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Domingo de Ramos - Salmo 118.1-2,19-29
from Proclamar Libertação 41 - 2016-2017
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
DOMINGO DE RAMOS
09 ABR 2017
PRÉDICA: SALMO 118.1-2,19-29
MATEUS 21.1-11 FILIPENSES 2.5-11
Humberto M. Gonçalves
1 Introdução Liturgia: misericórdia e bem comum
A tradição litúrgica do Domingo de Ramos apresenta-nos, no relato de Mateus (21.1-11), uma autêntica liturgia, isto é, “trabalho do povo”. Mas o que motiva o povo a fazer uma liturgia? Uma resposta lógica seria: “o bem comum”. Mas há outro tipo de trabalho do povo, chamado “trabalho forçado”, que hoje também poderíamos chamar de “trabalho escravo”. Esse não é para o bem comum, mas para benefi ciar algumas pessoas, geralmente com grande poder, que obrigam, seja por pressão econômica ou política, outras pessoas a trabalhar. O relato bíblico faz questão de mostrar que se tratou de um trabalho alegre e espontâneo, certamente porque as pessoas reconheceram nesse galileu montado em um jumento alguém capaz de promover o bem comum. A igreja, olhando na perspectiva da cruz-ressurreição, viu nessa tradição a porta de entrada no processo da paixão de Cristo (daí o nome de Domingo da Paixão). As liturgias recomendavam a leitura de todos os acontecimentos, desde a entrada em Jerusalém até a paixão, manipulada pelos interesses de chefes religiosos. A leitura da Carta aos Filipenses é um dos primeiros hinos compostos a esse respeito, o hino do esvaziamento (kenosis), onde Jesus, sendo Deus e Rei, se faz “nada” por amor a todos e todas (Fp 2.5-11). Assim, está montada a tela em que podemos desenhar a poesia do salmo de ação de graças que é o texto de nossa pregação (Sl 118.1-2,19-129). Sempre lembrando que salmo é poesia, e a poesia, como disse Mario Quintana, é um “mistério evidente”. Que mistério evidente pode ser desenhado sobre a tradição do Domingo de Ramos, ou Domingo da Paixão, a partir do Salmo 118?
2 Exegese
O Salmo 118 é também um hino litúrgico, feito para ser cantado em diálogo entre seu intérprete e um coro. Segundo Werner Schmidt (1994, p. 289), esse tipo de hino caracteriza-se pelo uso da partícula ki em hebraico, cujo sentido é “pois”. Assim, a partícula indica razão do louvor e/ou da ação de graças proposta pelo salmo para o povo que vivencia a liturgia. Essa partícula aparece logo no primeiro versículo (traduzido livremente do hebraico): “Aclamai a YHVH, pois é bom; pois para sempre é sua misericórdia!”. Há dois “pois” que indicam que YHVH (SENHOR, Javé) promove o bem comum através da sua bondade (em hebraico tov – também indica dar felicidade) e através da sua misericórdia (em hebraico hesed – que pode
ser traduzido como solidariedade, lealdade, amizade, comprometimento, fi delidade, bondade, favor, benevolência e piedade). Quando Deus revela sua misericórdia, desperta o louvor litúrgico do seu povo. O povo busca o que Deus traz, e Deus traz o que as pessoas precisam. O nexo entre ambas é a partícula ki. Os primeiros três versículos do salmo – dos quais a seleção do lecionário resgata os primeiros dois – começam de forma muito parecida. O versículo 2 apresenta um imperativo, “diga!”, referindo-se à casa de Israel, e repete, como no v. 1, pois para sempre é sua misericórdia!. Apesar de algumas versões manterem “diga” nos v. 3 e 4, há uma mudança perceptível no hebraico: no versículo 3 usa-se o plural “digam!”