Letras: revista da Faculdade de Letras/Centro de Linguagem e Comunicação

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LETRAS

ISSN – 0102-0250 LETRAS

F.L. – PUC-Campinas

Vol. 28, nº 1

p. 1-112

2009


Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia

Letras: revista da Faculdade de Letras/Centro de Linguagem e Comunicação/Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Instituto de Letras. – v. 1, n. 1 (set. 1982) – Campinas, SP: A Faculdade, 1999 – v. 28 (1), jan-jun., 2009. Anual. Publicada semestralmente em 1983, 1985, 1990 e 2004 a 2008. ISSN 0102-0250 1. Letras-Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Faculdade de Letras.

INDEXAÇÃO / INDEXING A Revista LETRAS é indexada nas Bases de Dados: CLASE – Citas Latinoamericanas em Ciências Sociales y Humanidades http://www.dgbiblio.unam.mx Qualis B - 4

COORDENAÇÃO, REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: PUC-Campinas EDITORAÇÃO: Pedro & João Editores [www.pedroejoaoeditores.com.br] IMPRESSÃO: Gráfica e Editora Compacta [(16) 3371-1404]

PELA FORMA E PELO CONTEÚDO DOS TRABALHOS PUBLICADOS NA REVISTA “LETRAS” RESPONDEM ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE OS SEUS RESPECTIVOS AUTORES.


LETRAS Revista da Faculdade de Letras CONSELHO EDITORIAL Ana Maria Dantas C. de Miranda Oliveira (PUC-Campinas) Antônio Suárez Abreu (FCLCAr, UNESP) Cleonice Furtado de Mendonça van Raij (PUC-Campinas) Francisco Oliveira (Universidade de Coimbra, Portugal) Helena Confortin (URI, Erechim, RS) João Hilton Sayeg Siqueira (PUC-SP) João Wanderley Geraldi (UNICAMP) Liselotte Christina Halbsgut Figueiredo (PUC-Campinas) Luiz Percival Leme Brito (UNISO, SP) Maria de Fátima Silva Amarante (PUC-Campinas) Maria José Rodrigues Faria Coracini (UNICAMP) Valdir Heitor Barzotto (USP) EDITORA Maria Inês Ghilardi Lucena EQUIPE DE REVISÃO E TRADUÇÃO Cleonice Furtado de Mendonça van Raij – Português Nair Fobé – Inglês CONSULTORES ACADÊMICOS Adair Bonini (UNISUL, SC) Anna Maria Grammatico Carmagnani (USP) Antônio Suárez Abreu (FCLCAr, UNESP) Cleonice Furtado de Mendonça van Raij (PUC-Campinas) Douglas Altamiro Consolo (UNESP, São José do Rio Preto) Elisa Guimarães (USP e Mackenzie, SP) Francisco Oliveira (Universidade de Coimbra, Portugal) Helena Confortin (URI, Erechim, RS) Ingedore Grunfeld Vilaça Koch (UNICAMP) João Wanderley Geraldi (UNICAMP) Joaquim Brasil Fontes Júnior (UNICAMP) Liney de Mello Gonçalves (PUC-Campinas) Liselotte Christina Halbsgut Figueiredo (PUC-Campinas) Luiz Percival Leme Brito (UNISO, SP) Marcos Bagno (UNB) Maria de Fátima Silva Amarante (PUC-Campinas) Maria José Rodrigues Faria Coracini (UNICAMP) Maria Luiza Martins de Mendonça (FACOMB) Nair de Nazaré Castro Soares (Universidade de Coimbra, Portugal) Susana Bornéo Funck (UCPel) Tereza de Moraes (PUC-Campinas) Valdir Heitor Barzotto (USP) Vera Lúcia Pires (UniRitter e UFSM)



SUMÁRIO

Apresentação

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VEÍCULOS E LINGUAGENS DO MUNDO CONTEMPORÂNEO: A EDUCAÇÃO DO LEITOR PARA AS ENCRUZILHADAS DA MÍDIA Ezequiel Theodoro da SILVA

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APROXIMANDO FRONTEIRAS: A HISTÓRIA DE VIDA NO CENÁRIO DA EDUCOMUNICAÇÃO Edvaldo Pereira LIMA

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PISTAS PARA DECIFRAR O ENIGMA: UMA ANÁLISE DE OS SERTÕES A PARTIR DO JORNALISMO LITERÁRIO Fabiano ORMANEZE

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CULTURA “MIDIÓTICA” E SOCIEDADE “MIDÍOCRE” Juremir Machado da SILVA

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ENTRE AS MARGENS A AÇÃO DIRETA SE MARGINALIZA NO EXÓTICO Valéria Aroeira GARCIA Renata Sieiro FERNANDES

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MULHERES NA LINHA DE POBREZA INSERIDAS NO CENÁRIO GLOBALIZADO: COMO ELAS CONSTROEM SEUS DISCURSOS Ana Nelcinda Garcia VIEIRA Vera Lúcia PIRES

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DISCURSO E GÊNERO: IMAGENS DA BELEZA MASCULINA Maria Inês GHILARDI-LUCENA Tamires do Nascimento LUCENA

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APRESENTAÇÃO

A Revista Letras, em seu volume 28 (número 1), apresenta textos de pesquisadores do corpo docente da Faculdade de Letras, das demais faculdades do Centro de Linguagem e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e de outras Instituições de Ensino Superior do Brasil e do Exterior. Mantém, ao longo de sua história, a política editorial que considera, para divulgação, trabalhos originais sob a forma de artigos, entrevistas, depoimentos e resenhas sobre publicações recentes. A importância da divulgação das pesquisas e do pensamento acadêmico para que o conhecimento seja acessível a todos nos incentiva na organização dos textos aqui publicados, desde 1999, quando iniciamos o trabalho de edição desta Revista, em continuidade ao precioso trabalho dos que nos antecederam. Ressaltamos, sempre, a valiosa contribuição dos membros do Conselho Editorial, Consultores Acadêmicos, pareceristas e autores que prestigiam este veículo de textos acadêmico-científicos. Os volumes que seguirão terão versão eletrônica, por força da contemporaneidade e de sua inserção em novos meios de divulgação. Contarão, como sempre, com a significativa colaboração dos próximos autores. Expressamos, em nome da Instituição e do Conselho Editorial, nossa satisfação por participar do processo de construção do conhecimento da área de estudos da linguagem e de áreas que com ela interagem, esperando que os artigos aqui publicados contribuam para proveitosas reflexões sobre os diferentes tipos de discurso que circulam nos meios acadêmico e social. Maria Inês Ghilardi Lucena



LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (1) - 2009 – p.9-19

VEÍCULOS E LINGUAGENS DO MUNDO CONTEMPORÂNEO: A EDUCAÇÃO DO LEITOR PARA AS ENCRUZILHADAS DA MÍDIA Vehicles and languages in contemporary world: the reader’s education for the media crossroads Ezequiel Theodoro da SILVA1

RESUMO: Este texto trata da educação – mais especificamente do ensino – e comenta sobre a esfera de recursos pedagógicos que auxiliam os professores a contemplar o espectro da mídia na educação dos leitores. PALAVRAS-CHAVE: educação; ensino; leitura; mídia. ABSTRACT: This text deals with education, more specifically teaching, and comments on the area of pedagogical resources that help teachers contemplate the specter of the media in readers’ education KEYWORDS: education; teaching; reading; media.

Mesmo depois da invenção do livro impresso, ele não era o único instrumento para a aquisição de informações. Havia pinturas, imagens populares gravadas, ensino oral, etc. Pode-se dizer que os livros eram os mais importantes instrumentos para a transmissão da comunicação científica, incluindo informações sobre eventos históricos. Nesse sentido, eles eram os instrumentos supremos usados nas escolas. Com a difusão dos vários meios de comunicação de massa, do cinema à televisão, alguma coisa mudou. Anos atrás, a única maneira de aprender uma língua estrangeira (além de viajar ao estrangeiro) era estudar essa língua a partir de um livro. Hoje os nossos jovens frequentemente conhecem outras línguas ouvindo discos, vendo filmes na edição original, decifrando instruções numa lata de refrigerante. O mesmo ocorre com informações geográficas. Na minha infância, eu 1

Professor colaborador voluntário junto ao DELART- Grupo de Pesquisa ALLE, Faculdade de Educação – UNICAMP.


Ezequiel Theodoro da SILVA

encontrei a melhor informação sobre países exóticos não nos livros didáticos, mas lendo romances de aventura (Júlio Verne, por exemplo). Meus filhos muito cedo conheceram mais do que eu sobre esse assunto assistindo televisão e filmes. Pode-se aprender muito bem a história do Império Romano através de filmes, se esses filmes forem historicamente corretos (...). Um bom programa educacional de televisão (para não falar de um CD-ROM) pode explicar a genética melhor do que um livro. (Umberto Eco, Da Internet a Gutenberg 2)

Tenho comigo que a educação – e mais especificamente o ensino – tem a ver com o aprimoramento das pessoas para a vida em sociedade. Essa intenção maior, consubstanciada em projetos pedagógicos e currículos específicos, prevê a exposição dos estudantes a um corpo de conteúdos do conhecimento e, num percurso sequencial ou espiralado, compactado ou distendido, o desenvolvimento de competências, condutas, atitudes, valores e posicionamentos para que esses estudantes se formem cidadãos e participem ativamente dos rumos da sociedade. Pensando evolutivamente a partir do surgimento e assentamento dos veículos de comunicação entre os homens e sociedades, percebemos que houve (1º) um aumento do alcance da transmissão de ideias pela invenção de instrumentos que estendem espacialmente os nossos órgãos do sentido (é muito difícil discordar da tese de Marshall McLuhan (1974) de que os meios de comunicação são extensões do homem, visando diálogos e interações mesmo na distância); (2º) um aumento, pela descoberta inédita, pela adaptação, reinvenção ou síntese inovadora, de sistemas de signos que servem para movimentar as ideias através desses novos veículos (parece haver consenso entre os estudiosos de que cada linguagem verbal ou não - apresenta as suas especificidades, os seus potenciais e as suas limitações para a efetivação das interações ou interlocuções entre os indivíduos, perto ou longe); e (3) que os veículos e as linguagens, a cada instante que passa, estão dinamicamente se cruzando e produzindo influências recíprocas, conforme as necessidades e os desafios comunicacionais postos pelos homens (fácil ver isso atualmente, por exemplo, na transmissão de um jogo de futebol: o telespectador que vê o 2

ECO, Umberto. From Internet to Gutenberg. Palestra apresentada na Italian Academy for Advanced Studies in America em 12/novembro/1996. http://www.italianacademy. columbia.edu/pdfs/lectures/ eco_internet_gutenberg.pdf

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Veículos e linguagens do mundo contemporâneo: a educação do leitor para as encruzilhadas da mídia

jogo na tela é chamado ininterruptamente a participar pelo telefone, usando a oralidade, e/ou pela Internet, usando o computador e os recursos fornecidos pela linguagem digital) – a mescla ou simbiose dentro de um mesmo sistema de signos, misturando gêneros ou configurações, ou entre os sistemas é uma constante no intuito de tornar os atos de comunicação cada vez mais eficientes em termos de trocas de mensagens para a construção de sentidos. As velozes descobertas e mudanças no universo da mídia (entendida aqui como o conjunto de veículos e linguagens para a realização da comunicação humana, visando ao cumprimento de diferentes interesses e propósitos) se refletiram no mundo da escola, tornando mais amplo os conceitos de alfabetização e de letramento (literacia ou alfabetismo). Para muitos pensadores, entre os quais destaco Francisco Gutièrrez (1976), a alfabetização e o letramento devem abarcar a compreensão e o manejo mídia; portanto, uma política bem informada de alfabetização-letramento deveria levar em consideração as potencialidades de toda a mídia existente em sociedade, organizando-se práticas pedagógicas específicas para essa finalidade. Dessa forma, uma preocupação sadia com os destinos e a qualidade da educação precisa ser estendida à compreensão e ao manejo da mídia indistintamente, sob o risco de, com a supressão ou apagamento de um ou outro recurso ou tecnologia pela escola, levarmos adiante uma educação fora do seu tempo, além, é claro, de não aproveitarmos as características dos diferentes veículos e linguagens para a melhoria dos processos de ensino-aprendizagem. Quer dizer, a escola e os professores devem selecionar criticamente os meios ou veículos comunicacionais conforme a natureza do objeto ou conteúdo a ser ensinado, sabendo justificar os porquês dessa seleção. Traduzindo mais especificamente ainda, a cultura pedagógica dos professores deve também prever um espaço para conhecimentos voltados à operação dos veículos e das respectivas sintaxes de linguagem a eles vinculados. Residem talvez aqui os dois grandes desafios da escola brasileira3 para uma literacia midiática: (1º) com raríssimas exceções, a contar nos dedos, os instrumentos de comunicação que não o texto oral ou escrito praticamente inexistem nos ambientes escolares para efeito de produção e, muitas vezes, até mesmo para efeito de recepção, com aquilo que essa 3

Estou me referindo à escola pública, que é obrigação do Estado e atualmente atende a maioria dos estudantes brasileiros nos níveis fundamental e médio.

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produção e recepção demandam em termos de salas, recursos, manutenção, atualização, pessoal especializado, etc. Cabe-nos pensar em termos gerais de país, lembrando, inclusive, que mais de 30 por cento das escolas brasileiras de nível fundamental sequer energia elétrica têm; e ainda dentro das agruras ou das trágicas carências de infraestrutura, são poucas as bibliotecas escolares dignas desse nome em nosso país, evidenciando que até mesmo na esfera da cultura impressa, dinamizada e democratizada desde os tempos de Gutenberg na grande maioria das sociedades do mundo, temos sérias lacunas para uma vivência letrada autêntica e produtiva em termos de aprendizado da escrita; (2º) o professorado brasileiro, por força das opressões vividas no trabalho (de salário real à possibilidade de apoio por diferentes profissionais, principalmente técnicos que conhecem o funcionamento dos mídia) e em decorrência de uma formação básica cada vez mais aligeirada, não sabe como manejar o leque de mídia disponível, permanecendo, por isso mesmo, na velha dependência ou escravidão dos livros didáticos; ou então, quando muito, se as circunstâncias da escola assim o permitirem, usando outra mídia a esmo, simplesmente para efeito de recepção, como um mero apêndice de estudos feitos a partir de textos escritos. Em verdade, esses dois desafios nada mais são do que carências reproduzidas dentro do contexto da educação brasileira – carências reiteradamente denunciadas através das décadas e dos governos, mas sem ecos práticos de transformação, para melhor, da estrutura e da dinâmica das escolas. Igualmente, a tentativa de superá-las sem uma política clara, contínua e eficiente de ações e de investimentos, vem gerando um samba do crioulo doido na cabeça do professorado ou, se quiser, uma “sopa” intersemiótica das mais insípidas em relação a qualquer parâmetro ou paradigma pedagógico decente. Parece que o ensino do manejo dos meios ou o uso dos meios para efeito de dinamização de aprendizagens não segue e não tem uma fundamentação coerente no âmbito dos coletivos escolares; com isso e por isso, acontece uma “atroz” recaída no tão-criticado tecnicismo ou envereda-se pelo modismo de último minuto até que o equipamento se quebre e tenha que ficar meses e meses parado por falta de manutenção ou de um reparo que necessite verbas para pronto-pagamento. O efeito pior fica por conta de um pensamento absurdo que corre na cabeça de muitos governos, achando que a mídia pode substituir os professores na tarefa de educar as crianças. 12


Veículos e linguagens do mundo contemporâneo: a educação do leitor para as encruzilhadas da mídia

Faço um breve parêntese nesta reflexão para discorrer sobre certas condições que julgo da maior importância no que se refere a uma educação consequente através da mídia no contexto das escolas. Enquanto a escrita manuscrita cabe em um caderno, bastando para a sua produção um lápis ou uma caneta nas mãos dos estudantes, já a escrita impressa em livros (que não apenas os livros didáticos, mas os técnicos, de referência, literários, etc.) impõe à escola uma reorganização espacial, arquitetônica e de serviços de modo que ela (a escrita impressa) possa circular dinâmica e condignamente a favor do ensino e da aprendizagem. Isso pode parecer óbvio, porém até hoje, 2009 e início do 3º milênio, em meio às sociedades da informação e do conhecimento, são raras as escolas que dispõem de espaços planejados para as suas bibliotecas, que dirá serviços biblioteconômicos para a organização e dinamização dos livros porventura ali acumulados ao longo do tempo. Outras mídias – como televisão, computador, cinema, teatro, etc. –, caso fossem objetivamente levados para o espaço das escolas, deveriam gerar alterações radicais na sua arquitetura e na esfera dos seus recursos humanos. Exemplificando, o conjunto ou acervo de livros precisa da biblioteca e do bibliotecário; o computador precisa da sala de informática e do técnico para manter em ordem e atualizados as máquinas e os programas; a televisão precisa da sala de projeção e o responsável pelos audiovisuais da escola, cinemateca, videoteca, DVD-teca, etc.; as artes plásticas precisam do atelier e de técnicos para organizar a galeria e os acervos de pinturas; a fotografia necessita de laboratórios e pessoal especializado para tal; o teatro precisa do auditório e uma equipe para produzir as montagens teatrais e assim por diante. Não quero que essas condições sejam entendidas como luxos ou supérfluos dentro de um espaço escolar; quero, sim, que sejam tomadas como fatores imprescindíveis para uma educação que contemple objetivamente a mídia em termos de produção, circulação e fruição de conteúdos midiáticos dentro desse espaço. As gambiarras pedagógicas e arquitetônicas implementadas nessa área vão desde a adaptação apressada de salas de aula para um segundo tipo de uso alternativo até a morte de bibliotecas para acomodar computadores a fim de atender políticas caolhas que vêm de cima para baixo ou então para seguir um modismo tecnológico sem o devido preparo dos professores e dos demais profissionais que trabalham na escola. Nesta discussão a respeito da educação do leitor para uma convivência crítica com a mídia, convém lembrar que “o computador é um instrumento 13


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através do qual se pode produzir e editar imagens (...); mas é também igualmente certo que o computador se transformou, antes de tudo, num instrumento alfabético. Na tela do computador, correm palavras, linhas, e para usar um computador o sujeito precisa saber ler e escrever. A nova geração que usa computadores é treinada a ler a uma velocidade espantosa”4. Essa colocação de Umberto Eco reforça, de certa forma, a importância maior do ensino da leitura e da escrita na escola porque o manejo de um outro potente meio, como é o computador, impõe ao sujeito o domínio prévio das competências do ler e escrever. A escrita e a leitura virtuais são, na sua origem, antes de tudo, “escrita” – daí a necessidade de não desequilibrarmos as coisas, pensando que a alfabetização e o letramento em linguagem escrita podem ser descartados ou passados para segundo plano em termos ensinoaprendizagem. Além disso, partindo de uma análise ligeira da comunicação no mundo contemporâneo, mesmo que fosse verdade que atualmente a comunicação visual supera a comunicação escrita, o problema que se coloca aos professores não é jogar a comunicação escrita contra a comunicação visual ou vice-versa. O problema da escola e dos professores é como melhorar ambas – e as demais existentes – em favor do aprimoramento das competências comunicacionais dos estudantes ao longo de sua história de escolarização. Além disso, em termos de sequências pedagógicas em direção ao aprofundamento de conteúdos ou temas, o professor deve possuir conhecimento e sensibilidade para decidir quais os veículos e linguagens privilegiar de modo a levar os seus estudantes à melhor compreensão possível dos conteúdos ou assuntos em pauta. O bom senso e algumas investigações mostram que o uso exclusivo de abordagens visuais em aula, ainda que mais fáceis de serem implementadas pelo professor (por exemplo, apenas ligar a TV e o vídeo e colocar uma fita para rodar), pode diminuir a criticidade dos estudantes. Daí cabe-me insistir mais uma vez, principalmente nas fases de planejamento educacional, a necessidade de conhecimento da sintaxe e efeitos de cada meio de comunicação por parte dos professores de modo que a seleção, manejo e uso não gerem efeitos desastrosos na formação dos estudantes. A comunicação escrita, especialmente aquela provocada por livros ou similares, permanece e permanecerá indispensável não apenas para a fruição da literatura, mas para qualquer situação em que o sujeito precise

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ECO, Umberto, op. cit.

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ler cuidadosamente, não apenas para “escanear” ou “receber” informações, mas também para pensar, especular e refletir sobre as mesmas. Daí a imagem de um leitor eclético, cuja maturidade vai se formando no acesso e na convivência com os diferentes veículos e configurações de linguagem e, através do entendimento da sintaxe e conteúdos dos mesmos, aborde criticamente as múltiplas informações que circulam em sociedade. Cabe sempre lembrar que hoje o mundo é trazido até o horizonte de nossa percepção, até o universo do nosso conhecimento. Como não podemos estar presentes em todos os acontecimentos, temos que confiar nos relatos. O mundo que nos é trazido pelos relatos, que assim conhecemos e a partir do qual refletimos, é um mundo que nos chega editado, ou seja, ele é redesenhado num trajeto que passa por centenas, às vezes milhares de mediações, até que se manifeste no rádio, na televisão, no jornal, no livro didático, etc. Ou na fala do vizinho e nas conversas dos alunos. São essas mediações – instituições e pessoas – que selecionam o que vamos ouvir, ver ou ler; que fazem a montagem do mundo que conhecemos. (grifo meu) (BACCEGA, 2002, p. 79).

Nesses termos, a maturidade e a criticidade desse leitor devem fazêlo ver que dentro do mundo da palavra, dentro do universo dos discursos que se cruzam ininterruptamente em sociedade, existem mentiras, simulacros, fraudes, falsidades, além é claro de discursos que procuram fazer justiça aos fatos da realidade. Daí defendermos que um dos objetivos principais de uma educação voltada para uma leitura da mídia e daquilo que corre por ela – é o refinamento contínuo do discernimento dos estudantes, quer dizer, da capacidade de separar a verdade da mentira, de distinguir o certo do errado, de discriminar fatos de opiniões, enfrentar ajuizadamente o bem e o mal e assim por diante. Gostaria de encerrar esta reflexão abaixando um pouco a bola e reduzindo um pouco o entusiasmo dos chamados “tecnólogos da educação” – entusiasmo esse que muitas vezes pode ofuscar o bom senso ou equilíbrio na hora utilização da mídia pelos professores e, ao mesmo tempo, o que é bem pior, pode elevar as novas tecnologias audiovisuais à condição de panaceia, servindo como remédios para a cura de todos os males da educação escolarizada brasileira. E eu diria até que os pensamentos e discursos oriundos da febre tecnológica servem até para justificar os baixos salários 15


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dos professores. Daí alguns cuidados a serem tomados para que os engodos não venham a ocupar espaço nas discussões em torno da melhoria do ensino e da aprendizagem da escola. Componho e comento inicialmente esses cuidados através de uma análise de um poema da poetisa paranaense, de origem ucraniana, Helena Kolody, cuja obra merece ser mais bem conhecida e disseminada pelos professores brasileiros. Helena é autora, entre outras coisas, de hai-kais lindíssimos, como estes: “No poema e nas nuvens/ cada qual descobre/ o que deseja ver”; e “Tudo o tempo leva/ a própria vida não dura./ Com sabedoria,/ colhe a alegria de agora/ para a saudade futura”. MAQUINOMEM Helena Kolody O homem esposou a máquina e gerou um híbrido estranho: um cronômetro no peito e um dínamo no crânio. As hemácias do seu sangue são redondos algarismos. Crescem cactos estatísticos em seus abstratos jardins. Exato planejamento a vida do maquinomem. Trepidam as engrenagens no esforço das realizações. Em seu íntimo ignorado, há uma estranha prisioneira, cujos gritos estremece a metálica estrutura. E há reflexos planejantes de uma luz imponderável, que perturbam a frieza do blindado maquinomem.5

Esse poema de Helena Kolody tem tudo a ver com a ideologia do neoliberalismo, que esparrama pelo mundo globalizado a chamada “razão 5

Helena KOLODY, 2000.

