Precisa-se Público _ FIAC 2016

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Cláudia Müller e Clarissa Sacchelli colaboram desde 2012. A relação entre produção, produto e recepção é interesse recorrente na trajetória das duas. Precisa-se Público nasce do desejo de pensar o público como testemunha, como aquele que permite que o fazer do artista ganhe existência. contato@precisa-sepublico.com.br


‘Meta mão’: o espectador, o público e o comum Finalizamos os preparativos para esta publicação, resultado da edição Precisa-se Público no FIAC Bahia 2016, ao mesmo tempo em que a PEC 55, que limita os investimentos sociais no Brasil, é aprovada no Senado Federal. Mobilizadas por sentimentos de raiva, tristeza e inconformismo ao vislumbrarmos as graves consequências dos capítulos assustadores escritos na história do Brasil ao longo deste ano, nos perguntamos como os artistas e seus fazeres podem tomar posição e resistir em momentos como este. ‘Meta mão’ indicava o apelo/subtítulo da 9ª edição do FIAC, convocando curadores, equipe técnica, logística e administrativa, artistas e público à participação. Imbuídas desse espírito, tão alinhado ao Precisa-se Público, nos engajamos nas possibilidades de, resistindo aos sequestros impostos pelo neoliberalismo, pensarmos e praticarmos a criação de terrenos férteis para a luta e o fortalecimento de um possível público e comum. Do raro encontro, proposto por esta edição do FIAC, entre tantos projetos de crítica com formatos e perfis diversos (AGORA Crítica Teatral; Antro Positivo; DocumentaCena com Horizonte da cena, Questão de Crítica e Satisfeita, Yolanda?; e Revista Barril), afirma-se a urgência de estarmos sempre atentos ao papel que nos cabe na formação do pensamento crítico. Recebidas as críticas, buscamos reforçar nosso compromisso de abraçar fricções, pensamentos dissonantes e múltiplas vozes. Propomos tecer conversas alinhavadas nas disparidades, nas discordâncias e também nas comunhões entre as vozes dos espectadores que, afetados pelas experiências vividas ao longo da programação, responderam ao nosso convite. Por meio desse projeto que culmina na presente publicação, desejamos dar visibilidade aos olhares das testemunhas da intensa e diversa programação artística que tomou conta de Salvador entre os dias 25 e 30 de outubro de 2016. Esperamos assim, no (micro) âmbito que este projeto opera, contribuir para dar visibilidade aos discursos anônimos, concebendo histórias a partir de outros pontos de vista e seguindo a indicação de Walter Benjamin: ‘escovar a história a contrapelo’. Cláudia Müller e Clarissa Sacchelli


Leandro Santolli além de ser um moçoilo muito simpático e fexatyvo, ele é um feliz professor de teatro e história da arte, ator, produtor e aspirante a diretor teatral. leandrosantolli@gmail.com


. Nós somos essa ambiguidade coletiva, que pode ser espaço de festa, de confraternização, mas também de poder e exclusão. Nós somos tempo da indelicadeza nas relações interpessoais e na política, com uma dando combustão à outra. E vice-versa. Nós somos inconformismo traduzido em gestos. Nós somos a repetição incessante de ideias arraigadas e a recusa em considerar o ponto de vista do outro quando o “diálogo” se transforma em disputa e julgamento. Nós somos a indagação se somos ou não capazes de lidar com as decepções inseparáveis do exercício democrático. Nós somos sopa preparada com os ingredientes da agressividade e do autoritarismo. Nós somos sopa indigesta. Nós podemos ser indigestos, mas alimentamos com vigor contínuo e momentos de grande beleza, uma discussão incontornável para todos os que precisam tragar os tempos atuais. Nós somos paralelo entre a desrazão do cenário político nacional e o extremismo religioso por trás da guerra na Síria. Nós somos movimento na inércia e a constatação de que pode haver inércia no movimento. E é lindo encontrar essa reflexão em coletivo particular que há em nós, desatando os nós.

