exp

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, ARTES E DESIGN - FAMECOS -PUCRS

Revista Experiência 2020_1

histórias para compartilhar

HISTÓRIAS REDESIGNADAS O O preconceito preconceito enfrentado enfrentado desde desde aa infância infância não não impediu impediu Nicola Nicola ee Helena Helena de de realizarem realizarem seus seus desejos desejos


EXP / 2020_1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE - PUCRS Reitor Ir. Evilásio Teixeira Vice-Reitor Prof. Jaderson Costa da Costa Pró-Reitor de Graduação e Educação Continuada Ir. Manuir José Mentges ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, ARTES E DESIGN - FAMECOS Decana Cristiane Mafacioli Carvalho Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier Realização da disciplina de Produção em Revista Professores responsáveis Luiz Antônio Araújo (texto) Flavia Campos de Quadros (fotografia) Fábian Chelkanoff Thier e Luiz Adolfo Lino de Souza (projeto gráfico) Revista EXP Julho de 2020 Capa: Vicente Breier Alunos: Letícia Santos da Silva, Fernanda Rampon Soprana, Gabriel Bolfoni, Talita Stefani Lorenzetti, Nícolas Wagner, Débora Ramos, Vicente Breier, Guilherme Milman, Matheus Goulart, Camila Pires, Rafaela Santos da Rocha, Rudimar Valença, Mia Sodré, Gabriela Porto Alegre, Ângelo Menezes Teixeira, Natália Schwengber, Gabriel Salazar, Vítor Filomeno, Eduarda Pereira e Luiz Frasson 2 | REVISTA EXP | 2020_1


CARTA AO LEITOR

As pontes MATHEUS S. GOULART

J

ornalismo é sobre construir pontes. Diferentemente da engenharia, no entanto, em que os projetos exigem exatidão, a eficiência do jornalismo não é medida “pela ausência de acontecimentos insólitos”, como definiu o historiador Joseph Gies, citado por Gay Talese em seu livro Fama & anonimato. Pelo contrário: cada reportagem desta revista foi pensada para fugir da normalidade – evidenciar assuntos muitas vezes escondidos no cotidiano, conectar pessoas cujas histórias estão sendo contadas àquelas que as estão lendo. E, é claro, atuar sob circunstâncias incomuns: esta edição da Revista Exp foi produzida no período mais atípico dos últimos anos. As entrevistas foram limitadas por pacotes de dados, com uma distância de pelo menos duas telas entre os entrevistados e os agentes da publicação, estudantes do sétimo semestre de jornalismo da Escola de Comunicação, Artes e Design - Famecos da PUCRS. Foi necessário, então, construir mais uma ponte para ultrapassar esse terreno adverso. Alguns dos conteúdos encontrados no decorrer da revista servem de documentação deste momento: logo nas primeiras páginas, o relato de uma família de Porto Alegre que está lutando para se manter durante a pandemia do novo coronavírus, aguardando um auxílio federal que não chega a todos. Outras reportagens, como a da capa desta ediçãow, tratam de temas que já vêm pautando o debate público com certa constância, mas ainda monstram-se relevantes e dignos de reportar: o relato de dois transexuais que, desde a infância, enfrentam desafios e violência por suas condições. Há também reportagens que não têm qualquer ligação com o dia a dia do brasileiro médio, como a história de três ex-freiras que deixaram suas vidas religiosas por seus próprios motivos e com suas convicções. O que importa, no fim das contas, é saber que você encontrará diferentes histórias, contadas de diferentes maneiras. Mas todas consistentes e estruturadas como um monumento. Como uma ponte. BOA LEITURA

2020_1 | REVISTA EXP | 3


ÍNDICE

Foto Aline Prestes

06

Uma fila virtual A espera das famílias em análise revela mais do que números divulgados pelo Ministério da Cidadania sobre o auxílio emergencial. Quem não pode trabalhar, por preocupação com a saúde ou pela falta de oportunidades, depende da eficiência dos sistemas disponíveis.

22

Interior na linha de frente da informação Imprensa regional ganha relevância na cobertura jornalística da maior crise sanitária do século no Rio Grande do Sul. Não à toa, o Governo Brasileiro considerou a atividade da imprensa essencial durante esse período. As pessoas não só precisam estar seguras, como também bem informadas.

4 | REVISTA EXP | JULHO DE 2020

14 O novo jeito de servir No dia 20 de março de 2020, a prefeitura de Porto Alegre decretou o fechamento de bares e restaurantes da cidade a fim de conter o avanço do novo coronavírus. Durante a maior crise da história no setor, como restaurantes e bares estão buscando soluções para enfrentar a pandemia? Foto: Arquivo pessoal


52

Idosos curtem e compartilham No Brasil há 30 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, segundo dados divulgados pelo IBGE. Isso corresponde a 14% da população do país. A geração prateada se aventura nas tecnologias para se integrar ao mundo, e as famílias são fundamentais neste processo.

2020_1

EXP Foto Wagner Cabistany

74

De Porto Alegre para os fones

Foto Arquivo pessoal

Em 2019, milhões de pessoas de todas as idades passaram a ter contato com podcasts, que até então eram reservados a uma parcela menor da população. Com o consumo aumentando a cada ano, novos produtores de conteúdo surgem pelo país. Conheça alguns criados na Capital gaúcha. JULHO DE 2020 | REVISTA EXP | 5


Uma fila virtual A espera das famílias em análise revela mais do que números divulgados pelo Ministério da Cidadania sobre o auxílio emergencial Texto e fotos LETÍCIA SANTOS

C

om a chegada do novo coronavírus no país, as medidas de segurança de saúde coletiva exigiram mudanças de hábitos sociais e econômicos de toda a população, pressionando o governo federal a apresentar políticas públicas capazes de amenizar os impactos dessa alteração de cotidiano. Passados 41 dias desde a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil, foi, então, anunciado o auxílio emergencial, proposto como mecanismo de garantia do básico necessário àqueles que seriam os mais afetados pela diminuição de renda causada pela pandemia. Além de beneficiários de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, o Poder Público disponibilizou uma plataforma virtual para o requerimento do auxílio por parte de trabalhadores informais e autônomos, como Michele Joseanne Silveira, que hoje olha com desesperança para a tela do celular ao abrir o aplicativo governamental, que indica que o pedido dela segue em análise. 6 | REVISTA EXP | 2020_1

O olhar da diarista de 37 anos evidencia que a situação prolongada de aguardo já a fez não ter mais expectativa de receber o dinheiro anunciado. Apesar de ter procurado o direito ao auxílio emergencial logo na primeira semana de cadastramento, Michele, que mora com os quatro filhos mais novos em Alvorada (RS), aguarda o avanço do seu requerimento desde o começo de abril. “Antes eu olhava todos os dias, mas hoje passo dois ou três dias sem abrir o aplicativo, porque sei que ainda vai estar em análise”, comenta ela. A situação de Michele está em meio aos 1.535.126 cadastros de pessoas físicas (CPFs) que, até 30 de abril, ainda aguardavam o processamento da Caixa Econômica Federal para serem considerados elegíveis ou não para o recebimento do dinheiro emergencial. Estipulado pela Lei nº 13.982 e regulamentado pelo Decreto nº 10.316, o pagamento do auxílio no valor de R$ 600 a trabalhadores informais e microempreendedores individuais (MEI) com renda familiar per capita de até meio salário mínimo ou com o total mensal de até três salários mínimos faz parte das medidas de proteção social apresentadas para enfrentar a Covid-19 no Brasil.


Quem não pode trabalhar, por preocupação com a saúde ou pelas oportunidades, depende da eficiência dos sistemas disponíveis

Orgulhosamente, Michele afirma que, até o período de distanciamento social causado pela pandemia, ela sempre conseguiu garantir o sustento dos filhos através do seu trabalho, tendo criado os seis dessa maneira. Porém, com a chegada do novo coronavírus na região metropolitana de Porto Alegre (RS), a família teve que enfrentar a quarentena e o cancelamento das quatro faxinas semanais que levavam renda para a casa. Michele conta que as patroas para quem ela

costumava trabalhar semanalmente pediram a suspensão das diárias logo no meio de março, quando foi publicado o primeiro decreto de quarentena em solo gaúcho. Segundo ela, algumas das empregadoras ainda chegam a conferir como ela está e às vezes fazem transferências de cerca de 50 reais para ajudá-la. Apesar da falta do dinheiro garantido pelas faxinas fixas, a diarista afirma que compreende a preocupação com os riscos de contaminação e confessa que também teme pela saúde dela e dos filhos. 2020_1 | REVISTA EXP | 7


“As pessoas ficam com medo e eu até entendo, porque moramos longe e não tem como saber se a gente está se cuidando ou não”, observa. Com a rotina alterada, as atividades da família foram restringidas à casa em que mora, que antes era da mãe de Michele e hoje pertence a ela. Com a falta de trabalho, a preocupação com o vírus e o pedido de auxílio emergencial sendo analisado desde 7 de abril, Michele recorreu a um grupo no Facebook disposto a ajudar mulheres com dificuldade financeira durante o isolamento social. Foi através do Boleto+1 que ela conheceu pessoas que lhe doaram alimentos, produtos de higiene, botijão de gás e fraldas para a caçula Isadora, de 11 meses. Com a ajuda vinda pela rede social e de uma amiga que trabalha com ações voluntárias em Alvorada, Michele garante que não tem faltado mantimentos para ela e as crianças. A diarista comenta que o resultado tem sido tão positivo que já ocorreu de receber quatro doações no mesmo dia, o que levou ela a repassar parte dos alimentos para ajudar outra mãe necessitada em seu bairro. “Uma vai ajudando a outra e eu acho isso bonito” afirma. “Do mesmo jeito que eu sou ajudada, eu gosto de ajudar os outros, porque todo mundo está no mesmo barco. Então, se eu tenho quatro cestas básicas, por que eu não vou doar uma para alguém que também esteja precisando?” Mesmo com os problemas econômicos sendo controlados com as contribuições de pessoas antes desconhecidas, Michele ainda não se sente confortável com a situação. “Espero que, acabando essa pandemia, tudo volte ao normal, porque eu realmente acho bonito a ação que elas fazem de me ajudar, mas não é o que eu sempre fui”, salienta. É levando em conta contextos como o que Michele está passando que os indicadores sobre o mercado de trabalho apresentados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam para relevantes impactos da 8 | REVISTA EXP | 2020_1

pandemia no cotidiano financeiro da população. De acordo com a pesquisa divulgada em 28 de maio pela autarquia, abril registrou 12,8 milhões de desempregados, chegando ao percentual nacional de 12,6% e superando a taxa de janeiro em 898 mil pessoas que passaram para categoria de desemprego. Além dos valores de quem ainda busca trabalho em meio ao período pandêmico, o mês de abril também foi marcado pelo maior número histórico de pessoas sem ocupação e que não estão na busca por emprego, batendo o número 5 milhões de desalentados. Com o registro desses índices, a aplicação de políticas públicas como a do auxílio emergencial se tornam necessárias para assegurar o mínimo aos brasileiros, como sugere a doutoranda no Programa de Pós-Graduação de Políticas Públicas da UFRGS Talita Jabs Eger, com experiência em pesquisas sobre os programas federais de transferências de renda.“Em um contexto epidêmico, assim como em contextos de profunda miserabilidade, a sociedade exige, necessita e tem o direito a respostas imediatas” afirma a pesquisadora. “Neste momento precisamos garantir que as populações que vivem

A peregrinação de Michele Joseane Silveira acontece por meio das plataformas virtuais que o governo federal disponibilizou para o requerimento do auxílio


a margem, tornando-se mais vulneráveis às consequências da Covid-19, tenham acesso a políticas extraordinárias e à flexibilização de políticas já existentes”. Na prática, como a principal medida econômica de intervenção governamental tem sido a concessão do auxílio emergencial, pessoas como Michele ainda se encontram fora das estatísticas da atuação do Poder Público. De acordo com o Portal de Transparência do Governo Federal, até o fim de maio, foram pagos pelo Ministério da Cidadania mais de R$ 38 bilhões nas duas parcelas concedidas aos cerca de 50,2 milhões de brasileiros. Entre os números referentes a realidades mais próximas de Michele, no Rio Grande do Sul já foram concedidos R$ 1,4 bilhões aos beneficiários do auxílio e em Alvorada, cidade de cerca de 176 mil habitantes em que a diarista reside, o valor pago nas duas parcelas passa de R$ 31,5 milhões. Com os quatro filhos pequenos em casa dependendo das doações, Michele confessa que a falta de resposta de seu pedido é piorada pela forma que vê seus vizinhos utilizando os valores recebidos. “O que mais me entristeceu foi que

eu vi muita gente que não precisava e pegou benefício, eles não pensam no dia do amanhã, fazem churrascada e reúnem um monte de gente no mesmo lugar”, descreveu. A demora e as falhas apontadas por pessoas que, assim como Michele, buscam o auxílio através das plataformas digitais disponibilizadas para os trabalhadores informais e MEIs, que não estavam inseridos no Cadastro Único dos programas sociais, são consideradas pela pesquisadora Talita como inerentes à estrutura disposta pelo governo federal no início da pandemia. Segundo ela, “há que se considerar o processo de desmantelamento das políticas sociais no governo Bolsonaro e, com isso, a desestruturação dos ministérios e instituições responsáveis por elas”. Enquanto faltam mecanismos para zerar a fila de espera de análise dos pedidos, ainda sobram aspectos para evidenciar o que Talita descreve como abismo socioeconômico escancarado pela pandemia no Brasil, que “precisará desenvolver políticas que combatam efetivamente a desigualdade e as diversas facetas da pobreza”.

Os filhos Alan (E), Isadora, Ágata e Taylor, que moram com a mãe, também dependem das doações recebidas para passar o período de isolamento sem o auxílio

2020_1 | REVISTA EXP | 9


Fernanda Soprana

12 | NOME DA REVISTA | MÊS E ANO


Contenção de danos Índices de depressão e ansiedade aumentaram durante a pandemia do novo coronavírus, segundo a Fiocruz Texto FERNANDA R. SOPRANA

“É Pelo menos 47% dos portadores de diagnóstico de depressão relataram agravamento do quadro nos últimos meses

desesperador. É muito difícil esconder que você perdeu toda e qualquer esperança, que você chora durante o dia inteiro e não tem vontade de fazer nada. E você não pode pedir ajuda, porque todos estão passando por um momento delicado e estressante. Então você se sente muito sozinho.” Geórgia Ferreira tem 22 anos e é estudante de Medicina Veterinária pela Uniritter, em Porto Alegre. Há seis anos, após uma tentativa de suicídio, foi diagnosticada com depressão. Ela também lida com transtorno de ansiedade generalizada desde a infância. Em 2019, desenvolveu fobia social e descobriu que tem bipolaridade tipo dois. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a crise da Covid-19 como uma pandemia no dia 11 de março de 2020. Nesse mesmo dia, o primeiro caso foi confirmado na capital gaúcha. No Brasil, as primeiras infecções haviam sido registradas no final de fevereiro.

Nas primeiras semanas do isolamento social no Brasil, em meados de abril, a população brasileira registrou alterações de comportamento. Os dados são de pesquisa coordenada pelo Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict), da Fundação Oswaldo Cruz) (Fiocruz), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo o estudo, que contou com a participação de 44.062 pessoas, grande parcela da população relatou aumento de sintomas depressivos. Pelo menos 40% dos entrevistados sentiram-se tristes ou deprimidos; 54% se sentiram ansiosos ou nervosos frequentemente. Entre os jovens (de 18 a 29 anos), a incidência é maior: 54% e 70%, respectivamente. “Muitas das minhas crises de ansiedade foram consequência de notícias sobre a pandemia. Confesso que quando tudo começou no país, não levei a sério. Pensei que passaria. Logo que o primeiro caso foi confirmado em Porto Alegre, foi um choque de realidade. Pensei na minha avó, que tem câncer. Tive uma crise muito forte”, diz Geórgia. 2020_1 | REVISTA EXP | 11


Ela ainda relata que, após ver”, relata Geórgia. Du“Eu não noto a um mês de pandemia, sentiu rante a pandemia, as duas intensidade das cores. um aumento na raiva. “Os reMeu mundo fica em tons não se veem pessoalmente médios perderam totalmente de cinza, preto e branco.” – mantém o contato por o efeito. Era como se eu esvídeo-chamadas diariaGEÓRGIA FERREIRA, tivesse tomando placebo”, mente. “A saudade aperta, 22 anos explica. mas é uma situação comDurante a pesquisa da Fioplicada. Moro com minha cruz, mulheres relataram problemas no ânimo avó e ela tem um padrasto asmático”, explica. com maior frequência do que homens: enquanto O mundo de Geórgia perdeu a intensidade 30% dos homens entrevistados sentem-se tristes na pandemia – literalmente. “Eu não noto a ou deprimidos, o percentual entre mulheres foi intensidade das cores. Meu mundo fica em tons de 50%. Além disso, 60% das mulheres relataram de cinza, preto e branco. Não percebo que as sentimentos de ansiedade e nervosismo; 43% dos cores existem ou o que acontece ao meu redor”. homens compartilham o sentimento. Com o agravamento dos sintomas da depressão, A partir de maio deste ano, a OMS declarou principalmente crises de apatia, os cenários do a América Latina como o epicentro da pande- cotidiano perdem a importância. Geórgia precisou se ajustar à nova realidade. mia. O Brasil, com um aumento exponencial de infecções, se tornou o país mais preocupante. Em momentos de dificuldades, a psicóloga é Apesar de não ser o único epicentro do vírus, sempre a primeira opção, uma vez que oferece mais e mais leitos são ocupados nas UTI’s em uma abordagem rápida e direta. Na falta dela, território nacional. Geórgia desenvolveu alguns métodos. “Paro “Com o aumento de casos, tenho ansiedade tudo que estou fazendo, acendo uma vela e leio quase todos os dias. Por indicação da minha um livro no meu quarto. É o lugar que mais me psicóloga, entrei em um modo de contenção de acalma. Tento me concentrar em coisas que me danos. Parei de acompanhar as notícias, porque geram bem-estar”. não me ajuda no tratamento. Me informo pelos Para Geórgia, uma rotina é essencial para outros, mas não busco o que acontece”, relata manter a saúde mental em isolamento. Em dias bons, ela assiste às aulas da faculdade pela maGeórgia. Entre aqueles que já tinham um diagnóstico nhã. Após um respiro no almoço, ela brinca com de depressão, pelo menos 47% perceberam um seus cachorros, Garibaldi e Mel, até as 15h. A agravamento na saúde mental. Para Geórgia, partir daí, retoma os estudos e coloca as matérias não foi diferente. “Com a depressão, a maior em dia até o relógio assinalar 19h, quando se dificuldade é sair da cama. Preciso buscar uma distrai até dormir. Mas nem sempre os dias são bons. Em maio, distração. Para mim, meu refúgio era sair de casa. Na pandemia não posso mais fazer isso”, o psiquiatra de Geórgia forneceu-lhe um atestado de duas semanas para não assistir a aulas à diz a estudante. Os principais recursos de Geórgia para lidar distância. “É preciso desacelerar. As pessoas não precom a saúde mental foram retirados no início do isolamento. A namorada, ao lado da gaúcha cisam se importar tanto em manter uma vida há um ano, é a pessoa que mais a ajuda nos mo- normal. Não estamos de férias, mas não podemos mentos mais difíceis. achar que a vida precisa ser como sempre foi. “Quando eu tinha uma crise de ansiedade, Estamos em isolamento em meio à pandemia, e ela saía direto da faculdade e vinha para a minha isso pode afetar muito a saúde mental. Pode ser casa. Quando eu tinha episódios de apatia, eu irreversível. Por isso, é importante encontrar ligava para ela e no dia seguinte ela vinha me um tempo na rotina para respirar e se divertir.” 12 | REVISTA EXP | 2020_1


Acender uma vela e ler seus livros favoritos são jeitos que Geórgia encontrou para acalmar a ansiedade

Geórgia segura a mão da namorada que sempre foi um refúgio às crises de depressão 2020_1 | REVISTA EXP | 13


Arquivo pessoal

12 | NOME DA REVISTA | MÊS E ANO


Novo jeito de servir Como restaurantes e bares estão buscando soluções para enfrentar a pandemia, durante a maior crise da história no setor

