Proclamar Liberdade em Tempos Obscuros. Prédicas e textos do Pastor Breno Schumann (1939-1973)

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PROCLAMAR LIBERDADE EM TEMPOS OBSCUROS

Prédicas e textos do PASTOR BRENO ARNO SCHUMANN

(1939-1973)

ROLF SCHÜNEMANN (ORG.)

SÍNODO SUDESTE – IECLB

Rua Barão de Itapetininga, 255 – Cj. 510 – República

01042-001 – São Paulo - SP

DIGITALIZAÇÃO, REVISÃO E ORGANIZAÇÃO

Rolf Schünemann

DIAGRAMAÇÃO

Tiago Galvão

tiagogalvão@me.com

CAPA

Keite Soares

keites@gmail.com

NOTA SOBRE A CAPA

Breno Schumann recebera de um preso político uma cruz de Cristo feita à base de um cipó. Ele se identificava com esta cruz porque ela traduzia a imagem que ele mesmo tinha de Cristo – um Cristo magrinho, miudinho, mas forte como um cipó. Segundo Tereza Leite, que herdou esta imagem, Breno Schumann era uma fortaleza de cipó, resistente que nem cipó. Também ele era miudinho e magrinho, mas dotado de uma coragem, de uma capacidade de indignação, de revolta positiva contra tudo o que estava errado, que fosse injustiça; dotado de esperança, uma vocação para ser alegre e cheio de humor.

PROCLAMAR LIBERDADE EM TEMPOS OBSCUROS

Prédicas e textos do Pastor Breno Arno Schumann (1939-1973)

ORGANIZAÇÃO

Rolf Schünemann

2023
SUMÁRIO UMA PALAVRA DO SÍNODO SUDESTE 6 APRESENTAÇÃO 7 INTRODUÇÃO 11 DADOS BIOGRÁFICOS 12 DIA DO SENHOR 16 PRÉDICAS Efésios 2.8 - Dia da Reforma - 31/10/1970 18 João 16.22 - Alegria - 01/11/1970 22 João 13.1-17 - Fim de Ano - Servir - 31/12/1970 26 Êxodo 32.15-20,30-34 - Verdade - 28/03/1971 30 João 17.1-8 - Domingo de Ramos - 04/04/1971 34 Lucas 10.17-20 - Jubilate - 02/05/1971 39 Isaías 66.13 - Cantate - Dia das Mães - 09/05/1971 43 Hebreus 11.1 - Culto ecumênico - 16/05/1971 48 Gênesis 11.1-9 - Exaudi - 23/05/1971 53 Mateus 10.7-15 - Discípulos - 18/07/1971 57 Mateus 13.44-46 - 9º. Domingo após Trindade - 08/08/1971 62 Mateus 22.15-22 - Dia da Reforma - 31/10/1971 66 Êxodo 33.11 - Dia da Bíblia - 12/12/1971 71 Salmo 73.28 - Velho e Novo - 31/12/1971 75 João 4.31-38 - 4º. Domingo após Epifania - 30/01/1972 80 Gênesis 3.1-13 - A tentação - 20/02/1972 84 Marcos 9.14-29 - Invocavit - 27/02/1972 89 Isaías 42.1-8 - Reminiscere - 05/03/1972 92 Lucas 9.51-56 - Oculi - 12/03/1972 96 Hebreus 11.35b-40 - Testemunhas - 26/03/1972 99 Lucas 23.33,39-48 - Paixão - 31/03/1972 104 2 Timóteo 2.8 - Ressurreição - 02/04/1972 110 Colossenses 3.1-4 - Ascensão - 07/05/1972 114 João 15.26-16.4a - Dia das Mães - 14/05/1972 119 Semana da Unidade Cristã - 1972 123
Atos 2.37-39 - Pentecostes - 21/05/1972 126 1 João 4.18 - 1º. Domingo após Trindade 129 Romanos 14.7-13 - Pastoral - 26/06/1972 134 Mateus 9.10-13 - Ceia do Senhor - 09/07/1972 138 Lucas 16.1-9 - 9º. Domingo após Trindade 142 Isaías 29.18-21 - O tempo - 27/08/1972 146 Salmo 127.1 - Pátria - 03/09/1972 149 Salmo 75 - Celebração e culto - 24/09/1972 153 Efésios 4.21-32 - 19º. Domingo após Trindade - 15/10/1972 158 Marcos 10.13-16 - 21º. Domingo após Trindade - 29/10/1972 162 Salmo 4.8 - Dia da Reforma - 31/10/1972 164 Apocalipse 5.5-13 - 12/11/1972 169 Zacarias 9.9-10 - Advento - 10/12/1972 174 Lucas 12.48b - A misericórdia - 11/03/1973 178 Lucas 16.19-31 - A parábola do rico e do Lázaro 182 MEDITAÇÕES 1 Samuel 2.1-10 - 17/07/1971 190 Lucas 13.6-9 - Fim de ano - 31/12/1971 192 1 Pedro 5.1-5 - 12/03/1972 194 ARTIGOS Um quilo de cultura 197 Liberdade Cristã 199 Existência Cristã na Realidade Política 201 É possível ser cristão fora da Igreja? 216 Um credo para nossa época: Existe isso? 219

UMA PALAVRA DO SÍNODO SUDESTE

“Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas-novas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião: o teu Deus reina!” (Isaías 52.7)

Essa é a missão da instituição Igreja. Também a do Sínodo Sudeste. Ela é cumprida com fidelidade e amor por muitos colegas de ministério. Todos os domingos o Evangelho é proclamado e mensagens de esperança se multiplicam pelos púlpitos das comunidades. De geração em geração anunciamos a paz.

Em 2024 a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) completa 200 anos de presença luterana no Brasil. Esta história tem um dos seus pés em nosso Sínodo, na comunidade de Nova Friburgo/ RJ, a primeira a ser constituída no Brasil. Ao seu redor muitas outras surgiram. Juiz de Fora/MG, terra de pastoreio do Pastor Breno Arno Schumann, é uma delas. Em quase duzentos anos de história, quem pode conhecer as muitas pregações já feitas nos púlpitos das comunidades? Quem conhece a fé e a esperança de pastores e pastoras que as proclamaram? Quem sabe dizer da forma como acalmaram corações e alimentaram almas?

De pregação em pregação e de geração pastoral em geração pastoral vidas e comunidades foram edificadas. Por estas mensagens e pessoas Deus se faz ser humano e presente entre nós.

Breno Arno Schumann foi um destes pastores que, a seu tempo, dedicaram a vida ao Evangelho e cuidado às pessoas em nossas comunidades. Rendemos graças a Deus por este seu testemunho e legado.

São Paulo, quaresma de 2023.

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APRESENTAÇÃO

Dezembro de 1964. Igreja do Centro da Comunidade Evangélica Luterana do Rio de Janeiro. Há apenas um mês a comunidade recebera este nome. Os sons dos tubos do órgão Walcker preenchem o ambiente com a melodia de “Cantai, cristãos, a Deus louvai...”. A celebração natalina deixa a Igreja lotada. No primeiro banco um homem jovem, franzino, vestido de talar, acompanha o canto da comunidade.

“Trocou a glória por desdém, tornou-se nosso irmão...”

O povo evangélico reunido canta a plenos pulmões “O Cristo oculta o seu poder...”. O homem franzino se levanta, dirige-se até uma porta que fica ao lado do altar e desaparece.

“Jesus é servo, eu sou senhor; que troca singular...”

Uma porta se abre no alto da parede. E eis que assoma ao púlpito, encimado ao centro da Igreja, o pastor Breno Schumann para proferir a prédica. A simbologia do ambiente celebrativo reformado deixava o teólogo, discípulo de Karl Barth, totalmente à vontade. Uma parte da sua fala chama atenção:

“No Natal lembramos que Deus assume a condição humana. Deus vem a nós em uma criança. Nesta criança, envolta em fraldas com xixi e cocô, que Deus se revela e demonstra o seu amor pela humanidade.”

Dois senhores de orientação pietista ficam visivelmente irritados. O sangue sobe, seus rostos ficam vermelhados, cochicham entre si e estão decididos a abandonar o culto. São contidos em seu gesto pelo Pastor Wilhelm Kräutlein, sentado no banco detrás. Ele os segura pela gola da camisa: “Calma aí! Nada de escândalo!”

Conto esta pequena história para dizer que foi por meio de relatos desse gênero que eu me aproximei do pastor Breno Schumann. Eu não o conheci pessoalmente. Nos meus primeiros anos de ministé-

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rio no Rio de Janeiro as pessoas achavam que nós seríamos parentes por causa da semelhança dos sobrenomes.

No trânsito com pessoas, que conviveram com ele de forma muito próxima, eu fui descobrindo sua personalidade, sua grandeza e sua importância na vida eclesiástica, ecumênica e pública. Lembro depoimentos de seus colegas de formação teológica (Nelson Kirst, Harald Malschitzky, Walter Altmann). Lembro as conversas com pessoas da caminhada ecumênica no Rio de Janeiro (Carlos Cunha, Waldo César, Jether Ramalho, Domício Pereira de Mattos, Zwinglio Dias). As falas emocionadas da celebração em memória dos 25 anos de sua morte, realizada em Juiz de Fora/MG em 1998. O diálogo com Itamar Franco na Embaixada em Roma, em 2005, durante a recepção à delegação brasileira que participara da cerimônia de sepultamento do Papa João Paulo II.

O que faz com que uma pessoa lembrar, passados 32 anos, do nome Breno e falar vivamente sobre a sua atuação? Seria a memória pródiga de políticos? O que leva pessoas do meio ecumênico a discorrer de forma tão elogiosa, carregada de adjetivos, sobre uma pessoa que morre precocemente aos 33 anos de idade? Seria o fato de a tragédia conferir uma notoriedade, uma expressão distinta para a pessoa falecida? Rubem Alves chamava atenção para isso quando se referia a duas personalidades políticas, acometidas por doenças incuráveis (Tancredo Neves e Teotônio Vilela) e os irmãos Betinho, Henfil e Chico Mário, vítimas do HIV.

Creio que o interesse diferenciado por Breno Schumann não pode ser medido somente pelo incidente trágico. Há de se olhar para a densidade da vida pregressa. Só assim podemos entender a sua grandeza.

As bases de uma formação humanista no Instituto Pré-Teológico, aliadas a uma sólida formação teológica na Faculdade de Teologia em São

Leopoldo/RS, o envolvimento entusiasmado com o movimento da juventude e suas incursões em cursos no exterior possibilitaram a Breno Schumann um envolvimento apaixonado na vida da Igreja na perspectiva de um compromisso com a transformação da sociedade.

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Seu pastorado começa na cidade do Rio de Janeiro em novembro de 1964 e sua ordenação ocorre em outubro de 1966 em Porto Alegre/RS. Neste contexto pode afirmar o seu, sempre presente, compromisso com a brasilidade no âmbito da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) .

Acompanhou intensa e vivamente a efervescência política dos anos sessenta do século passado. Viveu de forma muito próxima as mobilizações políticas anteriores e posteriores ao golpe militar de 1964. No Rio de Janeiro assistiu ao desmantelamento do Setor Igreja e Sociedade da Confederação Evangélica do Brasil (CEB) por parte de setores eclesiásticos que apoiavam o golpe militar. Associou-se ao grupo de pessoas, que impossibilitadas de vivenciar a sua fé em suas igrejas por causa do seu engajamento na sociedade, criaram espaços alternativos de resistência e de apoio mútuo em meio às trevas imperantes.

Licenciou-se do pastorado e circulou em diversas áreas, como assessor teológico, escritor e tradutor. Sua atuação paraeclesiástica rendeu uma série de embaraços dentro e fora da igreja, mas eles serviram para lapidar ainda mais seu compromisso com a causa do ecumenismo.

Em seu regresso ao pastorado em abril de 1970, Breno Schumann conjuga vida ministerial e vida acadêmica na cidade de Juiz de Fora/ MG. No ministério pastoral integra uma geração de pastores formados no Brasil e, particularmente em Juiz de Fora, sucede pastores de origem alemã e norte-americana. Ficava sob sua responsabilidade a comunidade central e mais três pontos de pregação.

Em uma cidade de 240.000 habitantes, marcada pelo tradicional catolicismo mineiro, Breno conseguiu dar visibilidade a pequena comunidade luterana por meio de seu envolvimento na vida ecumênica local e por meio do magistério em um colégio local e na Universidade Federal de Juiz de Fora.

Viva está a memória que envolve o seu testemunho. Diversas pessoas receberam seu nome como homenagem póstuma. Suas prédi-

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cas, meditações e textos diversos foram objeto de publicações.

Em um primeiro momento, a sua transcrição 1973 e 1974 deu origem a edições impressas por parte da Secretaria de Cultura de Juiz de Fora/MG, do Centro Ecumênico de Informação no Rio de Janeiro e da Editora Sinodal de São Leopoldo/RS.

Em 2004, como lembrança pelos 30 anos da morte de Breno Schumann, foi lançada uma publicação com textos e depoimentos, denominada Irreverência, compromisso e liberdade, graças a uma parceria entre Escola Superior de Teologia (São Leopoldo/RS) e Koinonia Presença Ecumênica de Serviço (Rio de Janeiro/RJ).

Há 10 anos, em memória pelos 40 anos de sua morte, as edições impressas de 1973 e 1974 receberam uma publicação digital no Portal Luteranos da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Todas estas páginas foram reunidas na presente edição sob os auspícios do Sínodo Sudeste, âmbito maior da atuação ministerial de Breno Schumann.

Breno Schumann disse em uma meditação, dirigida para os presbíteros, em março de 1972:

“Nesses 10 anos, nossa comunidade conheceu e participou do trabalho de 4 pastores, cada um com seu estilo, seus métodos. No entanto, mais importante que o pregador é a pregação. O anúncio do Evangelho é que é a marca permanente da Igreja - não os homens que dirigem a mensagem aos ouvintes.”

Sim, a mensagem evangélica permanece e impacta corações e mentes. Ao publicarmos as prédicas, meditações e alguns textos, 50 anos após a sua morte, nós o fazemos na confiança de que, pela ação do Espírito Santo de Deus, o anúncio da sua Palavra não voltará vazia (Isaías 55.11). O fazemos igualmente como um gesto de gratidão a Deus por seu testemunho corajoso em tempos difíceis.

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Pastor Rolf Schünemann

INTRODUÇÃO

A coletânea de prédicas, meditações e textos aqui reunidos foram objeto de publicações anteriores em formato impresso e em formato digital. A presente edição, de caráter unicamente digital, reúne as publicações efetuadas em 2013 no Portal Luteranos.

A presente coletânea uma ordem cronológica. As prédicas e meditações também podem ser buscadas por texto bíblico a partir de da ordem do Antigo Testamento e do Novo Testamento.

A seção de prédicas abre com uma prédica do dia 31 de outubro de 1970, Dia da Reforma. Em seu final, a seção apresenta a última prédica de Breno Schumann no dia 11 de março de 1973. A seção de meditações, mais diminuta, traz reflexões feitas em situações diversas.

Inéditos na seção de textos estão dois artigos de grande atualidade, não presentes nas publicações anteriores. Agregamos o artigo Um quilo de cultura. Bastante polêmico na época, esse texto tornara-se um libelo contra tendências germanófilas, emergentes no início da década de sessenta. Sua disseminação poderia facilmente reavivar a ideologia nacional-socialista. E reproduzimos também Existência Cristã na Realidade Política por aclarar a relação de fé e política na perspectiva evangélica luterana.

Cremos ser perfeitamente possível reunir outros textos, dispersos em diversas revistas e livros. Essa tarefa ficará para uma outra oportunidade. Por ora, partilhamos com as novas gerações, o que de certa forma já é conhecido por muitas pessoas. Trata-se de um legado e uma contribuição importante para as pessoas que procuram aliar fé e vida, fé e ação em seu testemunho cotidiano.

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DADOS BIOGRÁFICOS

BRENO ARNO SCHUMANN

Natural do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, outubro, 1939).

Casado (há 6 anos) com Mariane (de 29 anos).

Foi pastor no Rio durante os anos de 64 a 66 e em Juiz de Fora de 70 a 72.

Curso superior de Teologia em São Leopoldo, na Faculdade da Igreja Luterana.

Cursos de especialização (pós-graduação) em Bossey (Genebra) no Conselho Mundial de Igrejas e em Göttingen, Alemanha.

Colaborou com a Enciclopédia Delta Larousse. Também com a Editora Vozes.

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Tradutor de várias obras para o nosso idioma. Poliglota de raro valor.

Fundador, com outros do nosso Boletim CEI (Centro Ecumênico de Informação), do qual foi sempre um dos melhores colaboradores. Seu último trabalho foi: Um Credo para a nossa Época: Existe isso? (Suplemento CEI-1). Pertenceu ao Corpo Redatorial da Revista.

Foi o primeiro secretário executivo do Centro Ecumênico do Rio de Janeiro (CERJ), nos anos em que esteve licenciado.

Professor de História das Religiões na Universidade Federal de Juiz de Fora, e de Moral e Cívica no Colégio Magister (mesma cidade) do qual foi um dos fundadores. A bênção do prédio novo desse colégio, por ele realizada, de grande sentido bíblico, era por todos elogiosamente comentada. Tinha sido — segundo suas palavras — o professor Breno até então; este ano iria ter sua própria sala e na porta Pastor Breno. Era seu imenso desejo.

Terminou a construção do simples e belo templo da Rua D. Pedro II.

Inteligentíssimo. Muito generoso e amigo. Tão franco que às vezes rude.

Embora ainda jovem, a sua personalidade marcou profundamente a todas as pessoas que conheceu.

Internacionalmente conhecido, a sua morte repercutiu nos vários lugares por onde passou.

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MARIANE SCHUMANN

Nascida (agosto, 1943) Mariane Ziegler (Johannes e Celida Ziegler) em Gramado, Rio Grande do Sul.

Casou-se com Breno em 1966 na cidade de Hamburgo Velho.

Formou-se professora pela Fundação Evangélica de Novo Hamburgo.

Sua mãe, dois irmãos (um e uma), tios e sobrinhos vivem para chorá-la.

De uma simplicidade cativante, agudeza de espírito; acostumada a raciocinar com o esposo, impressionava-nos com sua participação discreta, mas consciente, seja nos momentos de sociabilidade, seja nos debates em que intervinha não raro com unia clareza que espantava.

De modo especial, agradava-nos ver seu sorriso claro, en-

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tre espantado e feliz, quando o Breno fazia alguma intervenção jocosa, mas pertinente, nalguma discussão séria sobre qualquer tema.

Deixava-nos sempre uma interrogação sobre a profundeza de suas reflexões e a extensão de sua cultura. Porém o seu espírito alerta sempre nos surpreendia e jamais nos decepcionava. E aos observadores atentos sabia sempre deixar a impressão de que estava tão elevada quanto o seu esposo, seguindo-o como o facho de um cometa nos movimentos mais rápidos e inesperados.

Aprendemos a vê-los quase sempre juntos na dimensão horizontal e vertical da vida. E na curva perigosa da Estrada de Bicas, suas últimas palavras Cuidado, Breno! anteciparam o aparente absurdo.

(www.luteranos.com.br/conteudo/dados-biograficos)

Uma biografia mais detalhada e abrangente pode ser lida em: Irreverência, compromisso e liberdade. O testemunho ecumênico do pastor Breno Arno Schumann (1939-1973). Osmar L. Witt, Roberto E. Zwetsch (orgs.), São Leopoldo/RS, Escola Superior de Teologia, 2004.

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O DIA DO SENHOR

Breno, em sua permanente pressa, parou (3h30, maio, 72) no dia 11, na estrada de Bicas (quilômetro 71, Passo da Pátria). Ia de Juiz de Fora para Mar de Espanha realizar seu ministério.

Era o Dia do Senhor.

Colidiu violentamente numa curva, com um carro que vinha em sentido contrário.

No local morreram Breno, Mariane e Jair, jovem da Igreja Luterana. A noiva deste último, socorrida em estado grave, foi para Juiz de Fora, juntamente com os quatro ocupantes do outro carro, que vinha de Guarapari.

Os mortos foram levados para a Central de Polícia da mesma cidade, para onde afluiu multidão tal que parecia terem morrido mil (testemunho de uma jovem da Igreja).

Breno partira alegre, levando a Boa Nova a outra comunidade e voltou, à noite, carregado, para o último adeus à Igreja que amava (Palavras do Padre Jaime).

Na madrugada do dia seguinte (12, março) foi trazido para o Rio e daqui para Porto Alegre, onde, à tarde, foi sepultado.

(https://www.luteranos.com.br/conteudo/o-dia-do-senhor)

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PRÉDICAS

DIA DA REFORMA

Pela graça sois salvos, mediante a fé; e isso não vem de vós, é dom de Deus. - (Efésios 2.8)

Tudo o que aconteceu na vida e obra de Lutero, antes e depois daquele 31 de outubro, está ligado a uma única pergunta:

Como é que Deus salva o homem?

As poucas palavras da Epistola aos Efésios dão resposta, curta e completa: pela graça sois salvos...

Quer dizer: Deus nos salva sem cooperação humana, sem mediação eclesiástica ou sacerdotal. Nenhum homem e nenhuma Igreja podem realizar a salvação — nem tampouco intrometer-se nela. Isso não vem de vós!

Se existe uma possibilidade de salvação, essa possibilidade pertence a Deus, é dom de Deus. E a salvação pela graça, assim como é entendida por todo o Novo Testamento, representa uma dádiva, um presente sem condições. Se algum homem pudesse preencher as condições salvação, se alguma Igreja pudesse preparar a salvação — o todo não seria mais um presente. Seria uma negociata.

Mas quando se trata de salvação, justamente  não existe  nem pode existir cooperação entre o homem e seu Deus. Por que, afinal?

Porque Deus tem misericórdia de alguém  quando e  onde ele quiser — visto que é o Senhor soberano e livre. Porque Deus não depende da colaboração de sua

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criatura — do contrário não seria o Criador, seria um ídolo.

No entanto — seria bom que não nos enganássemos a nós mesmos. Sejamos honestos para reconhecer que a mensagem da salvação pela graça representa um duro golpe contra todos nós. O fato é que a salvação só pela graça contraria profundamente a natureza humana. Cada um de nós quer ser dono de seu destino. Cada um de nós quer construir a sua própria felicidade. Nós queremos escolher o que comemos, vestimos, nós queremos escolher a profissão, o cônjuge, as amizades. Isso não está errado. É justo que cada um use sua liberdade de escolha, no campo das responsabilidades humanas.

Agora — quando se trata de nossa vida ou de nossa morte, deixamos de ser donos de nós mesmos. Quem decide a respeito de nossa salvação é só Deus. A graça é, portanto, a realidade mais radical, exclusiva e total que existe. E isso nos deixa chocados, irritados. Gostaríamos de continuar praticando ou não praticando uma religião, gostaríamos de acreditar ou deixar de acreditar (de acordo com as conveniências), gostaríamos de cultivar nossa espiritualidade (de acordo com nossas necessidades). E, de repente, descobrimos que a salvação de Deus nada tem a ver com tudo isso. De repente o Evangelho nos fala da salvação como um presente imerecido.

E então fica claro que ninguém mais pode exibir orgulho espiritual. Ninguém mais pode exigir alguma coisa de seu Deus. Ninguém mais pode considerar-se superior em relação aos outros.

Nosso amor, nossa conversão, nossa santificação, ate mes-

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mo nossa fé — tudo isso, de repente, aparece como fruto da graça, como resultado da obra salvadora de Deus.

Isso é que nos revolta e escandaliza, no Evangelho da Salvação. Isso é o que nos deixa inconformados: que nem mesmo nosso amor, nem mesmo nossa fé sejam realização nossa, mérito nosso!

Pela graça sois salvos — isso significa o fim de nossa liberdade, o fim de nossa garantia. E nós sabemos que coisa apavorante podem ser as palavras: sem garantia; risco total!

Pois é: e para a salvação de nossa vida não existe seguro de vida!

Toda a Reforma empreendida por Lutero nada mais quis do que deixar bem claro essa radicalidade do Evangelho. Por isso, foi e continua sendo tão contestada a promessa e a exigência do Evangelho. E não são poucos os que saem à procura de outras possibilidades mais seguras: Dizem assim:

1) Só quem alcançou a vitória completa sobre o pecado, tem a graça.

2) Só quando o Espírito habita, em nós, através do novo nascimento, temos a graça.

3) Só quando nos purificamos através de sucessivas encarnações, praticando a caridade, é que alcançamos a salvação.

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4) Só quem guarda o sábado...

5) Só quem aceita uma série de declarações infalíveis... — e assim por diante.

Por que todo esse desvio? A decisão sobre salvação transferida de Deus para o esforço humano. A graça torna-se dependente do comportamento humano. Com isso, acaba-se a insegurança e o medo? Acabou???

Essa a fraqueza da Igreja Luterana. Nós não queremos a ditadura espiritual sobre os homens. Porque a graça de Deus nos basta. Mas o Evangelho também não é imposição — é convite! Nossa única convicção é a confiança que depositamos no poder de Deus. (Exemplo de Lutero: o mendigo herdeiro da fortuna).

(Juiz de Fora - Igreja Central - 31-10-70)

(www.luteranos.com.br/conteudo/dia-da-reforma-efesios-2-8)

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ALEGRIA

João 16.22

Jesus diz: Vós agora estais tristes; mas eu vos verei de novo e vosso coração se alegrará; e ninguém poderá tirar a vossa alegria.

Nosso mundo é um mundo de coisas que, um dia, terminarão. Tudo passa sobre a terra. Para compreender isso, tomemos um exemplo bem pessoal: um dia chegará, chegará uma hora da manhã, da tarde, da noite ou da madrugada, em que eu vou morrer. Vou ter de morrer! E, para mim, isso vai significar, nada mais nada menos que o fim do mundo. Não haverá mais sol nem cores e tudo isso que foi, para mim, a vida, terá acabado. Como se nunca tivesse existido. Minhas chances e possibilidades, minhas ações boas ou más, minhas alegrias e minhas tristezas - tudo isso será arquivado, engavetado, posto de lado como coisa encerrada. Alguns anúncios de falecimento, alguns colegas para carregar o caixão. E, então, um outro pastor vai assumir a comunidade que foi a minha última. Outras pessoas ocuparão o lugar que ocupei em alguns corações. E só. Nada mais.

Quer dizer: qualquer pessoa, importante ou desconhecida, rica ou pobre, feliz ou infeliz, sadia ou doente, boa ou má, está limitada pelo seu tempo, seu lugar, sua energia, e suas oportunidades. Está limitada. Isto é: existe para nós uma fronteira intransponível. Na Patagônia ninguém me conhece. Ninguém sabe ou quer saber, se estou vivo ou morto. Aliás, mesmo com pessoas muito importantes, acontece a mesma coisa. Claro, de vez em quando acontece a come-

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moração de um centenário. Durante alguns dias, pode-se ler alguma coisa nos jornais. Duas semanas depois, todo mundo já esqueceu o assunto. Ninguém pode dar a eternidade a ninguém, nem a si próprio.

E assim é com tudo: nossos interesses e nossas relações, felizmente os equívocos e mal-entendidos e o peso que carregamos na vida, tudo isso vai alcançar um ponto em que se transformará numa coisa sem importância. Aquilo que desejamos ardentemente será posto de lado. O que construímos, ficará velho e será demolido. Nossas realizações serão substituídas pelas realizações de outros. Felizmente! Porque também o sofrimento, qualquer sofrimento, um dia vai terminar.

Como seria bom, se nos lembrássemos disso, de vez em quando! O problema é que quase nunca nos lembramos de que todos os problemas também têm o seu fim! As coisas sempre nos parecem permanentes, irreversíveis, intermináveis: nossa felicidade e nossa dor, nossos êxitos e nossos fracassos. Nossas propriedades e nossas perdas. Nossas boas intenções (essas nunca acabam, não é?) e — desgraçadamente — nossas paixões. Nós vivemos como, se fôssemos ficar para sempre. Achamos que a pessoa amada vai existir para sempre. E — o que é um mal — achamos que o inimigo vai viver sempre... No entanto, meus irmãos, o maior inimigo do homem, qual é? São as coisas permanentes, imutáveis, irreversíveis. Quando alguma coisa se torna perpétua, ela passa a possuir-nos. Somos prisioneiros dessa coisa, em vez de ser gente livre. No entanto, nada é perpétuo, nada é irreversível, nada é permanente ou imutável. Se nós nos lembrássemos disso, de vez em quando, é claro que continuaríamos a rir e chorar, a ficar com raiva e amar; a vida seria uma coisa séria com humor.

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A gente pode olhar coisas sérias com humor? Quando vamos ao cemitério, que é que tem de humor nisso? Não é assim que, quando vamos ao cemitério, nos assalta um sentimento tanto quanto doloroso da transitoriedade de todas as coisas? Diante de um túmulo não nos ocorre que tudo e todos são passageiros? A lembrança que temos de uma pessoa que morreu, não é sempre pálida — e cada vez mais pálida — à medida que passa o tempo? Isso é triste. Onde fica o humor?

Se folhearmos nossa Bíblia, vamos encontrar uma série de passagens que falam disso. Davi confessa numa oração: Sou forasteiro à tua presença, Senhor, peregrino como todos os meus pais o foram. E Jó se lamenta: O homem, nascido de mulher, vive breve tempo, cheio de inquietação. Nasce como a flor e murcha; foge como a sombra, e não permanece. Seus dias estão contados. Tu, Senhor, puseste limites ao homem, além dos quais não passará.  Tiago  escreve em sua epístola: Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida? Sois apenas como neblina que aparece por instante e logo se dissipa.

Onde está o humor? Humor tem algo a ver com alegria e esperança. E a alegria e a esperança só podem existir, em nossa vida, quando pensamos claramente no fim. Não adianta disfarçar ou mascarar. Igreja não é lugar de disfarces ou máscaras. Pensemos no fim de tudo. É ali que está o começo da alegria e da esperança.

As palavras de Jesus foram ditas no fim de uma convivência, de uma amizade, de um caminho. São palavras de despedida. Vós agora estais tristes! Quer dizer: Jesus conhece e compreende nossa tristeza! Por quê? Porque sua vida, sua ação consistiram e consistem em vencer nossa miséria e

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conduzir-nos à liberdade! Toda a vida de Jesus foi uma dramática luta contra os poderes que querem destruir-nos. Foi uma luta contra a morte! O ponto alto desse começo de uma nova vida, começo de novo mundo. Por isso Jesus diz: Agora estais tristes, mas vosso coração vai alegrar-se.