Por Leandro Santolli

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Com Nós


Paola Vásquez é graduada em Produção Cultural e Licenciada em Dança, ambas pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente trabalha com Danças Árabes e é fundadora da Linóleo Produções e da Hariq Cia de Dança. esterpaola@yahoo.com.br


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...algumas se casam, algumas buscam ter paz, outras se tornam presidente da república. Eu posso te contar mas você nunca vai saber com foi. Você vai sentir algo mas nunca vai saber como foi. Você não estava lá. E o que aconteceu lá não se repetirá. Nunca mais. Você vai poder imaginar como foi. As pessoas, o cachorro e as cadeiras. Você pode imaginar a casa, as atrizes, os textos, os subtextos, o suor, o sangue, a dor. Depois que eu te contar, você vai agarrar o telefone e dizer “uau, que triste!” e se lamentará do que sente. Mas nada do que eu falar vai mostrar o que foi. Silêncio. Sigilo. Lágrimas. Eu fui estuprada indiretamente mas você não vai saber como foi. Eu fui torturada por 17 anos mas você não vai saber como foi. Eu vi três mulheres decidindo sobre um campo de extermínio mas você não vai saber como foi. Você não vai saber porque tem um cachorro no espetáculo. E, quando eu te disser que ele estava ali pra lembrar ao público que as mulheres de Villa Grimaldi eram estupradas com cães, você vai fazer uma cara de repulsa e agradecer por não ter estado lá. Você vai imaginar cada cena inventada. Cada espaço. Cada momento. Vai ouvir tudo o que eu digo e acreditar que compartilha do que eu vivi. Eu vou fazer você se lembrar. Entretanto, você nunca vai saber como foi. Ainda que os nomes das vítimas estejam escritas no muro, ainda que saibamos que o passado não pode se repetir, ainda que a arte possa te mostrar nosso passado, você não saberá. Talvez, agora você possa sentir algo. Mas isso é nada comparado a experiência real. Nada! A verdade é que foi muito pior. E não passou. Não passou! Ainda que você entenda o que eu digo, ninguém quer ver nada indigesto. E a Villa é feia. Mas eu quero que passe, para ter paz, para dormir tranquila e talvez por isso todas as Villas acabam sendo lindas. Não há justiça. Não há consolo. Há que acordar e seguir mas também sei que está em mim te fazer lembrar, te assustar e ficar furiosa. Eu tenho esse direito! Está em mim continuar lutando mesmo que você não entenda!! MARICHIWEU!

Por Paola Vásquez

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Com Villa


NathalĂ­ Macedo ĂŠ autora do livro As mulheres que Possuo, feminista, mestranda em cultura pela Universidade Federal da Bahia, atriz e roteirista de teatro, e cantora de blues. Respira arte desde sempre. Escreve pra nĂŁo surtar. nathalomacedocs@hotmail.com


. Tentei assistir "Cuspe, Paetê & Lantejoulas", mas estava lotado. "É sobre erotismo e violência", me disseram. Na segunda tentativa, entrei. Faltava uma hora para o início do espetáculo e o público já se aglomerava na fila. Ao meu lado, mãe e filha adolescente conversavam sobre qualquer coisa numa relação típica entre mãe e filha adolescente. Entramos juntas - eu, a mãe e a filha adolescente - e sentamos lado a lado, quase como se nos conhecêssemos. O ambiente era - talvez propositalmente - constrangedor. Enquanto o público se acomodava, os dançarinos esfregavam-se nos objetos de cena - cadeiras, cabides, paredes, chão - e encaravam a plateia. A partir daí, olhos atentos, coração suspenso e reações das mais surpreendentes: Não se trata de um espetáculo higienizado, belo e cor de rosa: Eu estava diante de um espetáculo sobre o excremento. Sobre o que não quer, mas precisa ser visto. Sobre o mal-estar necessário que a arte tem como obrigação nos proporcionar. Nada estava no lugar certo - qualquer ideia de "lugar certo" foi quebrada pelo espetáculo, da estética ao conceito - mas tudo estava lá: a beleza, o incômodo, a angústia, a energia, o amor e o ódio dos quais, disse Brecht, necessita a arte. Olhei para minhas pseudoconhecidas, mãe e filha adolescente. Elas assistiam, com um semblante muito menos constrangedor do que eu esperava, aos dançarinos sem roupas e sem pudores. Era isso: o tabu havia sido quebrado. Mãe e filha adolescente compreendiam, no silêncio de suas observações - e, diante de tanto conservadorismo, como é difícil! - que sexo não é constrangedor e não é crime: Sexo é apenas sexo. "Cuspe, Paetê & Lantejoulas" é muito mais do que isso.