Texto GABRIEL BOLFONI

O

O Barzito se reinventou para não deixar de existir, e com rifas e vouchers conquistou seu público

barulho dos pratos, talheres, copos e conversas foi silenciado. No dia 20 de março de 2020, a prefeitura de Porto Alegre decretou o fechamento de bares e restaurantes da cidade a fim de conter o avanço do novo coronavírus. A decisão foi entendida por boa parte da população, que se recolheu a suas casas seguindo os protocolos de saúde. Coube às mais de 35 mil pessoas que trabalham no setor somente na Capital repensar a atividade e buscar novas formas de atender ao público. Uma boa parte se voltou ao sistema de delivery. Segundo a Rappi (um dos principais aplicativos da modalidade no país), houve um crescimento em torno de 10% nas suas atividades de entrega domiciliar durante a quarentena. Enquanto os carros ficavam em casa, uma onda de motoboys e o barulho de seus veículos inundava as ruas. Segundo a Fenabrave, no mês de maio houve aumento de quase 12% nas vendas e licenciamento de motocicletas em relação ao mês de abril. Restaurantes que antes não haviam se cadastrado nos serviços de entrega se viram quase que obrigados a tal. Desde restaurantes chiques da cidade até vendedores ambulantes de balas de coco. Todos querem a exposição que os apps trazem ao

negócio e a facilidade de entregar ao cliente, ainda mais agora com a pandemia impedindo de pessoas frequentarem os espaços físicos dos empreendimentos. Antes de embarcar no mundo do delivery, o bar e restaurante Justo, o qual tem como diferencial sua comidas preparadas com receitas artesanais, fez uma pesquisa para entender melhor o mercado. Segundo o estudo, 70% das pessoas disseram que iriam pedir pelo menos uma vez por mês a comida do empreendimento. Com esses dados, os 10 funcionários se mobilizaram e aceitaram o desafio, porém nem tudo saiu nos conformes. Adelino Bilhalva, sócio-proprietário do Justo diz que “quando saiu o decreto para fechamento decidimos encerrar tudo, até o delivery. Os gastos não compensam”. Outro estabelecimento que passou pelo mesmo dilema foi o bar Capincho, que leva o Rio Grande do Sul como inspiração em seus pratos e drinques. O empreendimento aderiu ao delivery e logo viu seus planos frustrados com a perda de qualidade de seus produtos causada pela tele-entrega. Assim, decidiu se reinventar preparando apenas comidas congeladas e drinques, que são o carro-chefe do local. Segundo Flavia Mu, que comanda o estabelecimento ao lado de Marcelo Schambeck e Fred Müller, “foi a melhor forma que encontramos para que as coisas tivessem a qualidade mais próxima do que oferecemos 2020_1 | REVISTA EXP | 15


tor está se alterando para no restaurante”. Para manter “Temos que parar de encaixar na atual rotina a qualidade do cardápio, os comparar. Antes era da sociedade. Matheus ingredientes são entregues antes e não vai voltar Strelow, um dos donos em embalagens separadas e mais.” do bar Firma, conta que embaladas a vácuo para que “as mudanças no cardápio o cliente os finalize em casa. DIOGO CARVALHO, jornalista ocorreram em função da Toda segunda-feira, o caradaptação ao delivery. Nos dápio é divulgado e o públipreocupamos em entregar co pode fazer os pedidos até comidas e drinks que surquinta. A produção dos congelados ocorre entre sexta e sábado, diminuin- preendam na apresentação, então precisamos do também as saídas da equipe de funcionários. transformar para o formato de entregas. Fazer Todos as encomendas são entregues na manhã com que o prato chegue em boa qualidade ao de domingo. Dessa forma, o restaurante tam- seu destino, mantendo uma boa experiência bém evita criar um estoque desnecessário de para o cliente”. O bar, que antes atendia apenas insumos, e que por muitas vezes acaba sendo pela parte à noite, começou a abrir mais cedo durante a semana para poder oferecer almoço jogado fora. O Barzito, empreendimento com foco em também. O sistema de entregas já estava para drinques criados com matérias-primas de ser implementado, e a pandemia apenas aceleprodutores locais e tocado pelos amigos Beto rou o processo. Mesmo assim, Matheus estima Galetto, Bruno Ritzel e Vitória Fetter, foi pego que atualmente o faturamento bate apenas nos de surpresa com a crise. Com foco maior em 30% do que era antes. “O isolamento mudou drinques do que em comida, o bar não viu a completamente o comportamento do nosso possibilidade de utilizar do sistema de entre- consumidor, e o trabalho de marketing realizagas para continuar os trabalhos. Sendo assim, do nas redes sociais foi muito importante para tomaram uma decisão mais dura e suspende- manter a empresa competitiva no mercado. ram as atividades por tempo indeterminado. Hoje precisamos aparecer e convencer o cliente Para Beto, “tão difícil quanto a decisão, é achar que ele deve optar pelo nosso produto, dentro formas da gente conseguir segurar as contas de uma enxurrada de outras ofertas.” Uma coisa é dada como certa pelas pessoas nesse momento de crise, já que, infelizmente, elas não param de chegar. Então começamos a da área: haverá a necessidade de ainda mais vender gift cards de diversos valores, que pode- mudanças. Para Diogo Carvalho, cofundador rão ser usados assim que as coisas voltarem ao do Destemperados, blog de comida do Grupo normal”. O bar inovou também com a criação RBS, “os restaurantes não são apenas um esde uma rifa na qual os prêmios foram cedidos tabelecimento físico, mas uma plataforma de por amigos dos empresários. Desde cortes de conteúdo e de experiências gastronômicas que ganham a vida virtualmente, e não mais precabelos, tatuagens, ingressos para festas, CD’s de artistas locais, até comidas de restau- sencialmente”. Mesmo com a reabertura lenta e gradual dos rantes parceiros. Ao módico preço de 10 reais, mais de 200 pessoas participaram do concurso. estabelecimentos do setor depois de três meCom o passar da quarentena, os amigos resol- ses fechados, muitos optaram por continuar de veram investir nas entregas dos drinques da portas cerradas. “Acreditamos que ainda é muicasa e ingredientes dos mesmos, sendo feitos e to precipitado e que a administração sabe disso, entregues pelos próprios donos todas as sextas, mas precisa que as pessoas se contaminem aos poucos para ir testando a capacidade do sistesábados e domingos. As diversas soluções buscadas pelos empre- ma de saúde. Mas para nós seria muito errado endedores da área só mostram o quanto o se- contribuir para isso”, diz Adelino. 16 | REVISTA EXP | 2020_1


Fotos Arquivo Pessoal

O Firma ampliou seus horários de atendimento, somente por delivery, oferecendo um cardápio diferenciado O Justo, na escadaria da Borges de Medeiros, espera o momento certo para reabrir e não prejudicar a população 2020_1 | REVISTA EXP | 17


Eduarda Remor

Tempo de reinvenção Metodologia de ensino à distância se tornou impasse, mas também uma nova ferramenta de ampliação de aprendizagem

Texto TALITA LORENZETTI

A

lgo que parecia impensável nos últimos tempos tornou-se uma realidade para grande parte das crianças em fase inicial da vida escolar: o ensino à distância. Os impactos negativos da pandemia de Covid-19 foram, além da saúde pública e economia, afetando o calendário e a qualidade do ensino. As escolas fechadas, os alunos em casa, a incerteza pela retomada. Estes fatores afligem tanto alunos e familiares, quanto a comunidade escolar. Tudo se transformou. O quadro foi substituído pelas telas. Os cenários mudaram. As cadeiras da salas de aula se esvaziaram. Os pratos nos refeitórios ficaram guardados nos armários. Os desafios com concentração se tornaram frequentes, enquanto as dificuldades na produção e distribuição de conteúdos e a criação de um modelo pedagógico eficiente passaram a fazer parte da vida de educadores. 18 | REVISTA EXP | J2020_1

De acordo com a Unesco, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em março de 2020, foram registrados quase 300 milhões de alunos afetados pela suspensão das atividades escolares em 22 países de três continentes. A Revista Época traz um número ainda maior: 138 países com instituições educacionais fechadas, 1,47 bilhão de estudantes fora da escola e 60,2 milhões de professores sem lecionar em sala de aula. Os números de impactados crescem junto com a expansão do vírus. Diante desse cenário, escolas da rede privada e pública passaram a buscar alternativas para que os alunos não percam o vínculo com as instituições, mas que mudarão drasticamente a maneira com que enxergamos o ensino no país. No Rio Grande do Sul com respaldo governo, as escolas manterão atividades remotas até que se estudem os protocolos adequados para o retorno gradual das atividades presenciais, previsto para setembro de 2020. De acordo com o planejamento, o cronograma seguirá três etapas: a fase 1, com o fortalecimento de aulas


Eduarda tem 11 anos e está se adaptando ao ensino à distância e realizando atividade extracurricular

on-line e a criação de mais de 37 mil salas de aulas virtuais por meio da plataforma Google For Education. A fase 2, que abrange o retorno das atividades práticas do ensino superior e a fase 3, que projeta o retorno prioritário das aulas presenciais para a educação infantil e, talvez, o ensino fundamental. A aluna do quinto ano do ensino fundamental do Colégio Franciscano São José, Eduarda Oro Remor, sente que não está sendo prejudicada pela suspensão das aulas, já que a escola está substituindo as aulas presenciais por conteúdos on-line. Mesmo que não esteja tendo dificuldades com esse novo processo de aprendizagem, a casa precisou ser adaptada: o computador, os cadernos, livros e canetas ocupam a mesa da cozinha. Essa foi a forma que a aluna que

tem 11 anos, encontrou para se concentrar nos momentos em que está estudando. “Eu entendo bem a matéria nas aulas on-line, tiro algumas dúvidas com as perguntas que os colegas fazem, mas pra entender melhor o conteúdo seria muito bom estar junto dos professores. Eu gostei de estudar em casa, mas sinto falta da escola, dos colegas e dos professores. É divertido, e eu aprendo bem mais”, destaca. Com a ausência da uniformidade das Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Básica, cada escola precisou traçar estratégias para reparar os danos da suspensão das aulas, como o uso constante de ferramentas digitais de acesso facilitado. Contudo, em um país em que a desigualdade é enraizada – o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, segundo 2020_1 | REVISTA EXP | 19


Rose Mari Sovernigo

o último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) –, nem todos os estudantes conseguem acessar aos conteúdos disponibilizados pelos professores. Para amenizar essa adversidade, a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul estendeu o acesso gratuito à internet para alunos da rede estadual de ensino e desenvolveu alternativas para que as aulas online contassem como dias letivos. Contudo o problema vai além do acesso limitado. Outros problemas podem virar obstáculos no acompanhamento dos conteúdos digitais, como a falta de computadores e de estrutura física, a sobrecarga de atividades e a baixa escolaridade dos familiares. A tendência é de que, neste período, os educadores reforcem os conteúdos em salas virtuais e deem prioridade às principais questões. No entanto, antes de políticas públicas serem desenvolvidas, professores criaram estratégias independentes para amenizarem os impactos negativos da ausência das aulas presenciais. Rose Mari Schultz Sovernigo, 54 anos, é professora contratada do Estado e, há seis anos dá aulas para o 2º ano do Ensino Fundamental na 20| REVISTA EXP | 2020_1

Escola Estadual de Ensino Médio Dr. João Caruso, em Erechim. Rose explica que o primeiro passo dado foi entrar em contato com as famílias, entender a situação dos alunos, saber se tinham acesso à internet ou não, para então iniciar um planejamento de atividades via aplicativo de de troca de mensagens. “No começo foi difícil, mas, na medida do possível, estamos conseguindo nos organizar e dar todas as atividades. Estamos revisando conteúdos e pedindo para as famílias ajudarem as crianças na execução das atividades. No entanto, essas atividades nunca serão iguais ao aprendizado em sala de aula”, relata. A iniciativa da escola de Rose é muito semelhante a da Escola Municipal de Ensino Fundamental Afonso Guerreiro Lima. A escola, situada na Lomba do Pinheiro, um dos bairros com menor IDH de Porto Alegre, reuniu toda a equipe diretiva para montar um blog, ou seja, um espaço virtual que serve como repositório dos conteúdos elaborados pelos professores. De acordo com Daiane Santos Lisboa, diretora da escola, a ideia é que os conteúdos sirvam como reforço escolar para os alunos manterem o vínculo com a instituição nesse período.

Rose criou um grupo em um aplicativo de mensagens para manter vínculo com os alunos e vive uma jornada tripla de trabalho para amenizar os impactos negativos no ensino


Talita Lorenzetti

Contudo, a maior preocupação da Daiane não é somente o acesso aos conteúdos, mas os impactos negativos do afastamento dos alunos do ambiente escolar. “Meu maior receio neste momento é que a nossa escola ajuda muitas famílias na alimentação e na parte assistencial. Tem muitos de nossos alunos que faziam todas as refeições aqui e com a escola fechada a gente se preocupa como as famílias estão vivendo neste momento sem a nossa ajuda”, relata. Com mais de 14 milhões de jovens com menos de 14 anos abaixo da linha da pobreza, em muitos casos a merenda escolar é uma das principais fontes de alimentação, se não a única. Em um plano emergencial, a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul distribuiu, em abril, cerca de 185 mil cestas básicas, contendo 24 quilos de alimentos cada uma, para pais e responsáveis pelos alunos devidamente matriculados e em situação de vulnerabilidade social. A iniciativa vinda do governo ameniza, mas não resolve completamente. Para Rosele Cozza Bruno de Souza, que diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Anísio Teixeira, situada no bairro Hípica, em Porto Alegre, as dificuldades impostas pelo ensino à distância reforçaram um debate sobre algo muito comum e presente na realidade muitas famílias: a desigualdade social. “Nós vamos ter alguns ganhos em termos de valores. Vamos pensar mais na sociedade que a gente vive, nas dife-

renças que existem entre as classes sociais. Esse vírus trouxe mais que a morte de milhões de pessoas, mas apontou as diferenças sobre quem tem muito e quem tem tão pouco.” Em relação ao ensino, Rosele acredita que as trocas em sala de aula e as atividades lúdicas realizadas dentro do ambiente escolar são fundamentais no processo de aprendizagem. Embora a escola tenha estrutura para atividades digitais, elas não substituem o convívio com outras crianças e o contato direto com o educador. “Desde 2018, a escola escolheu uma plataforma que auxilia no ensino, o Google Class Room. Não queremos que esse momento seja de problema para as famílias. A intenção é que eles mantenham o vínculo com a escola e não que seja estressante”, relata. As mudanças na educação serão permanentes mesmo pós-pandemia. O avanço na utilização de novas ferramentas e tecnologias poderão fazer com que instituições educacionais repensem nos métodos de ensino. Contudo, sabe-se que nas fases iniciais este método de ensino não pode suplementar a aprendizagem presencial, mas pode ampliar as possibilidades de aprendizagem. Sendo assim, mesmo que em uma situação totalmente atípica, a educação poderá ser vista, planejada e vista além dos muros, em um novo formato, com novas ferramentas. O aprendizado de 2020 será a reinvenção.

O blog Guerrero a Distância nasceu como repositório de atividades, mas hoje é o principal canal de comunicação dos educadores com estudantes


Ricardo Sander

Informação intensiva Imprensa regional ganha relevância na cobertura jornalística da maior crise sanitária do século no Rio Grande do Sul Texto NÍCOLAS WAGNER

R

edações reduzidas, pautas monotemáticas, escritórios no quarto de casa. Como para todos, a rotina da classe jornalística foi modificada por conta da pandemia da Covid-19. Porém, a demanda e a responsabilidade desses profissionais aumentou. Não à toa, o Governo Brasileiro considerou a atividade da imprensa 22 | REVISTA EXP | 2020_1

essencial durante esse período. Quando se trata de um vírus desconhecido, as pessoas não só precisam estar seguras, como também bem informadas. Para jornalistas do interior do Rio Grande do Sul, a nova realidade impôs dificuldades extras à medida que muitos veículos possuem poucos profissionais, e que as informações se difundem de maneira diferente das capitais, onde a grande mídia está presente. A necessidade da união de esforços para a cobertura da Covid-19 fez jornalistas de todas as áreas migrarem para a editoria geral ou de saúde.

Ricardo Sander, jornalista do Grupo Independente, cobre a pandemia em Lajeado, um dos epicentros da contaminação no Interior


Grupo Independente, de Lajeado, aumentou de 70 para mais de cem a média de notícias diárias publicadas em seu site Foi o caso de Matheus Beck, 29 anos, do Grupo Sinos. Mesmo que já tivesse experiência com jornalismo geral no próprio veículo, em que está desde 2013, ele habitualmente faz parte da editoria de esportes, onde cobre a dupla Gre-Nal, além do Aimoré, de São Leopoldo. “Tenho tranquilidade de dizer que não me considero somente jornalista esportivo. Antes de qualquer coisa sou jornalista. Mas é diferente o trato com as fontes. Estava acostumado a lidar com jogadores, treinadores, dirigentes. Agora passo a tratar diretamente com prefeituras, secretarias, governo e assessorias. Sabemos que não temos a mesma intimidade com as fontes”, reflete Beck. Uma semana após a paralisação dos campeonatos por conta da pandemia, ele e os outros dois colegas da editoria de esportes do Jornal NH foram deslocados para o jornalismo geral, que naturalmente detinha demanda maior. Uma das primeiras pautas feitas por Beck foi com o prefeito de Campo Bom, Luciano Orsi (PDT), que no dia 20 de março determinou o fechamento do acesso à cidade - à exceção para moradores ou quem trabalha no município. Foi uma de suas raras externas durante a pandemia. Aos poucos, quase todos profissionais do Grupo Sinos foram liberados para home office. Beck foi um dos últimos. Havia solicitado pelo fato de seus pais pertenceram ao grupo de risco - a mãe recém fez cirurgia e o pai tem hipertensão, além de ter mais de 60 anos. Em casa, um novo desafio. “Sou à moda antiga. Gosto muito de ir às pautas e fazer externas, o que foi impedido. Acabou que toda rotina permanece no meu quarto. Improvisei um escritório. Tem sido bastante desafiador não ir aos lugares, especialmente por não ter ilustrações”, explica Beck. Seja para quem está em casa ou na redação, a demanda aumentou. Ricardo Sander, jornalista

e radialista de 38 anos do Grupo Independente, de Lajeado, conta que seu expediente, que normalmente iria até 18 ou 19 horas, tem terminado entre 20h30min e 21h. A média de novas matérias no site, que era de cerca de 70 por dia, aumentou para mais de 100. “Meu celular todo dia tem acabado a bateria, por conta de muita informação que chega por WhatsApp. Têm muitos grupos de prefeituras e assessoria de imprensa de hospitais. Monitoramos todo tempo e pedimos informação com fontes, secretários de saúde e familiares de pessoas internadas ou que falecem”, conta Sander. Até o dia 1º de junho, Lajeado era a cidade do estado com maior número de casos confirmados de Covid-19 - 1.297, além de 19 óbitos. A contagem expressiva também se dá pela grande quantidade de testes - 4,3 mil até 28 de maio -, mas em especial pelo surto da doença em frigoríficos da cidade, registrado no início de maio. Mais de 500 infectados surgiram nessa condição. A região também foi a última a sair da bandeira vermelha no regime de distanciamento controlado elaborado pelo governo do estado. Essa situação delicada no município forçou mudanças na Rádio Independente. “Os colegas que estão trabalhando em casa entram no ar com equipamentos que temos aqui, e tem funcionado bem. Tínhamos uma reunião semanal na segunda-feira que não está ocorrendo mais. E a produção está sendo feita dia a dia, porque a cada momento surgem informações novas”, explica Sander. Também houve alterações na grade de programação. Aos domingos, no horário que habitualmente seria de transmissões esportivas, passou a ser veiculado o “Especial Coronavírus”, programa de duas ou três horas que atualiza, com informações e entrevistas, a situação da doença em âmbito regional, estadual, nacional e internacional. Nas segundas, quintas e sextas-

2020_1 | REVISTA EXP | 23


feiras, o “Faixa Extra” cumpre o mesmo papel news. Fulano mandava áudio dizendo que estava das 19 às 20 horas, com revezamento da equipe. no hospital e que já tinham pessoas internadas Um problema citado por Sander foi a perda com Covid, e a prefeitura não admitia. Tivemos de anunciantes, já que por um bom tempo que combater muito isso”, conta Prestes. Ela as medidas de isolamento social fecharam o relata que a população estranhava o fato de comércio da cidade. Passo Fundo ser uma cidade relativamente Depois de Lajeado, a cidade do interior grande (203 mil habitantes) e não ter casos gaúcho com mais infectados pela Covid-19, e confirmados. Essa pressão se refletia no trabalho com letalidade ainda maior, foi Passo Fundo. da imprensa. Após surtos em um frigorífico e em um lar Até o início de junho, 741 casos e 31 mortes haviam sido confirmadas. de idosos do município, o questionamento da Responsável pela web e pelo “Com todos cuidados, população se inverteu, caderno de saúde do Diário voltamos à redação, e passou a ser por que da Manhã, a jornalista Aline porque a vida não o número de mortos Prestes, 27 anos, conta que poderia parar era tão elevado - alguns logo que o vírus eclodiu no para o jornalismo.” Brasil, na metade de março, acreditavam ser forjado. a direção do veículo decidiu Nesse contexto, o Diário ALINE PRESTES, jornalista do Diário da Manhã, encaminhar os profissionais da Manhã fez uma de Passo Fundo reportagem explicando para home office, onde permaneceram por 25 dias. como é feito o atestado de óbito. Segundo ela, foi um período de insegurança. A volta à redação foi organizada pelo veículo, “Foram dias muito difíceis, porque todo e envolveu algumas mudanças. Segundo mundo tinha muito medo. Não havia casos em Prestes, além do uso de máscara e álcool Passo Fundo no começo, e isso gerava muita fake gel e do distanciamento entre os colegas, o

24 | REVISTA EXP | 2020_1

Aline Prestes

Após 25 dias em home office, repórteres do Diário da Manhã, de Passo Fundo, voltaram à redação. Combate às fake news foi uma das tônicas no início da pandemia

No Diário da Manhã, de Passo Fundo (ao lado, e no Grupo Sinos, de Matheus Beck (de máscara), as redações também ficaram reduzidas, com uso de máscara, álcool gel e distanciamento entre os funcionários


Matheus Beck

horário foi reduzido. “Ainda temos um jornal impresso, viemos para cá para produzi-lo. E também porque a vida não poderia parar para o jornalismo. A direção entendeu que seria melhor estarmos aqui, podendo dividir o conhecimento e se ajudando na produção de conteúdo”. Essa produção se baseia no boletim epidemiológico diário da prefeitura, e quando foi necessário o prefeito Luciano Azevedo (PSB) convocou uma coletiva de imprensa presencial. Enquanto buscam se adaptar para levar informações à população em um momento difícil, os jornalistas também enfrentam redução salarial e o medo de perderem seus empregos, oriundos da crise financeira ocasionada pela pandemia. Beck conta que perdeu colegas no Grupo Sinos, e que teve 25% de redução no seu salário. Mesmo assim, ele evita lamentar. “Neste momento, ter um emprego no meio da comunicação, que anda tão sucateado, é motivo de agradecer e trabalhar para fazer jus e continuar ali”.