Eu vos verei de novo (o problema de rever os entes queridos).

Temos a promessa, não a descrição. Serás transformado naquilo que amas!

Ninguém poderá tirar a nossa alegria!

Juiz de Fora – 1º. de novembro, 1970

(www.luteranos.com.br/conteudo/alegria-joao-16-22)

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João 13.1-17

Fim de ano

Servir

Só escravos lavavam os pés de alguém. Mas Jesus não o fez porque seus discípulos fossem muito orgulhosos ou estivessem cansados. Jesus não veio ao mundo para fazer aquilo que nós também podemos fazer. Jesus é o Salvador do mundo - não o lacaio do mundo. Lavando os pés dos discípulos Jesus não, só faz algo, mas está querendo dizer algo com essa ação - algo sobre a encarnação, seu sentido e objetivo.

Através de ação que é parábola, Jesus quer ajudar os discípulos para que entendam o maior de todos os mistérios. Como? Jesus entende seu nascimento, sua vida, seu sofrimento e morte como maneira de servir.

Jesus se levanta da ceia, tira a roupa e improvisa um avental com a toalha. Isso é Natal: o Cristo eterno esvazia-se de sua divindade e assume forma humana, forma de servo.

Jesus lava os pés dos discípulos. Isso é sexta-feira da Paixão: humilhação. É provável que todos já se perguntaram por que Deus escolheu esse caminho para salvar os homens? Por que manjedoura e cruz? Por ‘que não diferente, mais acessível, menos absurdo?

A resposta da Bíblia é: os pensamentos de Deus não são iguais aos nossos - porque são pensamentos do amor. E

26 31/12/1970

seus caminhos também não são os nossos - porque são caminhos do amor. Se Jesus não tivesse se tornado homem como nós - Deus não seria o Deus do amor. Deus não seria o Deus do a mor, se Jesus não fosse limpar os pés dos discípulos, pés sujos do pó da estrada. Deus não seria o Deus do amor, se não fosse de um a outro, nesta noite, lavando-nos da sujidade dos caminhos que andamos neste ano que chega ao fim.

E nós não seriamos mais gente, pessoas humanas, se não perguntássemos como Pedro: Senhor, Tu me lavas os pés?

Sim, Jesus faz isso. Jesus quer fazer isso. Porque o amor precisa ajudar, precisa servir, precisa ter piedade e misericórdia. O amor precisa curvar-se, humilhar-se.

Somos capazes de compreender isso? Talvez sim, talvez não. Não importa. Jesus diz que aquilo que não compreendemos agora, compreenderemos algum dia.

Claro, não é a resposta que teríamos desejado, hoje, no fim deste ano. Ninguém chega sozinho ao fim do ano. Pelo contrário, 1970 chega conosco ao fim. Com tantas questões abertas!

Os pensamentos de Deus tantas vezes foram contrários aos nossos. E para nós é, incompreensível, é difícil de crer que tenham sido pensamentos de amor. É difícil acreditar que 1970 tenha sido um ano de amor, um ano de graça...

Afinal de contas, nós fracassamos em tantas coisas! E fra-

casso sempre significa  culpa. E culpa nunca é só nossa ou só dos outros. Culpa é sempre uma coisa que envolve pessoas a quem amamos. Talvez a única pessoa a quem amamos. Apesar do amor, nós nos tornamos culpados.

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Por quê?

Nós perguntamos por quê? E depois nos calamos.

E para dentro de nosso silêncio surge o Cristo que serve, que ajuda, que tem misericórdia. Para o meio de nosso silêncio culpado vem o amor de Deus. E vai de um a outro, para lavar os pés, limpar, consolar, fortalecer.

Se conseguirmos guardar isso - saberemos que nossos pensamentos, e perguntas sem resposta, e aflições não terão a última palavra. Nem mesmo nossos pecados são a coisa última.

A última coisa, neste dia e neste ano, não é aquilo que entendemos ou não,  nem aquilo que funcionou ou fracassou, nem aquilo que encontramos ou perdemos, nem aquilo que ganhamos ou que nos foi tomado.

A última coisa é o servir, a ajuda, a misericórdia do Cristo. A última coisa que nos resta e que permanece, é um Cristo que se curva, se ajoelha diante dos discípulos e faz o serviço do mais humilde dos escravos.

Por isso, não é nossa a última palavra, neste ano. Não é nossa a última ação. A última palavra e a última ação, neste 19.., se chamam amor. E isso também vale para o novo ano. Ninguém de nós sabe, se em 19.. seu nome será Pedro, o que negou a Cristo, ou se será o nome de qualquer dos discípulos que o abandonaram e ou se será Judas.

O que desejo dizer a todos, porém, é que nenhum erro, nenhum engano, nenhuma queda, nos pode colocar fora dos céus e da terra. Mas o amor de Deus engloba céus e terra.

Ninguém pode ir tão longe, cair tão fundo - porque o amor

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(www.luteranos.com.br/conteudo/joao-13-1-17)

29 vai
nos
Que o novo ano seja um ano de amor!
mais longe e mais fundo, E, se a dor e o sofrimento nos curvarem - existe um que se curvou mais ainda para
lavar os pés.

VERDADE

Êxodo 32.15-20 e 30-34

É provável que a vida não esteja fácil, para a maioria de nós. Talvez até esteja se tornando de dia a dia mais difícil!

Mas  ninguém de nós ainda experimentou o sabor da escravidão. O povo de Israel, escravizado e oprimido pelos egípcios, sabia muito bem o que isso significava.

É por isso que a história da salvação, dessa salvação que temos em Cristo, e só em Cristo, começou há milhares de anos, com a libertação do povo de Israel. Através de sua ação poderosa, Deus conduz seu povo para fora da terra da servidão. E Deus promete que terão sua terra, terra, onde viverão em liberdade. Mais ainda: Deus revela a esse povo sua vontade, através de seus mandamentos. Os mandamentos não são leis. Pelo contrário: os mandamentos nos mostram o terreno, o espaço, o horizonte em que podemos viver como gente, como pessoas humanas.

No entanto, quando Moisés, o guia e líder do povo, recebe de Deus o documento da aliança com o povo, o documento da vontade de Deus para com esse povo — nesse instante acontece uma coisa estranha. Uma coisa estranha que nós — todos nós — conhecemos muito bem, de experiência própria.  ***

O povo de Israel sente-se grato pelo auxílio de Deus. A religiosidade do povo é até intensa, forte, animada. Uma

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prova disso é o sacrifício de que todos são, capazes: eles juntam todos os seus recursos, todo o ouro que possuem. E fazem um bezerro de ouro.

Meus irmãos:

O bezerro de ouro  não era  apenas uma imagem.  Não era  apenas um ídolo. Se fosse só isso, a coisa seria bem mais simples: acesso, ataque de paganismo e idolatria. Pronto. E muitos entre nós poderiam dizer: nada tenho a ver com isso! Eu não adoro ídolos...

Acontece que o bezerro de ouro pretendia ser uma representação do próprio Deus, único e verdadeiro! Toda a orgia desenfreada que se desenrolou em volta do bezerro tinha a intenção de ser uma festa em homenagem ao Senhor!

E é nesse ponto que todos nós escorregamos para dentro da história. É nesse ponto que o bezerro de ouro se torna um acontecimento em nossas vidas também.

Por quê?

Porque todos nós também nos fazemos uma imagem de Deus, mesmo que seja só em pensamentos, só na imaginação, só na mentalidade.

As imagens: Papai do céu.

Em Deus confiamos. (Banco e dólar).

Graças a Deus!

E por que Deus proíbe que se faça a sua imagem?

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1) Porque não se pode reduzir ou reproduzir sua glória.

2) Porque a imagem de Deus faz mal ao homem.

Quando a mulher diz ao marido: — Eu não imaginava que você fosse assim — pensei que você fosse diferente...

É a crise, é a comunhão matrimonial ameaçada. Entre duas pessoas que se pertencem uma à outra, interfere a imagem que uma faz da outra. E essa imagem, que pretende ser a reprodução do outro, mas que acaba sendo só a falsificação do outro (porque idealiza ou torna pior!), essa imagem destrói a união. A imagem torna-se opinião preconcebida! No caso do matrimônio, a comunhão do casal só poderia ser restabelecida, se um escutasse o outro. E é exatamente esse o problema da imagem de Deus. Nós inventamos um Deus de acordo com nosso figurino. E na primeira crise fica claro que nossa imaginação religiosa só tinha feito um bezerro de ouro...

Deus não quer uma imagem, para que aprendamos a ouvir sua palavra. E tanto isso é fundamental, que muita gente ouve sermões uma vida inteira — e tem uma opinião completamente falsa a respeito de Deus. A imagem que inventaram para si mesmos tornou-os incapazes de ouvir a palavra. — e conhecer o único Deus verdadeiro!  * * *

Mas cuidado! Ninguém imagine que está isento desse perigo! E mesmo que alguém estivesse completamente livre da falsa imagem — resta saber qual é a atitude que tomamos em relação aos que ainda estão enganados, equivocados, confusos, ou iludidos a respeito de Deus.

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Moisés tem a liberdade e a coragem de dizer muito claramente a seu povo o nome que se dá a tudo aquilo que aconteceu. Agora, Moisés não se distancia do seu povo. Moisés não se afasta com superioridade e orgulho. Moisés faz algo bem diferente: ele  intercede  por seu povo, na presença de Deus — ele se solidariza com os irmãos — sim, e se o castigo for a morte, Moisés prefere morrer com o seu povo, do que continuar vivo, mas sozinho...

Deus ouve a intercessão. Deus ouve e atende à oração em favor do povo. Só o sacrifício de Moisés não é aceito. Porque nenhum homem pode assumir a culpa de outro — e ninguém pode morrer no lugar de outro. Culpa, castigo e morte ficam transferidos por Deus. Apesar de tudo, Deus mantém sua promessa: o povo terá a terra prometida. E Moisés o guiará.

Mas o dia do castigo chegou. Um dia chegou a hora de punir o pecado com a morte. O que nenhum homem podia assumir sozinho, o que ninguém podia fazer pelos outros — Deus mesmo assumiu, no lugar de todos. A Cruz de Cristo é essa última prova de solidariedade total e de intercessão total. E é por isso que a cruz de Cristo é a única imagem de Deus verdadeiro. Essa imagem pode e deve substituir todas as outras, em nossos pensamentos e corações. Amém.

Juiz de Fora — 28-3-71 — JUDICA

(www.luteranos.com.br/conteudo/verdade-xodo-32-15-20-30-34)

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***

DOMINGO DE RAMOS

Tendo Jesus falado estas cousas, levantou os olhos ao céu, e disse: Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te glorifique a ti; assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu te glorifiquei na terra, consumando a obra que me confiaste para fazer; e agora, glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo. Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a tua palavra. Agora eles reconhecem que todas as cousas que me tens dado, provêm de ti; porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste e eles as receberam e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que tu me enviaste. - (João 17.1-8)

Se alguém de nós ficasse sabendo, um dia, que vai morrer em breve, qual seria sua atitude? Indiferença? Angústia? Desespero? Alívio? Seria um atropelo geral, para pôr tudo em ordem? Haveria tentativas meio constrangidas de reconciliação com velhos inimigos?

Nós acabamos de ouvir as palavras que um homem dirige a seu Deus, nos últimos momentos de vida. Este homem sabia que iria morrer. Sabia até que tinha de morrer. Sabia que dentro de poucos instantes seria preso. E que então viriam interrogatórios e torturas. E a farsa de um processo forjado, porque a sentença já estava combinada com antecipação: pena de morte.

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Sabendo tudo isso (e deve ser difícil saber tudo isso antes!), Jesus faz uma espécie de testamento, uma espécie de avaliação de sua obra no mundo, entre os homens. Sim, chegou a hora. Mas que hora é essa?

Em sua última oração melhor: meditação, reflexão em voz alta — Jesus diz que essa é a hora da glorificação.

Meus irmãos: todos os que já se acostumaram com Deus, Jesus, a Igreja, perceberão muito pouco do que isso significa. Nos cultos fala-se tanto em glória e glorificação...

Mostrando esse mesmo texto a quem está por fora de tudo isso, a reação foi rápida: não entendo nada! E, diante da pergunta: por que não? — a resposta também veio logo:

Desde quando a morte (e ainda por cima esta morte) pode ser glorificação?

Aí está, meus irmãos. Estamos iniciando a semana que alguns chamam de santa — e que seria preferível chamar de semana da paixão. Semana de muito peixe e de pouca penitência. Semana de muito ovo, muito coelho e de pouca meditação. Semana de um dia muito silencioso feriado, superstição. E quantas costureiras vão ficar o dia inteiro na máquina, para aprontar os vestidos do baile no dia seguinte?

Diante de tudo isso, as últimas palavras de Jesus se tornam efetivamente muito difíceis de compreender. É como se todos já estivessem prontos para chorar, e o candidato à morte declara: chegou a hora de minha glória! É como se alguém fracassasse completamente, no empreendimento mais importante de sua vida, e dissesse aos amigos que viessem consolá-lo: essa foi a minha maior vitória!

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Quem for realmente honesto consigo mesmo, só poderá confessar: eu não entendo mais coisa nenhuma! Porque as últimas palavras de Jesus são uma espécie de soco no olho da gente. São palavras que falam de glorificação e de autoridade, num instante em que tudo — mas tudo mesmo — indica humilhação e subordinação.

E Parece-me que, de fato, essa é a lição que precisamos apresentar, durante mais uma semana da paixão. Precisamos aprender a fazer uma comparação perigosa. Que comparação? Por que perigosa?

Olhemos à nossa volta. Examinemos as pessoas que são ou que desejam ser importantes. Escutemos, uma vez, com atenção, o que elas dizem. Observemos o que elas fazem. São pessoas que, às vezes, têm autoridade. São ‘Pessoas que, às vezes mi quase sempre, gostariam de ser glorificadas. Que é que está por trás dessa autoridade e glorificação? As respostas podem ser muitas: poder, dinheiro, influência, sorte, sexo, o direito da força... E agora, a comparação: a glorificação de Jesus é bem diferente. Porque é Deus quem está sendo glorificado, através daquela morte infame (infame na opinião dos homens!). Isso em primeiro lugar. Em segundo lugar, a glorificação de Jesus começa quando as outras glorificações chegaram à estaca zero: na morte.

Todos sabemos (e quem não sabe, é bom ir se acostumando com a ideia!) que, com a morte. acabam justamente o poder, o dinheiro, influência, sorte, o sexo, e o direito da força... O mais solene e pomposo dos enterros (ou dos túmulos perpétuos...) não consegue esconder esses fatos. Com Jesus a coisa é completamente diferente, porque nosso Senhor não construiu „sua glorificação sobre essas coi-

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sas que nos parecem tão importantes e decisivas.

E ai reside o perigo da comparação. De repente, tudo isso que é tão importante para nós e para as pessoas importantes de nosso tempo, se transforma no pó, na relatividade — vira coisa passageira. Isso é perigoso porque destrói ilusões. E é perigoso porque mostra as verdadeiras dimensões e proporções de tudo e de todos... Aquele que sabia que tinha de morrer — porque assim o exigia a glorificação dos homens — põe a nu essa humana glorificação. E quem fica nu, ligeiro se tapa com as mãos, não é mesmo?

E por que a glorificação de Jesus é tão esquisita, tão diferente, tão destruidora da vaidade humana?

Para que a gente se desprenda de toda essa papagaiada, justamente nesta semana da paixão. Para que não fiquemos tão impressionados com discursos, monumentos, realizações grandiosas e túmulos luxuosos. Para que fiquemos livres para bem outra coisa: livres para descobrir o que é vida; livres para estabelecer um contato com Deus (e não só com a televisão).

Precisamos ficar livres para isso. Porque as glorificações dos homens entre si conduzem a uma série ele caminhos sem saída. (Exemplos!) Além disso, a falta de liberdade sempre conduz a dois erros igualmente humanos e — idiotas: de um lado, o erro dos que querem viver sem mundo como se já fossem anjinhos. (E o que esses anjinhos fazem, todos sabem): de outro, os que querem ser iguais ao que todo mundo faz (e onde isso acaba também se sabe!).

As últimas palavras de Jesus, porém, abrem um horizonte maior: Tu, Pai, me deste autoridade sobre todos os homens, para que eu conceda vida eterna a todos. Chegou a

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(www.luteranos.com.br/conteudo/domingo-de-ramos-joao-17-1-8)

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hora! Este é o convite! Este, o horizonte maior da semana da paixão!

Lucas 10.17-20

JUBILATE

Então regressaram os setenta, possuídos de alegria, dizendo: Senhor, os próprios demônios se nos submetem pelo teu nome! Mas ele lhes disse: Eu via a Satanás caindo do céu como um relâmpago.

Eis aí vos dei autoridade para pisardes serpentes e escorpiões, e sobre todo o poder do inimigo, e nada absolutamente vos causará dano.

Não obstante, alegrai-vos, não porque os espíritos se vos submetem, e, sim, porque os vossos nomes estão arrolados nos céus.

(Lucas 10.17-20)

Um túmulo sem honra: quem terá sido?

Os nomes que nunca aparecem nos jornais: mas as pessoas existem! Se nós perdêssemos nosso nome seria horrível (ex.: quando o nome fica manchado por motivos morais e rivalidades).

A preocupação de alguns: o nome importante...

Só essas rápidas referências mostram que nosso nome não é qualquer coisa. Muita coisa gira em torno dele, está ligada a ele.

Mas existe mais alguém que se interessa por nosso nome

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e nossa pessoa: e esse alguém é Deus. Há milênios, os homens ameaçados, amedrontados e angustiados têm ouvido a promessa e o convite: Não temas, porque eu te remi; chamei-te peio teu nome — tu és meu. Assim sendo,  ninguém está  tão só, tão abandonado, tão afastado ou tão esquecido porque Deus, em todo caso, é quem o chama, o acolhe e o aceita.

De fato, se alguém quisesse saber rapidamente o resumo de tudo o que está contado na Bíblia, poderia receber esta informação: é a história de como Deus escolhe e acolhe os homens. Se alguém quisesse saber para que existe Igreja, bastaria a resposta: para anunciar e contar a todos que Deus chama e busca a todas as suas criaturas.

Deus se lembra de nós. Para Deus não somos, apenas, os trabalhadores, os operários, a classe média, a massa anônima, os encostados. os aposentados, os terroristas, os ricos ou os pobres. Para Deus somos gente que até recebe um nome, uma identidade permanente — uma presença.

Parece-me que justamente num tempo em que a pessoa está sendo tão esquecida, tão maltratada, tão facilmente aniquilada — é motivo de  alegria saber que, para Deus, cada pessoa, qualquer pessoa, ainda é tão importante como no dia da Criação. A tal ponto — que Deus lembra e guarda o nome de cada um. Justamente por isso, o nome de cada um é mencionado, na hora de seu batismo, no momento de seu festivo ingresso no povo de Deus. E também por isso o nome de cada um é mencionado na hora de seu enterro, no momento em que confiantemente o entregamos às mãos de Deus.

Podemos e devemos alegrar-nos com isso. Isso pode e deve alegrar-nos ainda mais do que todos os sucessos

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pessoais e profissionais, mais do que todos os êxitos missionários e evangelísticos.

Dizendo diferente:  essa alegria é capaz de perdurar até mesmo quando a vida se torna um fracasso pessoal e profissional.  Essa alegria continua sendo completa, até mesmo quando o cristão só conhece a dor e a decepção.

É claro que se agora alguém interrompesse para dizer: Duvido! — eu compreenderia o desabafo.

Do ponto de vista pessoal, existem muitas coisas feitas de encomenda para arrasar com a alegria de qualquer um.

Do ponto de vista profissional, entre as muitas decepções, tem a de ontem: os operários tiveram licença para olhar, de graça, os tigres e elefantes do zoológico (no Rio de Janeiro). Talvez estivessem esperando alguma coisa menor de que um elefante, mas mais importante para eles, suas mulheres e seus filhos.

Do ponto de vista cristão, nossa comunidade conhece o sabor amargo de um templo em construção — paralisada.

E todos aqueles que se empenham, se preocupam e se desdobram na divulgação do Evangelho, devem sentir às vezes um imenso cansaço. Cansaço de descobrir que tantos preferem ainda o medo — e desprezam a alegria. Que tantos preferem colocar amendoim e coco sobre as sepulturas esquecendo a cruz sobre os túmulos. A cruz que aponta para a vida, para o Deus que se lembra da nossa vida, para o Deus que nos aconselha a comer amendoim e coco, em vez de ficar alimentando fantasmas...

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Sim, são muitas as coisas que nos levam a duvidar da alegria. No entanto — por que Jesus insiste nessa alegria maior? Por que Jesus chama a atenção dos discípulos para essa alegria mais completa, no instante em que eles voltavam já tão felizes com o sucesso, com a vitória sobre os demônios?

A queda de satanás. Como? Por Jesus! Nós, nossa situação — e o diabólico hoje.

(A injustiça social, a técnica da destruição, a superstição e o medo).

Também os discípulos de hoje não conseguirão vencer e derrubar todos os demônios.

A alegria completa é saber que Jesus já fez isso -- de uma vez por todas.

O que há são restos de gente enganada...

Os que sabem estão sendo convidados a comemorar a vitória maior.

Na Ceia — convidados pelo nosso nome! Amém.

(www.luteranos.com.br/conteudo/jubilate-lucas-10-17-20)

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Isaías 66.13

Cantate

Como alguém a quem sua mãe consola, assim eu vos consolarei, diz o Senhor.

Cada um de nós e cada qual sua maneira tem boas e más experiências nesta vida, cada um vive da recordação de momentos agradáveis e tristes, em cada um se processa uma luta intima entre bons e maus instintos. E eis-nos todos, — neste Dia das Mães, reunidos para o culto, cada qual acumulando e trazendo consigo aquilo que o caracteriza, que o personaliza, aquilo que o faz sofrer e também alegrar-se. É evidente que voltaremos para casa com tudo isso que, no conjunto, nos faz ser o que somos. Mas entre nossa entrada e salda torna-se público o recado que Deus nos envia: da maneira como uma mãe consola alguém, assim eu vos consolarei.

Todos nós podemos ouvir esse recado. Nós que vivemos em uma época repleta de crises e perguntas que nos fazem sofrer e pelas quais também somos responsáveis. Nós, pessoas que percebemos as grandes decisões que já se encaminham, que nos dizem respeito e que, de um modo ou de outro, se tornarão decisões nossas. Nós que habitamos um mundo ameaçado por todos os lados. Nós que não podemos permanecer como plateia, como meros expectadores. Nós que, diante dos acontecimentos, somos surpreendidos por perguntas como:

Quem é você? Qual o seu ponto de vista? De que vive você?

Que é que você pode fazer? Que será de você? Nós estamos sendo convidados a ouvir a informação do Senhor: Como alguém a quem sua mãe consola, assim eu vos consolarei.

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É importante considerar  quem  diz isso. Não é diferente saber-se quem afirma o quê. Não existem palavras soltas ao vento, que simplesmente passam a ser em si mesmas verdadeiras ou falsas, fortes ou fracas. Qualquer declaração sempre se qualifica através do seu autor. Assim sendo, a promessa de consolo está decisivamente ligada àquele que a faz. Isso é que torna relevantes e válidas as palavras que ouvimos. Porque o Deus que promete consolar-nos é o Deus que se torna Ele próprio nosso consolo, auxílio e alegria. Suas palavras de consolo são importantes, porque Deus é necessário e importante. Resta saber se permitiremos que a informação de Deus, sobrepujando todas as outras informações, nos alcance. Resta saber se queremos ouvir sua voz, acima e além de todo o vozerio de nosso tempo. Eu vos consolarei, diz o Senhor. Mas - que é consolo? Consolo é esse fato novo que penetra na desolação, no desespero, na angústia, na desilusão. O consolo penetra em tudo isso e cria ma situação nova, que permite a tranquilidade, a paz interior, a calma, o descanso. Mas não nos enganemos. Nada de equívocos: Descanso, tranquilidade, consolo - tudo isso não é apenas emplastro porosos. Consolo não é aspirina. A ausência de inquietação ainda não significa consolo. Há muita gente que não chega a inquietar-se, que vive realmente despreocupada - porque é gente egoísta, indiferente. Mas a inquietação anestesiada, disfarçada ou alcoolizada ainda não é verdadeiro consolo, verdadeira paz interior.

Verdadeiramente consolados são aqueles que, no meio das in quietações, angústias e agitações, sabem que estão guardados e protegidos. Consolados são aqueles que se sabem protegidos contra a doença, por exemplo, apesar de já estarem sofrendo. Consolados são aqueles que se sabem protegidos contra as pessoas, por exemplo, apesar

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de atacados pelas más línguas e pelas inúmeras crueldades de que o ser humano é capaz. Consolados são aqueles que se sabem protegidos contra si mesmos, pois é do nosso íntimo que surgem os perigos verdadeiramente mortíferos. Consolado, em suma, é o ser humano que sabe de duas coisas: 1) que não pode proteger-se a si mesmo, e 2) que está sendo protegido. Por Deus Na proteção de Deus reside nosso único e verdadeiro consolo. E é por isso que o consolo cria uma situação nova e renovadora. E em que consiste a situação nova, criada pelo — consolo de Deus? É uma situação que se pode resumir numa palavra: Liberdade. O consolado é um homem livre de tudo aquilo que aparentemente o aprisiona, livre da morte e do medo de morrer, livre das intenções malignas em seu íntimo, livre dos absurdos que dominam este nosso mundo. Consolado e livre é o ser humano que conhece e reconhece todas as limitações e barreiras que o cercam e que querem isolá-lo. Quem reconhece as próprias limitações, enxerga saídas por todos os lados. Porque sabe que, além dessas saídas, do outro lado é Deus quem o aguarda, para saudá-lo e recebê-lo.

Só vivendo no consolo dessa liberdade protetora é que o ser humano passa a enfrentar realmente todas as situações de uma maneira nova. Só uma pessoa consolada e livre saberá aceitar o lugar que lhe cabe nesta vida, a trajetória que lhe foi traçada neste mundo. Aceitar nossa função na vida significa reafirmá-la em cada novo dia, sempre de novo, apesar dos sacrifícios implícitos, apesar das renúncias exigidas, apesar da dor.

Mas quem é que consegue isso? Quem que aguenta isso, dia após dia, ano após ano? O recado de Deus não informa, não diz se tais pessoas existem. Em compensação, fi-

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camos sabendo de coisa muito mais importante: Deus nos consolará, nos protegerá, nos libertará. E tudo isso nos é dito através de uma comparação: Deus nos consolará de modo semelhante ao da mãe que consola alguém. Ou seja: cumpre às mães traduzirem em termos humanos, concretos e diários, o consolo que Deus quer nos dar. E o consolo materno só será mesmo consolo sincero e honesto, na medida em que resultar em proteção e liberdade. E mais ainda: só e unicamente a mãe que conhecer o verdadeiro consolador, protetor e libertador, poderá e saberá cumprir sua tarefa. É uma missão nobre, elevada, que exige renúncia e amor. E somente a mãe consolada, protegida e libertada por Deus saberá refletir, em sua missão, o verdadeiro e insubstituível consolo de Deus. E é necessário repetir mais uma vez, bem claro, que não é através da psicologia, da pedagogia ou até da astrologia e quaisquer outros truques e ciências que as mães se tornarão um espelho do consolo de Deus. Tudo isso não adianta e não convence. A mãe moderna, assim como a mãe de todos os tempos, precisa ter fé. Não qualquer fé, mas fé em Jesus Cristo! Só a mãe que confia em Cristo pode inspirar confiança aos filhos e também ao marido. Só a mãe que, sabe ser Cristo a única esperança poderá ensinar seus filhos a esperar algo de novo e vivificante. Mas a fé não se encontra nos chazinhos, nas rodinhas de fofoca, nos coquetéis e na rua. Nem na limpeza cuidadosa da casa, embora certas faxinas pudessem redescobrir alguma Bíblia, por exemplo. A fé que as mães, os pais e os filhos precisam, para que nossa sociedade, nosso povo e nossa pátria não apodreçam de vez, só nasce da Palavra de Deus. É preciso ouvir essa palavra, aprendê-la, ensiná-la, difundi-la. Porque a Palavra de Deus, o recado de Deus, anuncia a única verdade capaz de auxiliar, responder às angústias, proteger em tormentos e dores, libertar para a vida abundante, para a vida arejada,

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(www.luteranos.com.br/conteudo/isaias-66-13)

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para a vida que merece esse nome. As mães têm imensas possibilidades nesse setor.

Hebreus 11.1

(culto ecumênico)

Nossa vida diária é uma sequência interminável de esperanças que rara ou só parcialmente se confirmam de certezas reiteradamente desmentidas, de ameaças que nos cercam e paralisam. Não é de admirar, portanto, que cada um de nós confie mais ou menos nisto ou naquilo, de acordo com as necessidades ou possibilidades do momento. Os amantes da generalização não comprometedora acreditam numa coisa a que se convencionam chamar de Deus. Os demais confiam na psicanálise. Os mais ideológicos baseiam sua esperança no desenvolvimento (após o descrédito em que caiu a palavra progresso). E há quem creia na água oxigenada.

É nesse mundo repleto de perguntas e respostas, de resoluções e desmentidos, que nos cabe viver. E em cada um de nós existe um misto de fé, semi-fé, pseudo-fé, superstição e descrença. Talvez seja esse o conflito básico da existência humana. Mas não nos cabe irritar-nos diante das vedetes do ceticismo ou invejar os atletas da fé inquebrantável. Após um balanço do próprio passado, lembrando a angústia de um futuro incerto, dando-nos conta, enfim, do relativo impasse de nosso presente, cada um de nós se sentirá solidário com seu mais antipático colega ou vizinho. É bem verdade que a maior especialização humana consiste em cavar abismos e erguer barreiras - de classe social, de ordem política, de raça, de opinião religiosa. Mas não é menos válido que a precariedade de nossa humana condição nos faça incrivelmente iguais. O enigma da vida e a inexorável realidade da morte colocam toda a família

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humana diante de uma mesma indagação.

E é justamente neste horizonte amplo e comum que irrompem as afirmativas desconcertantemente tranquilas do apóstolo: nós não somos dos que retrocedem; nós cremos. E a fé é a certeza que alimenta uma esperança num alvo que ainda não podemos ver, mas em cuja direção andamos.

