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“A verdade vos tornará livres”

Nestes dias, está em discussão em âmbito federal na Câmara dos Deputados o projeto de lei 2630 de 2020, também conhecido como PL das Fake News. Como é próprio da dinâmica em regimes democráticos, um projeto de lei deve ser amplamente discutido e receber o máximo de contribuições possíveis até que se chegue ao consenso dos parlamentares sobre o texto. E é justamente aquilo que está acontecendo no atual momento, suscitando reações de todas as cores, desde as mais centradas e racionais que levam ao crescimento, às polarizadas que, servindo a certos interesses particulares de grupos, tendem a bloquear os processos.

Contudo, o que não se pode jamais perder de vista, é o sério problema que se encontra na base daquilo que motivou tal movimento, e que deu origem ao processo de elaboração de uma lei: o fenômeno atual das fake News e da manipulação dos dados da realidade em vista do favorecimento dos interesses de determinados grupos, e que foi notavelmente potencializado com o advento, a popularização e a potencialização das redes sociais.

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Ferindo frontalmente a inalienável dignidade do ser humano e da Criação, tal fenômeno é de base muito antigo, acontecendo já em proporções mais contidas nos habituais fenômenos de manipulação de notícias que vão desde programas de TV e rádio popularescos sem compromisso com a verdade, passando pelos relatos descontextualizados e contados pela metade, até aquelas fofocas de bairro que visavam diminuir a boa fama de alguém.

A comunicação, na ordem da Criação, é um dos dons mais belos dados pelo Criador. Quando permanece fiel a este projeto, se torna lugar de cultivo e crescimento na comunhão e na construção da vida em comum na verdade e na jus - tiça. Porém, quando esta se distorce tendendo a servir a interesses egoísticos e manipulatórios de poder de determinados grupos, se torna lugar de morte e divisão. Já no livro do Gênesis, a Sagrada Escritura relata exemplos que ressonam esta perversão: o assassinato de Abel pelas mãos de seu irmão Caim, a confusão das linguagens na Torre de Babel etc.

O Papa Francisco, em sua mensagem para o 52° Dia Mundial das Comunicações Sociais, alerta para o fato de que o sintoma principal de tal fenômeno encontra-se na distorção e na alteração da verdade, tanto no plano individual como no coletivo. Prosseguido no mesmo documento, o Papa ressalta que aquilo que chamamos de Fake News pode ser expresso como:

... desinformação transmitida on-line ou nos mass-media tradicionais. Assim, a referida expressão alude a informações infundadas, baseadas em dados inexistentes ou distorcidos, tendentes a enganar e até manipular o destinatário. A sua divulgação pode visar objetivos prefixados, influenciar opções políticas e favorecer lucros econômicos.

A aderência de tais conteúdos encontra-se próprio em sua natureza mimética, ou seja, em sua capacidade de parecer plausível. Longe do confronto dialógico, este fenômeno vem potencializado pelo atual modelo de fechamento em grupos de interesses alimentado pelos algoritmos que não permitem que a ideia diversa venha visualizada facilmente. Baseados em uma dinâmica de desejo-satisfação, ou seja, uma notícia ou ideia que não concordo provavelmente não aparecerá facilmente no meu feed , tais motores que movem as redes sociais favorecem os monólogos doutrinantes que nutrem os grupos de WhatsApp , gerando acúmulo de informação e não formação de consciências. Em modo muito sábio, assim se expressa Francisco:

A dificuldade em desvendar e erradicar as fake News é devida também ao fato de as pessoas interagirem muitas vezes dentro de ambientes digitais homogêneos e impermeáveis a perspectivas e opiniões divergentes. Esta lógica da desinformação tem êxito, porque, em vez de haver um confronto sadio com outras fon - tes de informação (que poderia colocar positivamente em discussão os preconceitos e abrir para um diálogo construtivo), corre-se o risco de se tornar atores involuntários na difusão de opiniões tendenciosas e infundadas. O drama da desinformação é o descrédito do outro, a sua representação como inimigo, chegando-se a uma demonização que pode fomentar conflitos. Deste modo, as notícias falsas revelam a presença de atitudes simultaneamente intolerantes e hipersensíveis, cujo único resultado é o risco de se dilatar a arrogância e o ódio. É a isto que leva, em última análise, a falsidade.

Para além do calor dos discursos do momento atual, mecanismos de regulamentação e responsabilização são extremamente necessários, dada a novidade e potencialidade destrutiva de tal fenômeno. Resta a nós começar a quebrar esta dinâmica monótona (um só tom) e passar a ouvir a sinfonia complexa da realidade em busca de discernir o bem. Ler os sinais dos tempos é tarefa do cristão a fim de compreender os caminhos de Deus que são Vida, Verdade e Justiça.

Libertação da falsidade e busca do relacionamento: eis aqui os dois ingredientes que não podem faltar, para que as nossas palavras e os nossos gestos sejam verdadeiros, autênticos e fiáveis. Para discernir a verdade, é preciso examinar aquilo que favorece a comunhão e promove o bem e aquilo que, ao invés, tende a isolar, dividir e contrapor. Por isso, a verdade não se alcança autenticamente quando é imposta como algo de extrínseco e impessoal; mas brota de relações livres entre as pessoas, na escuta recíproca. Além disso, não se acaba jamais de procurar a verdade, porque algo de falso sempre se pode insinuar, mesmo ao dizer coisas verdadeiras. De fato, uma argumentação impecável pode basear-se em fatos inegáveis, mas, se for usada para ferir o outro e desacreditá-lo à vista alheia, por mais justa que apareça, não é habitada pela verdade. A partir dos frutos, podemos distinguir a verdade dos vários enunciados: se suscitam polêmica, fomentam divisões, infundem resignação ou se, em vez disso, levam a uma reflexão consciente e madura, ao diálogo construtivo, a uma profícua atividade.