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JORNAL LABORATÓRIO | JORNALISMO | UFMS

MS vivido Resistência indígena, mulheres das terras, avanço do agronegócio e pequenas grandes cidades desafiam um estado em (des) construção

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#ano 28 2022.1

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


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EDITORIAL

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Do Sul

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que caracteriza uma identidade? Como ela surge? Existe uma única identidade? O que significa ser sul-mato-grossense? A fim de encontrar uma resposta para essas perguntas, a equipe do Projétil foi às ruas em busca de pessoas que diariamente criam e vivenciam esse estado. Nesta edição você encontra conteúdos sobre a culinária, a música, as fronteiras, as artes, as lutas sociais, a miscigenação entre os povos, a educação e também as violências, o agronegócio e os preconceitos. Fatores que refletem na construção das identidades, no plural, sempre influenciadas por múltiplos agentes e diferentes dinâmicas. Nossos repórteres relatam sobre os desafios da comunidade LGBTQIA+, no segundo estado do Centro-Oeste que mais mata esses corpos, na reportagem “Trabalhe, Lute, Viva, Pose”. Outra luta que permeia a formação identitária da região é a da reforma agrária, que você pode ler, e entender o empoderamento feminino na conquista pela terra, no especial “Filhas e Mães da Terra”. Publicamos o perfil do grupo indígena que, por meio da música, reforça a presença dos povos originários no estado, no potente grito do rap: “Mato Grosso do Sul é indígena”. Em nossas páginas também apresentamos os encontros culturais e o desenvolvimento da história da região, a partir da gastronomia, das festas culinárias, das fronteiras com o Paraguai e a Bolívia, e dos patrimônios materiais e imateriais desse “estado do Sul Global”. Ao longo do processo de construção das identidades, elementos se destacam enquanto outros se per-

Turma do Projétil responsável por essa edição dem. Para que uma característica se torne símbolo de uma região é preciso que outras estejam em segundo plano. Nessa perspectiva de esquecimento, nossa editoria de arte preparou um raio-x sobre esses pequenos grandes lugares, na infografia “Cidades Invisíveis”. Um elemento que se destaca e é um dos símbolos do MS é sua natureza majestosa. Na editoria Silhuetas, nossa equipe de imagem buscou as intersecções da natureza e do urbano no ideal pantaneiro. Um dos biomas mais importantes do mundo, o Pantanal, aparece também na editoria de Opinião. Após dois anos de produções remotas, devido à Covid-19, o Projétil voltou a ser realizado de forma presencial. A equipe pode experimentar a imersão nas várias narrativas, por meio dos encontros presenciais,

das entrevistas olho no olho, das viagens pelas cidades do estado, observando, sentindo e registrando o que compõe a vida sul-mato-grossense. Esperamos que, assim como nós, você conheça mais a respeito das múltiplas identidades desse jovem estado, de apenas 44 anos, 79 municípios, 357.125 km² de extensão territorial. E que possa se identificar. Ou não.

Acesse a versão web do Projétil com o conteúdo integral do impresso e material adicional em texto e fotos.

Boa leitura!

EXPEDIENTE Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – 2022/1. Produzido por acadêmicas e acadêmicos vinculados à disciplina Jornal Laboratório II sob orientação das professoras Rafaella Lopes P. Peres e Katarini Miguel, e com o apoio do professor Silvio da Costa Pereira e do Grupo ‘Pensar o Desenho’, com orientação da professora Constança Lucas. Ilustração da capa: Ana Clara Klem. Alunos de Jornal Laboratório | Editoria Executiva: Amanda Maia Ferreira Pirani, Aliciane Rodrigues Rocha, Beatriz Rieger e Raquel de Oliveira Alves. Editoria de Imagem: Amanda Melgaço Moreira Machado, Giovanna Esperidião da Silva Montoso, Isabella Procopio Perez e Maria Eduarda Metran De Miranda. Editoria de Arte: Amanda Allison Feitosa Gonzalez, Anna Gabriela Rozante da Silva, Gabriella Alves Couto, Morris Fabiana De Messias e Rafaella Moura Teixeira. Editoria de Opinião: Carlos Eduardo Eleutério Bastos, Carlos Eduardo Ribeiro Fernandes de Oliveira, Daphyne Schiffer Gonzaga, Simone Aguilheira Barbosa Gallassi Da Silva e Vitória Fernanda Martins Gomes. Editoria de Reportagem: Ana Laura Menegat de Azevedo, Ana Beatriz Santos e Silva, Andrella Ayumi Okata dos Santos, Evellyse Michelle De Souza Moraes, Emilly Mira Alves Santana, Fernando de Carvalho Correa Chaves, Gabriel Gill Ramires, Idaicy Solano Do Nascimento, Isabella Ledo Motta, João Pedro Dos Santos Flores, Letícia Dantas Candido Brito, Maria Eduarda Schindler, Maria Isabel Manvailer Siqueira, Mariana Gomes De Lima, Patricia Martins da Silva, Raíssa Trelha, Rafael Pereira de Lima e Valesca da Silva Cruz. Monitoras: Maria Eduarda Boin e Giovanna Silva. Alunos do grupo ‘Pensar o Desenho’: Ana Clara Klem, Bianca Esquivel, João Lucas, Karina Teruya, Laura Braga, Lucas Costa, Lucas Sorio, MARINA COZTA e SYUNOI (Sara Welter). Impressão: Grafinorte. Correspondência – Jornal Laboratório Projétil – Curso de Jornalismo – Faculdade de Artes, Letras e Comunicação (FAALC) – Cidade Universitária, s/n, CEP 79.070-900 – Campo Grande / MS. Fone: (67) 3345.7607 – E-mail: jorn.faalc@ufms.br (Jornalismo UFMS).

As matérias veiculadas não representam, necessariamente, a opinião da UFMS ou de seus dirigentes, nem dos docentes ou da totalidade da turma


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O Mato Grosso do Sul é um caldeirão

sanfona. Hoje, é consagrada como a primeira mulher negra a tomar posse na Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Lenilde Ramos é e representa, como ela mesma diz, “Mato Grosso do Sul, de carne, alma, osso e espírito”. Se o estado fosse personificado, a representação certamente seria a sua existência.

Outro aspecto importante é o social, porque todos os ferroviários começaram no trabalho braçal. Somos uma família do proletariado. Somos uma família de trabalhadores. Da classe trabalhadora. Então isso criou essa consciência. Meu pai tinha essa consciência de ser trabalhador, de ter que lutar pela classe. Meu pai foi comunista. Ele fazia parte de um grupo de trabalhadores que era ligado ao partido socialista. Alguns inclusive na época da ditadura foram presos. E [outro ponto importante é] essa questão da gente fazer parte de um grande equívoco da história brasileira, porque eu considero o que fizeram com a ferrovia um genocídio. Nós ferroviários fazemos parte, tristemente, desse processo do desmonte da ferrovia.

Projétil: Você nasceu numa família de ferroviários. Como esse aspecto influenciou sua trajetória? Lenilde Ramos: Foi importantíssimo primeiro porque é uma influência histórica. Os meus avós maternos chegaram em Campo Grande para trabalhar na construção da ferrovia. Meu avô saiu do Rio de Janeiro naquelas levas de peão e a minha avó veio com os pais dela, que também vieram trabalhar na ferrovia. Eles tiveram 11 filhos e todos os homens foram ferroviários e as mulheres se casaram com ferroviários, minha mãe foi uma delas. Então esse aspecto histórico é importante.

P: Quando e por que começou a ser ativista cultural? L: Acho que [vem] da infância. Meu pai lia muito e ouvia muito rádio, ele achava que eu tinha a idade dele e me passava essas coisas. Criei o gosto de ir atrás. Eu lia muita notícia, muito jornal, ouvia muito rádio. E o fato de eu ter consciência de onde vim e das raízes, isso nunca abandonei. Até hoje tenho minhas raízes populares. Sou do trabalho braçal até hoje. Levo minha arte como um trabalho braçal. [Quando] teve o movimento do golpe militar, eu era uma menina, tinha 12 anos, mas já estava com minha anteninha ligada que alguma coisa estava acontecendo. As freiras colocavam a gente

Lenilde Ramos é um ícone sul-mato-grossense. Sua história e a do estado estão entrelaçadas Texto: Alicce Rodrigues | Raquel Alves

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enilde Ramos é escritora, musicista, compositora e ativista cultural. Aos 70 anos de idade, teve o privilégio de visitar 73 das 79 cidades de Mato Grosso do Sul para conhecer o que o estado tem de arte, de raízes culturais, de artistas e de histórias. Filha de ferroviários e de pai comunista, o nome Lenilde nasceu da vontade do pai Severino de homenagear o revolucionário russo Lênin. Seus pais incentivaram sua alma artística desde criança e hoje ela carrega na bagagem vivências ilustres e memoráveis. Na infância, foi a primeira aluna negra num internato particular. Por influência da mãe Áurea, se encantou pela sanfona. Com 16 anos, foi chamada para prestar depoimento na polícia federal ao compor e apresentar uma música antirracista. Grávida, e de “barrigão gigante”, como ela mesma conta, viu seu filho mais velho ganhar o apelido de “Mato Grosso do Sul”, porque nasceu no ano em que o estado foi criado. Acompanhou de perto o processo de criação do hino do estado e teve a linda habilidade de adaptá-lo para a

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Foto: Maria Eduarda Metran

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Foto: acervo Lenilde Ramos

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de joelho pra rezar porque os comunistas iam dominar e eu falava “porque tô rezando para os comunistas se meu pai é comunista?” Aí ficava meio confusa. Depois teve o assassinato do [Martin] Luther King e eu acompanhei tudo isso e as minhas amigas achavam meio estranho porque elas não compartilhavam do meu gosto de querer saber desses assuntos. P: Sabemos que você sabe tocar piano, violão e sanfona. Em qual gênero musical se enquadra seu trabalho? L: Eu coloco meu trabalho musical em dois pilares. Um pilar é o trabalho autoral, que eu não tive tanta oportunidade de me dedicar como meus amigos, Paulo Simões, os Espíndolas. Eles resolveram assumir o trabalho autoral, por mais difícil que fosse. Porque a carreira artística é uma mega-sena, você concorre com 50 milhões de pessoas todos os dias. Mesmo assim eles decidiram encarar. Eles falaram “por que você não vem também?”, mas eu não tinha coragem de me aventurar nesse ponto. Porque eu já estava trabalhando aqui. Depois que terminei a faculdade, fui trabalhar num jornal. Eu já tinha um pé na minha sobrevivência que dependia muito do meu trabalho, então não tive coragem. Eu tenho um outro pilar que chamo de trabalho braçal, porque comecei a tocar em eventos, festas, casamentos. Eu gostava muito de cantar. Esse trabalho braçal acho que fiz muito mais do que o autoral, porque era o que me dava grana. P: Por que começou a tocar sanfona? L: A sanfona foi uma herança da minha mãe, apesar de ter morrido cedo, ela era muito musical. Dançava super bem. Quando meu pai casou com minha mãe ele tinha 49 e ela 19. Meu pai era tão revolucionário que ele viu a musicalidade da minha mãe e resolveu incentivar. Naquela época a mulher podia tocar na orquestra, mas quando casava não podia mais. Quando eles casaram meu pai a colocou numa escola de música. Ela foi estudar acordeão. Chegava em casa, eu pegava a sanfona monstruosa da minha mãe. Um dia fui tentar levantar com a sanfona e caí. Meu pai ficou furioso e saiu pra rua bravo. Ele voltou com uma sanfoninha e aí comecei a aprender, com 7 anos. P: E a literatura? Como começou? L: Eu sempre fui aquela menina que gostava de redação. Escrever é exercício, é ralação, quanto mais você rala, mais aprende. Quando fiz 50 anos, vi que tinha uma vida inteira ainda pela frente. Refleti que já tinha dado espaço para a música, para trabalhar com produções e projetos culturais, para viajar e conhecer lugares, e me envolver culturalmente com outras culturas. Foi a partir dessa reflexão que decidi me envolver profissionalmente com a literatura, e ser uma velhinha escritora.

Lenilde possui um amplo repertório musical pelo amplo incentivo de seu pai (na imagem superior o pai da artista a acompanha em seu primeiro casamento)

E eu não sei escrever ficção, escrevo vivências. Se alguém falar “ah, inventa uma história”. Eu não sei inventar história. Já vivi tanta coisa. Tem um poema que eu escrevi e diz assim: “Eu passei o tempo inteiro | Sem saber ganhar dinheiro | Vida em glória? | Não | Hoje vendo a minha história.

O Mato Grosso do Sul é o cenário das minhas histórias, porque é o da minha vida Lenilde Ramos

P: Como você insere o Mato Grosso do Sul nas suas produções? L: O Mato Grosso do Sul é o cenário das minhas histórias, porque é o da minha vida. Se não tivessem criado o Mato Grosso do Sul, e fosse ainda o Mato Grosso, talvez eu não me sentisse tão parte dele. Mergulhei tanto na vida do nosso estado, que eu digo que não ganhei na loteria, mas essa riqueza e esse privilégio de ver o Mato Grosso do Sul e todas as suas personalidades surgirem valeram muito mais. O apelido do meu filho mais velho era Mato Grosso do Sul, porque ele nasceu no ano em que o MS foi assinado. E eu estava grávida, com um barrigão gigante quando deram a notícia da lei de criação do estado. Nesse dia eu saí e curti muito na [rua] 14 de julho e na [avenida] Afonso

Pena. Meu filho tem a idade do MS. Mais envolvida com o estado do que isso impossível. Então é Mato Grosso do Sul mesmo, de carne, alma, osso, espírito, tudo. P: Como foi acompanhar as mudanças tecnológicas que aconteceram na cultura, especialmente na sul-mato-grossense? L: A tecnologia entrou tão naturalmente na minha vida como entrou a música, como entraram as artes e o amor pela cultura em geral. E sempre vi a internet como uma ferramenta, já que acompanhei as mudanças das tecnologias e dos costumes, e muito naturalmente me inseri nessas mudanças. Desde criança eu me adapto com muita facilidade. Tanto que na música, logo depois que as pessoas começaram a produzir os seus CDs, chegou uma época em que já sabíamos que essa tecnologia já era. E aos artistas que continuaram insistindo em sair por aí vendendo CDs, eu só dizia: “para com isso, vai botar suas músicas na internet!”. Hoje tenho dois livros escritos somente na internet, que ainda não botei no papel. “O baú da Tia Lê”, com mais de cem histórias, e o meu projeto de poemas minimalistas. As pessoas me perguntam “quando você vai publicar?”, eu falo “tá publicado! Vai na internet que você acha” (risos). Mas eu vou publicar sim esse material no papel. P: Como foi participar da criação da Fundação de Cultura do Estado e como a criação do Mato Grosso do Sul influenciou na produção artística?


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L: Foi um período maravilhoso. Meu trabalho era de dar visibilidade para a nossa cultura, além de defini-la. Tive o maior prazer de organizar eventos para mostrar a nossa música, a nossa cultura, a nossa pintura, o nosso cinema, e toda a nossa expressão cultural. A criação de Mato Grosso do Sul profissionalizou a minha produção artística. Antes eu fazia porque gostava, era hobby, era legal tocar com meus amigos. Sem pretensões, sempre me envolvi com histórias relacionadas ao estado. Mas a partir do momento que eu assumi um trabalho profissional em que eu tinha que dar um resultado profissional, olhei para tudo de outra forma, e busquei me profissionalizar para atender essas exigências. P: Como avalia a representatividade negra na cultura sul-mato-grossense? L: Existe um nome, doutor Luiz Alexandre de Oliveira, praticamente desconhecido hoje, mas ele é o nome de um pedacinho de rua no começo da Via Park, logo na saída da Afonso Pena. Ele foi um negro, que a mãe trabalhou em 1914 como cozinheira na cidade. Quase cego, com problema na visão, conseguiu estudar, se formar advogado, e ele pra mim representa o peito e a raça dos negros em Mato Grosso do Sul. Você pode perguntar para qualquer personalidade negra do nosso estado, professores e professoras, mestras, doutoras, médicos, sem contar os ar-

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tistas, como foi chegar ali. Todos vão te responder que não foi fácil, não foi fácil para ninguém. Mato Grosso do Sul tem um grupo de pessoas que deram o exemplo e o incentivo para que todos os outros jovens estudantes acreditassem, e dissessem: se ele conseguiu, eu posso também. E não só a cultura negra, mas a indígena também. O que nós precisamos é dar visibilidade e garantir a justiça social, dando oportunidades e educação para todos, para que cada um crie a sua própria oportunidade. Mas eu acredito que a classe política é a grande culpada pela injustiça social, porque a partir do momento em que persiste essa cultura centenária de querer enriquecer desde o período colonial, nada anda pra frente. A diferença de oportunidades é brutal e criminosa no Brasil. P: O nosso estado é composto de diferentes culturas, como as indígenas, paraguaias e bolivianas. Como você definiria essa mistura? L: Mato Grosso do Sul é um caldeirão. Aqui no sul, temos uma cultura indígena forte, apesar de altamente discriminada e vítima de genocídio. Temos uma cultura paraguaia fortíssima, assim como a japonesa. Campo Grande mesmo é uma cidade que cresceu na mão da imigração, árabes, libaneses, espanhóis, japoneses. O MS é cheio de portugueses, italianos… Antigamente quando tinha lista telefônica, podíamos observar a quantidade de

sobrenomes italianos. É um caldeirão de culturas. E todas elas se juntam para criarmos essa cultura cosmopolita que é a do nosso estado. P: Como você caracteriza a identidade sul-mato-grossense? L: Na época em que foi criado o Mato Grosso do Sul, vivemos a efervescência de uma ebulição cultural fantástica. Quando todos souberam da divisão, foi um momento de indagação de qual era a nossa música, a nossa literatura, a nossa cara, já que tudo antes era focado em Cuiabá, distante daqui. Os professores, os universitários, os jornalistas e os intelectuais se reuniram para buscar a identidade de Mato Grosso do Sul. E eu entendo a identidade do estado com um pé na raiz e outro no contemporâneo.A nossa raiz que vem das fronteiras, como o Chamamé que surgiu na Argentina e através do Paraguai chegou até aqui e se enraizou, de primeiros músicos de raiz como Delio e Delinha, Jandira e Benites, o ritmo da polca paraguaia. E até hoje, quando as novas gerações começaram a compor, elas beberam nessa fonte, como Almir Sater, Paulo Simões e Geraldo Espíndola. Ao mesmo tempo, o cinema, a pintura, também foram buscar nessas fontes. Simultaneamente às raízes, nós ouvíamos Beatles, Bob Dylan, sabíamos o que estava acontecendo no eixo Rio-São Paulo. Os artistas regionais também bebiam de uma influência global. Manoel de Barros é um exemplo, fala dos passarinhos e dos bichos lá do meio do Pantanal de uma forma tão contemporânea, que já foi até cotado para receber o prêmio Nobel de Literatura. Temos Humberto Espíndola nas artes plásticas, artista que inventou o movimento da bovinocultura, mas que expõe no mundo inteiro e já foi citado até por José Saramago.