Por Nathalí Macedo

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Com Cuspe, Paetê & Lantejoulas


Rafael Almeida é ator, diretor, pesquisador de Teatro. Licenciado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, Doutorando em Artes Cênicas pelo PPGAC-UFBA. rapdr@hotmail.com


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Para onde “nós” foram? ou A última sopa? Eu vou a 1976. Balada do lado sem luz, canção de Gilberto Gil, ouço-a na voz que me embala sempre, Bethânia. Mas estamos 40 anos depois da gravação. Estamos em Salvador, Teatro Vila Velha – curiosamente Gil e Bethânia fizeram parte da programação de inauguração deste espaço em 1964, junto a Caetano, Gal, Tom Zé, Alcyvando Luz, Perna Fróes, Djalma Corrêa e Fernando Lona no show Nós, Por Exemplo -, final de uma tarde de primavera (nós não temos as estações do ano bem definidas no Nordeste do Brasil, já é verão aqui), vejo o mar engolir a bola de fogo que arde no céu e ansiosamente aguardo para assistir depois de alguns anos este grupo referência no Teatro Brasileiro (blá, blá, blá, tudo que já se sabe sobre eles...) 34 anos depois de surgirem lá nas Minas Gerais, o Grupo Galpão traz ao público seu mais recente espetáculo nós (uso o nome em letras minúsculas como grafado na capa do programa do espetáculo e por uma opção estética). Há que se esquecer de tudo que já foi feito. Nós (o público) presenciaremos (desde a entrada no teatro) um novo Galpão(?), uma nova proposta. Se há ecos de Romeu e Julieta (1992), de Till, a saga de um herói torto (2009) ou de Os Gigantes da Montanha (2013) ou, ainda, de tantos outros espetáculos da trajetória do grupo, estes ecos vão ser encontrados nos corpos dos atores. Ali estão inteiros, com suas histórias. E lançam-se a um novo desafio. Anti-teatrais, desteatralizados, contemporâneos, pós-dramáticos. Eles se jogam neste abismo que são os tempos escuros que vivemos. Tempos de corações duros, de almas abaladas (para parafrasear a canção de Gil que o elenco canta acappella em cena), em que se mecanizam muito além dos Tempos Modernos de Chaplin, esta sociedade que está, sim, doente. Onde todas as tragédias são espetacularizadas por uma mídia abjeta. Para onde nós vamos? Esta é uma pergunta que os atores se fazem em cena. Numa metateatralidade em que se lê um questionamento de um grupo que percorreu um caminho de quase 35 anos de tablado e que (talvez) se acreditava estanque, eles nos mostram que é possível se reinventar, que é possível dialogar com o próprio tempo, fazendo e nos levando a fazer um exercício de reflexão sobre o nosso tempo. “As coisas não estão fáceis”, fala repetida inúmeras vezes por Teuda Bara (figura emblemática do Grupo Galpão e do próprio espetáculo), de fato não são tempos fáceis. Mas quando as coisas foram fáceis para nós artistas? E mesmo não sendo fácil o grupo alcança um bom resultado.

Por Rafael Almeida

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Com Nós


. Depois de Beckett e suas peças recheadas de vazio, pósguerra, depois do existencialismo de Sarte, depois da segunda metade do século XX o ser humano pouco ou quase nada evolui em termos metafísicos. Sabemos mais que nunca que caminhamos para o nada. Somos cada vez mais vazios (nos preenchemos de um ter que pensamos substituir o ser). Vivemos mais distantes dos afetos presos às telas de smartphones, tablets, computadores, televisores de LED, etc, etc, etc... Repetimos ações de forma automáticas, repetimos discursos vazios, que, como se diz no linguajar popular “falam, falam e não dizem nada”. Essas repetições, esse moto-contínuo, esse movimento perpétuo não nos levará a canto nenhum, Beckett já nos mostrou isso. Mas precisamos falar, falar, falar sem parar. O barulho usado para não nos deixarmos ouvir o silêncio/vazio que há em nós. Repetir, repetir, repetir, eterna e indefinidamente. Mesmo que estejamos proferindo discursos sem conteúdo, informações de buscadores de internet, referências escusas, não confiáveis, mudar de assunto rapidamente, atropelar os pensamentos (os próprios e os de outrem). Já não ecoa mais em meus ouvidos a canção de Gil, ouço agora Lama, a Lama de Paulo Marques e Aylce Chaves, na voz de Núbia Lafayette, esta Lama está lá no espetáculo (na abertura com Teuda cantando, numa cena em que o Galpão faz referência à sua própria história colocando os atores tocando instrumentos em cena), mas está também a lama de Mariana-MG, a tragédia provocada pela Samarco – numa belíssima cena em que, nus, dois atores nos fazem pensar naquelas vidas apagadas por um mar de lama em que citam um trecho de um dos solilóquios de Joana, personagem do texto Gota D’água de Paulo Pontes e Chico Buarque -, e numa metáfora cenográfica esta lama que engoliu uma cidade – como o mar engoliu o sol na minha chegada ao teatro -, é engolida/coberta por um piso. Mas assim somos nós, os humanos, construímos tranquilamente sobre as tragédias dos outros, edificamos sobre aqueles destroços e rapidamente nos esquecemos do acontecido.