. Esse plural aponta primeiro à casa de Arão e depois, mas genericamente, a “quem teme a YHVH”. Isso é o que chamamos “personalidade corporativa”, isto é, a “casa de Israel” como sinal da unidade de todo o povo de Deus. Já a casa de Arão é uma das partes que formam essa casa comum. Então podemos dizer que todo o povo é motivado para a liturgia da misericórdia de YHVH, e a casa de Arão é chamada a animar todas as pessoas que temem a Deus para participar dessa liturgia. A partícula ki desaparece dos outros versículos, aparecendo novamente no versículo 17. Assim podemos deduzir que, enquanto entre os versículos 4 e 16 desenvolve-se a motivação inicial e principal, que é a misericórdia, no versículo 17 essa misericórdia é complementada com outro importante aspecto motivador da liturgia. Diz o versículo 17: “Não morrerei, pois, viverei para proclamar as glórias de YHVH”. Vencer a morte, isto é, viver, é um excelente motivo, e só acontece pela manifestação da misericórdia de YHVH. Os versículos 18 a 20 desenvolvem essa motivação, vinculando a vitória sobre a morte à implantação da justiça (mencionada nos versículos 19 e 20). A misericórdia de YHVH é celebrada com a vida, e a vida é vitoriosa sobre a morte pela prática da justiça divina. Um novo ki apresenta-se no versículo 21, “pois tu respondes e vens para me salvar”. A misericórdia – isto é, solidariedade, lealdade, amizade, comprometimento, fi delidade, bondade, favor, benevolência e piedade – possibilita a vitória sobre a morte, promove a prática da justiça e revela a proximidade entre Deus e seu povo. Deus Próximo – que na profecia de Isaías foi chamado “Emanuel” (Is 7.14; 8.8) – torna-se a base, a “pedra angular”, de uma nova construção litúrgica, isto é, como trabalho do povo para o bem comum (v. 22). Nova, porque antes foi rejeitada por outros construtores. Assim toda a casa de adoração se torna bela, pois celebra e constrói com Deus o bem comum. No fi nal, uma doxologia ou louvor. Os versículos 25 e 26 seriam aqueles citados em Mateus 21.9. Ali estaria a origem do termo aramaico “Hosana”, usado pelo povo na liturgia dos ramos. Ele se derivaria de hoshiy’ah – YHVH – aná – literalmente “seja o nome de YHVH salvo”. É um louvor que exalta o momento, daí o uso da interjeição ‘aná, que pode ser traduzida como ah! ou por favor. Os versículos 27 a 29, fi nalmente, chamam para a festa ou celebração, em hebraico hag. Realmente, a liturgia da misericórdia, quando as pessoas encontram em Deus o caminho da construção da misericórdia, é uma verdadeira festa. (v. 27). Depois mais um louvor (v. 28) e a repetição da antífona do v. 1 no versículo 29: “Aclamai a YHVH, pois é bom; pois para sempre é sua misericórdia!” Vamos celebrar!
3 Mensagem
O povo que estava na porta de Jerusalém no tempo da Páscoa – época em que afl uíam para lá muitos peregrinos e peregrinas – deveria ser, em sua maioria, gente pobre. As pessoas mais ricas não fi cavam na porta, apenas passavam por ela. Eram pessoas a caminho; e caminho é igual a esperança. Quem caminha é porque espera chegar. Quando Jesus aparece montado em um jumentinho, atrai para si essas esperanças e provoca uma liturgia com ramos e roupas, formando um tapete de esperança e alegre louvor de quem recebe alguém que traz boas-novas. Jesus é identifi cado com um rei com jeito de pobre, que no tempo do domínio helenista fora anunciado na profecia de Zacarias (Zc 9.9). Um rei sem tropas cercando-o, um profeta que refl ete a bondade, a misericórdia, a justiça, abraçando e acolhendo as esperanças do povo. Essa gente da porta da cidade fez a liturgia de ramos sair de dentro dos seus sonhos, mesmo que ainda não compreendessem muito bem que tipo de rei era aquele. Ainda não sabiam o que seria a dor da cruz. Como Deus em Cristo mostraria seu amor incondicional. Ainda não sabiam que muitas pessoas seguidoras de Cristo crucifi cado/ressuscitado também dariam suas vidas pelo evangelho. Essas pessoas – como propõe o Salmo 118 – apenas deixaram a liturgia acontecer, celebrando a misericórdia (que se completa na cruz de Cristo), lembrada neste Domingo da Paixão. A porta de Jerusalém é, nesse momento, a porta da justiça (não apenas para Jesus, mas para todas as pessoas injustiçadas da história). A porta de Jerusalém evidencia o Messias pobre como expressão da proximidade entre Deus e seu povo e o começo de uma nova construção sobre uma nova pedra angular, antes rejeitada, como também lembraria o apóstolo Paulo (Ef 2.20) e mais adiante na Carta de Pedro (1Pe 2.6-7).