Pintura feita por João Sebastião da Costa em Lenilde

Lenilde em evento realizado no Teatro Glauce Rocha em 2012

raquel.alves@ufms.br aliciane.rodrigues@ufms.br


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Por ser um estado jovem, o pesquisador Valmir Batista Corrêa fala que a identidade de MS ainda está em construção

Uma identidade em construção Pesquisador da história de MS destaca a guerra com o Paraguai, a fronteira com a Bolívia e o bioma Pantanal como elementos na formação de um estado em resistência Texto: Amanda Maia | Beatriz Rieger

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professor Valmir Batista Corrêa, 75, é pesquisador da história de Mato Grosso do Sul e tem mais de 16 livros publicados sobre o tema. Natural do estado de São Paulo, morou por 22 anos em Corumbá, foi docente do curso de História na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), no campus de Corumbá, Secretário de Educação da cidade, vereador e se aposentou trabalhando na Pró-Reitoria de ensino da UFMS. Em uma tarde ensolarada de segunda-feira, a reportagem do Projétil entrevistou o professor e pesquisador no Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, para entender melhor a identidade do estado. Para Valmir, essa identidade ainda está em construção. “Eu penso que [...] ela não está acabada. Por que não está acabada? Porque ainda não tem a identidade”. Na sequência, confira trechos da entrevista realizada com o pesquisador. A matéria completa pode ser acessada online no site www.jornalismo.ufms. br/projetil ou pelo QR Code no editorial. Projétil: Como você analisa a participação de Mato Grosso do Sul, na época ainda Mato Grosso, na Guerra com o Paraguai? Valmir Corrêa: A guerra com o Paraguai foi um momento histórico de separação, ocuparam o sul de Mato Grosso e depois ficou uma área desabita-

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da, uma área que foi novamente reocupada e teve muitos paraguaios que vieram para cá. Mato Grosso do Sul era mais norte, e o pessoal daqui vivia quase que no apêndice de Mato Grosso. Tanto é que ainda hoje nesse sul, os paraguaios têm muita força na colonização, desde alimentação e bebidas, e isso foi formando o estado. Isso é importante porque definiu um separatismo que vai se distanciando da região norte. Então pra mim, a guerra com o Paraguai foi um divisor de águas entre o norte e o sul, e que vai se moldando à essa história, essa ideia de reconstrução desse sul, porque essa parte ficou praticamente destruída com a guerra. A guerra foi uma destruição. Não falo que era identidade, mas a reconstrução de uma área que possibilitou a formação de um estado que hoje é extremamente importante. P: Você acompanhou o processo de criação do Estado? Como foi essa mudança de Mato Grosso para Mato Grosso do Sul, e como isso impactou na formação da identidade sul-mato-grossense? V: Primeiro lugar, eu não falo identidade, eu acho que é uma coisa que está se construindo. E até falam “eu tomo tereré”. Que identidade é essa aí? Eu penso que para você falar em identidade, tem que estudar a região, é o que eu faço. Ninguém pensava [no nome] Mato Grosso do Sul, tem gente que falou em estado do Pantanal, tem também a história do estado chamar Maracaju. Mato Grosso do Sul foi uma ideia dos militares que não deram nem bola para os chamados separatistas aqui no sul. Aqui tinha a Liga Separatista, um monte de coisa assim. Eu penso que Mato Grosso do Sul ainda está em fase de construção, não está acabado. Porque ainda não tem identidade. Até pouco tempo atrás eu via a gurizada aqui em Campo Grande sentada na porta de suas casas tomando chimarrão, tereré [...] Eu acho que vai fazer parte da nossa identidade - chipa,

tereré, sopa paraguaia - em algum momento isso vai ser uma identificação. Eu acho que a regionalidade não é identidade, já fui xingado porque falo isso, mas não sou regional. As coisas são regionais, são costumes regionais. P: Mato Grosso do Sul possui em seu território 60% do bioma Pantanal. Como isso influencia no estereótipo da cultura sul-mato-grossense? V: O Pantanal é um bioma específico, de uma maravilha extraordinária que vale a pena conhecer. Sou fascinado no Pantanal, vivi 22 anos olhando aquela beleza. Acho que todo sul-mato-grossense, para falar em identidade, tem que visitar o Pantanal! Não que seja a identidade do estado, mas é um bioma característico. Tem costumes regionais, muitas características regionais também. Em Corumbá você vai ver peixe, saltenha, vai ter coisas do lado boliviano, uma cerveja boliviana. P: Se fosse possível descrever a identidade sul-mato-grossense em uma palavra, para você, qual seria? V: Para mim, o Mato Grosso do Sul é um corajoso. Primeiro pelo que viveu, pelo que vive, pela luta do dia a dia, pelas coisas que se perderam. Você vê [...] essa barbaridade que fizeram com a Noroeste, tiraram a estrada de ferro. Eu tentei defender isso, defender um trem que saísse daqui e ia até a ponta. Você não precisava andar de ônibus, andava de trem aqui. Seria uma coisa maravilhosa, mas arrancaram todos os trilhos. Ainda tem muita resistência. Eu diria coragem e resistência. Pela vida e pela luta. Não é brincadeira o que se fez nesse estado [...] Essa coragem e essa resistência vão dar essa cor de identidade. biarieger13@gmail.com amanda.maia@ufms.br


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Educando nas águas Texto: Vitória Fernanda Martins Gomes Ilustração: Ana Clara Klem

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egunda-feira: despertar, comer um pão com café, dar um abraço na família e partir. No porto do município de Corumbá (MS) um barco está à espera. Com um motor potente, o transporte fluvial demora em torno de duas horas até o seu destino, escola das águas. A chegada é por volta das nove horas da manhã, são 90 km da cidade e as atividades se iniciam pela tarde. Reencontrar os familiares, só no próximo final de semana. Essa costuma ser parte da rotina da profissional que atua em uma das escolas das águas no Pantanal. Escolas das águas são instituições de ensino que atuam em zonas rurais de difícil acesso no Pantanal Sul. Ao todo, 11 escolas fazem parte desse conjunto e dependendo da região, sofrem um impacto direto dos ciclos dos rios Paraguai e Taquari. O público estudante é composto por crianças ribeirinhas, assentadas, filhos de pescadores e peões. A Escola Municipal Rural Extensão Jatobazinho ou Escola Jatobazinho, como é mais conhecida, é a ampliação da Escola Municipal Rural Polo Paraguai Mirim. Está localizada às margens da Baía Vermelha, Área

de Preservação Ambiental (APA) do município de Corumbá e é mantida por meio da parceria entre o Instituto Acaia e a Prefeitura Municipal da cidade. Atende crianças ribeirinhas das regiões do Castelo, Maracangalha, Paiaguas, Paraguai Mirim, São Francisco e Serra do Amolar. Funciona em regime de alternância – os alunos possuem atividades durante todo o dia, dormem na escola de segunda à sexta e retornam para casa aos sábados. O ano escolar é formado por quatro bimestres. No ano de 2022, o período letivo teve início no mês de março, terá um pequeno recesso no mês de julho e as atividades se encerrarão em dezembro. Ao todo, 59 crianças estão matriculadas na escola, em classes que vão do primário até o 5º ano do Ensino Fundamental I. Escolas como estas são de extrema importância para a população local e fazem toda a diferença na comunidade. O relatório da “Ação diagnóstica” realizada pela Secretária Municipal de Educação de Corumbá, em parceria com a Secretária Estadual de Educação de 2004, identificou os principais problemas vivenciados por ribeirinhos. O documento destacava as questões educacionais: crianças, jovens e adultos

não possuíam acesso à escola, o que impactava diretamente no elevado índice de analfabetíssimo. Além disso, a presença do trabalho infantil também foi mencionada. De modo geral, escolas carregam consigo a responsabilidade de trazer novas perspectivas para crianças e familiares. E a distância da área urbana torna esse peso ainda maior, já que para a maioria dos estudantes, essa é a única oportunidade de ser alfabetizado. Aos familiares e alunos que desejam ir além do ensino fornecido pela escola, é dado o incentivo de seguir com os estudos, por exemplo, na Fundação Bradesco - Instituição de Ensino que tem como objetivo promover inclusão e desenvolvimento social, oferecendo educação gratuita de qualidade para pessoas de baixa renda. A fundação fica localizada no município de Bodoquena (MS), a 266 quilômetros de Corumbá e dedica-se ao Ensino fundamental, médio e técnico. Por conta da distância ainda maior, as crianças continuam longe de seus pais por até dois meses. Não é apenas aprender a ler, escrever, somar e dividir, é também socializar. É um espaço de vivência que tenta incorporar e aproveitar ao máximo a cultura nativa e o que a natureza oferece. A educação nos leva a caminhos

inimagináveis, mas isso só é possível se existir entendimento sobre o conteúdo aprendido e fizer sentido a quem se fala. Crianças ribeirinhas entendem mais sobre peixes do que sobre celulares do ano. Então, ao citar exemplos, o professor tem que estar preparado para infiltrar-se em um grupo que não necessariamente é o seu de origem. Esse pode ser um dos maiores desafios da profissão neste contexto. Por isso, investimentos na equipe pedagógica também são realizados. Ser professora das águas em período integral é um ato de coragem. Deixar filhos e familiares em casa na segunda-feira sempre é doloroso, mas quando se dão conta, já é sábado, dia de descer pelo rio Paraguai para o reencontro. A volta é mais rápida, a correnteza da água ajuda a impulsionar o barco. Em uma hora e meia estão novamente no porto da cidade de Corumbá. O próximo barco, só segunda-feira.

viihfernanda66@gmail.com anaclaraklem@gmail.com


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OPINIÃO

Não me vejo mais nela Texto: Morris Fabiana Ilustração: Laura Braga impossível falar da história e arte sul-mato-grossense e não falar da família Baís, Lídia Baís ou Morada dos Baís. Então, mais uma vez, você vai ler algo sobre eles, mas provavelmente não da forma que está acostumado. Assim como Lídia Baís, gosto de me colocar em minhas produções, então peço licença ao/à caro/a leitor/a, pois mesmo sem possuir o nome Baís, irei me incluir neste texto. Quando era pequena, ou melhor, criança, pois pequena ainda sou, conheci Lídia e nada tirava da minha cabeça o quanto éramos parecidas e que talvez eu pudesse ser uma reencarnação dela. Afinal, nós duas éramos jovens que contemplavam diversas manifestações artísticas, que eram consideradas loucas pelas famílias e além dos seus tempos, ou no meu caso, resolvida demais para sua idade. Não fui trancada em um manicômio pelo meu pai e obrigada a casar para sair de lá. Também não precisei fugir de casa para buscar meus sonhos. Mas sou filha dessa terra e, mesmo antes de conhecer Lídia, tinha para mim que um dia faria com que meus feitos fossem a glória da minha família, assim como sua famosa frase “por minha causa vocês ficarão na história". Ainda estou muito longe de trazer alguma glória a alguém, mas com o passar da idade e o entendimento de quem sou neste país desigual, percebi que, infelizmente, o caminho que Lídia percorreu é bem diferente e bem mais largo do que terei que percorrer. E este é o ponto que quero chegar. Apesar de 122 anos de distância entre nós, Lídia passou a vida lutando pela sua liberdade, e eu vivo lutando pelo meu espaço. Lídia era filha de uma das famílias mais ricas do estado, morou na primeira mansão da capital e tinha todos os privilégios que a pele clara oferece. Já eu, faço parte dos 358 mil campo-grandenses com CadÚnico, moro em uma das partes nada valorizadas da cidade e tenho a pele escura que de vez em sempre fecha algumas portas. Não quero diminuir as conquistas de Lídia, mas não posso deixar de evidenciar, pra te fazer pensar que mesmo que estes 122 anos não existissem, e eu vivesse na época dela ou

ela na minha, nenhuma das duas estaria lutando e representando uma a outra. Pois em 1900, mulheres como eu, lutavam por um trabalho digno, lutavam para serem vistas como algo a mais do que meras empregadas domésticas. E mulheres como Lídia, na minha época, mesmo que lutando contra problemáticas importantes ainda presentes, estariam fazendo isso em seus tempos livres, entre suas viagens para o exterior, focadas no autoconhecimento. Lídia foi revolucionária e ousada para sua época. Sua história ainda impacta. Nesse ano comemorativo dos 100 anos da ‘Semana de Arte Moderna’ de 1922, dizem que sua arte é uma das poucas do estado que encontrou o caminho dos modernistas. Ela passou por várias religiões, não seguia regras, se casou e pediu divórcio depois de cinco dias, se pintou ao lado de Jesus, fez uma exposição de 10 dias no Rio de Janeiro, foi para Europa, se relacionou com homens e mulheres, escreveu livros e músicas, fez o que lhe deu na telha durante todo o século XX, em um país/estado que até hoje é considerado conservador e machista. E eu? Ainda nem consegui colocar o pé para fora do MS. Então, mesmo que eu seja a reencarnação da pequena grande mulher chamada Lídia, nessa pequena grande mulher chamada Morris, sinto em dizer que ainda seguimos sem religião, experimentando múltiplas expressões artísticas, se relacionando com homens e mulheres, e contrariando várias vezes a família e a expectativa social. E o autoconhecimento que tanto buscávamos e que nos aproxima, ao mesmo tempo mostrou que não posso me enganar e achar que somos parecidas. As medidas que nos aferem são diferentes.

morris.f@ufms.br @laurart_s


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No grito do Rap: Mato Grosso do Sul é indígena O grupo criador do ‘rap indígena’ no Brasil, Brô Mc’s, revela qual é a visão do país sobre os povos indígenas, ao cantar sobre demarcações, luta e tradição Texto: Mariana Lima | Maria Isabel Manvailer | Raíssa Trelha Ilustração: João Lucas

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gosto pelo estilo começou ainda na infância. Em 2006, desafiado a montar uma apresentação que fugisse dos padrões da escola, Bruno Veron decidiu que o rap seria a sua expressão. Quando foi mostrar a letra para o professor, logo de cara veio o estranhamento. “Eu falei que tinha um rap para cantar e ele disse: ‘rap? mas o que é isso?’”. Clemerson Batista, Bruno Veron, Charlie e Kelvin Peixoto, duas duplas de irmãos das etnias Guarani-Kaiowá e Terena, nasceram em uma reserva indígena localizada na cidade

de Dourados (MS), em uma espécie de periferia rural. Com ruas precárias, casas simples, sem muita estrutura e um comércio pobre, o local por si só já demonstra o tratamento do estado para com os povos originários. Prontos para mostrar o talento com as palavras musicadas e transmitir a cultura indígena por meio da arte, os jovens atraíram atenção de alguns professores da Escola Estadual Marçal de Souza. A partir daí, o sonho com a música e o que viria a ser o Brô Mc ‘s começou a nascer.

“Não tinha ninguém que falasse por nós, que gritasse a voz do povo Guarani-Kaiowá”

A vivência recorrente de conflitos com fazendeiros por demarcação de terras e a realidade das aldeias sendo noticiada de forma distorcida nas rádios da cidade, fez com que os quatro decidissem utilizar o rap para reivindicar direitos, expressar indignação e levar a cultura de seus povos para além da reserva. Nas músicas o grupo dá o grito que pede


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socorro para os guatekas, o mesmo grito que ouvem dentro da aldeia que é cercada de retomadas. “A gente escuta quase diariamente, barulhos de estouro e tiro, esse tipo de grito não chega aos lugares”, desabafa Kelvin. A música Terra Vermelha retrata bem a resistência dos “guerreiros do passado massacrados”.

Terra Vermelha, do sangue derramado Pelos guerreiros do passado massacrados… Fazendeiros, mercenários, latifundiários, Vários morreram defendendo sua terra, Onde vivo, aldeia, já existia guerra koape che há e ojehuakue ymakue reta ko yvy he (aqui estou falando o que aconteceu antigamente nessa terra Jaguapiru, Bororó Terra onde nascemos e vivemos Com as etnias Kaiowá, Guarani, e Terena Tudo se passou A realidade vem chegando Na vós do Brô, pintados pra batalha apeche aiko há ape arecha mbepa ojehuakue haupecha che ajerure nhandejara omoredyhaguã cherape nderape (o lugar onde moro, estou vendo o que aconteceu, assim eu peço a deus que ilumine o meu caminho) Eu peço a Deus que ilumine o meu caminho onde eu estiver, eu nunca estarei sozinho É, eu nunca estarei sozinho.

Motivados pelas histórias contadas no rap nacional, impulsionado com os Racionais Mc’s, os artistas mesclam em suas letras as emoções de suas histórias com a realidade vivida pelo povo Guarani-Kaiowá. Assim como Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, o Brô não se intimida com a reação do público às suas letras, que segundo eles, é considerada pesada até pelo próprio movimento hip-hop, e reflete a realidade indígena. A representatividade índigena que o grupo fala em suas músicas está presente em quase toda a equipe de trabalho que faz o Brô acontecer. Com exceção da produtora Fabi Fernandes, Karaí, como eles a denominam, desde o marketing digital até as roupas utilizadas nos shows, tudo é produzido por indígenas. Segundo Fabi, o grupo precursor da arte contemporânea ancestral abre portas para a comunidade que busca expressar a cultura, língua e o talento dos povos originários. Algumas das artistas que compõem a sua equipe são nomes conhecidos nacionalmente, por exemplo, a figurinista Dayana Molina, referência em vestuários indígenas, e também a ex-atriz, Eunice Baía que interpretou a indígena Tainá, no filme de mesmo nome.

“O Mato Grosso do Sul é indígena”

Desde o início da carreira uma das maiores dificuldades enfrentadas foi a falta de shows em Mato Grosso do Sul. Brô Mc’s já se apresentou em diversos locais do país, e até em Frankfurt, na Alemanha, a convite do Weltkultoren Museum, mas raras vezes em sua própria cidade. Para Bruno, os grandes festivais musicais do estado não valorizam os artistas sul-mato-grossenses, a não ser grupos sertanejos. Brô Mc´s não foi convidado, por exemplo, para participar do “Campão Cultural”, o primeiro Festival de Arte, Diversidade e Cidadania, organizado pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Campo Grande (Sectur), entre novembro e dezembro de 2021. Convidado pela rapper Cris SNJ para fazer uma participação em seu show no festival, o grupo foi a Campo Grande, mas não pode subir ao palco. Os organizadores do festival disseram que o Brô era “estrelinha demais” e cobrava um cachê muito alto. “Nesse evento que aconteceu há um tempinho em Campo Grande a gente foi boicotado”, aponta Bruno. Criar um grupo de rap e ignorar os preconceitos distribuídos em uma sociedade que nega sua origem é uma luta diária do Brô. Conhecidos também por não se calarem, o grupo viveu no começo da carreira uma objeção dupla: o estranhamento do movimento hip-hop diante da imagem de indígenas cantando rap, e de outro lado, caciques e lideranças da aldeia questionando o motivo de tal empenho com a música de denúncia. “O maior desafio que enfrentamos como grupo foi o preconceito. Quando a gente ia tocar, as pessoas falavam que lugar de índio era na aldeia, que estávamos

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Mato Grosso do Sul é o segundo estado com a maior população indígena do Brasil, de acordo com o IBGE 2010, com mais de 70 mil pessoas autodeclaradas. A região onde moram os integrantes do Brô Mc’s abriga a maior concentração das etnias Guarani, Kaiowá e Terena do país, com 18 mil indígenas. Karaí: homem branco; Jaguapiru: cachorro magro; Eju Orendive: venha com nós; Guatekas: junção das três etnias (Guarani,Terena,Kaiowá).

indo fazer a dança da chuva e coisas assim”, continua Bruno. Mesmo antes do sucesso nos palcos e nas redes sociais, os jovens não escaparam de sofrer xenofobia. Bruno afirma que até em casa, os próprios pais pediam para que não falassem em guarani quando estivesse na escola, pois assim evitariam os estigmas com o idioma. Com uma irmandade que vai além dos laços sanguíneos das duplas de irmãos, o Brô não desanimou com os primeiros comentários negativos que recebeu. Em 2009, quando lançaram o álbum inaugural, saíram de porta em porta pelas casas da aldeia para vender a cinco reais o ‘piratão’, como o chamaram. Em 13 anos de existência, o grupo luta contra todas as barreiras que tentam impedir a expressão de sua arte, seja na aldeia ou na cidade. Após ganharem repercussão cantando sobre o cotidiano que os indígenas da Jaguapiru e Bororó vivem, os preconceitos com o rap indígena foram se dissolvendo no povoado e deram lugar à parceria e apoio. As letras em guarani-kaiowá, língua materna dos integrantes, trazem um alerta sobre a importância de manter viva a língua já quase extinta e torná-la conhecida entre os não indígenas, segundo eles. “Tem músicas que é só na nossa língua, muitas pessoas não entendem, xingam e ofendem nas redes. Para nós não importa, o que eles tem que saber é que a gente é originário e falamos guarani-kaiowá”, afirma Bruno e todos confirmam com a cabeça. Mais do que estabelecer a representatividade das vozes originárias, as músicas mescladas com dois idio-


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Jarahá

Foto: Luan Iturve

(Estamos Levando) Iporãpe koape aju ehendu che nhe’e porahei Na humildade eu venho, escute meu canto Só ke mbaepa koape ajapo,tekoha tekoha, retomada retomada Só que realmente venho fazer, meu lar meu lar, retomada retomada Rehegua aju achuka Sobre isso vim mostrar Karai guarani che aju koape ambopy Homem branco em guarani vim tocar Mbaeichaguapa ore rogueru O que realmente viemos trazer Kaiowa guarani mbarete nhande hente mbarete koape che nhe’e Kaiowa guarani nosso povo é forte Com força, minha fala vim trazer Nhanderú ha nhandesy ombovava pe mbaraká Nhamderu e nhandesy chacoalhando mbaraká Mborahei ko mbarete ko ape ojelutá Reza forte na luta Nhamderu guasú omanhã yvategui omopotî Nosso Deus de lá de cima olha e limpa o nosso caminho Ko ape nhanderape upepe jaguatahanguã Limpando pra gente caminhar

Integrantes do Bro’ MCs: Bruno Veron, Charlie Peixoto, Kelvin Peixoto, Clemerson Batista

mas trazem à tona uma realidade que há tempos as Karaís tentam apagar do solo brasileiro: O Brasil e, sobretudo, o Mato Grosso do Sul, são indígenas.