Qualquer pessoa que se detiver no exame dessas palavras não poderá deixar de sentir-se perplexa, pelo menos no primeiro momento. E isso, porque seu autor não deixa margem para o retorno. Ora, a forma de vida mais saudosista, mais romântica e mais escapista que existe, está justamente consubstanciada no ato de retroceder, de retornar, de voltar atrás. Quando os compromissos, as exigências se tornam por demais incômodos e insistentes, nós recuamos. O escapismo mais suave consiste em recordar os bons tempos e querer retornar à infância. O escapismo mais consequente é o dos que mandam congelar o próprio cadáver. Mas o apóstolo sabe que a existência humana, apesar de aparentes retrocessos, é uma caminhada constante, que sê é possível dar passos em frente, apesar de as vezes os indivíduos, as nações e as igrejas andarem em zigue-zague. As vidas de todos os homens (e por isso também a existência das sociedades e clubes) estão englobadas numa jornada rumo ao alvo comum. Nem todos já sabem disso. Há inclusive os que não querem sabê-lo. Alguns esqueceram esse fato. Outros o temem. Mas o mínimo que se pode dizer é que é irredutível. A vida não transcorre em ciclos. A vida não é estática. A vida anda, flui, às vezes corre e até leva muita coisa de roldão.

Mas existe um segundo aspecto surpreendente nas palavras ouvidas. Existe uma reta indicadora da direção, é bem

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verdade. Só que o alvo, como tal, não obtém qualquer descrição. A informação é mínima e aparentemente decepcionante: não se pode ver o alvo, a meta. Em outras palavras: o após tolo nega a viabilidade e validade dos muitos programas e previsões, que inspiram os escapistas pretensamente mais avançados - os que se refugiam num futuro projetado à perfeição, um futuro livre das incertezas e obscuridades atuais. O apóstolo nega, em suma, que se possa fazer uma concordata com a vida. A vida não se pode alimentar de sonhos passados, nem de vagas conjeturas e aspirações futuristas. A vida só existe hoje, apesar dos pesares. E é hoje que cumpre avançar um trecho na jornada. Eis o que significa ter esperança: viver o dia de hoje, com todos os conflitos e chances que encerra, na certeza de que temos um encontro marcado com o alvo de nossa vida.

Evidentemente, é nesse momento que surge a questão mais nevrálgica referente à fé. Nossa fé nem de longe remove montanhas e, em geral, é insuficiente mesmo para impulsionar um tímido passo, que não nos atrevemos a dar. O bloqueio intelectual e certa consciência da nossa transitoriedade impedem que façamos nossa a liberdade de confiar, a ousadia da esperança e a aventura de viver em disponibilidade, sem procurar garantias aqui e ali. Ficamos tão preocupados com o que devemos ou não podemos crer, tão fascinados pela própria fé (ou pelo próprio ateísmo) que estacamos, aplicamos o pé ao freio, esquecidos de que a fé é um evento sempre novo, em cada novo dia. A fé ocorre no encontro e na comunhão com Aquele em quem se crê. A fé passa a compor a história da nossa vida, no momento (e nos sempre novos momentos) em que estendemos a mão

Àquele que se identificou conosco e que quis ser nosso irmão, para acompanhar-nos na jornada.

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Que significa, porém, o fato de Cristo acompanhar-nos na jornada da vida? Que consequências tem a presença de Cristo neste mundo? Que significa aceitar esse fato aparentemente tão invisível, tão despercebido? Porque Cristo parece ser tão incógnito, tão distante, até tão chocante e desprezível, tão paradoxal quanto a pobreza e sujidade da manjedoura, quanto a miséria e opróbrio da cruz. Deus não é o taumaturgo, o mágico que extrai de sua cartola o coelho que mais desejaríamos ver. Deus não concorda com os padrões que nós (os indivíduos, a sociedade e as igrejas) tantas vezes queremos impor. Pelo contrário. O Deus que se chama Jesus Cristo põe em questão a vivência pessoal, social, nacional, eclesiástica. O Deus que conhecemos e confessamos em Jesus Cristo é radicalmente diferente do ídolo que criamos para servir de padroeiro e confirmador de toda a iniquidade familiar, individual, política, econômica, social e cultural - de nosso e de outros tempos. Em nossos - dias, o problema essencial já não reside tanto em se saber se é possível acreditar em um Deus transcendental. Para muitos (e quem de nós se excluirá?), seria bem mais cômodo e agradável que Ele se encontrasse além da lua. Mas o Deus que vem ao nosso encontro não é o protetor incondicional da família, da tradição e da propriedade. O Deus que Se revelou em Jesus Cristo vem justamente para restaurar o homem e o mundo, sua criatura e sua criação. De fato, é mais fácil ser ateu do que colocar-se à disposição de um Deus que quer saber o que fizemos e ainda pretendemos fazer com Seus filhos e o mundo no qual Ele criou uma chance de vida digna desse nome - para todos! Deus não se limita a estruturas pré-fabricadas ou forjadas para o futuro. Seu alvo não coincide obrigatoriamente com nossa; metas, inclusive quando lhes aplicamos o rótulo de cristãs.

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Crer significa saber e aceitar tudo isso. Aceitá-lo como uma imensa libertação. E só aqueles que livremente encetaram a jornada, saberão que esperança não é mero sinônimo de conformismo ou otimismo á toda prova. Esperança é fruto da confiança de quem sabe que Deus cumpre o que promete.

Sempre! Este culto ecumênico pode tornar-se um pequeno sinal de livre e confiante esperança. E cada um de nos poderá, cotidianamente, erguer mais outro sinal, outra seta indicadora do alvo, nas margens do caminho. Deus derruba barreiras para que possamos encontrá-lo. E todo aquele que resolutamente destruir um pedaço da muralha, no sentido de encontrar seu irmão neste mundo, terá concretizado mais um ato de fé.

(www.luteranos.com.br/conteudo/hebreus-11-1)

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Gênesis 11.1-9

Exaudi

A Bíblia não trata apenas das relações entre Deus e cada pessoa - a história da humanidade também é um tema da Escritura Sagrada.

O relato da torre de Babel começa com uma  visão universal harmônica: toda a humanidade formando um bloco unido - e o traço de união é a língua comum, o idioma único, a capacidade total de comunicação. Essa descrição inicial -  assim Deus tinha imaginado o mundo quando o criou -  assim Deus tinha imaginado a comunhão entre a família humana, quando a criou. Para isso Deus tinha confiado a totalidade de sua criação aos homens - para que juntos construíssem o mundo, a vida, a civilização.

* * *

Mas - a dissonância que destrói a harmonia de uma humanidade unida. Por quê? Por que é desprezado, rejeitado e destruído o presente dessa comunhão? Afinal de contas, Deus tinha preparado o terreno. O homem foi criado para criar, inventar, descobrir. O homem foi criado para realizar alguma coisa nesta vida - em nome de Deus - como cooperador com Deus - como representante de Deus junto a todas as outras coisas criadas.

Mais ainda: o homem é a criatura mais próxima de Deus. Por isso, toda cultura, toda a ciência, toda a arte também

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são uma forma de louvar a Deus, de dar culto ao Criador. Sim, tudo isso corresponde à intenção de Deus - assim foi planejado o destino humano por Deus.

Só que o homem resolve fazer tudo isso de que é capaz - sem Deus. O homem resolve ser seu próprio deus. A atividade humana passa a ser exercida para substituir Deus, para assumir o lugar de Deus. Em vez de serviço prestado a Deus e ao próximo, o homem passa a encarar suas realizações como auto-glorificação.

* * *

Um momento de humor: Deus resolve ver de perto a construção.

* * *

A dúvida, a incerteza e o medo - durante a própria glorificação: edifiquemos uma torre que alcance os céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra.

Antes do juízo de Deus - o medo de serem espalhados. Por quê? Porque quando o homem perde a ligação com Deus, nada mais existe que possa unir a humanidade entre si. O homem sem Deus acaba perdendo a solidariedade com os outros homens. O homem sem Deus é também o homem solitário. E todas as tentativas de criar falsas solidariedades não conseguem apagar esse medo de que tudo será disperso. São experiências falidas, condenadas ao fracasso, porque a ligação é artificial e mentirosa. (Ex: a propaganda, a ideologia e a ditadura.).

* * *

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A atualidade de Babel - um retrato de nossa vida!

União enquanto houver interesses (comerciais, por exemplo). Depois - concorrência ou inimizade.

A sociedade de grupos, onde dominam o medo e a desconfiança. A linguagem do homem que não fala mais com Deus - as mesmas palavras significando coisas opostas.

Em vez de comunicação, a palavra torna-se instrumento para disfarçar os verdadeiros pensamentos.

* * *

Existe solução? É possível mudar essa situação? Como é que se sai do isolamento?

Sempre que alguém ou um grupo de pessoas conseguir sair da separação e da desconfiança - para realizar a reconciliação. Não é preciso tentar roubar o lugar de Deus: isso é uma façanha inútil. Porque esse Deus me ama, tem interesse por mim. Na cruz do Cristo, esse Deus tomou minha vida sobre si. Quando isso acontece, um pedacinho de reconciliação acontece no mundo dividido em que vivemos. Um pouquinho de entendimento começa, no meio da confusão.

* * *

Pentecostes!

Não confiar nos milagres dos grandes homens - nem no poder dos grandes.

A obra de aproximação entre os homens começa pequena e devagar. Quando meu coração e teu coração reencon-

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(www.luteranos.com.br/conteudo/genesis-11-1-9-3)

56 tram a mora da do Pai!  A oração pela unidade. Estamos entre os que colaboram na verdadeira reconstrução? Essa pergunta encerra o destino de nossa vida!

DISCÍPULOS

Mateus 10.7-15

Através daquilo que Jesus realiza — e através daquilo que seus discípulos realizam — acontece o Reino de Deus.

Quer dizer: os discípulos de ontem e de hoje nada mais fazem do que participar do trabalho do próprio Jesus. Os discípulos de ontem e de hoje repetem, imitam, refletem todos aqueles gestos do Senhor — que edificam e concretizam o Reino de Deus neste nosso mundo. Assim como Jesus não se limitava a transferir para o futuro (ou para o céu!) a verdadeira solução de problemas concretos da vida humana — também seus discípulos não podem se atrever a só consolar e iludir as pessoas — com vagas promessas de que. no além, tudo vai melhorar. Não! (Aliás, essa é a atitude mais fácil.)

Presença de Jesus é a presença do Reino de Deus. E a atividade dos cristãos, no mundo, é uma atividade típica do Reino de Deus. E é por isso, — só por isso! — que o mundo  não pode continuar a ser o vale de lágrimas, o mar de sangue, o poço de injustiças que é! E o mundo certamente não continuará a ser só isso. A presença do Reino de Deus no mundo, se traduz, se expressa através de uma série de acontecimentos bem palpáveis e visíveis: os enfermos são curados, mortos são ressuscitados, uma boa e nova mensagem é levada aos pobres. É como se os discípulos tomassem o pincel e fossem colorindo os palavrões escritos num muro, num mictório público. É como se tornassem a borracha para apagar todas as crueldades e mentiras escritas numa carta maldosa.

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No entanto, a borracha nem sempre apaga tudo. Com o que chegamos ao problema central dessas palavras de Jesus: Onde estão sendo curados os doentes — hoje? É verdade que os pobres estão ouvindo uma novidade agradável — ou só resta a demagogia do Pró-terra? E quando é que acontecem, afinal, as ressurreições de mortos — hoje? Onde acontecem?

São Perguntas incômodas. Porque, de fato, o Evangelho não faz e não admite divisões diferenciações entre prédica, diaconia, evangelização e missão. É tudo uma coisa só, no fundo: dar testemunho e — curar um leproso. Assim como a salvação trazida ao mundo inteiro — o que o mundo tem a receber é salvação toda! Não existe, nunca existiu uma separação entre corpo e alma, uma distinção entre sagrado e profano, uma diferença absoluta entre material e espiritual. Isso só existe para pagãos. Para cristãos, Evangelho quer dizer: salvação inteira para o homem todo.

Assim sendo, as palavras de Jesus  não resolvem necessariamente nossos problemas. Podem até torná-los mais urgentes, mais agudos.

Onde e quando acontecem os sinais da presença do Reine de Deus? Dizer que tudo isso não acontece mais porque a fé se tornou morna — ou porque, a Igreja ficou gelada — ou porque a confiança morreu — é a resposta mais fácil e mais mentirosa. Os que falam assim também não conseguem ressuscitar os mortos — mas aproveitam para baixar o cacete em cima de todos os outros (descontados amigos do peito, claro!).

E por que isso é mentira? Porque não poucas pessoas dedicaram uma vida inteira para que tivéssemos os atuais progressos na medicina e na farmacologia, as bênçãos da técnica, as facilidades dos meios de comunicação. Quem

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não consegue acreditar que Deus seja capaz de realizar milagres através de um médico, de um cientista, de um técnico, de uma mãe — também não acredita em Deus. Essa é que é a verdade!

Mas ainda há outra observação mais importante a fazer: Os discípulos são enviados para todos aqueles lugares críticos — onde seres humanos são desenganados — onde as situações parecem sem saída — onde não há mais esperanças. Em outras palavras: os discípulos de ontem e de hoje são enviados por Jesus, para realizar aquilo que não podem — aquilo que é grande e difícil demais.

Para quê? Para ficarem desanimados? Para ficarem na fossa? Não! Jesus não é bobalhão. O que os discípulos de ontem e de hoje precisavam aprender é que o Senhor — só o Senhor! — nos dá — nos dá! — a capacidade de realizar — impossível. Ali, onde o homem — onde o mundo está mais ameaçado do que nunca — é posso lugar! Toda vez que nós dizemos: Oh! isso foi sempre assim — não muda mesmo! — nesse momento estamos confessando que as piores porcarias são — todo-poderosas e eternas. Bom, e essa confissão de fé — também é uma porcaria!

* * *

Jesus nos convida a uma coisa diferente: a não aceitarmos as circunstâncias, as situações, assim como se apresentam.

Jesus nos convida a lutar por todas as modificações necessárias. Por isso, a verdadeira oração, o verdadeiro testemunho, a verdadeira esperança só podem existir exatamente no lugar do sofrimento, da desgraça, da maldade e da infelicidade.

Tudo isso exige mobilidade. Por isso o discípulo vai de um

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lugar a outro. Por isso o discípulo não se preocupa demais com a quantidade de ouro, roupas e calçados, que possui. A preocupação do discípulo é bem outra: como dar dinheiro, roupa e calçado a quem não os tem?

Mobilidade, por outro lado, quer dizer: liberdade, Discípulo é aquele que se tornou capaz de tornar distância de si mesmo. E verificar que é que ainda o prende, o compromete. Claro, seria muito mais fácil proibir isso e aquilo. E bom número de gente que se diz cristã e evangélica, fica proibindo isso e aquilo. Serão realmente livres, esses apóstolos e discípulos das proibições? Terão, realmente, paz?  ***

Com isso chegamos às conhecidas sacudidas do pó das sandálias (vv. 14 e 15).

Honestamente, não posso informar a ninguém quando será a hora de sacudir o pó dos pés. Porque aquele que não aceitar hoje a palavra de Jesus, talvez a ouça e aceite daqui a vinte anos! Quem poderá saber isso, de antemão?

Mais ainda: quem de nós pode ter certeza absoluta de que já ouviu, já aceitou e já está vendo o Evangelho?

Sejamos modestos: deixemos Sodoma e Gomorra para o juízo — que pertence a Deus.

Deixemos de lado a fácil tarefa da condenação. E fiquemos com a tarefa menos fácil — mas muito mais bela! — de dar de graça aquilo que Jesus nos deu de graça.

Amém.

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(www.luteranos.com.br/conteudo/discipulos-mateus-10-7-15)

61 Juiz de Fora, 18-7-1971

Mateus 13.44-46

9º. Domingo após Trindade

Em cada resultado de loteria - Ah, se eu tivesse ganho... O mesmo - emprego novo e excelente - negócio especialmente sucedido...

A comparação de Jesus: Reino e tesouro escondido num campo. Não é difícil imaginar tudo o que o lavrador sentiu ao encontrá-lo. No entanto, logo de salda: tesouro oculto.

A gente pode dizer: isto é uma árvore, um auto. Ninguém pode dizer: isto é, Deus. E o que incomoda alguns é precisamente essa falta de publicidade, que Deus faz. Deus não usa relações públicas... Pelo contrário: Deus entrou em nosso mundo pela porta dos fundos. E isso não tem nada de espetacular. Aliás, a imensa maioria da humanidade entra na vida pela porta dos fundos - e fica lá no quartinho dos fundos até morrer. Jesus também ficou por essa área: consolando os que choravam, tomando crianças nos braços, estendendo a mão aos ignorados pela sociedade. E não ha dúvida de que os pobres, os doentes, os miseráveis nunca se encontram nas avenidas por onde desfilam as excelências. O lugar deles é outro. Claro, às vezes encontra-se miséria num gabinete atapetado de diretor executivo. Uma miséria chamada solidão.

E por que Deus em Cristo nunca quis avançar até a sala de visitas, até o saguão das recepções? Justamente para que cada um de nós - mesmo que atolado no pior dos abismos - pudesse encontrá-lo - e saber que Ele, o Cristo, é um dos nossos, é nosso irmão mesmo. Como excelência triunfan-

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te, como astro do sucesso - Deus em Cristo não poderia ser nos se Deus. Se ele  só tivesse desfilado por esse mundo - nosso lugar seria  atrás dos cordões de isolamento, espiando por cima dos ombros da guarda de segurança...

Por isso mesmo, Jesus, foi um filho de carpinteiro como tantos outros. Por isso mesmo, Jesus morreu - como todos nós teremos de morrer um dia. Até mesmo os mais bacanas têm uma faceta menos brilhante, nesta vida. Naquele aspecto em que cada um de nós é pobre, ali onde tentamos esconder nosso ponto fraco (que ninguém compreenderia!) - ali temos uni irmão que se chama Jesus.

Um tesouro escondido num campo. Talvez muitos estejam simplesmente passando por cima, sem notar. Em compensação, o mais pobre de todos  pode encontrá-lo. E agarrá-lo com as mãos - essas mesmas mãos que já fizeram tanta coisa miserável! podemos até receber esse tesouro em nossas bocas - bocas fechadas para tanta palavra de consolo - bocas tão escancaradas para soltar outras palavras. Se a terra, o chão não eram sujos para esconder o tesouro, nossas mãos e lábios não o serão também. Porque o amor de Deus não é seletivo nem antisséptico...

Mas que campo é esse, onde está escondido o tesouro? Não é outra coisa que o lugar onde vivo a minha vida. Ou onde desperdiço minha vida. Ou onde trabalho. Ou onde vegeto. Nós apreciamos ruas asfaltadas em nossa vida. No entanto, é muito possível que estejamos mais próximos do tesouro oculto nos trechos mais esburacados da estrada. Afinal, a experiência é bem conhecida:  após a crise (na família, na profissão, na fé) percebemos, de repente, que nossa vida se tornou tão mais rica... O camponês de nossa história também teve de vender tudo quanto possuía - para poder ad-

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quirir aquele campo, que continha inesperada riqueza. Para a gente ter uma ideia do que significa esse tudo, basta imaginar a cara dos parentes e conhecidos. Ah, os comentários: o sujeito ficou maluco! - Lembram-se daquele outro episódio, envolvendo um jovem rico?

Esse é o outro aspecto melindroso da parábola de Jesus.

Ninguém encontra Deus em liquidação, a preços remarcados. É impossível querer o Reino de Deus, aproveitando a queima geral para acabar com o estoque. Tudo na vida tem o seu preço. Deus também!

Acontece que, nesse ponto, não devemos cometer nenhum equívoco. Pode ser que o Reino de Deus venha a custar tudo - inclusive minha própria vida, em caso extremo. Agora, o Reino de Deus não é  só  renúncia. A fé nunca foi o mesmo que cara azeda. Pelo contrário: o homem que vendeu tudo o que tinha, fez isso transbordante de alegria. Por quê? Por que quando eu encontro o amor da minha vida - quando eu descubro o amigo que ficou a meu lado - quando eu sinto realização naquilo que faço - todo o resto fica em segundo plano. Ou não? É assim... A gente vê a vida com outros olhos... Assim como o lavrador nem pensava mais na qualidade ou produtividade daquele campo. Porque sabia que, tendo o tesouro nas mãos, todo o resto estaria garantido. A maior bobagem que nós cometemos em nossa vida é essa mania de nos contentarmos com um pouquinho. Um pouquinho de Deus, um pouquinho de religião, um pouquinho de família. E esquecemos que, com essa mania, acaba restando também só um pouquinho de vida... E vejam: Jesus disse uma vez - Eu vim para que os homens tenham vida - e a tenham em abundância: Possivelmente a segunda parábola mostra muito bem o que isso significa.

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Deus é o negociante e conhecedor de pérolas. E qual é o sonho maior de um conhecedor e colecionador de pérolas?Qual é o sonho maior de Deus? É encontrar a pérola de valor excepcional. Nosso Deus é um Deus que procura constantemente. E para adquirir essa joia nosso Deus deu tudo - deu Seu Filho.

Cada ser humano, não importa em que condições, é essa jóia, aos olhos de Deus. Isso é o que qualifica o ser humano - além de todos os outros critérios e opiniões. Isso é o que pode e deve ser a alegria maior de nossa vida: sabermos que somos criaturas amadas por Deus.

Deus não nos troca - por nada. Nossa vida será maior, mais realizada e mais completa, no dia em que não trocarmos mais nosso Deus por meia dúzia de tostões. Amém.

(www.luteranos.com.br/conteudo/mateus-13-44-46-3)

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Mateus 22.15-22

Reforma

Às vezes, até os fariseus têm razão. Às vezes, até os hipócritas e fingidos dizem a verdade. Às vezes, até os queiros têm de reconhecer que é Jesus Cristo. Sabemos que és verdadeiro, franco, sincero, honesto. Sabemos que ensinas o caminho de Deus de acordo com a verdade - sem te preocupares com quem quer que seja - pois não olhas a categoria das pessoas. No caso, mão interessa tanto a intenção desses alcagüetes - que só estavam querendo espionar, para depois denunciar a Jesus. O importante é que até os inimigos de Jesus são obrigados a reconhecer que estão diante de um homem livre, tão livre que até rebenta a armadilha que preparam para enredá-lo. Tão livre que até anula e desmascara a mentira dos falsos elogios. Essa liberdade só pode existir em Cristo, através de Cristo, e pelo poder de Cristo. Essa liberdade se chama Reino de Deus. E só quem guardar isso muito bem na cabeça, vai conseguir compreender o resto.

Por outro lado, mesmo que alguém não esteja lá muito relacionado com Jesus, o assunto dos impostos e tributos é bem atual. E aí está: o assunto Jesus Cristo sempre está ligado à vida que a gente leva. E o bate-papo entre Jesus e aquela cambada de fofoqueiros que foi fazer provocação, trata de uma realidade que faz parte de nossa vida: César. Concretamente, a turma estava se referindo ao imperador romano, Tibério. Tibério, o senhor de todo o mundo conhecido de então, o césar que subjugava a todos.

Mas é bom não esquecer que césar é o símbolo de todos

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os tempos e lugares. César é o mesmo que poder. César é quem tem o direito porque tem a força. César é quem usa o direito da força porque é o mais poderoso, em algum lugar, em qualquer lugar deste mundo. César é quem governa para o bem do povo - ou pelo menos afirma que está fazendo isto. César é capaz de modificar formas e métodos ao infinito - mas continua sendo César. César pode ser uma pessoa - ou algumas pessoas. E a gente lê seu nome em todos os jornais, ouve pelo rádio, vê na televisão. César pode ser muito visível e individual, como nas ditaduras, p. ex. César pode ser mais coletivo e mais anônimo, como nas chamadas democracias. César pode ser um benfeitor - e Tibério gostava de ser chamado assim. E césar pode ser um tirano. E o mesmo césar que hoje quer a paz, poderá iniciar a guerra de amanhã. César é tudo isso. E em tudo isso, césar quer a obediência e a participação dos cidadãos.

E então se levanta a pergunta: é lícito, é correto, é permitido participar de tudo isso? Participar diretamente? Ou participar como quem observa em silêncio? Por outro lado: que vale nossa pequena vida sem importância - em comparação com a vida de césar, que decide os rumos, os destinos de um povo ou de todos os povos?

No episódio narrado pelo Evangelho, existe um detalhe que faz pensar. Essa pergunta - É permitido? - é feita por gente que Jesus chama de hipócritas. Que é um hipócrita? Hipócrita é quem faz de conta. O hipócrita sempre está perguntando uma coisa para ficar sabendo outra. Essa gente que queria saber se era correto pagar tributo ao tirano - tinha muito interesse na questão, mas por motivos completa mente diferentes. Os fariseus odiavam a césar e os herodianos praticavam aquilo que se chamava puxassaquismo. E eis que, curiosamente, diante do Cristo, amigos e adver-

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sários de césar se juntam e fazem juntos a mesma pergunta: uma pergunta falsa, uma pergunta hipócrita. Porque cada grupo já tinha decidido por si. O interesse se concentrava na resposta de Jesus - porque Jesus era um homem livre - e a liberdade incomoda os que não são livres... Fariseus e herodianos precisavam acabar com essa liberdade. Se Jesus respondesse: é permitido: - os fariseus podiam comemorar seu triunfo diante de todos: Ele é um traidor do povo! Se Jesus dissesse: Não é permitido - os herodianos podiam confirmar a denúncia: Ele é um agitador contra as autoridades! Para isso se juntaram amigos e inimigos de césar: para apagar a incómoda verdade de Jesus. E por isso era hipócrita a pergunta.

Será menos hipócrita a mesma pergunta - em nossas bocas ou cabeças? Aqueles que entre nós são defensores ou adversários de césar, não fazem a mesma pergunta?

A mesma história do Evangelho apresenta outro detalhe que faz pensar: Jesus  não responde a pergunta. E não responde porque nenhuma pergunta hipócrita merece resposta. A verdade nunca precisa dar satisfação mentira - assim como a liberdade nunca pode existir no meio de escravos.

Jesus diz bem outra coisa. Jesus faz um convite para que seus perguntadores se libertem da hipocrisia e deem o passo decisivo para dentro da verdade. E Jesus faz esse convite pedindo que alguém mostre a moeda que todos tinham no bolso.

E quando aparece a moeda - aparecem muitas outras coisas mais. Todos pertenciam a césar - assim como césar participava da vida de todos eles. Ninguém podia comprar e vender, trabalhar ou gozar a vida - sem a moeda de cé-

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sar no bolso. César significava toda uma estrutura de vida. O simples fato de viver significava um reconhecimento de césar. E assim como toda moeda tem duas faces - todos eles estavam envolvidos pelos lados bons e maus de césar, pelas luzes e pelas trevas de césar. César não é uma coisa afastada e neutra - sobre a qual se pode conversar ou silenciar. Não. César está muito próximo de todos nós, no bem e no mal - na justiça e na injustiça. Assim como suas moedas estão no bolso de todos nós.

César somos nós. Nossas necessidades é que tornam césar necessário. Nossas paixões e instintos é que determinam a — força e o poder de césar. Nossa maneira de pensar e de viver se refletem no modo de césar governar e agir. Sim: vamos ler o jornal! Vamos assistir à TV. As notícias contam aquilo que césar faz ou deixa de fazer. E aquilo que nos espanta, nos alegra, nos horroriza; aquilo que nos faz participar ou protestar - aquilo somos nós. Aquilo é nosso retrato. É por isso que não nos resta outra alternativa do que dar a césar o que é de césar. Porque ninguém pode apagar a própria sombra! E agora que abrimos o envelope, podemos entender o convite de Jesus: dai a Deus o que é de Deus!

Acima de césar, acima de nós mesmos, acima dessa mistura de coisas certas e erradas, de coisas justas e injustas, a cima das exigências de césar e acima de nossa obediência à césar - está um outro. Um outro que é o Senhor de césar e por isso o verdadeiro Senhor de todos nós. Deus é quem decide o que está certo e o que está errado. Deus é quem determina o que é permitido e o que é proibido.

Dai a Deus o que é de Deus! Dai a Deus a gratidão porque Ele nos ampara e nos protege, dia após dia, neste pobre mundo de césares. Dai a Deus louvor porque Ele nos per-

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doa, dia após dia, neste mundo onde só se elogia a césar. Dai a Deus vosso coração. Vosso coração e vossa consciência não pertencem a césar. Dai  a Deus somente a honra e a glória. Dai a Deus vossa vida. Porque ninguém pode se alugar ou ar rendar a césar. Dai a Deus aquilo que nenhum: césar aprecia: vossa pobreza, vossa doença, vossa miséria. Deus aceita tudo isso.

Dar a Deus o que lhe pertence significa viver na verdade, entrar no reino da verdade.

Dar a Deus o que lhe pertence, significa viver na liberdade. Até mesmo na liberdade de negar a césar o que não lhe pertence. Por exemplo: podemos e devemos orar por césar. Mas não podemos nem devemos adorá-lo.

Há 450 anos, na presença do imperador, dos príncipes e das autoridades eclesiásticas, um simples monge resolveu arriscar a vida, para não matar a própria consciência. Para ser obediente a Deus somente, rebelou-se contra tudo e contra todos. Quem quiser dar a Deus o que é de Deus, terá de correr um risco semelhante. Em compensação, o Cristo que nos faz este convite, é o único que pode nos dar verdade e liberdade para isso. Amém.

(www.luteranos.com.br/conteudo/mateus-22-15-22)

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DIA DA BÍBLIA

O Senhor falava a Moisés face a face, como alguém que fala com seu amigo. -  Êxodo 33.11

A palavra — amigo — Deus é chamado amigo de Moisés, de Abraão: amigo de seu povo Israel. — Jesus, no momento em que era preso, chama o traidor Judas de amigo, assim como costumava chamar todos os discípulos de amigos meus. E é nesse sentido que podemos entender suas palavras: Não existe amor maior do que dar a própria vida em benefício dos amigos.

Por aí compreendemos que duas coisas caracterizam a amizade: a conversa sem reservas, a troca sincera de ideias — e os atos de amizade, que podem tornar-se tão concretos, a ponto de custar uma vida.

Ouvimos, antes, que Deus falava com Moisés como alguém que conversa com o amigo. E lembramos que não era diferente a maneira de Jesus conversar com seus discípulos. Essa intimidade, essa proximidade dá o que pensar. Porque, de repente, notamos que nosso Deus  não é uma divindade superior e absoluta. Notamos que nosso Deus não é inacessível ou difícil de tratar. E notamos que nosso Deus em Cristo, faz muita questão de entrar em contato conosco. Deus insiste em iniciar uma conversa de amigo conosco. Aquilo que chamamos de palavra de Deus não é outra coisa do que essa conversa de Deus conosco...