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Veículos e linguagens do mundo contemporâneo: a educação do leitor para as encruzilhadas da mídia

instrumental” em detrimento da “razão crítica”. E um dos efeitos mais deletérios da razão instrumental é esquecer que as tecnologias, a mídia, as descobertas científicas devem ser assumidos como realmente o são, ou seja é, como “meios” para a promoção do homem e nunca como fins em si mesmos ou então como elementos para a opressão e a manutenção de privilégios, como parece estar ocorrendo atualmente na nossa sociedade e no mundo. Nita Freire, em prefácio para um livro de Peter Mclaren, nos dá o seguinte puxão de orelha sobre esse tema: a “(...) capacidade criadora (de inventar tecnologias) vem se distorcendo, contraditória e generalizadamente, em atos e ações que negam a eticidade que deveríamos ter dentro de nós para delimitar e reger os comportamentos sociais. A comunicação verdadeira, que amplia contactos e conhecimentos imprescindíveis para o progresso e a equalização dos diferentes povos e segmentos sociais do mundo, está se transformando numa mera extensão, usando categorias freireanas, a serviço da globalização da economia, que vem tomando a todos nós como reféns de alguns poucos ‘donos do mundo’. A ‘era da comunicação está sendo, na realidade, a era das fronteiras, dos limites mais marcantes do que nunca da incomunicabilidade humana, do campo do desamor”. (grifos da autora) (FREIRE, 1999, p. 12). O segundo cuidado que eu gostaria de explicitar em relação à formação de leitores para a interação com as diferentes mídias diz respeito à problemática da solidão. Enfatizo que é muito curta a distância entre solidão, isolamento, desamparo e exclusão social. De fato, no caso de excesso de interação com os elementos do mundo virtual, o sujeito pode ser levado a se esquecer do mundo real e da necessidade de interação com seres de carne e osso. Isso pode parecer paradoxal, mas pode acontecer que, ao sentir parte de um universo virtual intergalático, a pessoa se sinta solitária e desprotegida interiormente, neurotizando-se e se auto-excluindo cada vez mais. O terceiro e último cuidado trata de questões relativas ao excesso de informações (ou explosão bibliográfica e imagética) em circulação no mundo e uma incapacidade da pessoa em selecionar e discriminar aquilo que é relevante para a sua vida. Além disso, como eu mostrei anteriormente, no universo da mídia (impressa, imagética, sonora, virtual, etc.) existem fontes confiáveis e fontes “malucas”, existem mensagens objetivas e mensagens enganosas. Além do mais, as linguagens não servem apenas para comunicar coisas sãs e bonitas, mas colocam-se a serviço do poder para vender, persuadir, mentir, conquistar, alienar, etc. 17


Ezequiel Theodoro da SILVA

“O homem blindado (...) não está aberto à visitação dos afetos ou da palavra. O blindado móvel em design estético é o homem moderno e ele é o ápice de um fechamento que o fecha inteiramente em si mesmo e sobre si mesmo e já não há espaço para a visitação do afeto ou par o jorro da língua, mas apenas para vivências autofabricadas e auto-afetadas” (PESSANHA, 2002, p. 24).. À luz desse alerta certeiro de Juliano Garcia Pessanha, no livro Certeza do Agora (2002), cabe enfatizar mais uma vez que a educação dos leitores para a vida contemporânea precisa levar em conta esses fenômenos e essas diferenças no sentido de constituir um quadro de competências críticas ou, se quiser, uma nova sabedoria ou erudição a ser promovida através dos currículos escolares no horizonte de todas as mídias e de todas as linguagens sociais. Na esfera de recursos pedagógicos que auxiliem os professores a contemplar o espectro da mídia na educação dos leitores, não posso deixar de enfatizar, recomendar e colocar em destaque os Cadernos de Leituras Compartilhadas,6 que vêm sendo produzidos pelo Leia Brasil com o apoio da Petrobrás. Trata-se, em verdade, de uma revista de informação para agentes de leitura, que não sejam somente os professores. São compêndios de leitura a partir de temas instigantes (viagens, amizade, medo, diferenças, desejo, os mares, os rios e vários outros), apresentando gêneros diferenciados de linguagem escrita dentro de um lay-out arrojado, moderno e bonito. Os autores convidados para escrever sobre os diferentes temas são rigorosamente escolhidos. Acompanha bibliografia e filmografia sobre cada um dos temas, permitindo ao professor fazer as suas escolhas na hora de organizar o ensino. Quanto à implantação de sistemas de informática na escola, não posso deixar de recomendar as reflexões feitas pelo Professor José Armando Valente e da equipe do Núcleo Interdisciplinar de Educação à Distância da UNICAMP (NIED) – esses profissionais conseguiram produzir ferramentas a partir do “cheiro” das salas de aulas e dos problemas concretos dos professores e não de falsas visões da realidade escolar, a partir das mágicas da informática.

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Para quem se interessar, fica o endereço da fonte: LEIA BRASIL – ONG DE PROMOÇÃO DA LEITURA, Praia do Flamengo, 100/902 – Flamengo. 22210-030 Rio de Janeiro, R.J. Tel: **21- 2245.7108; e-mail: leiabr@leiabrasil.com.br

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Referências BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicação e Educação: a construção do campo. IN Nas Telas da Mídia. Maria Inês Ghilardi & Valdir Heitor Barzotto (orgs.) Campinas: Alínea e ALB, 2002. BONAZZI, Marisa & ECO, Umberto. Mentiras que parecem verdades. São Paulo: Summus, 1972. FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Apresentação. IN Utopias Provisórias. As pedagogias críticas num cenário pós-colonial. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1999. FURTADO, José Afonso. O livro – que perspectivas? IN Colóquio Educação e Sociedade – Metamorfoses da Cultura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Revista Quadrimestral, março/julho de 1995, p. 159-192. GROSSMAN, Marcia. Como te leio? Como-te livro! São Paulo: Cultura Autores Associados, 2002. GUTIÉRREZ, Francisco. Linguagem Total. SP: Summus, 1976. IANNI, Octavio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. KOLODY, Helena. Maquinomem. IN Helena Kolody por Helena Kolody. Rio de Janeiro: Luz da Cidade Promoções Artísticas Ltda, 2000. Coleção Poesia Falada, nº 04. LOMBARDI, José Claudinei (org). Globalização, pós-modernidade e educação. Campinas, SP: Autores Associados, UNC e Histedbr, 2001. McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1974. MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. PESSANHA, Juliano Garcia. Província da Escritura. IN Certeza do Agora, Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002. SILVA, Ezequiel T. A leitura nos oceanos da Internet. São Paulo: Cortez, 2003. ______. Leitura - Trilogia pedagógica. Campinas, SP: Autores Associados, 2003. ______. Leitura e criticidade. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1999. VALENTE, José Armando. Formação de educadores para o uso da informática na Escola. Campinas, SP: UNICAMP-NIED, 2003. 19



LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (1) - 2009 – p.21-37

APROXIMANDO FRONTEIRAS: A HISTÓRIA DE VIDA NO CENÁRIO DA EDUCOMUNICAÇÃO Bringing frontiers together: life history in educommunication scenario Edvaldo Pereira LIMA1

RESUMO: Este texto mostra a importância do livro-reportagem, fiel à tradição do jornalismo literário, modalidade de narrativa da realidade que busca aliar informação sólida e texto fluente. O propósito do jornalismo literário é buscar compreensão contextual da situação escolhida para abordagem, conduzindo o leitor por uma viagem envolvente de descoberta. Por isso, é ponto central em muitas reportagens o recurso da história de vida, colocando em primeiro plano as personagens reais que vivem a situação sob foco. PALAVRAS-CHAVE: Educomunicação; jornalismo literário; livro-reportagem. ABSTRACT: Faithful to literary journalism, a form of narrative of reality which aims at putting solid information and a fluent text together, this text shows the importance of non-fiction novel. The objective of literary journalism is to seek contextual comprehension of the chosen situation for approach, leading the reader to an involving discovery journey. Thus, it is a central point in many newspaper articles the use of a life history, placing the real characters in the centre of the situation. KEYWORDS: Educommuniation; literary journalism; non-fiction novel.

No final da década de 1980, o jornalista norte-americano Tracy Kidder desenvolveu o projeto de um livro que tinha como objetivo traçar um retrato da educação fundamental nos Estados Unidos. Em lugar de imaginar um livro analítico, denso, repleto de dados, estatísticas e informações oficiais, por isso mesmo frio e distante, Tracy optou por 1

Escola de Comunicações e Artes, USP. Vice-Presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário – ABJL - www.abjl.org.br


Edvaldo Pereira LIMA

outro formato. Escolheu o livro-reportagem, fiel à tradição do jornalismo literário, modalidade de narrativa da realidade que busca aliar informação sólida e texto fluente. O propósito do jornalismo literário é buscar compreensão contextual da situação escolhida para abordagem, conduzindo o leitor por uma viagem envolvente de descoberta. Por isso, é ponto central em muitas de suas reportagens o recurso da história de vida, colocando em primeiro plano as personagens reais que vivem a situação sob foco. Por exemplo... Ela tinha trinta e quatro anos. Usava saia branca e blusa amarela, e um colar dourado que segurava na mão, como se segurasse seu reino, enquanto aguardava as respostas das crianças. O cabelo era preto, com uma mecha ruiva, irlandesa. O penteado era curto, sobre as orelhas, e esticado para trás como um par de asas desfraldadas. Tinha um queixo delicadamente fendido e era baixinha – ela caberia na carteira das crianças. Embora a voz parecesse casual, tinha projeção. Não que houvesse sido atriz. Tinha desenvolvido essa voz impactante na sala de aula. (KIDDER, 1998, p. 2).

Esta é a descrição inicial de Christine Zajac, a professora protagonista do resultado do trabalho de Tracy, o livro-reportagem Among Schoolchidren – Na Escola Com as Crianças, em tradução livre –, que se tornaria um bestseller na década de 1990 na América do Norte. A trajetória do autor consistiu em mapear a questão do ensino fundamental, tomando uma escola pública como amostra. Em vez de uma tese ambiciosa sobre o tema, preferiu concentrar seu olhar sobre um caso específico, retratá-lo da maneira mais intensa e fiel possível. Escolheu a Kelly School. Em lugar de uma metrópole, preferiu uma cidade pequena. Holyoke, no Estado de Massachusetts. Feita a escolha, conseguidas as autorizações e os consentimentos devidos, Tracy partiu para a cidade, passando todo um ano letivo - do primeiro ao último dia de aula - participando, observando, anotando as atividades dos professores, alunos e diretores da escola, sentando-se nos bancos escolares com as crianças, mergulhando fundo no mundo cultural e social da cidade, em sua história. A meta era retratar o ensino em perspectiva, contextualizado em primeiro plano na questão particular da

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Kelly School, depois no universo de Holyoke, em seguida no âmbito mais geral do panorama educacional norte-americano. O eixo da narrativa é a história de Christine – ou simplesmente Chris – naquele ano letivo. A Chris em sala de aula, mas também em casa, com a família – o marido Billy, dois filhos –, em reuniões com os pais de alunos, e até mesmo viajando para Porto Rico, numa excursão da escola, já que muitos dos alunos eram imigrantes ou filhos de imigrantes daquele país. Quando optou pela história de vida como instrumento principal do seu trabalho, Tracy Kidder embarcou numa tradição que já vem de longa data no jornalismo norte-americano. Pelo menos desde a década de 20 do século passado, a narrativa jornalística de profundidade nos Estados Unidos tem trabalhado ferramentas de expressão que colocam as pessoas – famosas ou anônimas – em primeiro plano. Ao longo das décadas, essa tradição foi sendo aperfeiçoada, até chegar ao primor de produções esplendorosas de grandes mestres da narrativa da realidade, como Joseph Mitchell, Lillian Ross, Gay Talese, John McPhee. A inovação de Tracy Kidder foi aplicar essa tecnologia narrativa sobre um tema de educação. Resulta que textos assim acabam exercendo uma função também educativa, pois a narrativa é um dos mais importantes instrumentos do processo ensino-aprendizagem. Não se ensina apenas pela maneira convencional, tipicamente dissertativa, preferida pela maioria das abordagens educacionais do nosso tempo. Ensina-se, também, contandose histórias. Um dos modos mais interessantes de se contar histórias - e ensinar - é aquele que se organiza em torno das vidas humanas, de gente de carne e osso. É também um dos modos mais gratificantes de se aprender. Assim como é de se pesquisar cientificamente, principalmente sob o guardachuva metodológico do grupo das pesquisas qualitativas. Iniciativas pioneiras começaram a ocorrer no âmbito da antropologia, no início do século XX. Antrópologos norte-americanos empregaram formas rudimentares de história de vida – como recurso de pesquisa e de relato –, ao estudarem a cultura de povos nativos. Na década de 1920, esse procedimento foi absorvido pelos sociólogos da chamada Escola de Chicago, transformando-se num método aceito de trabalho científico a partir da publicação de The Polish Peasant in Europe and America, de W.

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I. Thomas e F. Znaniecki, que combina histórias de vida com teorização sociológica2 Posteriormente, outros campos do conhecimento passaram a empregar o método consistentemente, como a psicologia – que já contara com trabalhos pioneiros de Freud em 1909 e 1911 –, a partir das iniciativas de H.A. Murray em 1938 e de G.W. Allport em 1942,3 e a história, que desenvolveria sua própria versão, a história oral, começando por um projeto da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, lançado sob a liderança de Allan Nevis, em 1948.4 Nos anos seguintes, a história de vida cresceu, atingindo um pico de popularidade junto aos pesquisadores. Mais tarde, entrou num ciclo descendente de perda de preferência. Mas, devagar, recomeçando em meados da década de 1970, embarcou noutra fase de ascensão, caminhando para multiplicar-se em diversas variantes de uso do método, ganhando revigoramento preferencial no terreno da pesquisa qualitativa, penetrando em campos de estudos nos quais ainda não se notara sua presença. Ardra L. Cole e J. Gary Knowles, dois expoentes atuais dessa corrente centrada no trabalho qualitativo, apontam o emprego recente do método em áreas tão diversificadas quanto a gereontologia, as ciências da saúde, o ensino de música, a enfermagem, a psiquiatria, a clínica médica, o serviço social, os estudos socioculturais e os estudos femininos.5 E a educação? O leitor poderá perguntar. O uso da história de vida em educação expandiu-se sobremaneira nas duas últimas décadas do século XX, pelo menos na América do Norte, ganhando um ímpeto renovador extraordinário, graças em parte ao 2

O livro é considerado um divisor de águas na evolução do método. Trata das histórias de vida de camponeses poloneses. Publicado em 1927 pela University Chicago Press, de Chicago, sua relevância histórica foi destacada por Ardra L. Cole e J.Gary Knowles em Lives in Context, a principal obra teórica de referência utilizada pelo autor deste texto. 3 O trabalho pioneiro de Murray, Explorations in Personality, foi publicado pela Oxford University Press de Nova York. O de Allport, The Use of Personal Documents in Psychological Science, lançado pela Holt, Rinehart & Winston, também de Nova York. Ambos reconhecidos no levantamento histórico de Ardra L. Cole e J. Gary Knowles. 4 Paul Thompson, uma das principais referências teóricas sobre história oral, realça a importância histórica de Allan Nevis no prefácio de seu livro A Voz do Passado. 5 Os autores compõem, no primeiro capítulo de Lives in Context, um panorama histórico e conceitual das principais correntes de história de vida. Depois, apresentam sua própria formulação de uma nova versão do método.

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trabalho de pesquisadores ligados ao Ontario Institute for Studies in Education – o OISE – da Universidade de Toronto, no Canadá. Trata-se de uma unidade especial de pesquisa e ensino de educação, em nível de pós-graduação, em cujo seio nasceram propostas metodológicas arrojadas. Alguns desses pesquisadores atribuem a Paulo Freire uma influência histórica importante na base da renovação da prática, mas naturalmente avançaram para conteúdos e procedimentos não contemplados originalmente pelo nosso educador visionário. O repertório de histórias de vida em educação trabalhadas nos últimos anos por pesquisadores do OISE e de outros centros de estudos na América do Norte abrange subtemas tão variados quanto o papel do diretor de escola, a história da escola, os perfis de educadores inovadores, o processo de aprendizagem, a formação de professores, a interação entre a escola e a comunidade, e tantos outros igualmente importantes. O método, portanto, não fica limitado ao resgate da memória. O foco geográfico dos trabalhos transcende o continente norte-americano. Particularmente na Universidade de Toronto, por estar sediada numa cidade eminentemente multicultural, abrigando um número considerável de imigrantes, e por uma política aberta às relações internacionais, a produção de Teses de Doutorado de profissionais procedentes de diversos países, focalizando questões de suas nações de origem, não é incomum. O estado da arte da aplicação do método revela que os pesquisadores desprezam um formato sisudo na apresentação dos resultados de seus trabalhos. Têm um patamar de ambição mais elevado, como revelam dois teóricos de prestígio, D. Jean Clandinin e F. Michael Connelly: Para nós, a vida – tal como nos ocorre e como ocorre com os outros – é preenchida de fragmentos narrativos, ordenada em momentos armazenados de tempo e espaço, e entendida em termos de unidades narrativas e descontinuidades. Resulta daí que... Vimos a questão central da nossa pesquisa como sendo a tentativa de pensar na continuidade e na inteireza da experiência de vida do indivíduo. Essa questão, nos nossos estudos sobre educação, levounos eventualmente à narrativa. Começamos então a refletir sobre a preocupação central das ciências sociais sobre a experiência humana. Para os cientistas sociais, e conseqüentemente para nós, a experiência é um termo-chave. A educação e os estudos sobre 25


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educação são uma forma de experiência. Para nós, a narrativa é o melhor meio de representar e compreender a experiência. A experiência é o que estudamos, e a estudamos narrativamente porque o pensamento narrativo é uma forma-chave de experiência e é um modo essencial de escrever e pensar sobre isso. Assim, o pensamento narrativo é parte do fenômeno da narrativa. Pode-se dizer que o método narrativo é uma parte ou um aspecto do fenômeno narrativo. Portanto, dizemos, a narrativa é tanto o fenômeno quanto o método das ciências sociais.6

Assim, a história de vida no ambiente educacional não é apenas um método de pesquisa, de levantamento de dados, de observação de padrões de atuação profissional. É também uma forma narrativa que busca compartilhar conhecimento através da fluência do texto. Porque entendem, esses teóricos de ponta, que o ensino e a aprendizagem não podem ser apreendidos pela abordagem puramente analítica, linear, do procedimento científico convencional, centrado no entendimento exclusivamente lógico das coisas. Há um certo quê de arte no processo, mas só pode ser apreendido se o pesquisador permite-se um vôo de compreensão mais aberto, disponível para a intuição e para a emoção. Com instrumentos flexíveis de observação e compreensão do real, os estudiosos têm desenhado instigantes retratos etnográficos de uma série de fenômenos ligados à educação – particularmente centrados no professor –, tais como a filosofia pessoal dos docentes, suas regras e princípios no ato de ensinar, sua imagem na sociedade, os ritmos e ciclos do ensino. De fato, a produção de boa parte dos pesquisadores do OISE constitui hoje um repertório amplo de um padrão de pesquisas que eles próprios denominam de pós-moderno. Um de seus integrantes, Mary Beattie, anuncia deste modo um dos seus estudos: Trabalhei colaborativamente com uma professora, e a pesquisa colaborativa compreendeu as práticas da professora, suas experiências pessoais e profissionais, e as unidades narrativas de sua vida, para oferecer-nos um modo holístico de pensamento sobre o que é o ensinar e sobre o modo pelo qual os professores aprendem (1995, p. 7). 6

Narrative Inquiry, páginas 18 e 19. Connelly é influência inspiradora sobre a evolução do método por parte de novas gerações de pesquisadores no OISE.

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Esse padrão pós-moderno rompe barreiras do procedimento científico tradicional, mesmo as da pesquisa qualitativa clássica, convencional. Quebra tabus. Propõe antes de tudo que o pesquisador é um indivíduo - um ser inteiro, que não pode ser dividido –, portanto um ser cuja porção profissional está intrinsecamente ligada ao seu lado pessoal. Assim, pesquisar é uma atividade extensiva do indivíduo como um todo. Só faz sentido quando esse engaja-se no processo por inteiro, pesquisador e pessoa envolvidos num trabalho de profundidade que busca sentidos, incluindo o significado pessoal da pesquisa para si. Sob esse prisma, a pesquisa é um empreendimento intensamente pessoal, tanto do pesquisador quanto da pessoa - ou do grupo social – que se torna o eixo focal do estudo. Como na história de vida – principalmente na modalidade da pesquisa colaborativa, em que o pesquisado é co-criador da investigação, junto com o pesquisador – um fator fundamental é a interação entre quem pesquisa e quem se deixa pesquisar, os profissionais de Toronto rompem com a postura convencional do distanciamento, da formalidade e da definição rígida de papéis, demarcados em territórios estanques. Propõem uma postura humanista, entendendo a interação de pesquisa como um processo "complexo, fluido, dinamicamente mutável, e com fronteiras que se fundem em estilo caleidoscópico", como sugerem Ardra Cole e Gary Knowles (2001, p. 27). Igualmente rejeitam a pretensa e arrogante "objetividade" das abordagens científicas tradicionais. Questionam-na como falaciosa. Têm um argumento poderoso para isso: Os valores, as crenças, as experiências, as perspectivas, e as características físicas, sociais e contextuais que moldam quem somos, assim como as paixões, os compromissos e as motivações que nos movem, estão fortemente presentes quando assumimos e exercemos nossos papéis de pesquisadores (2001, p. 49).

Por isso mesmo, em contrapartida à pretensa objetividade, propõem outra perspectiva: Distanciar-se da desordem e das complexidades das vidas é esvaziar-se da força erótica da vida. Queremos gritar coragem, com todo o vigor dos nossos pulmões, para os pesquisadores de histórias de vida articularem claramente, no âmbito das definições de seus trabalhos, sua humanidade - seus valores fundamentais, 27


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experiências e paixões por detrás de suas pesquisas -, como um meio legítimo de se engajarem e representar as complexidades de seus achados. Fazer isso é honrar a si mesmo, honrar aqueles que são o foco das pesquisas, honrar a jornada ou as jornadas empreendidas. Tal atitude não só engajará os leitores (ou espectadores), mas tornará visíveis os suportes fundamentais da pesquisa (2001, p. 48).

Esse horizonte amplo dos pesquisadores da Universidade de Toronto levou-os a abrir outro portal, tão ousado quanto as afirmações já reproduzidas neste texto. No início do ano 2000, criaram o Centre for Arts-informed Research, uma unidade avançada, no contexto do OISE, tendo como missão explorar e apoiar o uso de formas alternativas de pesquisa qualitativa e representação, capazes de infundir elementos, processos e formas das artes nos trabalhos acadêmicos, incluindo majoritariamente as pesquisas de histórias de vida, particularmente com foco na área educacional. O resultado da produção desse centro de pesquisa que utiliza a arte como meio de expressão de estudos organicamente científicos, em que a reflexão e a narrativa combinam-se em busca da compreensão abrangente, em que a contemplação e a reflexão unem-se em favor da vida, sob um ângulo integral de observação e experiência, manifesta-se em relatos tocantes, surpreendentes. Prosa e poesia expressam descobertas pessoais, achados academicamente válidos, iluminadores. A pesquisadora canadense Jessica Ticktin parte para a África do Sul, num projeto envolvendo uma comunidade pobre da cidade de Cape Town e a ONG - Organização Não Governamental – Ikamva Labantu. Vê-se imersa num oceano de histórias das mulheres negras e sua militância na era do apartheid. Não recusa o impacto emocional, deixando-se levar pelo processo criativo avassalador que a envolve, como gente e cientista social, uma fronteira diluída no território da outra. Aceita o desafio, recebe a recompensa de encontrar, num salto quântico elucidativo de qualidade, um novo sentido para sua própria vida, para as vidas que estudou, para o processo que examinou: Senti uma ligação fortíssima com as mulheres da Ikamva Labantu. Ultrapassava o terreno do coleguismo, atingia algo mais profundo e mais significativo. Comecei a gravar e transcrever suas narrativas, fascinada não apenas pelas histórias, em si, mas pela intensidade 28


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com que me contavam e pela intensidade com que eu ouvia. Uma mulher, chamada Tutu, e eu, nos tornamos amicíssimas, irmãs. Como filha de um judeu sul-africano, minha história familiar está imbricada e implicada nas histórias dessas mulheres, e como pesquisadora busquei a fonte do meu desejo de aprender algo importante delas. Eu precisava saber em que havia investido, o que eu trazia para esse trabalho, como meu passado havia moldado o presente delas, e agora, como o presente delas estava moldando a mim. ALÉM DE MIM Tutu Sento-me nesta sala, mais de três mil milhas longe de você em um lugar que você nunca viu – um mundo que você não reconheceria Novembro com disposição sombria estende suas asas cinzas ao meu redor e deixa minha pele faminta de sol gritando por luz e calor Imagino seu rosto a escuridão suave dos seus olhos o queixo alto – uma princesa Xhosa de algum ponto da sua linhagem reincarnou em você Fecho meus olhos e desejo sentir a areia entre os meus dedos e anseio penosamente sentir o cheiro do ar salgado em Cape Town Mas por que sou arrastada para a África do Sul – como pode meu desejo esconder dentro sua esqualidez, sua fome e miséria; a depravação e a violência que é sua história? Vou encontrá-lo atrás das grades de ferro nas janelas emoldurando vistas da praia ou subindo escadas em espiral, acovardando-se em casas onde 29


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meus parentes se escondiam? Não consigo deixá-lo fugir, este desejo meu devo expulsá-lo Tutu, deixe-me ir com você – Posso vê-la, dirigindo seu minúsculo Toyota branco saindo da rodovia N1 entrando na Crossroads de baixo os velhos chamando seu nome, olhos brilhando de alegria que você chegou Perguntarão como vai você, oferecerão chá com muito açúcar e montanhas de arroz e batata e frango assado no seu prato Perguntarão sobre sua filha e seus filhos, contarão a fofoca do dia que o marido da fulana de tal foi morto na guerra de gangues dos táxis locais que a filha de outra, uma menina de 12 anos, está grávida mas, oh, exclamarão, você ouviu falar que o neto do Nombuso entrou para a faculdade de direito? Não lhe pedirão dinheiro, não fiscalizarão se você está de fato fazendo seu trabalho, em vez disso irão apertar sua mão e irradiar força vão cantar e rezar e rir de boca escancarada lágrimas banharão seus olhos mas você não vai deixá-los ver. Esta imagem me faz sorrir e por um momento estou lá com você de novo, tímida e grata uma parte de algo maior – algo além de mim num lugar onde a esperança nasceu. 7

Sim, emoção forte. Emoção conduzida pelo mesmo espírito que sopra as veias criativas dos repórteres e escritores que mergulham com a ânsia desvairada dos buscadores na realidade pulsante da vida. Deixam-se queimar como fogo bravo pelo desafio da descoberta, encontram no 7

"Tutu and Me", de Jessica Ticktin, páginas 101 a 103 de The Art of Writing Inquiry, editado por Lorri Nielsen et al.