2020_1 | REVISTA EXP | 25


26 | REVISTA EXP | 2020_1


Manifestantes em protesto contra a extinção do Imesf

Por trás do Instituto Os impactos na vida de profissionais diretamente afetados pela extinção do Imesf (STF) extinto. O embate teve início quando o Associação Brasileira em Defesa dos Usuários de Sistemas de Saúde (Abrasus) e outras 16 oi um processo emocionalmente entidades sindicais entraram na justiça questiolongo e desgastante, pois a decinando a validade da lei que autorizou a criação são de abrir mão de um concurdo Imesf. Em setembro de 2019, a lei que o so público e de toda uma trajetóinstituiu foi considerada inconstitucional pelo ria dentro da Atenção Primária em Saúde (APS) STF. A prefeitura de Porto Alegre anunciou, não foi nada fácil”, afirma Janaína Pasquali, então, que o órgão seria fechado, e os trabaenfermeira especialista em Saúde Pública que lhadores, demitidos. atuou no Imesf por sete anos. No último mês de 2019, os avisos prévios Assim como vários profissionais da saúde, começaram a ser entregues a enfermeiros, Janaína foi demitida e reconcirurgiões dentistas, técnicos tratada através de uma emde enfermagem, entre outros. “[...] é uma presa terceirizada que assuO Imesf era composto por 264 experiência nova miu os contratos. “Esta forma equipes de agentes comunitáem minha trajetória rios, médicos e técnicos, além de contratação (temporária) profisisonal” é uma experiência nova em de dentistas, que atendiam minha trajetória profissional, cerca de 500 mil pessoas em JANAÍNA PASQUALI, terreno desconhecido”, conta Porto Alegre. enfermeira a enfermeira. Em dezembro do último Alvo de uma guerra judicial ano, o Tribunal Regional do desde 2011, o Instituto Municipal de Estratégia Trabalho da 4ª Região (TRT-RS) concedeu de Saúde da Família de Porto Alegre (Imesf) uma liminar que autorizou a prefeitura de Porfoi, por decisão do Supremo Tribunal Federal to Alegre a desligar servidores do Imesf. Para Texto DÉBORA RAMOS

“F Arquivo pessoal

2020_1 | REVISTA EXP | 27


que ser contratados com vínculo público”, explica Jéssica. De acordo com Alcides Miranda, médico com especialização em Medicina Geral e Comunitária e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das principais perdas para a saúde pública com a extinção do Imesf será isso, é preciso que, no prazo do aviso prévio, os em relação à rede de APS. funcionários sejam recontratados por outras “A Atenção Primária depende essencialmente empresas ou entidades da área da saúde, e as de uma continuidade de equipes em territórios, rescisões, pagas integralmente. convivendo com a população e estabelecendo Para Jéssica Hilário de Lima, 32 anos, en- vínculos, relações de confiança. Na medida em fermeira, a decisão de pedir demissão, mesmo que se tem contratos que são instáveis, que não sem concordar com o processo proposto pela geram segurança pros trabalhadores de saúde, prefeitura, foi tomada com o intuito de não isso compromete o trabalho deles”, explica o ficar desempregada. “Em 2012, fiz o concurso professor. do Imesf. Passei e assumi em 2013. Com esse Além disso, ele afirma que “a organização comunicado lá de setembro de que todos os e o funcionamento da APS tem como um dos profissionais seriam demitidos, de lá para cá, atributos identificar grupos e áreas de maior minha vida já não foi normal. Tive abalos emo- vulnerabilidade, de maior exposição a detercionais relacionados ao trabalho. Meu limite minadas condições. O desmonte da Atenção foi em dezembro, início de jaPrimária vai dificultar também neiro, quando eu fui agredida o monitoramento dessas situ“[...] as nossas ações, ações e os encaminhamentos, fisicamente e sofri questões de os nossos cargos e as racismo e injúria. Saí antes. Eu já que é a partir da atenção nossas funções não que era uma pessoa extremaprimária que muitas vezes se são ilegais” mente engajada na luta pelo encaminha casos complexos Imesf, acabei saindo antes. Eu pras outras políticas públicas”. NATHALIA FIALHO, não aguentei, mesmo”, conta Nathalia da Silva Fialho, enfermeira Jéssica. 35 anos, enfermeira, trabalha A enfermeira afirma, ainatualmente como enfermeira da, que a extinção do Imesf era uma tragédia assistencial. Nathalia recusou a proposta de anunciada. “Na criação do Imesf já tinha sido contrato temporário por, segundo ela, acreditar apontado pelos sindicatos da época, pelo mo- no Sistema Único de Saúde (SUS). “Além da vimento social, pelo movimento em defesa do defesa do SUS, fizemos um concurso público. SUS, que a natureza jurídica do Imesf era in- Saímos no Diário Oficial de Porto Alegre, fomos constitucional e que os trabalhadores teriam chamados e homologados como concursados. 28 | REVISTA EXP | 2020_1

Janaína Paquali atuou pelo Imesf durante sete anos


Acredito no concurso que fizemos, por isso, também, não seria terceirizada. Independentemente do projeto de lei que criou o Imesf ser considerado ilegal pelo STF, as nossas ações, os nossos cargos e as nossas funções não são ilegais. E elas estão aqui há quase nove anos”, conta Nathalia. Frederico Machado, doutor em psicologia e professor no programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS, esclarece sobre os impactos relacionados diretamente ao SUS e a seus usuários. “Quando você está doente, você quer resolver o seu problema. Um médico te atende, você pega seu medicamento, é encaminhado para um profissional especializado. Mas quando você tem uma doença crônica, que você precisa de um acompanhamento mais regular, a noção de

território ganha uma outra dimensão”, explica o professor. Conforme Frederico, o tratamento dessas doenças crônicas implica em estabelecimento de laços comunitários, participação regular em outras frentes de atenção que não só os procedimentos biomédicos, como grupos de discussão e visita domiciliar. Com a pandemia do Coronavírus, a situação foi agravada. Por determinação judicial, todos os profissionais com mais de 60 anos do setor da saúde que lidam diretamente com o atendimento de pacientes em Porto Alegre precisaram ser afastados. Como o Imesf também era o meio de contratação de profissionais e deixou de funcionar, o município não consegue abastecer os pontos da rede que estão com deficiência no atendimento.

Protesto contra demissões dos profissionais do Imesf

2020_1 | REVISTA EXP 29


Em busca do reconhecimento Transexuais relatam a violência e os desafios enfrentados desde a infância Texto VICENTE BREIER

A

professora de Artes Helena Soares Meireles, 42 anos, descobriu ser transexual após mais de três décadas de vida. Ela estava assistindo, junto com a mãe, a um programa de entrevista em que participavam duas pessoas transexuais – uma operada e outra não. Quando acabou de assistir, ficou com a sensação de que a vida de ambas era muito parecida com a sua. Para a surpresa de Helena, sua mãe teve o mesmo pensamento. Com um sorriso no rosto, a professora foi para seu quarto, ligou o computador e pesquisou sobre transexualidade. Foi aí que descobriu o Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (Protig), oferecido pelo Hospital de Clínicas. Após dois anos de tratamento, fez a cirurgia de redesignação sexual, em outubro de 2013. Ela não se arrepende, mas tem outro entendimento do processo. “Se tivesse o con30 | REVISTA EXP | 2020_1

texto, o autoconhecimento, principalmente em termos da minha negritude, não sei como teria sido”, conta. Atualmente, Helena faz parte do Coletivo Quilombelas, surgido em 2018, a partir da união de cinco professoras negras. O coletivo trabalha com a questão dos valores civilizatórios e da formação de professores. Ela tem, hoje, uma marca de acessórios chamada OKÃ Acessórios e um grupo denominado Mukambu – Desobediências Poéticas, em que são realizadas leituras e interpretações de poesias junto de ex-alunos da escola em que trabalha. Na infância, chamava-se Heleno. Era um menino que sonhava em ser estilista. Passava a maior parte das tardes e noites sozinho, no quarto, desenhando roupas e mulheres e brincando com bonecas. No cômodo havia uma cama e uma máquina de costura, que o pequeno transformava em escrivaninha para fazer desenhos. A casa onde morava tinha outros dois espaços: o quarto em que os pais dormiam e a cozinha. Já o banheiro ficava no pátio, localizado entre sua residência e as de seus tios, que viviam no mesmo terreno.


Arquivo pessoal

Professora de Artes Helena Soares Meireles usa turbante, símbolo da resistência da mulher negra

Quando tinha a chance de desenhar o que desejasse nas aulas de artes, Heleno não pensava duas vezes: desenhava vestidos e mulheres, que era o que mais gostava de ilustrar. Feliz com o resultado de um de seus desenhos, resolveu mostrar à professora, que lhe disse que não poderia fazer aquelas ilustrações por serem de menina. Mal sabia a professora que Heleno se tornaria Helena Soares Meireles, arte-educadora na rede municipal de Porto Alegre. Embora o episódio tenha incomodado Helena, a situação é considerada por ela como uma das menos fortes que já enfrentou por ser negra e transgênero. Quando era criança, havia um menino que não o deixava entrar no

mesmo ônibus. Por vezes, ao sair do colégio, teve de percorrer um caminho muito maior para não subir no mesmo coletivo que o garoto. Em algumas ocasiões, foi caminhando para casa, a fim de não ser maltratado. O bullying se intensificou, e Heleno, cansado de ser humilhado, bateu no menino, no intervalo da aula. “Sempre fui uma referência negativa, um exemplo de como um menino não deve se comportar. E, a partir do momento em que venci a briga, acabei ganhando um pouco mais de respeito na escola”, relembra. Conforme a Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2016, realizada pela Secretaria de Educação da Associação Bra2020_1 | REVISTA EXP | 31


sileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), 73% dos estudantes LGBTQI+ foram agredidos verbalmente na escola por sua orientação sexual e 68% sofreram agressão verbal em função da identidade de gênero. Alunos de, pelo menos, 13 anos de idade responderam ao questionário. Já o estudante de Biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do curso técnico de enfermagem do Colégio Dom Feliciano, Nicola Inácio Dias, 21 anos, percebeu que poderia fazer um tratamento para ser homem no ano passado. Em função do medo da rejeição da família e da falta de referência de pessoas transgênero em seu dia a dia, não cogitou antes a possibilidade de ser, definitivamente, quem sempre desejou. O jovem contou aos familiares que é transexual quando já estava usando hormônios – temia que algum parente tentasse fazê-lo mudar de ideia. Mas afirma que a reação foi neutra. Sua irmã, Letícia, ficou magoada, porque o fato de Nicola não ter contado a novidade antes chateou seus pais. Ela ressalta, no entanto, que também teria começado o tratamento antes de avisar à família se fosse trans. “Hoje, a minha única preocupação é quando ele sai. Não quero que vire estatística”, diz. Diferentemente de Helena, ele tinha uma boa relação com os colegas nos seus primeiros 10 anos de vida. Como aprendeu cedo a ler, ajudava os companheiros na escola e tinha facilidade para criar amizades. Porém, foi alvo de piadas por ser, na época, uma menina que sentia atração por meninas. Quando tinha 12 anos, alguns colegas ligaram para sua casa e disseram aos seus pais que estava namorando com uma garota. Na semana seguinte à ligação, todos do colégio já sabiam da notícia, mesmo sendo falsa. Nicola havia beijado outras meninas, mas não estava namorando nenhuma. Após a exposição, tomou atitudes que influenciaram negativamente sua vida: começou a se maquiar, usar vestido e até mesmo namorar garotos, o que 32 | REVISTA EXP | 2020_1

era incomum para ela. Embora acredite que isso tenha sido importante para sua transição, Nicola considera que viveu uma personagem. “Perdi minha adolescência sendo outra pessoa”, comenta. Também de acordo com o relatório da Secretaria de Educação da ABGLT de 2016, 60% dos estudantes LGBTQI+ se sentiam inseguros na escola por sua orientação sexual e 43% por causa de sua identidade de gênero. Segundo Ana Carolina Mello Pechansky, psicóloga e especializanda no Curso de Psicoterapia da Infância e da Adolescência, oferecido pelo Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência (CEAPIA), o colégio deve estar capacitado a falar sobre sexualidade e gênero. “Em situações onde há violação de direitos, a escola deve estar apta a perceber essa violência e o sofrimento dos alunos para os quais ela estiver direcionada. A partir dessa constatação, os trabalhos de profilaxia, intervenção e capacitação do colégio para falar sobre sexualidade e gênero devem aliar-se fortemente com o setor de psicologia da escola, para proporcionar os Arquivo pessoal

Estudante de Biologia e do curso técnico de enfermagem Nicola Inácio Dias depois da transição


Quando ainda era uma menina, Nicola tinha facilidade para criar amizades por conta de sua bondade Arquivo pessoal

Helena sendo fotografada bem antes da cirurgia de redesignação sexual ocorrida em outubro de 2013 Arquivo pessoal

devidos acompanhamentos aos envolvidos”, o fato de uma pessoa transexual fazer parte da afirma. educação de crianças e adolescentes. Apesar do Helena faz parte de uma pequena porcen- preconceito de certos pais e professores, Helena tagem de mulheres transexuais que não se cultiva amizades no colégio em que trabalha prostituem no Brasil para pagar suas contas. hoje. Uma de suas amigas é a professora de Conforme a pesquisa Assassinatos e Violência ciências Cibele Sippel. Ela acredita que Helena contra Travestis e Transexuais Brasileiras em faz a diferença na vida dos alunos. “Certa vez, um grupo de meninas do 6º ano 2019, feita pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% da população estava com dificuldades de adolescentes, e Hede travestis e mulheres transexuais utilizam a lena arrasou nos conselhos”, relembra. prostituição como fonte de renda. Helena iniPara a psicóloga Ana Carolina, a intersecção ciou os estudos em Moda na Universidade de das três formas de violência – racismo, maCaxias do Sul (UCS). Porém, teve de cancelar o chismo e transfobia – sofridas por um mesmo curso, em função de dificuldades financeiras e indivíduo configura enorme agravante na vulnede adaptação ao lugar. Ela escolheu atuar, en- rabilização dessa pessoa. “As discriminações não tão, na área da educação. Começou a trabalhar podem ser entendidas separadamente”, afirma. como professora de Artes em 2002 e se formou A quantidade de tentativas de suicídio por parte de pessoas transgênero também chama no ano de 2005, pela UFRGS. “Comecei a tomar gosto pela profissão quan- atenção. Um estudo da Universidade do Arido assumi turmas nos períodos em que o coor- zona, nos Estados Unidos, publicado em 2018, denador do meu primeiro mostra que mais de 50% dos trabalho estava ausente”, homens trans tentaram se “As cicatrizes da época conta. “O que mais me enmatar, enquanto aproximaem que me mutilava canta nessa área é a possidamente 30% das mulheres ainda são visíveis” bilidade de contato com as trans tentaram suicídio. Nicrianças”, complementa. cola pensou em praticar este NICOLA INÁCIO DIAS, Já Nicola optou pela área ato. Com apenas 10 anos, estudante da saúde. Ingressou no curso mutilou-se algumas vezes. técnico de enfermagem para E, na adolescência, acrediter uma profissão antes de tou que colocaria um fim concluir a faculdade. Logo em seguida, começou à sua vida. Somente após a transição que os a estudar Biologia na UFRGS, onde ganhou uma pensamentos suicidas cessaram. “As cicatrizes bolsa de extensão para trabalhar no laboratório da época em que me mutilava ainda são visída universidade. Hoje, faz estágio no Hospital veis”, revela. Dom João Becker, em Gravataí. O jovem nunApesar de todas as dificuldades enfrentadas ca foi discriminado no trabalho em função de por Helena e Nicola, ambos sempre se dedicaidentidade de gênero. ram aos estudos. Entretanto, enquanto Nicola “Sempre fui muito bem recebido. Até me conseguiu se destacar na turma, Helena não perguntaram qual vestiário eu gostaria de usar. obteve o mesmo reconhecimento, embora coE eu optei pelo feminino, por questões de ana- lecionasse excelentes notas. Até mesmo quando tomia”, diz. terminou a faculdade, deixou de ir na cerimôCom Helena, a história não foi a mesma. Em nia de formatura por considerar um ambiente um dia de votação na escola em que trabalhava, violento para ela. “Sempre busquei um destaquase foi agredida fisicamente pelo pai de um que como forma de sobrevivência”, comenta a aluno. O homem disse que era uma vergonha professora. 2020_1 | REVISTA EXP | 33


Nada para guardar Impossibilitados pela lei, guardadores de automóveis vivem de ajuda para se sustentar Texto e fotos

GUILHERME MILMAN

J

úlio César Santa Helena retira da gaveta seu registro de trabalhador autônomo, assinado pela prefeitura de Porto Alegre, que lhe dá o direito de trabalhar como guardador de automóveis. Foi assim que ele sustentou sua família por 24 anos. Com o tempo, sua influência dentro da categoria cresceu, e Santa Helena tornou-se presidente do Sindicato dos Guardadores de Automóveis Autônomos de Porto Alegre (Sgapa). Hoje o documento serve apenas para relembrar uma trajetória que passou a ser considerada ilegal na capital gaúcha. 34 | REVISTA EXP| 2020_1

Há 34 anos, em janeiro de 1986, entrou em vigor no município uma lei que permitia a atividade dos guardadores de veículos: profissionais que atuam em eventos de grande movimentação e são remunerados para vigiar os carros deixados pelos clientes. De acordo com o texto, eles só deveriam atuar em locais previamente autorizados pela Empresa de Circulação e Transportes de Passageiros (EPTC). Os espaços costumam ser próximos aos locais de eventos esportivos, artísticos, culturais, cívicos e religiosos. Para exercer a profissão, os guardadores deveriam se registrar na Superintendência Regional do Trabalho e realizar cursos de capacitação, providenciados pelo próprio


Guardadores de automóvel estão há seis meses sem exercer sua profissão em Porto Alegre Foto: Câmara Municipal de POA

município de Porto Alegre. Com o tempo, muitas pessoas passaram a guardar automóveis sem ter o registro. Conhecidos popularmente como flanelinhas, passaram a atuar em diferentes pontos da cidade, sem a devida autorização da prefeitura. Aproveitavam-se da falta de segurança nas ruas para cobrar dos motoristas uma quantia em dinheiro para vigiar o carro. De acordo com o Sgapa, há 1.427 pessoas vinculadas à entidade. Dessas, 56% estão com o registro em dia, o que totaliza 800 guardadores autônomos em Porto Alegre. Os agentes de segurança passaram a notar, no entanto, um aumento da criminalidade causada pelos flanelinhas. A tensão criada pela prática fez com que a prefeitura protocolasse, em agosto de 2019, um projeto de lei que proibia a atividade de flanelinhas e guardadores no município. O texto foi aprovado pela Câmara Municipal três meses depois, entrando em vigor em janeiro deste ano. Após a sanção da lei, com o aumento da fiscalização nas ruas, a ligação com o crime pôde ser comprovada pela prefeitura. Dados da Secretaria Municipal de Segurança Pública de Porto Alegre mostram que dos 43% dos flanelinhas abordados pela Guarda Municipal, pela prática ilegal, de janeiro a junho deste ano possuíam antecedentes criminais por tráfico de drogas ou furto. Além disso 72 eram reincidentes e 8 possuíam mandados de prisão. A legislação gerou polêmica por não diferenciar os conceitos de guardador e flanelinha. Após o resultado, Júlio César buscou recorrer da decisão no Tribunal de Justiça do Estado. O pedido não foi acatado. “Foi feito um ‘saco’ dentro de um contexto político, colocando autônomos e ilegais juntos. A maioria dos flanelinhas é ilegal, mas as pessoas não sabem distinguir um guardador de um flanelinha.” Um dos pontos do projeto de lei garantia aos guardadores uma reinserção no mercado

de trabalho, por meio de cursos que seriam promovidos pelo Sistema Nacional de Empregos (Sine), junto ao Sindicato dos Lojistas de Porto Alegre (Sindilojas). Foi definido que a partir de fevereiro seriam realizados workshops mensais de duas aulas cada, para falar sobre temas como relacionamento com clientes, administração e negócios. A expectativa era de que a adesão fosse grande. Um estudo da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), órgão ligado à prefeitura, apontou que 82% dos guardadores e flanelinhas participantes desejavam mudar de profissão. O projeto no entanto, não acabou sendo bem-sucedido. O primeiro curso foi feito em 19 de fevereiro. Das 30 vagas oferecidas, apenas 13 foram preenchidas. Luciana Roberta de Moura foi a primeira palestrante. Pós-graduada em Educação Profissional e especializada em Coaching, possui experiência em capacitação profissional, sendo diretora de uma empresa voltada para a área de gestão e negócios. Suas palestras costumam ter o formato de dinâmicas de grupo, com o objetivo de reorganizar formas de trabalho. Luciana foi chamada para trazer conceitos de gestão e trabalho em equipe para os inscritos no curso. Mesmo assim, o contato com os alunos foi desafiador. Ela relatou dificuldade em ministrar as aulas e precisou contar a sua história de vida para que os alunos se sentissem mais à vontade. “No primeiro dia, eles estavam raivosos com a situação, foi difícil. Acabei falando de mim, que vim de uma família pobre e acabei tendo conquistas na minha vida. Com isso, eles se identificaram e então passou a fluir melhor.” A breve duração do curso não permitiu que se criasse um vínculo entre a palestrante e os guardadores. “No final do curso conseguimos criar uma conexão maior, alguns inclusive choraram quando encerrou a atividade, mas infelizmente não foi possível manter contato com eles.” A expectativa era de que mais cursos 2020_1 | REVISTA EXP | 35


fossem feitos no final de março, mas a pandemia do Novo Coronavírus acabou impedindo a continuidade. Júlio argumenta que, independentemente da situação, a proposta da prefeitura não era uma boa ideia. “Como que eles oferecem 30 vagas se não dão nem passagem de ônibus para ir lá e fazer o curso? Não dão alimentação para chegar lá. Tem pessoas que não sabem nem ler e escrever, como que elas vão fazer o curso? E tu achas que em um, dois dias as pessoas vão sair qualificadas?” Júlio faz questão de enfatizar o perfil da maioria dos guardadores. Embora não haja números precisos, mais da metade dos guardadores de Porto Alegre possuem baixa escolaridade ou têm mais de 50 anos, aspectos que dificultam a contratação em empresas. Com a quarentena, o que já era difícil chegou a beirar o impossível. E é por isso que Júlio se emociona ao falar da sua rotina atual. Como representante da classe, não se vê fazendo mais nada. Sem renda, ele já não consegue mais pagar o aluguel da sede do sindicato, uma pequena sala em um prédio da Voluntários da Pátria, na Zona Norte. O último pagamento foi feito em agosto. Para sustentar a família, Júlio precisa pedir emprestado. Ainda um cachorro, como se fosse um bandido… aguardando o auxílio emergencial de R$ Eu não sei se hoje não tenho vontade de ir 600 dado pelo governo federal, o sindicalista ali fora pegar uma corda passar por cima de mostra sua geladeira com apenas restos de uma árvore e me puxar. Eles tiraram a minha comida congelada, prateleiras e gavetas vida, a minha identidade, meu grupo, minha gente”, desabafa. vazias. Para ter acesso ao Se para Júlio o gás de cozinha, teve de pegar “Eu não sei se hoje não trabalho de guardador um botijão emprestado de tenho vontade de ir ali era tudo que ele tinha, um conhecido. “A gente fora pegar uma corda outros tentaram está vivendo o caos. Um dia passar por cima de uma mudar os rumos eu tinha comigo pessoas árvore e me puxar. Eles depois que a lei entrou que te olhavam e te viam tiraram a minha vida, a em vigor. Antônio como contribuinte, tanto minha identidade, meu Carlos Azevedo é um eu quanto meu grupo de grupo, minha gente” dos casos de quem guardadores, é tão bom tu viveu a vida dedicado a poderes ser reconhecido JÚLIO CESAR SANTA HELENA guardar carros e agora como um ser humano, e hoje Presidente do Sindicato dos Guardadores Autônomos de Porto Alegre se vê velho demais tu és olhado igual a um bicho, 36 | REVISTA EXP | 2O2O_1

Iara foi uma das primeiras guardadoras a trabalhar no entorno da Arena do Grêmio Foto: Arquivo Pessoal


para encontrar um novo emprego. Foram 40 anos de atuação. Mesmo assim, chegou a fazer trabalhos repentinos no setor de obras, como ajudante de pedreiro e pintor. “Esses ‘bicos’ não são como guardar carros para mim. Sempre fiz um trabalho bom.” Antônio conta que, nos três meses em que chegou a trabalhar em outra ocupação, faturou cerca de R$ 400 mensais, aproximadamente cinco vezes menos do que ganhava como guardador. Hoje, vive do auxílio emergencial do governo. Depois da proibição, alguns guardadores buscaram seguir trabalhando mesmo que irregularmente, mas enfrentaram a alta fiscalização da Guarda Municipal. Se flagrados, eles estarão sujeitos a uma multa de R$ 300. Por isso, Antônio descarta qualquer possibilidade de arriscar. “Desde que proibiram a

prática, eu parei de trabalhar, pois sempre trabalhei na legalidade, eu com 55 anos não vou estar trabalhando ilegal, tendo que pagar multa pra prefeitura sendo que nem sei de onde tirar o dinheiro.” Na dura realidade desses trabalhadores, há, no entanto, espaço para gestos de solidariedade. Iara Gonçalves foi uma das primeiras guardadoras a trabalhar em frente à Arena do Grêmio. Formada em educação, trabalhava em uma escola infantil em Porto Alegre. Em razão dos salários atrasados, resolveu abandonar a profissão. Por morar próximo ao bairro Humaitá, onde fica o estádio, recebeu o convite de uma amiga para trabalhar estacionando os carros dos torcedores em dias de jogos. E foi assim que a “tia Iara”, como era conhecida, acabou ganhando a confiança de seus clientes. Hoje