E é nesse ponto que muitos se engasgam, tropeçam e param. O que é fácil de imaginar também. Os irmãos já pensaram, uma vez: quantas palavras. quantas conversas, quan-

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tos discursos são feitos e ditos e pronunciados por dia — em JF, no Brasil e no mundo? uma coisa que ninguém pode ou sabe calcular. Mas que é muito, isso é! No meio de todas essas palavras e discursos, existem os inesquecíveis, os que permanecem, porque foram bons, porque ajudaram iluminaram, consolaram. Existem as palavras inesquecíveis porque magoaram e separam. Existem discursos que cansam e fazem dormir — assim como palavras boas se perdem, são ditas no ar. No meio de tudo isso, que sentido tem a palavra de Deus — a palavra de Jesus a seus amigos?

Não há dúvida de que a palavra de Deus também encontra ouvidos surdos e corações empedernidos. Para esses, ela caiu no vazio, foi dita ao vento. Mas o mais importante, na palavra de Deus, é que ela se identifica com aquele que fala. Jesus não usava apenas palavras: Jesus é a palavra que fala. Não se podem separar as coisas, não se podem fazer distinções. E é por isso que, quando Jesus fala sobre o mundo, os homens e Deus — tudo isso tem uma relação com o próprio Jesus. Esse o motivo por que Jesus diz: Eu sou a luz do mundo, eu me dou para a vida do mundo. E porque Jesus tem a ver com Deus, com o mundo e com os homens — por isso é que toda a nossa vida é tão sacudida, tão atingida por sua palavra. Aquilo que Jesus diz continua penetrando na vida de todas as pessoas, em todos os lugares. E, de repente, Jesus mesmo está em todos esses lugares. E é por isso que em todos os lugares alguma coisa acontece com as pessoas e com o mundo das pessoas, quando Jesus fala. Mas vamos relembrar: é a palavra, é a presença de um amigo conosco. Assim é que essa palavra, muitas vezes, vai significar o auxílio de que alguém necessita, para não cair, para não ficar sozinho, para não afundar. Outras vezes, essa palavra será dura como a verdade e violenta como um soco no olho. Não são os bons amigos que nos dizem

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a verdade? Quem mente pode ser um amigo verdadeiro? Jesus não nos ilude. Jesus coloca as coisas como elas são. Porque ele quer ser um caminho que possa ser usado — e não um atalho que leva na direção errada. Jesus quer ser a verdade de nossa vida — porque ninguém consegue construir uma vida inteira sobre a mentira (seja no matrimônio, na instrução, na profissão, na política, na igreja, seja onde for!) E Jesus quer dar e quer ser a nossa vida. Como pessoas ou como povo, como igreja ou como nação nós não temos outra saída, quando a escolha é — vida ou morte.

Nós todos somos gente muito diferente (origem, capacidade, fé, situação social, realizações, destino). Mas, diante da palavra de Jesus nós todos nos tornamos muito iguais, tremendamente, assustadoramente iguais: nós todos somos gente a quem está sendo oferecida a vida (e não a morte!). Oferta de um amigo. E nós sabemos que não podemos garantir nossa vida. Sabemos o valor e o significado dessa ligação de amizade com Jesus. Sabemos que estamos guardados e protegidos por esse Jesus — pela palavra desse Jesus — até mesmo quando a vida terminar.

Hoje é o Dia da Bíblia. Dia que nos lembra onde encontramos a palavra de Deus, a palavra de Jesus. Dia que nos relembra onde encontrar a palavra do amigo que quer conversar conosco sobre tudo o que acontece nesta nossa pobre vida. Jesus quer continuar o diálogo conosco.

Por isso: tempo (que foi dado e que se pode dedicar), aceitemos a humanidade dessa palavra (a Bíblia é sagrada, mas não é divina!), sofrer com essa palavra e vencer por ela (ouvindo, lendo e testemunhando), ser sinceros com essa palavra de um amigo (e dizer a ele quando duvidamos ou não entendemos ou não gostamos).

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Quem não desistir dessa experiência, vai colher bons frutos naquela última hora, difícil e solitária. Talvez não haja mais forças para dizer. Mas será possível lembrar: O Senhor é meu amigo. E agora que estou atravessando o vale da sombra, da morte, não tenho medo. Porque sei que também nesta hora tu estás comigo.

Volte a usar sua Bíblia, irmão! Aquelas velhas-novas sempre novas palavras são ainda mais necessárias que o ar que respiramos. Não se impressione muito com as muitas palavras que são ditas por dia neste mundo.

Fique com as palavras do amigo Palavras que dizem tudo sobre Deus o mundo e os homens Palavras que dizem tudo sobre nossa vida.

(Juiz de Fora — 12-12-71)

(www.luteranos.com.br/conteudo/dia-da-biblia-xodo-33-11)

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VELHO E NOVO

Quanto a mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus deposito minha confiança, para proclamar todos os seus feitos. - Salmo

E então, que é que restou do Natal? A festa acabou, o comércio fez ou não fez suas vendas — e um ano novo vem aí. Claro, alguns vão engatar uma festa na outra. E depois da passagem do ano, vem a certeza da ressaca. Entendam bem: não estou pensando na ressaca alcoólica. Existe uma outra: a certeza de que em janeiro tudo acabou e passou. Como um sonho. Sonhos podem ser até bem agradáveis. Mas não se pode viver só de sonhos. A pior ressaca vem quando a gente calcula: já passaram tantos natais, tanto fim-de-ano já foi comemorado — mas o mundo continuou o mesmo. Pior ainda: eu continuei o mesmo — apesar de todas as promessas e bons propósitos...

A gente está mesmo falando no pior — e vem o homem que escreveu o Salmo 73 e fala daquilo que é bom: bom é estar junto a Deus. E todo o Evangelho do Natal nos anuncia justamente que Deus está junto de nós. Mas a pergunta que logo se levanta é esta: Como é que Deus está perto, junto de nós? E por que isso é bom?

Para que a questão não pareça idiota, vamos partir para um exemplo. Todos conhecem o Morro do Imperador. Ninguém duvida que esse morro exista, com monumento, mirante e torre de TV. É agradável saber que o morro está lá, que se pode ir lá ou então dar uma olhadinha daqui debaixo. Ago-

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ra, para nossa vila não é decisivo que esse morro exista. Se ele desaparecesse, por qualquer motivo, seria aquela sensação. O Diário da Tarde nem teria letras suficientemente grandes para anunciar o fato. Mas três dias depois, um novo assassinato seria mais importante e mais interessante. E o assunto teria acabado. Nossa vida não teria sido atingida pelo desaparecimento do morro. Bem, acontece que o Morro do Imperador continua no mesmo lugar. Ele existe. Mas não mexe com nossa vida diária. Pronto.

Para muitas pessoas, Deus é assim como o Morro do Imperador. Se um sujeito chega e diz: Essa conversa de Deus é piada Tudo conversa fiada. Isso é negócio de Igreja — e negócio bem rendoso — essas pessoas ficam horrorizadas. E protestam. Essas mesmas pessoas também são capazes de admirar aqueles que dedicam toda uma vida a Deus. E quando vem um desses sermões que falam de um herói da fé, essas pessoas ficam todas arrepiadas — e dizem que o pregador falou muito bem... Mas também é só. A vista do Morro do Imperador é sua vida? — Bom, quer dizer, é linda! Ah é? Mas qual é o papel que o Morro desempenha, o que é que eu tenho a ver com o Morro, uai?

O Evangelho do Natal nos diz que Deus está perto, junto de nós, assim como uma pessoa amiga fica ao nosso lado, na hora difícil. No entanto, será que isso é bom? Será que nós achamos isso bom? Afinal de contas, nós podemos evitar a presença de qualquer pessoa. Podemos afastar-nos, esconder-nos fugir. Mas a experiência da vida nos ensina que é impossível escapar de Deus. Em qualquer direção que a gente for, sempre se acaba tropeçando na manjedoura ou na cruz. Isso é bom?

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A primeira impressão que se tem, é que isso é perigoso. Porque toda a nossa vida diária é uma única tentativa para colocar Deus lá no Morro do Imperador. Ele fica lá — e eu vou dar uma voltinha na rua Halfeld. Ele fica lá — e eu vou resolver meus negócios Ele fica lá — e eu vou matar aula ou tomar um trago ou dar dinheiro pra mulher fazer mais um aborto, etc. Ele fica lá — e eu vivo minha vida aqui. Ele fica lá -- e eu vou ao meu culto. Antes do culto, durante o culto e após o culto, eu estou pensando bandalheira — e ele fica lá. A gente separa direitinho o campo: Deus pra lá e eu pra cá. Essa separação se chama pecado. É uma parede inútil que nós edificamos. Mas o triste é que construímos essa parede inútil com as próprias mãos.

O Evangelho do Natal nos informa que Deus atravessa a parede, que Deus derruba a parede para estar ao nosso lado. Isso pode ser motivo de alegria, e por isso o Natal é uma festa. Por outro lado, os tijolos da parede demolida por Deus caem sobre nossas cabeças, e por isso o Natal é uma festa séria! Uma festa urgente! Uma festa que lança a pergunta: É bom que Deus habite entre os homens? É uma festa que exige resposta: Você acha bom que Deus esteja frente a frente de você?  _____________

E você retruca: Mas estará Deus tão próximo? Se Deus estivesse junto de nós, seria tão gostosa a vida dos canalhas?

Se Deus estivesse mesmo perto de nós, poderia haver tanta injustiça, tanta maldade, tanta mentira? Poderia haver tantas vítimas da fé, do amor, da verdade? Se Deus está perto, por que é que ele silencia? Vale a pena viver, diante de tanta luta perdida, depois de tantas decepções?

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Meu irmão, você tem razão quando faz todas essas perguntas. Você tem razão quando reconhece que janeiro acaba com todas as boas intenções e com todos os sonhos. Ninguém pode acabar sozinho com todos os seus pecados. E ninguém pode responder sozinho a todas as questões que a vida nos coloca. Mas você não tem razão, se ficar parado neste ponto. Porque Deus está bem perto de você, junto de você, na escuridão do pecado e na angústia das questões abertas, sem resposta. Deus quer estar conosco naqueles momentos e naqueles lugares em que ninguém mais nos acompanha.

Se a gente só fica olhando para si mesmo, a vida não tem mais saída. O importante é saber que podemos olhar também para Deus. Assim como somos e vivemos. Sem disfarces nem desculpas. E se Deus derruba a parede, por que não depositar nele a confiança? Por que não fazer essa última experiência, já que todo o resto falhou?

A Bíblia é muito humana. O homem que escreveu o Salmo 73 tinha as mesmas dúvidas e experimentou as mesmas angústias que nós. Porque era uma pessoa como nós. Assim sendo, por que não repetir as palavras dele? Por que contentar-se com boas intenções e sonhos e ilusões, que não duram todo o janeiro? Por que não confiar em Deus, que dura o ano inteiro e todos os anos?

Nós não sabemos o que vai nos acontecer em 72. Ninguém sabe. Alguns estão prevendo coisas ótimas — e outros imaginam o pior. Mas todos sentem o mesmo medo! Agora, quem está com Deus, talvez ainda sinta algum medo, mas não afunda mais no medo. Porque pode confiar. O que faz uma grande diferença. Qual é a diferença?

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Coloco minha confiança no Senhor, para proclamar os seus feitos. Meus irmãos: deixemos de ser consumidores de religião. Deixemos de nos satisfazer apenas com o Deus para nós. Isso é que torna vazia a vida de tanta, gente. Em vez disso, pensemos naqueles que só enchem a cara, que só sabem ler horóscopos, que têm medo como nós. Esses também estão procurando, também estão perguntando. Sejamos comunidade para os outros, para essas pessoas. Nós podemos ser uma comunidade assim. E por isso devemos sê-lo. Também em 72.

(Juiz de Fora -- 31-12-71)

(www.luteranos.com.br/conteudo/velho-e-novo-salmo-73-28)

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João 4.31-38

4º. Domingo após Epifania

Entre os 40 e 50 anos as pessoas geralmente começam a fazer um balanço de suas vidas. E um olhar ao passado mostra que, nesta vida, seguidamente colhemos alguma coisa do que semeamos. Justamente ao fazer essa revisão de vida, lamentamos algumas semeaduras. E não são poucos os que gostariam de começar tudo de novo.

Por outro lado, é o olhar lançado ao passado que nos vai mostrar quanta semente boa também foi lançada - e não germinou. Quase todos conhecemos o imenso esforço gasto em prol de uma causa - e os escassos resultados...

Por que isso? Exatamente porque, na vida, ninguém semeia nem colhe sozinho. A vida de cada um  sempre está relacionada, entrelaçada, interligada com a vida de outros, muitos outros. São as circunstâncias de nossa vida combinadas às circunstâncias de outras vidas que determinarão muito, quase tudo, na semeadura e colheita de atos praticados e suas consequências.

A partir desse fato, cada um deveria aquilatar, avaliar seus sucessos. Atrás dos acertos de cada um, geralmente encontramos o trabalho prévio de vários outros. E a partir dessa constatação, deveríamos considerar os fracassos e culpas do próximo. Porque o pecado quase sempre um fenômeno coletivo. Se nem todos são culpados de tudo - o certo é que todos somos culpados, diante de todos. Viver é conviver. E a convivência implica numa solidariedade total, nos bons e nos maus momentos.

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Esses fatos da vida de cada um e de todos - são aplicados por Jesus à atividade de seus discípulos. Os discípulos, nós, a Igreja, somos gente enviada, gente que tem uma tarefa. E curiosamente, nessas palavras de Jesus, nossa tarefa não é comparada à semeadura, e sim, à colheita. Por que essa inesperada comparação? Estará tudo pronto, tudo feito? Não. Jesus compara nossa missão a uma colheita, justamente para que lembremos uma coisa muito importante: que antes de nosso trabalho, antes de nossos êxitos ou fracassos, antes de nossa dedicação ou nossa realização - existe aquilo que Deus já fez, existe um começo, um fundamento lançado por Deus, existem todos aqueles que já foram Igreja, foram, discípulos - antes de nós.

Essa visão global da vida e do testemunho cristão impede toda e qualquer soberba. Impede a estreita visão do só hoje. E permite que lembremos aqueles a quem devemos muito. Ao mesmo tempo mostra nosso compromisso em relação ao futuro. As relações entre tradição e inovação, na Igreja, ficariam mais claras, mais compreensíveis, se lembrássemos que entramos (fomos introduzidos!) no trabalho de outros... Que, portanto, vivemos da dedicação, do sacrifício de outros. De outros ao nosso lado – e de outros que nos antecederam.

Contudo, não é só isso que Jesus lembra a seus discípulos. Jesus diz mais: que nossa tarefa só será realizada com alegria, na medida em que a compreendermos como vontade e obra do próprio Deus. Em outras palavras: o cumprimento de nossas esperanças, a realização de nossos planos, nada mais são do que dádiva. Dádiva semeada por Deus. A pertinácia às vezes amarga com que alguns perseguem certos objetivos, a maneira tensa e contraída com que avançam para o alvo - nada mais representam que fanatis-

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mo. E o fanatismo nunca é alegre. Deus, o semeador, quer que nós, os ceifeiros, nos alegremos com Ele. O semeador quer Se alegrar com os que colhem.

Com isso, Jesus está lembrando o mais importante: para Deus semeadura e colheita acontecem ao mesmo tempo. Não existe prazo, não existe espera, entre uma coisa e outra. A ação de Deus acompanha nosso trabalho - assim que para nós, só existe a decisão do momento presente. Para nós só existe a atualidade decisiva: o tempo da colheita chegou, nada mais há a esperar. Esse é o sentido das palavras: v. 36 - Nós não somos apenas cristãos para cumprir uma tarefa. Não: é através do cumprimento da tarefa que nos tornamos, cada dia, sempre de novo, verdadeiros discípulos. A própria aceitação da tarefa, a própria integração em nosso trabalho já inclui a recompensa, o fruto. Ninguém vive para trabalhar, para comer, para isso ou aquilo. Pelo contrário: é trabalhando, comendo, fazendo isso ou aquilo que estamos vivendo. Assim também ninguém é cristão para garantir a vida eterna. Pelo contrário: é vivendo o discipulado, é cumprindo a missão, é realizando a tarefa, desde já, que nos encontramos na verdadeira vida - que os evangelhos chamam de vida eterna.

Só quem compreender sua existência diária como vida eterna, ficará livre do triste resultado de um balanço aos 40 ou 50 anos de idade. Porque Jesus não nos convida a esse tipo de avaliação. Jesus nos convida para uma tarefa, junto com outros. Tarefa na alegria de Deus e com Deus. Tarefa que introduz a eternidade no cotidiano. Nenhuma outra coisa da rá sentido maior à nossa vida. E nenhuma outra coisa poderá tornar mais alegre nossa vida.

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(www.luteranos.com.br/conteudo/joao-4-31-38-1)

83 Este culto, esta comemoração da ceia do Senhor não pretendem ser outra coisa do que a mão estendida de Deus:
passo decisivo, numa vida mais plena.
para que demos o
Amém.

A TENTAÇÃO

Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o SENHOR Deus tinha feito, disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do Jardim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis, nem tocareis nele, para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal. Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu, e deu também ao marido, e ele comeu. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram cintas para si. Quando ouviram a voz do SENHOR Deus, que andava no jardim pela viração do dia, esconderam-se da presença do SENHOR Deus, o homem e sua mulher, por entre as árvores do Jardim. E chamou o SENHOR Deus ao homem, e lhe perguntou: Onde estás? Ele respondeu: Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo e me escondi. Perguntou-lhe Deus: Quem te fez saber que estavas nu? Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses? Então disse o homem: A mulher que me deste por esposa, ela deu da árvore, e eu comi. Disse o SENHOR Deus à mulher: Que é isso que fizeste? Respondeu a mulher: A serpente me enganou, e eu comi. - (Gênesis 3.1-13)

A história que acabamos de ler: descrição de fenômeno

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(acontecimento) humano. Enquanto existirem pessoas neste mundo, essa história vai se repetir continuamente. Porque é uma história que fala de culpa e castigo. Todos os homens falham, erram, praticam o mal. E todos os homens colhem as consequências, os resultados do mal praticado. Se a gente quisesse dizer em poucas palavras o assunto da história que acabamos de ouvir, podia-se resumir da seguinte maneira: assim são as pessoas! Todas as pessoas!

E por que as pessoas erram, falham, fracassam? Por que é que aquele sujeito teve de fazer uma coisa dessas? Por que é que eu sou assim? Não só na minha função de pastor, mas especialmente nestes nove anos de pastorado, eu tenho tentado compreender as histórias de muitas vidas humanas. Algumas dessas histórias são verdadeiramente espantosas. No fundo, sempre a mesma roda viva: se não é o dinheiro, é o sexo; se não é sexo, é a língua que não pode parar: se não é a língua é qualquer vício. Mas voltando atrás no tempo e na recordação, ninguém queria causar prejuízo ao bolso do outro; ninguém queria mudar de cama e de casa; ninguém queria manchar a honra alheia; ninguém queria se tornar um escravo de ninguém nem de nenhuma coisa. E se ninguém queria, como é que aconteceu? Aconteceu e acontece, minha gente, porque a vida é diferente das novelas de TV. O capeta nunca aparece na frente da gente, com rabo e chifres, dizendo :Como é que é, meu? Seja homem!

Na vida, em geral, tudo começa com uma conversa macia, e simpática. Por exemplo: Mas, meu amigo, nós só o estamos convidando para uma reunião de oração. É claro que você não precisa deixar sua igreja. Nós estamos desejando que você enriqueça sua vida espiritual. Você vai ter grandes bênçãos. Venha ouvir os testemunhos inspiradores do missionário. Venha contar sua experiência com Cristo, — Todos

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devem reparar, no texto do Evangelho que o tentador só usa versículos bíblicos, para passar a conversa em Jesus. —

Nenhuma tentação da vida é grossa, direta, boçal. Pelo contrário: a primeira máscara da tentação sempre é religiosa.

Ou então o papo é lógico: Vamos pensar com calma, rapaz, afinal você é inteligente. O seu corpo é seu, você tem corpo é para usar; não vai deixar enferrujar, né mesmo? Quando seu sangue começa a esquentar nas veias, quem é que botou esse sangue em você, heim, heim? Não foi Deus? É uma coisa muito natural! Que é que você está esperando?

Pois é: E quem é que não embarca num papo desses? Vejam e recordem estas frases: O pessoal que vai à igreja não é melhor que os outros, bem pelo contrário — Eu rezo em casa e Deus também está perto de mim — Eu acredito em Deus, respeito todas as crenças, acho que todas as religiões são boas — Aquela senhora muito simples, mas muito cem por cento, faz tudo em nome de Deus; quando ela me benzeu até falou em Jesus — Pois é, consultei mais de cinco médicos e nenhum me curou; fui duas vezes lá na dona Coisa e tal — sãozinho! — E por acaso Deus quer que a gente só pense nos outros? Deus também quer que a gente cuide um pouco de si, uai. Nós todos conhecemos esse tipo de conversa. É conversa fiada até o momento em que toca num ponto fraco da gente. A tentação nunca procura acabar com tudo de uma vez. A tentação sempre se fixa naquela uma fruta daquela uma árvore proibida.

E quando alguém pensa: Ora, uma vez só — só aquele tiquinho — começa a roda viva.

Todos nós temos lugar para Deus em nossas vidas. Nós até é gostamos, em geral, de ver Deus passeando no terre-

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no de nossas vidas. Mas lá atrás de algum verde, sempre tem alguma coisa escondida, só uma. E lá, naquele ponto, nós não queremos Deus. Deus pode exigir tudo de nós — menos aquilo. Sim, e se aquilo fosse uma questão de vida ou morte? Se justamente aquilo pudesse arruinar minha vida ou a vida de outros? Afinal, com fogo não se brinca! É perigoso abusar de Deus! Mas para isso a tentação também tem resposta: Você leva as coisas muito a sério. Desse jeito você vai arruinar seu fígado! Vai pegar úlcera no estômago! Vamos lá, deixa de biscoito... Ninguém morre assim no mais! Tem tanta gente que ainda nem conhece o cavanhaque do pastor — e continuam vivendo por aí.

E tem mais: Se Deus não permite mais nada de bom, nesta vida, então Deus também não pode ser bom! — Os irmãos percebem: Quando a dúvida se instala na gente, todo o resto e uma questão de tempo. E então alguém morre, depois de uma longa e cruel enfermidade. E alguém pergunta no velório: Se Deus é bom, como é que ele pôde permitir uma coisa dessas?

A dúvida é a segunda máscara da tentação. Porque a dúvida destrói a confiança. Quando alguém começa a levantar, a semear, a espalhar dúvidas, está matando a confiança. Por isso é que a Bíblia diz que a difamação é o mesmo que um assassinato. Tudo começa com um cochicho. Um pequeno gesto, uma fruta só. Uma coisinha de nada.

Sim, no começo era uma coisinha de nada. No fim, de repente, vem a hora da vergonha e do medo. No começo, a gente achava que tinha o direito de fazer e deixar de fazer. No fim, de repente, a gente só pode ainda se esconder. A gente nota que está nu. Nu e descoberto, diante de Deus e diante dos outros. E sempre chega o momento da verda-

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de, nesta vida. Aquele momento em que não adianta mais tentar tapar o sol com a peneira.

Não adianta? Mas a gente pelo menos tenta. É uma técnica bem conhecida: a gente empurra a culpa pra cima dos outros. Na hora, do erro, do pecado, nós nunca queremos estar sozinhos. Nós procuramos cúmplices. A maldade precisa se espalhar, como erva daninha, como doença contagiosa, como o mau cheiro da coisa podre. Mas quando a bomba explode, quando começa o salve-se quem puder, um atira a batata quente pra cima do outro.

E quando todos escapam, resta uma última acusação: A desgraça toda começou com esta mulher. E quem é que colocou esta mulher no meu caminho, na minha vida? Não foste tu, Deus? A história toda começou com aquela tentação, com aquela uma fraqueza. E quem é que me fez assim? Não foste tu, Deus?

O último jogo de empurra, em nossa vida, sempre acaba assim: Deus é o culpado. Deus tem de ser o culpado. Nós sempre queremos ser os pobres inocentes. As vítimas.

Os irmãos notam; a história de Gênesis, cap. 3 não é só uma história besta e conhecida, de Adão e Eva, e a cobra e a maçã. No fundo; é a história da vida de todos nós. É a história de nossa vida aqui (em Juiz de Fora).

Ainda precisamos perguntar por quê?

(Juiz de Fora — 20-2-72)

(www.luteranos.com.br/conteudo/a-tentacao-genesis-3-1-13)

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Marcos 9.14-29

Invocavit

Situação constrangedora a dos discípulos: procuraram ajudar, curar o jovem epiléptico. - e não conseguiram.

Situação semelhante a da Igreja: necessidades urgentes de todos os lados - mas os cristãos não conseguem oferecer auxílio eficaz. Em vez disso, ou por causa disso, nascem as discussões - amargas, intermináveis, às vezes inúteis.

De qualquer modo não podemos fechar os ouvidos à crítica de fora: a Igreja falhou, os cristãos fracassaram.

Jesus também não cortou a discussão. Sua primeira pergunta é justamente para saber por que tinha nascido a discussão. Jesus sabe ouvir. Jesus faz questão de ouvir. Jesus se interessa pelo garoto, pelo pai, pela doença. Jesus leva a sério um caso de doença, qualquer caso de doença. Jesus olha para o sofrimento de uma vida, de qualquer vida, de todas as vidas.

Quer dizer: em alguns casos não é suficiente assinalar, na Mordomia, apenas o quadrinho orar para missão da Igreja.

Em alguns casos, para que essa oração se torne verdadeira, honesta, completa, será preciso participar da ação social...

Seja como for, na multidão que discutia, escutava ou apenas olhava o que estava acontecendo, certamente havia muitos que também oravam. (Discípulos!)

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No entanto: gente incrédula! Por Quanto tempo ainda terei de aguentar vocês? Até quando terei de suportar vocês?Palavras duras, pelo menos para os discípulos!

E  nós? Não temos seguido a impressão de que nós  é que toleramos a Jesus? Não é frequente a ilusão de que estamos fazendo tanto, até o impossível, pela Igreja? Essa falsa impressão, essa ilusão que gostamos de alimentar - é radicalmente cortada pelas palavras, gente incrédula!

O espanto e a surpresa da multidão, a vontade de só discutir dos doutores da lei e a incapacidade de curar dos discípulos - tudo incredulidade!

Todos aqueles que em todos os tempos e lugares insistem em fazer e estabelecer diferenças de valor entre as pessoas, deveriam meditar sobre essa nivelação: gente incrédula.

Mas Jesus não rejeita incrédulos - essa é a outra verdade que não pode nem deve ser esquecida. No meio de toda aquela gente sem fé, havia também um pai capaz de dizer: mesmo que os discípulos não conseguiram nada, talvez o Mestre possa fazer alguma coisa...

E seu pedido é modesto: se for possível, ajude-nos! Tenha pena de nós!

Novamente Jesus fala. Agora não se ouve mais a cortante severidade de antes. Porque Jesus tem compaixão. Se é verdade que todos são incrédulos, também é verdade que todos precisam de ajuda.

O homem diz: se for possível...

E Jesus replica: tudo é possível para quem crê, para quem confia.

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E então, só então, só depois de ter ouvido a palavra libertadora de Jesus - palavra que ajuda mais do que muitas discussões - só então aquele pai, aquele homem, foi capaz de dar sua resposta. Só então ele faz a mais bela, a mais curta, a mais humilde, a maior profissão de fé de que um homem é capaz: - eu creio, ajuda-me na minha falta de fé. Eu acredito, mas ainda tenho dúvidas, eu quero ter confiança, mas ainda desconfio às vezes, eu quero crer, talvez eu consiga crer, - mas ajuda-me, em todo caso, ajuda-me.

Para Jesus isso já é suficiente. Para Jesus isso basta. Jesus não decepciona aquele comecinho de fé. Jesus não despreza aquela confiança cheia de angústias e perguntas. Não foi preciso a fé que movimenta montanhas, para que o poder de Deus se demonstrasse vigorosamente. Até quando a falta de fé grita por auxílio, Jesus estende a mão. E quando todos acham que o menino morreu, Jesus o põe novamente de pé.

A violência da enfermidade e o fracasso dos discípulos só puderam demonstrar uma coisa: a vitória do poder de Jesus. Assim como a violência da cruz só serviu para demonstrar a vitória da ressurreição.

Por que os discípulos falharam? Por que fracassam os cristãos, tão seguido?

Jesus responde: esse tipo de espírito só pode ser expulso por meio da oração.

Se alguém não souber orar, comece assim: eu creio, Senhor, ajuda-me na minha falta de fé!

(www.luteranos.com.br/conteudo/marcos-9-14-29)

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Isaías 42.1-8

Reminiscere

Deus mesmo apresenta seu servo a seu povo exilado.

No entanto, quem escutou bem terá percebido o contraste estranho e nada comum:  esse servo nos é apresentado como sé fosse um rei, um governante com poderes excepcionais. A apresentação é solene. Mas o apresentado é um servo, um servidor, um criado, um escravo! Como entender uma coisa dessas?

A nomeação, a proclamação desse servo do Senhor acontece no momento crítico, no beco sem salda de uma longa história. O povo de Deus, Israel, tinha conhecido muitos e grandes servos. No começo temos a figura de um libertador: Moisés - o homem que guiou e conduziu um povo da escravidão é opressão para a terra prometida. A seguir, os juízes assumem a tarefa de manter o povo livre numa terra livre. Nenhum deles seria um dominador, pois todos sabiam: só o Senhor domina sobre seu povo.

E então foram ungidos os reis em Israel. Por fim, durante o reinado brilhante de uns e lamentável de outros, levantam-se as vozes dos profetas. Profetas não são adivinhado res. Sua função, em Israel,  não era a de fazer previsões: Sua mensagem é sempre a palavra de Deus, anunciada para dentro de determinado momento. A palavra profética, em Israel, revelava sempre uma vontade: a vontade de Deus. Por isso mesmo os profetas foram figuras incômodas para o povo, para as autoridades e até para a religião estabelecida. Porque não é raro que a palavra de Deus po-

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nha em dúvida justamente as coisas bem arrumadinhas, bem arranjadas. A palavra de Deus, quando é realmente de Deus, costuma levantar as tampas de certas panelas, de certos estojos, de certas consciências. E nem sempre é agradável o cheiro que sai...