Por Rafael Almeida

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Com Nós


. O espetáculo do Grupo Galpão é uma metáfora da contemporaneidade. E é gratificante ver o grupo disposto a discutir e a trazer para cena uma dramaturgia surgida de suas próprias entranhas, expondo seu pensamento, arriscando até a ser um pouco panfletário, mas sempre colocando-se através de metáforas muito bem construídas. Há ecos de Sartre, de Beckett, há chiste com Tchekhov, há citações diretas a outros espetáculos, há críticas a outros espetáculos, paródias, há elementos que fazem parte deste grande guarda-chuva que é o teatro pós-dramático. Muito bem sustentado por um elenco que pode se “atrever” a fazer este teatro por já ter percorrido o TEATRÃO, despir-se de todas as convenções do teatro moderno não é fácil e isto o Galpão soube fazer bem. Eles podem sim fumar, beber, comer, e não estão mortos, como a personagem da canção Lama, o Grupo está vivo. E iniciando (acredito eu) um novo ciclo nesta tão bem percorrida estrada de 34 anos.

Por Rafael Almeida

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Com Nós


Thiago Almasy é soteropolitano, artista cênico e cinematográfico. Como ator, é conhecido pela série de web vídeos Frases de Mainha e pelo trabalho que desenvolve junto ao Teatro da Queda. thiagodude@ gmail.com


. Saí do Teatro Vila Velha completamente atravessado por “Nós”, do Grupo Galpão, e fiquei buscando alguma palavra que me ajudasse a definir o que tinha acabado de assistir – o que é engraçado, visto que me pareceu que assisti tantas coisas em uma só coisa, se é que vocês me entendem. Uma obra que atua em diversas camadas, com atores visivelmente dispostos a compor e não a sobrepor. A polifonia dos discursos tinha tudo para virar ruído, mas mais parecia uma sinfonia, e é muito interessante como, em certos momentos, a repetição é usada como uma ferramenta que interfere diretamente no ritmo da cena. E tenho quase certeza que o "repetirse" não está ali como mero capricho estético. Esse é um outro ponto alto deste trabalho: a maneira que ele consegue fazer com que o espectador se deixe levar por pequenos detalhes, criando alguns desvios em nossa percepção, enquanto continua tecendo o fio condutor do que queria dizer. Cabe a nós, o público, costurar essa colcha de retalhos, ou não. É que “Nós” se estabelece de forma coerente para, subitamente, subverter os diversos códigos que estão impregnados na encenação. Ao invés de procurar algum dado que pudesse justificar todas essas quebras – e talvez ele até exista –, me deixei levar pelo sistema de imagens que eles compõem em menos de duas horas. Desde a simplicidade de uma conversa corriqueira sobre algo que foi observado numa estação de metrô à reverberação de uma fotografia que mostra o corpo de uma criança morta em outro lugar do mundo, fui levado para um lugar de afirmação da própria condição gregária do ser humano. Adicione aí o fato de que esse trabalho foi construído de forma coletiva a partir de inquietações dos próprios atores, e você chega naquele ponto onde realidade e ficção se misturam em sua frente e é intrigante perceber como a direção oferece pistas de coisas que talvez tenham acontecido entre eles que, aqui, ganham um contorno extremamente afetivo e poderoso. A arte, muitas vezes, não precisa “fazer sentido” e sim ser sentida. Me encontrei nesse lugar, onde não sabia exatamente o que estava me atravessando, mas onde definitivamente algo se comunicava comigo, em diferentes níveis de sentido e intensidade. E depois desse show de dualidades, incongruências e diferenças que surgem do encontro desses amigos – reunidos a fim de preparar uma sopa –, há também espaço para a celebração, quando somos levados pelos próprios atores para o palco, onde todos dançamos juntos como se, no fim, todas essas questões não precisassem ser levadas tão a sério já que, na vida, tudo tem mais sabor quando se termina em dança.