Júlio Cesar Santa Helena fica dentro de casa, sem trabalhar há três meses Foto: Arquivo Pessoal

2020_1 | REVISTA EXP | 37


parte dessas pessoas tem contribuído para seu sustento. Ela conta que quando foi buscar uma cesta básica, foi entrevistada por um canal de TV aberta e chamou a atenção de um de seus clientes. “Ele me viu e ligou perguntando se eu precisava de alguma coisa. Quando acabou colocando em um grupo dos clientes de um estacionamento que trabalhava. Aí alguns começavam a me ajudar a pagar conta de luz, conta de água…” Diferentemente de Júlio e Antônio, Iara já buscava outras fontes de renda enquanto trabalhava como autônoma. Seu trabalho com diarista, ajudava-a como renda complementar e foi essencial para que ela não ficasse sem renda a partir do fim de sua atividade na Arena. No entanto, com a pandemia, sua segunda ocupação também foi prejudicada. “Duas patroas minhas continuaram pagando mesmo sem eu ir trabalhar, e assim foi por dois meses. Agora elas me dispensaram”, conta. Mas o que deixava Iara feliz era guardar

38 | REVISTA EXP | 2020_1

carros. Ela relata que já estava pensando em interromper o serviço de diarista. Com 55 anos, já não tinha mais ritmo para manter dois trabalhos. “Vai chegando a idade e a gente já não tem mais ritmo para se movimentar o dia todo, e como guardadora trabalhava algumas vezes na semana, era só umas duas horas por dia que a gente cuidava dos carros, dava atenção para os clientes. Não é o mesmo esforço do que fazer uma faxina.” Hoje, ela ainda consegue se utilizar da renda dos últimos meses e das doações de seus antigos clientes. Autora do projeto, a prefeitura de Porto Alegre argumenta que o objetivo da lei foi de combater a criminalidade atrelada à prática. O comandante da Guarda Municipal, Marcelo do Nascimento, explica que parte desses criminosos também conseguiam acesso aos registros e trabalhavam legalmente. “Os bons pagam pelos maus. Infelizmente, tudo que chegava na mídia era de forma negativa. Os flanelinhas eram a ampla maioria praticando a atividade, delegando aos guardado-

Desde janeiro, a Guarda Municipal abordou 383 flanelinhas totalizando 18 prisões Foto: SMSEG/ PMPA


res de carro a parte ruim. Facções estavam tomando conta dessa atividade.” Ele afirma que foram seis meses de discussão interna para elaborar o projeto, entre a Secretaria de Segurança a Fundação de Assistência Social e Cidadania e a Secretaria de Desenvolvimento Social. Desde janeiro, os agentes de segurança passaram a fiscalizar pontos da cidade com uma maior quantidade de flanelinhas. Foram feitas até o dia 16 de junho 383 abordagens, totalizando 18 prisões. O comandante alega que só são detidos aqueles que reagem de maneira agressiva. “Essa lei não tem um espírito opressor. No início buscamos ter uma linguagem de orientação para os flanelinhas. Depois de um período nós começamos as autuações e passamos a agir de forma mais efetiva”. Autora do projeto, a prefeitura de Porto Alegre argumenta que o objetivo da lei foi de combater a criminalidade atrelada à prática. O comandante da Guarda Municipal, Marcelo do Nascimento, explica que parte desses criminosos também conseguiam acesso aos registros e trabalhavam legalmente. “Os bons pagam pelos maus. Infelizmente, tudo que chegava na mídia era de forma negativa. Os flanelinhas eram a ampla maioria praticando a atividade, delegando aos guardadores de carro a parte ruim. Facções estavam tomando conta dessa atividade.” Ele afirma que foram seis meses de discussão interna para elaborar o projeto, entre a Secretaria de Segurança a Fundação de Assistência Social e Cidadania e a Secretaria de Desenvolvimento Social. Desde janeiro, os agentes de segurança passaram a fiscalizar pontos da cidade com uma maior quantidade de flanelinhas. Foram feitas até o dia 16 de junho 383 abordagens, totalizando 18 prisões. O comandante alega que só são detidos aqueles que reagem de maneira agressiva. “Essa lei não tem um espírito opressor. No início

buscamos ter uma linguagem de orientação para os flanelinhas. Depois de um período nós começamos as autuações e passamos a agir de forma mais efetiva”. A principal preocupação dos guardas, de acordo com Nascimento, é que a população se sentisse segura ao estacionar o carro. “A simples diminuição do trabalho já gerou uma sensação de segurança. As pessoas agradecem os vigilantes nas ruas.” A expectativa é de que, após o fim da pandemia, o processo de reinserção, proposto no texto, retorne gradualmente. Enquanto isso, centenas de pessoas terão de lidar com uma realidade onde, pelas circunstâncias, apenas uma parte da lei acaba sendo cumprida. Júlio César afirma que, com o retorno das atividades na vara comum entrará com novos recursos pedindo a anulação da lei municipal. Na câmara dos vereadores, um outro projeto, de autoria do vereador Airto Ferronato (PSB), pretende regulamentar o trabalho do guardador de veículos, permitindo que apenas aqueles registrados possam exercer a profissão. O sindicalista acredita ser essa a única solução para voltar ao trabalho. “A saída era fazer uma reciclagem, mapear os lugares, fazer um cadastro único através de uma secretaria em que tu pudesse chegar lá e levar o documento.” Antônio Carlos já não possui esperanças de retornar ao seu trabalho, mas afirma que a melhor maneira de recolocar os guardadores no mercado de trabalho seria oferecendo vagas na própria prefeitura. “Ao invés de botar a EPTC para fiscalizar as áreas públicas poderiam chamar esses guardadores pra fazer um teste. A gente queria uma oportunidade.” Mas a esperança não pode ser deixada de lado, pelo menos para Iara. Ela acredita que parcerias entre trabalhadores são possíveis, e o diálogo é a melhor forma de trazer de volta a rotina de quem hoje só consegue esperar.

2020_1 | REVISTA EXP | 39


Irmãs na fé Três ex-freiras explicam os motivos que as fizeram deixar as congregações religiosas e escolherem vidas laicas Texto MATHEUS GOULART

“D

eus e Pai, Tu me consagraste desde o batismo na Igreja, e o Teu amor me atraiu para seguir o Teu Filho Jesus, numa entrega total. [...] Por isso, na presença de irmãos, da comunidade e de minha família, eu, Jamir Berton, entrego-Te livre e totalmente a minha vida e faço voto de 40 | REVISTA EXP | 2020_1

obediência, pobreza e castidade para sempre”. Essas foram as palavras proferidas por Jamir em 2001, quando oficializou sua união com a comunidade religiosa em uma igreja de Constantina, no norte do Rio Grande do Sul. Dezenove anos depois, ela divide seu tempo entre o trabalho como diretora em uma escola católica de Porto Alegre e a família – seu companheiro e seu filho. A mãe de Théo Enrique já não faz parte da congregação há quase quatro anos.


Arte: Matheus Goulart

Jamir, Cristina e Leonete deixaram suas congregações religiosas por razões distintas

Começava, então, um processo que duraria A ideia de permanência é comum no catolitrês anos, até sua saída oficial da Comunidade cismo. Não é por acaso que os votos feitos por Teresiana. Em uma carta ao Vaticano, Jamir Jamir são chamados de votos perpétuos. No caso dela, serviram para concretizar uma década explicou seus motivos e solicitou uma autorizade afirmações anuais em relação a sua escolha. ção de saída. Após algum tempo de licença, foi Aos 15 anos, deixou sua casa para se juntar às liberada. Arrependimentos? Nenhum. “Eu não irmãs da congregação Teresiana, companhia sabia fazer outra coisa além de ser irmã, mas eu precisava tomar essa decisão”, lembra a difundada pelo padre Enrique de Ossó em 1896, inspirada em Santa Teresa de Jesus. Na época, retora. Em um mundo que oferecia muito mais Jamir morava com a avó, a pessoa que mais opções, ela tinha agora outras perspectivas. Para seguir o caminho das irmãs, em qualdemonstrou apoio e entusiasmo com a possibilidade da neta se tornar freira. “Claro‌‌que‌‌tu‌ quer comunidade, é necessário deixar para ‌vai.‌‌Vai‌‌sim,‌‌com‌‌certeza!‌‌Eu‌‌dou‌‌um‌‌jeito. Se‌ trás certas peculiaridades da vida convencio‌for‌‌o‌‌caso,‌‌eu‌‌vendo‌‌uma‌‌vaca‌‌e‌‌tu‌‌vai‌‌estudar‌ nal. Essas abdicações estão sintetizadas nos ‌com‌‌as‌‌irmãs”‌. Do aspirantado, foi para o prévotos de castidade, obediência e pobreza. O -noviciado. Depois, tornou-se noviça. Passado primeiro está baseado na promessa de celibato. mais um tempo, alguns estágios e alguns votos, O segundo refere-se à hierarquia dentro da finalmente fez seu juramento oficial perante a instituição e estabelece o respeito das freiras às comunidade. superioras e a Deus. A pobreza tem a ver com Foram anos de certeza e os bens materiais: o dinheia religiosa vivia sua rotina “Eu não sabia fazer outra ro é comunitário, a própria com dedicação e felicidainstituição recolhe e orgacoisa além de ser irmã, de, mas essas convicções niza as finanças. Deixar a mas eu precisava tomar foram substituídas por congregação, então, é sair essa decisão.” sensações mais incertas no de mãos abanando. Mais JAMIR BERTON, ano de 2010: Jamir passava do que isso: é provável que diretora escolar quem entrou jovem na vida por uma crise vocacional. “Comecei a me questionar religiosa nunca tenha feito muito em relação à vida religiosa, mas naquele uma compra no próprio nome. “Tentei alugar período eu não conseguia definir o que eu senum apartamento depois de sair, mas não tinha tia. Era uma tristeza, achei que era cansaço”, crédito. Eu não tinha conta no banco, as pessoas procuravam meu CPF e não viam muita conta. As irmãs da congregação orientaram-na validade”, conta Jamir, que conseguiu manter a buscar ajuda psicológica para clarear as ideias, seu cargo na escola em que trabalhava – agora mas uma semente já estava plantada. “As coisas perderam o encanto”. com carteira assinada – e passou a viver em uma A pergunta que mobilizou a ainda freira residência para jovens universitárias, abrindo exceção com uma amiga. para sua saída foi bem simples, um exercício de futurologia já clichê: “Como tu te imaginas Em dezembro de 2013, outra pessoa procudaqui a cinco anos?”. A resposta chegou de rava um lugar para morar na zona sul da Capital. forma clara, e ela entendeu que não poderia Cristina Emer passava pelo mesmo processo continuar vivendo na comunidade. Um outro de desvinculação com a comunidade teresiasentimento, porém, foi determinante para a na e, por sorte, sua irmã estava se mudando tomada de decisão: “Antes, não era uma coisa para São Paulo na mesma época, deixando o muito forte, mas naquele momento me desperapartamento para ela. Cristina era orientadora tou: eu queria ser mãe”. educacional da escola em que Jamir trabalhava 2020_1 | REVISTA EXP | 41


e ofereceu um quarto na nova moradia. “Tenho certeza que o fato de termos saído quase ao mesmo tempo e estarmos morando no mesmo apartamento acabou nos fortalecendo, porque de alguma forma estávamos na mesma situação”, conta Cristina que hoje, aos 55 anos, mora com o homem que conheceu quando procurava sua primeira casa própria. Natural de Garibaldi, juntou-se cedo às Irmãs Teresianas. Assim como Jamir, trabalhou em mais de uma cidade durante sua trajetória: Porto Alegre, Rio de Janeiro e Filipinas, onde, em 2007, ajudou a dar início a um projeto social que marcou sua missão religiosa. Cinco anos depois, no mês de setembro, retornou para casa – a mãe estava com câncer. Sua estadia não durou muito. No dia 5 de dezembro, ela perdeu a mãe. No dia 28 do mesmo mês, já estava no avião, percorrendo os quase vinte mil quilômetros que separam o Brasil do país asiático. Ela não contava, porém, que uma outra perda a aguardava: a congregação havia decidido fechar a comunidade das Filipinas. “Vivi dois lutos ao mesmo tempo. a perda da minha mãe e o fechamento da comunidade. Eu não estava bem, e, para mim, foi muito difícil lidar com isso. Era ali a minha missão”, lembra Cristina, ainda sentindo um pouco o gosto da perda. Novamente em solo nacional, fez terapia e orientação espiritual por um tempo – as irmãs inclusive ofereceram 20 dias de “folga”, que passou com o irmão – para tentar entender o que acontecia e recuperar o ânimo. Ela ainda não queria desistir, mas já não se sentia pertencente àquela vida. Em dezembro de 2013, Cristina pediu licença, que, na prática, funciona como um afastamento temporário da comunidade religiosa. Foi nesse momento que começou a dividir o apartamento com Jamir. No ano se-

guinte, houve o estalo: “Comecei a me dar conta de que não ia conseguir voltar. Meu coração já não me chamava mais para aquilo”. Apesar do esclarecimento de ideias, foi apenas em 2016, no dia do aniversário da falecida mãe, que pediu o desligamento oficial e recebeu a resposta formal: já não fazia mais parte da Comunidade Teresiana. As Irmãs não eram necessariamente contra a saída de Jamir Berton e Cristina Emer, mas conversaram muito com ambas e pediram para que pensassem melhor ou esperassem mais um pouco antes de bater o martelo. Não é assim com todas as religiosas que decidem sair. Pelo menos, não com Leonete Cassol. “Na verdade, a decisão foi mais delas do que minha. Havia, naquele momento, uma certa pressão para que eu não ficasse”, explica a agora professora, gargalhando. Leonete é natural de Dona Francisca. Nasceu em 1964, ano de início do regime militar no Brasil, e seu nome é uma homenagem a Leonel Brizola, ex-governador gaúcho vigorosamente engajado na luta contra a ditadura. Por coincidência ou destino, ela é até hoje uma defensora empenhada da democracia. Entrou na congregação, também Teresiana, com e por conta do sonho de um mundo diferente: melhor, mais justo e coletivo. Foi com 20 anos que largou o emprego público e a faculdade de filosofia para virar freira. Ao longo de sua trajetória eclesial, acumulou uma série de conflitos. Quando foi transferida do Rio de Janeiro – lá, ela era muito feliz trabalhando com comunidades, vivendo na favela e aprendendo diariamente com pessoas que tanto admirava – para Santana do Livramento, a irmã protagonizou um diálogo que hoje virou história de bar: “Criticavam se eu dirigia, se eu

Ela não contava, porém, que uma outra perda a aguardava: a congregação havia decidido fechar definitivamente a comunidade das Filipinas. 42 | REVISTA EXP | 2020_1


Arquivo Pessoal de Jamir e Cristina

Acima, Jamir e Cristina, na época ligadas à congregação, jogando moedas em uma das famosas fontes de Trevi, em Roma. À esquerda, Cristina (primeira da fila) vestindo o hábito há cerca de 30 anos

2020_1 | REVISTA EXP | 43


Arquivo Pessoal de Leonete

Leonete é engajada e participa de diversos protestos, em especial daqueles relacionados à área da educação

usava calça, eu vivia esses preconceitos das Jamir, Cristina e Leonete são mulheres difepessoas mais tradicionais e moralistas. Em rentes. Rotinas, ambições, até os motivos que as certo momento, disse pra uma família da escola levaram a sair da congregação são distintos. Mas em que eu trabalhava: ‘Aqui vocês criam gado todas as três compartilham algumas semelhane pensam como tal’. Eles me ameaçaram de ças significativas. Mesmo sem a obrigação e o morte um tempo depois”. O polemismo e os compromisso com a comunidade Teresiana, elas questionamentos frequentes de Leonete sobre continuaram vivendo diariamente o principal a hierarquia da instituição da qual fazia parte pilar: a educação. foram os principais motivos que a fizeram deixar Nenhuma delas perdeu a fé, também. Lea vida religiosa para trás. Ela sempre foi muito onete diz que perdeu a inocência, hoje vê as feliz (na opinião dela, o problema é que muitos pessoas de dentro da instituição mais falíveis, ficavam infelizes com isso) e até hoje é grata às mas sua crença permanece inabalada. Mais do irmãs pela experiência, mas o seu ímpeto por que isso: todas sentem que, pela seriedade com mudanças era mais forte. “Castidade nunca foi que lidaram com uma decisão tão importante, a um problema para mim, pobreza e simplicidade fé está amadurecida. “Meu filho foi a confirmaforam extremamente fáceis. Agora, a porra da ção de que eu estava no caminho certo, e, com obediência…”, explica. certeza, a espiritualidade nos sustentou durante Em 1996, por fim, a saída foi oficializada. esse período”, declara Jamir. Sem o compromisso estabelecido pelos voMesmo com todas as divergências e enfrentamentos, Leonete mantém ainda hoje uma boa tos, elas podem acordar depois das 5h30min, relação de amizade com as e o café da manhã já não freiras que dividiam o mestem um horário fixo. Ainda “Castidade nunca foi mo teto consigo. Por vezes, rezam, mas, como explica problema, pobreza foi a professora até as provoCristina, não com a mesma fácil. Agora, a porra da ca, relembrando os tempos assiduidade daquela époobediência...” em que “não me queriam ca: “A natureza da vida aqui LEONETE CASSOL, lá, né?”. fora não permite”. professora

44 | REVISTA EXP | 2020_1


Retrato de uma mulher que combate as chamas Lendo jornal, Neusa viu o anúncio de um concurso para a Brigada Militar Texto CAMILA PIRES

Neusa ao lado da foto de sua formatura, emoldurada em sua casa

Fotos Arquivo pessoal

“F

iquei alguns dias sem dormir. Pensei, ‘meu Deus aonde eu vim parar?’. Mas depois do susto inicial, eu comecei a digerir melhor que aquilo ali faz parte do nosso trabalho.” Foi em uma madrugada, no meio de seu curso, que Neusa encontrou pela primeira vez com um óbito por causa de um incêndio. Um menino de 12 anos estava sozinho em sua casa de dois andares. A estrutura foi consumida totalmente pelo fogo, e o menino não conseguiu sair. Foi numa tarde no final de abril que por meio de uma chamada de vídeo liguei para a sargento Neusa Rezer de Morais. Ela me atendeu em seu local de trabalho em São Leopoldo. Natural de Santa Rosa, ela nunca imaginou que iria ter a profissão que exerce hoje: “Foi totalmente por acaso que eu virei bombeira”. Neusa começou a morar sozinha ao 16 anos, pois precisava trabalhar para se sustentar e no interior não tinha muitas ofertas de emprego. Sempre trabalhou muito e também estudou. Gostava de esportes, mas não era muito adepta aos esportes radicais. Olhando o jornal em seu local de trabalho antigo, uma empresa de monitoramento de alarmes, ela viu o anúncio de que a Brigada Militar estava com concurso para soldados aberto e decidiu se inscrever.

Logo começou os estudos e passou na seleção. Na época, em 2005, o Corpo de Bombeiros era pertencente à Brigada Militar. Conversando com conhecidos, Neusa recebeu a sugestão de se inscrever para ser bombeira, algo que ela

2020_1 | REVISTA EXP | 45


nunca havia cogitado. Pesquisando, se interessou e decidiu se inscrever. Havia 15 vagas para a região do Vale dos Sinos, local de sua preferência. Mas na hora de se inscrever surgiu outro questionamento: “será que pode mulher?”. Podia, e ela agradece a Deus que isso era uma possibilidade. Mudou-se para Caxias do Sul para fazer o curso. Durante sua extensão foi descobrindo outras atividades que não tinha conhecimento que os bombeiros faziam. “Só imaginava fogo, incêndio e deu. Comecei a ver as outras funções que a gente até trabalha mais. Se é uma cidade

pequena, por exemplo, incêndio é lá de vez em quando, é muito raro”. Foi um período de esclarecimentos. Neusa afirma que óbitos por acidentes e por suicídios são os mais comuns de se ver, e em incêndios, como o do menino de 12 anos, são mais raros. Concluiu o curso em 2006, e detalhe importante, ela era a única mulher. Com a evolução dos debates sobre igualdade de gênero, não poderia deixar de questioná-la sobre sua visão da presença feminina em sua profissão. A sargento é uma das 236 bombeiras mulheres em relação com os 2.600 bombeiros homens no estado. Hoje, em comparação com quando se formou, ela afirma que a profissão tem alcançado bastante presença feminina. Todavia, dá destaque para a necessidade do trabalho do homem: “os homens têm uma vantagem física e isso é inegável”. Ela também conta que nunca passou por uma situação de machismo, porém que já percebeu um comentário ou outro. Neusa trabalha na maior parte do tempo na área de setor de pessoal, que é como um setor de Recursos Humanos, mas também atua na área operacional, que são os atendimentos de ocorrências. Com a pandemia, ela afirma que o número de ocorrências continua normal, só que hoje tudo

“Será que pode mulher?”