Seja como for, o povo de Deus conheceu líderes dedicados e líderes fracassados, conheceu pontos altos e derrotas estrondosas, foi fiel mas também soube ser extremamente acomodado. E todos os acomodados são infiéis!

Mas a infidelidade também tem o seu preço. E um dia terminou, para Israel, o governo próprio, o templo e a religião estabelecida.

As palavras que ouvimos, a apresentação do servo de Deus aconteceu no exílio, onde s6 existiam alguns restos de povo e restos de religião. No meio da bancarrota total, no meio das ruínas, Deus apresenta seu servo, seu escolhido, a quem Ele, Deus, sustenta, aquele sobre quem Deus colocou seu Espírito.

E que faz esse servo do Senhor, no meio da crise?

A pergunta é bem atual para nós. Mas talvez a resposta nos deixe desiludidos.

Porque esse servo do Senhor não veio para  resolver a crise de Israel. Pelo contrário: sua tarefa, sua missão é a de  retomar tudo aquilo que tinha sido confiado ao povo de Deus. Sua função consiste em apanhar o que tinha fracassado, em tomar aquele sofrimento amadurecidoe passar para os gentios, para os outros povos.

Os talentos, as dádivas confiadas a uns, as cargas e do-

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res suportadas por um povo escolhido e amado, passam a ser  patrimônio de toda a humanidade. Tudo o que cresceu e se acumulou durante a longa história da salvação - é dado de presente a todos os homens.

Os irmãos já notaram como tudo isso é lindo? Como alarga a visão?

Aqui em Juiz de Fora há uma porção de gente querendo converter uns aos outros: Passa pra  minha Igreja! Lá tem muito mais espiritualidade! As pessoas são mais consagradas:...

Os irmãos já notaram como essa outra coisa, agora, é  nojenta? Como é  estreita? E por que é nojenta e estreita? Porque é uma atitude mundana disfarçada de espiritual. Todo espírito de separatismo e concorrência, também na religião e nas igrejas, não passa de mundanismo e pecado. No campo da economia e da política encontramos essa mesma nojeira e estreiteza disfarçada em idealismo. Ex: russos e americanos estão matando gente, há mais de dez anos, no Vietnã. Os dois Vietnãs - um pouco mais da metade de Minas...

Russos e americanos estão jogando, há anos, os árabes contra os israelenses. Israel = 28 vezes em Minas.

Quer dizer: a  mesma cobiça em certas potências e certas igrejas. O mesmo  egoísmo em certos políticos e certos pastores. Em vez de resolverem os grandes problemas da humanidade, há discussões em torno de um pedacinho de terra. Em vez de evangelizarem uma população, ficam caçando e pescando membros uns dos outros.

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Por que tudo isso, afinal?

Porque a mensagem e a tarefa do servo de Deus assustam.

Porque a mensagem e a tarefa do servo de Deus são muito concretas, muito terra à terra. Esse servo apresentado como rei vem para decretar o direito e a justiça entre todos os povos. Ele não vai desanimar enquanto não houver direito e justiça na terra inteira. O servo de Deus é luz para os povos, abre os olhos aos cegos (até mesmo daqueles que não querem ver!), ele tira gente das prisões, ele liberta os que estão atirados na escuridão de todos os cárceres do mundo.

E como é que o servo de Deus faz isso? Sem propaganda e sem alto-falantes. Ele faz tudo isso indo ao encontro de todos aqueles que já foram condenados pelas absurdas leis dos homens. Quer dizer, ele não acaba de esmagar a cana que já quebrou; ele não termina de apagar o pavio que ainda está fumegando. Ali, onde a sociedade e a religião estabelecidas e acomodadas já deram a sentença final, ali onde não vale mais a pena, ali o servo de Deus faz o novo começo.

Compreendemos agora quem é esse servo? Jesus!

Compreendemos por que tanta oposição? A cruz!

Então - o fim da estreiteza e da falsa espiritualidade. O começo da visão mais larga - a Ceia, onde Ele nos serve.

Amém.

(www.luteranos.com.br/conteudo/isaias-42-1-8)

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Lucas 9.51-56

Oculi

Jesus está a caminho da Galileia para Jerusalém, onde se consumirá seu destino, segundo a vontade do Pai. Entre a Galileia e Jerusalém situa-se a Samaria. A população local é mestiça e segue uma religião sincrética, misto de judaísmo e paganismo. Os judeus os desprezam. E, coisa comum entre os homens, a resposta a esse desprezo traduz-se em ódio e amargura. Muitos judeus, ao viajarem entre a Galileia e Jerusalém, preferiam o longo desvio através da Transjordânia, para evitar as hostilidades da população samaritana.

Jesus não toma conhecimento dessas hostilidades. Como sempre, aliás. E atravessa a Samaria, ocorrendo então o episódio que acabamos de ouvir. Jesus envia mensageiros que o antecedem para garantir a pousada, pois ele vem com os doze discípulos e provavelmente alguns outros seguidores. É um grupo grande que necessita de hospedagem em várias casas. Os mensageiros batem portas e solicitam coisas simples, rotineiras no Oriente: um teto, um espaço para se deitarem, um pouco d’água... É tudo! Então começam a perguntar: donde? Para onde? E basta que informem estar a caminho de Jerusalém a fim de comemorar a Páscoa judia - já se obscurecem os semblantes. Não mantemos relações com quem vai ao encontro de nossos inimigos! E as portas fecham-se com estrondo. Isso aconteceu uma, duas, três vezes. Então os mensageiros sacodem o pó de suas sandálias e voltam para junto de Jesus, a fim de informar: recusam-nos pousada.

Se a narrativa terminasse nesse ponto, seria parco o con-

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teúdo evangélico desse Evangelho que temos a proclamar, no culto. E apesar disso, o relato não nos seria menos instrutivo. Seria instrutivo como exemplo clássico de preconceito - diria mesmo do preconceito tapado - que desempenha papel tão ponderável entre os homens. Pois essa gente da aldeia samaritana não se volta propriamente contra Jesus de Nazaré. Se assim fosse, seria a história de uma decisão pró ou contra o Senhor e Cristo. Mas, ao que tudo indica, nem o conhecem. Só sabem que se dirige ao lugar onde vivem seus inimigos.

Isso é tudo! E não pode ser sequer superado pelo mais elementar dos sentimentos típicos de uma comunidade aldeã: a curiosidade. Afinal de contas, não é todos os dias que uma coisa dessas ocorre numa aldeia da Palestina. Não se trata de uma família, com marido, mulher e filhos, que estivesse de passagem. O que se anuncia é todo um grupo, ligado a um mestre aparentemente conceituado. Seria presumível que a aldeia ficasse sequiosa de saber que espécie de rabi é esse e que teria a dizer. Mas não! O homem dirige-se para o lado oposto - é o suficiente!

Creio que conhecemos o fenômeno em nossa atualidade. Não faz muito, podia-se fazer experiência semelhante na Baviera. Bastava que alguém se hospedasse em uma pensão e as pessoas percebessem que se tratava de um evangélico. Na manhã seguinte aparecia o proprietário, dizendo: lamento muito, mas não posso hospedá-lo. Isso me arranja dificuldades com o revmo. pároco e toda a aldeia. Por obséquio, queira procurar outro hotel.

Tempos atrás recebemos cartas de fugitivos, da Renânia, por exemplo, que se queixam: somos os únicos evangélicos num lugarejo católico; ninguém nos vende qualquer coisa, pessoa

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alguma quer ajudar-nos; ajudem-nos a mudar daqui!

Nos Estados Unidos, um negro - só porque é negro - não está apenas impedido de conseguir moradia em bairro habitado por brancos. Basta que os sulistas percebam determinado matiz em seus olhos, indicador de miscigenação na família!

A reação é imediata: você não pode morar aqui, nigger. Não lhe adianta de coisa alguma! E em nosso meio? Geralmente se trata do partido político. Se o filho se decide pelo partido oposto, o pai rompe relações. Quando as opiniões políticas divergem, cessam as amizades por mais proveitosas que tenham sido. As distinções políticas implicam um abismo.

(www.luteranos.com.br/conteudo/lucas-9-51-56-1)

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TESTEMUNHAS

Hebreus 11.35b-40

O capítulo 11 de Hebreus, cujo final acabamos de ouvir trata especialmente de um assunto: a fé.

Mas logo de saída a gente tem uma surpresa: a carta aos Hebreus não apresenta uma longa doutrinação sobre o que seja a fé. Não se descobre nenhuma teoria sobre a fé. Pelo contrário: o capítulo 11 de Hebreus fala sobre a vida de muitas pessoas bem diferentes entre si. Mais ainda: a vida dessas pessoas é considerada como testemunho. Quer dizer: são vidas que falaram através de atos — e que continuam falando a nós, hoje. Assim sendo, não sou eu que estou construindo uma mensagem. Minha tarefa consiste, apenas, em a mensagem que se reflete na vida daquelas testemunhas.

E quem foram essas pessoas, essas testemunhas? Entre outras, temos a figura de Abel, aquele que foi morto pelo irmão. Abel continua falando mesmo depois de morto. O sangue de Abel, o sangue de todos os inocentes continua clamando a Deus. E Deus ouve. Os assassinos de pessoas inocentes também ouvem. Por isso e que se tornam pessoas inquietas, medrosas e fugitivas. A carta menciona

Abraão, Isaque e Jacó, homens que ouviram o chamado de Deus obedeceram, homens que ouviram a promessa de Deus e confiaram. Toda a vida deles foi uma peregrinação, uma caminhada por terras estranhas. Se puderam ver e sondar a promessa de longe. Gastaram uma vida procurando a pátria. E continuaram confiando. Até hoje eles

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são o símbolo de quem precisa partir sem saber aonde vai e o que acontecerá depois. E a carta descreve a vida de Moisés, o homem que rejeitou os prazeres e riquezas da família real do Egito, preferindo ser maltratado junto com seu povo, o povo de Deus. E por isso ele se tornou o libertador de seu povo — e pode conduzi-lo para fora da terra da escravidão, rumo a terra prometi da. Para grande susto e espanto dos moralistas, essa relação de pessoas inclui também uma prostituta, Raabe. Essa mulher salvou a vida de homens de povo de Deus, escondendo-os em sua casa e enganando os perseguidores: Sim, recebi fregueses, mas eles a foram embora.

E a carta aos Hebreus diz que isso fé. Essas pessoas e tantas outras agiram dessa ou daquela maneira porque confiaram em Deus. Nós não ficamos sabendo se todos podiam explicar tudo que faz parte da doutrina, não se afirma também que foram heróis da piedade e da vida santa, a única coisa que se repete e isso : essa gente fez o que fez pela fé, porque creram, porque confiaram. E justamente porque confiaram, continuam falando a nós, hoje. Estão mortos há milênios, mas sua voz continuará a ser ouvida, mesmo depois que outras vozes que hoje enchem o mundo com sua gritaria, tiverem silenciado para sempre.

E por uma segunda razão continuam falando hoje: essas pessoas tão diferentes tiveram sucessores, seguidores, imitadores de sua fé, até hoje. Quando nós cremos, quando nós confiamos em Deus, estamos rodeados de uma nuvem de testemunhas. E de novo não se trata de gente especial, excepcional, heroica. De novo a carta aos Hebreus fala da vida como ela é — e da morte como também pode ser.

As testemunhas a nossa volta são os torturados, aqueles

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de quem se zomba, os presos, os condenados à morte, por causa de sua fé. E mais uma vez fica bem claro: a fé não é tanto uma questão de acreditar nisso ou naquilo. Fé não é tanto uma questão de saber isso ou aquilo bem direitinho. Fé é principalmente uma questão de vida. Ter fé é uma maneira de viver.

Viver como? Viver como peregrino, como quem não tem um lugar certo. Viver sem acomodação. Viver sem segurança. A vida de quem tem fé, muitas vezes será a vida cheia de necessidades, aflições e até maus tratos. Isso não significa que os pobres e miseráveis e sofredores da terra devam cantar aleluias e achar que assim e que deve continuar. Quem acha que uns devem estar por cima e que outros precisam continuar por baixo, nesta vida, não é bem a Bíblia: é outro tipo de pessoas. São aqueles que produzem a miséria, são os responsáveis pela necessidade e pelos maus tratos que pensam assim.

A vida de quem crê e confia pode passar por tudo isso também, é claro. No entanto, a vida da fé ainda conhece e experimenta outra miséria, outra aflição, outra angústia: e que nós ainda estamos a caminho. Nós também somos peregrinos. Nossa jornada ainda não terminou. E às vezes a gente cansa. Às vezes vem a fraqueza. Às vezes a gente não aguenta mais e quer ver a terra prometida, quer ver a concretização da promessa. Que adianta comemorar domingos de Ramos, se ainda não podemos saudar nosso Rei e entrar com Ele na cidade? De que adianta comemorar uma vida inteira o Natal, a sexta-feira da Paixão, a Páscoa, se nos outros dias tudo parece tão igual e tão vazio?

No meio do vazio, no meio da angústia e da dúvida, meus irmãos, pensemos um pouco nas testemunhas que confia-

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ram. Que confiaram antes de nós. Que continuam confiando a nossa volta. Nosso tempo tem muito mais testemunhas do que se imagina: nos muitos lugares onde pessoas são perseguidas e mortas, por causa da cor de sua pele, existem cristãos que confiam no dia em que a justiça triunfará — e trabalham por essa justiça. Nos muitos lugares onde pessoas são torturadas e mortas porque pensam diferente dos ditadores, existem cristãos que confiam no dia em que a liberdade chegará — e lutam por essa liberdade. Nos muitos lugares em que pessoas são maltratadas e afligidas por causa --de sua fé, existem homens que confiam no dia em que a verdade vencerá e se esforçam por essa verdade.

Sim, são muitas as testemunhas conhecidas e desconhecidas, em nossos dias. E por isso podemos crer, confiar e esperar. Crer arriscando! Confiar trabalhando! Esperar lutando! Todas as testemunhas do passado e de hoje — todas as testemunhas do mundo são nossa família, nossos irmãos. Mesmo sendo poucos, não estamos sozinhos.

E ainda um último motivo para nos alegrarmos, para nos sentirmos solidários até com desconhecidos irmãos: eles não alcançaram a concretização da promessa — para que nós não fôssemos excluídos. Deus também pensou em nós. Nós também fomos contados e incluídos na promessa de Deus. Quer dizer: ninguém pode se salvar sozinho! Sem nós, os que confiaram antes de nós, também não alcançaram a perfeição. Sem eles, nós não podemos ter outra esperança diferente ou melhor.

Até o fim dos tempos, os que viveram antes da cruz e os que vivem agora, depois da cruz, encontram-se na mesma situação: esperando o dia em que a promessa se tornará realidade visível e concreta. O dia em que a fé vai acabar

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porque os olhos de todos poderão ver a chegada e a vitória de Cristo. Vitória que vai acabar com toda tristeza e escravidão, miséria e necessidade. É pensando nesse dia que mais uma vez vamos iniciar uma semana de vida e de fé, rumo à Sexta-feira Paixão. É pensando nessa jornada que nos preparamos para a Santa Ceia. É meditando nisso que podemos comemorar a Páscoa. Amém.

(www.luteranos.com.br/conteudo/hebreus-11-35b-40-testemunhas)

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Lucas 23. 33,39-48

Paixão

Se alguém perguntasse quais são as grandes comemorações da Igreja, a resposta seria simples: são os momentos marcantes da vida de Jesus Cristo. É por isso que a sexta-feira da Paixão é comemorada. Vamos, pois, refletir juntos sobre a morte de Jesus - e para participarmos de modo bem pessoal dessa morte, depois, ao tomarmos a Santa Ceia.

Quer dizer: estamos colocados, agora, diante da cruz. E de um jeito ou outro, vamos reagir diante dessa cruz.

Não é a primeira vez que homens se encontram diante da cruz do Cristo. Na primeira vez, as reações, as atitudes, as opiniões, diante daquela cruz, foram as mais diversas e variadas possíveis. E essa variedade de reações foi se repetindo, através dos tempos. Não seria milagre se, neste culto, se encontrassem de novo todas as diferentes reações, atitudes e opiniões.

A atitude mais cruel, mais estúpida e mais burra é a da multidão. O povo estava lá, parado, olhando. E quando tudo passou, a multidão bateu no peito e se retirou. Foram embora com um gosto muito vago de remorso, de quase arrependimento. Uns dias atrás a mesma multidão tinha aclamado, elogiado, louvado Jesus. Depois, as mesmas bocas exigiram, aos berros, que Jesus fosse condenado à morte. E quando alcançaram o que desejavam, foram assistir ao espetáculo de sua execução. Hoje, aliás, alguns privilegiados vão assistir à repetição teatral da mesma coisa, pela TV a cores. Nós estamos falando de uma atitude. E

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essa atitude meio apática, passiva, de quem está lá, parado, olhando - é a mesma coisa de quem está sentado, porque na Sexta-Feira Santa de hoje, a gente vai fazer higiene espiritual e botar a consciência em dia, por mais alguns meses. Essa atitude indecisa, acomodada, de quem não está bem certo daquilo que faz, ë a pior de todas.

É pior que a atitude das autoridades e dos soldados que zombavam e escarneciam. Porque estes pelo menos agiam conscientemente. Para eles Jesus era um louco com mania de grandeza. Do ponto de vista deles, eram até bem honestos: onde é que já se viu? Esse sujeito pretende ser filho de Deus, o Cristo - e, no entanto, não consegue nem salvar a si mesmo! Uma coisa dessas não se entende. Esse homem não é normal!

E houve mais uma reação bem interessante, no fim, quando tudo tinha passado. Foi a atitude do centurião: Este homem foi realmente um justo. O centurião também não conseguia entender bem o que estava acontecendo. Mas ele percebia que aquele condenado tinha sido executado sem motivo, sem culpa. O centurião começava a adivinhar a verdade: estava a um passo da fé.

Até agora, ainda não falamos das atitudes de duas personagens situadas no centro dos acontecimentos. São duas atitudes bem opostas, as mais opostas, em relação a Jesus. Trata-se dos dois malfeitores.

Um deles gritava, no meio de seu sofrimento: Então, você é o Cristo? Então trate de salvar-se e aproveite para salva-nos também!

Eu não sei se alguém entre nós alguma vez sentiu simpatia pelas palavras desse malfeitor. Em todo o caso, essa mis-

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tura de dúvida, desconfiança e desespero, é muito nossa: Se Cristo é Deus, se Deus é todo-poderoso, se existe um Senhor do Universo - então que cure o meu câncer, arranque-me das dificuldades financeiras, resolva meu problema de família, dê-me aprovação no exame, salve-me da vergonha, arranje-me um casamento. Se você é Deus, no duro, dê um jeito na minha vida e nos meus problemas!

Nunca falamos assim? Nunca pensamos assim?

De repente fica bem claro que nós estamos bastante próximos desse malfeitor; que nós, de certo modo, até nos identificamos com ele. Ele é nosso irmão. Nosso irmão em nossa falta de fé! Nós sentimos a mesma coisa porque temos um sentimento em comum com ele: nós não reconhecemos nossa culpa. Nós não gostamos de examinar, nua e cruamente, a verdadeira situação de nossa vida. Nós achamos que Deus não nos apoia. Mas quando batemos pé e exigimos que Deus dê um jeito, que Ele quebre o galho - no fundo, bem no fundo de nós mesmos, pouco nos interessa se Deus é Deus, se Cristo é Cristo. O que importa sou eu. O que importa é que eu seja salvo, que eu consiga sair do aperto. Assim também se pode reagir diante da cruz...

O outro malfeitor faz uma coisa rara: ele censura o companheiro. Reconhece que os dois estão colhendo os resultados de seus atos assim como quem semeia ventos colhe obrigatoriamente tempestades. O outro malfeitor reconhece simplesmente que Jesus não fez mal algum. E se atreve a pedir: Jesus, lembra-te de mim, quando fores para o teu reino.

Esta é a outra reação possível, diante da cruz: Ele não fez mal algum - nós merecemos o castigo. Quer dizer: aquele segundo malfeitor olha para Jesus, para o companheiro de

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sofrimento - e começa a notar que alguma coisa está errada em tudo aquilo. Se Jesus foi condenado injustamente - então quem é esse Jesus? Será verdade o que se diz dele? Então ele talvez possa ajudar-me. Não custa tentar: Lembra-te de mim, Jesus!

E de toda aquela gente, tanta gente que estava em volta rindo, abusando, blasfemando, gritando, dizendo coisaseste malfeitor condenado é o único que recebe uma resposta de Jesus: Hoje estarás comigo no paraíso.

Que quer dizer este hoje? E que é o paraíso? Onde fica? Não sei. Ninguém sabe. O importante também não é isso. Todo mundo que começa a explicar essas coisas - está fazendo hora com os outros.

O importante na resposta de Jesus é isso: Você está perdoa do. Você tem culpa, nem há dúvida. Mas você reconheceu essa culpa. E resolveu confiar totalmente em mim. Isso é o que basta. Vem comigo. Para sempre.

* * *

E agora voltamos ao começo.

Estamos todos diante da cruz.

Qual é a nossa reação? Nossa atitude?

É a da multidão? Do centurião? Das autoridades? Do primeiro malfeitor? É a do segundo?

* * *

Gostaria de lembrar que daqui a pouco vamos celebrar

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juntos a Santa Ceia. E então a pergunta volta. Porque no pão e no vinho Deus oferece o perdão a qualquer pessoa que se aproximar da mesa do Senhor. Trata-se de uma oferta direta, pessoal, a cada um em particular. Uma oferta que se sente até o gosto. A oferta do perdão.

Aquele corpo pendurado na cruz, aquele sangue que escorreu, conquistaram esse perdão para nós. Por isso celebramos hoje aquela morte.

* * *

E então a pergunta volta: Qual é a nossa reação diante do Cristo que morreu na cruz?

Não venha à Ceia do Senhor quem reage com a multidão, no seu comportamento passivo e acomodado.

Não venha à Ceia do Senhor quem reage com as autoridades, na sua atitude de zombaria e descrença.

Não venha à Ceia do Senhor quem reage com o primeiro malfeitor na sua mistura de desespero e sarcasmo.

Não venha à Ceia do Senhor quem reage com o centurião, apenas adivinhando coisas pela metade.

Mas venha à Ceia todo aquele que tiver coragem de analisar, examinar, sondar sua vida, pensamentos e atos. Venha quem puder confessar: sou pecador; mereço castigo. Venha quem estiver disposto a jogar a última cartada, a última chance, o último lance: quem espera tudo, tudo mesmo, daquela cruz: Jesus, lembra-te de mim!

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Amém.

(www.luteranos.com.br/conteudo/lucas-23-33-39-48)

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Quem vier assim, pode estar certo de que ouvirá a mesma resposta: Você está perdoado; venha comigo.

RESSURREIÇÃO

Lembra-te de Jesus Cristo; ressuscitado de entre os mortos.

(2 Timóteo 2.8)

A fé dos cristãos consiste unicamente na ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos. E na ressurreição de Cristo já teve início nossa própria ressurreição, já foi antecipada, anunciada, garantida. Tudo o que os cristãos antes de nós viveram, experimentaram, creram, amaram e sofreram jorrou dessa única fonte: a ressurreição de Cristo. Toda a vida cristã — e isso significa: toda a ação cristã — é faísca desse um fogo, é reflexo que parte desse um centro: a ressurreição de Cristo. E a vida só é mesmo vida na medida em que crermos na ressurreição. Acreditar, pode-se acreditar em muitas coisas. Coisas que até podem ser bonitas e interessantes. Mas ninguém consegue viver apenas com crenças fascinantes e empolgantes. Nem é preciso ter grande experiência na vida para saber disso. O fato é que, se não crermos a ressurreição, nossa vida será apenas uma existência aparente. A vida sem ressurreição é um nada. É provavelmente essa sensação de vazio que faz com que todos procurem um princípio, uma base, um ponto de apoio que permita o surgimento de uma nova esperança. O que todos procuram, hoje em dia, é uma esperança que não seja ilusória, que não se torne mais um equívoco, mais um engano. O que todos procuram é uma esperança legítima, que permita atitudes realistas. A pergunta que resta e que sempre de novo retorna é apenas uma: Será que a humanidade tem o direito de alimentar a esperança de um futuro pacífico e satisfatório, depois de tudo o que fez até agora? Por outro lado, uma fé na ressurreição que não inspirasse tal esperança, seria uma fé triada, inútil. Como é

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que se sai de tal dilema? Talvez só haja uma saída. E essa é: enfrentar de rijo a outra questão, a questão espinhosa e insistente, da qual inutilmente procuramos escapar: Qual é o significado da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos? Qual o sentido desse fato esquisito da ressurreição?

Para início de conversa: a verdade e autenticidade da ressurreição não dependem da possibilidade de imaginarmos um acontecimento fora do comum. E ainda por cima acreditarmos nele.

A ressurreição não é apenas essa maravilha que possibilitará aos piedosos, carolas e espíritos superiores festejarem uma espécie de festa de ex-alunos no além. Se a ressurreição fosse apenas isso, seria, no máximo, uma piada agradável, de bom gosto. Uma anedota de salão. Mas não. A legitimidade da ressurreição revela-se nos efeitos que desencadeia neste mundo e em nossa vida. Vamos por partes.

A ressurreição de Cristo é a Gloria de Deus para nós. É bem verdade que a glória de Deus nos faz falta. Nós não a vemos. Não a merecemos, de jeito nenhum. Não a conseguimos alcançar, procurar ou encontrar. Todo mundo sabe que nossa vida é tudo, menos gloriosa. Nossa vida é difícil, é fraca, é feia. Mas para nós que não passamos bem e que não somos bons, para nós está destinada a glória de Deus. A glória de Deus nos está destinada, preparada, oferecida e até dada, porque Cristo ressurgiu dentre os mortos. Esta nossa pobre vida, vida sofrida e pecaminosa já está envolta pela glória de Deus. E essa glória envolve inclusive os campos de batalha que se encontram em pleno funcionamento. Ela envolve até a nossa crise - e as prisões, e os hospitais, e os asilos. E todo o resto.

Mas a ressurreição de Cristo, a glória de Deus para nós ainda é

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mais. A ressurreição é resposta às nossas perguntas. Perguntas como estas: Onde está Deus neste nosso mundo de enigmas, onde encontramos de tudo - menos Deus? Onde está Deus, em meio a todos os poderes e poderosos? Onde está Deus em minha curta vida, que me oferece tão pouco e que passa tão ligeiro? Onde está Deus, em meio a todos os horrores que acontecem dia após dia? A rigor, nos nem teríamos o direito de fazer tais perguntas. Porque não é Deus quem desapareceu. Nós é que não contamos com ele. Mas Deus não despreza nossas perguntas. Deus não recusa audiência. Deus não tem medo de entrevistas coletivas. A ressurreição é ainda mais do que a vitória sobre a morte física. A ressurreição implica numa aceitação de quem não merece mais nem ser olhado. A ressurreição reanima todos os confusos e atarantados e culpados a recomeçarem tudo de novo. E quem não gostaria de recomeçar da estaca zero, depois de uma falência? Pois então, vejamos. Quem é que foi condenado, crucificado, morto e sepultado na Sexta-Feira Santa? Não só Jesus, mas com ele e em sua pessoa, todos nós. Nós fomos aniquilados naquela cruz. E por isso, na Páscoa, com Cristo, em sua pessoa, ressuscitamos todos nós. Depois de tudo arrasado, começou tudo de novo para nós.  Tudo. Mas tudo, de maneira inteiramente nova. Considere-se a diferença: tem muita gente por aí, querendo fazer tudo diferente, tudo melhor, tudo bem novinho. O mal deles é que procuram renegar e tapar os males do passado. E quem começa a arrumação com mentiras não vai fazer coisa melhor não. A força da esperança que se funda na ressurreição, reside na verdade. Na verdade, a nosso respeito — ou seja: um verdadeiro retrato sem retoque - na verdade a respeito de Deus. Do Deus que faz tudo, aproveitando o material como ele é. Esse material que somos nós.

Mas que é que Deus exige desse material ressuscitado, renovado, ao qual ele concede a sua glória? Bem, só existe

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uma coisa que realmente compromete pessoas. Que faz qualquer pessoa engajar-se, dedicar-se, entregar-se de corpo e alma. E essa coisa que consegue mais do que leis, decretos, ameaças e brutalidades, chama-se gratidão. Deus quer que esqueçamos o medo, as preocupações e a fome pelo poder e pelo renome - porque tudo isso já foi crucificado, morto e sepultado. E Deus quer que aceitemos a alegria e a paz que nos foram presenteadas, por ocasião daquela ressurreição. Ele quer, em si, uma coisa muito evidente, clara, sem segundas intenções: que passemos a trilhar o seu caminho porque todos os outros são becos sem saída.

A pequena frase da carta a Timóteo dizia: Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado dentre os mortos. Lembra-te! Mantém na lembrança, no caderninho de notas, pensa nisso, não esqueças. Existem muitas coisas que podemos e até devemos esquecer, nesta vida. Não é preciso recordar tudo. Um dia virá o momento em que esqueceremos tudo. Mas tratemos de não esquecer duas palavras: Ele ressuscitou! Todos os erros, e equívocos, e maldades, e parcialidades, e medos, e agitações com que nos torturamos e com os quais amarguramos a vida dos outros têm ligação com o fato de não lembrarmos que ele ressuscitou.

E tu dirás: Mas tudo isso é demais, é difícil demais. Eu não consigo crer nisso. É preciso levar em conta que a fé não se produz nem se comanda. Mas a fé que fundamenta a única esperança válida e honesta neste mundo, é algo que se pode pedir. É preciso considerar que um dia teremos de morrer. Porém, mais do que isso, nós já podemos viver! Nós e todo o mundo. Por isso a humanidade tem o direito de alimentar uma esperança. Deus lhe deu esse direito. Na Páscoa.

(www.luteranos.com.br/conteudo/ressurreicao-2-timoteo-2-8)

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ASCENSÃO

Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as cousas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. Pensai nas cousas lá do alto, não nas que são aqui da terra; Porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também sereis manifestados com ele, em glória. - (Colossenses 3.1-4)

Na próxima quinta-feira os cristãos celebram a ascensão de Jesus Cristo. Relembram aquilo que se confessa também no Credo Apostólico, que Jesus Cristo subiu aos céus onde está sentado à direita de Deus. É o que ouvimos antes na leitura do Evangelho e é também o que lemos nesse trechinho da carta aos Colossenses. É claro que ninguém, em juízo perfeito, pode se atrever a explicar como é que Jesus subiu aos céus. Mas cada um de nós pode e deve receber a informarão sobre o sentido de tudo isso. Então vejamos: Que significa a ascensão de Jesus Cristo aos céus?