Por Thiago Almasy

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Com Nós


Euler Lopes Teles é ator, dramaturgo e diretor teatral do Grupo de Teatro A Tua Lona (SE), além de mestrando em estudos literários onde pesquisa o mal e literatura contemporânea. eulerlopess@gmail.com


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Que caminhos nos leva à Villa? Deliberar democraticamente é uma escolha justa e simples? Recortar papeizinhos, entregar aos envolvidos e deixar que votem entre opções, repassando toda a responsabilidade para uma inscrição, um nome escrito no quadradinho sem assinatura nenhum sinal de autoria; é isso o que fazemos diante de qualquer escolha que interesse a um grupo. Votamos o rumo de um país até a escolha de quem deve lavar a louça no fim do dia. Lançamos em uma alternativa as dobras e desdobras do nosso pensamento, uma pedra arrancada do chão do passado e lançado ao futuro incerto, simbolizada muitas vezes num x, face de toda a incógnita. O x em questão no espetáculo chileno Villa, direção e dramaturgia de Guillermo Calderón, como toda importante decisão, começa de forma simples, três mulheres reunidas numa mesa em frente a um representação em maquete da Villa de Grimaldi, local simbólico durante a ditadura chilena, e que no espetáculo deve ser transformado em um museu contemporâneo ou reconstruído. Ambas as opções comprometidas com a importância da memória e a necessidade de não permitir que o horror volte a acontecer. Os conflitos que emergem das discussões dessa comissão formada só por mulheres, ao mesmo tempo em que contextualiza historicamente as atrocidades do governo de Pinochet, revive os fantasmas de uma Villa, que deveria ser sempre sinônimo de tranquilidade e paz – esta palavra tão desgastada. A gradação proposta pelo espetáculo leva do riso ao sufocamento. Os depoimentos e o embate entre os pontos de vista de três Alejandras – espelhamentos de cada eu nosso de cada dia – nos faz querer ter uma pausa para ir ao banheiro, não por impaciência, mas, para recuperar o fôlego. O que o espetáculo nos proporciona são verdadeiras tempestades em vários copos d´água prestes a ocasionar um desmoronamento. Com uma atuação primorosa, direção objetiva e certeira, texto que faz com que você deseje ter uma cópia, Villa é daqueles espetáculos que se fazem necessários para discutir o Brasil. Sim, precisamos abrir os braços para a América Latina e as produções de países como Chile e Argentina, que tem como compromisso não esquecer o horror de governos totalitários, para não vivê-lo literalmente. É necessário lembrar, para que as mulheres não sejam depostas por corruptos, nem sejam violadas por cachorros. É necessário criar simulacros que sejam apenas maquetes, memórias tristes num bom espetáculo de teatro.

Por Euler Lopes Teles

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Com Villa


Dominique Pomente é professora de Francês e Tradutora. Atuou na troupe de teatro da Aliança Francesa e do Teatro Griô. Escritora do Collectif Zone Libre, companhia de dança contemporânea em Paris. Poesias, slam, novelas e escritos em português e francês, em Paris e Salvador. jorlandi2016@gmail.com


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Sobre TRILOGIA ANTROPOFÁGICA Perro Rabioso

Autor

Qualquer Um

Ato I PRESENÇA

Energia

pura

Alucinada assim que eu fiquei o tempo todo Durante quase quatro horas, olhando o outro, o corpo além, imóvel lá no carvão, na entrega de ser comido pelo meu olhar devorador O som e o movimento : pulsação, tremor esculpem os corpos Subi várias vezes no palco, tomada a cada vez por uma necessidade urgente : a energia transbordante me ditava o rumo

Como diz Antoine-Eric, presidente do Collectif Zone Libre : o palco é o único lugar que eu me sinto

livre

Matéria

Silêncio

Corpos

Como acolher essa energia potente, transbordante ?

Permanecer Enquanto transbordam minha boca, minha língua, meu tórax ? Ânsia Por Dominique Pomente

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Com Trilogia Antropofágica Ato 1 e Ato 2


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Sem falar que rói-me a vontade de cair de boca nesse chão apetitoso, provar um pedação desse carvão... O eu transformado em churrasco ! Isso que é secação... Canibal

Bom, a formulação talvez não foi clara : permanecer em pé, em silêncio... Isso excluiria todo tipo de mexer-se ? Com o olhar para os outros... O olhar é o primeiro que parte na direção do outro, cruzando ou não com ele Assim meu desejo cortante, se saciou... Partiu À medida que absorvia aquela energia gigantesca, meu eu aquietava A meditação tomou o lugar Pois antes, ele resolveu compor : existem sim, estados patológicos onde por um instante a consciência some, mas a pessoa continua fazendo gestos corriqueiros : ela não sabe mais quem ela é, porém consegue segurar uma xícara de café... Só não cedi à tentação Meter a mão