A bombeira com o uniforme que veste quando trabalha em ocorrências

46 | REVISTA EXP | 2020_1


A sargento ao lado de seus colegas do Corpo de Bombeiros

“Eles viram o quão feliz eu estava com aquilo”

tem um cuidado maior de proteção para quem atende e para quem está sendo atendido. Ela dá destaque para a quantidade de incêndios em mato que eles têm presenciado, por conta da estiagem no estado. Dentro de casa, as coisas também estão diferentes. A sargento tem uma filha de 11 anos, e além de exercer o papel de mãe, também está sendo professora. Sua família sempre demonstrou apoio na escolha de sua profissão. Ela conta que tem a impressão de que no início seus pais não se deram conta do que ela estava fazendo. “Eles viram o quão feliz eu estava com aquilo. Hoje eles são felizes com isso”. No final da conversa, algo engraçado acontece. Um barulho alto e estrondoso domina a nossa chamada. “Tu ouviu? É o toque, só que hoje eu não estou na guarnição, se não eu tinha que descer correndo”. Levei um leve susto, mas Neusa nem

se mexeu, já que é algo comum para ela. Antes de nos despedirmos ela relembra uma história que lhe trouxe orgulho sobre sua profissão. Muitas vezes os bombeiros atendem pedidos de cidadãos para realizar alguma surpresa. Certa vez um homem pediu que no dia do aniversário de sua esposa, que os bombeiros fossem até sua casa, já que ela tinha muito apreço pela profissão. Chegando lá, Neusa encontrou com a aniversariante e percebeu que ela tinha algumas queimaduras no corpo. Conversando com a mulher, a bombeira descobriu que quando ela era um bebê seus pais saíram de casa e ela ficou com os irmãos e a casa pegou fogo. Os irmãos saíram da casa para pedir ajuda e um vizinho foi socorrer e a tirou de dentro. Para a sargento essa história sempre vai ser lembrada: “Ela tem a imagem dos bombeiros ajudando as pessoas. Eu fiquei muito feliz de eu ser bombeira, para mim é um privilégio.” 2020_1 | REVISTA EXP | 47


Cultura das mães Como as mulheres exercem seus hábitos culturais após passarem pela experiência da maternidade Arquivo pessoal Texto RAFAELA ROCHA

“E

u lia bastante, estudava muito sobre diversos assuntos além da minha profissão, assistia a vários filmes e minisséries. E aí depois que veio o Davi isso modificou completamente. Posso dizer que hoje, de 100% do meu tempo, 90% é em função dele.” É assim que a fonoaudióloga Karen Portz, 36 anos, descreve a mudança nos seus hábitos culturais depois da maternidade. O nascimento do primeiro e único filho, atualmente com três anos, transformou sua vida em incontáveis aspectos, passando pelo corpo e identidade pessoal e chegando às novidades em como exercer pequenas funções do dia a dia. E com a cultura não poderia ser diferente. Neste momento, apesar de estar conseguindo retomar a rotina graças ao crescimento de Davi, ainda precisa escolher um dia da semana – sexta-feira ou sábado – para sair somente ela e o marido. E isso acontece somente a cada três meses. “A primeira vez que eu e o meu companheiro fomos ao cinema foi no final do ano passado, meu filho com quase três anos, e a 48 | REVISTA EXP | 2020_1


Para Karen, 36 anos, a experiência de ser mãe transformou a rotina e atividades culturais

minha irmã ficou com ele no shopping enquanto a gente assistia a um filme de duas horas. Mas fiquei constantemente naquela angústia de estar preocupada com ele”, ela relata. A realidade de Karen é comum a muitos indivíduos que vivenciam a criação e o desenvolvimento de uma criança. No entanto, existe algo que preocupa nesse cenário e deve ser analisado mais a fundo: o recorte de gênero na disparidade do acesso à cultura entre pais e mães. A Pesquisa Cultura nas Capitais, realizada pela JLeiva Comunicação em parceria com o Instituto Datafolha, mostra que ter filhos pequenos altera o acesso a atividades culturais para homens e mulheres. Porém, o estudo, que entrevistou mais de 10 mil pessoas entre junho e julho de 2017, evidencia que apesar dos homens também sofrerem com essa mudança, o efeito é bem maior sobre elas. Não raro, o motivo que pressiona o gênero feminino a abandonar seus costumes anteriores à gravidez tem ligação com a distribuição de tarefas – sejam elas na casa ou alusivas à parentalidade. Karen, ao ser questionada se é capaz de identificar alguma desvantagem nas suas atividades culturais em comparação às que seu marido executa, esclarece que o filho é muito apegado a ela. Sendo assim, desde que Davi nasceu teve que abdicar de suas práticas culturais para cuidar dele. Enquanto isso, Leonardo, seu companheiro, nunca precisou deixar de lado o videogame com os amigos, por exemplo, ou parar de assistir séries no tempo livre, já que não possuía uma relação tão forte com a criança. Conforme ela conta, “no primeiro um ano foi mais complicado. O Leonardo ajudava a trocar fralda e dar banho, mas era só isso, porque tinha uma dependência muito grande do Davi comigo”. E as renúncias não contemplam somente a vida cultural. Quando o filho completou um ano, Karen decidiu largar o emprego em uma cooperativa médica e abrir o próprio consultório. Sua rotina mudou de trabalhar 44 horas semanais e passar metade do dia fora de casa para atender pacientes somente pelas manhãs – com exceção de uma tarde, que deixa a agenda disponível para consultas. A decisão foi motivada por notar que não estava dedicando tanto tempo ao Davi. “A vida é feita de escolhas. Se você quer ter

filho, tem que criar. Então, tem que escolher: ou a vida profissional ou a criação do filho”, ressalta. O marido, contudo, seguiu trabalhando fora. Juliane Borsa, psicóloga e doutora na área pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), declara que embora tenhamos inúmeras melhoras com o avanço do feminismo, o cuidado com os filhos ainda recai mais sobre as mulheres. Para ela, “é uma questão cultural que existe nas sociedades em geral, dessa ideia de um amor materno incondicional, devotado, que implica em uma abnegação, em abrir mão de outros desejos, outros quereres por parte da mulher”. A psicóloga pontua que o mito do amor materno ajudou a reforçar o lugar feminino em relação à maternidade e à criação dos filhos – o que ocorre devido à cobrança da sociedade que, sendo fundamentalmente patriarcal, estabelece papéis rígidos ao gênero feminino. Entre esses deveres e obrigações, pode-se incluir a responsabilidade com o lar e a família. É possível compreender melhor a desigualdade de gênero na parentalidade explorando outros levantamentos, como o Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, produzido pelo Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea) em conjunto com a ONU Mulheres. Segundo o estudo, as mulheres dedicam aos afazeres domésticos cerca de 7,5 horas por semana a mais do que os homens – destacando que esse tempo cai à medida que cresce a renda. Além disso, 90% delas declararam realizar trabalho doméstico, contra somente 50% dos homens. Diante desse contexto, Juliane revela que “as mães acabam sobrecarregadas, com dupla jornada de trabalho ou até tripla, porque cuidam da casa, dos filhos e ainda trabalham fora”. O resultado, de acordo com ela, são mulheres estressadas e cansadas, até mesmo pouco disponíveis afetivamente para esses filhos. E, estando sobrecarregadas, acabam não conseguindo separar um período do dia para consumir cultura individualmente. “Eu acredito que essa é uma realidade da maioria das mulheres, principalmente as que não contam com rede de apoio. Aquelas que não têm pessoas para ajudá-las, lêem um livro em qual momento, se tem que trabalhar, cuidar da casa, preparar a comida, fazer uma série de outras 2020_1 | REVISTA EXP | 49


coisas e ainda cuidar dos filhos?”, a psicóloga indaga. meu tempo para assistir filmes, que é o que mais A partir disso, mães buscam incluir os pequenos gosto de fazer, é depois de ela dormir durante a nas programações culturais, podendo ser naquelas que acessam dentro de casa ou na rua, bem como adaptam seu dia a dia à vontade deles. Na residência de Karen, por exemplo, “a televisão, desde a hora que acordamos até a hora de ir dormir, é praticamente, aliás, é totalmente preenchida com coisas infantis”. Mas além da fonoaudióloga, existem inúmeros casos que se encaixam a essa narrativa, como o de Thais Pereira da Silva, 34 anos, gerente de laboratório fotográfico em Porto Alegre. Mãe de um menino de seis anos, ela explica que depois da maternidade precisou separar um período para dedicar-se ao filho Murilo. Todavia, como trabalha cerca de doze horas por dia, a alternativa que encontra é contemplá-lo nos seus planos. “Hoje em dia, tenho mais essa preocupação de sair do serviço, vir para casa, ficar com ele, procurar ter uma programação para o final de semana, uma saída ao museu, programação de televisão, cinema... tudo que eu possa incluir ele nas atividades culturais é o que eu busco propor. São atividades em família”. Por meio de sua experiência materna, Carina Hertz, 39 anos, também entende a necessidade de trazer os filhos para a cultura que consome. Com o nascimento de Sofia, que está com quatro anos, viu sua rotina se transformar completamente. “Penso muito mais nela, em fazer algo para ela em todos os semana”. que é o que mais gosto de fazer, é depois setores: cultura, lazer, compras... sempre penso nela de ela dormir durante a semana”. em primeiro lugar”. O isolamento social – instituído Outro dado da pesquisa da JLeiva reafirma o deem virtude da pandemia de Covid-19 no Brasil – foi sequilíbrio cultural entre os gêneros na hora de criar mais um fator que culminou em mudanças no coti- os filhos. Proporcionalmente, ambos citam “levar as diano parental. Sofia, acostumada a ir à escola desde crianças” como a principal razão para frequentar os dois anos de idade, está em casa desde março, o atividades culturais. Porém, questionando quem que exige watenção e cuidado constantemente. “Eu efetivamente vai a esses programas, é mais frequente preciso estar entretendo o tempo todo. Inventar di- que as mães mencionem ir com elas. Atrelado a isso, ferentes jogos e brincadeiras. Até construí uma casa embora as mulheres sejam mais estimuladas a comde boneca de papelão com ela. parecer em espaços culturais Se antes já era complicado fazer por causa dos filhos, as prá“As mães acabam algo sozinha, agora está mais ticas que existiam antes da sobrecarregadas, ainda”, desabafa Carina. Ainda maternidade são reduzidas com dupla jornada de que nem sempre isso seja visto – e conforme as conclusões trabalho ou até tripla.” como um problema para mães, do estudo, tal redução não JULIANE BORSA, acaba inevitavelmente limitando é suprida pela programação psicóloga o acesso à cultura: “atualmente, relacionada com a criança. 50 | REVISTA EXP | 2020_1

Carina (esq.) e Thais (dir), afirmam que a cultura após a maternidade envolve totalmente as crianças


Arquivo pessoal

Tendo isso em mente, é perceptível que elas precisam tirar um tempo para o autocuidado e para fazer o que gostam. “Um pai deixar um bebê recém-nascido para assistir a um jogo de futebol não existe nenhum tipo de crítica ou estranhamento por parte das pessoas. Entretanto, uma mãe deixar um bebê para fazer algum tipo de atividade, como ir a um show ou ao cinema, tem um julgamento, um peso social muito forte”, argumenta a psicóloga Juliane. Desse modo, a mulher priorizar entretenimento, lazer ou diversão em algum momento da vida, deixando as crianças em segundo plano, é visto como um erro. “A sociedade coloca a mulher, muitas vezes, nessa condição de culpa, um sentimento de culpa muito forte referente aos seus próprios prazeres contra essa dedicação exclusiva para as crianças. Então, música, cinema e todas as outras formas de atividades acabam sendo deixadas de lado quando se tem filhos”.

Não é novidade que, por conta das exigências sociais excessivas, o abandono cultural acaba sendo mais forte pela parte materna. A fim de contornar a situação, Juliane salienta que o autoconhecimento é fundamental. “Você tem que se conhecer muito bem para driblar a cobrança social e a própria culpa em relação às escolhas. É uma experiência subjetiva que cada uma deve viver dentro da sua realidade”. Como as pesquisas corroboram, as mulheres desempenham um grande número de papéis ao mesmo tempo. Nesse caso, a psicóloga recomenda que cada mãe pense nas suas diversas tarefas, desejos e sentimentos para ser capaz de adequar tantas demandas e, mesmo assim, arranjar uma maneira de incluir a cultura no cotidiano sem ficar sobrecarregada. “Isso é um passo básico para que, no futuro, elas não se sintam incompletas ou com um vazio por algo importante que teve que abrir mão em nome da maternidade”. 2020_1 | REVISTA EXP | 51


52 | REVISTA EXP| 2020_1


Wagner Cabistany

Elohy Neusa conta com a ajuda da família para aprender sobre os recursos dos equipamentos eletrônicos

Idosos curtem e compartilham Geração prateada se aventura nas tecnologias para se integrarem ao mundo e as famílias são fundamentais neste processo

Texto RUDI VALENÇA

C

om a unha cuidadosamente feita e pintada de vermelho, Miréia levantou o dedo para pedir a palavra ao final de uma dinâmica de grupo: -”o que é blogueira?”. Não seria grande coisa, se ela não estivesse concorrendo para uma vaga ao cargo. Ela chegou até local após ver um anúncio no jornal. Tinha uma carreira na área de recursos humanos, mas procurava uma nova ocupação. O único requisito que a vaga requisitava era morar no Moinhos de Vento, bairro nobre da cidade de Porto Alegre. As 15 pessoas que estavam dentro da sala a mais velha, com vinte anos a menos do que Miréia - olharam incrédulos para a simpática senhora de 49 anos que ostentava um preciso corte chanel nos cabelos dourados, quando fez a pergunta que abre esta reportagem.

“Foi uma gargalhada geral, todo mundo riu”, se diverte Miréia ao contar. A insegurança em relação aos mais jovens deu lugar para o companheirismo. É que ela foi contratada e conta, com um largo sorriso, que foi acolhida e ensinada pelos colegas mais jovens que a ensinaram tudo que precisava saber. À época, Mireia utilizava tecnologias como celular e computador. Assim como muitas pessoas da mesma faixa etária, acreditava dominar a tecnologia. Mas utilizar um computador, não significava saber mexer em ferramentas como blogs e redes sociais. Ela aprendeu e conseguiu se manter atualizada. A cada novo recurso tecnológico pede auxílio de alguém. Hoje, 13 anos depois daquela entrevista de emprego, Miréia chegou à terceira idade. Tem 62 anos e segue blogueira. Na rede social Instagram, ultrapassa os 14 mil seguidores e quer muito mais. “Eu faço bastante coisa, sabe? Esses tempos queriam me contratar e achavam que eram poucos seguidores ainda”, confessa a Idosa que posta os looks, dá dicas de comércio e conta história para as crianças.

2020_1 | REVISTA EXP | 53


Wagner Cabistany

No Brasil são 30 milhões de pessoas como com 60 anos ou mais, como a Miréia. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso corresponde a 14% da população do país. Embora, pela experiências de vida, tenham muito a ensinar, também querem aprender. Especialmente, sobre o mundo digital. Atentos a isto, instituições tradicionais de ensino, prefeituras e professores particulares oferecem cursos de informática em sites da internet. Pode até parecer uma solução para aqueles que - diferente de Miréia - não foram se atualizando para chegar à maturidade alfabetizados virtualmente e no auge do uso das tecnologias. Na verdade, os sites são parte do problema. “Esta é a primeira dificuldade. Temos que entender que eles (idosos) não estão inseridos 54 | REVISTA EXP | 2020_1

neste meio. Acessar um site e fazer um cadastro é um processo bem complexo. Por isso, a ajuda da família é essencial”, é o que explica Uberdam Cavaletti, professor da área de tecnologia da informação. Elohy Neusa, 84 anos, tem a aparência de uma Vovó saída de um livro infantil. Cabelos curtos e loiros, um corpo delgado e uma postura levemente curvada. Do tipo que a gente sente vontade de dar um abraço só de olhar. Aposentada, trabalhou durante 40 anos na área administrativa de uma empresa. Ela é uma das pessoas que não se preparou para a tecnologia na terceira idade. O físico delgado e as profundas rugas na pele alva revelam que ela nasceu em um mundo completamente analógico. Com a voz grave, afetada pelo tempo, a ido-

Objetos tecnológicos se tornam rapidamente obsoletos. O valor é só afetivo


Arquivo pessoal sa espanta ao contar que a tecnologia nunca a surpreendeu:“- Eu sabia que o mundo iria mudar. Trabalhei no financeiro de uma empresa na qual usávamos máquinas de escrever manuais. Depois vieram as elétricas e hoje existem os computadores. Dava para ver as coisas evoluindo”. Elohy, porém, sempre deixou que o marido, falecido em 2014, dominasse os equipamentos eletrônicos. Ela conta que ele baixava música em um mp3 player. Claro, que disse isso com pouca desenvoltura e não exatamente com essas palavras. Chamou de “aparelhinho”, pen drive… Resolveu mostrar o objeto, para não deixar dúvidas. Com os delicados dedos finos de juntas grossas, abre uma caixa branca. Nesta caixa, é possível perceber as marcas do tempo em forma de manchas amareladas de umidade. Dali

de dentro sai um Philips Gogear intacto. Um aparelho que quando comprado, nos meados dos anos 2000, era topo de linha e custava algumas centenas de reais. Hoje, o maior valor que se consegue por ele é o sentimental: uma lembrança do amor do marido pela música. Com a ausência do companheiro, sentiu a necessidade de aprender a utilizar a tecnologia para não se sentir sozinha no apartamento de 2 quartos em que mora na Zona Norte da Capital. Claro, não saberia acessar sites na internet para se inscrever em cursos ou procurar tutoriais, por isso, pede ajuda para os filhos que prontamente explicam o que precisa. Utiliza as redes sociais para manter contato com os membros da família e se distrai lendo textos e assistindo vídeos. Chegou a mudar hábitos. Orgulhosa, ela conta que já não faz

Dilva é assídua nas redes sociais, mas o que adora mesmo são os jogos nas redes sociais

2020_1 | REVISTA EXP | 55


ligações do telefone, utiliza o whatsapp. O Centro Regional de Estudos para o DeO que não recebe de informação dos os filhos, senvolvimento da Sociedade da Informação Neusa aprende de “curiosa”, como gosta de falar. (Cetic) mostra que em dois anos, o crescimento Porém, nem todos idosos têm este interesse de ir do uso de internet no celular por pessoas com atrás do conhecimento. Acabam ficando à parte mais de 60 anos, ultrapassa 100%. E o que estes da tecnologia. Assim, acabam desenvolvendo vovôs e vovós moderninhos mais acessam são sentimentos negativos em relação à este universo. as redes sociais. “Mas tem que ter jogo! Passo horas me disUma pesquisa da Universidade Estadual Paulista - Unesp - demonstrou que o desconhe- traindo, tinha que poder ganhar dinheiro com cimento de idosos sobre a internet os relacionar isso”, fala Dilva Albrecht sobre um dos requisia ferramenta à perda de tempo e de privacidade. tos que o aparelho de celular tem que ter além Com isso, se isolam do mundo (digital). Parente- das redes sociais. A pele parda brilhante da idosa de 78 a faz ses para mostrar a que o digital paira e se insere nas relações. aparentar ser, pelo menos, Tudo é movido à tecnouma década mais jovem. “Mas tem que ter logia. Do transporte ao resDilva já foi secretária na jujogo! Passo horas me taurante, não é preciso viver ventude, mas com 6 filhos distraindo, tinha que em uma caverna para ficar para cuidar se tornou dona poder ganhar dinheiro afastado da sociedade. Basta de casa. Viúva, vive com a com isso” não ter conexão à internet ou aposentadoria do ex-marinão saber utilizá-la. do que era azulejista e do DILVA ALBRECHT, aposentada Para aprender existem aluguel de quatro casas no duas formas: ser autodidata bairro teresópolis. ou vencer o orgulho e pedir Ela conta que sempre esauxílio aos familiares. Rose teve próxima à tecnologia Zabel é professora de informática para idosos. por ter muito contato com as filhas. Estavam Ela conta que sempre tem que partir deles a ini- sempre trocando de celular e ela recebia os ciativa de aprender: “Peço para que os familiares aparelhos de segunda mão. Tinha que se virar passem o meu telefone para a pessoa ligar assim para aprender e assim foi se acostumando. Ela só aprendeu depois dos 60 anos, ali peque tiver vontade. Tomar essa iniciativa mostra a vontade de aprender. Não se torna uma obri- los anos 2000 quando havia esta transição das gação”, revela Rose. coisas analógicas para as digitais. Mas, conta Rose menciona que é uma tarefa de verdadeira que tudo aconteceu de uma maneira muito alfabetização. E que se a memória falha, tem que orgânica. Os equipamentos da casa foram se ter paciência de explicar tantas vezes quantas modernizando e ela aprendendo a utilizar. O forem necessárias. Aqueles que não fizeram como microondas ficou com painel de led, ganhou a influenciadora digital Miréia que se preparou um celular mais moderno, os decodificadores aos poucos para chegar na melhor idade com um da tv a cabo mudaram. celular nas mãos e por dentro das tecnologias e As coisas não pararam, hoje tem uma televiredes sociais, tem que começar pelo beabá. são smart onde acompanha Netflix e vídeos no Falando em celular, outra característica da Youtube. Mas, o equipamento sem o qual não geração prateada é a tendência de mobile first e vive é o smarphone. Um dia cansou de receber mobile only. Isso quer dizer que o primeiro ou aparelhos de segunda mão das filhas e foi até único acesso que fazem à internet é por meio uma loja. Pediu que pudesse acessar as redes do celular. sociais e jogar. A partir daí a cada dois anos 56 | REVISTA EXP | DE 2020_1


Otávio Castedo muda de equipamento. Com tanta novidade, até o notebook pareceu antigo depois disso e foi aposentado. “Te mandei um poema e tu nem me respondeu”, interrompe a entrevista para gritar com uma das filhas, demonstrando que acompanha tudo que acontece nas redes. A voz firme e naturalmente alta chega a fazer eco. Mas a grande paixão dela está no jogo Candy Crush. Reconhece que o jogo chega a atrapalhar o sono. “As vezes ele dá notificação de alguma coisa. Daí eu acordo durante a noite e jogo um pouco”, revela. Os dados e os profissionais explicam aquilo que a sabedoria dos mais velhos já constatou: se o processo de aprendizado não foi gradual, é necessário correr atrás do prejuízo. Nascidos em uma época em que ouviam muito dos pais

“não mexe aí, vai estragar” e na qual algumas ferramentas de uso diário não eram sequer imaginadas pela ficção, esta geração deve procurar a coragem de mergulhar no novo. A família exerce um papel fundamental e deve se atentar à esta inclusão. Miréia, adepta do “se não errar, como vai aprender”, segue conversando com os seguidores, mostrando os looks e novos produtos. Mas, não vai se acomodar, quer aprender tudo que for novo. O próximo passo é saber usar a rede social do momento, o Tik Tok. Nesta plataforma, o usuário faz vídeos curtos com dublagens e edição rápida. Ainda está confusa, mas já deu o recado: “vou perguntar pra todo mundo até aprender. Se é para mostrar que a geração prateada está a mil, estou presente!”.