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mundo externo a ressonância do interno, desenham no mapa do outro o território de suas próprias vidas. Contam na corrente do jornalismo literário, da literatura da realidade, da narrativa de não ficção, do jornalismo narrativo - nomes diferentes para as águas do mesmo rio - a história das vidas de famosos e anônimos que nos ajudam a formar o grande quadro da epopéia em curso da humanidade Uma corrente presente mesmo no Brasil - embora discreta, tendendo a crescer gradativamente graças ao impulso natural de novas gerações de narradores e a um punhado de professores que mantêm a chama viva em algumas universidades – de hoje, mas que já teve muito brilho por aqui. Focalizando de vez em quando a educação e as histórias de educadores acessos para expor seus feitos revolucionários, tímidos para exibir suas vidas pessoais. Discretos, generosos como todo bom educador, pensam que vale a obra herdada para as futuras gerações, não o homem – ou a mulher – de carne e osso que a faz acontecer. Como Alexander Sutherland Neill, cuja contribuição para o mundo o repórter Paulo Patarra, da revista Realidade, começa a desvendar assim: Armados de pedaços de pau um grupo de garotos entra no mato. É hora de aula, mas eles escolheram caçar elefante. No caminho encontram uma mocinha lendo um romance. Um garoto dá-lhe um cutucão. Cruzam também com um menininho loiro que, apesar da temperatura de sete graus, está sem agasalho, com os pés dentro d’água, dando um banho num coelho de plástico. Na sala principal – ali são recebidas as visitas - dois guris jogam futebol com uma bola de papel. Um chuta, o outro defende. O gol são duas cascas de banana. No alto da escada de madeira que leva ao segundo andar duas meninas e três meninos estão ocupados enfiando um garoto menor numa caixa de papelão. Ele não está cabendo, dobram-lhe os braços e as pernas. Pedaços de pano e um jornal tornam a caixa mais confortável. De longe, uma mulher espia a cena. O volume está pronto, a tampa foi amarrada com um barbante, a caixa é empurrada escada abaixo. Nos últimos degraus ela se abre, o menino termina a viagem com parte do corpo fora do embrulho e gritando. Os outros dão risada, a mulher estica o pescoço, atenta. O pequeno pára de gritar, diz um palavrão, apanha a caixa e a arrasta para cima. E, no alto, se deixa encaixotar de novo para mais um passeio de "escada rolante". Num vão da porta, um casalzinho de 12 ou 13 anos discute vantagens e desvantagens da psicoterapia. O rapaz acende meio 31


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cigarro, dá uma tragada e passa a bituca para a menina. Ali perto uma dúzia de crianças dá marteladas e serra tábuas com muita disposição e barulho. O casal se afasta e quase é atropelado por uma bicicleta enferrujada, que passa em disparada, pilotada por uma ruivinha sardenta. O mato cresce pelo grande quintal, invadindo os caminhos e cercando um conjunto de balanças, a metade delas quebradas. No alto de uma barra que sustenta as balanças um menino está sentado e, de metralhadora em punho, atira sem parar contra as janelas de uma sala de aula. Suas rajadas barulhentas são respondidas por um homem alto que interrompe sua declamação de Shakespeare para dizer "bang-bang" de dedo indicador engatilhado. Os meninos que estavam ouvindo a história de Hamlet acabam por se aborrecer com tanto tiro e dão um ultimato: ou se interrompe o tiroteio ou eles também entram na briga. Uma menina é a porta-voz do grupo. O professor escolhe Shakespeare e sacode um lenço branco pedindo trégua à metralhadora. É hora de aula na escola inglesa de Summerhill. Mas só vai quem quer.8

Uma joia do passado caminhando para a poeira da memória de um tempo já distante. Mas estamos no presente, tentando hoje, na educação, construir sinais para balizar o futuro. Um tempo de temas transversais. Educomunicação. A aceitação implícita da função educativa dos meios de comunicação de massa. O resgate do pensamento do guru visionário de décadas atrás, o canadense Marshall McLuhan, antecipador da aldeia global. Antecessor da era virtual da instantaneidade eletrônica, mapeador do conceito de que o ensino do novo tempo não se restringiria mais à escola. Ganharia a carona galopante da televisão, o calor comunicante do rádio, as páginas glamorosas dos jornais. E por isso mesmo, em começo de século XXI, a educomunicação. O cuidado em ensinar-se a leitura crítica dos meios de comunicação, pois suas mensagens transitam carregadas de funções ideológicas e econômicas camufladas no ato primário de informar. Mas há outra ideia que norteia o conceito de educomunicação. Uma outra perspectiva preferencial que direciona o entendimento do autor deste

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"Ninguém Manda Nestas Crianças", páginas 50 e 51 da edição número 22, janeiro de 1968.

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texto. O entendimento de que os recursos narrativos da comunicação de massa - mais particularmente os do jornalismo literário e da literatura da realidade – podem ser empregados com sucesso em tarefas educativas legítimas. Como as de pesquisar, ensinar e aprender contando histórias. Preferencialmente histórias de vida. Transportando os instrumentos da literatura da realidade para o âmbito da educação. Por que isso? Porque a educação do século XXI precisa recuperar o prazer. Precisa reaprender a combinar a transmissão sólida de conhecimentos com a leveza do ato aprendiz. Basta do ensino marcado pela secura, pela aridez da visão de mundo distorcida por uma prática científica canhestra, inimiga da vida. Queremos a ciência da inclusão, não mais a da exclusão. Precisamos desesperadamente da ciência da construção amorosa, não mais a da destruição impiedosa desalmada. Des alma da. A que perdeu a alma, a que tirou o gosto de viver. E de aprender. Transdisciplinaridade. A ousadia do diálogo permeável mesclando ciências, artes, filosofia, tradições. O salto para o espaço/tempo para além até mesmo das disciplinas conhecidas, das especializações fechadas em sua limitação horrenda da incapacidade de transcender o próprio umbigo. Uma educação brasileira ágil, narrativa, disponível para a incorporação de novos métodos de geração, captação, registro e transmissão de conhecimento. Importados da tradição narrativa dessa literatura da realidade já tão bem sucedida no campo da comunicação de massa, adaptados para a função nobre do educar. Inspirados por iniciativas de ponta em ilhas de vanguarda da pesquisa qualitativa em educação. Como as iniciativas da Universidade de Toronto e seus pesquisadores ousadamente inovadores. O transporte de influências e know how desse tipo para dentro do cenário educacional brasileiro de hoje pode contribuir para dinamizar a prática dos estudos qualitativos, centrados na narrativa, já presentes em projetos dignos que assinalam caminho promissor. A realização, em agosto de 2003, em São Paulo, do seminário internacional Memória, Rede e Mudança Social, promoção conjunta do Sesc paulista e do Instituto Museu da Pessoa Net, colocou na vitrine, sob a seção "Memória e Educação", casos notáveis. Como o do Centro de Referência em Educação Mário Covas, cuja área Memorial da Educação compartilha a história da educação no Estado de São Paulo. Como o do projeto que em Santa Maria, Rio Grande do Sul, resgata as histórias de vida de professoras alfabetizadoras, para 33


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compreender suas ações pedagógicas. Como os de escolas no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, que se envolvem na recuperação da memória de comunidades através das histórias de vida. Como o de Suely Lima de Assis Pinto que, na Universidade Federal de Goiás, investiga o processo de aprendizado de um autodidata notável em conhecimento científico, Binômio da Costa Lima, "seu" Meco. Amostras promissoras. Sinais de que muito se pode fazer no Brasil de agora e do futuro imediato no emprego de narrativas como instrumentos de organização do conhecimento, em educação. Utilizando-se as modalidades já conhecidas de pesquisa e expressão. Ampliando-se o leque para novas variações. É nesse contexto que o know how narrativo da literatura da realidade pode contribuir em algo, renovando procedimentos, ampliando o arsenal de ferramentas para pesquisar com critério e comunicar com sabor. Vale a ousadia do experimento. Assumir o risco. Como no projeto em curso deste autor, focalizando as histórias de quatro educadores inovadores – Ubiratan D´Ambrosio, Regina Migliori, David Selby e Edmund O´Sullivan – no Brasil e no Canadá. Não importa quão cautelosamente um autor tente representar a vida de uma pessoa, não há verdade absoluta numa narrativa holística. A vida é maior que a arte, mais criativa, contínua. Entender é construção, ficção e fato são filhos da mesma família, o sentido é uma busca perenemente mutável. Intuição, insights, um olho aberto à sincronicidade, aos sonhos. Tudo isso ajuda a entender uma vida contada, uma circunstância, um episódio, uma ação, um contexto tempo/espacial. A complexidade é uma palavrachave que abre compreensões escondidas. Momentos dramáticos David Selby9 é um jovem, entusiasta professor assistente em Educação, na University College, em Cork, República da Irlanda, tentando sustentar a família com um salário diminuto. 1972. Janeiro. De súbito, uma tragédia abate-se como aguaceiro de tempestade negra.

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Um dos principais teóricos dessa vertente inovadora, David, já tem dois volumes de sua série Educação Global, escrita em parceria com Graham Pike, publicados, no Brasil, pela Textonovo, de São Paulo.

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"Domingo Sangrento". Treze pessoas mortas pelo exército britânico, na Irlanda do Norte. David lembra-se, no livro que ele e Tara Goldstein editaram. Weaving Connections: Educating for Peace, Social and Environmental Justice: – A matança não apenas aterrorizou-me, como também deixou-me sentindo-me mais do que nunca cúmplice, como inglês, de uma lamentável história de séculos de opressão. Contra um pano de fundo da ampla e justificável ira contra as ações britânicas recordome vivamente do meu nervosismo, quando fui fazer uma palestra para 150 estudantes, sobre a história da educação na República Irlandesa, apenas dois dias após o massacre. Não posso imaginar uma situação mais explosiva. Após a palestra, estudantes-líderes aproximaram-se para assegurar-me que, apesar do ódio contra os militares e o sistema britânico, nada tinham contra mim, enquanto pessoa, indivíduo de nacionalidade inglesa. Momentos de ruptura. – Foi um momento profundamente catártico. Vi a necessidade de uma educação que construísse pontes entre divisões, que reconhecesse responsabilidades e cumplicidades, ao mesmo tempo formando novas relações baseadas no respeito mútuo. Dentro de semanas, eu havia começado a abordar a questão de como o ensino de história poderia contribuir ao entendimento internacional e intercultural, em meus seminários do método histórico, e já havia ajudado a deflagrar um programa de escolas irmãs entre escolas locais e escolas na Inglaterra. Voltei à Inglaterra um ano depois e passei os nove anos seguintes, como professor, desenvolvendo cursos integrados com uma crescente dimensão sócio-crítica (2000, p. 14).

O Grande Mistério. Sim, outra questão, outra busca. Às vezes, ao escritor resta ouvir empaticamente. Silenciar. Compartilhar a emoção profunda. Fim de novembro, 2001. Edmund termina a última entrevista concedida a Edvaldo, para a pesquisa. Uma tarde tranquila no escritório. 35


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Juntos, o escritor e Edmund reveem rapidamente as conversas até aquele momento. Concordam que completaram uma boa jornada sobre a vida dele. Mas então Edmund comenta que gostaria de falar um pouco mais sobre sua vida familiar. Sobre a morte da esposa, Pat. Alguma outra hora, quem sabe outro dia, talvez. Edvaldo sente que é momento, porém. A catarse que pode vir. Pergunta a Edmund se gostaria de fazê-lo naquele instante, então. Liga-se o gravador. Não há perguntas a fazer, nenhuma interferência do entrevistador. Apenas uma atmosfera suspensa no ar, suavemente dramática, quase venerável, preenchendo a sala. Edmund, o professor, emociona-se quando se recorda. Como homem, companheiro, parceiro, amante. Os olhos marejam. Uma única, suave lágrima desce pelo queixo. Os dois últimos dias lembrados. Dois dias inesquecíveis de uma tarefa de amor. Momentos preciosos para sentar-se mansamente ao lado dela, beijar sua face e mãos enquanto dorme pacificamente. Minutos preciosos para orar. Para trazer o velho amigo Thomas Berry para os últimos sacramentos. Para sentir-se embalado numa dimensão além da crença. Outra dimensão de vida. Um tempo sagrado. Tempo para sentir poderes e forças que lhe dão resistência inimaginável. Para sentir um lindo estado de gratidão por ter sido banhado pela bênção de uma companhia doce e poderosa de 27 anos. Para sentir, no exato minuto da perda dolorosa para a morte, estar envolto por um oceano de amor. Sim, amor. Palavras silenciosas. O sussurro delicado do todo concedendo ternamente à vida de alguém um sentido profundo. Estamos todos interconectados. Homens e mulheres e crianças e animais e plantas e minerais e águas e tempestades e a alvorada e o entardecer, ondas no oceano, a folha caindo da árvore no alto da montanha, todos os seres existentes e a Natureza. O ambiente integrado pulsante dançante da teia da vida. Gaia. Quando vamos permitir que aquela delicada e transformativa experiência da descoberta inexplicável do mistério toque nossas mentes e corações no ambiente educacional? Quando empurraremos maya, a ilusão dos sentidos, para longe, abrindo espaço para que nosso saber profundo venha à tona, trazendo consigo a sabedoria pura como diamante que revela quem somos, na nossa dimensão plena? 36


Aproximando fronteiras: a história de vida no cenário da educomunicação

As histórias de vida de Regina, David, Ubiratan e Edmund. A de Edvaldo, a sua, a de nossa irmã e a de nossos irmãos, podem inspirar respostas. Como espelhos, refletem a natureza holográfica da nossa própria jornada em busca do Self.

Referências BEATTIE, Mary. Constructing Professional Knowledge in Teaching: A Narrative of Change and Development. Toronto e Nova York: OISE Press e Teachers College Press, 1995. CLANDININ, D. Jean e F. Michael Connelly. Narrative Inquiry: Experience and Story in Qualitative Research. São Francisco: Jossey-Bass, 2000. COLE, Ardra L. e J. Gary Knowles (editores). Lives in Context: The Art of Life History Research. Walnut Creek: AltaMira Press, 2001. KIDDER, Tracy. Among Schoolchildren. Nova York: Avon, 1998. LIMA, Edvaldo Pereira. Escrita Total: Escrevendo bem e vivendo Com Prazer, Alma e Propósito. São Paulo, sistema editorial Clube de Autores – http://clubedeautores.com. br/book/2631--Escrita_Total -, 2009. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: O Livro-Reportagem Como Extensão do Jornalismo e da Literatura. São Paulo: Manole, 2009. Quarta edição ampliada. MILLER, John P. Education and the Soul: Toward A Spiritual Curriculum. Albany: State University of New York Press, 2000. PATARRA, Paulo. Ninguém Manda Nestas Crianças. Realidade, ano II, número 22, janeiro de 1968. SELBY, David e Tara Goldstein (editores). Weaving Connections: Educating for Peace, Social and Environmental Justice. Toronto: Sumach Press, 2000. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. TICKTIN, Jessica. Tutu and Me. In The Art of Writing Inquiry, Lorri Neilsen et al. Halifax e Toronto: Backalong Books e Centre for Arts-informed Research: 2001.

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (1) - 2009 – p.39-54

PISTAS PARA DECIFRAR O ENIGMA: UMA ANÁLISE DE OS SERTÕES A PARTIR DO JORNALISMO LITERÁRIO Clues to help decipher the enigma: an analysis of Os Sertões from the point of view of literary journalism Fabiano ORMANEZE1 RESUMO: Este artigo oferece uma contribuição ao estudo da obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, publicada em 1902. Situando-a como livroreportagem, sem, no entanto, rotulá-la apenas como tal, discute de que forma os sete pilares do jornalismo literário, definidos por Sims (1996), estão presentes no processo de apuração e escrita daquela que é a mais conhecida reportagem sobre a Guerra de Canudos. A partir da análise de trechos da obra e do diário do autor, que traz as anotações feitas em campo, conclui-se que Euclides da Cunha utilizou a imersão na realidade, a humanização, a voz autoral, o estilo, a digressão, a precisão de dados e informações e metáforas e símbolos para compor seu texto. PALAVRAS-CHAVE: Os Sertões; jornalismo literário; livro-reportagem. ABSTRACT: This article is a contribution to the study of “Os Sertões”, by Euclides da Cunha, published in 1902. As a non-fiction novel, but not taken only as that, it discusses how the pillars of literary journalism, defined by Sims (1996), are present in the process of refinement and writing of what has been considered the best known report on Guerra de Canudos. Based on parts of the work and the author’s diary, which brings the notes taken in the field, it is seen that Euclides da Cunha made use of reality immersion, humanization, the author’s voice, the style, digressions, information, metaphors and symbols accurateness to make his text. KEYWORDS: Os Sertões; literary journalism; non-fiction novel.

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Jornalista, escritor e professor do Centro de Linguagem e Comunicação da PUCCampinas.


Fabiano ORMANEZE

Começo de conversa Um escritor por coincidência, um jornalista por convite, um engenheiro por formação, uma vida tumultuada e um lugar garantido na memória da literatura brasileira. Euclides da Cunha (1866-1909) é considerado um dos principais nomes do pré-modernismo brasileiro e também é considerado por muitos como o autor do primeiro livroreportagem publicado no Brasil: seu “Os Sertões”, sobre a terra e o conflito de Canudos, conferiu-lhe reconhecimento público e já extrapola um século de leituras e estudos. Não fosse pelo livro, de 1902, certamente o autor não teria chegado aos nossos dias com o mesmo destaque e, muito provavelmente, seria lembrado mais pelo trágico fim, o assassinato pelo amante da mulher, Ana. Enigmática em alguns pontos, complexa em outros, assustadora no tamanho, envolvente para quem aceita o convite para decifrá-la. A obra é uma das mais estudadas da literatura em língua portuguesa e uma das mais traduzidas, chegando a ser publicada em chinês e sendo adotada por colégios militares e batalhões de guerra como leitura obrigatória para o conhecimento de estratégias de combate. Mas, afinal, o que se tem nas mais de 500 páginas de “Os Sertões?” Ensaio, jornalismo, romance ou um tratado históricogeográfico-humano do que foi Canudos? Qualquer tentativa de rotular a obra e resolver esse enigma que envolve tantos pesquisadores, certamente, seria redutora. Uma das características que dão a “Os Sertões” destaque é justamente a pluralidade de gêneros, discursos e interpretações, que pode compreender estudos na área da literatura, do jornalismo, da história, da antropologia, da geologia e da sociologia. Neste artigo, vamos explorar o livro em sua faceta de livro-reportagem, indicando características que permitem incluir a obra nas produções brasileiras que têm por particularidade o jornalismo literário. O jornalismo literário em “Os Sertões” O livro “Os Sertões” é compreendido, muito embora sem ser unanimidade, como o primeiro livro-reportagem2 brasileiro, e é resultado da 2

Entende-se como livro-reportagem o relato jornalístico de profundidade que, pela sua extensão e complexidade analítica, é publicado no formato de livro. Para tanto, apesar da

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cobertura jornalística feita por Euclides da Cunha da Guerra de Canudos, em 1897, quando passou 18 dias no Sertão, acompanhando as investidas do Exército Brasileiro ao movimento de Antonio Conselheiro. Primeiramente, suas reportagens foram publicadas no jornal que o convidara à cobertura, o Estado de S. Paulo, depois, a experiência o levou a produzir o livro, publicado originalmente em 1902. O convite para ser o correspondente surgiu após publicar, em 1895, no mesmo jornal, artigo em que comparava o movimento de Canudos aos revoltosos de Vendeia, no Noroeste da França, que, ligados à Igreja Católica, se rebelaram contra a revolução francesa, defendendo os ideais monárquicos. Como era comum no Sudeste do Brasil, nos anos 1890, Euclides da Cunha acreditava que o movimento liderado pelo Conselheiro deveria ser banido, pois tinha como principal motivo a restituição da monarquia. Tal posicionamento, no entanto, como se verá adiante, muda a partir do momento em que o escritor imerge na realidade do Sertão baiano. Para compreender as circunstâncias em que as informações presentes na obra foram produzidas e investigadas, convém consultar, além de “Os Sertões”, o livro “Diário de Uma Expedição”, fruto das anotações feitas por Euclides da Cunha em sua caderneta de campo, uma espécie de bloco do repórter no momento da coleta das informações para o livro. “Diário de Uma Expedição” é uma publicação póstuma, de 1975, e contém, além das anotações de Euclides em ordem cronológica, as reportagens publicadas no jornal e desenhos feitos pelo autor para situar a vila de Canudos. Apesar de ter nascido de uma cobertura jornalística, a diversidade de discursos euclidiana dificulta a classificação da obra simplesmente como reportagem. Lima (2009), ao apresentar uma história da reportagem em profundidade (que extrapola o simples caráter noticioso de um veículo jornalístico) no Brasil, explica que: Não importa muito, do ponto de vista da observação de um processo no tempo histórico, que Os Sertões não sejam um livro-reportagem no sentido estrito do termo. Importa que tenha exibido algumas importantes possibilidades ao tratamento jornalístico. Importa que, por uma analogia de raciocínio, tenha estado para o futuro

possibilidade da utilização de uma linguagem literária, a obra deve estar centrada na fidelidade às informações colhidas pelo repórter-autor.

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desenvolvimento do livro-reportagem no Brasil assim como, digamos, Por quem os sinos dobram tenha estado para o futuro desenvolvimento do jornalismo literário nas décadas de 40 e 50 nos Estados Unidos. (p. 217)

Este artigo, obviamente, não tem a pretensão de apontar uma versão classificativa para tal. O que se fará aqui é apenas apontar de que forma a obra utilizou todas as características do jornalismo literário em sua produção. Entende-se como jornalismo literário a metodologia de trabalho que integra as ferramentas da reportagem (para a investigação e apuração dos fatos) e a linguagem típica da literatura, com a criatividade sendo estimulada na forma de narrar. O jornalismo literário aparece na contramão do tradicional lead, formato de texto mais comum nos veículos impressos notadamente após a Segunda Guerra Mundial, em que as seis perguntas básicas que configuram um fato (o quê, quem, como, onde, quando e por quê) devem ser respondidas no primeiro ou, no máximo, no segundo parágrafo. A proposta do jornalismo literário não é exclusiva da produção de livros-reportagens, uma vez que é possível utilizar a linguagem literária na produção de matérias para jornais impressos, revistas e até mesmo em meios audiovisuais, sendo o documentário a modalidade em que suas características mais facilmente podem ser utilizadas e perceptíveis. O jornalismo literário reconhece a impossibilidade da imparcialidade nos discursos e, por isso, entende como produção jornalística qualquer texto fidedigno às observações do repórter e produzido com liberdade estilística. Além de uma preocupação com a qualidade das informações, que devem ser checadas e aprofundadas seguindo o melhor modelo de reportagem, o jornalismo literário tem uma preocupação estética com a forma de contar a história e, por isso, utiliza artifícios típicos da literatura, como as figuras de linguagem, as descrições, a narração cena a cena, os diálogos e o fluxo de consciência (LIMA, 2009). Como características dessa metodologia, Sims (1996) enumera sete pilares: a humanização, a imersão na realidade, a digressão, a precisão de dados e informações, o uso de símbolos e metáforas, a voz autoral e o estilo. A partir disso, podemos apontar trechos que permitem incluir “Os Sertões” no espectro de produções do jornalismo literário brasileiro.

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Imersão na realidade Para conseguir realizar uma reportagem em profundidade, abordando os mais variados aspectos de um fato, o repórter deve promover sua imersão na realidade. Assim, uma das características do jornalismo literário é justamente o envolvimento do repórter com a realidade que será narrada. Não existe, nesse caso, a possibilidade da cada vez mais praticada entrevista por telefone e, em tempos modernos, pelo e-mail ou chats. No jornalismo literário, a proposta é permanecer o máximo possível em contato com os personagens e com as cenas que serão retratadas, uma vez que isso permitirá uma abordagem mais densa e uma descrição mais coerente e fidedigna. Como diz Falaschi (2005), o jornalista deve gastar o tempo que for necessário para conhecer efetivamente o seu objeto de trabalho. Isso pode significar de dias a anos, como demonstram várias obras como “Hiroshima”, de John Hersey, ou mesmo “A Sangue Frio”, de Truman Capote. Sims (1996) considera a imersão a chave da compreensão de uma realidade, além de denotar audácia, autoridade, credibilidade e emoção no relato jornalístico. A partir da imersão de Euclides, de acordo com Galvão (1974), a Guerra de Canudos inaugura a prática de os jornais enviarem correspondentes aos locais dos acontecimentos fora da região em que funcionam as redações. Além de Cunha, outros 11 repórteres foram ao Sertão a fim de mandar aos seus jornais reportagens. No entanto, nenhum deles conseguiu extrapolar o relato e atingir o patamar de Euclides da Cunha. Uma das diferenças reside, justamente, na profundidade das informações que ele torna públicas e das características literárias, que levaram a obra a figurar na história da literatura brasileira. Além disso, a publicação de seus textos no formato de livro, o que já garante uma permanência maior do que o simples relato nas páginas de um periódico. Em “Os Sertões”, o leitor convive com a imersão do autor. A obra é dividida em três grandes partes que mostram, primeiro, um olhar de quem chega a um lugar desconhecido e, depois, explora cada uma de suas idiossincrasias. O leitor tem, de imediato, a visão da terra, como se fossem cenas de cinema gravadas em close. Dessa forma, Euclides recorre à geografia, à geologia e à formação histórica do sertão. Como é inspirado pelo determinismo, isso faz todo sentido, uma vez que na segunda parte, “O Homem”, Euclides leva o leitor ao contato com o sertanejo. Na

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terceira parte, em que a narrativa ganha aspectos de épico, ele narra a guerra propriamente dita. A imersão na realidade é perceptível no próprio processo de produção do livro, conforme já abordado anteriormente. Euclides vai situando os passos que percorreu, como no trecho, retirado de seu “Diário” (2003, p. 70), escrito em 1° de setembro de 1897: Mais abaixo, caindo para a direita, uma vereda estreita e sinistra – a estrada para Monte Santo3. Percorri-a, hoje pela manhã, até certa distância, a cavalo e entrei pela primeira vez nas caatingas satisfazendo uma curiosidade ardente, largamente apimentada. Um quadro absolutamente novo, uma flora inteiramente estranha e impressionadora, capaz de assombrar ao mais experimentado botânico.