Quando a Bíblia fala sobre a direita de Deus, a mão direita de Deus, isso é uma maneira de dizer e confessar que Deus tem realmente poder, todo o poder — que Deus governa, com justiça e com misericórdia, todo o mundo e toda a nossa vida. Com sua mão direita, Deus salva seu povo Israel, Deus defende os pobres e os miseráveis, Deus derruba seus inimigos e Deus garante sua vitória sobre os homens e a favor dos homens. Com sua mão direita, Deus é Pai e Senhor, Deus introduz seu Reino neste mundo.

Quando lemos, dizemos e confessamos que Cristo está

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sentado à direita de Deus, é claro que isso é uma ilustração, uma comparação, uma maneira de dizer. E o sentido é: Deus é Rei e Cristo é seu braço direito. Em outras palavras: Cristo não pode ser separado, cortado de Deus, mas Cristo participa da glória e do poder de Deus. Deus tem um rosto, um caráter, um nome. Jesus Cristo é o rosto, o caráter, o nome de Deus. E Deus não tem e não pode ter outro nome! Quando cristãos falam em Deus, estão pensando automaticamente naquele Deus que se tornou homem por nós, e que sofreu, morreu e ressuscitou — e está conosco através de sua palavra — e em cujo nome fomos batizados — e que nos alimenta para a vida, na Santa Ceia. E quando cristãos falam em Jesus Cristo, não estão pensando apenas nó Mestre, no mártir, no grande homem que ele foi ou deixou de ser — mas sim, estão pensando naquele que é o Senhor, sem o qual nada existe de glorioso ou poderoso, neste mundo.

Essa é a verdade que se tornou clara, que foi revelada aos apóstolos no dia da ascensão. E essa é a verdade que hoje é relembrada a todos nós, através de um convite: Buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive sentado à direita de Deus. Pensai nas coisas lá do alto!

Por que, afinal? Tanto na próxima quinta-feira, como já na segunda-feira, sim até mesmo hoje à tarde ou à noite nós vamos pensar, nós vamos ter de pensar nas coisas daqui da terra, nas coisas de nossa vida. Sim, certo, mas que é nossa vida? Que é isso que se estende do parto até o último suspiro?

Quando a Bíblia fala sobre nossa vida, podemos e devemos pensar em tudo aquilo que faz parte dessa nossa vida. Quer dizer: as coisas da alma e as coisas do corpo, as

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coisas intimas e as públicas, a vida particular e a vida política, a vida bem pessoal e a vida com os outros. Nossa vida é isso que nós gostamos de enfeitar um pouco, que nós queremos aproveitar — e nossa vida é isso que sempre sofre abalos e que às vezes nos parece uma coisa estragada, perdida e sem sentido. Nossa vida é o que nós queremos segurar e proteger, é o que às vezes gostaríamos de prolongar até — é o que, apesar de tudo, tem um limite intransponível chamado morte.

Quando a Bíblia fala sobre nossa vida, está falando nessa mistura de desejos, esforços, esperanças, sucessos e desilusões — essa mistura de claridade e escuridão, de beleza e de ameaças, de risos e de lágrimas. E quando nós pensamos em tudo isso que faz parte de qualquer vida, nós achamos que conhecemos nossa vida. Mas nós não conhecemos! Nem mesmo a experiência da vida (aquilo que nós chamamos de experiência da vida!) pode nos dizer o que é nossa vida mesmo, qual o sentido último de tudo isso.

Mas a Bíblia esclarece que essa mistura toda, com suas desordens até, é uma vida arrumada. Que essa vida condenada à morte, é uma vida salva. Que essa vida presa a vícios, desejos, doenças, é uma vida libertada. Como é que a Bíblia pode afirmar uma coisa dessas?

Porque Jesus Cristo está sentado à direita de Deus. Lá do alto cai uma luz que invade esta nossa vida. E essa luz da verdade nos diz o seguinte: aquilo que nós conhecemos da vida, de nossa vida, ainda não é, nem de longe, toda a realidade. A vida não é só essa mistura de mistérios e perguntas sem resposta. A vida também é aquilo que a carta aos Colossenses explica, começando com uma surpreendente declaração: Vocês foram ressuscitados juntamente com Cristo.

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Nós fomos ressuscitados com Cristo — essa é a parte da realidade de nossa vida que transforma todo o resto, que joga luz no resto. Assim é que podemos e devemos acrescentar, juntar a tudo o que foi dito, o seguinte: Quando a Bíblia fala sobre nossa vida, está falando sobre Jesus Cristo. Quer dizer: de uma vida humana como a nossa, com as mesmas limitações, as mesmas perguntas, as mesmas misérias. Jesus Cristo é tudo isso também. Mas essa vida humana alcançou a vitória, a salvação, a libertação, a arrumação.

E quando a Bíblia fala de Jesus Cristo, está falando sobre nossa vida: porque aquela criança de Belém nos transformou em filhos de Deus, aquele sofredor no Calvário sofreu o castigo que seria o nosso, aquele Ressurreto apagou nossa morte — e mostrou que Deus é nosso Deus!

E quando Jesus Cristo subiu aos céus, foi nossa vida humana que foi elevada até a comunhão com Deus. Jesus Cristo é a verdadeira transformação e renovação de nossa vida — e cada um pode ter e viver essa transformação, desde que veja e tenha a Jesus Cristo.

E você dirá: pois eu não vejo nada disso na minha vida — e menos ainda na vida dos outros.

Isso é exatamente o que também diz a carta aos Colossenses: a vida de vocês está oculta, está escondida com Cristo em Deus.

Ainda está escondida, essa vida arrumada e transformada. A única coisa que temos do Cristo é a palavra de suas testemunhas, é o batismo, é a Santa Ceia.

Mas quando Cristo se manifestar, então vai se manifestar também tudo aquilo que nossa vida realmente é.

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Nossa vida não é apenas isso que começa no berço e acaba na sepultura. Nossa vida é também aquilo que já começou com Cristo e que um dia vai aparecer de maneira total.

Essa realidade total de nossa vida, nós não podemos agarrar como se fosse nossa propriedade. Essa realidade total nós só. Podemos buscar, nós só podemos pensar nela. Buscai as coisas lá do alto.

Lá do alto! Que é alto? Lá no alto está Cristo, nossa vida. E aqui na terra? Aqui na terra estamos nós. Nós com o pouco que conhecemos de nossa vida.

Não adianta encostar a mão no rádio, para melhorar esse pouco de vida. Não adianta correr atrás de milagreiros. Nós nunca vamos ter mais em nossa vida do que Jesus Cristo mesmo. Buscar ao Cristo que é nossa vida é o máximo que nós podemos alcançar nesta vida. Notaram bem? O máximo é uma busca. Ninguém pode e ninguém deve imaginar que já encontrou tudo. Não. Meus amigos, nunca acreditem naqueles que querem oferecer tudo! Isso é um logro!

Contentemo-nos em buscar, procurar sempre. Os que buscam e procuram a Cristo, nossa vida, são os que saem do medo para a coragem, da tristeza para a alegria, do ódio para o amor, da preocupação para a confiança e até da burrice para a sabedoria.

Essa saída da escuridão para a luz é o que significa a ascensão de Jesus Cristo para nós, hoje.

(Igreja Central — 7-5-72)

(www.luteranos.com.br/conteudo/ascensao-colossenses-3-1-4)

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DIA DAS MÃES

Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse dará testemunho de mim; Ora, estas cousas vos tenho dito para que, quando a hora chegar, vos recordeis de que eu vo-las disse; Não vo-las disse desde o princípio, porque eu estava convosco. - (João 15.26-16,4a)

Alguém poderia perguntar: Qual o valor, qual o sentido de a gente continuar a ouvir e a ler palavras de despedida de Jesus? Afinal, Jesus já se despediu há tanto tempo, seus primeiros discípulos também já não existem há quase dois mil anos. Digamos assim: não haveria assunto mais urgente, mais importante, a ser examinado no Dia das Mães?

A primeira coisa a dizer: Quando Jesus se despede de seus discípulos e fala sobre o futuro deles, essas palavras não se dirigem apenas àquele primeiro grupo de homens e mulheres daqueles velhos tempos. Nós também somos discípulos de Jesus. Os homens e mulheres que hoje formam a comunidade cristã, ,a Igreja, também vivem depois da despedida de Jesus. E é muito provável que nós, assim como os primeiros discípulos, tenhamos algumas necessidades iguais. Por exemplo: Existirá uma única pessoa neste mundo, que nunca precisou de consolo?

Jesus promete consolo aos homens e mulheres. Jesus até fala de um Consolador: o Espírito da verdade, o Espírito Santo, essa presença de Deus entre nós. Sim, todos nós precisamos de consolo, vez por outra. E o consolo que vem de Jesus, o auxílio com que podemos contar, está muito

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intimamente ligado com a verdade. Com efeito, não existe consolo sem verdade! As consolações baseadas apenas nos panos quentes, apenas para constar, apenas para tapear — não funcionam. Ou, pelo menos, não funcionam muito tempo. Mais cedo ou mais tarde, vem a desilusão — e o desconsolo. Para alcançar verdadeiro consolo, todos nós precisamos de uma verdade consoladora: a verdade a respeito de Jesus Cristo.

O que Jesus diz a seus discípulos de ontem e de hoje, é isso: Todo aquele que está aflito e sobrecarregado, não precisa procurar muito, aqui e ali. Procure a mim e eu o aliviarei, eu o consolarei — estabelecendo a verdade a respeito de Deus — a verdade a respeito das relações entre Deus e os homens — a verdade a respeito de cada um.

É claro que muita coisa poderia ser dita acerca dessa verdade. Para começo de conversa, ela nunca é a nossa verdade, ela nunca está debaixo de nosso controle, nós nunca podemos manipulá-la. Mas se a gente quisesse, uma vez, resumir o que seja essa verdade, talvez baste lembrar e guardar isto:

A verdade a respeito de Deus é que ele faz questão de ser nosso Deus conosco, Deus no meio de nós. Deus que gosta de nós, Deus que sempre toma partido a favor do homem. E será que, então, Deus nunca dá o contra? Claro que dá. E como dá! Deus é contra tudo aquilo que possa atrapalhar e estragar suas relações com os homens. E por isso Deus é contra a morte e contra tudo aquilo que tem cheiro de morte. Exemplo: o egoísmo, do qual nascem todas as outras maldades, invejas e destruições entre os homens.

Nesse ponto, é preciso dizer que tanto os que conhecem

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esse Pai como os que ainda o procuram, estão unidos numa mesma verdade: a verdade a respeito de nós mesmos. Quem somos nós? Nós somos aqueles que provocam, alimentam e até espalham tudo isso que tem cheiro de morte — e que envenena a vida dos homens todos. Nós somos os egoístas a quem Deus ama de verdade. E justamente porque o amor de Deus é um amor de verdade, Deus faz questão de estabelecer a verdade a respeito de nós mesmos, destruindo nosso egoísmo. A destruição de nosso egoísmo é o maior consolo que Deus pode dar. Porque esse consolo nos transforma em testemunhas.

Todo cristão é uma testemunha desse amor e desse consolo de Deus. Mas que significa testemunhar?

1º.) Confessar, professar algo. Eu creio que isso é assim e assim. Estou certo disso. Estou disposto a defender minha convicção.

2º.) Comprometer-se com algo que me toca lá no fundo, me pega, me abala, .me comove, mexe comigo, me cativa, que se refere à minha própria maneira de viver.

3º.) Testemunhar é mais do que ter interesse por algo. Testemunhar não é só transmitir algo, comunicar um fato diante do qual posso permanecer neutro. Ao testemunhar a gente expõe uma parte de si mesmo, põe a descoberto uma porção de coisas intimas: Comigo é assim! É nisso que fundamento minha vida.

4º.) É um apelo. Como estão as coisas com você? O apelo que eu ofereço é também um pedaço de minha própria pessoa, de minha própria vida.

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5º.) Testemunhar de Jesus Cristo! E mais ninguém! Não é fazer propaganda da própria Igreja. Não é contar como eu sou bonzinho, como eu sei rezar bonitinho, como eu fui batizado pelo Espírito Santo, etc. Isso não seria testemunho porque é traição.

6º.) Falar do Cristo e de seus pequeninos irmãos neste mundo, Dizer que ele foi morto porque não se enquadrou nas regras do jogo — aquele jogo do egoísmo. Porque ele amou como nós não amamos, porque não pisoteou e condenou como nós pisoteamos e condenamos, porque ele acolheu aqueles que nós, com nosso moralismo barato e hipócrita, só sabemos rejeitar e desprezar.

7º.) Todos notam: o testemunho leva adiante o consolo aos que precisam ser consolados: os famintos, os desempregados, os que morrem de doenças curáveis. Ao mesmo tempo, o testemunho do amor de Deus se torna bastante incômodo quando toca numa ferida muito funda e sempre aberta, que se chama verdade!

(www.luteranos.com.br/conteudo/dia-das-maes-joao-15-26-16-4a)

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SEMANA DA UNIDADE CRISTÃ

Podemos ser já hoje, agora, verdadeiros discípulos. Ninguém pergunta quem ou o que somos, fomos ou seremos, religiosamente interessados ou não, etc. Que cada um seja e faça o que for. Se formos verdadeiros discípulos, o futuro dirá o que podemos ou devemos ser e fazer.

Discípulos são seguidores, que estão em sua companhia. O que os diferencia dos outros é que ele está em seu meio. E que podem ser suas testemunhas. Pessoas que podem ouvir quem ele é e qual a sua dádiva. Que não confundem mais o tempo anterior e posterior a ele.

Não creem mais poder ajudar-se a si mesmos, justificar-se. Que também não acreditam mais estar sob o domínio de um destino cego. Para os quais o Reino não pertence mais a uma eternidade distante e fria, porque está em seu meio, porque já viram a vitória desse Reino. Que sabem que o que viram e conhecem deve ser visto e tornado conhecido por todos. Sabem que devem dizê-lo aos outros. Pessoas que têm uma missão (tarefa) na história.

Verdadeiros discípulos (autênticos, legítimos). Poderia haver discípulos ilegítimos, inautênticos, pessoas que se rotulam de cristãos, por quaisquer razões. Que pretendem manter uma certa tradição. Representantes da assim chamada civilização cristã.

Nós não queremos arremessar a primeira pedra. Quem terá a certeza de não ser um cristão de tal calibre? Por nosso próprio esforço, dificilmente alcançaremos algo diferente disso.

Não queremos prosseguir nesta linha.

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Verdadeiros discípulos são pessoas que não podem mais colocar Jesus entre parênteses, ignorá-lo em seus corações e consciências, ignorá-lo em suas vidas e no mundo. Que não têm mais escolha, se querem ou não segui-lo, se querem ou não cumprir a missão, a tarefa que lhes foi confiada. E é Jesus mesmo quem nos diz que podemos sê-lo, hoje, agora. Que a oportunidade está às portas.

Como verdadeiros discípulos, conheceremos a verdade. Através das trevas e inseguranças do futuro, contemplamos um futuro claro e certo. A verdade nua e crua, sem véus nem dissimulações nem disfarces. A verdade — bondade de Deus que sustenta todas as coisas. Nossa miséria e culpa irreversíveis. Jesus mesmo — fundamento, sentido e alvo de nossa vida. (e do mundo!).

Mas —  futuro. Pois, no presente, temos de reconhecer que deixamos de conhecer a verdade ou ainda não a conhecemos.

Por que isso? Porque a verdade é sempre de novo soterrada, tapada pelos equívocos que povoam nossas cabeças e nossas consciências.

Mas nunca ouvimos a verdade? Indubitavelmente! E até seguido! Mas sempre voltamos a esquecê-la. Não há nada que o homem esqueça mais seguido e mais frequentemente do que a verdade.

No futuro — de uma maneira total. Agora, umas prestações, em parte, tanto quanto necessitamos, sempre de novo, o suficiente para a semana que começa, para os próximos momentos difíceis.

Nós conheceremos a verdade. Nossos olhos cegos, ouvidos surdos. Nossas mãos insensíveis.

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Ele, a verdade, romperá as cadeias, às quais estamos acorrentados, nas quais nos acorrentamos.

Seremos livres (futuro!). A verdade nos libertará (há uma relação). A verdadeira verdade é outra coisa do que aquilo que consideramos como verdade.  Ela é uma pessoa que liberta (não nós!)

Como acontece isso? Ele nos demite, nos destrona de nossa posição de senhores e mestres de nós mesmos. Ele toma nosso lugar, assume a direção e a responsabilidade. E dá a permissão de deixarmos tudo por sua conta.

Pois quem (e isso é o caso de todos nós!) continua a querer ser seu próprio senhor, não passa de um prisioneiro de si mesmo. Tal pessoa é um indiciado de seu próprio IPM. Arrastado de um interrogatório a outro. A preocupação. O medo. O desespero. O contraste da liberdade de si próprio! Liberdade dada e não usurpada!

Se permanecerdes na minha palavra!  Sem acrescentar ou subtrair, acreditar numa palavra. Sem vagabundear em torno dessa palavra! Sereis meus discípulos.

(www.luteranos.com.br/conteudo/semana-da-unidade-crista)

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Atos 2.37-39

Pentecostes

A promessa: todos os que são batizados em nome de Jesus Cristo, recebem uma dádiva - o Espírito Santo. Isso vale para nós? Sim. Por quê?

1) Porque acima de nossa fraqueza, acima de nossa pouca fé e confiança, encontra-se Jesus Cristo. Esse Cristo não se esquece de nós, nem nos despreza. Ele nos vê e nos aceita - assim como somos.

2) Porque o mesmo Jesus Cristo que morreu e ressuscitou por nós, não nos abandona em nenhuma hipótese. Ele nos dá essa dádiva.

3) Porque a mesma coisa que aconteceu no primeiro Pentecostes, continua a acontecer hoje. É a mesma promessa, a mesma dádiva do mesmo Espírito Santo - para os homens de todos os tempos e lugares.

* * *

Mas onde está a dádiva do Espírito Santo em nossas vidas? Às vezes somos cegos e surdos para as coisas, nesta vida. Seguidamente a dádiva está ao alcance de nossas mãos - mas somos ingratos ou simplesmente bobos - e nem vemos o presente.

Por isso, vamos aprender a ouvir e a ver. Vamos recordar alguma coisa sobre a dádiva do Espírito Santo.

* * *

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1) Para muita gente, Espírito Santo é uma coisa complicada. Que é Espírito? A resposta da Bíblia: sopro, vento. Assim, como alcançamos alguém, nos comunicamos com alguém através da palavra (conduzida pelo sopro). A palavra invisível atinge o outro. E a Bíblia usa essa mesma palavra para dar nome a um imenso milagre: Deus atinge e encontra a cada um de nós, pobres e pequenos homens. Nós somos pó (pedacinho de terra, de mundo). E Deus dá a vida a cada um - com um sopro.

O mesmo milagre: quando Deus fala e nos alcança.

No Evangelho João: recebam o Espírito Santo - e sopra sobre os discípulos. Exatamente o mesmo: Pentecoste.

2) Em Pentecostes fala-se pouco do Espírito Santo. Fala-se do que acontece quando ele sopra, quando ele age. E quando o Espírito é derramado sobre os apóstolos, eles começam a falar sobre o Cristo. O Espírito é nosso consolador, e quem nos ensina. Mas o Espírito nunca diz ou ensina outra coisa do que aquilo que Cristo já falou!

3) Em Pentecostes nasce a Igreja, o povo de Deus, o agrupa mento, a comunidade dos que se arrependeram, foram batizados e ficaram juntos, reunidos - aqueles que aceitaram o presente.

Que é a Igreja? É a reunião de pessoas para quem o presente de Deus se torna uma coisa tão necessária, indispensável e natural - como o ar que se respira. A dádiva do Espírito Santo torna-se uma coisa mais firme do que o chão em que se pisa. Toda pessoa precisa comer, beber e dormir. Isso é tão necessário para a vida como o Espírito Santo é necessário para a Igreja.

* * *

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E agora - onde está a dádiva do Espírito Santo em nossa vida?

O equívoco: que se pode fazer para que aconteça conosco o mesmo que com os apóstolos?

Pergunta errada - respostas erradas.

Nós nada podemos fazer - os apóstolos também nada fizeram. A dádiva do Espírito Santo é presente de Deus! E Deus já nos deu essa dádiva.

Cristo já morreu e ressuscitou por nós. O Espírito Santo já foi derramado sobre toda a carne. Nós já somos batizados e filhos de Deus. Já pertencemos ao povo eleito dos que só vivem para maior glória de Deus.

Quer dizer: nós nem podemos mais ser outra coisa! Todas essas dádivas já são nossas, já estão ao alcance de nossas mãos. Deixemos de ser cegos, surdos, ingratos e bobos.

O sonho de estar sendo perseguido... Acordar: Apesar de toda a tentação, fraqueza e erros - Deus já deu seu presente, porque Ele - o Todo-poderoso - não se envergonha de ser nosso Pai, nosso Irmão, nosso Defensor.

(www.luteranos.com.br/conteudo/atos-2-37-39)

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1 João 4.18

1º. Domingo após Trindade

No amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo.

Meus caros irmãos e irmãs:

No amor não existe medo. Curioso, não? No amor. Como se o amor fosse um lugar, um recinto, uma casa, onde se pode estar e morar, sentar-se, ficar parado, andar. Existe uma série de expressões, semelhantes, na Bíblia. Por exemplo:  na fé,  no espírito,  no Senhor,  em Cristo. E sempre se trata de uma espécie de localização. Continuemos com a comparação: no amor - como se fosse uma casa. E nessa casa existe um regulamento, existem estatutos. E neste regulamento encontra-se a seguinte frase, como parágrafo 19: no amor não existe medo. Ou seja: nessa casa não há lugar para o medo. O medo está excluído. A gente quase poderia lembrar-se dos avisos nos ônibus: é proibido fumar. Ou então, dos cartazes à frente das construções: proibida a entrada de pessoas estranhas ao serviço. Mas o que nós ouvimos não é apenas uma proibição. No amor  não existe medo. É uma constatação. O amor expulsa o medo; é como se uma janela fosse aberta e a correnteza do ar purificasse a atmosfera de uma sala. É como no teatro, quando se apagam as luzes, o pano se abre e os expectadores param de conversar. No amor não existe medo: um bom parágrafo 19 de bons estatutos de uma boa casa.

Contudo, para se entender o significado dessa afirmativa, será necessário considerar o que subentendemos por

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amor. Na melhor das hipóteses, o amor humano é uma relação entre pessoas. Esse relacionamento faz com que as pessoas não se encontrem mais distantes, não sejam mais estranhas entre si, nem tampouco indiferentes ou desagradáveis. Pelo contrário, quando acontece o amor, é sinal de que seres humanos se conheceram, se entendem, sentem confiança mútua, se gostam. Gostam tanto uns dos outros que já não conseguem mais viver separados, existe uma atração, existe um desejo de aproximação. Amor existe quando seres humanos vivem uma existência comum, quando se oferecem um ao outro, mutuamente.

Não é belo isso, o amor?

Talvez seja até quase belo demais. Pois - não é mesmo - na vida real só existe amor parcial, só existe um pouco de amor, uma vez ou outra. A rigor, raramente. O amor que se conhece e vive tem pouca se-melhan9a com aquilo que poderia e deveria ser o amor. É uma espécie de fotografia ruim, na qual só com certo esforço se reconhece o retrato. E talvez haja entre nós quem desejasse dizer: isso que você descreveu como sendo o amor, não existe em minha vida. Ninguém me ama. E eu também não amo ninguém. Muito menos da maneira como foi dito. Eu me sinto só, totalmente sozinho em um mundo sem amor, onde as pessoas vivem afastadas entre si, são estranhas umas às outras, onde as pessoas vivem umas sem as outras, umas contra as outras.

Uma coisa é certa: esse amor, ou seja, isso que nós entendemos por amor quando pronunciamos essa palavra, isso que nós conhecemos ou não, esse amor humano, não expulsa  o medo. Na casa desse amor existe medo, também na melhor das hipóteses: medo de decepções e desilusões, medo de que um pudesse perder o outro, medo do próprio passado que acompanha nossos passos como

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uma sombra, medo do futuro que avança em nossa direção, medo das pessoas e medo de si mesmo, medo da morte. A casa desse amor, apesar disso, pode ser bonita, pode-se viver razoavelmente nela. Mas não é a casa com o regulamento que diz: no amor não existe medo.

Nosso texto refere-se a uma outra casa, a um amor que é perfeito, que existe em abundância (não apenas em partes), um amor que permanece, que não é passageiro, um amor no qual não existe medo. Os mais tristes entre nós deveriam prestar atenção. Esse outro amor também é uma relação. Mais do que isso: é uma aliança, um pacto, um acordo permanente: Quem faz essa aliança, esse pacto? Deus, o Senhor — livre e soberano, que nada deve a ninguém, que de ninguém precisa. Ele faz e mantém essa aliança. Com quem? Conosco. Esse pacto foi feito entre Deus e você e eu e todos nós. Por que, afinal? Terá Deus baseado sua decisão no fato de sermos pessoas tão finas, tão boas, tão barra limpa? Não, ninguém de nós é isso. Terá Deus necessidade de nós? Não. Deus não precisa de nós para alcançar Seus objetivos. Serão nossas boas intenções, então, a razão? Teremos nos tornado merecedores de um acordo, por uma razão ou outra? Não. Nós nada merecemos e nossas intenções nem são tão boas assim. Deus fez uma aliança conosco porque essa é a sua livre, espontânea, bondosa, misericordiosa, santa vontade. Deus age gratuitamente. Isso é o amor: não que nós tenhamos amado a Deus, mas sim, que Ele nos amou. E Deus provou-nos o Seu amor, justamente por não querer existir sozinho, para si mesmo, nas alturas, Deus provou que nos ama, vindo até nós, tornando-se igual a nós, nosso próximo, nosso irmão. A criancinha na manjedoura de Belém, o homem crucificado no Gólgotaeis o perfeito amor. É assim que Deus estabelece relações

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conosco. É assim que Deus nos procura, — nos busca e nos acha. É assim que Ele se torna nosso Deus. Isso é a aliança, a casa do perfeito amor, do amor de Deus. Justamente porque Deus nos ama desapareceram todos os motivos para se ter medo. Você tem medo de alguém porque ele pensa mal de você, fala mal de você e poderia fazer-lhe ai go de mau. Mas por que ter medo? Que é que essa pessoa pode fazer contra Deus? E, se essa pessoa não pode agir contra Deus, como poderá agir contra você, se Deus está ao lado de você? Você tem medo de perder uma pessoa amada que lhe é indispensável? Para Deus esta pessoa não está perdida. E se não está perdida para Deus, você também não pode realmente perdê-la. Você tem medo do seu passado, do seu futuro, da morte? Então considere que, apesar de seu passado, apesar do que o futuro lhe trouxer, na morte e além da morte, você à a pessoa amada por Deus. Ou você tem medo de si mesmo, de suas fraquezas e maldades, das tentações que poderiam tornar-se muito fortes e, em geral, se tornam muito fortes. Momento! Deus é maior do que nosso coração. Deus à mais forte do que tudo isso que lhe mete medo. Deus oferece oposição à maldade deste mundo. Por que é que nós não haveríamos de mandar brasa também? For que não nos tornarmos aliados, amigos de Deus? Nós o podemos. Claro, existem muitas razões para sentir medo. Mas nenhuma delas tem lugar na casa do perfeito amor. Não existe medo algum, que não fosse expulso pelo perfeito amor.

Mas é provável que alguém ainda esteja pensando que tudo isso está muito bem, que, afinal de contas, se pode ouvir tu do isso, pois é manhã de domingo e nós estamos na igreja. Contudo, resta a pergunta: será que eu estou nessa casa? Eu sinto medo, de dia, de noite, e talvez isso seja um sinal de que não me encontro ainda na casa do

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perfeito amor. Talvez eu esteja lá fora, no meio da rua, correndo o perigo de ser atropelado, forçado a olhar para todos os lados. Sim, eu gostaria de estar no amor e não sentir medo. Mas como se consegue isso? Será preciso algum esforço especial, alguma coisa nova, será preciso trepar pelas janelas?

Não, meus amigos, não. Não somos nós que temos que invadir a casa do perfeito amor. Esse amor já veio até onde nos encontramos.  Todos nós - sem exceção! - nem poderíamos estar em outro lugar que não fosse essa casa. Mas, então, por que é que ainda sentimos medo? Simplesmente porque ainda não percebemos, ainda não nos damos conta do lugar onde nos encontramos. Em vez de continuar dormindo e sonhando e tendo pesadelos de medo, o que nós precisamos é despertar, abrir os olhos e ver onde já estamos. Nós não estamos do lado de fora. Nós já estamos na casa do perfeito amor. Quem escutar o sinal do despertador do Evangelho, saberá que no amor não existe medo, porque o perfeito amor já expulsou o medo. Amém.

(www.luteranos.com.br/conteudo/1-joao-4-18)

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Porque nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si, porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor. Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu; para ser Senhor, tanto de mortos como de vivos. Tu, porém, por que julgas a teu irmão? e tu, por que desprezas o teu? pois todos compareceremos perante o tribunal de Deus. Como está escrito: Por minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho, e toda língua dará louvores a Deus. Assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus. Não nos julguemos mais uns aos outros; pelo contrário, tomai o propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão. - (Romanos 14.7-13)

Na Igreja de Jesus Cristo sempre existiu variedade, diversidade de opiniões, e isso vai continuar a ser assim. Até deve continuar a existir a variedade, diversidade de pensamento e expressão. Porque Deus não é ditador. E a Igreja também não é ditadura. Pelo contrário: a vida dos cristãos tem um lema que se chama liberdade. É livremente que nos reunimos para o culto. Livremente amamos a Deus. Livremente servimos ao irmão.

Mas é justamente na hora de amar e servir que nossa liberdade corre o seu maior perigo, o maior risco. Porque cada um ama e serve a seu modo. Cada um recebeu dádivas diferentes. E por isso o modo de viver nossa liberdade de cristãos muda de pessoa para pessoa. O perigo aparece quando um acha que o outro deve pensar e agir exatamente como ele.

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PASTORAL

Quer dizer: a liberdade dos cristãos fica ameaçada no instante em que um começa a julgar o outro, quando a Igreja deixa de ser família para se transformar em tribunal.