Miréia é a influencer e tenta se manter sempre bem informada sobre tudo que há de novo na tecnologia

2020_1 | REVISTA EXP | 57


Lendo mulheres para mudar o mundo Em 2014, uma jornalista propôs um projeto de um ano lendo apenas mulheres; de lá para cá, muita coisa mudou no mercado literário em consequência dessa ideia

Texto MIA SODRÉ

O

s efeitos da leitura de ficção podem ser biológicos, para além de psicológicos. É o que aponta um estudo realizado na Universidade Emory, nos Estados Unidos, e publicado na Brain Connectivity, em 2013. Foi descoberto que ler afeta nosso cérebro de tal modo que, ao mergulharmos num livro de ficção, é como se realmente tivéssemos vivenciado os eventos sobre os quais estamos lendo. No estudo, 21 estudantes da universidade leram “Pompeia”, de Robert Harris, durante 19 dias consecutivos. Utilizando ressonância magnética funcional (fMRI), os pesquisadores puderam obter dados precisos, com controle de horários de leitura, a respeito do efeito físico causado pela história do homem que tenta salvar a mulher a quem ama da erupção do Monte Vesúvio.Uma das áreas cerebrais afetadas após a leitura encontra-se próxima do sulco central. A região é ativada quando pensamos em realizar alguma atividade 58 | REVISTA EXP | 2020_1

física, como exercícios, pois está ligada ao núcleo sensório-motor do cérebro. De modo geral, isso significa que os leitores experienciaram as sensações dos personagens do livro enquanto faziam a leitura. E, o mais interessante, tais efeitos estendem-se para alguns dias após a leitura: até cinco dias após finalizarem o livro, os exames ainda mostravam aquele resultado. Além disso, ler provoca empatia. O mesmo estudo revelou que a leitura de ficção faz com que nos coloquemos no lugar do outro, assim aumentando nossa capacidade empática e modificando a maneira como enxergamos o mundo. De certa forma, é possível pensar que os livros que lemos moldam nossa percepção do mundo e nos transformam. Psicologicamente e biologicamente, as histórias que conhecemos nos modificam. Portanto, existe, de fato, uma importância na escolha dos volumes que formarão a nossa estante. Se ela for cheia de histórias que se asselhem às nossas, o que estejam dentro do padrão social, provavelmente não iremos muito longe em nossa mudança de perspectiva.


Nábila Magno A mediadora Luana Pagung, no encontro de Porto Velho: a leitura de ficção faz com que nos coloquemos no lugar do outro, assim aumentando nossa capacidade empática

Esse é um dos pontos relevantes que iniciativas como o Leia Mulheres apontam. Em 2014, uma jornalista norte-americana, Joanna Walsh, criou a hashtag #readwomen2014. Originalmente publicada no jornal The Guardian, a ideia era ler mulheres durante um ano para, segundo Walsh, responder à seguinte questão: “Ler mulheres em 2014 mudará nossos hábitos sexistas de leitura?”. A partir do estudo anual do destaque dado em jornais de grande porte para a paridade de gênero literária ou a falta dela, realizado pelo VIDA: Women in Literary Arts, Walsh percebeu que havia algo de errado na

forma como a literatura de autoria feminina era deixada de lado, ainda que mulheres fossem maioria populacional e também leitora. Após conversar com alguns editores de literatura, em grandes jornais de língua inglesa, e também com escritoras publicadas, a jornalista chegou à conclusão de que, já que o mercado literário não resiste à mudança, então os leitores devem forçá-la. Como? Lendo mais mulheres - e fazendo parte de uma hashtag que logo teve alcance global, influenciando um movimento que quebrou as barreiras de sua própria construção, tornando-se um pavimentador para a publicação e

2020_1 | REVISTA EXP | 59


divulgação de mulheres em diversos países. No final de 2014, inspiradas pela iniciativa de Walsh, Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques criaram o Leia Mulheres Brasil. A ideia era ir além da hashtag no twitter e montar um clube de leitura onde pessoas pudessem se encontrar mensalmente para discutir sobre um livro de autoria feminina. “Como deu super certo, convidamos amigas nossas a fazerem clubes com o nome no Rio de Janeiro e em Curitiba. Quando nos demos conta, mulheres do país todo começaram a nos escrever perguntando como poderiam montar clubes em suas cidades. Hoje estamos em todos os estados, em mais de 100 cidades e somamos mais de 300 mediadoras”, conta Michelle Henriques, uma das fundadoras do Leia Mulheres Brasil e mediadora do clube na cidade de São Paulo - SP. Desde o primeiro encontro do clube, em junho de 2015, ele só tem crescido. Embora alguns livros chamem mais atenção do que outros, como é o caso daqueles escritos por mulheres que tornaram-se bestsellers, como Elena Ferrante e Rupi Kaur, o grupo fixo que frequenta mensalmente o local onde as discussões literárias são feitas é suficientemente grande para encher uma roda de conversa. Mensalmente, é escolhido um livro diferente

“O mercado literário está inserido no contexto global de disparidade de gênero. Tanto em termos de autoria quanto de tema, ainda temos um longo caminho a percorrer. [...] É muito importante que as pessoas falem que querem mais livros de mulheres, porque isso chama a atenção do mercado editorial e permite que as editoras procurem ativamente mais autoras.” LUARA FRANÇA, editora da Companhia das Letras

60 | REVISTA EXP | 2020_1

em cada clube, divulgado nas redes oficiais do projeto pelas mediadoras. A regra é simples: tem de ter sido escrito por uma mulher. Assim sendo, são mais de 100 diferentes livros de autoria feminina lidos no Brasil inteiro por quase duas mil pessoas. É um movimento suficientemente expressivo, a ponto de deixar sua marca no mercado literário. Embora mulheres sejam publicadas há bastante tempo, nem sempre elas conseguiram ser lidas - ou mesmo fizeram uso do próprio nome. Por muito tempo, para ser uma autora, era preciso esconder sua identidade. Foi o que fizeram escritoras como as irmãs Brontë, Charlotte, Emily e Anne. As três escreviam desde a infância, mas nunca lhes foi dada a oportunidade de ganharem a vida com isso - até que Charlotte teve a ideia de enviar um manuscrito, contendo poemas reunidos das três, para uma editora, sob pseudônimos masculinos. Em 1846, elas foram publicadas sob os pseudônimos de Currer, Ellis e Acton Bell. Como os editores acreditavam tratarem-se de homens, não fizeram grande caso e fizeram algumas cópias do livro de poemas. Infelizmente, ele não se saiu bem: apenas duas cópias foram vendidas. Mas foi o suficiente para que as Brontë percebessem que, vestindo nomes masculinos, poderiam ir a qualquer lugar. Então, começaram a trabalhar em seus romances individuais, que logo viram a luz do dia e tiveram


Ana Graphie

Encontro do Leia Mulheres São Paulo, um clube de leitura onde pessoas pudessem se encontrar mensalmente para discutir sobre um livro de autoria feminina.

grande sucesso. Apenas anos mais tarde, Charlotte revelou sua identidade, passando a frequentar círculos sociais de escritores e sendo reconhecida por sua obra-prima, Jane Eyre. Mas isso só ocorreu quando ela sabia que estava pisando em solo firme e que a crítica havia aprovado seu livro. O caso das Brontë é um dos mais conhecidos no campo da literatura de autoria feminina, mas houve outros. Seria possível citar diversas escritoras que fizeram uso de um pseudônimo para serem publicadas ou que tiveram seus trabalhos roubados por seus maridos, muitas vezes também escritores. Mas a história repete-se até que algo a faça mudar, um evento ou

uma conjunção deles que obrigue-nos a frear e tomar um novo caminho. O Leia Mulheres, junto das crescentes manifestações feministas nas redes sociais, é um desses eventos. Para Luara França, editora da Companhia das Letras e dos selos Alfaguara e Penguin Companhia, a mudança de rumo no mercado literário já é uma realidade: “O mercado literário está inserido no contexto global de disparidade de gênero. Tanto em termos de autoria quanto de tema, ainda temos um longo caminho a percorrer. Contudo, posso estar sendo otimista aqui, acredito que isso esteja mudando. Principalmente por intermédio das solicitações desses grupos e

2020_1| REVISTA EXP | 61


das pessoas que se preocupam com uma li- afinal de contas são mais de 120 clubes, já em teratura mais abrangente. Acredito que pas- todos os estados do país, que leem em média samos por grandes mudanças nos últimos 12 livros por ano (diferentes em cada clube). anos, e projetos como o Leia Mulheres, o We No país em que uma pessoa lê em média dois Need Diverse Books e outros são os grandes livros por ano, não é de se ignorar o fato de responsáveis por isso. Esses projetos captam que esses clubes, com cerca de 10 participanmuito bem o desejo dos leitores por livros tes cada, estão lendo e comprando livros todiferentes do ‘padrão’ e trazem mais visibili- dos os meses”. O movimento, que já impactou o dade pras demandas”. Ela, que trabalha des- de 2012 à frente de algumas publicações da mercado literário brasileiro, também deixou maior editora do país, pôde perceber ativa- suas marcas a nível pessoal. São muitas as mente a mudança que iniciativas de leitura, pessoas que passaram pelo Leia Mulheres. Nem todas permanecem, que focam na literamas o hábito da leitutura produzida por “Ler literatura escrita por ra de autoria feminina minorias, forçaram mulheres me desloca da costuma permanecer - e no mercado. Como minha percepção do mundo, transformar o olhar. Seja França complemenporque me coloca em contato unindo pessoas que não ta: “Eu procuro aticom o mundo dela, de quem o conheciam ninguém em vamente por mais escreveu.” uma cidade nova, como obras de autoria feé o caso de Pagung, ou minina para o catáLUANA PAGUNG, mediadora do Leia Mulheres Porto Velho abrindo possibilidades logo da Companhia para conhecer pessoas das Letras. Acho que não estão interessaimportante que o mercado editorial faça essa busca. Mas eu das em trabalhar no mercado, mas apenas também tenho consciência de que não con- genuinamente querem conversar sobre liteseguiria ter essa liberdade de procura se não ratura, como aconteceu com Luara França existisse uma demanda do mercado consu- em seus encontros no Rio de Janeiro, difimidor. É muito importante que as pessoas cilmente alguém passa incólume por ele. A falem que querem mais livros de mulheres, própria literatura transforma, especialmente porque isso chama a atenção do mercado quando olhamos para o aspecto neurológico editorial e permite que as editoras procurem que ela produz em nós, mas os laços afetivos que se formam através de um clube de leitura ativamente mais autoras”. É preciso, no entanto, olhar também não podem ser menosprezados. Ler sozinho para os números. Existe uma dificuldade em é ótimo; ler acompanhado é transformador. “Até então, eu lia livros escritos por quantificar os números de participantes do Leia Mulheres, assim como em fazer as con- mulheres e, de alguma maneira, me enxergatas de quantos livros foram lidos no projeto va em muitas daquelas narrativas, mas com desde 2014 e quanto isso modificou as ven- o Leia Mulheres eu percebi que essa narradas no mercado. No entanto, Luana Pagung, tiva é compartilhada não apenas com uma uma das mediadoras do Leia Mulheres desde escritora longe no tempo e no espaço, mas 2017, em Porto Velho, afirma que: “Além da também com mulheres que estão ao meu promoção dessa discussão coletiva, acredito lado”, explica Pagung ao falar sobre sua exque o Leia Mulheres tem um impacto quan- periência pessoal com o clube de leitura Leia titativo no mercado literário continuamente, Mulheres.

62 | REVISTA EXP | 2020_1


de como vivenciamos a socialização do gênero, tanto quanto o é pela raça, classe, sexualidade e cultura. Ao mesmo passo em que ler é esse exercício de alteridade, é também um exercício de espelho, pois me transporta de volta para dentro mim. É esse meu contato com a escrita do Outro (a Outra, melhor dizendo) que me propõe reflexões sobre o que eu acredito sobre mim e sobre o mundo”, diz Pagung. Se a literatura nos transporta para outros mundos, ler mulheres nos faz olhar para o nosso e para as peculiaridades de cada uma de nós. É uma possibilidade de colocar-se no lugar da Outra e compreender melhor o que é ser mulher na sociedade - mudando o mundo um livro de cada vez.

As mediadoras do Leia Mulheres Porto Velho, Danielle Gonçalves (esquerda), Luana Pagung (centro) e Anna Costa (direita);

Nábila Magno

Até o início do século XX, a leitura conjunta era uma prática popular de socialização e formação de vínculos. Para além dos benefícios que a literatura pode nos trazer, como a empatia, a melhora do raciocínio, etc., também existem os efeitos emocionais que ler em conjunto de outras pessoas traz. Em algum momento do século XX isso se perdeu, mas a prática nunca foi completamente esquecida. Clubes de leitura têm surgido como algo popular desde a década passada, sendo o Leia Mulheres um dos mais conhecidos no Brasil. Além de um exercício de socialização, a leitura conjunta também é uma forma de dialogar sobre o Outro, sobre a figura que nos é apresentada através de uma história - e sobre as diferenças que temos, como enxergamos aspectos diversos na obra e quais insights tivemos durante a leitura. “Ler literatura escrita por mulheres me desloca da minha percepção do mundo, porque me coloca em contato com o mundo dela, de quem o escreveu. E essa visão de mundo é sempre marcada pela diferença, até mesmo dentro

2020_1| REVISTA EXP | 63


Juliana Baratojo

Além do cárcere Histórias de vida de pessoas que tinham tudo para seguir no mundo do crime, mas contrariando as expectativas superaram essa fase GABRIELA PORTO ALEGRE

“A

minha liberdade tá sendo mágica, é como se eu tivesse nascido de novo. Esses dias, fui ao banco abrir uma conta. Nunca tive cartões antes”. É assim que Carlos Eduardo da

64 | REVISTA EXP | 2020_1

Silva Oliveira, 46 anos, define a vida fora do cárcere depois de quase 12 anos preso, entre saídas e retornos à Cadeia Pública de Porto Alegre, popularmente conhecida como Presídio Central. Condenado aos 34 anos, pelo crime de furto, quando foi preso já era pai de duas crianças. A vida no mundo além das grades era complicada. Sem


-detento, Carlos Eduardo ainda carregava o peso do preconceito racial e social. Negro, pobre e com estudos incompletos, assim como 55% dos presos com perfil traçado pelo último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do lado de fora da prisão ele sentia na pele a indiferença. Sem oportunidades na rua, a porta do crime foi, novamente, a única saída de Carlos Eduardo. Não faltou muito para que retornasse à prisão. Entre idas e vindas, foram mais de 12 anos em um lugar extremamente desumano. Na última prisão, Carlos Eduardo se viu sem chão. Perdeu a dignidade, a convivência com a família e com os filhos.

Negro, pobre e com baixa escolaridade, assim como 55% da população carcerária brasileira, segundo o Infopen

Do lado de fora do cárcere, ex-apenados reconstroem suas vidas sob o olhar estigmatizador da sociedade

dinheiro e com o desemprego batendo à porta, a única perspectiva a curto prazo que Carlos Eduardo tinha para o seu sustento era o crime. Tudo começou com o furto. Depois, o roubo. E, for fim, o tráfico. Na cadeia, viu a vida tomar um rumo muito pior. O cenário que o rodeava no Presídio Central, na Capital, era algo que ele nunca havia imaginado vivenciar. Sujeira por todos os lados, esgoto a céu aberto, celas superlotadas. Água sem tratamento, comida muitas vezes estragada e chão úmido, em meio a fezes, para dormir. Essa era a realidade do portão para dentro no Presídio Central, localizado na Avenida Roccio, nº 1.100, no bairro Partenon, na Capital. Por anos, Carlos Eduardo fez parte da população carcerária reincidente do sistema prisional gaúcho. A cada saída, tudo ficava mais difícil, porque ninguém queria dar uma oportunidade de emprego a um ex-presidiário. Não bastasse o preconceito pelo rótulo de ex-

Novamente encaminhado à estrutura defasada do Presídio Central, Carlos Eduardo passou mais três anos lidando com a indiferença e o desgosto da família que, nesse período, nem sequer o procurou. Certo dia, depois de padecer com as condições precárias do lugar, ele foi chamado por uma psicóloga para fazer uma entrevista e questionado se gostaria de mudar para uma galeria em melhores condições, mais humana, limpa, com um tratamento diferenciado, a galeria do projeto Direito no Cárcere. Ele aceitou. Já na Galeria E1, Carlos Eduardo viu, finalmente, a sua vida começar a mudar e ganhar um novo sentido. No espaço, ele encontrou oportunidades de reintegração e retomada de laços familiares. “Mudou tudo. Mudou meu jeito de pensar, de ver o mundo, de tentar me reintegrar na sociedade. Quando recebi a visita dos meus filhos, foi uma coisa de encher os olhos d’água. Não via eles fazia muito tempo, era uma saudade muito grande”, lembra, com voz embargada. Ao restabelecer os vínculos familiares e retomar o contato com os filhos, Carlos Eduardo percebeu que aquela não vida era a que ele queria, nem a que 2020_1 | REVISTA EXP | 65


Nícolas Chidem

Depois de 12 anos entre idas e vindas ao Presídio Central, Carlos Eduardo atua agora com serviços gerais seus filhos mereciam que levasse. Pensando nisso, quando saiu da cadeia, a primeira coisa que fez foi procurar um emprego e tentar levar uma vida digna. Sem roubo, sem furto, sem tráfico. No entanto, mais uma vez, esbarrou na indiferença e no preconceito. “Quando saí do presídio, sofri muito preconceito. As empresas não estavam e não estão preparadas para receber um egresso do sistema prisional. Eu possuía boas experiências de quando trabalhava, mas não me davam chance nem para serviços gerais.” Mesmo assim, prezando pelo bem-estar e pela 66 | REVISTA EXP | 2020_1

convivência com os filhos, ele não desistiu. Começou a trabalhar como autônomo com serviços de porcelanato e pintura, até que um dia a oportunidade surgiu através de um telefonema da coordenadora do projeto Direito no Cárcere, a advogada trabalhista Carmela Grüne. A oportunidade era para uma vaga de manutenção e limpeza no condomínio onde ela tem escritório. “Carmela relatou minha situação para a síndica. Fiz manutenção no prédio durante uns sete meses e depois me contrataram. A síndica pediu que eu


“Quando saí do presídio, sofri muito preconceito. As empresas não estvam e não estão preparadas para receber um egresso do sistema prisional” - Carlos Eduardo Silva Oliveira, auxiliar de serviços gerais prometesse que não pisaria na bola. Disse a ela que prometer era uma palavra muito forte, mas que não faria nada para prejudicá-la.” Dali em diante, Carlos Eduardo viu, de fato, a vida mudar. E desta vez, para melhor, no lado de fora do presídio. Com um emprego formal e um sorriso de orelha a orelha, Carlos Eduardo atualmente trabalha com serviços gerais e manutenção em um condomínio do bairro Praia de Belas. Nas horas vagas, também participa como voluntário do projeto Direito no Cárcere, incentivando outros detentos a seguirem o seu caminho de superação. “Tá sendo muito boa essa volta por cima. Esses dias, fui ao banco abrir uma conta. Nunca tive cartões antes. Uma das primeiras coisas que fiz depois disso foi ir à feira. Lá, quase estourei o cartão comprando.” Assim como Carlos Eduardo, a vida de Rodolfo Cabreira Chaves também passou por altos e baixos até encontrar novamente o seu destino. Com família estruturada, estudos básicos e médios completos, com emprego de carteira assinada e uma vida promissora, o rapaz, que tinha tudo, aos poucos se viu sem nada. “Minha dependência química começou com o álcool, depois fui passando de uma droga para a outra até chegar no crack. Foi ali que perdi tudo.” Sem dinheiro para sustentar o vício, Rodolfo roubava coisas da própria casa para comprar drogas. Apesar de a família ter condições para pagar um tratamento para dependência química, nada adiantava. Internado pelo menos cinco vezes, ele não conseguia parar. Na última alta de internação, quando saiu de uma clínica de reabilitação, foi até uma boca de fumo. E não voltou mais para casa. Tornou-se um andarilho pelas ruas de Porto Alegre. “Em um determinado dia, o dinheiro acabou. Conheci uma pessoa em situação de rua e, em um momento de desespero muito grande para conseguir

a minha droga de preferência (crack), roubamos um pedestre. Nesse mesmo dia, fui preso”, lembrou. “A gente nunca imagina que vai ser preso, mas sabia que isso poderia acontecer.” Assim como a vida de Carlos Eduardo, a de Rodolfo do lado de dentro do presídio não foi fácil. O cheiro forte do esgoto a céu aberto e o desespero de estar naquele lugar faziam do Presídio Central um ambiente quase que inexplicável, segundo ele. Um dia, na fila de espera de visita, sua mãe teve conhecimento sobre o projeto Direito no Cárcere. Procurou informações sobre a iniciativa e sobre como Rodolfo poderia trocar de galeria para viver em condições mais dignas e humanas. Com o retorno positivo para participar da ação, Rodolfo precisou passar pelo processo de desintoxicação no Hospital Vila Nova e, depois disso, foi encaminhado à Galeria E1. “Essa galeria é como todas as outras deveriam ser: limpas, com certa dignidade para cumprir a pena, com afazeres, tarefas e restauração da autoestima”, afirmou. Após cumprir a pena e ter a liberdade concedida, Rodolfo quis, de imediato, voltar a estudar. Já no lado de fora do presídio, a primeira coisa que fez foi se matricular no Curso de Direito, inspirado pelo projeto Direito no Cárcere. “Essa foi uma experiência que deu bastante sentido a minha vida. Restaurou minha autoestima, propiciou o meu autoconhecimento”, disse. Há um ano e quatro meses em liberdade, o rapaz, que também é músico, já consegue respirar aliviado. Retomou a vida que levava antes da dependência química, está estudando e trabalhando em um órgão público. Quanto às ambições profissionais para o futuro, ele garante não ter muitas, por ter aprendido a valorizar a simplicidade no tempo em que esteve preso. 2020_1 | REVISTA EXP | 67


Marco Quintana

“Quando estamos presos, chegamos à conclusão de que tínhamos tudo. Passamos a dar importância até para as coisas mais simples, como um copo de água gelada, água quente ou apenas o copo, porque nem isso lá dentro a gente tem”, disse. “A sensação de estar livre é de renascimento, eu renasci em vida.” Para Carmela, o Direito no Cárcere, além de acolher egressos do sistema prisional, tem como objetivo fazer a reintegração dos ex-apenados após a concessão de liberdade. “O fato de eu lutar pelo direito das pessoas terem reconhecimento de direitos está totalmente ligado à necessidade de inclusão pelo trabalho, porque o desemprego é uma das causas da criminalidade. As pessoas vão buscar por outros caminhos uma forma de 68 | REVISTA EXP | 2020_1

sustentar sua família”, argumentou, acrescentando do que, justamente por esse motivo, ela acredita que o trabalho deveria ser priorizado como uma política pública de Estado. “Se o trabalho e a educação fossem colocados como uma prioridade, não se precisaria construir tantas prisões”, atribuiu. Em oito anos de existência, o Direito no Cárcere conseguiu reintegrar cerca de 70% dos egressos prisionais que passaram pelo projeto, enquanto apenas 30% tiveram alguma taxa de reincidência. “É um percentual baixo de reincidência. Em relação à realidade brasileira, é o inverso. O que faz a diferença no projeto é o espaço onde eles estão, a salubridade, os cuidados físico e mental, o resgate do vínculo familiar e a criação de novas perspectivas”, afirmou Carmela.