Rolar pelo chão

Porém fiquei feliz em saber – me perdoem os diretores – que uma menina nadou mesmo no carvão, e não foi barrada porque « ela fez o que todo mundo tinha vontade de fazer »

Gratidão Saí de lá limpa, trêmula, oca Com sentimento forte de gratidão pelo prazer imenso por dentro de um mar de paz

Digeri a mim mesma

Transformação

Consumida

Por Dominique Pomente

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Com Trilogia Antropofágica Ato 1 e Ato 2


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Ato II O SURGIR Os primórdios remetem à obra, a ópera : o pulo conjunto na madeira, os gritos lá e cá, acabam parindo o surgir de uma Orquestra Estou ouvindo vozes

Matéria

Vida

celestiais

O RESISTIR Corpo a corpo Corpo-recinto

Corpo-ferida Mãos na massa Massas massas Massas massas Massas Corpo sublime Corpo-altar

Corpo de graça

Estado de graça

COMER O OUTRO A nudez ou melhor, o nu aqui não é erótico : no máximo animal onde é esboçado, contemplo mais um nu orgânico : olho exorbitado, pulmões estourando, mão segurando, sexo batido... O intercâmbio dos órgãos cria O Comer os corpos Algo se torna previsível A nudez já não ofusca o olhar, porém o nu ofusca o corpo A digestão aconteceu Por Dominique Pomente

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Com Trilogia Antropofágica Ato 1 e Ato 2


Paulo Victor Dhom é um soteropolitano que vive por aí. Já fui pesquisador, atendente, triador e auxiliar de escritório. Escritor é a única coisa que sempre fui. Comunista, me debato com o cotidiano dia sim, dia sim. pvrmd27@gmail.com


. A orquestra da resistência subversiva O segundo ato da trilogia inicia-se com os artistas posicionados em distantes pontos do palco. Estão incomunicáveis e isolados, em suspensão sobre um amontoado de madeiras desleixadamente dispostas. A cena parece um campo minado, um palco de batalha onde o menor passo pode custar caro. Os atores encaram a plateia, como em busca de algo. Estariam mesmo? Aos poucos eles começam a se mover. Lenta e cuidadosamente, como o piso que os sustenta exige, eles buscam uns aos outros. São passos infantis, curtos, mas resistentes. Estão em busca do outro, de alguma força diferente naquele desolado ambiente de destruição. Quando os artistas finalmente se reúnem, o confronto tem seu início. A madeira que lhes serve como suporte começa, tal qual os integrantes do espetáculo, a ser subvertida em um instrumento percussivo que funciona como alavanca de transformação. Os personagens, crianças mudas e inseguras, iniciam um processo agressivo, quase que literalmente antropofágico entre si, utilizando os corpos uns dos outros como suporte para encenar um ritual. O forte som da batida dos artistas com a madeira (e do próprio pau consigo mesmo) acentua-se à medida em que eles se deslocam por todo o palco, em uma canção selvagem, uma batida de gritos e ranger. Os corpos misturam-se, se apropriam de si mesmos, se devoram em um só, e logo as roupas tornam-se um incômodo, naquela furiosa tentativa de devorar o outro. Os corpos caem e se chocam contra as irregulares toras que se erguem do chão, fazendo sangue e suor derramarem, num espetáculo viril, onde a música, o homem e o animal tornam-se tudo e nada. A intensidade da percussão da madeira e dos gritos acentua-se cada vez mais, até que as luzes se apagam. Encerra-se a resistência antropofágica e, quando a luz retorna, tudo o que resta é uma plateia que já não sabe até onde vai a sua vontade de pular e gritar sobre aquele chão acidentado de madeiras farpadas.