A partir dessa visão que o surpreende, Euclides desenvolverá seu estudo sobre a terra, informando ao leitor características muito específicas, também levando em consideração os aspectos biológicos do Sertão. O fato mais importante nesse processo de imersão, o que demonstra sua importância para a atividade jornalística, reside no fato de que a visão que o Sudeste teria do que foi Canudos seria diferente se Euclides não se embrenhasse pelo Nordeste. Uma reportagem com imersão torna-se mais crítica, naturalmente mais profunda e, por que não, muito mais próxima da tão desejada verdade a que aspira o jornalismo. Veja: ele vai para Monte Santo com o olhar de quem encontrará uma insurreição contra a República, considerando a população canudense como “inimigos”, como se vê no texto “A Nossa Vendeia” (CUNHA, 2003, p. 121-129). Volta, no entanto, como relata em “Os Sertões”, com um olhar totalmente diferente. Em sua “Nota Preliminar”, antes de o leitor adentrar a densidade de “A Terra”, Cunha avisa: “aquela campanha lembra um refluxo do passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo” (2002, p. 67).

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Monte Santo foi o nome dado à vila de Canudos, que chegou a ter cerca de 25 mil habitantes, o que significa uma população maior do que muitas cidades do Interior de São Paulo, menos no início do século 21.

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Humanização Considerada como a principal característica do jornalismo literário, a humanização pressupõe o intuito de narrar as histórias a partir das experiências de vida, selecionando para isso personagens. Nessa proposta, as pessoas não servem para ilustrar um fato ou um dado, como quer o jornalismo tradicional. Pelo contrário: elas protagonizam a narrativa. Para exemplificar: no formato habitual, o personagem entra no meio do texto, como um exemplo do que se está noticiando. Se o texto diz respeito a uma enchente, são apresentadas as estatísticas, as razões e todas as informações sobre o assunto e alguém é selecionado para dar um depoimento, mostrando o drama a que está sendo submetido. No jornalismo literário, o caminho é o inverso: a partir da história de vida do personagem são introduzidas as informações estatísticas e as relações de causa e consequência. Como se vê, o contato com a realidade de Canudos fez com que a história a ser contada por Euclides tomasse um novo rumo, até pelo aumento natural das fontes de informação. Importante lembrar que o autor não teve nenhum contato com o Conselheiro, tampouco com os seus escritos, descobertos depois do fim da guerra. A proximidade com o conflito vai permitir ao leitor do Sudeste que tenha, por exemplo, uma imagem muito mais humana do que é um soldado que vai para uma guerra em pleno Sertão. Esse caminho já fica claro na “Nota Preliminar”, em que Euclides informa o tipo de narrador que pretende ser, incorporando um conceito do historiador Hippolyte Taine (1828-1893), ligado à corrente do determinismo. De acordo com ele, o narrador que se tem em “Os Sertões” “se irrita com as meias-verdades que são meias-falsidades, contra autores que não alteram nem uma data, nem uma genealogia, mas deturpam os sentimentos e os hábitos, que copiam os fatos e deformam a alma” (2002, p. 67, tradução nossa). Assim, saem os heróis e entram homens que sofrem com o calor, com as dificuldades de acesso, que transformavam o Exército num conjunto de homens que também sofriam, chegando a ser tidos como maltrapilhos em alguns episódios da narrativa. Neste trecho, Euclides mostra como era incoerente mandar para o sertão nordestino soldados com os uniformes do Exército brasileiro:

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Perto do Rancho do Vigário, por requinte de lúgubre ironia, os jagunços cobriram de floração fantástica a flora tolhiça e decídua. Restos de divisas vermelhas, trapos de dólmãs azuis e brancos, molambos de calças carmesins ou negras, e pedaços de mantas rubras - como se desabotoasse toda em flores sanguinolentas. (2002, p. 632)

Importante destacar que, no trecho, já há um exemplo da preocupação estilística de Euclides com a sua narrativa. Ele compara, construindo uma metáfora, os restos de roupas deixados pelo caminho, com flores que coloriam a monocromática paisagem sertaneja. Em dezenas de outros trechos, Euclides tenta desvendar o homem de Canudos, dando a ele o máximo de características físicas e psicológicas: O sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempenho, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. (2002, p. 207)

Há, no trecho, outro exemplo de esmero com a linguagem. O paradoxo “Hércules-Quasímodo”, para explicar o conflito entre a força e a característica física, é mais uma prova da utilização de estratégias literárias para reportar o real. Euclides pôde, a partir de sua imersão, situar melhor o que foi a coragem do sertanejo, inclusive, transformando-o de anti-herói, como queria a elite do Sudeste, no grande herói da narrativa. Isso se evidencia, por exemplo, no texto presente no “Diário”, datado de 1° de outubro, que mostra esse heroísmo do sertanejo. Não resta dúvida de que essa característica tenha impressionado o autor: Sejamos justos - há alguma coisa de grande e solene nessa coragem estóica e incoercível, no heroísmo soberano e forte dos nossos rudes patrícios transviados e cada vez mais acredito que a mais bela vitória, a conquista real consistirá no incorporá-los, amanhã, em breve, definitivamente, à nossa existência política. (2003, p. 108).

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Já quase no final do texto escrito no mesmo dia, um novo trecho reforça o heroísmo do sertanejo e tira parte da pompa que o povo do Sudeste atribuía ao Exército: Às 10 horas e 52 minutos novos estampidos abalaram os ares e novamente estremeceu a terra em torno de um punhado de valentes transviados; novas bombas de dinamite derramaram a devastação e a morte na zona convulsionada em que lutavam os últimos jagunços. E despedaçados pelas explosões fortíssimas que dispartiam em todas as direções os restos das casas destruídas sob os escombros fumegantes, sob um chuveiro de balas, apertados num círculo de baionetas e de incêndios, aquela gente estranha não fraqueou sequer na resistência. (2003, p. 115).

E então tece um comentário carregado de humanização, mostrando não heroísmo, mas deficiências do lado do Exército: quase ao final dessa mesma matéria, o correspondente diria que “a verdade é que ninguém poderia prever uma resistência de tal ordem.” (2003, p. 117) Com o personagem principal desta história, Antônio Conselheiro, como já se disse, Euclides não teve nenhum contato pessoal. Muito embora o considere um louco (CUNHA, 2002, p. 256), o autor tenta mostrar ao leitor as várias facetas do personagem, como se espera num processo de humanização: Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com esse papel de delegado dos céus. Não foi além. Era o servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, arrebatado por aquela ideia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível. (2003, p. 256)

Em quase 40 páginas seguintes, Cunha fará um perfil detalhado do Conselheiro, explicando suas origens, peregrinações e reações que causara. A história do líder de Canudos, em muito, acabará gerando uma identificação em Euclides no momento da produção de “Os Sertões”, uma

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vez que, assim como seu personagem, ele enfrentava problemas amorosos. Conselheiro e Cunha foram traídos pelas esposas. Essa identificação e semelhança é, inclusive, sugerida por vários críticos como uma das razões para a pouca existência de personagens femininos em “Os Sertões”. Às poucas mulheres retratadas, cabe uma visão extremamente negativa, reproduzida até mesmo em imagens de santas descritas por Cunha. Ele diz, por exemplo, sobre a morte de uma seguidora de Conselheiro: “aquela mulher, aquele demônio de anáguas, aquela bruxa agourentando a vitória próxima – foi degolada...” (2002, p. 733). Voz Autoral Reportagens jornalísticas em formato literário levam também a uma humanização do repórter. Ele passa a ser considerado como parte de todo o processo, principalmente porque o jornalismo literário reconhece a inexistência da objetividade e da imparcialidade. Por vezes, o repórter será, inclusive, personagem, narrando suas dificuldades e percepções, o que também traz características sobre o fato que está reportando. Sims (1996) entende que a voz autoral é tão importante como ferramenta informativa quanto à ambientação de um acontecimento. Em “Os Sertões”, Euclides da Cunha não se posiciona em primeira pessoa, mas as colocações feitas por ele no “Diário”, implicitamente durante sua narrativa, indicam que essa característica também é bastante recorrente na obra. Sem dúvida, o principal exemplo dessas percepções e da participação do autor no processo de recontar a história de Canudos está no final do livro, ao narrar os derradeiros momentos do conflito, o que o faz expressar certa revolta contra o que presenciara: Canudos não se rendeu. Exemplo único de toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados (2002, p. 778)4.

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A visão de Euclides é de alguém que não esteve até os últimos momentos imerso na realidade da guerra. Ele deixou Canudos três dias antes do seu final, acometido por febre alta.

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A frase que encerra o livro é também um exemplo desse posicionamento. Diz Euclides: “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades... (2002, p. 781). No trecho, o autor, ironicamente, refere-se ao psiquiatra inglês que defendia uma abordagem científica dos fenômenos mentais. Estilo Nesse processo de humanização também do repórter entra em pauta outra característica básica do jornalismo literário: o estilo. Colocando sua âncora na realidade, o jornalista diferencia seu texto criando recursos e emprestando da narrativa ficcional estratégias como o suspense, a descrição detalhada de fatos, a reprodução de diálogos e até o fluxo de consciência. Como na ficção, não há uma regra sobre como narrar. O importante é ajustar o texto para causar impacto e prender a atenção do leitor. A primeira das escolhas de Euclides para narrar é, justamente, o hibridismo discursivo (história, geografia, antropologia, ciência, filosofia, jornalismo...), que permite tantas leituras e interpretações para “Os Sertões”. A obra também demonstra toda a preocupação do autor com o vernáculo, numa linguagem que é exemplo de barroquismo na literatura do início do século 20. Como prova disso, pode-se citar o fato de que a obra é construída em cima de antíteses: o belo se contrapõe ao feio, o paraíso ao inferno. A seca vem alternada com a chuva, a aridez com a exuberância e a floresta com o deserto. Além disso, sua escrita é cheia de paradoxos, como o já citado “Hércules-Quasímodo” (p. 207) ou então “tumulto disciplinado” (p. 305), ao descrever a multidão que se formava para ouvir os ensinamentos do Conselheiro, e “mendigos fartos” (p. 101), para se referir aos moradores de Monte Santo. A ironia será também outro recurso bastante utilizado na forma euclidiana de narrar. Isso aparece, por exemplo, no momento em que é encontrado o corpo de Antônio Conselheiro, já em estado de decomposição: Desenterram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa - único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! - faziam-na mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindose a uma massa angulhenta de tecidos decompostos. Fotografaram-na depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade:

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importava que o país se convencesse bem de que estava afinal extinto aquele terribilíssimo antagonista. (2002, p. 780)

A título de informação: ao que se sabe, o Conselheiro não deve ter morrido por tiros, mas provavelmente de diarreia. A cabeça do líder messiânico foi enviada ao médico Raimundo Nina Rodrigues, um respeitado discípulo das teses deterministas e evolucionistas. Em sua análise, ele buscou na medida do crânio do Conselheiro informações que confirmassem a tese de que os males psicológicos poderiam ser explicados por anormalidades físicas. Contra as expectativas, ele teve de atestar que o líder não apresentava nada, a partir de suas bases teóricas, que indicasse sinais de loucura. Interessante é lembrar que, apesar de optar pelo rebuscamento da linguagem, que também se nota na utilização de uma sintaxe marcada por hipérbatos, Euclides da Cunha, como outros escritores do período, repudira em textos anteriores às formas barrocas. Influenciado pelo determinismo, Euclides da Cunha produziu uma obra marcada por rígidos padrões. A terceira parte tem a mesma quantidade de páginas que as duas primeiras somadas. De certo modo, essa preocupação com a forma acaba por distanciar muitos leitores de hoje da obra, principalmente na primeira parte, em que a quase ausência de personagens e de ação faz com que, facilmente, o leitor comum perca a atração pelas explicações detalhadas sobre a geografia nordestina. Numa estratégia bastante utilizada pelos jornalistas literários de hoje, Euclides poderia integrar essa parte da narrativa às outras duas, fazendo cortes nas cenas, para oferecer ao leitor um panorama mais detalhado do cenário. Essa reflexão, obviamente, não tira nenhum mérito de “Os Sertões”, que deve ser lida de forma contextual, até para que se evite classificá-la como uma abordagem preconceituosa, como tantas vezes já foi feita. Precisão de Dados e Informações Característica básica do jornalismo, a fidelidade e a precisão de dados e informações não devem ficar de fora das abordagens da realidade na perspectiva do jornalismo literário. Assim, o repórter deve ter em mente a busca de informações checadas e confiáveis que vão lhe assegurar uma narrativa centrada em fatos e não em invenções. Além disso, o uso de

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dados como números e estatísticas oficiais, quando bem colocados no texto, sem que faça o leitor perder o interesse, confere-lhe credibilidade. A primeira parte de “Os Sertões” é, inteira, um exemplo de precisão de dados. Exercício profundo de pesquisa, permite uma ampla percepção do que é a região onde ocorrerá toda a história narrada. Além disso, por todo o livro, Euclides faz questão de indicar datas dos eventos, locais e quantificar informações, como ocorre neste trecho, quase no final de “A Luta”: “Caiu o arraial a 5 [de outubro]. No dia 6, acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas” (2002, p. 779). Antes disso, cada batalha é narrada com precisão, informando data, número de mortes, soldados envolvidos e os incidentes. Uso de símbolos e metáforas Como já disse aqui, a principal característica do jornalismo literário que lhe permite o epíteto que lhe ajuda a nomear é a linguagem. Portanto, não faltam nesses textos exemplos de conotação, pensadas estrategicamente e com uma preocupação estilística, como forma também de o autor mostrar o seu estilo. Entre os trechos já citados aqui da obra, um bom exemplo está na metáfora criada ao se referir aos trapos tirados das roupas dos soldados pelos mandacarus do sertão, que faz com que Euclides compare à cena a uma florada. Para ilustrar, segue mais um trecho, retirado do capítulo “Higrômetros singulares”, de “A Terra”, em que o autor usa um eufemismo tradicionalmente utilizado em referência à morte, ao mesmo tempo em que consegue produzir uma ironia: “O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava... Havia três meses” (2002, p. 106). O próprio título desse capítulo já é uma metáfora. “Higrômetro”, em sentido literal, é nome dado a um instrumento usado para medir a umidade do ar. No livro, é o nome como Euclides se refere à vegetação do Sertão. Num outro trecho, ao narrar uma vaquejada, o autor consegue produzir um exemplo de aliteração, conferindo ao trecho certa sonoplastia, talvez não perceptível numa leitura breve, mas marcante num olhar mais detalhista:

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Fabiano ORMANEZE

De repente estruge ao lado um estrídulo tropel de cascos sobre pedras, um estrépito de galhos estalando, um estalar de chifres embatendo; tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; rompe, a súbitas, na clareira, embolada, uma ponta de gado; e, logo após, sobre o cavalo que estava esbarrado, o vaqueiro, tenso nos estribos (2002, p. 185, grifos nossos)

No trecho, as consoantes oclusivas5, utilizadas em praticamente todas as palavras, reproduzem o barulho que se ouvia com o atrito entre as patas dos animais e o solo. Além disso, o autor reproduz o som de um galho rompendo-se ao repetir os fonemas “lh” e “l”, inclusive repetindo o verbo “estalar” em duas formas verbais. Digressão Se tanto o jornalismo literário quanto o livro-reportagem, suporte no qual ele mais facilmente se concretiza, prezam pela profundidade da abordagem sobre o acontecimento ou o personagem, surge então o sétimo pilar na visão de Sims (1996). A digressão, segundo esse teórico, pode ser compreendida como a busca por uma nova possibilidade de tratar o assunto central, afastando-se da narrativa do fato ou do personagem retratado e buscando, inclusive em outras áreas do conhecimento, informações complementares, que contextualizem e expliquem fatos ou atitudes. Em toda a narrativa de “Os Sertões” percebe-se a busca do autor por explicações deterministas para tudo o que acontece com o homem nordestino. Fora isso, o autor faz vários apartes, como acontece neste excerto sobre o umbuzeiro: “é a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja” (2002, p. 128). Veja: o trecho não é essencial para a fluência da narrativa, mas ajuda a caracterizar o ambiente em que ela se desenrola, exemplificando, assim, o que Sims (1996) compreende como digressão. Mais um exemplo: em outra passagem, desta vez de “A Luta”, Euclides faz uma pausa na narração das investidas do Exército para 5

As consoantes oclusivas são aquelas em que os articuladores produzem uma obstrução completa da passagem da corrente de ar através da boca. Quanto aos pontos de articulação, elas se dividem em bilabiais (/p/ e /b/), dentais ou alveolares (/t/ e /d/) e velares (/k/ e /g/).

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Pistas para decifrar o enigma: uma análise de Os Sertões a partir do jornalismo literário

mostrar o que os jornais da época diziam sobre Canudos. Sob o subtítulo “Canudos – Uma Diátese” e depois “Empastelamento de Jornais Monárquicos”, ele recupera trechos de periódicos como a “Gazeta da Tarde” e “Liberdade” para ajudar na contextualização. Para encerrar, sem terminar... “Os Sertões” são o tipo de obra que sempre permite uma nova leitura. Isso porque a obra nasceu, naturalmente, de uma grande digressão do autor por diversos campos do conhecimento. Mesmo do ponto de vista da literatura, do jornalismo ou do jornalismo literário, a obra ainda pode ser outras dezenas de vezes explorada. A partir da discussão proposta neste texto, é possível concluir que a obra de Euclides se enquadra perfeitamente naquilo que se chama jornalismo literário e, para isso, é possível utilizar ao menos duas bases teóricas: uma oriunda do próprio estudo do jornalismo e outra da teoria da literatura. Da mesma forma, é possível situar a obra como o primeiro livro-reportagem produzido no Brasil, um caminho que hoje não deixa de ganhar novos adeptos. “Os Sertões” podem não ter virado mar, como esperava o Conselheiro, mas não resta dúvida de que a sua narrativa está desbravando muitas águas.

Referências CUNHA, Euclides. Os Sertões (edição comentada por Leopoldo Bernucci). São Paulo: Imprensa Oficial e Ateliê Editorial, 2002. ______. Diário de uma expedição. São Paulo: Martin Claret, 2003. FALASCHI, Celso. Identificação de narrativas e características criativas no jornalismo impresso diário brasileiro. Tese (doutorado). Faculdade de Psicologia. PUC-Campinas, 2005. GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora: a Guerra de Canudos nos jornais. São Paulo: Ática, 1974. LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas – o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 4. ed. São Paulo: Manole. SIMS, Norman; KRAMER, Marker (orgs.). Literary Journalism. Nova York: Ballatine Books, 1996.

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (1) - 2009 – p.55-58

CULTURA “MIDIÓTICA” E SOCIEDADE “MIDÍOCRE” “Mediotic” and “mediocre” society Juremir Machado da SILVA1

RESUMO: Este artigo discute uma questão da sociologia da cultura moderna, a das relações entre a mídia, a cultura e a sociedade contemporânea. PALAVRAS-CHAVE: mídia; cultura; sociedade. ABSTRACT: This article discusses an issue in modern culture sociology, the one between media, culture and contemporary society. KEYWORDS: media; culture; society.

A questão da sociologia da cultura moderna era: que questão estabelecer em relação aos meios de comunicação? (MCLUHAN, 1969) A questão passou a ser: o que a mídia faz de nós? Depois, com a sofisticação das análises, a questão evoluiu para: que fazemos da mídia? Mais tarde, com mais um pouco de refinamento e de complexidade, a questão tornouse: que fazemos com o que a mídia faz de nós? Aos saltos, passamos da agulha hipodérmica ao ecstasy, do funcionalismo ao pós-estruturalismo e da ilusão ao simulacro. De pergunta em pergunta, passamos da prémodernidade à hipermodernidade e voltamos ao ponto inicial: quem faz o quê com quem? (SILVA, 2000) Entre o ovo e a galinha, estamos nos transgênicos midiáticos. Mas a pergunta continua: quem influencia quem? A mídia manipula-nos e nos impõe o que deseja ou apenas atende aos nossos desejos? A publicidade, suprema tecnologia do imaginário, cria necessidades ou cria para atender às nossas necessidades? Para uns, o supremo cinismo publicitário consiste em nos convencer de que somente satisfaz os nossos desejos, tornandonos cúmplices da sua articulação ou membros da comunidade da “servidão voluntária”. Para outros, nosso maior cinismo está justamente em pedir sempre mais e depois condenar o garçom por ter-nos servido 1

PUC-RS.


Juremir Machado da SILVA

fielmente, como o canceroso que processa a indústria tabagista por ter-lhe dado o que sempre pediu. Quem é o culpado? Quem é o responsável? Há quem prefira o caminho do meio: não há culpados. Umberto Eco pensou ter resolvido a questão ao dizer assim: “A falha está em formular o problema nestes termos: é bom ou é ruim que exista a cultura de massa?”. E ao repor à questão supostamente da maneira certa: “Do momento em que a presente situação de uma sociedade industrial torna ineliminável aquele tipo de relação comunicativa conhecido como conjunto dos meios de massa, qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais?” (Eco, 1979, p. 50). A questão, então, faz eco para silenciar o intelectual contente com sua descoberta: o que é um valor cultural? Como dizem os jornalistas — relativistas por conveniência e absolutistas por ignorância — o que é bom para uns não é bom para outros. Big Brother é um valor cultural? Novela das oito é valor cultural? Histórias em quadrinhos são valores culturais? Faustão é cultura? Cultura de massa é cultura? Quem diz o que é cultura? Na hipermodernidade — época da passagem ao hiper-espetacular, em que o acontecimento só interessa como evento — a questão é: podemos, sem cair no elitismo ou no populismo, estabelecer padrões de qualidade e separar o lixo do luxo?2 Numa sociedade em que o cliente é soberano, e a satisfação do contemplador de imagem, uma obrigação da mídia, quem pode definir como lixo um produto à venda? Com que critérios? Em nome de quê? Na “democracia radical”, denunciada por Jean Baudrillard (2004), em que todos têm direito à fama sem ter de pagar com o peso de alguma realização, a grande mágica reside exatamente na impossibilidade da crítica. Toda crítica torna-se um instrumento de classe, uma vontade de distinção, uma ponta de ressentimento, uma vontade de poder, uma agressão ao desejo do consumidor. A questão é: de que ponto de vista alguém critica? Ou: que ponto avista a crítica que tenta deslegitimar o 2

Sugerimos leituras, dentre tantas, para a reflexão sobre as questões aqui suscitadas: ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. La dialectique de la raison, 1947, Paris : Gallimard, 1974. DEBORD, Guy. La société du spectacle, 1967, Paris : Gallimard, 1992. LYOTARD, Jean-François. O Pós-moderno, Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. MORIN, Edgar. O Método 3 - conhecimento do conhecimento, Porto Alegre: Sulina, 1999. SILVA, Juremir Machado. As Tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003.