“Cantar no Rock in Rio é a forma de levar o grito de socorro das três etnias”

Além dos músicos que influenciam o Brô na composição de suas músicas, o grupo também está na lista de inspirações de outros grandes artistas, que viram neles a concretização para também trilhar um sonho. O grupo é fortalecido ao saber que Jason Fernandes, mais conhecido como Xamã, rapper carioca, que se autodeclara afro-indígena e alcançou primeiro lugar das mais ouvidas no Brasil em 2021, e 38º nas paradas mundiais com o hit “Malvadão 3”, se inspirou neles. “No tempo que ele vendia balinha no farol, ele viu a gente no arco da lapa quando fomos fazer o nosso primeiro grande show no Rio de Janeiro”.

Xamã disse aos meninos que eles o estimularam a não desistir de fazer o que gosta. O que parece ser o ápice da carreira de um artista, para o grupo acontece de forma natural. Participar do Rock in Rio 2022 é “normal”, segundo eles, consequência de um trabalho de anos. Brô Mc´s subirá ao Palco Sunset em setembro de 2022 junto com o rapper Xamã. “Cantar no Rock in Rio é a forma de levar o grito de socorro das três etnias e representá-las”, afirma Kelvin. O grupo também participou da série documental do DJ Alok, que fala das raízes sonoras dos povos originários do país. Além de gravarem três músicas para o novo álbum do artista. Uma das músicas da parceria é trilha sonora da novela “Pantanal” da rede Globo, “Jarahá”, que mistura português e guarani, e é sobre a luta por demarcação de território e a cultura indígena. No grito do rap, Brô Mc’s mantém firme a origem indígena de Mato Grosso do Sul. “Iporãpe koape aju ehendu che nhe’e porahei” (na humildade eu venho, escute meu canto).

So ke jahechá tenomdepe oi ypy Guarani ha kaiowá ibatalhare yvy Mas sempre vimos os ypy e Guarani e kaiowá batalhando por suas terras Tekoha ymaguare jajevyta jaipe’a Terras de origem que vamos retomar Ko ape ko nhamderu ha’ekuera oikuaa Os anciãos sempre sabem que essas terras é sempre nossas Jaha!jaha!jaha!jaha! (2x) Vamos!vamos!vamos!vamos (2x) Hake!!! Cuidado!! […]

belmanvailler@gmail.com raissatrelha1009@outlook.com mariana.g@ufms.br @jaoarte


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O agro não é pop Texto: Cadu Fernandes Ilustração: Ana Clara Klem | João Lucas

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ma dinâmica comum do nosso sistema econômico é tentar ocultar dos consumidores o conhecimento sobre a cadeia produtiva das mercadorias que chegam às nossas mesas. Aliado a isso, uma campanha do agronegócio constrói no imaginário popular a ideia de que o latifúndio “é a indústria de riqueza do Brasil”. Portanto, questionar o agro seria como colocar-se contra o crescimento e o desenvolvimento do país. Palco de conflitos indígenas e disputas por território, Mato Grosso do Sul têm a maior concentração de terras particulares do país com 92%. As terras indígenas ocupam 2,2%; os assentamentos 1% e os grandes latifúndios formam 83% do estado. Os dados são do Atlas Agropecuário de 2020. Tudo isso contribui para uma forte identidade agro que paira no MS. Um traço comum a todas as propagandas exibidas na TV é enfatizar a aparência produtiva e moderna dos latifúndios do agronegócio. Nas campanhas procuram destacar os empregos que o agro propor-

ciona, mas silenciam intencionalmente as condições e relações de trabalho que se desenvolvem nas lavouras e usinas. Cabe ressaltar que, de acordo com dados divulgados pela Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), Mato Grosso do Sul é o 3º estado com mais resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Outro elemento atrelado aos latifúndios é o uso massivo de agrotóxicos que permite a conversão da produção agropecuária em commodities. Um relatório publicado no mês de abril deste ano pela ONG Public Eye, apontou que 32% dos produtos classificados como “extremamente tóxicos”, produzidos pela Syngenta, são consumidos no Brasil. Na parte central de toda esta engrenagem estão as multinacionais do veneno que despejam toneladas de agrotóxicos em terras brasileiras, já que em seus próprios países a comercialização desses produtos não é permitida. De certa forma, produtores de herbi-

cida fazem do Brasil e da América Latina o quintal para onde escoam sua produção e retiram seus lucros. Segundo o Ibama, as compras do Carbendazim - um tipo de agrotóxico amplamente comercializado no Brasil, mas proibido na Europa - chegaram a 4,8 mil toneladas em 2018. Nosso país ocupa o lugar de maior consumidor mundial de agrotóxicos e isso não é à toa. Mas sim devido a um modelo ligado à economia mundial que coloca o Brasil no lugar de produtor e exportador de commodities. Temos um dos maiores rebanhos bovinos do planeta, uma extensão de terras agricultáveis colossal, mas focamos a maior parte da produção agrícola para exportação e não para permitir o maior acesso da população aos alimentos. Além disso, o Brasil segue distante de uma soberania alimentícia, principalmente devido a arquitetura econômica que privilegia o latifúndio em detrimento daquilo que realmente abastece o mercado interno: a agricultura familiar. Segundo o último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a agricultura familiar do Brasil abrange 3.897.408 estabelecimentos rurais. São 77% dos estabelecimentos agrícolas do país, ocupando mais de 10 milhões de pessoas (67% do total

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recenseado), responsáveis por parcela expressiva da oferta dos alimentos básicos da mesa dos brasileiros. Agricultores familiares respondem por 11% da produção de arroz, 42% do feijão preto, 70% da mandioca, 71% do pimentão. De acordo a Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico, Produção e Agricultura Familiar (Semagro), a agricultura familiar foi responsável pela comercialização de mais de 1,3 mil toneladas de 138 tipos de produto em Mato Grosso do Sul no ano de 2021. Existe um constante descrédito do debate acerca da qualidade dos alimentos, do alimento orgânico e da luta de organizações que possibilitam um caminho alternativo além do sistema produtivo vigente. A prática de estado agroexportador passa pela depreciação do lugar do campesinato na sociedade contemporânea. É preciso ter clareza de que a luta ambiental e econômica é também a construção e a resistência pela busca da soberania alimentar, que passa necessariamente por um novo projeto de produção agrícola. Isto é, uma dinâmica que apoie a agricultura familiar, que não promova o desmatamento e a expropriação de camponeses. Afinal, o agro não é pop.

caduribeiro33@hotmail.com @anaaklem @jaoarte


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Em busca de dias melhores Texto: Daphyne Gonzaga Ilustração: Laura Braga

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ara começar a entender o que é ser mulher no Mato Grosso do Sul é preciso levar em conta toda a complexidade cultural que o estado oferece como pano de fundo para a construção de suas histórias. Raça, classe, contexto familiar e territórios geográficos, são fatores determinantes na formação de gênero, para além das influências de indígenas, negros, imigrantes orientais e po-

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vos fronteiriços próprios do nosso Sul. Um povo que segue em busca de sua(s) identidade(s), desde o processo histórico de divisão do território, que culminou na criação de um estado legítimo e independente. Esses e tantos outros aspectos nos dão ferramentas na tentativa de compreender os desafios enfrentados pelas mulheres em um dos estados mais violentos contra esse gênero. Dos 29 vereadores eleitos na gestão atual (2021-2024) na capital do Mato Grosso do Sul, apenas uma é mulher, Camila Jara, de 27 anos. Já entre os deputados estaduais, a única representante feminina, Mara Caseiro, assumiu a cadeira após um dos membros ter falecido. História parecida na prefeitura de Campo Grande, foi preciso a renúncia do prefeito para que a vice Adriane Lopes assumisse o cargo no último dia quatro de maio. Nas outras cidades do estado, prefeito e seus respectivos vices: logicamente, a maioria esmagadora, homens. Este é apenas um dos indícios da falta de representatividade feminina, principalmente entre os tomadores de decisão. Passaram-se apenas 45 anos desde a criação do estado. Antes disso, o seu território, que fazia parte do Mato Grosso, era formado por pequenos municípios dispostos ao longo do trajeto das Monções e dos tropeiros; as chamadas cidades de passagem, com poucos

habitantes e afastadas dos grandes centros. O foco era a agricultura e os pequenos comércios, que serviam àqueles que transitavam entre a capital Cuiabá e outros destinos como Minas Gerais e São Paulo. Apesar de todas as mudanças, o principal meio de subsistência continua sendo a agricultura e a pecuária, ramos historicamente dominados por homens. Não que as mulheres não desempenhem o trabalho na lida diária com o gado, na liderança dos peões e na condução dos negócios familiares, mas existe um apagamento da importância dessas mulheres na história do agronegócio, assim como na história da construção do estado em geral. Tudo isso se reflete na forma como essa cultura machista permanece sendo propagada dentro do estado, visto que quem conta a história são majoritariamente homens brancos que perpetuam uma tradição patriarcal e excludente. É importante pontuar que assim como alerta o “Violentômetro”, da Subsecretaria de Políticas para a Mulher do Mato Grosso do Sul (SPPM/MS), a noção de violência vai além dos crimes como assassinato e agressão física. A mulher precisa lidar com agressões diversas que perpassam a violência psicológica, moral, patrimonial e sexual; sem contar o preconceito no mercado de trabalho e o desmerecimento de seu papel na sociedade em geral. Uma das perspectivas para tentar explicar tamanha opressão poderia ser a falta de acesso à informação. Muitas vezes, o homem do campo está inserido em um contexto no qual, além de não ter educação de qualidade, acaba por fazer parte da disseminação de uma cultura local tradicionalista, e por vezes antiquada, que perpetua a submissão da mulher. Cultura esta que atribui o papel, único e imutável, de mães e donas de casa às mulheres na sociedade, servindo, dessa forma, exclusivamente para garantir a manutenção da estrutura familiar e da dominação masculina. Segundo dados da Cartilha de Violência contra as mulheres do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), o MS tem a terceira maior taxa de feminicídio do país, sendo que grande

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parte dos crimes acontecem nos municípios com menor número de habitantes, as “cidades do interior”. Acontece que esse índice está longe de ser atribuído apenas ao conservadorismo cultural. Karla Melo, cientista social e ativista em causas feministas e LGBTQIA+ acredita que existem inúmeros fatores que contribuem para que o estado seja considerado um dos mais violentos contra as mulheres. “Além de uma cultura histórica conservadora, a dificuldade de acesso à informação e educação adequada, o enfraquecimento dos movimentos sociais em favor da causa e a falta de presença feminina na gestão do estado tornam mais difícil a vida da mulher no MS”. Na década de 2010, o estado vinha numa crescente trajetória em defesa dos direitos das mulheres. Nessa época, foi criada a primeira Coordenadoria Estadual das Mulheres do país, a primeira Casa da Mulher Brasileira, e houve a criação de grupos pioneiros, como o Coletivo Feminista Lídia Baís. Acontece que os movimentos sociais, segundo a psicóloga e ativista feminista em Campo Grande Pietra Garcia, estão passando por um momento de enfraquecimento. Ela afirma que o caminho para melhorar este cenário é simples na teoria, mas que requer muito esforço e dedicação na prática. É preciso que as sul-mato-grossenses se juntem para propor medidas de proteção e empoderamento, com o objetivo de combater o preconceito de gênero e a garantir que sejam atendidas as necessidades das mulheres em toda a sua diversidade. No Brasil, as políticas públicas não são implementadas de outra forma, que não a partir da pressão das ruas. Também é necessário continuar esse trabalho nas urnas, garantindo através das eleições a representatividade feminina nos órgãos públicos para que as vozes das mulheres tenham mais chances de serem ouvidas. Só assim, será possível tornar o estado do Mato Grosso do Sul mais seguro, acolhedor e justo para as suas mulheres.

daphyne.sch@gmail.com @laurart_s


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Filhas e mães da terra Participação feminina no Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra em Mato Grosso do Sul contribui para a construção da identidade rural do estado Texto: Ana Laura Menegat e Maria Eduarda Schindler

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andra vestia um xale bordô com mandalas estampadas e trazia o olhar atento, coberto por óculos da mesma cor do tecido que lhe aquecia os ombros. As meias trocadas, uma roxa e a outra com listras brancas e pretas, reforçavam o aconchego espontâneo criado pela voz da sul-mato-grossense. A luz amarelada da sala incidia sobre seus cachos castanhos enquanto a militante e professora universitária lembrava com carinho dos afetos vividos no assentamento “Emerson Rodrigues”, localizado no município de Terenos (MS). Após viver dois anos em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Sem Terra (MST) e cinco como assentada, Sandra Procópio da Silva, 55, descobriu

um câncer de mama em 2012 e precisou voltar para a cidade. Algumas famílias assentadas, vizinhas ao lote de Sandra, fizeram uma vaquinha para ajudá-la no tratamento. Com o pouco que tinham, conseguiram plantar ainda mais esperança no corpo-terra da amiga. “Quando eu fiquei doente, teve um dia que chegou [em casa] uma militante, uma pessoa do assentamento. Foi tão bonito. Ela foi tirando da sacolinha de plástico, moedas, moedas, moedas. Um real, cinco reais, dez reais, aquilo ali deu R$ 1200 em moedas e notas de cinco e dois reais. Foi extremamente emocionante”, conta. Luci Dalva Maria de Souza, 45, assentada em Terenos e professora na Secretaria de Educação do Estado de MS (SED) em Campo Grande,


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Dona Ana e a representação das mulheres assentadas entrevistadas para a reportagem

destaca o sentimento de comunidade como uma das coisas mais lindas na luta camponesa. Ela conta que quando se mudou para o acampamento viu famílias grandes, com quatro filhos ou mais, dividirem um único pacote de arroz, mesmo sem saber se os filhos teriam o que comer no dia seguinte. Luci carrega consigo o amor e os ensinamentos de Dona Ana, que a fortaleceu e não a deixou desistir do acampamento. Ana Alves Ferreira do Nascimento, 57, é movida pela fé em Deus contra a pressão policial. Fechou estradas, defendeu seus direitos e hoje é feliz em seu lote, no coração da fazenda Santa Mônica e a poucos metros de Luci. Para Alessandra Morais Silva, 44, a vivência desse sentimento aconteceu por meio do grupo de teatro “Utopia” e pela adoção de filhos e filhas da luta. Ale, como é conhecida, abraçou com unhas, dentes, garras e raízes sua oportunidade de ter um pedaço de terra e fez disso um espetáculo. Vê a cultura como uma forma de desenvolvimento pessoal e ascensão social, além de fortalecer os laços no assentamento “17 de Abril” em Nova Andradina (MS), onde mora. Além das artes, a paranaense é apaixonada por relações humanas e, sem nenhum filho ou filha paridos, decidiu nomear-se “mãe de luta” das crianças Sem Terrinha que atravessaram seu caminho, como a menina Helloa, que faleceu aos 20 anos, mas que aos sete argumentava contra falas machistas (acessar o QR code e ver box no site). Essas “filhas e filhos da luta”, carregam suas famílias de útero consigo, mas ganham mais mães, pais, irmãos e irmãs pela força da vida na militância.

Vida no assentamento e militância no MST

A luta pelo reconhecimento e valorização da identidade assentada inicia antes da primeira cerca rompida ou do primeiro acampamento montado; começa com a compreensão da importância atribuída à terra na formação da comunidade e da pessoa como cidadã. Luci cresceu ouvindo a mãe falar sobre o cuidado com a terra e com isso foi construindo um afeto que hoje entende como parte da sua identidade. Quando decidiu acampar, não sabia como iria viver durante esse período nem o tempo que iria durar. A professora conta que

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levou pregos, lona e comida para um mês, deixou de pagar algumas contas, vendeu algumas coisas da casa, e se mudou definitivamente para o acampamento. “Eu me sinto mais livre para ser quem eu sou, na minha essência, me sinto dona de mim e mais empoderada”. Ser acampada mostrou uma realidade que Luci não acreditava ser capaz de viver um dia e permitiu romper com os estereótipos que a vida assentada tem. Os acampamentos são caracterizados por uma luta intensa pela terra, neles as pessoas assumem em todo seu corpo a identidade Sem Terra e é nessa busca por um lote que as famílias se fixam ao chão até conseguirem. “Remete a barraco de lona, porque você organiza e junta um grupo que vai acampar na frente de uma fazenda que você está pretendendo que seja destinada para a Reforma Agrária”, explica Sandra. Além da lona, a professora explica que os barracos são feitos com qualquer tipo de material que sirva para montar moradia e continuar na luta. Alguns grupos passam mais de dez anos esperando e é apenas quando a terra chega que essas pessoas passam da condição de acampadas para assentadas, cada uma com seu lote.