Por Paulo Victor Dhom

| Com Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir


Viola Luba é natural da Alemanha, formada em em dança pela UFBA. Integra os grupos de pesquisa: Corpo e Ancestralidade; o Núcleo Irepó; e O Jogo da Capoeira: da Roda pra Cena. Atua como dançarina, professora e coreógrafa na Fundação Cultural do Estado da Bahia, no coletivo de dança Breaking, Gang Gangrena, no Centro Cultural do Ensaio entre outros. violaluisebarner@ gmail.com


. {palavras-chaves: Autenticidade, coerência, comunicação} Trilogia Antropofágica, Ato 2: Resistir por Perro Rabioso – URU apresentado dentro da programação do FIAC na Escola de Dança da UFBA, Teatro Experimental, apresenta ao público um cenário promissor: paredes altas e escuras rodeiam tábuas de madeira entrelaçadas que elevam uma espécie de palco abstrato no qual os intérpretes se encontram em pé, tipicamente vestidos de roupa cotidiana, já suados e buscando encontrar-se no olhar sério com o público. Banhada em luz amarelada, esta primeira imagem do espetáculo tem um efeito aconchegante e impressionante ao mesmo tempo. É indicado sentar-se nas beiras da instalação e como espectador experiente em arte contemporânea e fisicamente disposto, arrisca-se aceitar o convite e procurar uma constelação de tábuas que sirva para sentar por 50 minutos. A situação se prorroga entre olhares e acomodação do público e só lentamente instala um silêncio entre os espectadores. Os intérpretes aumentam suas movimentações aos poucos, aparentam testar a firmeza das tábuas, e então iniciam de repente um depois do outro deslocamentos para a esquina do fundo. O primeiro a chegar introduz o ato do pulo que se mantém como ação principal durante o espetáculo todo. Inicialmente os pulos parecem ter um intuito rítmico e só mais tarde aparece uma trilha sonora, acompanhando de longe com sons metálicos que lembram uma espécie de mantra. Como já assistimos em outras artes contemporâneas, a manutenção da mesma ação propõe ao espectador um efeito sinestésico e uma perspectiva ampla dos corpos em movimento: a respiração ofegante acompanha o balançar de cabeça e cabelo, as faces entram gradativamente em expressões de loucura com olhos virados e bocas abertas; usam-se pontos de apoio nos outros e nas tábuas, olhares inquietos para baixo antes de arriscar o próximo passo; peças de roupas mexendo e caindo. Logo transparece insegurança na movimentação dos intérpretes no seu palco abstrato; ocorrem quedas até sangrentas – interrupções repentinas da desejada “energia vibracional não submissa à razão” (da sinopse, p.77 programação fiac 2016) para se recolocar na ação. O grupo se desloca pulando em diagonal para a frente.

Por Viola Luba

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Com Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir


. Primeiras inquietações da parte da plateia que luta contra a vontade de desistir da obra, entrando em reflexão sobre o que está assistindo, quais os objetivos dos artistas com esta obra, quais temáticas identifica ou o que esperam comunicar. Enquanto isso a peça parece chegar ao seu clímax: primeiro porque ali os corpos estão em 100% de atividade, tomados pelo exercício da exaustão e segundo porque o espectador ainda espera a mudança abrupta dos acontecimentos em cena. E então, de forma agressiva e às vezes bastante dificultada, os intérpretes tiram todo figurino. Realizar que o pulo e o tirar roupa serão as ações em foco, faz com que a sensação profunda de tédio que veio se formando se torne sensação principal. Os atos em pulo vão perdendo de energia e se voltam principalmente para poses pornográficas; os corpos, na tentativa desesperada de manutenção da potência, não causam mais nada. Estão ali, pulando, nus, suados e se ralando uns nos outros fazendo caras e bocas mas não causam nada. Não me identifico nem identifico seu “caminho(...) para existir contra a hegemonia” muito menos o “desejo de estar com outro” (ambas da sinopse, p.77 programação fiac 2016). Os intérpretes estão muito focados em mostrar sua face em expressão pra plateia, raras vezes se olham, chegam a se atropelar. O senso de grupo se mostra muito frágil, a disposição à exposição é hipócrita: tanto a nudez como resistência contra dogmas religiosos, culturas conservadoras e sexistas entre outros, quanto ações corporais alheias na performance contemporânea, contradizendo a execução de técnicas sem contexto dramatúrgico, já foram vividas, colocadas em arte e discutidas inúmeras vezes há tempos. Não deixam de ser atuais nem de ter imensa importância artística e sócio-política, porém exigem uma autenticidade plena e pesquisa física profunda pois o público já estudou seu olhar e enxerga o abismo entre a elaboração da sinopse e o potencial da obra. Basta aguardar o fim agora, os corpos pelados que chegaram a poucos centímetros da plateia, alguns com o olhar fixo outros andando olhando cabeça baixa para o piso de tábuas, estão voltando pulando para seu ponto inicial e aí a luz vai apagando.