É claro que ninguém é tão perfeito que não possa ser criticado. Pelo contrário: a verdadeira crítica sempre constrói. A verdadeira crítica sempre corrige, aperfeiçoa, melhora as coisas. A verdadeira crítica é um serviço que um irmão presta ao outro. E, portanto, verdadeira crítica é uma questão de amor. Quem não ama também não sabe criticar. Só sabe julgar. Acontece que julgamento é uma coisa que só cabe a Deus. O grave, em todo e qualquer julgamento humano, não é apenas o fato de que a gente possa se enganar. Muito mais grave é o fato de que o homem julgador — está se colocando no lugar que compete a Deus somente. Isso é o que torna problemático e perigoso o julgamento humano. Isso é o que, às vezes, torna ligeiramente ridículos alguns julgamentos.

Um exemplo que mostra até onde isso vai (— o pastor para não pisar nos calos de ninguém). Se a prédica se prolonga — esqueceu de desligar o long-play. Se fala alto para todos entenderem — só sabe berrar. Se fala normal — ninguém consegue entender. Se faz convites e apelos para uma festa — é mundano. Se corta o cabelo — é quadrado. Se visita alguém e faz certas perguntas — está se metendo onde não é chamado. Se pede uma contribuição — só sabe falar em dinheiro. Se o culto começa pontualmente — seu relógio está adiantado. Se o culto dura mais de uma hora — está atrasando todo mundo. Se é moço — ainda não tem experiência. Se é velho — devia tratar de se aposentar. Se vai embora — aquilo é que era pastor! Se morre — coitado, era tão bom homem...

Esse exemplo mostra que justamente a variedade de pontos de vista torna impossível, para os homens, a capaci-

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dade de julgar definitivamente quem quer que seja. (Tiradentes! D. Pedro ! !). Mas ainda não chegamos ao motivo principal. Versículos 7 e 9. Isso significa que a liberdade cristã não se resume em coisas permitidas ou proibidas, não cabe apenas em regulamentos.

O Senhor dos mortos e dos vivos, o Senhor sobre a morte e a vida é quem nos deu a liberdade, a variedade, o direito de escolher a maneira de amar e servir e dar testemunho. É a esse Senhor que cada um vai dar contas de si mesmo, um dia. Ninguém precisa organizar desde já, um tribunal na assembleia dos irmãos. O tribunal dos cristãos fica em outro lugar: a presença de Deus.

No entanto, essa presença de Deus, em nossa vida, já lembra um outro problema da liberdade.

Alguns pensam, às vezes, que a liberdade dos cristãos é o mesmo que não dar contas a ninguém. É o contrário da atitude dos julgadores. São os que acham que vale tudo, que a vida é minha.

Ninguém vive para si mesmo! A vida em liberdade, que Cristo nos deu, é a vida de cada um para o irmão, é a vida dedicada à justiça, à paz, à alegria entre todos (não só para cada um!). A medida de nossa fé não se reduz a coisas permitidas ou proibidas — mas essa medida aparece no modo como me relaciono com os irmãos. Por que é que não podemos julgar o irmão? E por que não podemos desprezar o irmão, vivenda como se os outros não existissem?

Porque Cristo morreu por meu irmão, assim como morreu por mim!

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Por isso, as diferenças e variedades de opinião e de testemunho nunca podem ser mais importantes do que a comunhão dos irmãos, a comunhão entre irmãos.

A comunhão na liberdade — a esperança tropeços, escândalos?)

A esperança — o julgamento (nossa imperfeição geral).

O julgamento — o louvor (11) — obra do Cristo.

Não julgar — porque somos todos devedores perdoados.

(Igreja Central — 26-6-72)

(www.luteranos.com.br/conteudo/pastoral-romanos-14-7-13)

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CEIA DO SENHOR

E sucedeu que, estando ele em casa, à mesa, muitos publica-nos e pecadores vieram e tomaram lugares com Jesus e seus discípulos.

Ora, vendo isto os fariseus, perguntavam aos discípulos: por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores?

Mas Jesus, ouvindo, disse: Os sãos não precisam de médico, e, sim, os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa:

Misericórdia quero, e não holocaustos; pois não vim chamar justos, e, sim, pecadores. (Mateus 9.10-13)

Jesus estava em casa, sentado à mesa. E muitos cobradores de impostos e pessoas de má fama apareceram e foram se sentando com Jesus e seus discípulos. Alguns professores da lei dos judeus, do grupo dos fariseus, vendo isso, perguntaram aos discípulos: Por que é que o Mestre de vocês come com essa gente.

Jesus, que estava escutando tudo isso, respondeu: Os que têm saúde não precisam de médico, mas sim os doentes. Vão e tratem de aprender o que significa a palavra de Deus, anunciada pelo profeta:

Quero misericórdia, e não sacrifícios, pois não vim chamar justos e sim pecadores.

Se alguém chegar em nossa cidade e perguntar onde fica nossa igreja, o informante vai dizer que essa igreja existe em todas as partes do mundo — vai dizer a parte da cidade, a rua, e pronto.

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Quer dizer: a igreja existe, primeiramente, num local.

Mas que espécie de gente participa da vida da igreja, nesse local? A igreja congrega homens e mulheres que vivem, trabalham, se alegram e sofrem como todos os outros — com uma diferença: a  razão de sua vida, o motivo pelo qual existem, não se fundamenta, não se baseia, não se centraliza neles próprios — mas naquele judeu de Nazaré que é o Senhor do mundo: Jesus Cristo.

Em outras palavras a igreja é, e só pode ser, um centro de ressurreição, de renovação. Um lugar onde se vive hoje, já agora, o futuro.

Por isso é que a igreja sobressai obrigatoriamente, em todos os lugares. Nem todos vão à igreja. A maioria nem sabe o que acontece dentro da igreja. Ou sabe mais ou menos. Ou acha que sabe.

No entanto, ninguém pode esquecer a igreja. Porque ela incomoda. Porque é diferente. E por que são diferentes os cristãos? Por que incomodam? Porque a igreja, os cristãos, sabem o que vem depois do mundo e da história do mundo. E, além disso, vivem já agora o que um dia virá para todos.

No entanto, para que é diferente a igreja? Para ser sal e luz do mundo. Quer dizer: para penetrar em todas as coisas, com o Evangelho, com a boa notícia, com a novidade agradável. No mundo em que vivemos, existe muita escuridão mesmo; por isso, a igreja quer se infiltrar, com a luz do Cristo. ______________

A Ceia, hoje. Para quê? Só para uma coisa diferente, estranha, esquisita, que uma porção de gente não entende?

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Não: a ceia de hoje, a refeição com o Cristo é nosso ponto de partida, é o lugar onde começamos nossa viagem ao mundo, com o Evangelho. É ao mesmo tempo o lugar e o momento do recolhimento, para dar graças, para interceder pelos outros, todos os outros.

Quando comemoramos Ceia, estamos antecipando o futuro, isto é: estamos comemorando, desde já, o banquete com Cristo, no Reino de Deus. Estamos festejando, celebrando a salvação.

Ao mesmo tempo, estamos reunindo todo o mundo, quer dizer: todo o nosso mundo, as pessoas deste local, desta localidade, para que todas elas juntas, sejam apresentadas a Deus. Claro, nem todos vão ficar sabendo isso. É provável que alguns até zombem da Ceia. Apesar disso, quando festejamos a salvação, nossa mesa representa uma promessa e uma oportunidade para todos. Como assim?

Só os batizados, os que pertencem ao Senhor, participam da Ceia. Mas a igreja também usa as coisas deste mundo: o pão, o vinho, o tempo (pois há um dia do Senhor para a Ceia do Senhor) o espaço (este templo onde estamos reunidos).

Não se trata, para nós, de destruir os outros, afastá-los, desprezá-los. Pelo contrário: nossa Ceia é um convite para que muitos, todos passem para a nova criação, para o novo mundo da salvação.

Cristo diz: Eu sou o pão vivo que desceu dos céus; se alguém como deste pão, viverá para sempre. E o pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo.

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Somos cristãos, somos batizados, somos igreja, para proclamar, para atualizar o amor de Deus no mundo.

Para proclamar e atualizar esse amor, entre outras coisas, identificamos um pouco de pão e de vinho com um alimento e bebida de vida eterna. Identificamos uma manhã de domingo com o mundo da ressurreição.

Se alguém olhar para si — para o vizinho de banco — pensa naquela outra mesa:

Jesus, os pecadores — presença do reino e do mundo, salvação no meio da perdição.

Se a igreja não puder ser isso, não será igreja. Se nossa ceia não puder ser isso, não será ceia.

Graças a Deus, podemos ser um lugar onde todos podem se encontrar, tomar lugar à mesa e ouvir a palavra que é maior do que tudo quanto se pudesse ou quisesse dizer:

Quero misericórdia, pois não vim chamar justos, e sim pecadores.

(Juiz de Fora — 6.° domingo depois da Trindade)

(www.luteranos.com.br/conteudo/ceia-do-senhor-mateus-9-10-13)

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Lucas 16.1-9

9º. Domingo após Trindade

Por que a Bíblia considera o dinheiro e a riqueza como coisas iníquas, más, perversas, injustas?

1º. - Porque o esforço para ganhar e conservar  obriga a participar da injustiça e iniquidade ligadas e relacionadas obrigatoriamente a essa luta. É muito difícil estabelecer o limite entre ganhos e lucros honestos e desonestos. É problemático saber onde termina o salário honesto e começa o ordenado sujo e pecaminoso.

Dinheiro não tem cor nem cheiro? Negócios, negócios, amigos à parte?

2º. -Porque dinheiro e riqueza  enganam a todos os que pensam que podem confiar neles. Dinheiro e riqueza são um capital. E o capital representa poder - ou ruína. O poder do capital é que verdadeiramente comanda, governa os donos do dinheiro, as empresas, as nações e os povos.

Se as guerras parassem de hoje para amanhã, que aconteceria com as indústrias que fabricam armas, aviões, navios, remédios? Que fariam os empregados dessas indústrias, desempregados da noite para o dia?

* * *

O homem rico e o administrador acusado de desonestidade, na parábola de Jesus, sabiam de tudo isso. Ambos aproveitavam as delícias do dinheiro, tiravam seus lucros,

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faziam — seus negócios.

Empregadores - empregados / Industriais - Ministério da Fazenda.

De repente - a crise para o administrador - o truque para se salvar da situação.

A falta de escrúpulo para tirar proveito, evitar a miséria e a vergonha.

A semelhança entre homem rico e administrador.

O elogio da esperteza - por quê?

1) Saber enfrentar o poder do dinheiro (hoje rico - pobre amanhã)

2) O dinheiro serve para fazer amigos; não merece mais respeito do que isso (realismo!)

3) Saber explorar esse ídolo - eis o que Jesus elogia nos filhos do mundo. Isso é imoral? Por quê?  * * *

Por que são menos espertos, hábeis, inteligentes os filhos da luz? Porque não são livres diante do poder do dinheiro!

Porque não sabem decidir-se entre Deus e o dinheiro!

POR QUÊ? Porque acham que são honestos (mais que os outros), porque julgam que merecem o dinheiro que possuem. Em matéria de dinheiro, os cristãos seguidamente não cheiram nem fedem. Não são desonestos - mas também não são livres.

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É preciso pensar no futuro? É preciso ser alguma coisa na vida? Ninguém vive sem dinheiro?

São os filhos do mundo? Ou os filhos da luz? Ou ambos?

Eis o  nó da questão: como é que os cristãos vencem, com esperteza, o poder do dinheiro?

Os filhos do mundo usam truques, aplicam a desonestidade, descobrem mil jeitos.

E nós? Fazemos o mesmo?

Ou demonstramos nossa liberdade - a liberdade  para a qual Jesus nos libertou - para enfrentar o poder do dinheiro, das riquezas?

E como se demonstra a liberdade?

* * *

Fazendo  uso do dinheiro, sem ficar com medo das riquezas, sem ser esmagado pelo poder do dinheiro. Fazendo uso do dinheiro, como quem  sabe que este mundo, suas riquezas e seu dinheiro, passarão.

Quem é capaz de orar venha o Teu reino sabe que todo o resto vai passar. Até mesmo o poder do dinheiro.

* * *

Assim, façamos uso do dinheiro! Sejamos inteligentes no uso do dinheiro, nos negócios. Mas sejamos livres! E vamos dar provas dessa liberdade. Se os cristãos fossem livres em relação ao dinheiro... Para

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(www.luteranos.com.br/conteudo/lucas-16-1-9-1)

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sobreviver, o administrador pôs tudo em jogo. A pergunta desta parábola: que é que nós pomos em jogo para Deus e seu reino? A resposta é a semana que inicia.

O TEMPO

Isaías 29.18-21

Três exemplos:

1.°) Homem condenado a 30 anos em tribunal regional teve sua pena reduzida para 6 meses na mais alta corte militar do país.

Isso é o que a Bíblia entende por tirania: quando a gente começa a dispor da vida de uma pessoa — quando 30 anos de vida — 6 meses. Quando se acusa hoje para inocentar amanhã. Quando se condena e absolve com a mesma naturalidade com que alguém resolve: hoje não vou pôr a gravata azul — a verde me senta melhor.

2.°) Menina de 16 anos espancada por alguns policiais. Era prostituta e estava grávida. Resultado: um aborto em plena estrada, auxiliada apenas por duas companheiras.

Isso é o que a Bíblia entende por escárnio, zombaria: quando a pessoa indefesa é tratada aos pontapés. Quando a vida já rebaixada e aviltada ainda é maltratada. Quando a vida desrespeitada ainda por cima é tratada aos pontapés.

3º.) Há alguns meses, um grupo de pessoas mais ou menos idosas foi despejada de suas chácaras, em Brasília, porque os planos de consolidação da capital modificaram a distribuição de áreas residenciais. Para evitar muitos comentários, as pessoas foram transferidas à noite para um grupo de casas numa das cidades satélites. Proprietários

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nas chácaras passaram a proprietários de casas. Só que restou a fome e desemprego.

Isso é o que a Bíblia entende por negação do direito. Quando a compensação existe, mas é falsa. Quando a lei precisa ser executada no escuro, por que não resiste à luz do dia e à luz dos fatos.

* * *

O que espanta, em tudo isso, não é propriamente a brutalidade dos três acontecimentos. Barbaridades desse tipo já sempre aconteceram no Brasil e no mundo. Brutalidade, abuso, injustiça são o prato do dia em toda parte.

O que espanta é a naturalidade com que a maioria toma conhecimento. Ou nem toma conhecimento. É como se cada vez mais gente estivesse cega e surda para tudo o que acontece debaixo do próprio nariz.

Donde vem essa cegueira e surdez? Ninguém mais acredita na justiça — ou temos medo de acreditar na justiça?

Ninguém mais acredita na verdade — ou achamos mais cômodo embalar--nos na mentira e na propaganda?

* * *

Seja como for, o problema mais importante da vida consiste em orientar essa nossa vida por aquilo que tem futuro. Não adianta ficar ao lado daquilo que já está condenado.

Por isso mesmo, o texto do profeta Isaías quer nos levar a pensar, a refletir sobre a vida e o futuro da vida, Guando diz que o tirano é reduzido a nada, o escarnecedor deixa de existir e os que negam o direito são eliminados. Isaías

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nos leva a pensar sobre - a vida e sobre o amanhã, quando diz que naquele dia os surdos vão ouvir, os cegos vão poder enxergar e os pobres se alegrarão. Quando?

* * *

Para ficar sabendo desse quando, precisamos relembrar a maneira como a palavra de Deus entende o tempo. O tempo de Deus e o tempo dos homens.

Juiz de Fora, 27-8-72

(www.luteranos.com.br/conteudo/o-tempo-isaias-29-18-21)

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PÁTRIA

Salmo 127.1

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam. Se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. (Salmo 127.1)

Os mandamentos de Deus sempre se referem, se aplicam ao homem todo a tudo aquilo que o homem é, pensa, fala e faz. Isso significa que não existe nenhum setor, nenhuma parte de nossa vida que possa ser neutra. Por isso mesmo, os mandamentos de Deus falam a nós como membros de nosso povo, como cidadãos. Deus também é o Criador e Senhor, e Juiz e Salvador da nossa vida civil — e não apenas de nossa vida pessoal. Em nossa existência como cidadãos, Deus também quer nosso serviço, nossa dedicação, nosso testemunho. Também na caminhada de nossa independência, a Palavra de Deus Quer ser a única luz de nossos caminhos.

Mas por quê? Porque é pela vontade de Deus que temes uma Pátria. É pela vontade de Deus que temos ligações com homens e mulheres que falam a mesma língua que nós, assim que podemos comunicar-nos, entender-nos, encontrar-nos uns com os outros. É pela vontade de Deus que nascemos neste lugar, nesta terra. A Pátria é o lar que Deus nos deu. Pensando bem, sem essa Pátria, nós não podemos pensar, sentir, agir, viver. Nós não existimos sem o nosso povo.

Agora: se os mandamentos de Deus valem para nós, dentro de nossa Pátria, no meio de nosso povo — como é que isso funciona na prática? Como é que obedecemos à vontade de Deus em nossa Pátria?

149 03/09/1972

Em primeiro lugar, precisamos compreender a Pátria como uma espécie de moldura. Dentro dessa moldura, estamos nós. Nós formamos o quadro -- como homens e mulheres, como filhos, como pais e mães, como profissionais. E é dentro dessa moldura, neste lugar, que acontece nossa santificação. É aqui, dentro do Brasil, que acontece nosso louvor e adoração a Deus. É aqui, dentro do Brasil, que amamos a nosso próximo.

Por isso, nós não podemos desprezar nosso lugar, nossa Pátria. Aceitando a vontade de Deus, nós só podemos e só devemos aceitar nossa Pátria — como representando urna tarefa e um compromisso. Não foi por acaso que Deus nos fez nascer aqui ou vir para cá. Portanto, alegremo-nos por ter uma Pátria. Sejamos gratos por nos ter sido dada uma Pátria.

Em segundo lugar, precisamos compreender que alegria e gratidão sempre se expressam, se manifestam como amor e fidelidade. Amor à nossa tarefa de cidadãos e fidelidade ao nosso compromisso de cidadãos. Em outras palavras: amor e fidelidade são simplesmente patriotismo.

Por isso o verdadeiro patriotismo é contra todas as formas de injustiça e opressão. Por isso, o verdadeiro patriota pensa mais nos outros do que em si mesmo. Por isso, o verdadeiro patriotismo luta por direitos iguais e oportunidades iguais para todos os homens e mulheres. Por isso, o verdadeiro patriotismo respeita todas as pessoas de um povo, em especial, aquelas pessoas que são pobres, que não têm poder, que precisam mais. Por isso, o verdadeiro patriotismo coloca a dignidade das pessoas acima da riqueza nacional, acima do poder nacional, acima de qualquer outra conquista nacional. Porque patriotismo é a construção de uma sociedade mais justa. Essa é a nossa tarefa. E patriotismo é o combate a

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todas as formas de egoísmo. Esse é o nosso compromisso. Quem não tiver amor, nunca vai cumprir a tarefa. E quem não for fiel, nunca vai honrar o compromisso. Nem o dinheiro nem as armas podem substituir a fidelidade e o amor.

Em terceiro lugar, precisamos compreender a história de nossa Pátria como um conjunto de experiências e acontecimentos que também fazem parte da história de nossa vida. Assim como nossa vida é uma parcela da vida nacional. É pela vontade de Deus que isso é assim. E por isso, é a vontade de Deus que nos coloca dentro dos problemas, das preocupações, das necessidades e das tarefas de nossa Pátria.

Por isso, o cidadão cristão nunca vai se colocar à margem, ao lado dos assuntos nacionais. Pelo contrário, toma uma posição diante dos fatos. Discutir e debater nosso futuro, é urna questão de obediência aos mandamentos de Deus.

E o que essa obediência aos mandamentos significa, na vida nacional, pode ser esclarecido através de alguns exemplos da vida de cada dia:

Deus é Senhor, em nossa Pátria, ou existem outros que pretendem ser, aos poucos, nossos senhores e deuses?

O nome de Deus é santo para nós — ou é apenas um disfarce para esconder as piores intenções?

É possível honrar uma mãe que se prostituiu para ter o pão de cada dia?

É permitido matar pessoas, com a desculpa de que se pretende salvar a sociedade?

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Correspondem à vontade de Deus certas formas de exploração do trabalho, que atingem justamente os mais pobres?

Diante do mandamento de Deus, que significa a difamação que atinge adversários políticos, padres e cristãos?

Ninguém pode escapar a essas perguntas. Os mandamentos estão aí — e os fatos também. Verdadeiro patriotismo é aquela, amor, aquela, fidelidade que também encara esse tipo de problemas.

Porque foi Deus mesmo que nos colocou dentro das situações e circunstâncias em que vivemos, sofremos e trabalhamos — com outros!

E com isso chegamos ao centro mesmo daquilo que o salmista diz:

Onde o Senhor não construir a casa, é inútil o trabalho dos construtores.

Se o Senhor não cuidar e guardar a cidade, é inútil a vigilância da sentinela.

Se nós não quisermos que seja inútil nosso trabalho e sacrifício por nossa Pátria que nos foi dada, então

— obedeçamos à vontade de Deus, coloquemos a vontade do Senhor acima de todas as outras vontades,

— confiemos a ele esta nossa Pátria, par que seja mais fraterna, mais justa e mais livre. Amém.

Juiz de Fora, 3-9-72

(www.luteranos.com.br/conteudo/patria-salmo-127-1)

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CELEBRAÇÃO E CULTO

Nós te agradecemos, Deus, invocamos o teu nome e declaramos tuas maravilhas. Pois disseste: hei de julgar retamente. Digo aos orgulhosos: não sejam arrogantes. E digo aos ímpios: não falem com insistência contra a Rocha. Porque não é do Oriente nem do Ocidente que vem o auxílio. Deus é o juiz, a um derruba e a outro exalta. (Salmo 75, seleção)

Nossos templos não são apenas casas de pedra, onde as pessoas vão buscar consolo para suas misérias e sofrimentos. Nossos cultos não são apenas reuniões públicas, onde alguns repetem palavras e cantos pré-estabelecidos. É claro que não faltam pessoas que vêm à igreja com coração amargurado e sentem que a experiência da oração e do louvor pode aliviar e ajudar. E é claro que sempre existem alguns que misturam glórias, aleluias e bocejos. Mas nós não queremos perder tempo com aquilo que não deveria ser e acontecer. É muito mais interessante a gente relembrar aquilo que é.

Nossos templos são o lugar onde acontece uma celebração. Nossos cultos são uma festa que pretende anunciar alguma coisa.

Anunciar e transmitir o quê? Anunciar, proclamar abertamente, publicamente que existe uma nova vida. Portanto o culto não é uma coisa neutra, inconsistente, morna, que não cheira nem fede. Pelo contrário, nosso culto celebra as maravilhas de Deus. Nosso culto celebra a criação de um mundo onde a fraternidade será vivida pelos homens que constroem a paz.

153 24/09/1972

Quer dizer: quem vem ao culto e participa da festa, está contribuindo para tornar verdade aquilo que ainda não é, mas que pode ser. Os que se julgam donos da verdade, os amargos, os inseguros não sabem festejar. Para anunciar as maravilhas de Deus, e agradecer por elas, é preciso querer festejar. É preciso se descontrair, acreditar naquilo que está sendo celebrado, é preciso perder a rigidez — em resumo: expressar a alegria de estar vivendo.

O salmo que nós acabamos de ouvir era cantado, rezado e até dançado pelo povo de Israel. Por quê? Porque eles sabiam festejar. E que é que eles comemoravam tão festivamente?

Eles comemoravam a certeza da promessa de Deus. Eles lembravam festivamente a presença de Deus na luta pela libertação do povo. Assim como nós celebramos a vitória de Deus, vitória que nos redimiu, nos salvou e nos garante o futuro. Alegria é um sentimento que sempre está intimamente ligado à esperança e à certeza. É a esperança que nos faz ir sempre em frente apesar de tudo. A atitude que vem da esperança é uma atitude de coragem. E essa coragem se fortalece com uma certeza: Deus é justo.

E agora? Interrompeu a festa? Qual foi o desastre? Qual é o mal-estar?

No meio da festa, Deus disse: Hei de julgar! Hei de julgar retamente!

Isso é festa ou é tribunal? A gente não estava mesmo querendo festejar Deus? Festejar o Deus que venceu a morte, que derrotou a escravidão, o Deus que nos libertou em Cristo?

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E no meio da festa, é como se alguém tivesse deixado cair um copo. O dono da festa anuncia que vai julgar. De repente nós nos lembramos daquela frase que todos repetem, domingo após domingo:

Creio em Jesus Cristo que virá para julgar os vivos e os mortos.

E então a coragem se esvazia e vem o medo. As canções morrem na metade, a gente sente vergonha. A gente queria comemorar uma nova esperança — mas voltou a incerteza, a dúvida. A gente queria celebrar — mas os pensamentos, o coração, as convicções ficaram lá longe, lá atrás, lá fora.

Por que, minha gente? Por que é que nós fracassamos tão seguido? Por que é que a justiça de Deus nos deixa tão chateados — ou assustados — ou desanimados e tristes?

Nós ouvimos: Deus é o juiz. A uns derruba e ia outros eleva. E essa ducha d’água fria cai sobre nós porque sempre imaginamos que nós é que vamos levar o tombo. É capaz que nós sejamos os derrubados...

É por isso que tanta gente acaba no espiritismo. Eles pensam assim: de tombo em tombe, de escorregão em escorregão, o sujeito acaba ficando de pé. Se danou nesta vida? Não faz mal. Vive de novo — e vive de novo — até que tudo conserta.

É por isso que alguns acabam na macumba. Em vez de levar o escorregão e esborrachar o nariz eu faço um despacho — e quem se rebenta é o outro.

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É por isso que tantos se desiludem e acabam neste ou naquele vício. Nada de pensar muito nem esquentar a cabeça. Deixa pra lá. Pode ser que Deus seja mineiro. A coisa se resolve... Mais uma dose!

Mas a coisa toda nem é essa, meus irmãos! A justiça de Deus não tem nada a ver com legalidade. A justiça de Deus não tem nada a ver com leis, e princípios, e normas, e pesos, e medidas. Se Deus fosse julgar de ‘acordo com um regulamento, pra começo de conversa — não escapava ninguém! Em algum cantinho de nós, cada um é um — pois é, é aquilo mesmo! Cada um de nós! Não adianta ser arrogante ou orgulhoso, não adianta mesmo.

Justiça de Deus é uma dádiva, um presente que o Senhor nos dá. Justiça de Deus é isso que permite viver e dá a alegria de viver. Para a Bíblia, justiça é o novo relacionamento de cada um e de todos com Deus. Justiça de Deus é essa imensa liberdade de se abrir para o futuro, para o amanhã. Justiça de Deus é a promessa de que tudo aquilo que ainda não é hoje, certamente vai ser amanhã. Justiça de Deus é o mesmo que salvação gratuita.

E é por isso que a festa não precisa ser interrompida. Nós não precisamos ficar com medo e perder a coragem. Nós não precisamos perder a alegria e a esperança.

O auxílio, a salvação não vêm do Oriente nem do Ocidente. Nós não precisamos perder tempo com coisas de cá e coisas de lá. A maior maravilha de Deus é justamente isso: que ele é justo, no meio de todas as injustiças.

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Graças a Deus, nós todos só dependemos dele, a Rocha, nossa salvação. Amém.

(Mar de Espanha — 24-9-72)

(www.luteranos.com.br/conteudo/celebracao-e-culto-salmo-75)

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Por isso o culto dos cristãos é uma festa. Quando nós ouvimos dizer que o juiz é Deus, podemos celebrar e agradecer.

Efésios 4.21-32

19º. Domingo após Trindade

A verdade em Jesus é que - em contraste com vosso passado - vos despojeis do velho homem, que se perde segundo concupiscências enganadoras, renovando-vos, pelo Espírito, em vosso íntimo e revestindo-vos do novo homem, criado por Deus em verdadeira justiça e santidade. (a partir do vers. 25, segundo Almeida)

Meus caros irmãos e irmãs!

Se o velho homem em nós é algo de que podemos nos despojar, algo que podemos despir, então podemos compará-lo a uma vestimenta imprestável. Não se trata, porém, de um traje usado para o trabalho, que se põe de lado no sábado, para voltar a utilizá-lo, limpo, cerzido e remendado, na segunda-feira. O velho homem é um traje que não comporta conserto, pois está gasto. Só pode ser desvestido e posto fora. Definitivamente.

Isso significa que o velho homem, sendo apenas um traje, não é nossa pele ou nosso coração. Nós não somos o velho homem! O velho homem é apenas algo que nos veste, que nos cobre, que talvez nos esconda ou fantasie.

Talvez essa constatação nos surpreenda, quando consideramos as características que o apóstolo menciona, como sendo típicas do velho homem. P. ex: a mentira (convencional, social, comercial, política), a cólera, a ira que em absoluto chega ao término com o pôr-do-sol, mas que continuamos a alimentar, ano após ano, através de toda uma

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vida, às vezes. A mania de espalhar boatos e difamações (essa mania — que esconde tanta tristeza e, no fundo, tanto medo de viver). Nós conhecemos tudo isso. Será verdade que tudo isso não passa de um traje? Será verdade que nós mesmos não sejamos os mentirosos, os irados, os difamadores? Sim, é verdade! Mesmo que estejamos atolados em mentiras, cólera, difamações, nós não somos isso?

Mas há mais uma observação interessante a respeito do velho homem: esse traje velho e usado corrompe-se, perde-se, segundo suas próprias concupiscências enganadoras. É um traje que se desgasta por si próprio, assim como o foguete que explode, destruindo-se a si mesmo. O velho traje, o velho homem, já não consegue tapar-nos e esconder-nos. Basta olhá-lo para ver como está esburacado e esfarrapado. Basta olhá-lo para notar que está na hora de pô-lo fora.

Mas é curioso constatar isso, se pensarmos novamente nas características do velho homem. Por exemplo:

As palavras torpes, as critiquices constantes que saem da nossa boca. Tudo isso não constrói, não produz nada de bom, É como madeira podre, que não serve nem para um bom fogo.