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Cultura “midiótica” e sociedade “midíocre”

gosto do outro? A questão passa a ser: ainda existem bom e mau gosto? A resposta hipermoderna é: mau é o gosto do outro. A cultura midiática morreu. Viva a cultura “midiótica”! O homem não é cordial nem simbiótico, tampouco digital ou virtual. Viva o homem “midíocre”! Viva esse homem para quem o lixo é apenas uma visão de mundo, não necessariamente a pior, uma entre outras, nem mais nem menos legítima. A questão da legitimidade é uma falsa questão. Paulo Coelho é ruim? Ruim para quem? Dan Brown é bom? Bom para quem? A questão, já faz tempo, converteu-se em liberação: quem critica critica em nome de quê? Depois da crítica, a autocrítica. Depois da autocrítica, o vazio. O jornalismo, agora, tem quatro funções: 1) entreter; 2) narrar espetacularmente os acontecimentos mais importantes do dia, transformando-os em eventos; 3) ser agenda e diário das celebridades; 4) manter o seu público ocupado. A cultura “midiótica” precisa manter o homem “midíocre” na ilusão de que participa (interatividade), aprende sentindo prazer (pedagogia lúdica), ocupa-se com coisas úteis (pragmatismo de circunstância ou terapia ocupacional), navega no espaço da verdade (imaginário turístico, biografias, romances legitimados pelas experiências do autor). Tudo isso tem um nome: entretenimento. Na sociedade “midíocre” só o entretenimento é nobre e essencial. A descoberta da vacina contra Aids não daria a um cientista um décimo da fortuna de Ronaldinho Gaúcho nem a admiração provocada por dois dribles de Zidane. Na verdade, não lhe daria sequer a fama de um Grafite. As celebridades — entidades máximas da cultura “midiótica” — são os profissionais do entretenimento: artistas, jogadores de futebol, atletas, pilotos, etc. A sociedade só valoriza o que lhe é decisivo. Por mais que a ciência salve vida, ela não salva do tédio nem proporciona material ao alcance da sabedoria de todos. Só o espetáculo faz isso. Pode-se debater futebol com autoridade. Trata-se do saber e da fruição ao alcance de todos. O homem “midíocre” tem os seus próprios gênios. Einstein não levantaria um estádio de futebol. Watson e Crick não teriam milhões de amigos no orkut. Um passe lateral de Beckham vale mais do que uma aterrissagem em Marte. Nisso não vai nenhum lamento. Nada de nostalgia. Apenas uma constatação. A questão é: 57


Juremir Machado da SILVA

— Ratinho é lixo? — Faustão é lixo? — Ana Maria Braga é lixo? — Jô Soares é lixo? — Hebe Camargo é lixo? Em outras perguntas: temos como estabelecer critérios de qualidade? Como dizer o que é ruim e o que é bom? Na vulgata da mídia, bom é o que vende e o que vende é bom. Jornalista não admira o talento de alguém, mas o sucesso. Mesmo que se pudesse objetivamente separar o bom e o ruim na cultura, por que alguém deveria preferir o “bom” ao que lhe dá prazer? Já há quem defenda o Nobel para Paulo Coelho. Afinal, por que Chico Buarque seria melhor do que Roberto Carlos? Por que Machado de Assis seria melhor que Paulo Coelho? Por que o fashion deveria ser mais importante do que o brega? Parece que epistemologicamente a única resposta irrefutável a todas essas perguntas é: porque sim.

Referências BAUDRILLARD, Jean. Le Pacte de lucidité, l’intelligence du mal. Paris, Galilée, 2004. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo, Perspectiva, 1979. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem . São Paulo, Cultrix, 1969. SILVA, Juremir Machado. A Miséria do jornalismo brasileiro. Petrópolis, Vozes, 2000.

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (1) - 2009 – p.59-82

ENTRE AS MARGENS A AÇÃO DIRETA SE MARGINALIZA NO EXÓTICO1 Between the margins direct action gets stray in the exotic Valéria Aroeira GARCIA2 Renata Sieiro FERNANDES3 RESUMO: As reflexões contidas neste artigo buscam conhecer como vem sendo construída a identidade da educação não-formal no Brasil, como vem sendo criado o conceito de educação não-formal a partir das produções elaboradas em nosso país, do que pensam aqueles que vivenciam o cotidiano em programas de educação não-formal e como a mídia vem compreendendo esse conceito e divulgando-o. Fazendo um paralelo com o filme “Nascidos em bordéis” (1999), refletimos sobre o papel e a ação dos atores dessas propostas, sejam eles e elas educadores ou não. A dura realidade de muitas crianças e jovens que vivem em países da periferia do capitalismo e a omissão do Estado para as facetas dessa realidade faz com que aqueles que têm como opção atuar, profissionalmente ou não, com essa parcela da população, vejam-se imbuídos de inúmeras e pesadas responsabilidades, quase como uma ação salvadora. PALAVRAS-CHAVE: educação não-formal; mídia; formação de educadores. ABSTRACT: The reflections present in this article aim to understand the way by which non-formal education concept has been created starting from everyday experiences in non-formal education programs and how media has been perceiving and making public such concept. Tracing a parallel to Born Into Brothels: Calcutta's Red Light Kids. India / EUA 2004, we observe and discuss roles and actions of personnel evolved in the mentioned educational concept. The hard reality of a huge group of children living in peripheral capitalism countries and the omission of the State facing the social reality, throw professional and non-professionals 1

Grande parte das reflexões que constam deste artigo é objeto da tese de Doutoramento de Valéria Aroeira Garcia, defendida em 2009, sob orientação da Profa. Dra. Olga Rodrigues de Moraes von Simson, na Faculdade de Educação, UNICAMP, SP, intitulada “O acontecimento da educação não-formal”. 2 Pedagoga e supervisora da rede pública municipal de Educação de Campinas, SP. 3 Pedagoga, bolsista Prodoc/Capes (2009-2011) na Faculdade de Educação, UNICAMP, SP.


Valéria Aroeira GARCIA & Renata Sieiro FERNANDES

acting in such areas to a heavy duty initiative. Such innumerous responsibilities become almost a salvation experience. KEYWORDS: non-formal education; media; education for educators.

Um filme O cinema como um veículo de mídia contador de histórias, pode servir como um “espaço” imaginal de projeção por trazer indícios do real em sua narrativa ficcional. Por esse motivo, podemos tomá-lo como um anteparo em que nossas angústias, desejos, necessidades são projetados ao serem provocados pelas imagens em ritmos de movimento diversos, pela música, falas, diálogos, silêncios, que acontecem em cada cena e que são personalizados pelas personagens-atores. O diretor e sua equipe criam e montam situações que atingem os espectadores por diferentes sentidos e, embora tenham alto grau de intencionalidade no que querem disparar ou contar, outras leituras são possíveis por tratar-se de uma linguagem polissêmica. Sendo assim, tomaremos um filme documentário como mote para apresentar alguns questionamentos e reflexões acerca de um assunto que nos é bastante familiar há algum tempo: as ações educativas praticadas em espaços de educação não-formal e os discursos enunciados por seus atores, especialmente, os adultos-educadores que põem em prática essas ações nas relações estabelecidas com os grupos de trabalho e que se aliam aos discursos das instituições que representam. Tais instituições, na atualidade, sendo denominadas por organizações da sociedade civil: projetos sociais de origem religiosa, ONGs, OSCs, OSCIPs, fundações etc. O filme documentário escolhido permite que façamos essa leitura contextualizada – entre outras possíveis – por trazer elementos que a justificam. O fato de contar uma história que se passa em um país longe do Brasil, com cultura bastante peculiar pela ênfase na religiosidade de seu povo, a Índia, mas por compartilhar de uma política econômica capitalista, altamente excludente, facilita o exercício do estranhamento e do distanciamento, que requereria esforços de outra monta se optássemos por um filme passado no Brasil, em que a familiaridade com as situações poderia anuviar os sentidos, especialmente a reflexão. 60


Entre as margens a ação direta se marginaliza no exótico

“Nascidos em bordéis” (1999), dirigido por Ross Kaufmann e Zana Briski, é o documentário em foco, ganhador do prêmio Oscar, filmado no bairro da Luz Vermelha, em Calcutá, Índia. O foco do documentário é mostrar a saga heróica de uma inglesa, Zana, fotógrafa, que vai para lá a fim de fotografar as mulheres prostitutas desse bairro, mas que, com o passar do tempo muda o foco para os/as filhos/as dessas mulheres. Sua missão é salvacionista, pessoal, voluntária e solitária, pois ela se empenha em proporcionar, pela via da arte, o sonho das crianças por um destino diferente ao que estão fadados. Ela declara: “não sou assistente social e nem professora”, e sim, alguém da sociedade civil, uma educadora nata que se preocupa em “fazer a sua parte” em prol da melhoria de vida de alguns poucos que consegue levar consigo. O seu projeto político de formação desses jovens, meninos e meninas é fazê-los ingressar em uma escola internato ou fundação de educação formal estrangeira na Índia, ou apresentá-los em outros países como formas de desejarem outras vidas para si, tirando-os da “marginalidade”, de uma vida de pobreza, de um contexto cultural particular – no qual ao papel feminino cabe oferecer sexo, trabalho doméstico, cuidar das crianças e irmãos menores e ao papel masculino cabe buscar sexo, ser rufião, cobrar, servir bebidas alcoólicas -, de famílias numerosas e com escassas condições de oferecer cuidados e sonhos. Na sua saga, é ela quem providencia documentos e fotos, coleta, encaminha, procura escola, acompanha, divulga, expõe as fotos, investe recursos que consegue em parcerias com conhecidos. Ao lado dos dramas pessoais familiares, vão aparecendo as perversidades de um país capitalista e segregacionisa. As escolas formais indianas são perversamente burocráticas, sofisticadamente preconceituosas e excludentes (dizem “não” a filhos de prostitutas e portadores de HIV, recomendam que só conseguem ou mantêm a vaga “estudando bastante e tirando boas notas”, não aos criminosos que vendem bebidas ilegais) Não fazendo uso de vias públicas e, sim, optando pelo caminho dos projetos sócioeducativos do “terceiro setor”, Zana monta uma ONG chamada “Kids with câmeras”, para arrecadar fundos para a manutenção dos jovens nas escolas fora da Índia e dentro dela e para construir um refúgio para as crianças em terreno já conseguido. Os limites e alcances de suas ações são restritos, pois para tantas crianças e jovens “salvos” há 61


Valéria Aroeira GARCIA & Renata Sieiro FERNANDES

inúmeros outros que ficam para trás aceitando ou querendo ser “salvas” pelas vias que ela possibilita. Outros permanecem com seus familiares no bairro da Luz Vermelha, o que pode ser entendido como o desejo por não ter que fazer a opção pela família ou pela escola, pois esse é o diferencial daqueles que escolhem sair do bairro. O filme documentário, ao emocionar e comover o público e fazê-lo se solidarizar com a causa, contribui para enfatizar os discursos e imagens salvacionistas, benevolentes, bem intencionadas, mesmo que restritas em seus efeitos e sem visar a políticas públicas que provoquem mudanças estruturais na sociedade para a parcela mais necessitada. Ao focar os esforços sobre-humanos de alguns, estimulam a crença e alimentam projetos políticos de formação – institucionais ou não – que passam ao largo de reflexões mais engajadas e críticas e das lutas e reivindicações solidárias que cobrem do Estado a garantia, a manutenção e as condições para uma vida digna e com maiores alternativas e alcances. Depois do filme documentário, servindo como anúncio das discussões que virão, apresentamos alguns dados de projetos de educação não-formal no Brasil, que corroboram e contribuem com as reflexões sobre o papel da mídia, da educação – formal e não-formal -, dos educadores, dos jovens em formação. Os papéis dos educadores e o lugar da educação não-formal Um dos pontos de interesse da pesquisa de Doutorado, que forneceu dados para algumas das análises aqui abordadas, foi conhecer e analisar como os diferentes responsáveis pelas várias propostas de atuação educacional compreendem os papéis que desempenham nesse cenário e como ocupam esse “lugar” denominado educação não-formal. O caminho percorrido partiu do levantamento e da análise da bibliografia existente sobre o tema, de pesquisa de campo, de entrevistas realizadas com profissionais de algumas instituições e de análises sobre como a mídia vem interpretando e divulgando esse novo campo teórico e profissional. Ao longo dos anos de 2000 a 2009 da investigação, foram pesquisados: um projeto originário de uma concepção religiosa que se transformou em uma ONG (Projeto Gente Nova – Campinas – SP); um outro proposto pelo poder público municipal (Centro Sol – Americana – SP) e um terceiro de origem comunitária, sendo realizado por um grupo 62


Entre as margens a ação direta se marginaliza no exótico

de moradores da periferia de Campinas (Casa de Cultura Tainã, Campinas, SP) – que não participará deste artigo. A preocupação em apontar a atuação dos profissionais no campo da educação não-formal é por acreditarmos ser importante sinalizar que tanto o trabalho cotidiano desses profissionais, o oferecimento de "cursos" de formação para eles, como também as pesquisas que discutem essa atuação profissional, vêm sendo realizados, muitas vezes, calcados na prática, sendo esta uma esfera da criação do conceito de educação não-formal. O que, mais uma vez, mostra o movimento constituinte dessa especificidade de educação que, geralmente se cria "respondendo" às necessidades mais imediatas. Nessas observações foram realizadas entrevistas com pessoas de diferentes níveis hierárquicos, objetivando conhecer como percebem e como concebem o espaço no qual atuam; como se dão as práticas nessas instituições (lembrando o contraponto entre a prática construída na oralidade e por experimentos em relação aos planejamentos registrados); quem são e como se dão a seleção e a formação dos educadores. As entrevistas com pessoas de diferentes níveis da hierarquia seguiram roteiros específicos, com uma base comum, considerando aspectos particulares de cada função nas diferentes instituições. No presente artigo, os entrevistados serão identificados pela função que exercem na instituição, pelo gênero, formação educacional, faixa etária e não pelo nome. Essa opção se dá tanto para preservar os entrevistados, uma vez que alguns não queriam ser identificados, como também por entendermos ser bastante importante que o reconhecimento da função exercida na instituição, o gênero, a formação educacional e a idade são dados importantes para buscarmos entender a compreensão que cada um desses profissionais tem da prática que realiza e como essa concepção interfere na visão que se constitui do campo da educação nãoformal. Em 2002, quando se realizou a pesquisa de campo foram entrevistados: nove profissionais do Progen, sendo sete educadores, uma técnica e uma coordenadora; nove pessoas entre profissionais e estagiários do Centro Sol, sendo seis estagiários/as educadores/as, uma educadora, um guarda e uma supervisora. Dos depoentes do Progen, apenas um era homem e exercia a função de educador; no Centro Sol, havia dois homens, um atuando como educador e outro, como guarda. 63


Valéria Aroeira GARCIA & Renata Sieiro FERNANDES

Tanto os estagiários vinculados ao Centro Sol quanto os educadores do Progen tinham entre 19 e 30 anos, assim como a terapeuta ocupacional. Já as pessoas que ocupavam o cargo de coordenação, supervisão e o guarda tinham entre 30 e 40 anos e a cozinheira, acima de 40 anos. O momento das entrevistas As entrevistas foram realizadas seguindo um roteiro que tinha o papel de um eixo condutor, mas os depoentes tinham liberdade para introduzir outros assuntos e se aprofundar mais ou menos nos “temas” escolhidos para serem abordados. As falas dos depoentes foram analisadas e dialogaram com a bibliografia teórica de ancoragem. Os assuntos elencados foram surgindo, em um primeiro momento, na audição das entrevistas e, posteriormente, de uma maneira mais ordenada, à medida que as transcrições eram realizadas. Nosso interesse era identificar o conhecimento e a compreensão que as instituições tinham da educação não-formal, como se reconheciam na atuação em ações no campo da educação não-formal. Ao trabalharmos com as entrevistas, percebemos que os educadores se sentem mais seguros do que entendem por educação não-formal ao falarem sobre a sua prática, sobre como constroem o seu dia-a-dia, dialogando com as propostas da instituição, com os frequentadores e utilizando-se de seus conhecimentos e habilidades para isso. A criação do conceito entrelaçado à prática Em geral os educadores tomaram conhecimento de uma proposta de educação não-formal e de que essa pudesse ser uma motivação para sua atuação profissional, de forma ocasional. Acreditamos que isso se dê pelo fato de ser um campo não muito conhecido e não ser divulgado profissionalmente, e também por não haver uma formação que preveja essa possibilidade de atuação. O conhecimento das ações no campo da educação não-formal aparece como acaso, misturado com uma tentativa de experimentar algo diferente enquanto não aparece um trabalho de fato. A sensação é de que não é um campo profissional. 64


Entre as margens a ação direta se marginaliza no exótico

Como característica importante para assumir a função de educador na educação não-formal, os entrevistados apontam como requisito principal gostar do que se faz, amar sua ação e o trabalho com crianças e jovens. Além de um caráter missionário ante a possibilidade de realizar algo pelo bem comum. O profissionalismo é misturado com a vontade e a satisfação em ajudar. Em geral, esse é o fator que motivou a atuação profissional dos entrevistados com crianças e jovens. Em alguns depoimentos observamos uma militância nessa atuação, fato citado em outras pesquisas que focalizaram a educação de crianças e de jovens fora do período e do espaço escolar. O envolvimento e a motivação militante serão relembrados aqui com o intuito de analisarmos o histórico desses educadores e o que os motivou a atuar nesse campo. [...] é difícil esse trabalho, mas é muito importante o Projeto pra gente poder fazer alguma coisa pelo futuro do país, porque se a gente não investir nessas crianças, quem vai investir? E a sociedade cobra muito isso da gente, como se fosse obrigação só daqui do Centro Sol, da Prefeitura fazê(r) isso e tirá(r) os “malandrinhos” da rua porque (es)tão atrapalhando, estraga(m) a visão da cidade, alguma coisa assim. (Educadora Estagiária – serviço social – Centro Sol).

Ao mesmo tempo em que existe um olhar crítico sobre a cobrança que a sociedade mais ampla faz em relação às instituições que atuam com crianças e jovens, também existe uma postura romântica e salvacionista de que alguém tem que fazer algo por essas crianças. Outra situação é em relação ao tamanho da responsabilidade que essas instituições assumem: além de atenderem às crianças e jovens, costumeiramente entram em conflito com as famílias ou com quem detém a guarda da criança no intuito de que a melhor opção educacional aconteça. É mais que um trabalho, é uma militância pela causa da criança e do jovem que vivem situações de descuido e de conflito. Todas essas instâncias se misturam, não é nem só uma coisa, e nem só outra. Essa relação aparece nos encaminhamentos com a família, com a escola, com o Conselho Tutelar, com o encaminhamento profissional... Algumas escolas são (abertas à parceria com a instituição), outras não, umas me dão todas as informações necessárias, em outras, (vo)cê liga eles já metralham a criança sem pará(r) prá pensá(r) se é 65


Valéria Aroeira GARCIA & Renata Sieiro FERNANDES

uma criança, um adolescente (inaudível). Outras só responde(m) o que a gente (es)tá falando mas como se você (es)tivesse lá estorvando, enchendo o saco, (inaudível), então eles não gostam. Não que eles se negam(guem) a dar informação, mas eles fazem de tudo prá deixá(r) o mais difícil possível [...] é prá desistir.[...] o Projeto visa atendê(r) essas crianças, muitas delas não estão na escola, eu não sei o que acontece, eles não freqüentam a escola. Através do Projeto, a gente tenta (inaudível), então a gente vai fortalecendo isso. Quando eles decidem, falam que querem, então a gente vai prá ajudar, daí eu vô(u), ligo, faço transferência, tenho que fazer transferência [...],se (es)tá difícil ligo pro Conselho Tutelar, eles já dão um jeitinho. (Educadora Estagiária – serviço social – Centro Sol).

Mais uma vez aparece uma característica da função dessas educadoras na instituição: a mescla de ações – muitas vezes têm que cuidar de uma série de coisas, muitas delas imprevisíveis, pois depende do nível institucional com o qual vão se relacionar. Por vezes parece que problemáticas importantes se decidem, não pautadas em protocolos de encaminhamentos conhecidos e praticados pelos órgãos que lidam com situações semelhantes, mas baseados nas relações cotidianas interpessoais: com algumas escolas a relação é boa, com outras não, depende da diretora. Em meio a tudo isso, a instituição, através das educadoras, tem que (aceita como sendo o seu papel) eleger quem precisa de cesta básica, receber passe, ouvir a história de vida da criança (e em geral se sensibilizam com ela), fazer matrícula na escola, pedir transferência escolar, arrumar documentos das crianças e jovens, conversar e orientar a família, procurar o Conselho Tutelar para encaminhar casos de maus tratos e violência doméstica, de envolvimento com drogas – seja por parte das crianças e jovens ou de seus pais e familiares. Enfim, o papel da instituição é diversificado, bastante difícil e ainda muito sobrecarregado de encaminhamentos complicados para os quais nem sempre há clareza de procedimentos. O compromisso em mostrar às crianças e jovens das classes populares que é possível uma vida fora do chamado mundo marginal, distante das drogas e, algumas vezes, distinta daquela que seus pais vivem/viveram, também é bastante comum. Nesse aspecto, há uma proximidade com a atuação militante, mas também misturada com a postura salvacionista e quase missionária de ajudar. 66


Entre as margens a ação direta se marginaliza no exótico

Porque é um trabalho assim, onde você acredita que o mundo pode ser diferente, porque nossas crianças têm condição de ter uma vida melhor, uma outra maneira de viver, de pensar! (Educadora – técnica em contabilidade - Progen).

Em situações específicas, a atuação em uma instituição abriu um horizonte novo e possibilitou o conhecimento e até a surpresa ante uma realidade desconhecida: o descobrimento de que crianças e jovens pobres não são, por conta de sua origem de classe, “naturalmente” ruins ou propensos à marginalidade. O trabalho com crianças e jovens das classes populares possibilitou o reconhecimento de potencialidades, mas, ao mesmo tempo, o preconceito de que as crianças e os jovens das classes populares precisam de incentivos extras ainda está presente nos discursos e vem colado à discussão da possibilidade de essas crianças terem oportunidades. A compreensão da pobreza como carência, não só econômica, é bastante forte. [...] e eu gostei muito de trabalhar com crianças dessa situação [econômica], porque elas têm muito, muito potencial, e eu não sabia disso. Eu mudei totalmente a minha idéia depois de trabalhar com crianças e adolescentes carentes! (Educadora – técnica em contabilidade – Progen). Ah, eu acho muito bom, gratificante pra todos, vamos dizer assim, antes de trabalhar aqui eu não conhecia esse lado, eu conhecia o lado dos guardas chegar gritando, “mão pra cabeça!” [...].Eu não via aquele lado das crianças que precisam. Trabalhando já há um ano e meio eu vi que é super diferente aquilo que a gente vive lá na rua. (Guarda – ensino médio – Centro Sol).

A assistência junto ao trabalho educacional, ao mesmo tempo em que demonstra uma proposta e uma intenção educacional é o tempo todo permeada pela necessidade, vontade e compromisso em ajudar e em mostrar para as crianças, jovens, suas famílias, comunidade e, em geral, para a sociedade mais ampla, que é possível fazer um trabalho diferente, acreditar nas potencialidades e nas capacidades das crianças e jovens das classes populares.

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Valéria Aroeira GARCIA & Renata Sieiro FERNANDES

Como já analisamos, a educação não-formal no Brasil constitui-se a partir de várias áreas, entre elas tanto a da assistência e a da benemerência, quanto aquela que entende essa educação como direito. Essas características estão presentes, portanto, se contradizendo e se complementando nas ações cotidianas de várias instituições e obviamente na formação e concepção dos profissionais que nelas atuam. Presente nessa compreensão e comprometimento das instituições está a crença de que as crianças e jovens têm um grande potencial de crescimento e superação das várias dificuldades que a vida lhes impõe. Por conta dessa crença e do reconhecimento dessas potencialidades vivenciadas por quem está imerso no cotidiano dessas instituições e, paralelamente, nas vidas de várias crianças e jovens, é que advém para muitos educadores, a importância da educação não-formal. Com certeza nós teríamos menos marginais na rua, menos crianças pedindo no sinaleiro, menos crianças na rua, jogadas. Eu acho que o Brasil seria diferente, porque essas crianças têm uma família às vezes problemática. Às vezes a família não tem nem condição de (es)tá(r) com essa criança em casa. Quando ela traz prá cá, aqui é o trabalho acreditando que essa criança possa ser melhor! O Governo deveria (es)tá(r) apoiando mais Projetos como esse. (Educadora – técnica em contabilidade – Progen).

Em relação à importância de ações no campo da educação não-formal para crianças e jovens, a concepção de salvá-los do mundo da marginalidade e das ruas é bastante corrente e faz interface com uma ação caridosa e de cuidado benevolente. Há uma polarização entre a rua e a instituição, como se a rua encarnasse a figura do mal e a instituição a do bem total. Uma crença na importância desse tipo de trabalho pelo fato de que ele tira as crianças e os jovens das ruas. A pergunta que nós fazemos em relação a essa problemática é que se esses programas tiram as crianças das ruas, eles as colocam onde, com quem e fazendo o quê? Esse discurso de tirá-los das ruas é ilusório, pois essas crianças e jovens possuem uma rotina, uma organização e diferentes maneiras de se estruturarem nas relações com uma sociedade mais ampla. Também nesse aspecto chamamos atenção sobre o papel que a mídia vem desempenhando no

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sentido de colaborar com essa concepção, transformando-a numa ideia de senso comum difundida por diferentes reportagens4. E fora também não ficar na rua, onde só aprende coisa que não presta! Aqui não, aqui a gente (es)tá trabalhando o potencial dessa criança; com certeza nós acreditamos que essas crianças vão ser adultos diferentes. (grifo nosso, Educadora – técnica em contabilidade – Progen). [...] principalmente nas comunidades mais pobres, (em) que a violência é maior, tráfico de drogas em toda esquina, matam à toa, então, essas crianças poderia(m) (es)tá(r) tudo na rua, imagina o que eles não estariam fazendo? (Vo)cê vê, são diferentes essas que (es)tão aqui dentro, das crianças que (es)tão lá fora. Eu não sei, parece que elas têm um maior respeito [...]. (grifo nosso, Educadora – magistério – Progen). [...] é um dos projetos da Secretaria (de Assistência Social) então eu vou prá me sentir um pouco útil, porque acho importante a gente ajudar esses meninos, prá eles não ficar(em) por aí! (grifo nosso, Educadora Estagiária – pedagogia – Centro Sol). E o que prende eles aqui? Eu entendo que é toda uma forma do trabalho, a gente dá atenção prá eles, embora eles tenham as regras, mas eles têm atenção. [...] porque na rua tudo pode, na rua não tem limite, a família geralmente é toda esfacelada, também não tem limite. Então acho que é a falta mesmo dessa atenção. (Educadora Estagiária – serviço social – Centro Sol).