O cárcere fez com que Rodolfo passasse a valorizar coisas as coisas simples, como um copo d’água, por exemplo


CRÔNICA

Tic-Tac ÂNGELO MENEZES

E

u nunca gostei de relógios. Apesar de cultivar tradições, a minha família nunca teve aquela coisa de passar bens entre uma geração e outra. Nascido no último suspiro dos produtos analógicos, eu cresci sem me importar em saber ou precisar dar corda para ver as horas. Mas aí, em um aniversário, eu ganhei um. Simples, prata e que além dos números, o único adereço extra é informar os dois dígitos de data. Desde então, só tiro para dormir – e de vez em quando. Ou melhor, tirava. No segundo dia de home office forçado pela pandemia, a pilha acabou. Em bom português, daí pra frente, foi só pra trás! Nas tentativas de vencer o ócio e de reaprender a viver sem algo no pulso, recorri às artes. Logo de cara, procurei por “A Persistência da Memória”, de Dalí, e que não precisa das minhas palavras para ser o que é, mas eu quero falar “Será que derreter o dele mesmo assim. Aquela tempo quer dizer mesmo coisa de brincar com o temisso? Não sei, talvez nem po derretendo os relógios Dalí soubesse. Freud? é fantástica! É a prova de Provavelmente.” que só existe valor no que desejamos que tenha valor. Sem medir o tempo, tudo fica individualizado – as horas, os minutos, os dias, os compromissos, a vida. Esse quadro me desperta sentimentos bucólicos, faz o passado e o futuro se misturarem. Será que derreter o tempo quer dizer mesmo isso? Não sei, talvez nem Dalí soubesse. Freud? Provavelmente. Devaneios psicanalíticos à parte, acredito que, tendo sido obrigado a voltar ao patamar anterior àquele fatídico aniversário, estou entrando de vez na modernidade! Hoje, os reló-

gios já não importam mais - o tempo também não, diriam os mais otimistas. Prova disso vem dos modernos smartwatchs, aqueles relógios que têm tanta função mas quase se esquecem de mostrar as horas. Ah, Santos Dumont, não sabes o que fizeram com as tuas invenções! Quando eu quero me distrair (ou me flagelar), outra alternativa é ir ao Twitter. Dia desses, lembrei que o maldito do moderno algoritmo tirou a ordem cronológica das publicações. Nem lá o tempo passa mais do mesmo e antigo jeito. Na quarentena, eu me perdi tanto sem o tal relógio que posso afirmar categoricamente que o Jornal Nacional passa no horário do Bom Dia Brasil. Aliás, a minha relação com a televisão também mudou completamente. É tanta novela reprisando que eu confundo os momentos da minha vida, divididos entre quando elas passaram pela primeira vez e com elas passando agora. Dia desses, pensei que o 7x1 – ou o 17? – tinha sido um sonho daqueles em que a gente acorda assustado e logo corre para se certificar das... horas! Eu não canso de repetir: estou desorientado sem aquele negócio antigo que vira e mexe me beliscava. Quando a quarentena acabar, vou entrar na política e atender aos interesses daqueles que desejam ter seu próprio jeito de contar o tempo, ou as horas, ou qualquer que seja a outra unidade de medida temporal! Como no Brasil é mais fácil abrir um partido político do que cancelar a operadora da internet, vou criar o meu próprio! Seremos os PATETAS - Partido Anti Temporal e Também Anti Sacanagem (esse último é para atrair aqueles conservadores nos costumes mas liberais na economia). Quem sabe, com a psicologia reversa, a galera da Idade Média aprende a ver as horas - e os anos. 2020_1 | REVISTA EXP | 69


Da redação às arquibancadas Apesar do machismo enfrentado todos os dias, elas tentam conquistar seus lugares no jornalismo esportivo e nos estádios de futebol

Texto NATÁLIA SCHWENGBER

P

rogredimos. Ainda faltam mulheres e sobram clichês e preconceitos. Esse é o relato das mulheres que querem seguir seus sonhos em um ambiente majoritariamente masculino e machista. No país do futebol, o jornalismo esportivo é quase um território à parte, em que homens revelam a sensação de incômodo e levantam questionamentos sobre a presença feminina nessa área. Elas precisam de força e persistência para provar o tempo todo que possuem competência para falar de futebol no nível de um homem, ou às vezes melhor. Para a maioria das que estão nos estádios no papel de repórteres, ouvir xingamentos é uma triste realidade. Depoimentos e relatos de jornalistas que tentam fazer o que qualquer pessoa faz. Trabalhar. Mauriane Dorneles é formada em Jornalismo na PUCRS. Sempre muito persistente em seus sonhos, conciliou estágio e faculdade. Seu pai apoiou-a por considerar a carreira promisso70 | REVISTA EXP | 2020_1

ra para a filha. Já passou pela TV Pampa, e pela Rádio Bandeirantes. Hoje repórter do Globo Esporte RS, comenta que não somente dentro dos estádios, mas quando está trabalhando fora dele, já foi xingada. Ela leva isso de uma forma descontraída: “Se sabe meu nome e o nome da empresa onde eu trabalho, então você assiste a essa empresa.” Comenta que as pessoas acham que estão lá por causa de um rosto bonito. Em abril de 2019, durante um jogo entre Internacional e River Plate, a repórter da Rádio Guaíba Laura Gross foi assediada por um torcedor colorado que dizia ser de São Miguel do Oeste e queria ser entrevistado por ela. Laura conta que tinha que continuar o trabalho de transmissão do jogo, mas o torcedor a seguiu. O que começou com um assédio verbal terminou com uma ocorrência policial por assédio registrada por Laura, com apoio da equipe. Kelly Costa é apresentadora do Globo Esporte da RBS TV, busca aprender todos os dias para ocupar seu papel no espaço jornalístico, encara de frente todos os desafios que o jornalismo esportivo impõe. Ela conta que é normal


Mauriane Dorneles, em uma transmissão de jogo pela Rádio Bandeirantes na arquibancada do Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre

sentir medo de estar sua capacidade de com“Não se calar, isso é a chave de preender uma explicação em uma redação onde tudo. É um desafio, precisamos por ser mulher. Em ouas pessoas têm um trabalhar dentro da gente, até tro momento, um torceconhecimento muito que nós mesmas tenhamos dor ofendeu-a com palagrande sobre um deterforças para encarar” minado assunto, mas, vrões e xingamentos no segundo ela, é onde dia em que foi lançada KELLY COSTA, mora o ímpeto de tena campanha #DeixaEApresentadora tar se colocar naquele laTrabalhar, com reperlugar e fazer diferente. cussão em nível nacional “Ser mulher e trabae mundial. Essa campanha consistiu em um manifesto de jornalistas lhar no meio esportivo é um desafio diário, mas, esportivas junto com árbitras, bandeirinhas e ao mesmo tempo, é muito prazeroso deixar a tua marca e mostrar que tu também podes assessores de imprensa dos clubes, cansadas de estar lá.” Ela conta que já passou por momenassédio e hostilidade. Kelly acredita que faltam tos desconfortáveis. Alguns, mais “simples”, mulheres no meio esportivo, às vezes por medo, que não tiveram repercussão como o assédio. receio ou por acreditarem que não vão suportar Outros foram mais graves, como o episódio em passar por algumas situações, seja nas redações que um ex-técnico do Internacional duvidou de ou em estádios de futebol. Fotos Arquivo pessoal

2020_1 | REVISTA EXP | 71


“Não deixem de vir, de tentar, não se sintam Manuela Ramos ingressou no curso de jornaintimidadas. Cada vez mais vocês serão aco- lismo da UFRGS em 2011 e se formou no final lhidas e não só por mulheres, mas por muitos de 2015. Hoje trabalha no Globo Esporte. Manu homens que têm a mente muito aberta, não são conta que passou por um momento, segundo ela, machistas e também acolhem muito bem a pre- angustiante em uma final de Gauchão, no Beirasença feminina no meio esportivo”, reforça Kelly. -Rio. Na hora que o Inter estava para levantar a Valéria Possaimi conta sobre a experiência taça de campeão, Manu estava lá parada perto e responsabilidade de da torcida popular narrar um jogo de fuesperando para en“Faltam mulheres interessadas tebol feminino. Uma trar e fazer seu trabano jornalismo esportivo. A gente sensação única que lho de jornalista. Não vê muitas na TV, mas precisa de vai guardar para o estava olhando para mais jornalistas no rádio e nas resto da minha vida, ninguém, mas só pelo redações” segundo ela. Uma exfato de estar lá, ouAMANDA MUNHOZ periência profissioviu diversos tipos de Gerente de Mídia do Inter nal, mas a nível pesofensas. Outra vez foi soal também. Havia perto da Arena, estaum medo natural, porque, afinal de contas, não va na rua fazendo produção com uma colega e era algo que estava acostumada a fazer. “Em o pessoal da Band, mas segundo ela, não foi tão relação aos bastidores, eu senti uma pressão, forte quanto a no Beira-Rio. “Ser mulher e tramas era pessoal mesmo, por saber que eu se- balhar no meio esportivo deveria ser mais fácil, ria a primeira mulher a assumir uma jornada mas também não é nada impossível, as coisas esportiva em um microfone comandado por vem melhorado bastante. Acho que nos últimos Haroldo de Souza, Angelo Afonso e Henrique anos com que vem acontecendo, vem sendo um Pereira, que são os narradores da casa.” pouco mais fácil das pessoas te verem.” 72 | REVISTA EXP | 2020_1

Kelly Costa apresentando na época a América Grenal no programa Jornal do Almoço da RBS TV


Arquivo pessoal Amanda Munhoz, gerente de mídia do Internacional, conta que no tempo em que trabalhava na RBS, uma fonte que estava lhe passando detalhes de uma contratação disse-lhe que teria que aceitar um convite para jantar em retribuição às informações obtidas. Outra foi de uma pessoa dizer que sabia quem ela era e que ela conseguia tudo com o sorriso. “Faltam mulheres interessadas no jornalismo esportivo. A gente vê muitas na TV, mas precisa de mais jornalistas no rádio e nas redações”, segundo Amanda. Larissa Balieiro trabalha na Rádio Difusora do Amazonas e é a segunda mulher do Amazonas na editoria esportiva. No início de março deste ano, aconteceu a primeira rodada do Campeonato Amazonense, partida entre São Raimundo - AM e Manaus FC. Larissa foi surpreendida por xingamentos de torcedores que estavam presentes no jogo. “Ele começou a gritar contra a esposa de um jogador, falando que toda mulher era vagabunda. Aquilo mexeu comigo, fiquei visivelmente incomodada. Ele percebeu eu e minhas colegas. Eu filmei, ele parou de falar tudo que estava falando antes, e a partir daí eu coloquei o vídeo em uma rede social e viralizou. Dia 30 de abril entrou na pauta do Tribunal de Justiça Desportiva, ele foi condenado e o clube também”, conta Larissa. Tatiana Mantovani se formou no curso de Jornalismo na PUCRS em 2005. Atualmente trabalha no Esporte Interativo na Espanha. Tati conta que trabalhou em frente ao estádio ao vivo, onde os torcedores se acharam no direito de soltar piadas ou de beijar a bochecha. “A mulher em geral sempre precisa estar alerta, a sociedade é muito machista e isso é uma realidade. Eu lembro de estar um dia na sala de entrevista coletiva esperando o técnico do Real Madrid para fazer perguntas, eu olhei para os lados eu era a única mulher, pelo menos de repórter. Depois tinha mais uma mulher na sala que era cenegrafista e tinha umas 50 a 60 pessoas de meios de comunicação do mundo inteiro e realmente chama atenção, nós somos muito poucas ainda”, desabafa Tatiana. Paula Fernandes se formou na Uniritter, em agosto de 2019. Atualmente trabalha como freelancer no site do Globo Esporte e segundo ela, sempre que precisou fazer alguma pauta na rua, buscava usar roupas largas para não chamar a atenção. Para que um dia de trabalho não se torne um dia de constrangimento.“Confesso que em situações eu deixo de participar de debates ou conversas

Tatiana Mantovani em entrevista com os jogadores Marcelo e Casemiro do Real Madrid, no campeonato da Champions League por não me sentir tão à vontade assim. Se fossem apenas com mulheres ou com mais mulheres, talvez me sentisse mais à vontade”, conta. Relatos de mulheres jornalistas que assim como outras, também esperam uma mudança. Elas esperam o dia em que serão respeitadas nos campos de futebol e que a cultura machista possa ter um fim. 2020_1 | REVISTA EXP | 73


Novas vozes Com o consumo de podcasts aumentando a cada ano, novos produtores de conteúdo surgem pelo país. Conheça alguns produtos de áudio criados na Capital gaúcha Texto GABRIEL SALAZAR

P

odcasting é um termo que surge a partir da junção do prefixo “pod”, de iPod (tocador de mídia digital da Apple), com o sufixo “casting”, originado da expressão “broadcasting”, transmissão massiva de informações que, quando feita através de ondas de rádio, também pode ser chamada de radiodifusão. As primeiras origens dos podcasts como se conhece hoje datam de 2004, época em que, para ouvir um desses arquivos, era preciso, a cada nova episódio, acessar o site que o hospedava, fazer o download para seu computador e só então ouvi-lo. De lá para cá, o consumo de podcasts vem crescendo – e muito. Em 2019, milhões de pessoas de todas as idades passaram a ter contato com um formato de mídia que até então era reservado apenas a uma parcela menor da população. Segundo uma pesquisa da plataforma americana de tecnologia em áudio Voxnest, nos Estados Unidos, onde

74 | REVISTA EXP | 2020_1

o podcast já era uma mídia consolidada, havia no ano passado mais de 800 mil shows ativos e 62 milhões de ouvintes. A previsão da indústria é atingir a marca de um bilhão de dólares em faturamento até 2021. Outro fator que ajudou no aumento da adesão de público foi a entrada de grandes nomes da cultura pop na podosfera (mundo dos podcasts), como o ex-presidente americano Barack Obama e sua esposa, Michelle, o comediante e apresentador Conan O’Brien e o ator e comediante Will Ferrell, além da chegada de renomadas redes de entretenimento, como Sony Music, Apple, iHeartRadio e Marvel. No Brasil, o blog Jovem Nerd criava, em 2006, o Nerdcast – um dos podcasts de maior sucesso no Brasil até hoje. Em 2014, era criado pelas publicitárias Juliana Wallauer e Cris Bartis o Mamilos, que teve um sucesso tão grande que se tornou a principal ocupação das apresentadoras. Dois anos depois, PC Siqueira, influenciador digital ativo na web há mais de dez anos, passaria a integrar o time do Papo Torto, junto com Gus Lanzetta e Julio Pacheco.


Eduardo aproveitou o período em casa por conta da covid-19 para dar início ao seu próprio podcast

Segundo uma pesquisa realizada pelo Ibope em 2019, 40% dos aproximados 120 milhões de internautas no Brasil já ouviram podcasts – são 50 milhões de pessoas que já escutaram algum programa de áudio pela internet. Um outro levantamento, este da plataforma de streaming Deezer, também do ano passado, registrou que 25% da parcela ouvinte de podcasts consome mais de uma hora da mídia sonora por dia. Por outro lado, a pesquisa do Ibope aponta um cenário contrastante: 32% dos internautas não sabem ao menos o que seria um podcast. Isso equivale a 38,4 milhões de brasileiros. Se você também não sabia, esta matéria já lhe ajuda a sair desse grupo. Para saber mais sobre o mundo desses programas de áudio, confira alguns programas nascidos em Porto Alegre:

Gravar um podcast é reviver o passado já adulto O contato de Eduardo Marques com o mundo do áudio não é recente. Quando pequeno, ganhou uma fita cassete de sua avó, que usava para gravar brigas de família, conversas pela casa e brincar com os amigos. Com o passar dos anos, a brincadeira foi ficando mais séria: em março de 2020, o jornalista publicou o primeiro episódio do podcast Dito & Feito. Eduardo sempre teve vontade de criar um produto digital, mas não encontrava o tempo para progredir com a ideia. Com as determinações feitas pelo governo do Rio Grande do Sul de distanciamento social para evitar o aumento Arquivo pessoal

MÊS E ANO | NOME DA REVISTA | MÊS E ANO | 13


de contágios da doença covid-19, ele conseguiu dar início ao seu planejamento: “Com a pandemia, chegou a hora de tirar do papel e colocar na prática”. A escolha de montar um podcast surgiu da junção do gosto com a praticidade – não é preciso grande esforço técnico ou financeiro; é possível fazer tudo com o próprio celular. “O que eu estou esperando?” era o pensamento que lhe motivou, conta Eduardo. Para dar início ao programa, ele conversou com seu amigo empresário e publicitário, Gelson Alves, que participa de alguns episódios junto a Eduardo. O nome foi escolhido rapidamente: Dito & Feito. “Planejar menos e executar mais”, justifica o âncora do podcast. O logo e a arte visual foi feita por Géssica Moraes, sua esposa, que tem uma empresa de design gráfico. O carro-chefe do programa é entrevistas – todos os seis episódios publicados até agora contam com a presença de algum convidado, abordando um tema específico, como música, futebol, tecnologia e televisão. “Tudo que é assunto interessante, eu vou querer debater”, diz Eduardo. Todas as entrevistas são feitas via Skype, um software que permite ligações e chamadas de vídeo. Depois de gravadas, o podcaster edita o áudio e o vídeo – esse ele separa alguns trechos e publica em um canal no YouTube pessoal e no Instagram do programa. O plano é criar um canal próprio para o canal. Para não deixar seus convidados nervosos e ajudar a conversar a fluir melhor, Eduardo chama as entrevistas de bate-papo. Ele está acostumado com a situação pois é jornalista e trabalha como produtor na RecordTV RS. Uma das preocupações iniciais, inclusive, foi como seria a reação de seu gestor ao saber que ele estaria criando um podcast. No fim, seu chefe adorou a ideia e ficou contente que Eduardo estivesse dando rumo a um projeto próprio. Quanto a relação trabalho–podcast, ele conta que um acaba incentivando o outro. O primeiro episódio oficial do Dito & Feito, que trata sobre o coronavírus, foi publicado no 76 | REVISTA EXP | 2020_1

dia 28 de março. Mas, um dia antes, tem uma entrevista gravada com o Tite, técnico da Seleção Brasileira de Futebol. Ela havia sido feita na época em que Eduardo cursava Jornalismo na UniRitter. Ele planeja fazer uma seção de “lembranças” no podcast – dentre as entrevistas que o jornalista tem salvas, ele gosta das que fez com Renato Portaluppi, atual treinador do Grêmio, e Geraldo Rufino, fundador da JR Diesel. Para ele, gravar um podcast é lembrar do passado – até mesmo de quando brincava com a fita cassete presenteada pela avó. Embora sua primeira preocupação com o Dito & Feito seja gerar conteúdo, Eduardo tem planos para o programa. Além da ampliação para um canal no YouTube e a criação da ala com entrevistas passadas, ele sonha que o podcast possa se tornar um grande canal comunitário, em que novos programas podem surgir, pessoas podem se auxiliar nas produções e haver uma interatividade maior. Com o Dito & Feito, Eduardo quer mostrar que, caso alguém tenha o sonho de gravar – como ele tinha –, não é impossível de ser alcançado.

Conversas sem sentido reunindo um amontoado de ideias No começo de 2020, Gustavo Souza se encontrava em um dilema: continuar ou trancar o curso de Publicidade e Propaganda que estava cursando na Fadergs (Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul). Por estar passando por alguns problemas pessoais na época, optou por dar uma pausa nos estudos. Ele aproveitou o tempo que ganhou para fazer o que gostava e criar o Amontoado. Assim como Eduardo, Gustavo nutria uma curiosidade por produtos digitais, mas não sabia bem ao certo qual formato utilizar. Vídeo ele sabia que não seria, pois não queria aparecer; textos o agradavam e até que gostava de escrever, mas enjoava rápido da ação; sem muitas outras alternativas, chegou à conclusão que seria algo em áudio. “Sabe quando a sua mãe


Arquivo pessoal

Um dos convidados por Gustavo (à esquerda) a participar do podcast Amontoado foi o músico The Good Drug

diz: ‘Ah, a sua voz é tão bonita’? Então, foi um incentivo a mais”, brincou. O processo de criação foi rápido: já sabendo o rumo que queria dar ao programa, ele decidiu o nome em cinco minutos e entrou em um site para criar o podcast. Ele também sabia o modo como não queria fazer. Segundo Gustavo, muitos programas de comédia e entrevistas acabam focando muito na fama e acabam perdendo seu propósito. “O ego acaba crescendo muito, vira uma maldade”, explicou. Acompanhando programas nacionais e internacionais, Gustavo percebeu que não havia muitos programas que tratassem de assuntos completamente aleatórios, e é isso que ele se propôs a fazer no Amontoado. A descrição do podcast já avisa o que os ouvintes irão encontrar: comentários aleatórios, debates sobre tudo e ao mesmo tempo sobre nada e um motivo para matar o tempo. “Eu pego um nada e tento transformar em um nada maior ainda”, resumiu, rindo.

Quando Gustavo decidiu que iria começar um podcast, já parou de ouvir os que acompanhava, para evitar pegar cacoetes e muitas referências. No entanto, mesmo com uma criação rápida do programa e um conceito preparado, ele demorou uma semana para gravar o primeiro episódio: tinha vergonha da própria voz. Depois de engolir os receios e tomar uma dose de coragem, Gustavo pegou seu celular e fones de ouvido – o equipamento com que grava o podcast – e começou o primeiro episódio, Boas vindas, Se Joga, Relapsos e o Homem do Sul. Ele não seguiu roteiro algum e não editou o áudio ao término da gravação, fórmula que se repetiria para todos os outros episódios. “É um ao vivo gravado”, contou. “Eu falo sobre o que todo mundo fala na rua, mas tem vergonha de admitir que fala”. O Amontoado tem sido um fator de aprendizado para o podcaster. Lidando com depressão e ansiedade, o programa o ajudou a criar coragem e se expor mais. “Me mostrar, não ter 2020_1 | REVISTA EXP | 77


vergonha e poder conhecer o que e quem eu queria conhecer”, comentou. Na maioria dos episódios, ele contou com a companhia de convidados especiais, indo de irmão e amigos, até artistas, como o vocalista da banda Bidê ou Balde, Carlinhos Carneiro. Gustavo lançou o primeiro episódio em 6 de março, cinco dias antes do primeiro caso de covid-19 em Porto Alegre. Com entrevistas já gravadas, ele conseguiu manter o ritmo de publicação por algum tempo, mas eventualmente, por conta dos decretos de distanciamento social, teve que cancelar com convidados. Mas não foi apenas nas entrevistas que a pandemia afetou os planos de Gustavo: antes do governo estadual decretar medidas restritivas, ele estava em contato com marcas para o patrocínio de uma temporada com convidados especiais no Amontoado. “Com a quarentena, acabaram desistindo. Agora é esperar isso acabar e voltar a conversar”, lamentou. Mesmo não tendo o objetivo de ficar famoso imediatamente, Gustavo já está contente com o programa que tem: “Crescer não é uma prioridade, é uma tentativa”.