Eu me sinto mais livre para ser quem eu sou, na minha essência, me sinto dona de mim e mais empoderada Luci Dalva

Antes de ser assentada, a família de Dona Ana vivia com a barriga vazia e a mente preocupada. Após anos de luta, ela carrega em sua pele retinta e no sorriso continental o amor pela vida no campo e uma fé inabalável. “Deus não me deu só a casinha, eu tenho meu sítio também. Ali eu tenho meu porco, eu crio minha galinha, tenho meu ovo para comer, tenho uma mandioca prantada pra comer. Eu não passo mais fome nem necessidade. Eu não tenho nada, mas depois que eu fui para o Sem Terra, minha filha, eu nunca mais passei necessidade”. Ale lembra nitidamente do dia em que finalmente o assentamento “17 de Abril” iria nascer. Era 2005 e todos estavam reunidos planejando como seriam as comemorações da abertura das porteiras, mas a atmosfera alegre logo se dissipou. As 2139 famílias que seriam assentadas receberam a notícia de que o grupo japonês Teijin Desenvolvimento Agropecuário Ltda estava recorrendo para permanecer com a posse da “Fazenda Teijin”, em Nova Andradina (MS). Os 100 mil hectares seriam repartidos em dois lotes após a antiga propriedade ser declarada improdutiva pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2002. Da totalidade da terra, 67 mil hectares seriam

destinados ao MST e à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Mato Grosso do Sul (Fetagri MS), e das 2139 famílias, 507 faziam parte do MST. “O embate foi muito forte, houve muita pressão. Na época, o grupo ameaçou retirar as indústrias do Brasil caso a gente ganhasse a terra. A estratégia da gente foi ocupar a fazenda, fizemos guarita de saco de areia e fechamos as entradas”, lembra Ale. Após um ano das famílias abraçarem incessantemente o combate, o Grupo Teijin retirou os animais da fazenda e, na época, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ellen Gracie, suspendeu a liminar que interrompia a realização do assentamento e devolvia a terra aos antigos donos. Assim, surgiu o assentamento “17 de Abril”, dando a chance das 507 famílias do MST proporcionarem à terra do sudeste do Mato Grosso do Sul um tratamento mais adequado. Para ela, não haveria outro nome mais justo para dar ao assentamento, já que a data carrega um significado de resistência para quem participou desse ato. 17 de abril é o dia destinado, internacionalmente, à luta dos trabalhadores do campo e Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, em memória ao Massacre de Eldorado do Carajás, marcado pelo assassinato de 19 Sem Terras.

Identidade Sem Terra

O sentimento de pertencimento e de se reconhecer em um espaço ou grupo é o que Luci coloca como o principal fator na militância. Ela não se entende apenas como assentada, mas também como Sem Terra, mesmo após conquistar seu lote. A professora carrega com orgulho sua vivência e vê essa identidade também como coletiva, porque ainda existe luta. Sandra sente o assentamento como possibilidade de reconquistar e reconstruir a própria humanidade. “O Movimento Sem Terra e os movimentos sociais dos quais eu vim me fizeram pensar e sentir, e experimentar pequenos pedaços do mundo que eu acredito”. Ale defende que na luta de classes, uma pessoa não existe de forma individual e que é o todo que compõe sua identidade. “Eu só passei a existir quando eu passei a fazer parte do coletivo do movimento pela terra”, afirma. Nessa perspectiva, Sandra relaciona essa identificação com processos de reflexão e consciência. “Acho que hoje a gente precisa se perguntar mais qual planeta a gente gostaria de deixar para as próximas gerações. Em nome do capital, a vida fica em último lugar, e a gente corre o risco de produzir novas gerações que não saibam mais plantar comida, que acham que tudo que essa sociedade produz, pode ser encontrado nos supermercados ou nas lojas”, enfatiza a pesquisadora. Sandra entende que só é possível conhecer plenamente uma realidade quando se vive ela de perto, com os pés no chão, e mesmo morando na cidade, ainda


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carrega sua identidade assentada, que a faz questionar o consumo excessivo de recursos naturais e humanos. “Conseguir perceber a humanidade que tem por trás dos alimentos, torna a gente um ser humano mais conectado com a terra, com a vida, com a natureza. Entender que a gente está aqui só de passagem, mas nesse tempo a gente não precisa domar a terra no sentido brutal com que o capitalismo ensinou a gente a fazer”. A terra, apesar de selvagem e indomável, é um ser vivo organizado. Ela precisa de cuidado, consciência e planejamento. Se faz casa, fruto e solo de disputas. Na visão de Luci, ser mulher assentada significa buscar a liberdade. “É resistência, no MS principalmente, porque estamos no estado do agro e do boi e eu sinto muito a questão do machismo estrutural também”. Para Sandra, isso justifica a importância do MST, pois ele deixa explícito a luta de classes e tensiona o mito do Brasil como um país democrático e igualitário.

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e nas demais instâncias do coletivo. Isso fez com que em 2006 a Direção Nacional do MST passasse a ser composta por um homem e uma mulher de cada estado do país. Além disso, a Instrução Normativa nº 97, de 2018, assegura a posse da terra para a mulher. Apesar dessa busca por igualdade e equidade, os caminhos ainda correm por rios turvos repletos de silenciamentos que reproduzem a lógica patriarcal. Em confrontos com a polícia, as mulheres vão na frente. Ao cuidar do lar, das crianças, da alimentação, as mulheres vão na frente. Silenciadas, as mulheres, mães, camponesas, militantes, vivas, vão na frente. Luci entende que a censura acontece às vezes com apenas um olhar que diz “não fale, quem está falando agora é um homem”. A educadora enfatiza a potência de uma perspectiva feminina, por acreditar que com mulheres em posições de liderança há mais possibilidades de terem seus direitos básicos respeitados.

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Dona Ana e Luci são companheiras de luta e de afetos no Assentamento Emerson Rodrigues

A luta para além da terra

O Movimento Sem Terra e os movimentos sociais dos quais eu vim me fizeram pensar e sentir, e experimentar pequenos pedaços do mundo que eu acredito Sandra Procópio

Questão de gênero

“Quando eu entrei para o assentamento, eu consegui algo que eu não acreditava mais que eu era capaz, de cuidar dos meus filhos, de gerir uma casa”, conta Luci com sorriso amplo que se expande pelo rosto e esconde os olhos marejados. Nos quintais produtivos dos lotes, onde são plantadas frutas, cultivadas hortas e criados pequenos animais, as mulheres são as donas da vida e dali tiram a maior parte da alimentação da família. Para Sandra, as mulheres mantêm um ritmo de plantio mais preocupado com a terra, com a natureza e com a vida, atuam como garantidoras da comida e preocupadas com o meio ambiente. No artigo “Se a mulher participar, a gente vai massificar!” publicado no site do MST em janeiro de 2021, as autoras Atiliana Brunetto e Lucineia Freitas explicam como se dá a participação feminina no movimento. Segundo elas, o Setor de Gênero foi criado no Encontro Nacional do MST no ano 2000 em Goiânia (GO), mas apenas em 2002, em Belo Horizonte, as linhas políticas do setor foram aprovadas. Dentre elas, assegurar a participação de 50% de mulheres e 50% de homens nas atividades de formação e capacitação. As autoras elucidam que o passo definitivo rumo à essa paridade de gênero aconteceu em 2005 com a aprovação dessa medida na Direção Nacional

“A educação mudou tudo na minha vida”, diz Luci ao pensar no ensino que recebeu no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) entre 2008 e 2012. Graduadas na mesma turma, Luci e Ale carregam com orgulho e resistência o diploma de licenciatura em Ciências Sociais. “Eu falo que tem duas Luci, a de antes e a depois do Pronera. Educação é tudo, não mudou só a minha vida, mudou a vida da minha família e das pessoas que estão próximas de mim. Educação me trouxe dignidade”. O Pronera, criado em 1998, é uma medida que visa a inclusão de pessoas camponesas no sistema educacional. A turma na qual Luci e Ale estudaram foi a única turma de graduação desta medida realizada na UFGD e formou 58 das 60 pessoas aprovadas no vestibular. Para Alzira Menegat, 61, professora do curso de Ciências Sociais da UFGD e desta turma, o projeto é uma conquista fundamental. “Eram pessoas que estavam de certa forma distanciadas da universidade, porque residiam em assentamentos e dificilmente conseguiriam ir para a Universidade todo dia, então o distanciamento era geográfico, mas o distanciamento era também social em termos de poder aquisitivo para cursar um nível superior. E o Pronera viabilizou isso tudo, porque havia oferecimento do alojamento, do alimento, do material pedagógico, então foi fundamental esse recurso”, afirma.

Educação me trouxe diginidade Luci Dalva

Luci percebe a importância da iniciativa, mas enfatiza que não é suficiente. “Surge a faculdade pelo Pronera, puxa, que legal, assentado estudando, mas e depois disso? Eu tive que vir para a cidade. Qual o espaço para essas pessoas lá no assentamento, que sonharam, que lutaram para conquistar? Precisa ter políticas que atendam a essa demanda”. O sonho de vida da professora-fruto é poder ficar no assentamento todas as horas de seus dias e não apenas aos finais de semana, como faz atualmente. Ela acredita que é a partir do sentimento de pertencimento e de corresponsabilidade pela terra que as crianças e adolescentes sem terrinha podem criar movimentos, mesmo grudados na terra. Porém, observa uma saída de jovens do campo para as cidades em busca de educação de qualidade e oportunidades de trabalho. Sandra se revolta com a falta de escolas próximas aos assentamentos. “Ainda no Mato Grosso do Sul a educação no campo é menosprezada. As crianças dormem no ônibus, chegam [na escola] com fome e sono, o que prejudica a capacidade de concentração. Tem a questão da falta de segurança, às vezes tem acidente com criança”, reivindica ela. Além das dificuldades educacionais, Luci acredita que o Brasil não


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MUlher

Foto: Ana Laura Menegat

Foto: Ana Laura Menegat

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gostariam de não usar agrotóxicos, mas sentem dificuldades em produzir em um solo que já estava precisando de reparos”. Ale adverte que a comunidade se vê obrigada a usar os produtos químicos nas plantações para não ter perda e nem ter prejuízos. No assentamento “17 de Abril”, Ale expõe que nem todos possuem conhecimento do que são os agrotóxicos e onde estão presentes.

Plantar todos os dias, para colher no amanhã

Foto: Ana Laura Menegat

Sandra vive na cidade de Dourados, mas a identidade sem terra ainda a acompanha

Alessandra acredita na arte e na luta camponesa como formas de transformar a sociedade

possui uma Reforma Agrária efetiva. Para ela, a luta não se limita à conquista da terra, a vida dentro dos assentamentos também requer resistência, já que infraestruturas, como acesso a estradas, saúde e educação, não são tratadas como prioridade pelo poder público. Esse problema é refletido na qualidade de vida e na ineficiência da distribuição de recursos nos assentamentos. “Eu cansei de ver, por exemplo, mulheres que tinha que plantar quiabo, colher quiabo, pegar um saco de quiabo de 60kg, ir de carriola, andar dois quilômetros com o saco na carriola, parar no ponto, pegar o ônibus, colocar o saco no ônibus, ir para Campo Grande, descer na parada e ficar vendendo”, relata.

A gente tenta construir as coisas na prática, eu vejo que as mulheres são muito corajosas Sandra Procópio

Ainda, com a falta de recursos, os pequenos agricultores se veem reféns dos agrotóxicos. No assentamento de Luci poucas famílias têm condições de trabalhar com cultivo orgânico. “Algumas pessoas

Junto às sementes de maxixe, abóbora, laranja e tantos outros alimentos, as mulheres do campo plantaram sonhos que ainda precisam ser replantados, adubados, aguados e colhidos. Os planos semeados se espalham pelo solo e formam plantações vivas e caminhantes em corpos de mulheres plurais e destemidas. “Acho que são as mulheres que seguram os movimentos sociais em boa medida, porque são muito capazes de gestar e coordenar. A vivência em movimentos sociais é como se a gente estivesse fazendo um treino para o mundo novo, então a gente vai no movimento, se mete de cabeça e tenta radicalizar o sonho que a gente tem. A gente vai lá e briga ‘tem que ser metade homem, metade mulher, se for só homem no plenário a gente não vai’. A gente sobe na cadeira e faz protesto. Então a gente tenta construir as coisas na prática, eu vejo que as mulheres são muito corajosas”, relata Sandra. Para ela, a luta do MST não pode ser apenas dos povos dos campos, mas deve também englobar o meio urbano. “A gente quer que as pessoas apoiem essa luta do campo, apoiem a Reforma Agrária, para entender que se a cidade não defender os povos do campo, tende a sucumbir e ficar refém da indústria e do mercado”. Essa possibilidade de luta coletiva e de um futuro melhor é o que move Sandra. “São muitas emoções, mas eu diria que é o projeto de uma sociedade anticapitalista o que mais me comove e me faz sonhar”. Dona Ana sente orgulho da mulher que se tornou e de ter aprendido muitas coisas nos momentos de resistência e crê que esses aprendizados se potencializam por meio dos laços de amizade. “Eu ajudei muitas pessoas, igual a Dalva, e eu tô pronta para ajudar. Eu só não estou pronta para acampar de novo, que aí as forças já estão diminuindo. Enquanto Deus me der vida e saúde eu vou estar por aqui”.

analauramazvd@gmail.com mariaeduardaschindler@gmail.com


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OPINIÃO

Nas redes dos desertos de notícia Texto: Cadu Fernandes Ilustração: Lucas Sorio

C

ertamente, quando pensamos na imprensa interiorana, na relação de proximidade entre a informação e a construção das identidades culturais, percebemos sua importância na criação de vínculos de pertencimento entre um cidadão e sua área. O jornalismo hiperlocal oferece, então, uma forma da população se sentir conectada ao seu território. Entretanto, o Mato Grosso do Sul sofre com a falta de veículos jornalísticos no interior. Segundo a última atualização do Atlas da Notícia – site responsável por mapear veículos jornalísticos no Brasil – em 2020, contando jornais impressos, rádio, televisão e sites, 34 municípios possuíam apenas dois veículos ou menos – a maioria já em estado precário. Tal situação evidencia a ameaça dos chamados “desertos de notícia”, termo referente a locais sem um veículo independente de jornalismo, ou seja, algum jornal sem vínculo com órgãos estatais. Territórios com essa característica possuem a problemática de sua vida social não ser pautada pelas práticas jornalísticas, originando algumas peculiaridades, como a falta de fiscalização do poder público e a carência da população no que diz respeito ao convívio

com sua comunidade. Dessa forma, a população tende a buscar outras maneiras de conseguir e produzir informações locais, é o caso dos grupos do Facebook. O Facebook tem sido crucial para o compartilhamento de informações, especialmente durante a pandemia da Covid-19, em um número crescente de áreas onde os jornais foram fechados. A ausência de uma identidade jornalística, com responsabilidade e apuração própria, transformaram os grupos em centros de desinformação, disputa partidária e vigilantismo. O Facebook não exatamente matou as notícias locais, mas certamente alterou a dinâmica jornalística. É um papel que a própria rede social reconheceu e tentou corrigir ao doar, em 2019, US$400 milhões para programas de notícias locais. Em Mato Grosso do Sul, estima-se que, das 79 cidades, 55 possuem menos de 25 mil habitantes. De certo, isso nos faz refletir: até que ponto o distanciamento do indivíduo dos centros de poder influencia seu exercício concreto de cidadania? A solução desse tema passa pelo jornalismo de proximidade, afinal o conhecimento adquirido é a principal ponte entre as condições básicas de participação e a ação cívica, mesmo que na sua instância regional. Porém, a falta de um veículo jornalístico institucionalizado e a presença de outros produtos noticiosos nas redes sociais mantém as localidades como um deserto de notícias? É difícil responder essa questão já que certamente as intera-

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ções na internet representam uma forma da população se conectar à sua comunidade, ajudando na comunicação comunitária. No entanto, esse novo ecossistema informacional pode abrir precedentes perigosos e um dos exemplos mais claros são as fake news, que consistem em uma distribuição deliberada de desinformação ou boatos via jornal impresso, televisão, rádio, ou mesmo nas mídias sociais. O grupo de informação comunitária criado no Facebook pode ser mais sutil e, de certa forma, mais insidioso, aparentemente é mais confiável. A desinformação – compartilhada de boa-fé pelos vizinhos, espremida entre acontecimentos locais legítimos e supervisionada por um membro da comunidade sem treinamento, mas com boas intenções – ainda é capaz de trazer problemas à comunidade. A cidade de Nioaque, localizada no interior de MS, recorreu a um desses grupos. Entretanto, a alternativa à falta de notícias locais logo caminhou para uma espécie de grupo de classificados, no qual o grande número de integrantes sem uma intervenção – que no caso de um veículo tradicional seria feita pelo editor-chefe – criou um grupo utilizado para venda de produtos. Em vista disso, o Mato Grosso do Sul se torna um campo apropriado para analisar as dinâmicas desse novo ecossistema, já que o Estado, fora dos centros de poder, possui diversas pequenas cidades ameaçadas com o fim de veículos jornalísticos. As redes sociais podem ajudar na prática da comunicação comunitária e no desenvolvimento da cidadania, visto que proporcionam discussões que nem sempre têm voz nos periódicos tradicionais. Entretanto, ainda assim, existe um longo caminho a percorrer em busca de um trabalho de qualidade.

caduribeiro33@hotmail.com @thedevilspencil


ms

invisivel invisivel invisivel invisivel invisivel As menores cidades do estado revelam individualidades Amanda Gonzalez | Anna Gabriela Rozante | Gabriella Alves Couto

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R a i o x

| Morris Fabiana De Messias | Rafaella Moura Teixeira | SYUNOI

Ao se tratar de estados brasileiros, é comum pensar em dois aspectos da localidade: a capital e as cidades interioranas. Facilmente reconhece-se a primeira pelo nome e suas características — “Campo Grande”, “São Paulo”, “Rio de Janeiro”. Todavia, a segunda acaba se tornando, popularmente, um conglomerado de regiões e identidades distintas expressas em uma única palavra: o “interior”. Essa generalização provoca esquecimento e desconhecimento das características individuais de um espaço.

O estado de Mato Grosso do Sul que se conhece atualmente é formado por esses pequenos municípios — não apenas em âmbito territorial e geográfico, mas identitário.

E, logo, de sua própria existência. Cidades de MS como Alcinópolis, Paraíso das Águas, Rochedo e Jateí aparentemente são apenas pontos de passagem em um percurso para os grandes centros.

Eles conservam temas significativos de sua própria história, em grande parte desconhecidos pela própria população regional: a Guerra do Paraguai e seus desdobramentos, em Pedro Gomes, Inocência e Guia Lopes da Laguna; os territórios indígenas e suas lutas, em Japorã e Antônio João; a ascendente economia pelo desenvolvimento do agronegócio e seus efeitos,

em Laguna Carapã, uma das cem cidades mais ricas do país. Uma possível justificativa para este cenário de invisibilidade é o pouco tempo de emancipação do estado e baixa densidade populacional, visto que há menos de 50 anos a região ainda pertencia ao Mato Grosso. Dessa forma, foi propício trazer à luz e fazer emergir os pequenos fragmentos que compõem o território, as características e a identidade de um povo tanto quanto sua capital.

descentralizar e preciso!

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guia lopes da laguna

Idade 58 anos 4.015 habitantes Tamanho: 1.933,316 km² PIB: R$ 75.005,78 IDHM: 0,708 Densidade demográfica: 2,08 hab/km² Em 2004 e 2008, bateu o recorde brasileiro de maior fogueira, com 48m e 59,2m, durante sua tradicional Festa da Fogueira, comemorada no dia de São Pedro. O evento é tradição da cidade há mais de 40 anos.

jatei

Idade 75 anos 9.754 habitantes Tamanho: 1.225,429 km² PIB: R$ 24.432,46 IDHM: 0,675 Densidade demográfica: 8,56 hab/km² Ainda como povoado, recebe o nome em homenagem ao pioneiro José Francisco Lopes, que alistou-se no exército brasileiro durante a Guerra com o Paraguai e guiou as tropas brasileiras na “Retirada da Laguna”, libertando famílias levadas como prisioneiras pelo exército inimigo.

laguna carapa Idade 30 anos 7.496 habitantes Tamanho: 1.725,780 km² PIB: R$ 67.012,48 IDHM: 0,672 Densidade demográfica: 3,74 hab/km² Em 2020, foi colocada como uma das 100 cidades mais ricas do país pelo agronegócio. Seu nome, na língua Guarani, significa “Lagoa Torta” em razão da grande lagoa que existia na região.

inocencia Idade 63 anos 7.566 habitantes Tamanho: 5.761,190 km² PIB: R$ 62.115,65 IDHM: 0,681 Densidade demográfica: 1,33 hab/km² O nome do município é uma homenagem ao livro de literatura brasileira “Inocência”, de Visconde de Taunay. O romance sertanejo foi inspirado pela expedição do autor durante a Guerra do Paraguai, que retratou em sua obra fatos e costumes regionais.

paraiso das aguas

Idade 19 anos 5.751 habitantes Tamanho: 5.061,433 km² PIB: R$ 133.056,60 É o mais novo município de Mato Grosso do Sul. Emancipado em 2003, com aprovação de 96,34% dos eleitores, a prefeitura de Água Clara alegou perda de terras e prejuízo na economia, fazendo o impasse de território seguir até 2013. Por isso, a cidade não fez parte dos últimos censos de IDH.

anaurilandia

japora Idade 29 anos 9.372 habitantes Tamanho: 416,605 km² PIB: R$ 11.822,69

Idade 57 anos 9.116 habitantes Tamanho: 3.415,657 km² PIB: R$ 28.893,11 IDHM: 0,670 Densidade demográfica: 2,50 hab/km² É o local do primeiro porto de navegação da região, o Sete de Setembro, que permitiu a comercialização de calçados, peças de tecidos, ferramentas, munição e remédios trazidos de São Paulo, gerando aumento na economia da cidade.