Na concepção de educação não-formal dos educadores entrevistados, é bastante presente a visão de que a instituição é que vai salvar e dar todas as oportunidades para as crianças, é ela que vai encaminhar, orientar, além de ser a responsável por tornar as crianças diferentes, melhores do que as outras que lá não estão. Cabe perguntarmos: e se o adolescente escolher não ir? Será que não frequentar significa necessariamente perder para a rua e para outros interesses, como o do crime organizado? Será que as instituições 4

Para maior aprofundamento sobre a influência da mídia na compreensão dos projetos que atuam com educação não-formal, ver Garcia, V. 2005.

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representam a única alternativa para esses jovens? Assim como no documentário, e se a criança escolhe não ir para a única escola possível, que significa ficar longe de sua família? Essa opção de escolha aparece como um fracasso da criança, e não do Estado, que não dá conta de oferecer opções dignas para essas famílias5. O papel da família também é bastante ignorado pela maior parte dos entrevistados. A família, em geral, é mencionada como aquela que já não dá mais conta da educação dos filhos e, portanto, uma família que negligencia a educação de seus filhos. A mídia vem contribuindo bastante para a visão salvacionista em relação aos programas de educação não-formal. As reportagens, em geral, apontam esses projetos como redentores, com o compromisso e a responsabilidade de resgatar essas crianças e jovens do mundo da marginalidade, identificando as instituições como oportunidade única para as crianças e os jovens das classes populares viverem o tempo fora da atividade escolar. Nos depoimentos dos entrevistados, percebemos, também, o fato de que, muitas vezes, a importância dessa especificidade de educação está associada à improbabilidade da família realizar o papel educacional que é esperado dela: a necessidade de um número maior de projetos é associada ao fato de a mãe trabalhar fora, pela ausência, ou quase ausência de membros da família e ao fato de a criança ficar na rua. Ao analisarmos as contribuições sociais para a aceitação da educação não-formal, a inserção da mulher no mercado de trabalho, juntamente ao fato dos familiares residirem longe e por conta disso não constituírem um grupo de proteção e cuidado, contribuíram para o fortalecimento do campo da educação nãoformal. Mas essa não é uma característica só das famílias das classes 5

A concepção de meninos de Estado, desenvolvida por André (1997) é de extrema importância nessa discussão, uma vez que altera a lógica que geralmente é considerada ao lidarmos com populações marginalizadas. Para o autor: “Das diversas opiniões sobre meninos e meninas de rua, pudemos compreender de um grupo de indivíduos que preferiram o anonimato, que essas crianças não são meninos de rua, mas sim “meninos de Estado”. Eles atribuem toda a culpa ao Estado. [...] Portanto, falar-se de menino de rua seria uma desconsideração para a família e um termo pejorativo para as crianças. Para eles, os demais fatores que condicionam o aparecimento de meninos de rua são frutos da má gestão do Estado. Assim, o conceito de menino abandonado ou menino de rua está mal aplicado” (p. 129, 130). Apesar de o foco ser a criança de rua, podemos redirecionálo para os filhos das prostitutas do bairro da Luz Vermelha, em Calcutá, Índia.

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populares. O número de mulheres das classes média e alta trabalhando fora de casa também é grande. Entretanto, os programas de educação nãoformal aparecem nesses discursos como necessários e protetores para as famílias das classes populares, como se estas necessitassem de tutela. A visão que coloca de um lado a instituição como salvadora e de outro a família como responsável pelo fato das crianças “não darem certo”, forçando uma oposição, não é unânime e em alguns depoimentos é interrompida demonstrando um reconhecimento de que a instituição também tem limitações. Tem menino que a gente conseguiu levar prá Secretaria de Assistência Social. [...] Eu acho que é bem assim o trabalho daqui, aos poucos, bem devagarinho. (grifo nosso, Educadora Estagiária – pedagogia – Centro Sol).

Mais uma vez, é interessante perceber o papel esperado e delegado às instituições: a visão de como a instituição é importante para salvar, para ajudar, para fazer pelo outro o que ele, sua família, sua classe social não foram capazes de fazer. Ao pontuar sobre o fazer pedagógico, apenas a visão positiva é colocada como sendo de responsabilidade e mérito da instituição e dos que nela atuam. No trecho grifado da entrevista isso fica bastante claro: os educadores já conseguiram levá-los para a Secretaria de Assistência Social, mas quando a educadora fala daqueles que não conseguem, o (de)mérito, a incapacidade estão nos sujeitos e em nenhum momento é mencionada qualquer responsabilidade que possa ser atribuída à instituição. Há aqueles que conseguem e aqueles que não conseguem, os que aprendem e os que não aprendem. Como vimos demonstrando, não é uma posição contra a outra, as ações das instituições e dos sujeitos que as compõem são contraditórias, são recriadas cotidianamente. Em alguns momentos, avançando criticamente e, em outros, pautando-se em posturas cristalizadas na nossa educação, muitas vezes, preconceituosa e classista. No trecho de entrevista abaixo, é possível observamos que a instituição, ao mesmo tempo em que pontua a ausência da família, também faz uma reflexão crítica e social dessas ausências, apontando inclusive, a sua própria incapacidade em lidar com situações que são maiores do que as condições que têm.

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Tem um (garoto) que não quer (participar de um projeto de educação profissionalizante) e ele (es)tá aqui, ele não quer porque ele tem todo um contexto que não ajuda, não é só o Progen que dá condição pra esse menino ir pro curso, é a família e ela não ajuda a fazer esse espaço, e ele (es)tá aqui, numa boa, a gente respeita o limite dele, a gente não sabe até quando [...] (Coordenadora – serviço social – Progen). Eu acredito que isso é uma guerra, e às vezes perdemos! Nesse ano não morreu nenhum, o ano passado (2000) nós perdemos 5 assassinados, é assim, enterrar cada criança daquela foi muito difícil, é perder mesmo uma luta, e morrer na fase mais linda, a adolescência, da vida de uma pessoa, e morrer no momento mais importante da vida dele, e o motivo é o tráfico. [...], ele não conseguiu ser alfabetizado, ele ia na escola, ele não teve opção de escolha, ele chegou prá gente com 12 anos, ele nunca tinha ido na escola, fomos nós que arrumamos escola e levamos ele na escola, [...], ele não conseguia ficar dentro de uma sala de aula, essa é uma questão séria, quando a gente fala da educação informal (nãoformal) [...]. (Coordenadora – serviço social – Progen).

No filme, percebemos a posição respeitosa de Zana em relação à história de vida das crianças e suas limitações. Ela fica desanimada quando sabe que uma das meninas já se iniciou na prostituição, mas isso não a desestimula a ponto de desistir das demais. Através das entrevistas, é possível percebermos a relação que cada educador tem com o trabalho que realiza. Em alguns posicionamentos, o educador coloca-se como um profissional que se relaciona com as crianças e jovens a partir de sua formação escolar e familiar. Outros já se posicionam apontando a sua atuação profissional, como algo que vai além, por ser também uma escolha política e ideológica. Várias nuances entre ações assistenciais e educacionais são perceptíveis nas falas dos educadores das instituições pesquisadas, além de posições engajadas politicamente, pertencentes à luta por direitos, à militância na área da infância e da juventude e ligadas aos movimentos sociais. Essa relação é tão misturada, que Zana, no documentário fala: “eu não sou nem educadora, nem assitente social...” Eu acho que é assistencial por um lado e também é não-formal porque não é só educativo, eu não sei também muito a diferença, 72


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mas eu acredito que seja não-formal. Tanto o apoio (escolar), que nem o apoio ele não é reforço da escola, ele é um trabalho mais nãoformal, uma educação não-formal, mas não é educativo. (Educadora Estagiária – psicologia – Centro Sol). Eu acho que tem uma demanda que é social. Eu não sei se é assistencial, eu fico me perguntando se é assistencial. É lógico que tem as porções nossas que são assistenciais, sim. E até eu acho que quando você trabalha com esse conceito fica complicado se você, de vez em quando, não atender essa demanda que é mais assistencial. [...] Talvez, em alguns casos, você impossibilite o menino de ir no outro dia. Por exemplo, essa questão da comida, eu acho que é muito difícil separar. Eu não diria que é impossível, mas eu acho que é muito difícil. Eu acho que tem os dois, estão imbricados. (Supervisora – psicologia – Centro Sol).

A relação entre o educacional e o assistencial nas ações de propostas de educação não-formal realizadas para as classes populares aparece claramente na fala dessa profissional. É como a educadora diz, estão imbricados, não é um ou o outro, mas em muitos momentos é um e o outro, são os dois ao mesmo tempo. O importante para essas instituições perceberem é que essa imbricação, essa mescla, não está presente somente na instituição, ou na sua proposta pedagógica, está presente e incorporada na ação educacional e assistencial realizada pelas educadoras que atuam nessas instituições. Isso significa dizer que quando uma educadora, um educador está atuando em um projeto como esse, em algumas situações ele também está fazendo assistência, algumas vezes tendo consciência de sua ação, e outras atuando a partir de uma concepção de caridade e de ajuda. Esse fazer assistencial está mesclado com o seu fazer profissional e, em geral, esses educadores não se dão conta de que sua ação profissional pode estar permeada por essa ação assistencial. A discussão pedagógica, profissional e política importante nesse sentido é a de conscientização da equipe de profissionais para que as ações cotidianas sejam compreendidas nesse contexto e que a assistência, quando necessária, não seja entendida como caridade, ajuda, favor, algo menos importante, e sim apreendida e exercida como direito. Em alguns casos, tanto a assistência, como a educação, são estendidas às famílias. No próximo trecho de entrevista, é interessante perceber como a educadora encara com a mesma dimensão o fato de as famílias se 73


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manterem através de políticas de assistência, em relação àquelas que se mantêm através do trabalho. Essa concepção não é comum; essa educadora deixa bem claro que todos necessitam de uma maneira para se manter, e receber assistência é apenas uma dentre as tantas possíveis. Não há aqui o preconceito comum de que os assistidos são preguiçosos, vagabundos, não têm educação e outras tantas ausências atribuídas àqueles que não estão inseridos na lógica de produção e no consumo da sociedade capitalista. Por outro lado, aparece a preocupação em educar essa família, em mostrar para ela como é que se faz a inserção na tradição produtiva capitalista. Tanto a educação da família como das crianças, passa pelo que é necessário ser aprendido para ser formado de acordo com os padrões sociais esperados e solicitados pela sociedade capitalista. Ao mesmo tempo em que esse processo é compreendido como natural, ele também é quase que escamoteado. De tão “natural” não é necessário discuti-lo, problematizá-lo, as coisas são assim, já estão dadas. Permeados, imbricados, conflitantes: assim são os fazeres que observamos nas instituições. A tentativa, com certeza, é sempre de acertar; a intenção é por uma proposta que faça diferença, se possível, transforme a vida das crianças, dos jovens, de suas famílias e traga mudanças na sociedade. Portanto, para que ações como essas efetivem transformações, mesmo que pontuais, acreditamos que há a necessidade da instituição ter clareza de seu projeto político, assim como de suas limitações, para poder, inclusive transpô-las. Projeto político da instituição A concepção de educação não-formal também passa pela crença que os educadores têm no projeto político da instituição, na diferença que ela pode fazer tanto para aqueles que a frequentam, como também para a sociedade mais ampla. [...] o Progen já (es)tá aqui há 18 anos nesta comunidade e acho que veio bem numa comunidade que precisava mesmo. Porque a gente acredita mesmo que pode mudar,[...]. Então acho que precisa mesmo uma formação, precisava ter muito mais Projetos. (grifo nosso, Educadora – magistério – Progen).

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Quando essa educadora diz: “a gente acredita mesmo que pode mudar”, ela demonstra essa crença no coletivo do Progen; junto com os vieses assistencialistas, aparece o objetivo de mudança. Mostrando-nos as contradições e as misturas existentes tanto em nossa formação, como na constituição do campo da educação não-formal, os depoimentos evidenciam ao mesmo tempo, essa crença transformadora, como a necessidade de ajudar, a concepção de que essas crianças precisam do outro para colocá-las em um outro lugar. A ideia de que a instituição vai inserir, introduzir, colocar a criança e o jovem na sociedade é bastante forte e perpassa a maioria dos depoimentos. É muito comum entre os educadores a compreensão de que a função pedagógica das instituições é a (re)inserção dessas crianças e jovens na sociedade, como se a própria instituição não estivesse inserida na sociedade e seus frequentadores precisassem ser informados pela instituição do que acontece fora dela, e como devem se comportar e se defender quando estiverem fora da mesma. É como se essas crianças e jovens vivessem excluídos de tudo, não circulassem pelo centro, não convivessem na escola, não assistissem à TV. A instituição também aparece como um outro lugar, diferente, independente e protegido dessa sociedade desigual. A inclusão dentro dos padrões esperados de convívio e civilidade aparece como tarefa da instituição e também as crianças e jovens aparecem como destituídos de tudo, saberes, cultura, códigos de convivência etc. Essa visão de que as crianças e os jovens das classes populares são destituídos de desejos, sonhos, capacidades é muito reforçada pela mídia quando aborda as ações de projetos de educação voltados para as classes populares. Embora esse aspecto não apareça como tópico explícito do projeto político das instituições, essa crença e essa concepção de que a instituição está além e protegida dos males sociais perpassam e embasam o entendimento e a prática das ações e propostas realizadas pelas instituições, que por sua vez, refletem o projeto político das mesmas. Essa visão reflete as diferenças de classe, e talvez por isso seja tão forte nas falas dos educadores, ou seja, eles se percebem em um outro lugar, diferente daquele ocupado pelas crianças e jovens, mas assumir essa diferença como sendo de classe é complicado, uma vez que significa que quase não há alternativa; portanto, camufladamente, faz-se o discurso de que a inclusão de todos é possível e atingível. 75


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A gente (es)tá ajudando, a inserir a criança na sociedade (grifo nosso, Educadora – conservatório em arte – Progen). A proposta educacional, [...] é de preparar esses meninos para o retorno para os bairros. Retornar eles prá sociedade, porque eles (es)tão numa situação de exclusão, porque eles já não têm acesso à cultura, (à) educação. (grifos nossos, Educadora Estagiária – serviço social – Centro Sol). [...] a gente (es)tá dando e eles (es)tão tendo oportunidade de (es)tá(r) conhecendo outro caminho, porque há vários tipos de caminhos, do bem e do mal. O Progen é o caminho do bem, então este é um dos caminhos (que) eles podem (es)tá(r) optando, (es)tá(r) fazendo, a partir do momento que começam a conhecer o Progen eles possam ter esta opção de caminhar por este caminho.[...] Eu acho assim, a busca de um novo ideal de vida, de uma nova forma de viver. E aqui é um lugar onde eles têm outra expectativa de vida, têm outra maneira de ver a vida. (Educador – ensino médio – Progen).

Junto com essa concepção de que é responsabilidade da instituição inserir os jovens na sociedade, entendemos que há uma preocupação e uma tentativa de realizar uma inserção diferencial, propiciar um universo de conhecimentos, habilidades, um capital cultural que somente a família e a escola não dão conta de oferecer. O discurso da (re)inserção na sociedade também aparece quando os educadores mostram a proteção que a instituição oferece, também se baseia em formar para a defesa dos direitos. Ao mesmo tempo em que a instituição se propõe a defender essas crianças e jovens da sociedade cruel e desigual, ela também tenta assegurar que seus frequentadores se sintam seguros para encarar de uma forma diferente essa mesma sociedade e tentar transformá-la. A instituição como salvadora não revela somente aspectos negativos, apesar da dicotomia entre o aqui dentro como bom e o lá fora como mal; a instituição assume um papel de “ensinar cidadania”, ensinar a brigar pelos direitos, a se posicionar, a falar não para as coisas. Como temos visto, a educação não-formal é permeada por nuances das várias áreas que com ela interagem. No próximo trecho de entrevista destacado percebemos claramente tanto a visão assistencialista e protetora da instituição que quer 76


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guardar e proteger a criança da sociedade lá fora, como também a assistência social que instrumentaliza o cidadão em relação aos seus direitos, que tem militância. No episódio relatado, a criança “até retruca” a favor da garantia dos seus direitos. Sabemos que as ações não são segmentadas, mas esse pequeno trecho da entrevista é importante para percebermos como o cotidiano dessas instituições e o imaginário de seus educadores estão permeados pelos saberes e encaminhamentos de muitas e diferentes áreas. Então é uma preparação para viver lá fora e tem um exemplo de uma menina que foi daqui, [...] ela era uma criança que não falava “não” prá ninguém, que não ia atrás de seus direitos, não retrucava! E o Progen ensina a ter certa firmeza. (Educadora – magistério – Progen).

É como se existisse um currículo do que é comum e fizesse parte do rol de assuntos que devem ser “ensinados, estudados” e pesquisados pelas instituições que realizam propostas para crianças e jovens das classes populares. Percebemos que os assuntos, em geral, são os mesmos, ou muito parecidos, e também o argumento para justificá-los é comum, qual seja: preparar as crianças para a “inserção”, ou para o enfrentamento social, através da conscientização. A questão que destacamos aqui é que também a formação crítica não tem somente uma maneira de ser concretizada. Também ela depende da concepção política encampada pela instituição. As falas das educadoras também nos mostram o respeito que têm pelo trabalho que realizam e pela população que atendem. Juntamente com todas as contradições no fazer pedagógico apontadas até aqui, acreditamos que os depoimentos revelam tentativas de conseguir fazer mais do que as condições que as instituições dispõem, indo além, não somente das condições das instituições, mas das próprias condições de convivência em uma sociedade capitalista que, apesar dos discursos, primeiramente de caridade e atualmente de responsabilidade social, expropria os direitos de milhares de famílias. Destacamos alguns trechos que evidenciam o respeito dos educadores pelo trabalho realizado:

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Eu acho muito interessante, é um trabalho que é profundo, embora pareça que seja tão supérfluo, é resgatar o que ficou prá trás mesmo, é buscar nesses adolescentes cuidar dos bebês que eles foram, da criança, prá depois pegar no adolescente. Então é muito bom, só que demorado. (grifo nosso, Educadora – ensino médio – Centro Sol). [...] eu acho que o meu objetivo de trabalho é prepará-los justamente prá que eles sejam incluídos na sociedade, porque eles são olhados sem ser reparados! Porque reparados eles são agora. Então a gente quer que eles passem quase sem ser vistos, esse é o meu objetivo, [...]. (grifo nosso, Educadora – ensino médio – Centro Sol). Ah, eu acho que o acolhimento que tem aqui, porque desde quando (eles) chega(m) a gente pega no portão, acolhe: “oi tudo bem, tal! Como vai? O que que fez?” Acho que isso que faz eles voltarem todos os dias, porque a gente escuta eles, dá conselho! (grifos nossos, Educadora – magistério – Progen). Na verdade, a proposta inicial, é o Projeto de alguma forma tentar contribuir para o desenvolvimento integral dessas crianças. Então, tentar através do Projeto restabelecer o vínculo que essa criança perdeu com a escola e até contribuir [...] eu não ousaria restabelecer o vínculo familiar porque eu acho (que) isso é um objetivo muito ousado, e acho que a gente não tem esse poder. Mas, eu acho que contribuir para que esse vínculo familiar de alguma forma seja fortalecido. Por isso, que a gente (tem) uma proposta de trabalho com os pais dessas crianças também. Então, eu acho que esse é o objetivo principal. [...] eu acho que a gente, de uma certa forma, eu não sei se é ilusória, porque pra falar que a gente cuida da infância, a gente precisa ser muito prepotente, porque a gente não dá conta de tudo mas, eu acho que tem um cuidado e uma proteção com a infância dessas crianças que ficam nas ruas em situação de risco e eu acho que talvez, embora seja difícil e a gente não consiga estatisticamente, se você for pegar, isso não é só o Centro Sol, mas nos trabalho com esses meninos, você tem um percentual significativo que apesar do investimento, do trabalho, ele não dá conta de resignificar a história. Quando eu chamo de resignificar a história é assim: é de não ensinar na juventude, na idade adulta, de não ocupar os mesmos lugares das gerações anteriores da família dele. Um lugar de marginalização no sentido de privação. Marginalização, que eu falo, é no sentido de privação de tudo 78


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mesmo, né? Mas, eu acho que existe a possibilidade de Projeto como esse contribuir para potencializar esses indivíduos enquanto sujeitos, e quem sabe, ocuparem outros lugares que não esse(s). (grifos nossos, Supervisora – psicologia – Centro Sol). Eu brinco, eu corro com eles aqui, quer dizer, vai acostumando, vai criando aquele vínculo, aquele vínculo muito legal mesmo. Então eles gostam muito de vir aqui, não é pra comer e beber só não, é pra (es)tá(r) perto da gente. (grifo nosso, Guarda – ensino médio – Centro Sol).

Considerações finais A instituição auxilia seus frequentadores a se prepararem para tomarem decisões, acolhe, dá conselhos e tem clareza de que essas ações, esse jeito de fazer são mais importantes do que as atividades oferecidas. Os trechos de depoimentos citados demonstram-nos várias das características da educação não-formal e nos chamam a atenção para que propostas de educação não-formal objetivem ações pautadas nas relações, na socialização em seus projetos políticos. As atividades oferecidas podem não ser o que a instituição tem de melhor para disponibilizar para seus frequentadores, embora na grande maioria das propagandas realizadas, elas apareçam como o chamariz das instituições, como também nas justificativas apresentadas em projetos para captação de recursos. Ao listarmos os itens que alguns trechos de entrevista destacam como importantes para que as crianças e os jovens frequentem a instituição e retornem a ela dia após dia, o aprender só aparece depois das relações estarem consolidadas e, posteriormente, ao fato de as crianças e os jovens se sentirem respeitados e queridos pela instituição. Respeitar, atender, apoiar, acolher, proteger, cuidar, potencializar, escutar o que eles têm a dizer, estar perto, dar conselhos, estar pronto para atender, resignificar as histórias de vida, contribuir para o desenvolvimento integral das crianças, restabelecer o vínculo com a escola e fortalecer o vínculo com a família, alguém para poder contar, ser uma referência, ser tratado como um igual (aos adultos), que não sejam reparados como “crianças de rua”, o contato com o grupo, e até mesmo alguém para chamar a atenção – no sentido de “dar bronca”, cuidando além dos bebês que eles já foram, são evidenciados como aspectos anteriores à vontade ou necessidade de 79


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aprender algo. Para os educadores entrevistados, essas posturas e ações são o que motivam essas crianças e jovens a frequentarem a instituição. Não se trata aqui de fazer apologia à pedagogia do afeto, do bem querer, mas de evidenciar que ao frequentarem voluntariamente uma instituição em período contrário ao escolar, que “compete” com outros tantos fazeres possíveis (clubes, ruas, praças de esportes etc), é importante que a proposta da educação não-formal considere e valorize a cultura, os desejos, a história de vida de seus usuários. Esse é um aspecto imprescindível para o projeto político dessas instituições, visando, apesar de todas as contradições e conflitos apresentados, a construir junto com seus usuários o próprio projeto político da instituição. Portanto, a identidade da educação não-formal para esses educadores passa por esse envolvimento que, por vezes, se mistura com uma doação quase vocacional e, em outros momentos, lhes apresenta uma descrença em relação às políticas sociais, passando por uma contradição vivenciada cotidianamente. Ao explicitar essas contradições, a intenção não é negá-las, nem tampouco sugerir que elas não estejam presentes, mas sinalizar para as instituições que atuam com crianças e jovens das classes populares, não apenas a existência desses conflitos, entrechoques e encontros nos seus fazeres, mas possibilitar que a partir da tomada de consciência de que o campo da educação não-formal no Brasil é perpassado por esse contexto, as instituições possam elaborar com mais clareza seus projetos políticos, considerando inclusive as contradições presentes. Tanto nas entrevistas realizadas como no filme documentário citado, percebemos que a atuação salvacionista não se dá de maneira ingênua. Os praticantes dessas ações se indignam com a falta de ações que encaminhem e resolvam as causas nas quais estão envolvidos, mas, por falta de “outro jeito”, eles acabam assumindo, para si, a tarefa de atuar, mesmo que muito pontual e individualmente. As responsabilidades são inúmeras e variam desde as educacionais até as ligadas ao cuidado e encaminhamento das crianças e jovens, assumindo quesitos que vão muito além dos possíveis de serem tidos como de responsabilidade da instituição. A polarização entre o ruim e o bom também é comum no documentário e nos depoimentos, uma vez que da realidade das crianças é evidenciado o cotidiano “duro”, exasperante e ruim, enquanto que as atividades propostas, seja a fotografia no filme ou outras presentes nas instituições, aparecem como extremamente prazerosas, e muitas vezes, como salvadoras, ou como a única alternativa. Também no filme, a relação de amizade e confiança com Zana, junto e pela 80


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fotografia, é que conduz as crianças e jovens e lhes dá motivação para romper com alguns padrões e concepções, como o fato de saírem do bairro: para fotografar, para conhecer a praia, para visitarem a exposição das próprias fotos, para estudarem em escolas internas e até para saírem do país (ainda que com ajuda alheia). A relação, proposta por nós, entre os depoimentos analisados e o filme documentário nos mostra que as ações desencadeadas, sejam individuais ou por instituições da sociedade civil, que objetivam uma mudança social, dificilmente alcançam esse objetivo se considerarmos as condições de classe social, ou seja, não há mudanças na estrutura econômica e social. Por outro lado, não podemos dizer que não há mudanças individuais (inclusive econômicas) nas muitas histórias de vida explicitadas no filme e nos depoimentos colhidos. Propomos, portanto, que as instituições que optam por realizar ações como as descritas neste artigo, façam-no conscientes de suas limitações para que possam transpô-las ou, então, não assumi-las solitária e isoladamente. Outro ponto importante é a maneira como a mídia, em geral, vem se utilizando das imagens e das ações desenvolvidas por instituições que atuam com crianças e jovens, divulgando tais ações como salvadoras, fortalecendo o discurso assistencialista e judaico-cristão impregnado na nossa história de caridade. Reforçando a oposição entre os que doam e aqueles que precisam de doações, entre os que sabem e os que precisam ser ensinados, escamoteia a divisão de classe social que está por trás desses dois lados. A instituição aparece como sendo o lado bom, do bem, a que salva, a que tira de um lugar de origem ruim e põe em outro melhor; nunca, a que contribui para uma reflexão crítica das diferenças econômicas e sociais que devem ser realizadas para que avancemos em direção a uma sociedade mais igualitária. Acreditamos que o papel da mídia deveria ser o de provocar, debater e refletir sobre essas discussões.