Um grupo de amigas, um vinho e o começo de um podcast A amizade de Júlia, Lola, Tai e Tiarret começou em 2019, nos corredores de um prédio em uma universidade porto-alegrense. Elas se uniram para conversar sobre um assunto que era comum a todas: o espaço da mulher no ambiente acadêmico. Todas matriculadas em programas de pós-graduação, tiveram de conviver com muitos colegas homens com atitudes inconvenientes ao longo da vida. Da convivência no mesmo ambiente e de gostos e posicionamentos parecidos, nasceu o grupo que dali a alguns meses daria vida ao Banheiro Feminino. No dia 28 de setembro, Júlia sugeriu às amigas que criassem um podcast. Todas aceitaram na hora, até mesmo Tai, que nunca ao menos havia ouvido algum programa que se encaixasse na categoria. “Acho que era um vontade que todo mundo tinha, mas a Júlia foi lá e expôs pra gente”, disse Tiarret. Animadas, elas pegaram um quadro disponível da universidade e começaram a anotar pautas para o programa. Fotos Guilherme Vivian

Júlia, Tiarret, Thay e Lola gravaram o primeiro episódio com uma garrafa de vinho e muitas risadas

78 | REVISTA EXP | 2020_1


Mesmo com o planejamento, as quatro não conseguiram dar início imediato ao projeto – era final de semestre em seus cursos e todas estavam com um grande número de tarefas para fazer. Um par de meses depois, aconteceu o seu primeiro dia de gravação: era 5 de dezembro. O estúdio em que gravaram fica na residência de Guilherme Vivian, conhecido de uma amiga de Júlia. Com uma garrafa de vinho, fones de ouvido e um microfone na frente, elas gravaram quatro episódios; um primeiro sobre sonhos, outro sobre vergonhas, o terceiro sobre Natal e o último sobre Ano Novo. Por questões profissionais e acadêmicas, optaram por se apresentarem apenas com os apelidos ou primeiros nomes. O nome, Banheiro Feminino, foi criado por Tiarret, que também cuidava das partes gráficas do podcast. “Qual é o lugar que só mulheres entram e são livres para falar do que quiserem?”, ponderou ela. E o pensamento reflete também na descrição do programa: “Um programa sobre tudo e sobre nada. Aqui, homem não entra”. Júlia, a âncora e porta-voz do Banheiro Feminino, usa a frase no começo de cada episódio.

As acadêmicas nem cogitaram fazer algum canal em algum outro meio que não um podcast. Um dos fatores que acabou auxiliando a decisão, é o fato de um programa em áudio possuir a vantagem de utilizar apenas a voz, sem ter de envolver a questão da aparência. “Quando você elimina o fator da imagem, você se libera para o conteúdo”, explicou Tiarret, argumentando que quando se aparece no produto que está sendo produzido, como em um vídeo, as pessoas acabam julgando o material pela aparência de quem o apresenta, e não pelo próprio conteúdo. Embora as quatro amigas tenham momentos de dúvida no trabalho que estão fazendo, sentem orgulho do caminho que estão tomando. Para as podcasters, gravar o Banheiro Feminino é mais que criar algo para a internet, é um encontro de amigas. “Gosto porque é divertido, faço com pessoas que gosto e rio bastante”, disse Tai, sorrindo. A âncora do programa afirmou que quem tiver curiosidade no podcast não vai se arrepender de dar uma chance: “A gente é muito imbecil, mas trazemos algumas temáticas que são interessantes e fazem pensar”.

As quatro amigas gravam na casa de um conhecido de uma amiga de Júlia, que possui todos os equipamentos

2020_1 | REVISTA EXP | 79


1 | REVISTA EXP | JULHO DE 2020


Repórter Jonas Campos retornou à RBS TV em 2013, após oito anos na TV Centro América, no Mato Grosso

A simplicidade do Caboclo O repórter Jonas Campos desbravou o Brasil e serve de inspiração para os novos e futuros colegas de profissão

Texto VÍTOR FILOMENO Fotos ARQUIVO PESSOAL

E

m que momento da vida é possível perceber o talento que se possui e, por conta disso, usá-lo na sua profissão? Para o catarinense Jonas Campos, essa descoberta aconteceu aos 12 anos de idade. “Eu decidi fazer Jornalismo aproveitando um talento que Deus me deu”, afirma. Na cidade Joaçaba, no Meio Oeste de Santa Catarina, a 388 quilômetros de Florianópolis, Jonas, todos os domingos, fazia a leitura da liturgia durante a missa e era muito elogiado pelos católicos mais idosos, que, sentados ao fundo da Igreja, compreendiam-no muito bem. O dom estava aí e o encanto pelo Jornalismo surgiu. A infância do pequeno joaçabense não foi fácil. Logo após o seu nascimento, em 22 de novembro de 1970, sua mãe, dona Maria Enes Nunes de Campos, adoeceu. Diagnosticada com Transtorno Bipolar Afetivo, ela ficou internada na capital catarinense por um ano e meio. Para

dificultar, seu pai, Marciano Ribeiro de Campos, abandonou esposa e filho. Então, nesse período, Jonas ficou com o seu avô materno, Joaquim Nunes, que serviu de referência masculina e um segundo pai para ele. A dificuldade financeira se fazia presente na infância de Jonas. Com muito esforço de dona Maria, já estabilizada, ele iniciou o 5º ano no Colégio Marista Frei Rogério, em Joaçaba, instituição caríssima já à época. Dos diversos momentos que uma pessoa poderia se lembrar do período escolar, ele se recorda de algo triste. Embora a palavra “desânimo” nunca estivesse no dicionário de Jonas, para ele era constrangedor, aos finais de bimestre, os boletins entregues pela professora vinham com um recado indesejado: passar na tesouraria. Ao ingressar na instituição Guarda Mirim, instituição que intermediava a contratação de adolescentes por empresas no estado. Com isso, Jonas começou a trabalhar como office boy na Perdigão, marca catarinense de alimentos frigoríficos. Foi nesse emprego que ele as portas do jornalismo começaram a se abrir para ele. Ao saber de uma filial da Perdigão em São José, região metropolitana de Florianópolis,

2020_1 | REVISTA EXP | 81


Jonas pediu transferência para lá, em busca do seu grande sonho. Saiu de casa aos 19 anos rumo sonho. Durante dois anos, estudou e trabalhou, visando a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele prestou duas vezes o vestibular, mas não foi aprovado. Assim, buscou alternativas. O que encontrou foi a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Então, em 1990, ingressou na Unisinos. Para cursar a faculdade em Porto Alegre, o jovem Jonas passou dificuldade, inclusive fome. Nos fins de semana, não tinha dinheiro para comprar alimentos. “Durante a semana até tinha o que comer no ambiente de trabalho. Mas no fim de semana falta dinheiro. Então, eu bebia água, muita água. Senti a dor da fome. Ela é horrível.”, afirma. Um de seus professores na época, hoje docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luiz Artur Ferraretto, lembra do seu aluno com carinho, como um cara humilde, dedicado, já que passava dias

82 | REVISTA EXP | 2020_1

ouvindo o rádio e datilografando o que ouvia. “Me lembro dele chegar com textos de noticiário que ele datilografado enquanto estava ouvindo e aí ele vinha me perguntar se estava certo ou errado o que havia sido noticiado de tal e tal forma pela Rádio Guaíba, pela Rádio Gaúcha.”, recorda Ferraretto. O começo de carreira foi na Rádio Gaúcha, onde estagiou de 1992 a 1994. Participou do processo de seleção, fez a reportagem solicitada como desafio e foi admitido. Depois de formado, foi para a RBS TV, onde permaneceu por dois anos. Em 1996, foi para o SBT em Curitiba, em que ficou apenas 3 meses, e regressou para a RBS TV. Em 1999, em uma iniciativa da Rede Globo em ter repórteres em Manaus, Belém, Fortaleza, Campo Grande e Cuiabá, candidatou-se à vaga na capital paraense e foi aprovado. O desejo por Belém partiu de pesquisas que fez sobre o estado e o que poderia realizar lá. Então, iniciou sua trajetória na TV Liberal. No período, Jonas produziu mais de cinco mil reportagens. Entre elas, o assassinato da missionária Irmã Dorothy

Repórter Jonas Campos e sua equipe durante reportagem nas ruas da região central da capital gaúcha


Stang, com quem Jonas mantinha contato, em 2005, e quando sua equipe de reportagem foi atacada a tiros pelos seguranças do senador Jader Barbalho em 2001. Em 2005, foi para a TV Centro América, em Mato Grosso, onde trabalhou até 2013, quando voltou para a RBS TV. Os colegas dessa trajetória de Jonas Campos no Jornalismo o recordam com muito carinho. A diretora Rosi Medeiros, da TV Centro América, em Cuiabá, diz que o repórter catarinense é “um excelente profissional, muito humano, um repórter que, como poucos, conhece tanto deste país, que sabe contextualizar as diferentes realidades enfrentadas por um povo que habita uma mesma região.” Ela resume o ex-colega como alguém muito fácil de se trabalhar e que entusiasma a redação. O Leonardo Ribeiro, hoje editor da TV Globo, no Rio de Janeiro, mas trabalhou com Jonas na redação da TV Liberal, em Belém, afirma que ele sempre foi um mestre e que aprendeu muito com ele. “É um profissional muito exigente, principalmente na questão da apuração, da agilidade da apuração, e rigoroso nesse sentido.”, complementa. Um ponto convergente entre quem conhece

o Jonas é a sua humildade e humanidade. As filhas Eduarda e Giovana enfatizam a sua simplicidade, além de lembrar o lado ‘paizão’ do jornalista. “Um pai super atencioso, carinhoso, brincalhão, implica demais com a gente, está sempre nos provocando”, segundo Giovana, e “ele com certeza é o melhor pai que eu poderia ter e eu o amo muito”, completou Eduarda. A apaixonada esposa Karina Chaves diz que o Caboclo, apelido que ela dá a ele e que ele descobriu quando trabalhou no Pará, é “uma pessoa extremamente simples e a simplicidade faz dele um grande jornalista, um grande homem, um grande repórter, um enorme pai”. Segundo o cinegrafista Júlio de Souza, o repórter é “uma pessoa ímpar e muito íntegra no que fazia”. Jonas Campos é apaixonado pela esposa Karina, que, segundo ele, é a sua maior incentivadora, ama demais as suas filhas Vana e Duda, que são “sua razão de seguir em frente”, e um jornalista em eterno namoro com sua profissão, em que se considera “um aventureiro”. Encantado com a vida, entusiasmado com a profissão, apaixonado pelas pessoas e simples: este é o Caboclo. Arquivo pessoal

As duas filhas de Jonas Campos, Giovana (à esq.) e Eduarda (à dir.), consideram-no um “paizão”

2020_1 | REVISTA EXP | 83


Quando o lar não é mais doce Imigrantes vão à Lomba do Pinheiro em busca de uma vida melhor, mas encontram dívidas, desemprego e aluguéis abusivos

Texto e fotos EDUARDA PEREIRA

A

o chegar à Lomba do Pinheiro, esperança. Após longas viagens e muita incerteza, os haitianos que encontram no bairro da zona Leste de Porto Alegre acreditam ter encontrado, também, a solução para seus problemas. A terra prometida não contém luxos, mas guarda a promessa de uma vida melhor. Pouco antes da área onde moram os haitianos, a Paróquia Santa Clara reúne pessoas que se propõem a ajudar: arrecadam alimentos e agasalhos e os distribuem entre os imigrantes, acolhendo quem chega. Mas, para os que passam a Paróquia e caminham por mais alguns quilômetros, a realidade vem à tona novamente. A zona destinada à moradia de quem chega de outros países divide-se em pedaços de terra de até 10m², cada um com custos que podem chegar a até R$ 3 mil por mês. Nos primeiros meses de moradia, alguns dos novos residentes já acumulam dívidas de R$ 5 mil a R$ 10 mil. Por não conseguirem emprego, a dificuldade 84 | REVISTA EXP | 2020_1


Karina Compadre, de 36 anos, leva as filhas Camelia e Betie Exilhomme para as aulas de português oferecidas pela Paróquia

de conseguir alimentos e estudo para os filhos aumenta proporcionalmente às quantias que devem. Em 2012, no Haiti, Joseph Bazelais passou a achar a vida insustentável. Em meio a uma forte recessão, a falta de emprego o impedia de sustentar a recém-formada família. Antes, trabalhava na construção civil e como jardineiro. A mulher e o filho de quase um ano ficaram para trás quando ele resolveu se arriscar a ir tentar a vida em outro lugar. Foi aí que o haitiano resolveu vir para Porto Alegre. "Quando cheguei, fiquei sabendo que a região da Lomba do Pinheiro era a que mais abrigava haitianos. E resolvi vir para cá.” Sentado num sofá na entrada da Paróquia Santa Clara, Joseph parece estar em casa. O boné que descansa sobre a cabeça foi fruto das doações que a igreja redistribui semanalmente. Algumas quadras depois da paróquia, a avenida se estreita. Ruas perpendiculares se entrelaçam, sobem e descem, abrigam diversas formas de vida a cada espaço possível. Mas os pedaços de terra começam a se dividir em outros menores, e estes em outros, e assim sucessivamente. Joseph diz que essa foi a sua maior surpresa. “Os moradores mais antigos da região, brasileiros, alugam pedaços muito pequenos de terra, com preços altos demais para os imigrantes. A maioria está desempregada, assim como eu. Estou há três meses com o aluguel atrasado. Minha dívida já está chegando a cinco mil reais.” Uma questão humanitária Quando o frei João Osmar se mudou para a Lomba do Pinheiro, em 2013, logo percebeu a

concentração de imigrantes nas ruas. Na época, eram mais recolhidos. Passavam mais tempo nas casas improvisadas, não sabendo se seriam aceitos pelos habitantes brasileiros. Aos poucos, começaram a aparecer na Paróquia Santa Clara, pedindo emprego. “Não tínhamos como conseguir isso. Então eu oferecia alimentos, mas eles recusavam. Não queriam comida de graça, queriam poder trabalhar.” Com a proximidade do Natal, João procurou alguns templos religiosos no bairro. Por serem, em sua maioria, católicos pentecostais, é a templos dessa denominação que os haitianos se dirigem logo que chegam a Porto Alegre. “Conversei com uma das líderes religiosas e ela me abriu caminhos até os imigrantes. Conseguimos reunir 70 deles e promovemos um almoço”, relembra o frei. A partir daí, os imigrantes ficaram mais integrados à comunidade da Paróquia Santa Clara . “Nosso foco é a boa acolhida. Não é uma questão religiosa, e, sim, humanitária”, reitera João. A comunidade prepara lanches e a assistência social auxilia os imigrantes com a documentação. “Mas, apesar disso, os haitianos ainda são muito explorados. Eles sofrem com a invisibilidade, e alguns brasileiros ainda tiram vantagem disso”, o frei critica, apontando em direção às residências dos haitianos. Os valores dos aluguéis são tão abusivos que alguns dos estrangeiros estão deixando a Lomba do Pinheiro e indo para outros Estados. A apenas alguns metros da paróquia, a casa de Karina Compadre, de 36 anos , se esconde atrás de uma lombada íngreme. As paredes laranja estão descascadas, e a calçada começa a ser tomada por uma grama amarelada. “Não

“Os brasileiros da região alugam pedaços muito pequenos de terra, com preços altos demais para os imigrantes. Minha dívida já está chegando a cinco mil reais." 2020_1 | REVISTA EXP | 85


temos aula hoje”, já avisa Camelia Exilhomme, de nove anos, a quem chega para visitar. Junto a alguns vizinhos e à irmã Betie, de 10 anos, ela brinca com um rato morto que encontrou na lixeira. Do lado de dentro, a sala se mistura com a cozinha. A mesa de jantar fica logo atrás do sofá, e a única porta do cômodo dá para um pequeno quarto. Pelos dois ambientes, Karina paga o valor de R$ 500 mensais. O marido, Nadin Exilhomme, é pedreiro. Ganha R$ 1 mil por mês. Com os R$ 500 que sobram, precisam sustentar os três filhos pequenos e outros três que ficaram no Haiti. “É muito difícil. Falo para o moço que aluga que não tenho como pagar tudo isso, que preciso pagar minhas contas. Ele diz que também precisa pagar as dele.” Foi em 2013, depois de 15 dias de viagem, que a família de Karina chegou ao Brasil. Ainda no Haiti, ela assinou um documento por meio do qual pretendia regularizar sua estadia no novo país. Mas, na verdade, estava concedendo a guarda das filhas a outra mulher. Ia perdê-las para o tráfico. O crime não foi consumado porque a família veio para o Brasil. Foi só ao tentar regularizar o visto das filhas que a haitiana descobriu o que aconteceu — e não conseguiu assistência da polícia brasileira até hoje. “Eles não se esforçam para ajudar. Percebem que não falo bem o português e simplesmente dizem que não conseguem me entender.”

cedentes para que isso aconteça, mas os motivos são muito mais profundos. Segundo Zamberlam, a cultura brasileira, por meio da legislação e da mídia, reforça uma aversão aos imigrantes. “Eles são retratados como usurpadores de postos de trabalho, subA ameaça do que é diferente versivos e preguiçosos.” Outro fator determinante para essa aversão Para o pesquisador do Centro Ítalo-Brasileiro é a legislação. Na ditadura militar, a migração de Assistência e Instrução às Migrações Juran- passou a ser matéria penal. O Estatuto do Esdir Zamberlam, são diversos trangeiro, promulgado em os motivos que contribuem 1980, avalia a segurança “Digo que preciso pagar para a postura desonesta de nacional como valor maior minhas contas. Ele diz muitos brasileiros frente aos e percebe o estrangeiro que também precisa imigrantes. Por parte dos haicomo ameaça. pagar as dele.” tianos, a barreira linguística e A perspectiva de muKARINA EXHILHOMME, a falta de conhecimento dos dança viria com um novo haitiana regulamento, a Lei de Midireitos acabam abrindo pre86 | REVISTA EXP | 2020_1

A comunidade prepara lanches e a assistência social auxilia os imigrantes com a documentação, mas os valores do aluguel na região são abusivos


grações, que foi sancionada em maio de 2017 e entrou em vigor no dia 21 de novembro do mesmo ano. A nova lei pretendia tratar o tema das migrações como um problema de direitos humanos, e não de segurança nacional. Mas os vetos do então presidente Michel Temer, como o veto à anistia a imigrantes que entraram no Brasil até 6 de julho de 2016, acabaram alterando a perspectiva humanística do novo texto. Entre os principais problemas estruturais para quem chega estão a insuficiência de cursos de língua portuguesa, a morosidade do Ministério da Justiça quanto às solicitações de refúgio e visto, a falta de interesse de serviços públicos, a xenofobia, a crescente taxa de desemprego e a exploração nos preços dos aluguéis, cobrados acima dos inquilinos brasileiros. Na Lomba do Pinheiro, Karina Compadre

ainda aguarda a decisão da Defensoria Pública, que, há um ano e meio, recebeu a solicitação de pagamento da taxa dos vistos da família Exilhomme. “O valor para regularizar nossos vistos é de R$ 1,5 mil, mas eles não nos entregam o boleto. Dizem que está complicado de conseguir”, lamenta. Ao ser perguntada se se arrepende de ter vindo para o Brasil, ela para por alguns momentos, como se ponderasse os prós e contras da mudança de vida. “A situação também é complicada por aqui. No Haiti, não teríamos ajuda. Mas, lá, pelo menos, estava perto de toda a minha família.” Ao final da conversa, Karina chama as filhas e começa a arrumar a mesa para o almoço. Depois de um tempo, encontra uma resposta. Diz que não se arrepende. 2020_1 | REVISTA EXP | 87


PONTO FINAL

EXP

Janela

LUIZA FRASSON

E

la é antiga, da época da construção do prédio de arquitetura bonfiniana - velho, com paredes grossas e meio caindo aos pedaços, como o próprio Ocidente, só que sem o charme e com pouca gente bonita. A acústica sim é de dar inveja à construção na esquina com a Osvaldo Aranha. Apesar das paredes e mesmo com as janelas, fechadas, o prédio parece projetado para que todos os sons sejam ouvidos entre todos os vizinhos. O buraco entre a minha sala e a do velho megalomaníaco ecoa sonoramente os ruídos dos apartamentos da vizinhança mais próxima. As áreas de serviço entre os térreos dos três prédios siameses formam um amplificador da vida individual, privada, íntima e escatológica de cada um dos moradores. A luz solar é escassa: a cadela aproveita, às 10h, o raio que alcança “É a única saída possível a sala de estar e, às 12h, o daquele cômodo, a feixe que dá as caras duranabertura que me liga ao te gloriosos 20 minutos no ar que as outras pessoas quarto ao lado. Mas a minha também respiram.“ janela, antiga, pintada de branco, com as venezianas gravemente desgastadas, escapa da depressão acústica. Com restos de adesivos “Eu amo Porto Algre” e da campanha dos monstrinhos da RBS, essa janela já viu a mágica dos feijões no algodão e o desastre do meu irmão esmagando, nela, os dedos. Por ela, ouvi a vizinha xingar meus ensaios musicais. Através dela, sopramos vuvuzela, gritei“fora Bolsonaro”, comuniquei-me com a vizinha do outro prédio e ouvi as melodias do piano à distância. À frente dela

passaram berço, cama, beliche e cama de casal. Olhei a lua, conversei sussurrado e ri alto com o cigarro na mão. Conversei com as vizinhas do térreo e a gatinha delas. Era bonito botar a cara e ver todo aquele espaço até o próximo prédio, bem diferente do buraco da sala, e sentir o sol aquecer o quarto. Até que se impôs o muro. Alto, cinza, feio. Cobriu todo o sol e agravou o problema acústico também no lado do meu quarto. A chegada do muro foi conturbada; a vizinhança se recusou bastante a aceitá-lo, até que sua imposição se tornou implacável. Escureceu e esfriou o meu quarto, mas também o de todos vizinhos acima e abaixo de mim. Agora que escrevo, se olho para o lado, só dá pra ver aquilo ali. É a única saída possível daquele cômodo, a abertura que me liga ao ar que as outras pessoas também respiram. Que me liga à rua, à rotina. Manhã, tarde e noite se passam e, pra fugir dar luz do monitor, só me resta olhar para fora. Só que lá fora é cinza, é bruto, é descuidado. Lá fora não tem sol que entre e o feijão não cresce sem luz. Com a chegada do muro, de repente, o ar ficou rarefeito. Difícil de respirar quando lá fora não se pode ver gente, não se pode ver luz, não se ouve mais a música do Ocidente. O muro dos brasileiros, desde que o vírus embarcou no país com visto assinado pelo presidente, ta lá fora, separando as pessoas localizadas nos andares superiores da sociedade de seus afetos e cimentando os de camadas mais baixas em uma jornada pela sobrevivência. O muro dos brasileiros, que viram alguns raios de sol em outros dias, é cinza e inabalável. Na janela dos brasileiros, hoje, não se vê o sol.

REVISTA EXPERIÊNCIA - ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, ARTES E DESIGN - FAMECOS - PUCRS - 2020_1


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.