E meio n1 2016

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O que eu percebia aqui nesses casos era uma atitude importante: se você não está satisfeito não vai mudar nada simplesmente negando o convite, era mais importante aceitar para criticar aquilo do lado de dentro. E foi o que eu tentei fazer: imprimi o retrato da minha carteira de identidade emitida no RJ em 32 envelopes e escrevi cartas para a minha família, pros amigos e para a produção, além de alguns colegas da exposição. Essas cartas foram enviadas como Carta Social, uma categoria dos correios para correspondências com menos de 10g escritas à mão ao custo de um centavo de Real. Nas cartas eu falava sobre mim, manifestava saudade das pessoas e ainda apontava, em especial para os envolvidos na exposição, meu descontentamento com o convite. Além disso, as cartas continham instruções para que as pessoas montassem um quebra-cabeça com o meu retrato, e assim se dava a minha presença na abertura da exposição: os meus convidados todos reunidos junto à minha imagem, uns se apresentando aos outros, a família e os amigos. Ah, a carta endereçada à produção e à curadoria apresentava o custo do trabalho e exigia reembolso: R$0,32. O trabalho se chamou Carta Social, Cartapretexto ou carta-protesto e acho que isso tem bastante força no início dessa vontade de ver o outro mais presente e ainda apontava para a maneira de tratar alguns trabalhos como ações afetivas. Além disso, fui percebendo uma presença forte de autorreferência, o que pode ser evidenciado superficialmente com o autorretrato, mas que chega a umas camadas mais profundas como as necessidades de superação de alguns limites, de alguns padrões da personalidade. Isso tudo passa por uma busca de identidade nesse novo território e de que isso não é encontrado apenas atravessando a paisagem em grandes túneis espalhados pela cidade, mas que a paisagem humana é muito importante para reflexo/ reflexão da minha própria identidade. E mais. Tenho impressão de que me sinto ‘salvo’ de alguma maneira pelo olhar que fui construindo na relação com a arte, em especial pelo uso da câmera obscura.

Perceber pelas sombras, pela representação, pelo uso de um instrumento ótico que desorienta, um óculos que dificulta, que problematiza o olhar, me faz questionar e me deixa atento aos estímulos provocados por simples reflexão de luz. Talvez eu venha tentando estimular isso no outro, talvez eu queira sim- plesmente, e de um jeito bem simples mesmo, que o outro também tenha essa experiência e para isso preciso convidar a entrar e não só a assistir do lado de fora. Marcos Sari Você pode falar um pouco sobre essas suas ações de construir a obra em situações cotidianas, na rua de forma que me parece bastante direta? Tiago Rivaldo Acho que já respondi um tanto isso falando da descoberta de que não estava só fotografando na rua, mas que estava provocando curiosidade, de que o estranhamento pela forma da câmera ou pela minha postura frente a ela estimulava algum desvio do olhar para o cotidiano e acho que arte para mim é um tanto isso: mudança de percepção. E que através dela podemos mudar o olhar sobre a cidade, sobre o outro, sobre nós mesmos, sobre a vida de uma maneira geral. A desorientação é um dado que me interessa por aí também, realizar algo no ambiente da arte, em um museu ou em uma galeria parece ter a garantia de relação entre artista e público estabelecida pela obra. Realizar uma ação na rua e muitas vezes não apontá-la como arte e produzir estímulos visuais, sensoriais, corporais me parecem gerar algum conflito que desestruture o habitual. Encarar o outro e convidá-lo a uma ação que não está habituado, que lhe faça sair do comum da sua rotina, de forma transitória, sem monumentalizar a arte me parece propor um compartilhamento de experiências, de maneira que não tenha esse outro como instrumento de realização e nem como simples espectador, passivo e beneficiado por uma proposição estética ‘generosa’ mas que eu possa levar dele também algo em troca.


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