Referências ANDRÉ, Antonio Miguel. O menino de rua: suas particularidades em Angola. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Espírito Santo: Vitória, 1997. GARCIA, Valéria A. Realismo da exclusão social. Revista Ciência da Educação, n. 12, ano 07. Americana, Unisal, 1º semestre 2005, p.113-131. 81


Valéria Aroeira GARCIA & Renata Sieiro FERNANDES

GARCIA, Valéria A. O acontecimento da educação não-formal. Tese de Doutoramento, Faculdade de Educação, UNICAMP, SP, 2009. Referência filmográfica Nascidos em Bordéis (Born Into Brothels: Calcutta's Red Light Kids), Índia/EUA, documentário, direção Zana Briski e Ross Kaufmann, 2004, 85 min.

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (1) - 2009 – p.83-96

MULHERES NA LINHA DE POBREZA INSERIDAS NO CENÁRIO GLOBALIZADO: COMO ELAS CONSTROEM SEUS DISCURSOS Women in the line of poverty inserted in global scenario: how they build their discurses Ana Nelcinda Garcia VIEIRA1 Vera Lúcia PIRES2 RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar enunciados selecionados de entrevistas realizadas com um grupo de mulheres negras, catadoras de lixo, da cidade de Santa Maria, RS, a fim de verificar, a partir dos indicadores de subjetividade, como elas constroem a imagem de si, ou seja, o ethos e como se estabelecem as relações de poder nos seus discursos. PALAVRAS-CHAVE: enunciados; mulheres negras catadoras de lixo. ABSTRACT: the aim of this work is to analyze the selected proposition of magazines made with a group of black women, garbage collectors of Santa Maria city, RS, to verify, from subjectivity indicators, how they build their self image, the ethos, and how the relations of power are established in their discourses. KEYWORDS: proposition; garbage collectors.

1. Introdução Para esta pesquisa3, optamos por desenvolver um trabalho somente com mulheres negras catadoras de lixo, da cidade de Santa Maria, RS. As 1

Mestranda da UFMS. UniRitter e colaboradora voluntária da UFSM. 3 Este artigo é procedente da dissertação de mestrado intitulada “Mulheres na linha de Pobreza inseridas no cenário globalizado: como elas constroem seus discursos”, defendida em agosto de 2009 no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria, RS), sob orientação da Profa. Dra. Vera Lúcia Pires. 2


Ana Nelcinda Garcia VIEIRA & Vera Lúcia PIRES

mulheres que se dispuseram a responder às entrevistas para a pesquisa participavam de um projeto da Prefeitura Municipal, que tinha como objetivo o desenvolver de atividades que contribuíssem para a inclusão dos catadores de lixo. Temos um respeito e uma admiração pela capacidade de superação dessas mulheres, que vivem um histórico de discriminação, dominação masculina e abandono social. Suas histórias de vida nos comovem e incentivam a trazer para a discussão na academia o discurso dessas mulheres muitas vezes emudecidas e invisíveis à sociedade, que oferece pouquíssimas oportunidades para os pobres, de maneira geral, mas especialmente às mulheres negras. Este artigo tem como objetivo geral analisar entrevistas4 feitas com as mulheres negras catadoras de lixo. O percurso teórico e analítico tem, como ponto de partida, a seguinte questão problema: Como se constrói a imagem de si, ou seja, o ethos discursivo das mulheres negras, catadoras de lixo? 2. A Teoria 2.1 Gênero como uma categoria de análise Ao propor o gênero como uma categoria de análise, Scott (1995) oportuniza que se encontre outro caminho mais fértil para análise de fenômenos históricos, um elemento que pode provocar não só novas questões, mas novas respostas para velhas questões, além de colocar como ativos e visíveis sujeitos que usualmente têm estado escondidos nas análises mais tradicionais (LOURO, 1995, p.106). Nessa proposta, Scott defende que o gênero como categoria de análise associada a categorias de raça e classe social permite dar voz ao discurso dos oprimidos, no sentido plural, incluindo-se também as oprimidas. Os estudos de gêneros devem ser feitos levando em conta a classe, a raça, o lugar onde vive a pessoa e o contexto sócio-histórico em que se encontra. O gênero é um dos aspectos que concorrem para a construção das várias identidades do ser humano; então, mais importante seria verificar os seguintes pontos: a interação, os papéis sociais e como as práticas sociais produzem identidades. 4

Para este artigo selecionamos dois dos dez enunciados analisados na dissertação de mestrado.

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2.2 A dominação masculina segundo Bourdieu De acordo com Bourdieu, o modelo androcêntrico reforça de forma inconsciente as estruturas históricas de dominação do masculino. Nesse sentido, há uma ordem social estabelecida que justifica e fomenta as diferenças nas relações de gênero. Para Bourdieu (2005), a dominação do masculino é um fato real, amparado pelo sistema social. Este funciona de tal maneira que o torna natural. Na vida social, há comportamentos femininos e masculinos, que devem ser seguidos, como papéis a serem desempenhados. Pode-se dizer que se trata de uma sociedade organizada para atender aos interesses do masculino em detrimento de outros interesses, como os das mulheres e os dos homossexuais. A força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. Para Bourdieu (2005), a visão androcêntrica se articula de tal maneira, que não cabe questionamentos. Dessa forma, há uma posição simbólica do dominante em relação ao dominado, que se caracteriza por indícios verbais ou não verbais, que designam a posição simbolicamente dominante (do homem, do nobre, do chefe, etc.) só podem ser compreendidos (tal como insígnias militares, que se tem que saber ler) pelas pessoas que aprenderam a decifrar seu código (Bourdieu, 2005, p. 45).

Nesse caso, as mulheres aprenderam a ler tal código, que fomenta a dominação, reconhecendo na família o pai, o marido, o provedor como aquele que toma as decisões, aquele que autoriza a filha a fazer tal coisa, a esposa a trabalhar, a estudar, etc. Embora muitas mudanças tenham ocorrido nas últimas décadas, ainda há muitas famílias que têm o homem como o chefe da casa, mesmo que seja a mulher a responsável pelo sustento da família. 2.3 A imagem das mulheres negras Partimos da realidade em que homens e mulheres ocupam lugares diferenciados socialmente, e as mulheres estão em posição assimetricamente inferior em relação aos homens. Dessa forma, a situação

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das mulheres negras é ainda pior, pois elas também estão em uma situação assimétrica em relação às mulheres brancas. Se considerarmos as mulheres negras na linha de pobreza, podemos dizer que são excluídas tanto pela sua condição de inferioridade na pirâmide social econômica, como pela sua condição de mulher e por não ser branca. Refletindo sobre essas desigualdades, devemos concluir que para as mulheres catadoras de lixo, negras, as adversidades do cotidiano são ainda maiores e mais difíceis de serem enfrentadas em relação às catadoras brancas. O Brasil é um dos países com as maiores desigualdades sociais […]. Diante desse quadro, a situação da mulher negra é dramática. Segundo Reichmann (1995, p. 499), as mulheres negras chefes de família historicamente têm sobrevivido com um terço ou metade da renda com a qual mulheres brancas chefes de famílias o fazem (LEMOS, 2007, p.65).

As mulheres negras em condição de pobreza extrema são ainda vítimas do racismo velado, isto é, aquela ilusão de que no Brasil não há racismo. Além disso, há, socialmente, uma desigualdade que vem desde a época da libertação dos negros escravos e outros tipos de preconceitos, em função da miséria absoluta em que vivem, esses, é claro, são compartilhados por todas as pessoas que vivem nessas condições. 2.4 Algumas considerações sobre os estudos de Bakhtin Um enunciado é um elo na comunicação verbal (Bakhtin, 1997, p. 320). O objeto do seu discurso é comum ao de outros; não é dito pela primeira vez, sempre antes dele houve outro que o precedeu, e outros tantos o sucederão. Ele não é sozinho, porque o sujeito falante utiliza outras vozes ao compor seu enunciado, o que é chamado por Bakhtin (1997) de dialogismo. Dessa forma, o sujeito, nas interações sociais, ao compor seu enunciado linguístico, faz uso de palavras que já foram utilizadas em outros enunciados. Segundo Rodrigues (2005, p.155), elas trazem consigo sentidos (visões de mundo). O sujeito utiliza as palavras do outro, por vários motivos, para dar credibilidade ao próprio discurso, porque

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compartilha com a sua visão de mundo, para estabelecer relações de sentido, para enfatizar uma tomada de posição, entre outros. Para Bakhtin (1997), ao se produzirem enunciados num determinado gênero, serão levados em consideração os destinatários de acordo com critérios como: a sua classe social, sua importância, sua idade, entre outros. Ao fazermos parte de uma estrutura social, interagimos com o outro através da linguagem. Destacamos que o enunciado refletirá o contexto social no qual ele está sendo produzido. O locutor tem uma história de vida, ele ocupa um lugar na sociedade, fatos que certamente influirão na composição do enunciado. 2.5 Noção de ethos discursivo segundo Maingueneau e Amossy Quando a linguagem é utilizada na interação entre os sujeitos, acontece a construção da imagem do enunciador da mensagem. É a essa imagem que se denomina de ethos discursivo, ou a imagem de si. O ethos do enunciador vai sendo construído espontaneamente, sem que ele tenha necessidade de fazer uma descrição detalhada de si mesmo. A imagem de si se constrói em todas as interações verbais. Assim, para que a plateia ou o interlocutor construa uma imagem de seu enunciador e possa, de alguma maneira, deixar-se influenciar ou persuadir a aderir ao seu ponto de vista ou comportamento, é necessária uma situação de interação social na qual os sujeitos sóciohistóricos da interlocução utilizem a linguagem, através de enunciados. Para que essa interação tenha sucesso, o orador deve levar em conta a plateia à qual dirige seu discurso, avaliando quem são as pessoas, no que elas acreditam, quais são os valores que norteiam sua existência, qual o nível social e econômico ao qual elas pertencem, enfim, quais são as suas expectativas. Segundo Amossy (2005), o processo é muito dinâmico: ao mesmo tempo em que o orador faz uma imagem de seu espectador, ou seja, constrói um ethos o qual vai nortear seu discurso para passar uma imagem confiável de si mesmo, baseado nas considerações que fez através de seu julgamento, ele também vai proporcionar elementos para que sua plateia construa uma imagem de si. 2.6 Subjetividade na linguagem Orecchioni (1980) se dedica ao estudo da análise do extralinguístico em toda e qualquer manifestação discursiva. Ela acredita que é

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impraticável descrever adequadamente os comportamentos verbais sem levar em conta o contexto em que os enunciados são ditos, sem considerar a ideologia articulada no instante de sua enunciação. Ainda, leva em consideração a imagem que o enunciador faz de si mesmo, do seu receptor e a que ele acredita que o receptor faz dele. De acordo com seus estudos, o que enunciamos não ocorre ao acaso, pois levamos em consideração as impressões que temos de nosso receptor, e vice-versa. O estudo de Orecchioni (1980) se concentra na identificação e na descrição das marcas do ato enunciativo na enunciação. Para análise das entrevistas, fizemos também um recorte no trabalho de Neves (2000), com o foco especificamente nos advérbios modalizadores. De acordo com Neves (2007, p.152), a modalidade pode ser dita como: essencialmente, um conjunto de relações entre locutor, o enunciado e a realidade objetiva. Dessa forma, para Neves (2000, p. 244245), os advérbios se apresentam como uma das táticas usadas pelo falante para assinalar a sua atitude em relação ao que ele mesmo enuncia. O advérbio, assim, desempenha o papel de marcar a atitude, ou seja, a apreciação do falante a respeito das significações contidas no enunciado. 3. Análise dos enunciados A cena da enunciação, para todos os enunciados analisados neste trabalho, segundo Maingueneau (2001), corresponde ao gênero do discurso entrevista. As entrevistadas foram descritas para auxiliar na composição do ethos. 3.1 Descrição da entrevistada F A entrevistada F é uma mulher magra, não muito alta. Tinha os cabelos presos na ocasião da entrevista. Exibia um ar muito jovial e alegre. Nessa data, trajava uma calça de brim azul, um blusão de lã e também uma manta no pescoço. Além disso, usava brincos e parecia vaidosa. Usava batom e unhas curtas sem esmalte. Neste enunciado, a entrevistada F responde se teria algum empecilho em se relacionar com um homem branco:

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Não. Até as minhas filhas são todas... não são casadas, mas são ajuntadas com alemão mesmo dos oios azul e elas são bem pretinhas (risos).

A catadora responde que não, e argumenta que as filhas se uniram a homens brancos. Ao selecionar lexicalmente “não são casadas”, salientamos o adjetivo “casadas”, classificado por Orecchioni (1997, p.110), como um adjetivo objetivo. Esse adjetivo, de acordo com a estudiosa, descreve o estado civil das filhas – como não sendo casadas. Na seqüência, a entrevistada declara que as filhas são “ajuntadas”. De acordo com Ferreira (1999, p.81), ajuntada é o particípio de ajuntar, significa o mesmo que amasiada, amancebada, unida. Esse termo tal qual se apresenta no enunciado não aparece na classificação de Orecchioni, porém poderia ser classificado da mesma forma que o adjetivo “casadas”, em função de também expressar um estado civil, que atualmente é reconhecido por lei como união estável e tem o mesmo peso do casamento. Também os adjetivos “alemão”, “azul” e “pretinhas” são classificados por Orecchioni (1997, p.110) como adjetivos objetivos por descreverem um ser, já que estão se referindo à cor de olhos e de pele de pessoas. Neste ponto da análise, faz-se necessário retomar os estudos de Orecchioni (1997, p. 94) no que tange aos discursos objetivo e subjetivo. A autora explica que estes podem ter um grau maior ou menor de objetividade e subjetividade. Nesse sentido, ela expõe que toda a unidade léxica é subjetiva. Embora, os adjetivos “casadas”, “ajuntadas”, “alemão”, “azul” e “pretinhas” se enquadrem na categoria adjetivos objetivos (ORECCHIONI, 1997), não se pode deixar de verificar um grau elevado de subjetividade nessa seleção lexical. Dessa forma, a catadora entrevistada disse “ajuntadas” para se referir ao fato de as filhas não terem se casado oficialmente. Podemos inferir pela escolha desse adjetivo que o casamento de papel passado, para a entrevistada F, é importante e que, provavelmente, tenha mais valor do que a legalmente reconhecida união estável que assegura os mesmos direitos do casamento aos cônjuges. A seleção lexical desse enunciado comprova que, para a catadora, “ajuntadas”, adjetivo classificado por Orecchioni (1997, p.110) como objetivo, tem status menor em relação a “casadas”, no entanto, as filhas

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são “ajuntadas” com homens descendentes de alemães, de origem européia e de olhos “azuis”. De acordo com Lopes (2007, p.63), Tudo o que se aproxima do branco é positivo; do negro é negativo. Portanto, trata-se de homens que se encaixam no padrão do biótipo perfeito da sociedade ocidental, ou seja, homem branco de origem européia. Deve-se levar em conta o que foi abordado anteriormente neste trabalho, com relação à imagem negativa das mulheres negras: Branca é pra casar, mulata pra fornicar, preta é pra trabalhar (PINTO, 2000, p.174). Nesse sentido, as negras eram, muitas vezes, classificadas como mulheres que serviam apenas para relacionamentos fortuitos e não para compromisso sério como casamento. O operador argumentativo “mesmo”, classificado por Neves (2000, p. 245-246) como um advérbio modalizador epistêmico asseverativo afirmativo, tem como característica expressar uma avaliação que passa pelo conhecimento do falante. Conforme Neves (2000, p. 245), o que os advérbios modalizadores epistêmicos fazem é asseverar, é marcar uma adesão do falante ao que ele diz, adesão mediada pelo seu saber sobre as coisas. A catadora utiliza o advérbio modalizador “mesmo” para enfatizar o substantivo “alemão”, ressaltando o valor de verdade da sua avaliação. Dessa forma, avalia e compromete-se com o que diz, reforçando o fato ao acrescentar o atributo físico comum aos genros: ter os olhos azuis. Tal característica física comprova a origem branca, já que essa cor de olhos é infinitamente mais comum aos brancos do que aos negros ou pardos. Ela termina o enunciado adicionando a informação “e elas são bem pretinhas”. O adjetivo “pretinhas” é classificado por Orecchioni (1997, p.110) como adjetivo objetivo, que visa apenas a descrever uma pessoa. No entanto, há um grau de subjetividade, pois, embora pudesse dizer que as filhas são negras, ela diz “pretinhas” como uma maneira de suavizar a informação. Acrescente-se a isso o fato de estar no diminutivo, o que possibilita que se agregue um valor sentimental. Além disso, o adjetivo vem reforçado pelo advérbio “bem”, para ressaltar a cor das filhas, no sentido de enfatizar que elas não são mulatas, e sim negras. Trata-se de mulheres negras que se relacionam e formam uma família com homens brancos. Enquanto respondia à pergunta, a entrevistada ria. O ethos que passava pelo seu discurso e também pela sua postura durante a entrevista permeava entre um ethos misto de alegria e felicidade, adicionado de certa dose de traquinagem. 90


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Em primeiro lugar, havia alegria pelo fato de suas filhas terem se casado com homens brancos. Embora tenha dito que não tem preconceito, fica muito forte a impressão de que ela, inconscientemente, rejeita a própria origem, possivelmente pelo histórico de desvalorização dos negros no Brasil. Nesse sentido, os estudiosos Batista e Rosemberg (2008, p. 74) destacam: É nosso entendimento que o Brasil constitui uma sociedade racista na medida em que a dominação social de brancos sobre negros é sustentada e associada à ideologia de supremacia essencial de brancos. A mídia participa da sustentação e produção do racismo estrutural e simbólico da sociedade brasileira uma vez que produz e veicula um discurso que naturaliza a superioridade branca, acata o mito da democracia racial e discrimina os negros.

Podemos inferir, pelo discurso da catadora, que a união das filhas a homens brancos pode ser entendida, de certa forma, como uma maneira de ascender socialmente. Elas são negras, mas seus companheiros são brancos; isso abre para uma possibilidade de seus filhos não serem negros e, talvez, sofrerem menos do que elas sofreram por serem negras em um país onde existe racismo de maneira velada. Por último, havia felicidade por haver uma ruptura nos padrões impostos pela sociedade, já que ainda chama à atenção um casal em que um é negro e o outro é branco. No entanto, suas filhas romperam com os padrões, e isso lhe dá uma particular satisfação, como se desse “um tapa de luva” à sociedade pouco justa que impõe padrões e comportamentos e oferece poucas oportunidades para as mulheres negras na linha de pobreza ascenderem socialmente e conquistarem uma vida mais digna. 3.2 Descrição da entrevistada G A entrevistada G é uma mulher magra, com olhos muito expressivos. Suas mãos, durante a entrevista, estavam todo o tempo se mexendo, gesticulava bastante enquanto falava. Na entrevista, vestia uma calça de brim azul, uma blusa de lã estampada e uma jaqueta preta. Usava, também, brincos e pulseiras. Não estava maquiada, e suas unhas eram curtas e sem esmalte. A entrevistada estava muito falante e mostrava

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convicção em seus posicionamentos. Ao ser questionada se seus filhos eram pretos ou brancos, a resposta foi a seguinte: Olha, talvez eu faço mal em dizê, porque eu sou bem escura, não assim de relampiá, mas também né... mas, agora.. gostá assim de muito escuro eu nunca gostei. Então as minha filhas, elas já são mulatas claras, assim pendendo pra brancas. Portanto elas todas conseguiram maridos brancos [...].

Começamos nossa análise pelo advérbio “talvez”, classificado por Neves (2000, p. 245-247) como advérbio modalizador epistêmico asseverativo relativo. Tais advérbios apresentam como característica principal expressar uma avaliação que passa pelo conhecimento do falante. São ditos asseverativos, pois marcam a adesão do falante mediada pelo seu saber sobre as coisas que ele diz. A asseveração é do tipo relativo, já que cria um efeito de atenuação ao que é dito, e o enunciador expressa um baixo grau de comprometimento com a verdade. Dessa forma, a entrevistada G manifesta que prefere homens claros, no entanto, sente que isso não é politicamente correto, já que ela é negra. Ao relativizar com o advérbio modalizador “talvez”, ela procura suavizar o seu discurso, pois demonstra ter consciência de que pode não ser bem aceito, caracterizando uma forma de racismo, já que não gosta de namorar homens negros. Na sequência, destacamos o verbo dizer, que, de acordo com Orecchioni (1980, p.135), é classificado como um verbo intrinsecamente subjetivo, do eixo verdadeiro/falso/incerto. Os verbos de dizer se incluem no grupo dos verbos intrinsecamente modalizadores de dizer. Mais uma vez destacamos sua característica principal, que é fazer algum tipo de avaliação, que parte do sujeito da enunciação. Orecchioni (1997, p.142) destaca, ainda, que o locutor toma implicitamente uma posição sobre determinado assunto, situação, etc. No enunciado, a entrevistada posicionou-se sobre o tema relacionamento amoroso com homens da raça negra. Embora demonstre certo constrangimento, explicita claramente sua preferência em se relacionar com homens brancos. Ao falar sobre a sua própria cor, a entrevistada não utiliza o adjetivo negra, classificado como adjetivo objetivo por Orecchioni (1980, p.110), já que se trata de adjetivo de cor. No entanto, defendemos que este é um daqueles casos em que Orecchioni (1980, p. 94) declara que algumas 92


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escolhas lexicais são mais subjetivas do que outras. Nesse sentido, tanto o adjetivo “escura” quanto escura de “relampiá” se comportam como subjetivos. Ela não se diz negra, apenas escura; dessa forma, ela não assume a sua identidade de mulher negra. Com relação a ser “escura de relampiá”, pelo conhecimento de mundo que temos, quando queremos dizer que alguém é muito preto, dizemos que é tão preto que chega a relampejar – significa que sua cor é tão forte que chega a brilhar. De acordo com Ferreira (1999, p.1735), relampejar pode ser um clarão súbito e breve. Nesse sentido, consoante ao pensamento de Bakhtin (1999), a língua não pode ser dissociada de seus falantes das esferas sociais e dos valores ideológicos. Entendemos que é na relação dialógica com o outro que o indivíduo constrói identidades. Conforme defendemos ao longo deste trabalho, por meio da análise linguística do discurso do indivíduo, temos a possibilidade de depreender algumas das identidades usadas por ele. Pela análise das escolhas lexicais feitas pela catadora, podemos inferir que ela não se considera uma negra, pois se declara escura do tipo que sua cor não chama a atenção, não é branca, mas também não é negra escura. Neste momento, faz-se necessário trazermos o pensamento de Bauman (2005), segundo ele as pessoas se servem das identidades que melhor lhes convém, que atendam melhor às suas expectativas. Dessa maneira, escolher uma identidade de mulher que não é preta de relampejar é uma opção dela, já que no Brasil, conforme Munanga (1986, p.5), fez-se um paralelismo forçado entre o cultural e o biológico. A imagem física do negro foi associada à sua cultura; assim, quanto mais preto, mais longe do estereótipo de beleza considerado padrão. Reiteramos, aqui, a tese de Lopes (2007, p.63) Tudo o que se aproxima do branco é positivo; do negro é negativo. Diante disso, acreditamos que a entrevistada G tenta afastar-se da imagem de mulher negra. Ressaltamos o pensamento de Lopes (2007, p.63), para ele à cor de pele negra foram agregados valores como de sujeira, impureza, falta de beleza, pouca capacidade intelectual, entre outras. O verbo gostar, por sua vez, expressa, segundo Orecchioni (1997), uma subjetividade muito evidente e, consequentemente, um caráter avaliativo. Quem faz a avaliação é a locutora e também o sujeito da enunciação, no caso a catadora entrevistada. É avaliado um indivíduo, ou seja, o homem com quem ela se relaciona ou se relacionaria. A natureza do juízo avaliativo se concentra no domínio axiológico, no eixo do bom

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ou mau. Nesse caso, ela revela que não gosta de se relacionar afetivamente com homens muito escuros. Então, ela avalia e considera que não é bom para ela esse tipo de relação. Com relação à subjetividade do verbo “conseguiram”, inicialmente se faz necessário responder às três perguntas propostas por Orecchioni (1997, p. 132), para se verificar a subjetividade de um verbo. No enunciado em questão, quem faz o juízo avaliativo é a própria locutora, o que ela avalia é o fato de as filhas mulatas terem se casado com homens brancos e, referente à natureza do juízo avaliativo, trata-se de um verbo avaliativo positivo. Conseguir um marido branco funciona, nessa fala da entrevistada, como uma espécie de premiação, que só foi possível porque a moças são mulatas claras. Se fossem negras, de acordo como discurso da entrevistada, provavelmente não teriam se casado com homens brancos. A catadora evidencia, na seleção lexical, que a união com homem branco é uma conquista positiva que não é comum para as mulheres negras, que suas filhas só são casadas com brancos como uma consequência de serem quase brancas. Evidenciamos, nesse discurso, um ethos racista. A catadora é negra, porém não assume; descreve-se como bem escura; diz que não gosta de se relacionar com homens muito escuros, ou seja, negros. Além disso, considera que as filhas só se casaram com homens brancos porque não são negras. Devemos salientar, ainda, o início da sua fala: olha, talvez eu faço mal em dizê. Por essa declaração, fica claro que ela tem consciência de seu preconceito e sabe que não é politicamente correto assumir essa posição, como se temesse ser repreendida ou julgada pela sua franqueza em expor seu ponto de vista. 4. Resultado das Análises Os resultados da análise comprovam que os recursos da língua são usados segundo interesses e propósitos do enunciador. Quando interagimos por meio da linguagem, empregamos não apenas a competência linguística, que diz respeito ao conhecimento que temos do código, mas também tudo aquilo que se viu e ouviu e todo o conhecimento de mundo que temos. Nas interações sociais, utilizamos constantemente outras vozes para compor o nosso discurso, o chamado dialogismo bakhtiniano. O estudo mostrou que o uso dos modalizadores é capaz de indicar a subjetividade na linguagem, pois proporciona ao analista a possibilidade 94


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de perceber o que está implícito na fala e permite ao enunciador construir uma imagem de si, ou seja, o ethos que vai agir diretamente sobre aquele a quem o enunciador se dirige. Pela análise podemos comprovar o que já suspeitávamos: a mulher catadora, negra enfrenta muitas adversidades em seu cotidiano, sofre discriminação de gênero, de raça e pela sua condição social. Desse modo, podemos dizer que as mulheres negras, catadoras de lixo, são triplamente excluídas. Pelo discurso das mulheres entrevistadas, foi possível identificar o ethos de cada uma delas, individualmente, pois essa imagem se constrói na enunciação e pelo enunciado. Dessa forma, não há uma imagem comum, pois cada uma delas é única com suas histórias de vida, com seus pontos de vista criados na interação social, nas relações dialógicas.