Por Viola Luba

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Com Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir


. Nada acontece mas não há tensão no ar, já que assistiram 50 minutos podem esperar os intérpretes enxaguarem o rosto e se depararem com o retorno dos espectadores. A luz reacende, nada dos intérpretes e de repente tem gente no fundo levantando e saindo. Um aplauso fraco, “covardes” murmura uma mulher na primeira fila. Uma falha na comunicação, sinto-me desconsiderada como espectadora, quase desrespeitada. Vejo e escuto falas raivosas, mas não é isso que sinto; de fato ainda me esforço a acompanhar questionamentos manjados do tipo “é arte ou posso jogar fora?”, “a preguiça faz performance” e “bom, talvez seja isso que queriam provocar” mas afinal decido dar importância a minha perspectiva "partindo do pressuposto de que a adequação dos sistemas interpretativos ao seu ambiente é imperativo para sua eficiência(...)” (BRITTO, 1993, p. 10), para responder se “somos capazes de criar relações e não apenas invocar espectadores como forma de alimentarmos a nós mesmos(...)” (de https://precisasepublico.com.br/): para criar uma relação precisa criar um elo, aproximar realidades diversas, não atos superficiais nem introspectivos, e para invocar espectadores precisa de espaço, um leque aberto, não exigir da burguesia na plateia defender o intelecto em atos mal identificáveis como arte. A arte é a priori um meio de expressão, não ou não apenas sua tese. Querer mais do que técnicas em arte não é não querer técnicas, afinal a “técnica s.f. (do gr. Techné, arte, artifício) 1. Conjunto de procedimentos e métodos de uma arte, ofício ou atividade industrial. 2. Pratica, experiência, conhecimento em determinado domínio.” (Minidicionário LAROUSSE) nasce no fazer, se diz de um corpo consciente; e o ato de pular e se desvestir numa constelação de tábuas também necessita passar por um laboratório físico até que domine esta ação, encontre seu sentido e possa discutir sobre seus efeitos.

Por Viola Luba

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Com Trilogia Antropofágica Ato 2: Resistir


Filipe Moreira, 24 primaveras librianas de muitos rabiscos, vĂ­cios, momentos e pessoas. Perpassando o Jornalismo, mas foi no palco que experimentei o elixir da alma! moreirafilipe.10@gmail.com


. “Nós” te dá caipirinhas, sopa e muitos nós “Nós” é um pronome pessoal reto que substitui conjuntos de substantivos que indicam uma pluralidade de pessoas. Passamos a ser “nós”, quando deixamos de ser “eu” e uma simples olhada no cotidiano, mostra que somos muito mais “nós” do que “eu”. O Grupo Galpão de teatro te dá uma caipirinha, uma sopinha, desfaz o seu “eu” e te enrola em nós com o espetáculo “Nós”. Um grupo de amigos brancos e artistas se junta e durante o tempo de preparo dos comes e bebes, as características da inércia cotidiana que acomete a maioria dos grupos aparece. Uns tem mais preguiça de trabalho, outros são mais dispostos mas, no final, todo mundo coloca a mão na massa, seja para cortar a batata doce ou para apontar alguma situação vista ou vivida, mas que ninguém fará nada para mudar. Seja preto, mulher, puta, gay ou boliviano, a sociedade tem um espectro de opressões que são constantemente discutidas nos almoços com a galera, mas, de novo, ninguém fará nada para mudar. “Nós” te faz questionar essa paralisação diante de ações que, feitas em grupo, são o que dão forma para as mudanças sociais. Diálogos e cantorias aceleradas, repetidas em uma crescente de frenesi para te fazer internalizar quantas vezes você já pensou e discutiu sobre as questões sociais, mas... nada fez para mudar. Depois que todo mundo toma seu copo de caipirinha, a cabeça fica mais agitada e as sensações afloradas dão lugar às reflexões que nós fazemos sobre o “eu”. E aí, vira aquela confusão de ideias, análises e tentativas de tocar na complexidade do ser humano que toda roda de amigos faz muito bem e sempre termina em lama, como Mariana. Ah... falando em Mariana, temos lama, mortes, crianças, desabrigados, desastres naturais, (falta de) políticas públicas e assistência social, muita conversa, muita análise e nós fazemos o que para mudar? Nada! A sopa ficou pronta! Ta todo mundo servido, né? Essa é a hora que todos estão entrosados e já mostrando aquela face que só dá para esconder enquanto a convivência for curta e efêmera. Então coloca a música, vamos dançar e terminar em festa, porque eu não posso fazer nada para mudar o mundo e, segunda-feira, ainda tenho que trabalhar.

Por Filipe Moreira

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Com Nós


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