4 Imagens para a prédica
A imagem principal é a liturgia como resposta à misericórdia de Deus no seu sentido mais amplo, como vimos aqui na exegese e mensagem. Mas o foco deve estar, mais do que no cerimonial – que pode e deve variar –, nas pessoas que fazem a liturgia ser liturgia. Isto é, a forma participativa expressada no Domingo de Ramos em que ninguém assiste passivamente, mas todas as pessoas fazem parte da ação que celebra o bem comum e a presença de Deus no meio do seu povo. A própria procissão de Ramos, de preferência iniciando fora da comunidade, e os ramos são as imagens principais desse dia. No entanto, nem a procissão nem os ramos devem estar no foco. O foco é a misericórdia de Deus expressa na cruz. O foco está em Cristo provocando isso em nós. A cruz, como muitas vezes já foi dito, tem duas dimensões: a vertical (que aponta para o alto, para as utopias divino-humanas e para a transcendência) e a horizontal (que aponta para as relações entre as pessoas e delas com toda a criação). Portanto é importante que, ao usar ramos e procissões, encontremos um momento para intercambiar ramos e/ou saudar-nos com a paz de Cristo.
5 Subsídios litúrgicos
Se quisermos olhar para o Domingo de Ramos pela ótica da misericórdia e do bem comum, podemos pensar em uma confi ssão. Mas para que não seja uma confi ssão igual às outras e se encaixe dentro da liturgia de Ramos e todo o seu simbolismo, propomos que seja feita durante a própria procissão ou que a procissão seja durante a confi ssão e absolvição de pecados, usando o Kyrie Eleison como fi o condutor.
1ª parada da procissão (Com toda a comunidade dentro do templo segurando ramos/palmas, a cruz entra até a primeira fi leira de bancos ou cadeiras.)
Ofi ciante: Deus, Pai/Mãe de toda a humanidade, quantas vezes nos mostraste teu amor na criação, tua misericórdia na chamada de Israel para ser teu povo, tua vontade libertadora na palavra que disseste por meio de vozes proféticas e especialmente tua presença solidária no verbo feito carne, teu fi lho Jesus. Comunidade: No entanto, desrespeitamos, destruímos e abusamos da tua criação, esquecemos os valores de paz, justiça e solidariedade e desprezamos o sacrifício de teu fi lho, nosso Senhor Jesus Cristo, em favor de todos e todas nós. Ofi ciante: Por isso dizemos (cantamos)... Senhor, tem piedade de nós; Cristo, tem piedade de nós; Senhor, tem piedade de nós.
2ª parada da procissão (A procissão para no meio da nave do templo ou na metade da distância entre a primeira parada e a mesa eucarística.)
Ofi ciante: Senhor Jesus Cristo, tu entraste em Jerusalém, enfrentando a morte, a humilhação e a traição em um ato sublime de amor, doação e vida. Comunidade: Mas nós não queremos compartilhar nada, fechamo-nos em nossas vidas, isolamo-nos dentro de nossas famílias e afazeres e deixamos de ser pessoas solidárias. Ofi ciante: Por isso dizemos (cantamos)... Senhor, tem piedade de nós; Cristo, tem piedade de nós; Senhor, tem piedade de nós.
3ª parada da procissão (A procissão para na mesa eucarística.)
Ofi ciante: Santo Espírito de Deus, procedente do Pai e do Filho, que é presença divina nos templos de nossos corpos, que nos vivifi cas, fortaleces e nos ensinas o caminho da misericórdia. Comunidade: No entanto, não deixamos que tu nos guies, fechamos os ouvidos para tua voz falando em nosso interior e para o clamor de irmãs e irmãos ao redor de nós; não praticamos a misericórdia que ensinas, mas seguimos nossos pensamentos egoístas.
Ofi ciante: Por isso dizemos (cantamos)... Senhor, tem piedade de nós; Cristo, tem piedade de nós; Senhor, tem piedade de nós.
Bibliografi a
SCHMIDT, Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994.