Idade 56 anos 7.568 habitantes Tamanho: 3.553,782 km² PIB: R$ 29.086,28 IDHM: 0,671 Densidade demográfica: 2,18 hab/km² O município foi uma importante colônia militar que, em razão da invasão dos paraguaios em 1865, foi abandonado com diversas peças de artilharia. Visconde de Taunay e alguns engenheiros exploraram a região após a guerra para recuperar as terras

pedro gomes


saqueadas e incendiadas.

IDHM: 0,526 Densidade demográfica: 18,43 hab/km² Cerca de metade da população de Japorã é formada por indígenas das tribos Guarani e Guarani Ñandeva. Seu PIB é composto majoritariamente pelos recursos públicos administrativos (59,6%), seguido da agropecuária (22,6%).

antonio joao Idade 58 anos 9.082 habitantes Tamanho: 1.142,895 km² PIB: R$ 41.772,038 IDHM: 0,643 Densidade demográfica: 7,17 hab/km² A região de Antônio João é conhecida pelos indígenas como Ñande Ru Marangatu, uma importante localização da qual dependem suas atividades rituais. A terminologia é devido ao morro Marangatu, identificado como uma grande casa comunal e morada de seres espirituais.

rochedo Idade 73 anos 5.120 habitantes Tamanho: 1.309,574 km² PIB: R$ 32.569,38 IDHM: 0,651 Densidade demográfica: 3,16 hab/km² Na década de 30, cerca de 5 mil pessoas se reuniram às margens do rio Aquidauana em busca de minério. Devido a condição dos garimpos, houve uma estagnação do local e êxodo dos garimpeiros.

alcinopolis Idade 40 anos 5.489 habitantes Tamanho: 4.397,518 km² PIB: R$ 31.408,71 IDHM: 0,711 Densidade demográfica: 1,04 hab/km² Alcinópolis possui inúmeras riquezas ancestrais e a arte rupestre é uma delas. Por isso, foi identificada como o espaço com maior quantidade de grafismos rupestres do estado. Sua maior unidade de conservação é o sítio arqueológico Parque Natural Municipal Templo dos Pilares.

LEGENDA: Garimpo

Pinturas Rupestres

Porto

Território Indígena

Festa Junina

Guerra do Paraguai

Disputa de Território

Riqueza Econômica

Literatura

amanda.fgonzalez@hotmail.com annagrozante@gmail.com gabriella.acouto@gmail.com morris.f@ufms.br rafaellamrx@gmail.com @syunoi


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direitos humanos

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Trabalhe, lute, viva e pose

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A busca por pertencimento e representatividade da comunidade LGBTQIA+ em meio ao conservadorismo sulmato-grossense Texto: Biel Gill, Emilly Mira e Letícia Dantas

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qui no estado é muito difícil a gente ser trans, ser travesti. Na verdade, no Brasil todo, estamos no país que mais mata corpos trans no mundo, então ainda é muito difícil”, diz Luara Maria, que se reivindica como travesti. Ela retrata as dificuldades de ser LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers, Interssexuais e Assexuais*) em Mato Grosso do Sul; com o preconceito que se inicia desde um olhar de canto de olho, passa por falta de vagas no mercado de trabalho e chega ao extremo da violência. Nessa reportagem, tentando entender a identidade e a importância do movimento LGBTQIA+ no estado, conversamos com representantes da Subsecretaria de Políticas Públicas LGBT, da Casa Satine, das Houses Of Quimera e Hand’s Up MS e com o sócio proprietário do Bar Jurema, para que possamos melhor compreender a vivência da comunidade na capital sul-mato-grossense.

A categoria é… Políticas Públicas

Na região Centro-Oeste, de acordo com o relatório anual do Grupo Gay da Bahia (GGB) de 2021, o estado de MS, proporcionalmente à população, ocupa a segunda posição entre os que mais matam pessoas LGBTQIA+, ficando acima da média nacional. De acordo com a Sub-

Ensaio fotografico produzido para esta reportagem

secretaria de Políticas Públicas LGBT de MS, foram registrados, de julho de 2019 a dezembro de 2021, mais de 45 casos de homotransfobia. Apesar desses dados, ainda há uma grande falta de informações aprofundadas sobre a comunidade. A esse respeito, Karla Melo, coordenadora do Centro Estadual de Cidadania LGBTQIA+, vinculado a Secretária de Estado de Cidadania e Cultura do Governo de Mato Grosso do Sul e coordenado pela Subsecretaria de Políticas Públicas LGBT, afirma que desde a criação do órgão, em 2020, percebe-se que a falta dessas estatísticas é prejudicial para a tentativa de entender o tipo de violência que acontece, onde e quais são as pessoas afetadas. A coordenadora complementa que o grupo consegue ter um panorama dessa realidade apenas por meio de movimentos sociais que trazem dados informais. Karla afirma que o objetivo do centro, em sua fundação, era receber denúncias e combater o preconceito e a homofobia. Atualmente, a Subsecretaria colabora para a produção de mais pesquisas oficiais. “Fomos entendendo que existe uma necessidade maior de trazer dados em

relação à violência e às questões que abarcam o preconceito, para que a gente possa incidir com mais eficácia em relação à pauta, porque temos a obrigação dentro do estado de pensar em política pública”, diz a cientista social.

Temos a obrigação dentro do estado de pensar em política pública Karla Melo A coordenadora também compõe o grupo gestor da Casa Satine - República de Acolhimento, Clínica Social e Espaço Cultural para pessoas LGBTQIA+ a partir dos 18 anos - em Campo Grande. Inicialmente, a ideia desta Organização Não Governamental (ONG) era de que houvesse um espaço físico para receber as pessoas que estivessem em situação de extrema vulnerabilidade, respeitando suas características e individualidades e promovendo a liberdade econômica e emocional. Mas, devido à falta de recursos e amparo, não foi possível concretizar


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o planejamento. Outras alternativas de auxílio foram elaboradas, como espaços de sarau e de manifestação. Karla reforça que a arte-educação é uma das formas que mais agrega à discussão e livre-expressão, fatores que contribuem para a quebra de preconceitos. A ONG também fornece cestas básicas para integrantes da comunidade queer que se encontram em situação de vulnerabilidade. “Durante a pandemia, surgiu uma nova necessidade, que era a segurança alimentar; muitas pessoas ficaram sem nenhum tipo de renda - principalmente as mulheres trans que trabalham na noite com a prostituição”, diz Karla. O responsável pelo atendimento social, Jonatan Espíndola, informa que desde 2020 foram ajudadas mais de 80 pessoas, e entregue uma média de 200 cestas básicas. Além do suporte socioeconômico, a associação oferece apoio psicológico e psiquiátrico. A acadêmica de psicologia Bianca Amorim coordena a Clínica Social da Casa Satine e comenta sobre a grande procura pelo acompanhamento psicossocial. “Na psicologia, temos o maior número de voluntários”, diz ela, “mas ainda não é suficiente porque há uma grande demanda. Todo dia chegam formulários de pessoas solicitando atendimento”. O grupo conta com 33 psicólogos que atendem em torno de 60 pacientes por semana.

A categoria é… Vivência TRAVESTI

A luta LGBTQIA+ está também no mercado de trabalho. Segundo Luara Maria, as vagas de emprego são limitadas e estereotipadas. “Eles colocam a gente em lugares que já são da gente. Você encontra manas trans em loja de maquiagem, salão de beleza e lojas de roupa. É pouca mana trans que está num espaço como shopping ou órgão público. Temos que ocupar esses lugares, porque se não estivermos lá dentro, não vamos conseguir mudar nada”, relata. Luara é mother da House of Quimera, casa que surgiu em novembro do ano passado, durante a pandemia. O termo “House”, como é conhecido atualmente, teve origem nos Estados Unidos, em 1980, período marcado pelos primeiros casos e complicações do vírus HIV. Com baixo conhecimento da doença na época, diversos jovens LGBTQIA+ acabaram sendo expulsos de suas casas e, na busca por um lar, formaram os coletivos. Antes da fundação da House of Quimera, Luara fazia parte da House of Hand’s Up, lugar onde aprendeu muitas coisas, entre elas, a percepção de uma necessidade de cuidar e acolher. Neste momento ela decidiu criar a sua própria casa. “Eu fui muito bem acolhida na Hand’s Up, os meninos sempre me trataram super bem, só que eu sempre tive um instinto materno, sempre quis ter alguém para direcionar, para cuidar, para eu poder passar um pouco do que eu sei, e, também, aprender com eles”.

direitos humanos

O surgimento das Houses no Brasil, trouxe com elas atividades características – ainda que não as mais importantes - como as danças Vogue, Catwalk e Face and Body. Luara conta que para fazer parte do grupo, a pessoa precisa ter um vínculo estabelecido na convivência e não apenas o do saber dançar. Para ela, a House é um local de apoio, aprendizado e troca de experiências. Ainda que não possuam uma sede/casa própria, o coletivo vai além do espaço físico e se estabelece, em grande medida, por meio do acolhimento e da sensação de pertencimento.

A categoria é… Mãos livres

Criada em 2017, a House Of Hand’s Up é fortificada na dança, mas também trabalha o desenvolvimento pessoal de cada integrante, por meio da integração, acolhimento, apoio, aceitação e incentivo. Roger Pacheco, mother da casa, informou que antes do coletivo Hand’s Up, o grupo chamava Hand’s Crew e a alteração do nome veio depois de um workshop, no qual Eduarda Kona Zion, ativista e fomentadora da cultura preta-latina-trans-periférica LGBTQIA+, filiou o coletivo como uma extensão do Hand’s Up de Brasília. Antes da filiação, Roger fazia parte do grupo de dança “Companhia Dança Urbana”. Neste grupo, algumas coreografias produzidas pelas mulheres eram só para as mulheres, e os homens não podiam dançar, foi a partir daí que Roger sentiu a necessidade de criar o Hand’s Crew, para que ele e seus amigos pudessem performar o que queriam, com mais feminilidade e liberdade. “Você pode ser gay, mas em cena você precisa dançar que nem homem hétero. A gente vestia um personagem, não era aquilo que queríamos fazer, queríamos ser nós mesmos. Depois disso montamos uma coreografia só de gay, só de viado, bem mais feminina”. Com a vinda de Kona Zion à Campo Grande, o grupo de Roger começou a ter treinos diários com a ativista, montaram coreografias e iniciaram o aprendizado da técnica Vogue. O grupo foi se especializando, apresentando workshops, levando pessoas para participarem de treinos abertos ao público e criando performances apenas com Vogue. Segundo Roger, com essa “brincadeira” surgiu a ideia de expandir o grupo Hand’s Up MS para a House. Atualmente, a House ainda tem muita ligação com a dança e é, inclusive, ganhadora de três prêmios

Roger Pacheco (acima) é mother da Hand’s Up | Luara Maria (ao lado) é mother da House of Quimera

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na área, sendo eles: Big Field Camp, em 2017, o Prêmio Onça Pintada, em 2018, e o Festival Canindé, em 2019. Esses prêmios podem ser vistos como consequência do esforço e união dos integrantes do grupo. O dançarino Greydson Clink fala sobre o que a House representa em sua vida. “A Hand ‘s me completa, praticamente. Antes da Hand’s Up eu estava em um processo de aceitação comigo mesmo, tanto de sexualidade quanto de corpo, mentalidade e autoestima, então quando eu entrei, era aquela pecinha que faltava para eu me encaixar”, confessa. A casa foi a pioneira no estado. Tarso Fernandez, um dos integrantes, afirma que por ser a primeira no Mato Grosso do Sul, a Hand’s Up pôde abrir caminhos e servir como espelho para cidadãos LGBTQIA+. “Mesmo sendo capital, mesmo sendo a cidade mais desenvolvida do estado, Campo Grande ainda tem a questão do preconceito, do machismo, da transfobia e homofobia, então o fato da House ser pioneira e ter um nome muito forte dentro do estado, abre caminhos para que outras pessoas se espelhem e se imponham contra essas questões”, relata. Tarso afirma que fazer parte do coletivo é poder ser – e se expor - como ele é. É onde


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ele consegue se expressar, expressar sua arte, amar seu corpo e se amar, além de se sentir mais seguro na própria dança.

É pouca mana trans que está num espaço como shopping ou órgão público Luara Maria

A categoria é… Diversão e acolhimento

Fundado em março de 2019 e localizado na região central de Campo Grande, em frente à Praça dos Imigrantes, o Jurema Bar é um local voltado para a comunidade LGBTQIA+ da cidade. Fábio Jara é sócio proprietário do ambiente e conta que o bar surgiu da necessidade de ter um espaço queer na ci-

direitos humanos

dade. “Eu estou há mais de 10 anos na cena, atuando como DJ e produtor de festa. Nunca tinha visto ou vivenciado aqui em Campo Grande uma experiência como o Jurema”, explica. A essência do bar foi inspirada no Nordeste, região do Brasil conhecida pela sua hospitalidade. Fábio conta que lá é muito comum transformar uma casa em um local de encontro. Ele viu a oportunidade de trazer esse conceito nordestino ao ambiente campo-grandense, ao ver uma casa para alugar em frente a um sarau que frequentava, semanalmente, na Praça dos Imigrantes. Com isso em mente, criou o Jurema, nome escolhido em homenagem a sua avó. Pelo fato de o estado ainda ser visto, social e politicamente, como conservador, é comum o sentimento de deslocamento e falta de pertencimento por parte do público LGBTQIA+ campo-grandense. A atmosfera receptiva produzida pelo Jurema foi um fator determinante para a incorporação do bar na cidade, com forte presença da música pop, estilo muito consumido pela comunidade queer, além de possuir elementos representantes de religiões de matrizes africanas e decoração com a temática LGBTQIA+, com bandeiras e outros componentes que representam a comunidade. A casa-bar também investe na segurança do local, que é pensada de maneira a proteger e ao mesmo tempo deixar o público à vontade, por isso, Jara contratou Silvana, que presta o serviço de vigilância. Segundo Fábio, o gênero de Silvana interferiu na contratação, já que o público se sente mais confortável com a vigilância feita por uma mulher. O proprietário afirma que episódios de violência nunca aconteceram no Jurema. “Em todo esse tempo que estamos aqui, nunca tivemos casos de assédio, de briga e de desentendimento. As pessoas respeitam, acolhem muito bem. Temos orgulho de falar porque acabou se tornando realmente um local seguro. Todes são bem-vindes”.

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GLOSSÁRIO* *Criado com bases no Núcleo de Estudos de Diversidade de Gênero e Sexual (NEDGS/UFGD) e com o auxílio do professor Tiago Duque (FACH/ UFMS), esse glossário busca situar os termos da reportagem, podendo variar de acordo com fatores sócio-históricos e, como parte de construções culturais, estão sempre em transformação.

Identidade de gênero: Orientação sexual: Gênero que a pessoa X Atração afetiva e/ou sexual se identifica. por outra pessoa.

Lésbicas: Orientação sexual. Mulheres que sentem atração afetiva e/ou sexual por outras mulheres.

Assexuais: Orientação sexual. Indivíduo que não sente atração sexual.

Gays: Orientação sexual. Homens que sentem atração afetiva e/ou sexual por outros homens.

Não-binário: Identidade de gênero. Pessoa que não se identifica com nenhum gênero ou transita entre o gênero feminino e masculino.

Bissexuais: Orientação sexual. Homens e mulheres que sentem atração afetiva e/ou sexual tanto por homens quanto por mulheres. Transgênero: Identidade de gênero. Pessoas que não se identificam com o gênero que foi atribuído no nascimento. Travestis: Identidade de gênero. Pessoas que não se identificam com o sexo masculino atribuído no nascimento; se reconhecem numa identidade feminina. Não necessariamente se consideram mulheres.

Cisgênero: Identidade de gênero. Pessoa que se identifica com o sexo atribuído ao nascimento. Cisheteronormatividade: Imposição social para ser ou se comportar de acordo com os papéis impostos socialmente a cada gênero, como se fossem naturais. Vogue: Estilo de dança com poses e “carões” inspirados nas capas da revista Vogue. Ballroom: Salão de baile. Local onde acontecem as disputas de dança.

Queers: Termo utilizado por membros da comunidade LGBTQIA+ que não se enquadram na cisheteronormatividade.

Catwalk: Caminhada de gato. Categoria do estilo de dança Vogue.

Intersexuais: Identidade de gênero. Variação nas características sexuais biológicas que identificam cada gênero.

Mother: Mãe. Líder das houses. O título não segue binariedade.

Fotos ao lado: Carla (de branco) - Emilly Mira | outras fotos: Isabella Procópio | colagem: Morris Fabiana

Face and Body: Rosto e corpo. Expressões faciais da dança Vogue.

gabriel.gill@ufms.br emilly_mira@outlook.com leticiadantasp99@gmail.com morris.f@ufms.br


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Inúmeras fronteiras, um só povo Fronteiras com Paraguai e Bolívia influenciam na construção das identidades culturais de Mato Grosso do Sul Texto: Andrella Okata | Beatriz Santos | Fernando de Carvalho | João Pedro Flores

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segundo estado mais novo do Brasil tem sua identidade cultural construída na miscigenação e migração de povos nacionais e de fora do país. A proximidade e a troca cultural do Mato Grosso do Sul com o Paraguai e a Bolívia são tão grandes que os fortes aspectos culturais dos países vizinhos se tornaram parte da cultura sul-mato-grossense. O intercâmbio cultural entre Brasil e Paraguai é longínquo, desde os tempos dos jesuítas e, ainda que os dois países tenham se enfrentado na mais cruel guerra da história da América do Sul, isso teve pouca influência negativa na relação entre os povos. “Por mais sangrento que tenha sido o comportamento do Brasil e dos países que se uniram contra o Paraguai, o paraguaio tem um coração muito grande e isso não fez diferença para nós em como tratamos os brasileiros”, diz a jornalista Juliet Sarai, natural e residente de Assunção, capital do Paraguai. Antes da divisão do estado, o Sul do Mato Grosso foi palco de operações da guerra contra o Paraguai. Provindos de um processo de independência dos colonizadores

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cultura e comportamento

e com o surgimento de dúvidas sobre os limites fronteiriços, as nações do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai entraram em disputa pelos espaços territoriais. Pela força do Brasil na Tríplice Aliança, o termo cunhado é ‘Guerra do Paraguai’, entretanto, com base em documentos oficiais e a partir do contexto apresentado pelo professor e coordenador do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Cleverson Rodrigues da Silva, o mais correto é se referir à ‘Guerra contra o Paraguai’, já que a tríplice atacou o país vizinho. Para o professor, que atua há 20 anos no Ensino Superior e é especialista em História das Américas no século XIX, foi justamente nesse momento de consolidação das nações que os países procuraram definir como seriam administrados e quais os seus limites geográficos. A bacia Platina, que é a segunda maior bacia hidrográfica do Brasil, se estende pela Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Nela, o rio Apa era referência brasileira na fronteira entre os países. Para os paraguaios a linha fronteiriça era o rio Branco, por causa do Tratado de Santo Ildefonso,

delimitado pelo Império Espanhol. Neste contexto, a guerra não foi travada apenas por interesses políticos, mas também por interesses econômicos. Na época, o transporte e, principalmente, o comércio, aconteciam através de vias fluviais e qualquer problema que dificultava as navegações era de interesse do Brasil. “A preservação da independência do Uruguai já havia sido pontuada entre o Paraguai e a Argentina. Porém, em novembro de 1864, o Brasil invadiu o Uruguai e o então presidente do Paraguai, Francisco Solano López, viu a invasão como uma afronta, um ato de guerra”, pontua Cleverson. Como vingança, Solano López ordenou a apreensão do navio Marquês de Olinda, que transportava Frederico Carneiro de Campos, novo governador da província de Mato Grosso.