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LETRAS – PUC-Campinas – vol. 28 (1) - 2009 – p.97-110

DISCURSO E GÊNERO: IMAGENS DA BELEZA MASCULINA Discourse and genre: images of male beauty Maria Inês GHILARDI-LUCENA1 Tamires do Nascimento LUCENA2 RESUMO: Objetivamos analisar o perfil do gênero masculino na mídia impressa para o que examinamos trinta imagens publicadas em capas, pôsteres e fotografias das reportagens principais da revista Men’s Health (de Junho de 2007 a Julho de 2008), direcionada ao público masculino, das quais seis estão neste artigo. Analisamos a imagem da beleza masculina e a construção do sentido que se dá por meio de um jogo discursivo de elementos visuais utilizados pela mídia. A análise dos dados da pesquisa mostra que os homens mudaram em relação ao passado e a vaidade está cada vez mais presente em suas vidas, embora ainda haja marcas da permanência de algumas características tradicionais nessas publicações. As imagens analisadas apontam para um novo homem que deseja mostrar-se belo, ser admirado e elogiado, sem perder a masculinidade e a virilidade à qual sempre foi relacionado. PALAVRAS-CHAVE: discurso; mídia; gênero masculino. ABSTRACT: Our aim is to analyze the profile of the male genre in the printed media. Thus, we have examined thirty images published on covers, posters and photographs of the main articles in Men’s Health (from June 2007 to July 2008), for the male public, of which six are in this work. We have analyzed the image of male beauty in a discursive game of visual components used by the media. The analysis of the research shows that men have changed, and vanity is more and more present in their lives, even though some traditional characteristics are still present in these publications. The images analyzed indicate a new man who wants to be seen as beautiful, admired and praised, without losing his masculinity and virility. 1

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Pesquisadora e orientadora de Iniciação Científica do Centro de Linguagem e Comunicação da PUC-Campinas. Bolsista de Iniciação Científica 2008-2009 (FAPIC-Reitoria) da Faculdade de Letras do Centro de Linguagem e Comunicação da PUC-Campinas, sob orientação da Profa. Dra. Maria Inês Ghilardi-Lucena.


Maria Inês GHILARDI-LUCENA & Tamires do Nascimento LUCENA

KEYWORDS: discourse; media; male genre.

Introdução A representação do gênero masculino tem sofrido mudanças significantes desde o início do século. A mídia é a grande repercussora da nova imagem do homem por meio dos valores ideológicos que produz. Este estudo é parte de uma pesquisa3 que analisa a representação masculina na mídia impressa à luz da Análise do Discurso de linha francesa. Foram selecionadas, para compor o corpus, as capas, as fotografias das reportagens principais e os pôsteres da revista Men’s Health de 2007 e 2008 – totalizando trinta figuras – com o objetivo de apreender como a vaidade do homem é representada em periódicos destinados ao público masculino. O gênero textual capa foi escolhido para investigação por ser a propaganda do conteúdo da revista e por sua função de fazer com que os sujeitos adquiram o exemplar, enquanto a reportagem principal é responsável pela matéria divulgada pela capa. Os pôsteres são publicados em edições intercaladas da revista e sempre retomam algo divulgado pela reportagem principal, por isso julgamos, também, necessário o seu estudo. Aqui, apresentamos uma pequena amostra (seis figuras) dos resultados obtidos. Análise do Discurso de Linha Francesa Devido à necessidade de transcender o quadro de uma linguística gramatical e imanente que não dava conta de explorar o texto em toda a sua complexidade, surgiu a Análise do Discurso que busca aprender o “exterior” linguístico, abrangendo as condições sócio-históricas de produção do discurso e praticando a “explicação de textos”. Segundo Brandão (2004, p. 106), o discurso “é o efeito de sentido construído no processo de interlocução. O discurso não é fechado em si mesmo e nem é do domínio exclusivo do locutor: aquilo que se diz significa em relação ao 3

Pesquisa de Iniciação Científica da Faculdade de Letras da PUC-Campinas realizada pela aluna Tamires Nascimento Lucena, com bolsa FAPIC/Reitoria, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Inês Ghilardi Lucena, parte do plano de trabalho “Discurso e Gênero: Imagens da Beleza Masculina”, do Grupo de Pesquisa Estudos do Discurso, CNPq.

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que não se diz, ao lugar social do qual se diz, para quem se diz, em relação a outros discursos”. Ainda, a Análise do Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social (...) procurase compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história (ORLANDI, 2005, p. 15).

A Análise do Discurso privilegia a noção de sujeito e de interdiscursividade em seus estudos, acrescentando a ambas as noções de histórias e de ideologia e por isso as formações ideológicas são tão importantes no discurso. Cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas em relação às outras (BRANDÃO, 2004, p. 47).

Segundo Althusser (apud BRANDÃO, 2004), para quem a ideologia é o conceito base, a classe dominante gera mecanismos de perpetuação ou de reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração para manter sua dominação. Da mesma maneira que não há discurso sem ideologia, não há discurso que não tenha relação com outros, já que todos os discursos nascem e seguem na perspectiva de seus “diálogos” com outros discursos, o que vem a ser o conceito de interdisciplinaridade, logo, “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (PÊCHEUX, apud ORLANDI, 2005, p. 17). Foucault (apud BRANDÃO, 2004) concebe os discursos como elementos que não estão ligados por nenhum princípio de unidade e sim por um sistema de relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. “Um discurso é um conjunto de enunciado que tem seus princípios de regularidade em uma mesma formação discursiva” (p. 33). Daí estudarmos o material publicado na mídia – uma dada formação discursiva – à luz dos princípios que regem a construção discursiva, tentando compreender o processo de produção do discurso sobre gênero 99


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social como parte das ideias que determinam o comportamento de homens e mulheres. A questão do gênero No século XX, muitos textos foram escritos sobre o gênero feminino. A evolução das mulheres e a sua luta para a conquista de direitos despertaram a atenção de inúmeros pesquisadores. A ideia de homem forte e racional e mulher frágil e emotiva é antiga. Mesmo nas representações simbólicas, tem-se, para o feminino e para o masculino, respectivamente, o espelho de Vênus (deusa do amor e da beleza) e o escudo de Marte (deus da guerra). Entretanto, gênero é mais do que uma identidade aprendida; é uma categoria imersa nas instituições sociais, o que implica admitir que a justiça, a escola, a igreja (...) são generificadas, ou seja, expressam as relações sociais de gênero. Em todas essas afirmações está presente, sem dúvida, a ideia de formação, socialização ou educação dos sujeitos. (LOURO, apud CONFORTIN, 2003, p. 111).

Recentemente, alguns estudos sobre o cérebro humano notificaram que o cérebro da mulher é desenvolvido de determinada maneira e o do homem, de outra, de tal forma que faz com que as mulheres sejam mais intuitivas, frágeis e sentimentais, enquanto os homens, mais capazes de decisões, nas quais a razão predomina, porém isso não é regra. Após a emancipação feminina – fato que se deu devido a diversos fatores, dentre eles o processo de industrialização e urbanização que tirou os homens das áreas como saúde e educação para colocá-los em indústrias, abrindo espaço para as mulheres, que começaram a frequentar a escola e ocupar cargos importantes, antes tidos como masculinos –, os homens passaram a dividir seu espaço com as mulheres. “Quanto mais uma economia se moderniza, conferindo menos importância ao poder dos músculos e valorizando o poder do cérebro, mais as mulheres participam do poder de trabalho”. (ABURDENE, apud CONFORTIN, 2003, p.118). O século XXI continua sendo o palco da ascensão feminina, porém o interesse dos pesquisadores está mudando. Hoje, procura-se saber como o gênero masculino está sendo representado e seu perfil modificado, em

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decorrência das transformações provocadas pelos movimentos femininos (e feministas). O homem moderno mostra-se vaidoso e, para denominá-lo, surgem palavras como retro e metrossexual. Esse mesmo homem cumpre papéis de pai, marido e profissional e já demonstra uma grande mudança no seu comportamento antes machista e agora mais participativo da vida doméstica. A vaidade A palavra beleza definida no dicionário como “caráter do ser ou da coisa que desperta o sentido de êxtase, admiração ou prazer através de sensações visuais, gustativas, olfativas etc.” (HOUAISS e VILLAR, 2001, p.427) sempre foi associada ao feminino e à angústia das mulheres em tentar alcançar os padrões de beleza impostos pela mídia, no entanto, esse conceito tem feito parte do universo masculino. O adjetivo “vaidosa” não aparecia em sua forma masculina “vaidoso”, já que o termo “pertencia” somente ao espaço feminino. Alguns homens que se cuidavam eram considerados como aqueles que queriam ter boa aparência, vaidosos jamais. Porém se voltarmos um pouco na história, teremos a obsessão da cultura grega pela anatomia perfeita do corpo humano, que foi tão popularizada como a expressão “Deus grego”, até hoje utilizada. Na Grécia antiga, os homens já eram metrossexuais (junção das palavras metrópolis e sexual, referindo-se a um homem urbano de qualquer orientação sexual que se preocupe com moda, estética e cultura). Na França, na Idade Média, os homens de famílias abastadas usavam maquiagem, perucas e vestuário repleto de ornamentos, que também representavam sua alta posição social. No rigoroso mundo burguês do século XIX, “ser homem de verdade” passou a significar menosprezar a vaidade do homem da nobreza para se sobressair por seu poder, seus negócios e sua moralidade. Foi também nesse período que os homens se retiraram do universo da moda, enquanto as mulheres fizeram desse universo e da beleza a principal forma de expressão de sua individualidade e de sua adaptação às convenções sociais. Assim, os representantes do sexo masculino passaram a ser vistos como símbolos de força e virilidade e as mulheres como o “sexo frágil” de beleza sedutora, até que, no século XX, numa era pós-moderna, aconteceu 101


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uma grande revolução: elas começaram a conquistar o seu lugar. Com a revolução feminina, elas se sentiram mais seguras e passaram a disputar o espaço com os homens, principalmente na área profissional. Eles, por sua vez, começaram a conviver com profissionais bem tratadas, com roupas da moda e se sentiram inseguros. Decidiram, então, recuperar a autoestima por meio da aparência física, pois entenderam que esta não poderia ser descuidada. Outro fator que impulsiona a vaidade masculina é a mídia que veicula a imagem dos galãs da televisão, cada vez mais preocupados em passar uma imagem (formação imaginária) atlética, saudável e vaidosa, como sendo o retrato do homem contemporâneo. Definir bíceps e tríceps é apenas um dos objetivos que levam os homens a passarem horas em academias, um dos lugares preferidos para a “produção” da beleza. Os recursos médicos para retardar o envelhecimento e melhorar a aparência física também têm sido bastante procurados. Dentre eles, o implante de cabelos tem lugar de destaque, já que a calvície é uma grande e velha inimiga masculina. O mercado de cosméticos masculino apresenta aumento significativo e um dos rituais de beleza mais executados pelos homens é o ato de se perfumar. Todo ano surgem mais fragrâncias masculinas em frascos cada vez mais atraentes para chamar a atenção do público alvo. A vaidade masculina parece estar na moda e os homens estão aproveitando isso muito bem. As imagens do masculino A seguir, analisamos o que está implícito em algumas das fotografias das publicações que mencionamos na introdução. As formações imaginárias são apontadas do ponto de vista do possível leitor da revista. As capas da Men’s Health revelam o perfil do homem moderno, é claro que da classe média alta, se considerarmos o leitor da revista, mais especificamente. Cada detalhe figurativiza temas que o leitor internaliza, mesmo sem ter consciência de fazê-lo. É a influência que a mídia exerce no leitor.

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Fig. 1: Men’s Health, capa nº 21, Janeiro/2008

Há um homem e uma mulher andando numa praia4, já que é a edição de janeiro (verão). Embora eles estejam de mãos dadas, o homem está à frente da mulher, como se ele mostrasse o caminho. Ele é alto e com os músculos bem definidos; está usando bermuda preta e seu sorriso e olhar estão direcionados ao leitor. A mulher está um pouco atrás, usando um biquíni branco, sorrindo e, embora esteja andando para frente, seu olhar está totalmente voltado para o homem. A posição de ambos mostra a supremacia do homem em relação à mulher. Ele é bonito e forte e por isso é quem a guia, enquanto ela está totalmente encantada por ele, a ponto de não saber direito aonde ir. O apelo feito ao leitor é grande, já que deixa subentendido que, quando o homem é bonito e forte, consegue qualquer mulher, deixando-a sem rumo, totalmente apaixonada por ele. Logo, se o leitor for assim, conseguirá a mulher que quiser.

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Revista Men’s Health. Capa número 21. Janeiro de 2008.

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Fig. 2: Men’s Health, capa nº 24, Abril/2008.

Figura de um homem sem camisa, usando calça jeans e com as mãos nos bolsos5. Ele tem os olhos fechados, a cabeça um pouco voltada para trás e está sorrindo. O homem da foto mostra um abdômen muito bem definido e sua expressão facial é de pura realização e prazer, como se obter aquele corpo musculoso fosse a maior alegria de sua vida.

Fig. 3: Men’s Health, nº 22, Fevereiro/2008 p. 66

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Revista Men’s Health. Capa número 24. Abril de 2008.

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Há uma figura masculina fotografada de baixo para cima6. O homem está apenas de short e com o abdômen exposto, enquanto seu rosto não aparece na foto. A maneira como a foto foi tirada engrandece e valoriza a imagem retratada. O abdômen é muito trabalhado, mostrando músculos em excesso, pressupondo que o homem com o corpo bem musculoso é mais valorizado, ou seja, chama mais atenção, principalmente do público feminino.

Fig. 4: Men’s Health, nº 21, Janeiro/2008 p. 76-77.

Na Figura 4, há a imagem de um tronco masculino sendo abraçado por uma mulher7. O corpo do homem é musculoso e as mãos femininas contornam os músculos do peitoral e abdômen. Subentende-se que as mulheres gostam e se sentem atraídas por corpos musculosos e bem modelados. O poder de conquista masculino aumenta muito com a “presença” dos músculos. Logo, o homem musculoso é muito mais sedutor.

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Revista Men’s Health. Número 22. Fevereiro de 2008, p. 66. Revista Men’s Health. Número 21. Janeiro de 2008, p. 76-77.

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Fig. 5: Men’s Health, nº 26, Junho/2008 p. 48

Nesta foto, há um homem com expressão de grande esforço enquanto corre8. Sua expressão facial é uma mistura de dor e determinação, como se ele chegasse ao seu limite. Logo, para se ter um corpo bonito e definido tem de se chegar ao limite e se esforçar ao máximo. Os músculos representam a força do homem, mantendo o estereótipo de que o homem é o “sexo forte”.

. p. 72 e 73 NÚMERO 20. DEZEMBRO / 2007

Fig. 6: Men’s Health, nº 20, Dezembro/2007 p. 12-13

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Revista Men’s Health. Número 26. Junho de 2008, p. 48.

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Em duas páginas, há quatro imagens de um mesmo homem deitado em uma cadeira de praia ou piscina7. Ele usa apenas uma sunga, deixando os músculos visíveis. As quatro imagens mostram a “evolução” do corpo do mesmo homem. Na primeira imagem, ele é magro e desanimado; na segunda ele apresenta um corpo um pouco mais definido e está um pouco mais animado; a terceira figura mostra um corpo musculoso e a última mostra um corpo extremamente musculoso e sua posição é a de alguém que se orgulha do corpo e sente prazer em tê-lo tão musculoso. A sequência de imagens tenta mostrar a evolução do corpo e do estado de ânimo do homem. No início, ele era magro, desanimado, apático e sua diversão era resumida a ler um livro que carrega em suas mãos. No entanto, a partir do momento em que ele adquire músculos, tudo muda, pois sua auto-estima aumenta e ele se sente à vontade e até confortável ao exibir-se. A análise das características apresentadas pelas fotos possibilitou-nos o elencar das figuras e dos temas relacionados à vaidade masculina. As figuras – elementos concretos – (escritas à esquerda) tematizam determinados temas – elementos abstratos – (escritos à direita) repletos de subentendidos, que dizem sem dizer, sugerem, mas não dizem, como explicam Savioli e Fiorin (2006), a respeito dos textos figurativos, cuja interpretação depende da leitura das ideias implícitas. Vejamos: • Músculos = Força, virilidade, orgulho e preocupação com a estética. • Mulheres = Satisfação, admiração, fascínio, dominação e atração. • Sorriso = Alegria, satisfação, realização, prazer, conquista e bemestar. • Exercícios Físicos = Superação, desafio, dedicação, determinação e disposição. • Livro = Intelectualidade, entretenimento e falta de disposição. A análise dos dados9 mostra que os homens mudaram e a vaidade está cada vez mais presente em suas vidas, embora ainda haja a permanência de algumas características do passado. Os músculos à mostra, em quase todas as fotos, sugerem um homem forte e viril. Subentende-se que, mesmo que ele se mostre preocupado 9

Revista Men’s Health. Número 20. Dezembro de 2007, p. 12-13.

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com o porte físico, tem necessidade de mostrar força e demarcar a virilidade. Os músculos dos homens da Men’s Health são sempre exibidos como motivo de orgulho e quando, na foto, há a presença de uma mulher, os músculos ajudam na hora da conquista, pressupondo que os homens bem musculosos são mais valorizados e chamam mais a atenção do público feminino. As figuras femininas, por sua vez, são jovens, belas e satisfeitas, como sugerem as expressões faciais. A mulher é representada sempre em posição posterior ao homem, enquanto seu olhar está voltado a ele, pressupondo admiração e fascínio. Há o pressuposto de que o homem belo domina a mulher e a encanta profundamente, já que seu poder de conquista aumenta muito com a ”presença” dos músculos. Pode-se pressupor que o homem moderno – forte, bonito e decidido – consegue a mulher que quiser (Fig.2), deixando-a sem rumo, total e incondicionalmente apaixonada por ele, a ponto de precisar por ele ser guiada. As mãos femininas (Fig. 5) envolvendo o abdômen masculino musculoso pressupõem que as mulheres gostam e se sentem atraídas por corpos musculosos enquanto o homem é representado como um conquistador, um “predador-sexual”. Os homens das fotos estão, na maioria das vezes, sorrindo enquanto se olham. A interpretação das imagens visuais sugere os temas alegria, satisfação e realização. Subentende-se que as pessoas em boa forma são mais alegres, pois são satisfeitas com o corpo que exibem e esbanjam realização e prazer por serem praticamente “perfeitas”. O conjunto formado pelo corpo malhado e pelo sorriso pressupõe que o homem com físico bem trabalhado está de bem com a vida e, certamente, preparado para enfrentar qualquer situação e alcançar todos os seus ideais. Em quase todas as figuras, há imagens de aparelhos de exercício físico com os quais os homens se exercitam. Há, ainda, algumas imagens de homens correndo e fazendo exercícios abdominais. A representação do corpo em movimento – superando obstáculos, medindo sua força, desafiando limites – pressupõe que, para se ter uma corpo forte, saudável e definido, são necessários muitos exercícios e esforços físicos. A expressão corporal dos homens dessas figuras pressupõe dor e determinação, mostrando que, para alcançar o corpo perfeito, tem de se chegar ao limite, ao esforço máximo, logo, o corpo musculoso é a recompensa para tanta dedicação. Tais imagens correspondem às expectativas do imaginário coletivo de antigamente e que, ainda hoje, 108


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guarda em sua memória as diferenças sociais de papéis entre os representantes dos sexos opostos. A Men’s Health é direcionada ao público jovem, de classe média alta e de vida sexual ativa. Os indivíduos são tratados como conquistadores e por isso a revista dá dicas de como conquistar cada vez mais mulheres. Os leitores, de alto poder aquisitivo, têm hábitos de consumo que envolvem roupas de grife e tratamentos estéticos, o que determina que o bem-estar do homem moderno está relacionado à sua vaidade e ao fato de ser elogiado, admirado e notado. Considerações Finais As fotos analisadas mostram que a representação da imagem do homem na mídia (impressa) mudou muito. No início do século XX, pensar que os homens pudessem ser vaidosos e, por isso, preocupados com a aparência era algo ilógico. Eles precisavam mostrar sua força e virilidade constantemente, por isso tinham de ser os mais fortes e os mais conquistadores possível enquanto o cuidado com a aparência era resumido a cortar os cabelos e fazer a barba. O homem moderno transmite segurança e satisfação. Ele é bemsucedido, independente, bonito e conquista as mais belas mulheres. Sua preocupação com a aparência não é resumida a atividades físicas, apenas, mas compreende o conjunto formado por atividades físicas, cuidados e tratamentos para a pele, cirurgias plásticas e um cuidado especial em relação ao figurino. O corpo bonito e musculoso dá ao homem uma expressão de satisfação e realização, como se assim ele estivesse preparado para alcançar todos os seus ideais. A representação da imagem feminina sempre expressando fascínio e subordinação em relação aos homens da revista Men’s Health mostra o poder de sedução que o homem bem cuidado tem. A mulher está sempre correndo atrás dele e por ele sendo guiada, diferentemente das imagens nas quais o homem tinha de segurá-la ou agarrá-la. Ele não precisa ir atrás dela, pois ela não resiste ao seu charme e “corre” ao seu encontro. O modo pelo qual o homem conquista a mulher mudou, porém a conquista do sexo oposto ainda representa o grande sucesso do gênero masculino. As formações imaginárias revelam as representações de gênero: os homens modernos cuidam da aparência, são bem-sucedidos, ativos e 109


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sensíveis e, por isso, as mulheres se sentem atraídas por eles. A imagem do “machão” cedeu lugar ao metrossexual, o homem extremamente vaidoso. A “metamorfose” teve seu início com a emancipação feminina e com a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Os homens tiveram de dividir seu espaço, principalmente profissional, com elas e, assim, foram obrigados a cuidar da aparência na disputa pelo lugar que, no passado, lhes pertencia. Ao mesmo tempo em que elas ganharam independência e alcançaram espaço com a “revolução feminina”, os homens passaram a se preocupar com elementos antes pertencentes ao universo feminino. A análise dos dados da pesquisa, portanto, mostra que os homens mudaram em relação ao passado e a vaidade está cada vez mais presente em suas vidas, embora ainda haja marcas da permanência de algumas características tradicionais nas publicações examinadas. As imagens analisadas apontam para um novo homem que deseja mostrar-se belo, ser admirado e elogiado, sem perder a masculinidade e a virilidade à qual sempre foi relacionado.

Referências BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à Analise do Discurso. 2.ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. CONFORTIN, Helena. Discurso e Gênero: a mulher em foco. In GHILARDILUCENA, Maria Inês (org.). Representações do Feminino. Campinas, SP: Átomo, 2003, p. 107-123. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do Discurso: Princípios e Procedimentos. 6.ed. Campinas: Pontes, 2005. SAVIOLI, Francisco Platão e FIORIN, José Luiz. Lições de texto: Leitura e Redação. 5.ed. São Paulo: Ática, 2006.

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