O que deveria ser um embate entre exércitos, acabou atingindo civis: homens, mulheres e crianças

As divergências em relação aos limites fronteiriços, combinado com a intervenção brasileira no Uruguai, culminaram na invasão paraguaia no sul da província de Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul) em dezembro de 1864. As consequências disso, especialmente para o Paraguai, foram devastadoras. O que deveria ser um embate entre exércitos, acabou atingindo civis: homens, mulheres e crianças.


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“...Vespasiano, Camisão, e o Tenente Antônio João, Guaicurus, Ricardo Franco, glória e tradição…”

Esse trecho do hino do Mato Grosso do Sul faz referência e exalta figuras históricas que ajudaram a construir a identidade sul-mato-grossense. Porém, segundo Cleverson, há uma ressalva. “É preciso ter cuidado com a reconstrução das memórias, às vezes são intencionais, às vezes são heróis, às vezes são alçados à categoria de heróis sem necessariamente serem.” Para o historiador e cônsul geral do Paraguai, Ricardo Caballero Aquino, a guerra contra o seu país natal teve motivos ocultos, como a “última disputa” entre o Império Espanhol e o Império Português. Já para Cleverson, não é possível afirmar que os colonizadores estavam por trás da guerra, pois ambos os países se tornaram independentes há mais de 50 anos e Espanha e Portugal ainda não eram potências econômicas capazes de sustentar uma guerra. Dois anos após o final da guerra já havia relatos de paraguaios residindo em Corumbá, o que reforça a percepção de que não houve ressentimento dos paraguaios com os brasileiros por conta conflito. Essa proximidade ajudou a difundir a cultura paraguaia no Brasil, em especial, no MS.

Corumbá: a cidade mais boliviana do Brasil

Mato Grosso do Sul é um estado miscigenado. Além da cultura paraguaia, é possível perceber a influ-

cultura e comportamento

ência de outros países em todo o território. Entre elas está a boliviana, marcante principalmente no município de Corumbá. A cidade faz fronteira com Puerto Quijarro e fica perto também de Puerto Suárez, logo, a relação cultural entre elas é intensa. Corumbaenses e bolivianos trocam influências desde a culinária até o idioma. “Essa troca dificilmente acontece de mão única, ela é sempre de mão dupla”, considera Marco Aurélio Machado de Oliveira, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular de estudos fronteiriços na UFMS. Além do fato de ser fronteira, há motivos históricos que ligam esses dois povos. Nos anos 1930, Bolívia e Paraguai entraram em conflito na Guerra do Chaco (19321935), causada pela disputa territorial do Chaco Boreal, uma região que dá acesso ao Rio Paraguai, que era de interesse dos bolivianos. Para os paraguaios, essa luta serviria para resguardar o território nacional. Em consequência disso, Corumbá recebeu seu primeiro grande fluxo migratório de bolivianos. Muitos deles chegaram à cidade pantaneira para fugir do conflito imediato e das ameaças trazidas pela guerra. Outro ponto na história que marca a migração, nesta mesma época, é a construção da ferrovia entre Corumbá e Santa Cruz. Devido às migrações, as culturas entrelaçaram-se e os costumes bolivianos, inclusive a culinária, foram introduzidos no dia a dia dos corumbaenses. “É incorporado ao hábito do corumbaense a chicha, que é um suco de milho com amendoim. Também temos a saltenha, o arroz boliviano e o majadito”, diz Marco Aurélio. Ele ainda complementa que a comida é um fator de sociabilidade, pois ela está tão entranhada que nem percebemos mais a sua origem. “Isso acontece porque já se tornou propriedade, já foi incorporado”.

Cleverson Rodrigues da Silva, professor e coordenador do curso de História da UFMS A pescadora Sarlidei mora no Pantanal e faz questão de manter hábitos culturais bolivianos na sua família

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Apesar de ser muito forte em Corumbá, a cultura boliviana ainda é menos influente que a paraguaia no estado. Isso acontece porque a migração desse povo é mais antiga, ocorrendo desde a Guerra com o Paraguai (18641870). Além disso, são várias as portas de entrada dos paraguaios, enquanto os bolivianos só têm uma. Apesar disso, em Campo Grande, há iniciativas para manter e reavivar as tradições bolivianas, como é o caso da Feira Bolívia. Evento que acontece no segundo domingo de cada mês e reúne apresentações e símbolos das diversas culturas latinas como a polca paraguaia, a chicha boliviana e a MPB. Confira mais informações sobre o evento no site.

Gastronomia das fronteiras ao som do chamamé

Como pontuou Marco Aurélio, anteriormente, a culinária é um forte fator de sociabilidade entre Mato Grosso do Sul e os países fronteiriços. Da Bolívia, mais especificamente Corumbá e Puerto Quijarro, comidas como o arroz boliviano e a saltenha tornaram-se traços típicos de MS. “Na Bolívia só se come saltenha de manhã, mas aqui em Puerto Quijarro, por causa da pressão dos brasileiros, se oferece de manhã e à tarde. Há uma série de adequações que são causadas pelas influências”. Nesse processo de apropriação cultural, as receitas sofrem alterações, causadas pela falta de ingredientes. Por exemplo: a sopa paraguaia de MS não é igual à do Paraguai; a chipa também é diferente nas diversas cidades do estado. As refeições vão se adaptando a cada região e o sul-mato-grossense reivindica esses pratos como parte do seu cotidiano, ainda que sem conhecer muito de suas origens. Durante a Guerra com o Paraguai, MS (na época, ainda Mato Grosso) foi ocupado pelos paraguaios que se estabeleceram no estado por, mais ou menos, quatro anos. Durante esse tempo, eles deixaram suas marcas culturais no território brasileiro e, além da culinária, o povo sul-mato-grossense também se apropriou do chamamé e o tereré. Isso fica evidente, quando esquecemos a origem dessas coisas e as associamos à cultura do MS. O consumo de tereré, tão frequente no dia a dia do sul-mato-grossense, é uma bebida feita com erva-mate e água gelada, tomada numa guampa com a ajuda de uma bomba. Não há um consenso sobre sua origem, o mais provável é que seja uma criação dos soldados paraguaios, que o desenvolveram como uma forma de consumir a erva sem o uso do fogo. Com o passar do tempo, o consumo do tereré se tornou um hábito que fortalece a união e o laço entre os consumidores que passam a guampa, de um em um, pela roda de conversa. Segundo Orivaldo Mengual, fundador e diretor presidente do Instituto Cultural Chamamé MS e apresentador do programa A Hora do Chamamé, na Rádio Educativa FM 104,7, o consumo do tereré é visto como uma atividade que ignora as diferenças e propi-


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Mesmo sendo brasileira, Dione não é reconhecida como tal

cia a interação social e o diálogo entre os indivíduos. “Compartilhar é um ato de amor que nos une e nos fortalece, e isso se concretiza no tereré”, comenta. Outra herança paraguaia é o estilo musical do chamamé. Em março de 2022, foi promulgada a Lei 14.315, que reconhece o município de Campo Grande como a Capital Nacional do Chamamé. Para Mengual, conservar esses traços culturais é importante porque eles já estão entranhados na cultura regional, sendo uma forma de valorizar não só a cultura paraguaia, como também a cultura de Mato Grosso do Sul. “O homem pantaneiro sente, vive e se expressa por meio do chamamé”. Essa influência é uma troca de mão dupla. Sarlidei Pena Machado, boliviana e pescadora que mora no Pantanal, conta que gosta muito de desfrutar os sabores de Mato Grosso do Sul, como o sarrabulho, dobradinha, arroz carreteiro e o peixe pantaneiro. “Nossa cultura é uma das mais belas; a pesca, os rodeios, as músicas tradicionais, as festas religiosas, a viola de cocho, o carnaval, as festas juninas que enriquecem nossa cidade [Corumbá] com cores e rejuntes de iguarias típicas. Amo desfrutar do pastel da feira tradicional com caldo de cana”. Entretanto, a pescadora também faz questão de destacar a culinária de seu país. “A culinária boliviana é considerada muito especial, bem entreverada com comidas indígenas e muito saborosas, como por exemplo a moela assada. Sempre foi e sempre vai ser um dos maiores celeiros culinários, porque a Bolívia nos ensina a comer. Lá você toma primeiro a sopa para depois comer a comida seca, ou seja, o primeiro e o segundo [prato], preparando assim seu organismo para uma boa digestão. Toma-se refresco de tamarindo, mocochinche, sumo que é feito de milho de canjica, salada de chuño, mote, entre outros alimentos riquíssimos”, conta.

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cultura e comportamento

As saltenhas da Dione fazem sucesso na Feira Bolívia

Raízes que fortalecem as identidades

Diante dessa construção da identidade cultural a partir dos costumes de outros países, Sarai conta por que os eventos que homenageiam os paraguaios são importantes em Mato Grosso do Sul. “A importância é resgatar aquilo que nos une. Somos dois povos, que pela colonização e por outros tipos de coisas, foram separados, mas que compartilham cultura. Então, resgatar esse passado, valorizar nossa história para que não desapareça, pelo contrário, que seja mais conhecida do que nunca porque é parte da nossa identidade, da nossa região. Somos um povo só, somos irmãos e estamos juntos”. Sarlidei enfatiza o orgulho da sua origem e conta que faz questão de ensinar os hábitos culturais do seu país e o castelhano aos seus filhos. “Minha maior lembrança é que minha tia nunca deixou a gente perder as raízes. Sei cozinhar, comer, bailar e viver como uma camba. Sempre que posso estou com meus familiares na Bolívia”. A importância é resgatar aquilo que nos une Juliete Sarai

Com tanto tempo de convívio, as culturas e os idiomas desses povos foram sofrendo alterações. “A gente nota que o próprio castelhano vai mudando. Então, essa é uma influência linguística dos dois lados. A questão linguística é inevitável, desde os comerciantes até as crianças que estudam no Brasil, a presença da língua portuguesa nas residências de Puerto Quijarro é uma coisa cotidiana. Da mesma forma vamos encontrar do lado de cá”, relata Marco Aurélio. Neste contexto, Sarai aponta as diferenças nas danças típicas de seu país, que aos poucos foram perdendo

a sua essência e se mesclando com o estilo moderno. A jornalista reitera que é importante resgatar esses traços culturais que são tão característicos do Paraguai. “Hoje em dia temos um desafio, pois muitas escolas de dança estão fazendo aquela mistura do folclórico com o moderno. E o que nós queremos é resgatar tudo isso para que o folclórico siga sendo o folclórico mesmo”. Para ela, manter o estilo mais tradicional é uma forma de preservar a sua cultura e passá-la para as próximas gerações. Conhecer as raízes, tanto dos bolivianos quanto dos paraguaios, é importante para entender a construção das identidades culturais dos sul-mato-grossenses, especialmente fronteiriços. Além disso, é uma forma de resgatar o passado e valorizar nossa história para que ela não desapareça e as futuras gerações possam manter esse orgulho cultural.

Uma outra fronteira: o preconceito

Apesar da proximidade da população, o preconceito ainda existe e é presente na vida dos hermanos, especialmente os bolivianos, que carregam na pele o fenótipo de suas origens. Bolivianos legítimos ou descendentes, a xenofobia os acompanha. Sarlidei é boliviana registrada no Brasil, ela conta que já sofreu muito e sofre “até hoje, mas agora tiro de letra. Antes riam porque [eu] era filha de negro e branco, não entendia [o português] e ainda [era] boliviana”. Dione Zunita, vendedora de saltenha, conta que mesmo tendo nascido no Brasil, as pessoas não a reconhecem como brasileira. “As pessoas me julgam [por ser boliviana] e eu digo: eu não sou boliviana, eu sou filha de bolivianos”. Já no caso dos paraguaios, o preconceito parece menos nítido. O cônsul do Paraguai, Ricardo Caballero Aquino, chega a fazer uma comparação entre o MS e outros estados mais populosos como o Rio de Janeiro e São Paulo. Para o cônsul, nosso estado tem uma energia mais parecida com os países latinos. “É mais acolhedor, as pessoas são mais respeitosas e menos preconceituosas; já no Sudeste, as pessoas são mais frias e individualistas”. Sarai concorda e enfatiza que as pessoas são mais amigáveis com paraguaios e bolivianos em Mato Grosso do Sul em razão de suas descendências, já que muitos habitantes do estado ou são filhos de estrangeiros fronteiriços ou tem em sua família algum membro que é. “Acredito que 95% das pessoas com quem eu falo tem descendência paraguaia, ou se casou com alguém que é filho de paraguaio ou o avô, ou a família é paraguaia”.

andrella.okata@ufms.br beatrizsantos1d@gmail.com fernando_cg_98@hotmail.com joaoflores067@gmail.com


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opinião

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O que falta para o futebol do Sul? Texto: Simone Gallassi | Ilustração: Bianca Esquivel

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omo bons irmãos, o futebol de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul nasceu e cresceu em sintonia, mas há um momento na vida em que o mesmo berço não basta, cada um segue seu rumo, cria sua personalidade e faz seu destino. Após a Criação do Estado em 1977, o futebol de MS se profissionalizou, formou federação, campeonato estadual e manteve o mesmo nível de qualidade de seu estado irmão nas competições nacionais até 1986, quando a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) instituiu um novo formato do Brasileirão. Após a instituição do rebaixamento, redução do número de clubes e elitização do campeonato, cada vez menos clássicos tomavam o Estádio Universitário Pedro Pedrossian (Morenão), o que deu início à crise que o futebol sul-mato-grossense ainda pena para se desvencilhar. Um público já pouco empolgado a ver jogos exclusivamente locais se depara com novas opções de entretenimento trazidas pela modernidade dos anos 1990. Shoppings, cinemas, televisão e, posteriormente, internet se tornam cada vez mais populares e tomam o lugar do gramado nas tardes de final de semana. Com menos destaque nacional e menos renda a cada dia, a direção dos clubes de MS, que historicamente já se envolvia muito mais com política e jogo de poder que o ideal, passa a ser mais um empecilho para o futebol. Mandatos curtos geravam planos imediatistas, que resultavam em cada vez mais dívidas, em busca de títulos que alimentavam mais o ego de presidências que a conta bancária das equipes. Para os “peixes pequenos”, dívidas com a União são uma rápida maneira de se perder os poucos bens que lhe res-

tam. Clubes sociais como Comercial e Operário, com sedes que atraíam sócios pela sua estrutura, viram com a perda de patrimônio o desaparecimento de nomes na lista de títulos – hoje, ao Colorado, restam menos de 20 dos antes 2000 sócios que o clube ostentava. Sem renda, sem investimento e nem ao menos campos para treinar, os antes gigantes da capital abriram espaço para o surgimento de novos clubes. Empresários e políticos do interior viram assim uma oportunidade de destaque nos cenários municipais ao investir no esporte local. Com o aumento no número de clubes do interior e seus resultados mais expressivos a cada ano, o futebol estadual conseguiu fôlego para lutar novamente por destaque e buscou mudanças que vinha aumentando o rendimento de seus clubes. Um enxugamento na primeira divisão tornou a competição estadual mais competitiva e atrativa ao público, a televisão local passou a trabalhar o pré e pós jogo ao longo das semanas, mas o crescimento é tímido ainda. É preciso voltar a comparar os estados irmãos para entender o problema. No ano de 2017, Cuiabá (MT) e Operário (MS) tiveram uma singela diferença de 4000 reais em vendas de ingressos, mas em 2021 o clube cuiabano aumentou esse rendimento de R$ 131 mil para R$ 600 mil. Oras, o Cuiabá surgiu como escolinha de base em 2001, como então em 20 anos tomou dimensões tão expressivas, com destaque na série A do Brasileirão? A resposta que soa mais óbvia é pelo investimento. O clube foi ad-

quirido em 2009 pelo Grupo Dresch, gigantes da borracha no MT, quando estava afastado do futebol profissional devido aos problemas financeiros. O novo viés empreendedor foi o pontapé que precisava. Como clube-empresa, o que importa para o gerenciamento é a rentabilidade do negócio, não mais o ego de mandatários que tantas vezes prejudicou clubes do Mato Grosso do Sul. A cereja do bolo mato-grossense foi a Arena Pantanal. Após a acirrada disputa pela sede de jogos da Copa do Mundo de 2014, a inauguração da arena entregou ao povo uma opção completa de entretenimento. Um ver-

dadeiro palco para aquilo que se espera do futebol moderno: um show. Quem sabe o investimento maciço de empresas locais ou uma verdadeira repaginada no estádio Morenão possa ser o que falta para os clubes de MS. Provavelmente, uma combinação desses fatores seja necessária para trazer o brilho merecido de outrora. Há uma única certeza quanto ao futuro do futebol no estado: devemos nos inspirar mais em nosso estado irmão.

sgallassi@gmail.com @bianca_esquilartes


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SILHUETA

Fotos: Giovanna Esperidião

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é aqui não é aqui

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uando pensamos nas formas em que o Mato Grosso do Sul é retratado em outros cantos do Brasil – indagações que permeiam o tema desta edição do Projétil – uma das respostas que vêm a mente está relacionada com a inegável beleza de se viver em cidades cheias ou vazias de belezas pantaneiras; ou dos irônicos questionamentos “vocês vão para os lugares de barco?” e “as onças atravessam nas avenidas da cidade?” Onças não, mas capivaras sim. Pode parecer muito engraçado, muito bonito, viver em uma capital em que ver araras,

tucanos, capivaras e jacarés seja rotina. Ou em cidades interioranas, em que o Pantanal se faz tão presente quanto o concreto e a brita. Entretanto, o que está por trás de um bioma que, mesmo com 138.183km², aparece espalhado pelas cidades do Mato Grosso do Sul? Essa presença parece atender a paráfrase da música do cantor Ney Matogrosso (do Sul): se ficar o fogo mata, se correr o cimento come. Será que as características do Pantanal que aparecem pelo estado têm só relação com a proximidade ou também com a falta de leis ambientais que asseguram a continuidade da maior

área alagável do planeta? Ou, talvez, com as queimadas que, segundo o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), em 2020, devastaram 4.3 milhões de hectares do Pantanal? A verdade é que pode ser especial achar que tudo aqui é Pantanal. Não é. A expectativa das fotos a seguir, de beleza inegável, é de que estamos abrigados neste bioma, mas a realidade pode estar - ou está - a sete palmos abaixo dessa terra vermelha.

Texto: Maria Eduarda Boin

amanda.melgaco@ufms.br | giovannaesperidiaosilva02@gmail.com | isabella.procopio@ufms.br | mariametran.jor@gmail.com | giovannaespiridiaosilva02@gmail.com


SILHUETA

Foto: Amanda Melgaço Foto: Amanda Melgaço

Bioparque Pantanal - CG/MS

Bioparque Pantanal - CG/MS

Foto: Amanda Melgaço

Foto: Amanda Melgaço

Foto: Giovanna Montoso

Parque das Nações Indígenas - CG/MS

Bioparque Pantanal - CG/MS

Foto: Amanda Melgaço

CG/MS

CG/MS

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Foto: Amanda Melgaço

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UFMS - CG/MS


Parque das Nações Indígenas - CG/MS

Foto: Emilly Mira

Foto: Giovanna Montoso

Foto: Rafaella Moura

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SILHUETA

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Porto - Corumbá/MS

Lago do Amor UFMS - CG/MS

CG/MS

Foto: Maria Eduarda Metran

Porto - Corumbá/MS

CG/MS

Foto: Ana Laura Menegat

Bioparque Pantanal - CG/MS

Foto: Maria Eduarda Metran

Foto: Maria Eduarda Metran


política e sociedade

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Foto: Maria Eduarda Metran

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Caminhos e memórias Texto: Idaicy Solano e Rafael Pereira

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ato Grosso do Sul, com seus 79 municípios e 44 anos de história, é formado por espaços e acontecimentos que marcam suas memórias e seus caminhos até os dias atuais. O território se edifica sob uma diversidade de bens culturais e históricos, desde o Pantanal sul-mato-grossense, passando pelo Forte Coimbra e pelo Casario, desbravando o estado pelos trilhos da Noroeste do Brasil ao som da viola de cocho. O historiador e coordenador do arquivo público estadual, Douglas Alves da Silva, ressalta a necessidade de se preservar essa memória para as gerações futuras saberem de onde nós viemos e para onde nós vamos. “Para que as próximas gerações tenham acesso à formação da nossa identidade, à formação dos nossos aspectos culturais e de onde eles surgiram”, expressa. A natureza pantaneira, emoldurada por suas serras, grutas, cachoeiras e planícies alagadas é reconhecida internacionalmente pela sua beleza e biodiversidade, e tem assumida a sua necessidade de preservação. O mesmo acontece com a cultura e os costumes de um povo, como indica o livro, publicado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2019, Memórias do Presente “um povo sem conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”.

O gerente do patrimônio do Estado, Caciano Lima, acrescenta que a cultura faz parte do desenvolvimento pessoal dos indivíduos. Quando falamos de bens culturais e sociedade, falamos de duas vias que se misturam, e se tornam parte uma da outra no sentimento de preservar também a sua própria história. “Ali tem um pouquinho de nós. Conseguimos nos reconhecer como seres humanos a partir do desenvolvimento que ali é perceptível. Quando você preserva um bem [cultural] um pouco de você está lá”, explica Lima. É através desses bens que a sociedade se expressa e compartilha memórias. Lima entende que há uma forte relação entre a construção de identidade cultural e os patrimônios culturais, ou melhor, bens culturais. “Para você seguir adiante, você precisa saber quem você é. E quando você se reconhece em alguma coisa, tudo se transforma. São esses bens que trazem esse conforto para nós”, conta. Esses bens históricos e culturais manifestam a diversidade da cultura do país. A educação patrimonial serve de referência para entender a construção identitária local. “Ela educa de uma forma que você pega aquele conhecimento que você já detém e melhora ele”, completa Silva.

A história como um bem comum

Segundo os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, a noção de patrimônio cultural reconhece a existência de bens culturais de natureza material e imaterial e estabelece formas de preservação como registro e tombamento.

Quando você se reconhece em alguma coisa, tudo se transforma Caciano Lima Os bens culturais de natureza imaterial, de acordo com a seção de cultura, incluída na Constituição, dizem respeito “às formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas”. Os bens de natureza material são edificações, paisagens e conjuntos históricos urbanos. A proteção é reconhecida com o tombamento, pelo Decreto-Lei n.º 25 de 30 de novembro de 1937, que visa garantir legalmente a preservação dos bens de interesse cultural para o país. O bem cultural tem que fazer parte da história da cidade, estado ou país, pois é essa ligação com a identidade local que traz importância ao bem. “Esses dois elementos [registro e tombamento]


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justificam a proteção desses bens. Normalmente precisamos encontrar motivações históricas, museológicas e talvez arquitetônicas”, explica José Augusto Carvalho dos Santos, chefe da divisão técnica do Iphan/MS.

Um passado reconhecido

Foto: Isabela Procópio

Implantada no século XX, a ferrovia Noroeste do Brasil foi inaugurada em 1914. Ela atravessa o interior de São Paulo até chegar na fronteira do Brasil com a Bolívia, na cidade de Corumbá (MS). A ferrovia foi a responsável por impulsionar o desenvolvimento do setor de transporte nacional, facilitando o envio de cargas do litoral para outras partes do país. A estrada de ferro vigorou até a década de 1990, quando foi decretado o fechamento da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), durante o governo de Fernando Collor (1990-1992). A decisão afetou boa parte dos trilhos localizados no estado, especialmente na cidade de Corumbá. O tombamento federal foi realizado em três de dezembro de 2009, destacando a importância da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil para o desenvolvimento do Centro-Oeste brasileiro, sobretudo na cidade de Campo Grande, capital do estado. “No entendimento estadual, o que tinha maior valor era a ferrovia. A capital Campo Grande se tornou o que é por causa dela. Olhamos para todo espaço ferroviário e procuramos localizar um trecho que servisse de referência, foi escolhido [o trecho] de Campo Grande”, explica Santos. Esse bem cultural em particular é protegido em âmbito federal, estadual e municipal, considerando toda sua extensão.

Douglas Silva, historiador e coordenador do arquivo público estadual

Outro exemplo de reconhecimento está construído às margens do Rio Paraguai, no município de Corumbá. O Casario do Porto é um complexo com 119 edificações de arquitetura eclética em meio a planície pantaneira, tombado em 28 de novembro de 1993. “Você tem ali uma região

política e sociedade

que guarda uma história muito grande. Ela vai ter toda essa conexão com o passado, então você faz uma viagem no tempo”, explica Silva. É um conjunto arquitetônico histórico, cultural e turístico, que fomenta a educação e a cultura e estimula o emprego e a renda local. “Corumbá e seu Casario por muito tempo ficaram em decadência, até que nos anos 1980 e 1990 começou uma movimentação para recuperação daquele espaço, por parte do governo e posteriormente a participação mais incisiva do Iphan”, pontua Santos. No começo do século XX Corumbá era economicamente fundamental para o estado, pois possuía um dos portos mais importantes do país, que recebia navios de todas as partes do mundo. Por isso, o Casario se consolidou como uma região movimentada e com comércio local rico. Porém a chegada da ferrovia voltou as atenções para Campo Grande. Ainda em Corumbá, no distrito de Coimbra, implantado no Pantanal sul-mato-grossense, está o Forte Coimbra, o único no Brasil a ter de fato um batismo de fogo. “Quase todas as totalidades dos fortes brasileiros nunca foram usados, no entanto, o forte de Coimbra foi atingido por tiros, invadido, tomado pelo Paraguai e depois retomado; esse tipo de ação é chamado de batismo”, explica Santos. O local fica nas proximidades da tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Paraguai. Segundo registrado pelo Iphan, no livro Memórias do Presente, “o forte possui alojamentos para abrigar soldados, salas para o comandante e para a administração, paiol para armazenamento de armas, cadeia, calabouço e uma capela”. Foi o primeiro bem a ser tombado pelo Iphan no estado, no dia 31 de outubro de 1974. Como único patrimônio cultural imaterial do estado temos a viola de cocho, um instrumento tradicional do povo pantaneiro, registrado no Livro dos Saberes em 2005 e reconhecido pelo Iphan como patrimônio imaterial. Silva explica que a viola de cocho é um elemento cultural com forte presença na fronteira e nas músicas pantaneiras. Sua origem está ligada ao povo pantaneiro e divide raízes com o Estado vizinho, Mato Grosso. “Ela tem uma grande incidência aqui em Corumbá e Ladário, e no caso do Mato Grosso tem uma grande incidência lá em Cuiabá”, resume. Confeccionada por mestre cururueiros, tradicionalmente a base de madeira chimbuva e com linhas de pesca, o instrumento compõe as melodias que embalam o cururu e o siriri, duas danças típicas da região. Na região Centro-Oeste, o cururu é dançado em homenagem aos santos padroeiros, sendo tradição da festa do banho de São João, nos municípios de Corumbá e Ladário. Afinal, o que é Mato Grosso do Sul? Para além do estereótipo pantaneiro é o reflexo palpável, visível e sentido da história retratada por cada bem apresentado aqui. Por meio deles entendemos um pouco melhor como se formou e por quais entraves e percalços este estado passou até chegar ao que é hoje, um lugar com identidades reconhecidas.

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Bens culturais e históricos não tombados/registrados ou em estudo:

Segundo informações retiradas do site do Governo do Estado de Mato Grosso, o siriri é uma dança folclórica de origem indígena, típica da região pantaneira, marcada por um ritmo contagiante e alegre. Enquanto as moças dançam, os homens fazem a corte, geralmente embalados pela viola de cocho, reco reco e ganzá. No cururu, tocado apenas por homens trajados em suas melhores vestes, existe a presença de improvisos para impressionar e cortejar as moças. Em fevereiro de 2022 foi apresentado um projeto de lei que propõe que a música “Boa Tarde, Boa Tarde”, composta pelos primos José Eloy de Magalhães e João Batista Carretoni, em 1969, para o bloco carnavalesco Flor do Abacate, se torne patrimônio cultural de Corumbá. Os Bugrinhos da Conceição são esculturas talhadas em madeira e produzidas pela artesã Conceição Freitas da Silva, conhecida como Conceição dos Bugres. Ela é considerada uma das artistas mais importantes do Centro-Oeste, nasceu em Povinho, no Rio Grande do Sul e migrou para o Mato Grosso do Sul, na época ainda Mato Grosso, aos seis anos de idade. Em 2021, o tradicional Banho de São João recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O evento é uma celebração religiosa e festiva que acontece nos dias 23 e 24 de junho nas cidades de Corumbá e Ladário.

Reconhecimento internacional Segundo José Augusto Carvalho dos Santos, chefe da

divisão técnica do Iphan/MS, o Forte Coimbra juntamente com outras 18 fortificações brasileiras estão na lista para se tornar Patrimônio Material Mundial da Humanidade, que faz parte do Livro de Registros Patrimoniais da Organização das Nações Unidas para a Educação (Unesco). No momento, a fortificação está passando por estudos técnicos e adequações de acordo com as normas da instituição internacional. Um dos pontos de destaque para a colocação do patrimônio na lista é a peculiaridade de ser um dos únicos fortes brasileiros a ter de fato um “batismo de fogo”. Em 2000, o Pantanal foi considerado Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera pela Unesco. Consta nos registros do Iphan que as áreas protegidas abrangem os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e compreendem a maior planície alagada do mundo, sendo um dos ecossistemas mais ricos em vida silvestre. Fonte: IPHAN

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OPINIÃO

PROJÉTIL | #98

O “Pantanal” nas telas

Texto: Kadu Bastos | Ilustração: MARINA COZTA

“P

antanal” está nos lares brasileiros desde o final de março. A novela que mexeu com o imaginário do público 32 anos atrás, criada por Benedito Ruy Barbosa, retornou às telas com uma nova versão exibida no horário nobre, agora escrita por Bruno Luperi. A história de tradições familiares junto ao romance e misticismo cercado pelo bioma pantaneiro, traz Mato Grosso do Sul, outra vez, ao cenário nacional. Chama atenção a nova abordagem da novela em relação aos impactos ambientais no Pantanal e a atualização da obra no que se refere aos temas sociais e culturais contemporâneos no ambiente conservador do interior pantaneiro. Machismo e homofobia, por exemplo, acontecem, mas agora são rebatidas, principalmente por personagens mais jovens. A trama inicia com Joventino (Irandhir Santos) e seu filho José Leôncio (Renato Góes, na juventude, Marcos Palmeira na maturidade), peões de comitiva de gado, que chegam no Pantanal. José Leoncio assume o legado do pai no comando da fazenda. Em viagem ao Rio de Janeiro, ele conhece Madeleine (Bruna Linzmeyer/Karine Teles) por quem se apaixona, se casa e tem um filho. Jove (Jesuíta Barbosa) nasce na fazenda, mas insa-

tisfeita Madeleine retorna para o Rio levando o filho do casal. Anos se passam e o retorno de Jove, agora adulto, é esperado. Paralelo a isso, o lado místico da novela é apresentado na história de Maria e Juma Marruá (Juliana Paes e Alanis Guillen), e do Velho do Rio (Osmar Prado). Esse lado misterioso da trama ainda cai no gosto do público. As cenas em que Maria e Juma viram onça repercutem. Prova disso, é que a novela vem quebrando seus próprios recordes de audiência, registrando o melhor Ibope do horário desde 2015. Outra característica marcante da repercussão na geração atual, são os memes, satirizando situações, principalmente em relação a Jove que se atrapalha para tentar se adequar ao ambiente pantaneiro. Além disso, a situação atual do país, com inflação alta, cultura sem ministério e a volta da novela na TV aberta, gera ironias na internet de que voltamos à década de 1990, quando a primeira versão foi exibida. Com orçamento milionário, “Pantanal” é a telenovela mais cara da Globo até então. O investimento é observado nas cenas das paisagens do bioma que parecem saltar da tela. Parte dos locais foram filmados em seis fazendas na bacia do rio Negro, próximo a Aquidauana. No entanto, falta especificar qual Pantanal estamos vendo. O bioma possui 11 microrregiões com características naturais variadas. Além disso, é muito citado, na fala dos personagens, o ciclo das águas, as cheias e

vazantes, mas ainda não vimos uma cena que representasse esse aspecto da maior planície alagável do mundo. O peão pantaneiro é representado nas cenas da rotina na fazenda e nas rodas de viola. As canções de Almir Sater “Comitiva Esperança”, “Boiada”, “Chalana” e de Sérgio Reis “Cavalo Preto”, presentes na trama, embalam as cenas e retratam um pouco da cultura tradicional. Parte dessas canções são cantadas pelo próprio Almir Sater que retorna ao elenco, agora no papel do chalaneiro Eugênio. Já a caracterização dos peões com roupas mais estilizadas parece fora da realidade. O hábito de José Leôncio não tirar o chapéu nem para comer, foi criticado. Já que a refeição é um momento sagrado para os peões. O sotaque falado na novela, lembra de longe o modo de falar de quem vive no Pantanal, mas se aproxima mais de um “caipira genérico”. A expressão “Larga Mão” é bem-vinda, mas o “Ara” poderia ser trocado por “Eita pega”. A falta de sotaques de outras regiões e a referência a outras cidades do MS, para além de Aquidauana e Campo Grande, são sentidas. Inclusive, nem a própria cidade que é portal de entrada para o bioma, Corumbá, apareceu na trama. O elenco de maioria branca em meio ao Pantanal também soa estranho. A ausência de mais personagens negros, descendentes de índios, bolivianos e paraguaios ignora que o MS tem uma miscigenação forte. Na fazenda do Zé Leôncio o agro é pop. Ele é o pecuarista do bem que defende ideais de sustentabilidade. As

queimadas são citadas só de forma pontual. A exploração do turismo na região, assunto tão cobiçado no mundo real, é tratado como se fosse possível de conciliar desenvolvimento econômico com preservação ambiental. Embora novelas sejam ficção, elas contribuem na formação do imaginário das pessoas, construindo e ou desconstruindo estereótipos. “Pantanal” já surpreende por ser uma produção fora do eixo Rio-São Paulo que conquistou o público. No entanto, a novela poderia ganhar e contribuir ainda mais apostando no retrato de mais nuances de MS e não recorrendo ao lugar comum. Por fim, o folhetim pode ser uma ótima oportunidade para colocar o bioma em evidência e provocar o debate sobre sua importante preservação. A trama deve continuar nas telas até setembro, portanto, ainda há tempo de recontar o Pantanal como MS merece.

carlos.bastos@ufms.br @marinacozta


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cultura e comportamento Foto: Amanda Melgaço

Foto: Prefeitura de São Gabriel do Oeste

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Miscigenação Gastronômica Contradição inusitada de sabores influenciam na construção das identidades culturais de Mato Grosso do Sul Texto: Evellyse Michelle, Isabella Motta e Patrícia Martins

P

orco no rolete, linguiça de Maracaju, sobá, tereré, sopa paraguaia, carreteiro e quebra-torto são algumas das comidas típicas de Mato Grosso do Sul. Para quem não conhece, esses alimentos podem causar um estranhamento à primeira vista. Um café da manhã acompanhado de um salgado boliviano ou uma chipa paraguaia. Um almoço com um tradicional arroz carreteiro dos peões pantaneiros. Durante a tarde, um tereré gelado ou uma deliciosa sopa paraguaia. Por fim, no jantar um sobá okinawano quentinho. São estas combinações inusitadas que constroem a gastronomia deste estado e evidenciam que em sua cultura nada é imutável. Mato Grosso do Sul é moldado por uma grande diversidade cultural, uma mistura de costumes e tradições que são legados de países como Paraguai, Bolívia, Líbano, Japão e a Ilha de Okinawa. A gastronomia regional pode ser singular, significativa e viva. Mais do que um

simples prato, a comida é um patrimônio cultural que carrega as características de um povo e conecta suas raízes ancestrais, gerando um sentimento de pertencimento, reforçado em eventos gastronômicos típicos. A multiplicidade cultural compõe essa miscigenação que se manifesta nos hábitos culinários e nos gostos por determinados alimentos. O antropólogo Álvaro Banducci Júnior explica que a gastronomia é um componente da identidade cultural. “A comida propicia um hábito cultural coletivo, são sentimentos, saberes e técnicas que têm a ver com o nosso modo de ser, nosso gosto, paladar e com a nossa identidade”. Para Álvaro, esta contribuição de diferentes povos acabou conformando a característica do estado. “É singular por essa complexidade étnica, pela variação e multiplicidade de referências culturais que condizem com a realidade social e cultural. É sobre falar: ‘Olha, eu sou sul-mato-grossense, eu como sopa paraguaia e tomo


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cultura e comportamento

tereré’. É o que marca, é uma referência de identidade, o orgulho de um povo”. Para promover a cultura regional, atrair turistas e desenvolver a economia local, são realizados durante o ano festivais gastronômicos que possibilitam um rico calendário cultural. Para o diretor-presidente da Fundação de Turismo de Mato Grosso do Sul, Bruno Wendling, os festivais gastronômicos realçam o melhor da gastronomia regional. “A nossa cultura é tão rica, tão diversa, que hoje a gente consegue entregar uma alta gastronomia. E com os festivais, é uma forma de disponibilizar uma alternativa de lazer para o público que mora aqui e para o turismo”. Além do turismo habitual em Bonito, Rio Verde e o Pantanal, os municípios de Maracaju e São Gabriel do Oeste atraem pessoas pelo paladar de seus pratos, o que desenvolve o turismo gastronômico que é um dos principais motivadores de novos fluxos turísticos. “Já temos turistas que procuram épocas de festivais gastronômicos para compor a sua rota de viagens e já decidiram visitar aquele destino pela comida típica oferecida”, aponta Bruno.

A nossa cultura é tão rica, tão diversa, que hoje a gente consegue entregar uma alta gastronomia

Foto: Amanda Melgaço

Bruno Wendling

Após todo o preparo da linguiça, as pessoas podem degustar

Ô trem bão sô

A Festa da Linguiça de Maracaju é considerada um dos maiores eventos gastronômicos do estado e sua iguaria veio de Minas Gerais, através das primeiras famílias fundadoras da cidade que deu nome à linguiça. Em sua 26a edição, realizada de 29 de abril a primeiro de maio de 2022, foram assadas mais de 20 toneladas de linguiça. O Rotary Club, responsável pela organização no Parque de Exposição, contou com voluntários e parcerias. Ao todo, 400 pessoas auxiliaram na estruturação do festival que movimentou cerca de 25 mil pessoas em três dias de evento. A festa é aguardada pela população devido ao impacto econômico. Em três dias, movimenta postos de gasolina, redes de hotéis, farmácias, lanchonetes, conveniências e lojas de vestimenta. O organizador da festa e presidente do Rotary Club de Maracaju, Júlio Silva Carlonga, aponta que cada real investido na Festa da Linguiça é revertido sete vezes a mais para a cidade. “Na sexta-feira e no sábado tivemos o maior público. Fomos além do recorde das outras edições e temos a sensação de dever cumprido. Podemos reverter todo o lucro para as entidades que tanto precisam e dar uma alavancada na economia”. Todo o recurso arrecadado na festa é destinado ao hospital municipal e entidades filantrópicas. Euclides Ivani de Lima, conhecido na cidade como “Seu Bigode”, participou de todas as edições e destaca que o ponto principal é o cuidado ao assar a linguiça. “Se não sair bem assada, do jeito que o pessoal gosta, acabam não voltando no próximo ano. Então, a gente faz o possível e o impossível para fazer um trabalho bem feito”. Ao ser questionado se a linguiça é o prato que representa a cidade de Maracaju, declara que vai além. “Com toda certeza. Não é conhecida apenas na cidade, mas em todo o Brasil”. A linguiça é preparada com cortes de carnes da parte traseira do boi, como picanha, patinho, coxão mole, contrafilé, alcatra, ponta de alcatra e maminha. Um dos diferenciais é que a carne não é moída, mas cortada na ponta da faca, em pequenos pedaços. O tempero leva também suco de laranja azeda, que adiciona um sabor especial. Durante a festa, como acompanhamentos são servidos arroz branco com guariroba, mandioca, creme de milho, farofa, vinagrete e salada de repolho agridoce. Quem administra o preparo destes alimentos desde a primeira edição da festa é a cozinheira Laísa Felício Benites e relata que o serviço é gratificante. “A emoção é muito grande e ficamos contando nos dedos para chegar o dia. É muito bonito ver toda a equipe trabalhando

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para gerar benefícios para a cidade”. As cozinheiras acordam por volta de quatro horas da manhã para começar a preparar os alimentos para milhares de pessoas. Em um único dia são feitos mais de 60 quilos de arroz.

Bah tchê

A Festa do Leitão no Rolete também faz parte do calendário oficial de Mato Grosso do Sul. Realizada em São Gabriel do Oeste, começou em 1993 como uma iniciativa da Cooperativa Agropecuária da cidade. A princípio, tratava-se de uma comemoração com os trabalhadores e também uma iniciativa a fim de estimular e divulgar o consumo da carne suína. Nesta época, iniciou-se a suinocultura na cidade, que, segundo o relatório da Pesquisa da Pecuária Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é atualmente líder do ranking dos municípios sul-mato-grossenses produtores de suínos. O crescimento da festa começou por volta de 2000. A partir deste ano, ela passou a ser realizada em dois dias, no sábado e domingo. O diretor presidente da cooperativa, Sérgio Luiz Macron, detalha este desenvolvimento. “A festa saiu das paredes da Cooasgo. Todos os anos se abatia e assava mais animais do que no período anterior. Nos últimos anos, foram cerca de 240 animais, com aproximadamente 33 quilos”. O sócio-fundador da Cooperativa, Arlindo Willemann, auxilia na organização desde o começo e explica que o sucesso está na qualidade de tudo que é produzido na festa. “A questão foi a qualidade da carne suína, que no começo muita gente nem conhecia. Não é somente o assar, mas toda a preparação que temos”. Preparação que se inicia com cerca de quatro meses de antecedência, desde o desmame do animal. Como precisam atingir um certo peso, recebem inclusive uma alimentação especial. No dia da festa os trabalhos iniciam às 4h30 da manhã. “O principal segredo ali é quanto ao fogo, que tem que ser constante. Precisa ser devagar. O ponto atrativo é ver o leitão girando ali no rolete”. Outro ponto que Arlindo e Sérgio comentam é sobre a tradição são-gabrielense de acolher bem. “Como a movimentação na cidade é intensa e os hotéis sempre trabalham com lotação máxima, muitas famílias inclusive abrigam pessoas de fora em suas casas”. Além disso, a questão principal sempre foi servir bem. “Queríamos que quem viesse pela primeira vez voltasse. O grande triunfo nosso foi esse, demonstrando que estamos no caminho certo”. A festa atrai cerca de 30 mil pessoas, dobrando a população da cidade. Já a equipe de organização


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cultura e comportamento

Foto: Amanda Melgaço Foto: Amanda Melgaço

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conta com 150 pessoas diretamente envolvidas. Por conta da pandemia a celebração não foi realizada nos dois últimos anos. Sérgio detalha sobre o planejamento do retorno. “Esse ano [2022] a previsão é que retornamos com apenas um dia de festa, por enquanto, o tradicional almoço no domingo”.

A contribuição dos imigrantes okinawanos no estado se tornou um patrimônio cultural. O sobá, prato típico de Okinawa, uma das maiores ilhas do Japão, passou a ser comercializado por volta da década de 1950. Para o presidente da Associação Okinawa de Campo Grande, Marcel Arakaki Asato, o sobá okinawano tem um significado profundo. “Representa a resistência da colonização. É uma questão de herança cultural de um reino que existiu no passado. Uma cultura que foi suprimida, mas ainda sobrevive”. A Feira Central de Campo Grande promove anualmente o Festival do Sobá, que chega a movimentar 200 mil pessoas, com atrações culturais, regionais e musicais. A primeira edição ocorreu em dez de agosto de 2006 e, na ocasião, foi celebrado o registro do prato como patrimônio imaterial de Campo Grande. Desde então, todo segundo domingo de agosto é comemorada a festa. O último Festival do Sobá foi realizado em 2019, por conta da pandemia de Covid-19, e ainda não há confirmações da próxima edição. O diretor cultural da Associação Okinawa e proprietário da Barraca da Niria Tadashi, Gabriel Katsuren, relatou que a capital é um dos maiores centros de imigração okinawana. “Em questão de proporcionalidade, a concentração de okinawanos é maior que a de São Paulo. Então, não é de se assustar que o prato tenha vindo para Campo Grande. Mas o que foi uma surpresa, foi a desenvoltura e a popularização do prato que evoluiu com o tempo”. A família de Tadashi foi a pioneira na venda de sobá na Feira Central em 1965. “Meu avô Hiroshi Katsuren começou a vender sobá na feira e na época, o prato era direcionado para os próprios imigrantes de Okinawa. Mas eles tinham vergonha de comer este prato em público porque fazia uso do hashi [vareta usada como talher] e não era algo que todo mundo estava habituado a ver em público. Então, meu avô colocou uma espécie de varal, uma cortina para eles comerem escondidos do resto do

Foto: acervo família Tadashi

Sabor okinawano

A família de Tadashi foi a pioneira na venda de sobá na Feira Central em 1965

pessoal”, conta Tadashi. O truque usado para dar privacidade aos clientes gerou curiosidade para as pessoas de fora da comunidade okinawana. O público começou a pedir o prato e o fato de ser consumido escondido, virou um marketing de sucesso. As culinárias dos festivais evidenciam as diferenças de sabores, sentidos, aromas e temperos da cozinha okinawana, mineira e gaúcha. A identidade sul-mato-grossense é representada pelo sabor de sua gastronomia, das produções musicais, festas populares, artesanato e das danças que mantêm um forte tempero regional.

O sobá okinawano difere do japonês De acordo com o presidente da Associação Okinawa, Marcel Arakaki, o prato não representa a mesma coisa para os dois. “O sobá okinawano é um tipo de macarrão feito com trigo normal. Agora, para os japoneses o sobá tem que ser preparado com o trigo-sarraceno”. Os complementos do sobá, como caldo suíno, cebolinha e omelete fatiado não estão presentes em todas as receitas. O preparo original é feito com carne de porco, panceta suína, kamaboko (bolinho feito de massa de peixe cortado em tiras) e o gengibre vermelho, feito com corante. “Na nossa barraca, eu continuo fazendo o caldo que eu aprendi com os meus avós. Ele é bem tradicional, feito com caldo suíno. O caldo japonês é mais leve”, aponta Tadashi. O sobá campo-grandense, tradicional de Okinawa, é feito com carne bovina, caldo de puchero de boi, omelete em tiras e cebolinha. Mas também tem a opção suína e é comum o público colocar shoyu no sobá. “No Japão isso não existe. O shoyu fica dentro da cozinha junto com o cozinheiro e não na mesa”. Para Tadashi, o sobá representa um marco da cultura de Okinawa na capital. E mostra como uma comunidade pode deixar a sua marca e influência em uma cidade do outro lado do mundo.

bella-lm@hotmail.com michelle.evellyse@ufms.br pt_martins2011@hotmail.com


opinião

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Estranheza Da capital do Pantanal à capital do estado

Texto: Kadu Bastos Ilustração: Sara Welter

J

á se vão dois anos com uma pandemia no meio. A cada dia que permaneço em Campo Grande, a sensação de estranheza me acompanha. Me habita essa confusão. Não me vejo nem distante, nem próximo desta cidade, talvez seja o sentimento mais genuíno que consigo expressar vivendo aqui. Achei que neste momento eu já saberia o suficiente a respeito de “Campão”. Me enganei. A euforia da mudança para cá não me fez pensar sobre ser um estrangeiro dentro do meu próprio estado. Tal sensação de estranheza, também me faz refletir sobre as nuances do MS e do lugar de onde venho – o verdadeiro portal de entrada para o Pantanal – as cidades de Corumbá e Ladário, onde nasci e cresci. A 428 km da capital, lá estão elas, quase isoladas geográfica e culturalmente. Banhadas pelo Rio Paraguai de ponta a ponta, apresentam o Pantanal aos nossos olhos, como um convite ao paraíso. Avenidas e ruas ligam Corumbá, a capital do Pantanal com mais de 110 mil habitantes, à Ladário, a Pérola do bioma com 24 mil habitantes. São lugares onde se encontram as mais variadas características e identidades do MS, coexistindo de maneira intensa e em harmonia numa porção de terra ilhada pelo Pantanal. Quando falo, logo reagem ao meu sotaque forte, achei que não pudesse carregar tamanha identidade. O sotaque característico entrega qualquer falante daquele lugar. A herança da fala dos portugueses da época, junto com o sotaque regional de Mato Grosso, estado vizinho, aliado à vinda dos cariocas para Ladário

e Corumbá, deram para a minha região um modo único de falar no MS. Lá definitivamente não é fim, é começo. O Pantanal pode ter sido o lugar da origem da vida. O Corumbella, fóssil mais antigo das Américas encontrado na região, pode ser a chave para a evolução das espécies. Quem diria que esse bioma escondido no meio do Brasil guarda os segredos do início do continente? Palco da Guerra com o Paraguai, as cidades quase deixaram de ser Brasil, mas resistiram. Ao longo de seus 243 anos, embarcações de várias partes do mundo atracaram em seus portos. No início do século XX, Corumbá chegou a ter mais estrangeiros do que brasileiros. Vários povos formaram e continuam formando a identidade da região. Carrego em mim parte deles: indígenas, negros e imigrantes europeus. A influência boliviana pela fronteira terrestre com Corumbá fez o arroz boliviano e a saltenha se tornarem parte do cotidiano

pantaneiro. Escrevo esse texto com uma saudade do único sabor agridoce que gosto, o da saltenha de lá. A proximidade dos países é tão grande que acho que já saí mais do Brasil do que do MS. Em Ladário, observava o pôr do sol. Uma pintura no céu que acalma a vista, depois do dia escaldante. Recomendo a todos que apreciem este momento nos finais de tarde no Pantanal. O hábito de sentar e tomar tereré em frente de casa, olhando a rua, me faz falta. Vizinhos se encontram pelas calçadas e conversam por lá. É o lugar onde a natureza e a vida urbana quase se confundem em uma só. Ipês cobrem as ruas com suas flores. Lembro das araras e tucanos fazendo visita no quintal de casa. E sim, até jacaré e onça já andaram pelas ruas. Nas cidades pantaneiras, se faz festa como ninguém. Além do maior carnaval do centro-oeste, tem o Festival América do Sul, as festas juninas e o Ba-

nho de São João, que virou patrimônio Cultural do Brasil. Em CG, me vem à cabeça outro contraste. O relevo aqui não tem curvas, como a morraria e o Morro do Urucum. Quase nenhuma rua ou avenida que percorro me faz lembrar os caminhos de lá. Nem mesmo a Afonso Pena com suas árvores se assemelha à General Rondon com suas palmeiras. Fui até as praças Ary Coelho e do Rádio, mas ainda me enxergo na Praça da Independência de Corumbá. Ainda tenho muito a conhecer de Campo Grande. Meu caminho aqui está só começando. As nuances da cidade morena em sua vastidão plana me convidam a explorar mais desse lugar que escolhi ter como morada. carlos.bastos@ufms.br @syunoi


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editorial

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Cultura que (sobre)vive Texto: Simone Gallassi | Ilustração: Karina Teruya

Não existe cultura nesse estado!”. Eis uma crítica há muito tempo vociferada por parte da população da cidade. Mas, ao contrário do que Joseph Goebbels cunhou, uma mentira dita mil vezes continua sendo uma mentira. A cultura pulsa, firme e vívida, nas entranhas de Mato Grosso do Sul. A cultura que circula pelas ruas, que enche de vida e fortalece a identidade de gerações, no entanto, nada tem a ver com os grandes shows em exposições. Estes são apenas frutos de uma indústria cultural, trazidos por cifras indecentes e que garantem lucro para grupos minúsculos, ofuscando a produção local com espetáculos de encher os olhos e esvaziar as mentes. Do bar, que preenche sua agenda com imitações de bandas internacionais, ao poder público, que dificulta o acesso do pequeno produtor cultural a seus editais, cada coadjuvante tem um pouco de culpa na fama de morta que um estado tão vivo carrega. O Governo do Estado e a Prefeitura da capital, por exemplo, tem acertado em iniciativas – ainda que modestas – que buscam ao mesmo tempo abastecer a cultura com recursos e leva-la para mais perto da população, que é apresentada a obras e artistas que dificilmente teria contato sem desembolsar algumas dezenas de reais na noite boêmia. Na noite, aliás, ainda é preciso injetar algumas doses de orgulho regional. O que mais se vê nos “pubs” – onde o estrangeirismo começa pelo nome – são eventos embalados por covers. Convenhamos, por melhor que sejam os passos de Michael Jackson ou o bigode de Freddie

Mercury dos contratados, é importante lembrar que a arte vive na criação, na originalidade e na identidade. Como tudo que é vivo, porém, a cultura sempre encontra um jeito. É nos sarais em que o músico fortalece o artista plástico, o poeta apoia o pintor e o ator aplaude o músico que se tem a certeza de que a cultura vive aqui, em meio ao povo, nas ruas, praças, palcos improvisados e nos bares mais modestos. Não que a cultura deva, via de regra, ser feita por amor e desapegada das coisas materiais, pelo contrário, precisa de cada vez mais investimento para alcançar efetivamente a todos, mas a produção focada em números sempre acaba por deixar de lado o conteúdo, repetindo refrões chiclete para multidões ou entregando obras apenas para uma elite que por elas possa pagar. Se a cultura respira por aparelhos, estes são fruto da perseverança dos artistas locais, mas é preciso um remédio para que cada vez mais deles deixem de apenas sobreviver da arte. É preciso amparo e conhecimento, e que o poder público, em todas as esferas, pense não somente em projetos de fomento, mas também em como facilitar o acesso dos artistas a eles, evitando que recursos públicos fiquem restritos a quem tenha consigo uma equipe de apoio para preenchimento de editais. Também depende do interesse de cada artista em aprender a lidar com a burocracia, incômoda, mas obrigatória, para o acesso a tais recursos. Ainda há, porém, um primeiro passo necessário: assim como a cura para qualquer enfermidade começa

Acesse a versão web do Projétil com o conteúdo integral do impresso e material adicional em texto e fotos

sgallassi@gmail.com @syunoi

pela cabeça, o sul-mato-grossense deve também acreditar na vida cultural do estado, que ainda que caminhe com dificuldades, passa longe de estar morta. Para quem quer acreditar no potencial destas terras, a edição 98 do Projétil se propõe a ser colírio, capaz de abrir os olhos para enxergar a vida e as raízes do Mato Grosso do Sul com várias lentes. Uma boa dose de informação que busca despir preconceitos e estereótipos e ser, afinal, remédio para a ignorância. Divirtam-se!

EXPEDIENTE Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – 2022/1. Produzido por acadêmicas e acadêmicos vinculados à disciplina Jornal Laboratório II sob orientação das professoras Rafaella Lopes P. Peres e Katarini Miguel, e com o apoio do professor Silvio da Costa Pereira e do Grupo ‘Pensar o Desenho’, com orientação da professora Constança Lucas. Ilustração da capa: MARINA COZTA e SYUNOI (Sara Welter). Alunos de Jornal Laboratório | Editoria Executiva: Amanda Maia Ferreira Pirani, Aliciane Rodrigues Rocha, Beatriz Rieger e Raquel de Oliveira Alves. Editoria de Imagem: Amanda Melgaço Moreira Machado, Giovanna Esperidião da Silva Montoso, Isabella Procopio Perez e Maria Eduarda Metran De Miranda. Editoria de Arte: Amanda Allison Feitosa Gonzalez, Anna Gabriela Rozante da Silva, Gabriella Alves Couto, Morris Fabiana De Messias e Rafaella Moura Teixeira. Editoria de Opinião: Carlos Eduardo Eleutério Bastos, Carlos Eduardo Ribeiro Fernandes de Oliveira, Daphyne Schiffer Gonzaga, Simone Aguilheira Barbosa Gallassi Da Silva e Vitória Fernanda Martins Gomes. Editoria de Reportagem: Ana Laura Menegat de Azevedo, Ana Beatriz Santos e Silva, Andrella Ayumi Okata dos Santos, Evellyse Michelle De Souza Moraes, Emilly Mira Alves Santana, Fernando de Carvalho Correa Chaves, Gabriel Gill Ramires, Idaicy Solano Do Nascimento, Isabella Ledo Motta, João Pedro Dos Santos Flores, Letícia Dantas Candido Brito, Maria Eduarda Schindler, Maria Isabel Manvailer Siqueira, Mariana Gomes De Lima, Patricia Martins da Silva, Raíssa Trelha, Rafael Pereira de Lima e Valesca da Silva Cruz. Monitoras: Maria Eduarda Boin e Giovanna Silva. Alunos do grupo ‘Pensar o Desenho’: Ana Clara Klem, Bianca Esquivel, João Lucas, Karina Teruya, Laura Braga, Lucas Costa, Lucas Sorio, MARINA COZTA e SYUNOI (Sara Welter). Impressão: Grafinorte. Correspondência – Jornal Laboratório Projétil – Curso de Jornalismo – Faculdade de Artes, Letras e Comunicação (FAALC) – Cidade Universitária, s/n, CEP 79.070-900 – Campo Grande / MS. Fone: (67) 3345.7607 – E-mail: jorn.faalc@ufms.br (Jornalismo UFMS).

As matérias veiculadas não representam, necessariamente, a opinião da UFMS ou de seus dirigentes, nem dos docentes ou da totalidade da turma


JORNAL LABORATÓRIO | JORNALISMO | UFMS

O que é o Mato Grosso do Sul? Miscigenação gastronômica, pantanal, bens culturais, fronteiras e diversidade compõem o caldeirão cultural do MS percebido

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#ano 28 2022.1

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