Será verdade que tudo isso jamais possa estar na iminência de ser posto fora? Não será verdade que tudo isso sai de todos os nossos poros, como suor? E o furto? E os bens acumulados à custa do trabalho de outros? E essa tendência para ignorar que tudo o que nos sobra deve servir aos necessitados? Que não se podem acumular lucros ociosos? Estará mesmo chegando ao fim essa espécie de roubo? Não será esse roubo o sistema sólido e firme sobre o qual se assenta toda a sociedade? E será verdade que a amargura, a gritaria, a blasfêmia e a malícia

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estejam chegando ao término, como um traje velho e roído de traças? Não será tudo isso uma espécie de indústria poderosa? Afinal, de que vivem os jornais, as revistas, a televisão, o cinema?

E, no entanto, o apóstolo acha que nós podemos despir esse traje, apesar de ser uma roupa que sempre nos servia, apesar de o velho homem ter lançado fundas raízes em nós. Note-se bem: não sou  eu quem está dizendo que podemos despojar-nos do velho homem. É a palavra de Deus que o afirma. Logo, isso vale para vós e para mim!

Evidentemente, o ato de despir o velho homem está em íntima ligação com outro ato: o de vestir o novo homem. Logo, o novo homem também é uma espécie de traje que já está pronto, feito especialmente e posto à nossa disposição. É só vesti-lo.

Não se trata de um traje domingueiro! É um traje para todas as ocasiões (inclusive para os domingos!). E, nesse ponto, é importante observar que, se o novo homem é também um traje, ninguém poderá dizer que se tornou, que é um novo homem. Pode-se vestir o novo homem: é uma vestimenta que agasalha, que senta bem, que é confortável, que protege. Mas nós não somos o novo homem. Mas, assim como se pode olhar para o velho homem e perceber em que estado se encontra, pode-se fazer o mesmo com o novo traje, o novo homem. Por exemplo:

Se, de repente, se tornasse realidade o fato de nós não mais mentirmos uns aos outros, mas dizermos a verdade, visto que somos membros uns dos outros; se nos tornássemos benignos, em vez de ferinos; se compassivos, em lugar de indiferentes ou desconfiados; se nos perdoásse-

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mos uns aos outros nossas maldades, direta ou indiretamente; se penetrássemos na comunhão com Deus, a qual já nos perdoou em Cristo.

Se, em vez do roubo, passássemos a reservar algo do produto de nosso trabalho para outros, os outros que precisam mais dele.

Bem, isso seria o novo homem, o novo traje, algo de bem real, e concreto e prático em nossa vida diária. Não seríamos nós, com nossa capacidade. Por isso, nem poderíamos vangloriar-nos ou orgulhar-nos. Nós só poderíamos ser gratos pelo novo traje.

Não nos sentiríamos mais vazios e inúteis. Algo da verdadeira alegria de viver teria despontado para nos. Revestidos do novo homem, nós teríamos aprendido a viver e a morrer.

Sim, e o apóstolo acha que nós podemos vestir o novo homem. Ninguém poderá dizer que é capaz de realizar tudo isso que se refere ao novo homem. Mas ninguém está incapacitado para vestir o novo homem. Cada um de nós pode!

E donde vem este anúncio insistente? Verdade em Jesus! Por causa de Jesus é necessário, não há outra possibilidade. Ambos os atos estão preparados por Ele. Porque pertencemos a Ele, porque fomos batizados em Seu nome. Jesus morreu e com Ele o velho homem, e Ele ressuscitou e trouxe à luz o novo homem. (Vivamos, pois, o nosso batismo!)

Quem sou eu? Aquele que ouviu...

(https://www.luteranos.com.br/conteudo/efesios-4-21-32)

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Marcos 10.13-16

21º. Domingo após Trindade

Se esta história não fosse tão conhecida, nós a consideraríamos incrível.

Antes de mais nada, é incrível a atitude dos discípulos. Que dureza de coração!  Nossa  atitude é bem melhor. Hoje em dia todo mundo se preocupa com a infância, com problemas escolares, de alimentação, etc. A atitude de Jesus nos parece clara e indiscutível. A atitude dos discípulos, pelo contrário, nos parece censurável.

Contudo, pensando melhor, a atitude de Jesus também poderá ter algo de incrível. Crianças maiores, claro, devem ganhar passagem até Jesus. Mas bebês trazidos pelas mães!

Qual o sentido de tudo isso? Claro, nós também nos interessamos por nenês. Mas qual é a utilidade dessa bênção dada por um desconhecido, na ruela de uma vila? Os bebes nem entendem o que está acontecendo! E, em última análise, a mis são de Jesus não é muito mais elevada? Como poderá ter tempo a perder com criançada miúda? Será que os discípulos não teriam razão em procurar impedir as mães demasiado interessadas na sorte de seus próprios filhos? O que, em todo caso, devemos considerar e o seguinte: a resposta de Jesus a seus discípulos não é tão evidente assim. E seria idiotice pensar que a moral de tudo se resume na frase: Vejam só, um homem tão ocupado encontra tempo até para atender as criancinhas! Essa história não se encontra no Novo Testamento para provar que Jesus era simpático. Não. O ver dadeiro sentido desse episódio é bem outro. A mais elevada missão de Jesus, sua tarefa mais importante e decisiva, refere-se aos pequeninos.

162 29/10/1972

Nós, os adultos, os esclarecidos, estamos excluídos.

Crianças não possuem virtudes especiais! (Tiranos)

Crianças são pequenas e dependentes. Não podem ajudar-se.

Será Jesus um tirano que sé se interessa por subalternos? Não. Veio para os perdidos e humildes. Ele veio para quem precisa dele.

E nós, apesar dos pesares, precisamos dele!

Só que não reconhecemos isso.

Nós = nosso próprio obstáculo.

Não - Ele nosso obstáculo.

Sede pequenos!

Isso não significa assumir virtudes e características infantis!

Recomeçar tudo = ficar pequeno.

Ir até Ele, essa é a grande mudança. Não se trata de um imenso esforço. O que Jesus dá é o Seu Reino: no qual Sua vontade acontece, no qual deixa de existir o abismo entre Deus e os homens.

Deus nos presenteia com a nova vida. O crescimento e o amadurecimento significam dizer  sim a Deus (não um talvez dos adultos).

Deus vê o crescimento!

(www.luteranos.com.br/conteudo/marcos-10-13-16-1)

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Salmo 4.8

Reforma

Em paz me deito e logo adormeço porque a segurança do meu repouso vem só de Ti, Senhor.

Toda e qualquer vida religiosa começa com uma necessidade elementar do homem: a segurança. Essa necessidade de sentir-se seguro explica a obediência sistemática de certas seitas que só existem para estabelecer proibições e regula mentos. O indivíduo não pode fazer isso nem aquilo, e deve cumprir isso e aquilo. Não é pequeno o número de cristãs católicos que navegam por essas águas. Acreditam eles que Deus organiza uma espécie de contabilidade, anotando cuidadosamente as boas ações e também os escorregões de cada um. No fim da vida, se as boas obras foram suficientes, a pessoa pode se sentir tranquila é segura: Deus vai reconhecer que ela merece a eterna bem-aventurança, a salvação!

Desde os primeiros tempos do cristianismo pode-se verificar a existência desse tipo de mentalidade na Igreja. E o primeiro a protestar com veemência contra essa perversão foi o apóstolo Paulo. Quando se leem as cartas de Paulo, no Novo Testamento, fica claro que o cristão não pode construir garantias para a eternidade, como quem possui uma caderneta de poupança da caixa econômica celestial. Tudo o que Deus faz pelos homens, Ele faz por graça e de graça. 1500 anos depois de Cristo aparece de novo, com extraordinário vigor, essa ideia de que a gente pode comprar o perdão dos pecados - e garantir a eternidade com um pouco de caridade. Quem então se levantou para pro-

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testar foi Martin Lutero. Seu protesto foi feito em nome do Evangelho de Jesus Cristo. Os argumentos de Lutero não são nada mais que uma repetição do que já tinha dito o apóstolo Paulo. O mais impressionante, na Reforma iniciada por Lutero, talvez seja o fato de que suas palavras, Seus livros e sua pregação são realmente coisas vividas.

Sim, Lutero também tinha acreditado que a gente pode garantir a simpatia de Deus, fazendo isso ou aquilo. Foi longa e penosa a caminhada para o novo reconhecimento de que o cristão é uma pessoa que vive completamente sem garantias e sem segurança. E por que o cristão é isso? Porque o Evangelho nos diz que é Deus quem nos perdoa, que é Deus quem nos aceita, que é Deus quem toma a iniciativa de buscar-nos para Si.

Quer dizer: mesmo uma vida exemplar ainda não representa garantia de coisa alguma. Mesmo uma doutrina correta não pode dar segurança. A igreja é a reunião, a comunhão do Cristo com seu povo - mas não é uma garantia. O Batismo é a marca de uma nova vida que Deus nos oferece - mas a certidão do Batismo não é um passaporte para o céu. A Bíblia é a palavra de Deus para nós - mas um monte de seitas por ai demonstram que com a Bíblia pode-se provar muita bobagem também.

Não, nós não podemos estabelecer seguranças e garantias. Quem quiser experimentar isso, vai acabar cheio de dúvidas e confusões.

Nossa única segurança, nossa única garantia, nosso único refúgio só pode ser o Senhor - só pode ser o Deus que conhecemos através de Jesus Cristo. E isso significa que a segurança só pode ser uma coisa dada. A garantia só pode

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vir de fora, de um outro. Verdadeira segurança é quando alguém deita e logo adormece - em vez de pensar naquela janela que não fecha direito - ou no ladrão que pode arrombar—a porta dos fundos. Em paz me deito e logo adormeço, porque a segurança do meu repouso vem só de Ti, Senhor!

Eu dizia, antes, que a Reforma de Lutero não é apenas uma questão de doutrina, de teoria - mas que é principalmente coisa vivida. E de fato, Lutero teve de viver sem nenhuma outra segurança, além do auxílio do seu Deus. Aos 37 anos, Lutero foi excomungado pelo papa. Aos 38 anos, foi proscrito pelo imperador. Sabem o que isso significa? Significa — que qualquer cidadão do império poderia fazer com Lutero o que bem entendesse - poderia, inclusive matá-lo - recebendo até uma recompensa por isso. Significa que se poderia tomar conta, de qualquer jeito, dos bens dos parentes, amigos e adeptos de Lutero. Significa que qualquer denúncia dos cristãos que começavam a chamar-se de luteranos, seria sempre bem recebida e recompensada. Para Lutero e sua gente não havia direito nem justiça, nem garantias de espécie alguma.

Foi assim que Lutero viveu e começou a Reforma da Igreja. Cercado de ameaças, mas convencido de que Deus protege os seus.

Mas nós não estamos aqui na igreja para idolatrar Lutero. Nós estamos reunidos para refletir sobre a importância da Reforma hoje.

Os irmãos já devem ter percebido como o nosso tempo e as pessoas de nosso tempo estão possessas pela ideia da segurança. Todos os países do mundo discutem sobre a própria segurança.

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No entanto, essa preocupação, que é legitima enquanto problema nacional - essa preocupação não pode tomar conta de nossa vida pessoal. Qualquer pessoa que pretende construir a segurança da própria vida e da própria fé, está cometendo uma tolice. Agora, se alguém insistir nessa tolice, eu daria o seguinte conselho: experimente: Experimente garantir tudo em sua vida, na vida de sua família. Experimente garantir o futuro, direitinho. E amanhã, pegue um jornal e dê uma espiada. Da primeira à última página você vai ver como valem pouco todas essas medidas de garantia.

De fato, um dos maiores dramas de nossa época é essa angústia que nasce nas pessoas que procuram garantia para tudo - e que descobrem que nada está garantido nesta vida.

Dois terços de todas as doenças nervosas do homem moderno nascem do medo. Todas as tiranias do mundo nascem do medo dos poderosos. Metade das guerras são provocadas pelo medo. É preciso continuar? Ou devo apresentar uma receita contra o medo? Exemplo: você deve acreditar que acredita, tanto tempo até acreditar que está acreditando?

Não, eu não posso dar receita nem ensinar a ter fé. Eu só posso lembrar que, na vida, todas as coisas se tornam secundárias (o que não quer dizer sem importância:), quando Deus nos estende a mão. Quando Deus permite que nos concentremos nessa uma coisa realmente segura: sua misericórdia.

Isso não significa que podemos nos reclinar, nos encostar na segurança da misericórdia de Deus. A Reforma de

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Quando nossa segurança vem só de Deus, descobrimos o que é ficar livre do medo. E descobrimos também nossa responsabilidade por todos os outros que ainda confiam nas falsas garantias.

(https://www.luteranos.com.br/conteudo/salmo-4-8)

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Lutero justamente mostra o que acontece numa vida que desiste de falsas seguranças.

Apocalipse 5.5-13

O assunto, agora, desapareceu da primeira página dos jornais. Mas só agora começarão a aparecer, pouco a pouco, os resultados, as consequências concretas. Refiro-me ao reatamento EUA e China. Até mesmo pessoas pouco habituadas a acompanhar e compreender os acontecimentos internacionais perceberam que aconteceu algo de novo, após 23 anos de ofensas e ameaças. Não é aqui nem o lugar nem o momento para examinar esse tipo de problemas. Menciono o assunto, por dois motivos:

1º. - Essa sensação que todos mais ou menos têm, de que os grandes e poderosos deste nosso mundo mais uma vez entraram de acordo, fizeram as pazes e se prepararam para repartir o bolo.

2º. - Diante desses acontecimentos, a gente mais uma vez se pergunta: a quem pertence o mundo?

* * *  Nós não somos os primeiros a fazer essa pergunta. Desde a primeira até a última página da Bíblia, essa pergunta se repete. E recebe várias respostas que continuam a ser nossa profissão de fé. Quer dizer: a pergunta não nasceu do encontro Nixon e Mao. Todas as vezes que os homens começam a observar o que vai pelo mundo, a pergunta volta. Toda vez que alguém começa a ler sua Bíblia, a pergunta retorna. A quem pertence o mundo? Nós hoje vamos ouvir a res posta que nos dão Apocalipse.

* * *

169 12/11/1972

O Apocalipse não é um livro fácil. Em parte, até assusta. No caso de nossa pergunta, a resposta é até bastante desafiadora. O autor do Apocalipse nos descreve uma visão estranha. No primeiro momento parece que ele está vendo o céu, falando do céu, descrevendo o lugar onde está Deus - como se fosse a majestosa sala do trono de um rei. Logo depois, notamos que o ambiente deve ser muito mais amplo, até sem limites, pois ressoam as vozes de milhões e milhões de seres viventes. E por fim se ouve o louvor de todas as criaturas da terra e dos céus, e debaixo da terra e do mar. Quer dizer: a visão coloca diante de nós todo o universo. É uma visão global, total. Não estamos vendo só um lugar, mas todos os lugares. Não estamos mais diante de uma criatura, ou várias, ou muitas, mas de todas as criaturas. É como no começo da Bíblia: céus e terra e tudo o que neles há, toda a imensa e completa criação de Deus.

* * *

E então se levanta a pergunta: qual é o destino de tudo isso, de todo o universo? Para onde vão esses milhões e bilhões de criaturas? A quem pertence este mundo, este universo?

E a resposta é: Este mundo, o destino do universo, pertencem ao Cordeiro de Deus, aquele que é digno de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor. Dizendo de modo mais resumido: este mundo e o universo com todas as criaturas pertencem a Jesus Cristo.

Neste ponto, alguém pode estar pensando: Bom, podemos dormir adiante. Não é novidade que Jesus Cristo é o Senhor do Mundo. Isso já sempre foi dito na Igreja...

Certo, mas acontece que nosso texto não está falando da Igreja ou na Igreja. Nosso texto do Apocalipse fala em todas as

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criaturas. Assim como a Bíblia também não começa com a história do povo de Deus - e sim com a histeria da humanidade.

* * *

Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus, não é monopólio da Igreja. Pelo contrário, o título de Cordeiro dado a Jesus, tem dois sentidos bastante tremendos.

1º.) Os 7 chifres e 7 olhos representam força, poder, domínio, soberania, riqueza, honra - palavras muito usadas, hoje em dia, quando se fala em economia e política. E naquele tempo (do Apocalipse) também. Quer dizer: OS títulos e honrarias concedidas a César, aos poderosos daquele tempo - são transferidos para ó Cristo.

2º.) O Cordeiro é o animal morto sem oferecer resistência. O Cordeiro é o animal do sacrifício. O Cordeiro lembra sangue derramado. Quer dizer: o poder e a glória, a força e honra não foram transferidos de mão beijada. Tudo isso custou alguma coisa. Custou sangue.

* * *

Quando pensamos na história da humanidade, desde a antiguidade até nossos dias, notamos muito bem que é uma história escrita com sangue. E a Bíblia nos mostra que toda essa história banhada em sangue de mártires, inocentes e canalhas também esconde, também inclui, também conhece uma outra história: a história da salvação. Os homens vão matando e morrendo - e Deus vai escrevendo sua história. De vez em quando nós não conseguimos entender mais nada. Mas Deus entende! No meio de toda a confusão, Deus entra no jogo, aceita o jogo - e também

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corre sangue: o sangue do Cordeira Deus mostra que, apesar de sua humanidade ser o que é, essa humanidade é, acima de tudo, a humanidade amada por Ele, criada por Ele, protegida por Ele, redimida por Ele.

* * *

Por isso é que o cristão segura o jornal com uma mão e a Bíblia com a outra. Porque a história de Deus e a história dos homens não são duas coisas separadas e diferentes. Pelo contrário - completamente interligadas, combinadas, misturadas. Assim também nosso louvor aqui na terra não é uma coisa diferente do louvor que os céus cantam ao Cordeiro. Pelo contrário - com nossos hinos e nossa liturgia estamos em comunhão com o louvor e a glória que cantam todas as criaturas, nos céus, na terra, debaixo da terra e nos mares. Assim também nossa Ceia neste domingo não é completamente diferente do banquete celestial, no Reino de Deus. Pelo contrário quem não pode aceitar agora, com alegria, a dádiva do Cristo, não será convidado para a grande festa.

* * *  Com isso, chegamos ao centro da mensagem do Apocalipse.

Quem só sabe respeitar os grandes e poderosos do momento, quem só pode aplaudir os que estão na crista da onda, quem só teme as armas e a força bruta - ainda não sabe o que significa a confissão de fé: Jesus Cristo é o Senhor. Quem só vê e respeita as coisas imediatas, aquilo que está na cara e, por isso, mete medo - ainda não conhece o primeiro mandamento no seu sentido mais profundo: temer e amar a Deus e confiar nele sobre todas as coisas.

O tremendo, o desafiador na mensagem do Apocalipse é

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que não há meio-termo, não há acordo, não há compromissos. Es te nosso mundo, apesar das aparências, não é o bolo que os grandes e poderosos repartem entre si. Este nosso mundo pertence àquele um que comprou o mundo para Deus, com seu sangue. Por isso é que nós pertencemos só a Jesus Cristo. Porque ninguém ainda pagou preço mais alto. Resta saber se nós vamos aceitar outra oferta. Mas isso é a decisão de cada um. Cada um deve saber a quem vai dar Glória e louvor. Amém.

(www.luteranos.com.br/conteudo/apocalipse-5-5-13)

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Zacarias 9.9-10

Advento

É muito provável que as palavras jubilosas do profeta nem cheguem a encontrar entre nós o eco, a resposta correspondente. E em última análise, isso está ligado ao fato mesmo do Advento. Todos nós recebemos o convite para aguardar a vinda de alguém. Todavia, cada um de nós sabe que essa espera está, de uma maneira ou de outra, tanto quanto desloca da. Pois o esperado já veio, já chegou. Por isso mesmo, o Advento resume-se, para a maioria de nós, numa espécie de introdução ao Natal. Espera-se pelo Natal, mas não pelo Rei:

Por outro lado, a vinda anunciada do Rei faz nascer em muitos uma sucessão de pensamentos sombrios. O raciocínio é mais ou menos o seguinte: o Antigo Testamento promete a chegada do Rei; o Novo Testamento afirma que ele já veio. E de que serve isso? Desde o tempo de Jesus até nossos dias, o mundo mudou bastante. Isso é incontestável. Mas será que o mundo se transformou? Estaremos nós vivendo novos tempos? Não é um fato que tudo continua como antes? Não é uma realidade que o dinheiro e o poder da força governam o mundo? Não se comprova diariamente que os fracos são esmagados e injustiçados? Assim sendo, qual o valor das palavras de Zacarias para nós, hoje? Aparentemente só existe uma entre duas possibilidades: ou o profeta se refere a alguma coisa que já aconteceu (e nesse caso suas palavras estariam ultrapassadas e fora de moda), ou as palavras proféticas não se cumpriram (com o que estariam bom-

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bardeadas—definitivamente). Sim, aparentemente, são essas as duas chances. Mas só aparentemente. Porque de fato, o Advento tem perspectivas bem outras. Não há dúvida de que o Novo Testamento proclama uma notícia constante: Jesus já veio. Resta saber como se deve entender essa vinda, essa chegada, esse Advento.

Jesus não veio como quem entra casa adentro e passa a estar presente. Se assim fosse, ele seria tão transitório, tão passageiro como todas as coisas palpáveis. Como todos nós - que somos tão concretos e tão transitórios. Jesus só está presente, entre nós, na medida em que confiarmos que ele nos quer ter consigo, para si. A presença de Jesus se realiza no fato de vir ao nosso encontro e de permitir que andemos ao seu encontro. E como isso ocorre sempre de novo, em cada vida, Jesus é realmente aquele que veio, que continua a vir e que virá.

Em outras palavras: o Advento não é uma realidade eternamente transferida para um futuro que ninguém sabe quando virá. Advento é uma realidade que nos faz ter um futuro. O Advento nos ensina que não temos apenas um passado que nos foi perdoado. O Advento nos mostra que não temos apenas uma atualidade que pode ser vivida na presença de Deus.

Com o Advento nós temos a promessa de um futuro.

E isso é importante, porque futuro não é apenas aquilo que vai acontecer amanhã, em dezembro, no ano que vem. Tudo isso são coisas que passam. Se fosse apenas isso, o futuro não seria mais do que um prolongamento do presente. Assim como as coisas acontecem hoje, acontecerão amanhã. Pronto. Fim. Ponto final.

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Mas futuro é mais do que isso. Futuro é a vinda de Jesus. É um encontro com Ele. Talvez tudo isso pareça esquisito. E é certo que Jesus não será a realização do que mais esperamos. Jesus não será o prolongamento de nossos planos e sonhos. Por outro lado, Ele não e mais uma incerteza, mais uma ansiedade ao lado de tantas outras. Nós sabemos por quem esperamos. Nós o conhecemos. Por isso é que nosso encontro Com Jesus é nosso único futuro certo e garantido. Os males, as catástrofes, as decepções que nos aguardam amanhã, às eventuais mudanças para melhor, no próximo mês, no próximo, ano, tudo isso nos é desconhecido. Mas a esperança do Advento é concreta: é a esperança depositada naquele a quem já pertencemos!

Concedo que essa visão bíblica do que seja futuro é bastante diversa da convenção comum, normal, a respeito. O que - em todo o caso é, válido, é isso: a concepção bíblica de nosso, futuro, sem enfeitar a realidade com promessas inúteis e mentirosas, é a única capaz de livrar-nos do medo e preencher-nos de confiança. Porque Deus não costuma dizer hoje sim e amanhã não. Deus já disse sim, de uma vez por todas... Que significa esse sim? ...Justiça como auxílio. E nós? Vem Ele a nós?

O poder oculto.

Se assim não fosse, nossa condição cristã (as tentações e lutas que nunca terminam), o triunfo do poder da força e da injustiça na vida dos povos seriam incompreensíveis. O clamor dos torturados, o esmagamento dos povos, seriam pura e simplesmente provas de que o Evangelho é uma mentira. A conclusão só poderia ser uma: o rei da Bíblia ou não tem poder ou não tem amor. Seu poder, porém, é oculto. (Isso nos leva à seguinte decisão:)

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Confiar naquele que já é rei e que vem. Ou assumir compromissos com aqueles que aparentemente dominam a situação. Aqueles que nos querem convencer a ser realistas.

Eis a diferença entre fé e descrença. Fé é fé no Rei! Descrença é a fé nos outros poderes, nos outros poderosos. Fé é par em dúvida o poder dos outros poderes (v. 10). Quais são as consequências medida com os fatos? Não deveríamos estar ao lado da justiça ameaçada, da paz ameaçada, da dignidade humana ameaçada? Apesar dos êxitos incompletos?

Ele espera por nosso sim!

(www.luteranos.com.br/conteudo/zacarias-9-9-10-2)

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A MISERICÓRDIA

Lucas 12.48b

SV IC ME , 11-3-73 (Dia de sua morte)

A quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão.

Ouvimos uma palavra de Jesus que é muito fácil de gravar. É simples, direta, imediata. A gente até tem vontade de dizer: é claro. Pode-se esperar muito de quem tem muito.

Mas também existe alguma coisa de inquietante, nessa frase. Nós sentimos que essas palavras se transformam numa pergunta. De repente, nos notamos que estamos sendo perguntados. E a gente se lembra de muitas falhas. Lembra que assumiu um compromisso financeiro muito pequeno, no programa de mordomia. Pequeno porque a gente sabe que podia dar mais. A gente sabe que não ia fazer falta. Mas por preguiça, por desinteresse, por falta de vontade de pensar, a gente repetiu a quantia do ano passado.

A gente se lembra de alguém que maltratou. Lembra tudo aquilo que poderia e deveria ter feito por outros (a começar pela própria família).

No entanto, é preciso perguntar: Em que é que Jesus estava pensando, quando disse que muito será exigido daquele que recebeu muito? Nós temos uma resposta para essa pergunta. Porque essa frase de Jesus vem no final de uma conversa dele com seus discípulos. E a conversa era sobre o fim do mundo e a volta de Jesus. Nosso Senhor faz uma

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comparação. Ele conta a parábola do proprietário que viaja e confia a administração de seus bens a diversas pessoas. Ao retornar, o proprietário recompensa os eficientes e fiéis e castiga os maus.

Portanto, a quem muito foi dado, não significa o que possuímos (nossa esperteza, nosso dinheiro, nossas capacidades, nossa casa). Não se trata apenas de lembrar que devemos ser agradecidos por tudo isso, que não devemos ser egoístas, que devemos pensar nos outros. É claro que faz muito bem lembrar tudo isso também, às vezes.

Mas, nessa passagem, Jesus está falando de si mesmo e de sua causa. Jesus lembra que nos confiou a administração de seus bens, de suas dádivas, neste mundo.

Nós somos os servos, a quem o Senhor deu e confiou muito. Nós, quem? Todos os que fomos batizados em seu nome. Pelo batismo, fomos todos chamados um dia. A gente pode rejeitar, desprezar, recusar o chamado. Mas o fato é que o chamado aconteceu!

E em que consiste nossa administração? Que é que Jesus nos confiou?

1) Sua palavra, os sacramentos, a Igreja (resposta talvez rápida demais, embora verdadeira).

2) A parábola nos ensina que o proprietário, o Senhor, confiou gente, pessoas, aos administradores.

O maior bem a maior riqueza que Jesus nos deixou e nos deu são seres humanos.

Os que estão sempre conosco.

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E os outros também!

A maneira de tratá-los é que vai mostrar se somos bons ou maus administradores da palavra de Jesus.

Isso não significa apenas simpatia e amabilidade. Amabilidade Pode ser bem pouco cristã.

Isso não significa apenas transigência a toda prova. Transigência constante pode apenas significar falta de vergonha na cara!

A maneira de tratar os outros é urna questão de amor ao próximo. Assim como nós exigimos justiça para nós, sejamos justos com os outros?

Gostar do outro — de qualquer outro — assim como a gente gosta da própria pele... Ser justo com os outros na mesma medida que usamos para nós...

Todo mundo nota logo que isso é tarefa para o resto da vida. Nós nunca vamos ficar prontos com esse trabalho, com esse esforço.

Em cada dia, nós vamos ter de experimentar. Em cada dia, nós vamos cometer nossos enganos. Mas Jesus não espera administradores perfeitos, Jesus quer administradores fiéis.

Qual a diferença entre o perfeito e o fiel?

A mania de falar em salvação. Ou: O cristianismo é a melhor religião. A Igreja já fez isso e aquilo e mais outras tantas coisas.

Não: os críticos, os que duvidam, os que buscam, os que perguntam, nossos filhos, querem saber bem outra coisa.

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Cristo é nossa vida?

E a resposta é a própria vida.

O que fizestes a qualquer um de seus pequeninos irmãos, a mim é que o fizestes!

A palavra que ouvimos: A quem muito foi dado muito lhe será exigido; e a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão.

Não é ameaça. É luz para o nosso caminho.

Na seriedade dessa palavra a gente descobre toda a misericórdia do Cristo.

(www.luteranos.com.br/conteudo/a-misericordia-lucas-12-48b)

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A PARÁBOLA DO RICO E DO LÁZARO

(Evangelho segundo Lucas cap. 16, versos 19 a 31)

Havia um homem rico que se vesti a de luxuoso tecido vermelho e linho finíssimo, dando esplêndidos banquetes diariamente. Um pobre, chamado Lázaro, todo coberto de feridas, estava atirado junto ao seu portão. Bem que gostaria de se alimentar com o que caía da mesa do rico! Até cães vinham lamber suas feridas.

Aconteceu que o pobre veio a morrer. E foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado.

No meio das torturas do mundo dos mortos, o rico viu Abraão de longe. E Lázaro estava junto a ele. Então gritou:

— Pai Abraão, tenha pena de mim! Mande que Lázaro molhe a ponta do dedo e me refresque a língua, pois estas chamas me atormentam!

— Meu filho, respondeu Abraão, lembre-se que já recebeu seus bens em vida. Lázaro teve males e agora encontra consolo aqui. Você está padecendo.

Aliás, é grande o abismo entre nós e vocês. Os que quiserem passar daqui para lá, não conseguem. Nem se pode vir de lá até cá.

— Pai, insistiu o rico, peço-lhe então que ao menos envie Lázaro até minha casa paterna. Tenho ainda cinco irmãos. Lázaro poderá adverti-los para que não acabem também neste lugar de tormentos!

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Mas Abraão replicou:

— Eles têm Moisés e os profetas. Que os ouçam, portanto!

— Não, Pai Abraão, disse-lhe ainda o rico, se algum dos mortos fosse a procura deles, por certo se converteriam. Mas Abraão concluiu:

— Se não dão ouvidos a Moisés e os profetas, ainda que algum ressuscite dos mortos não se deixarão convencer.

Céu e inferno: prêmio e castigo?

À primeira vista, estamos mais uma vez diante do prêmio de consolação: o rico vai para o inferno e o pobre tem o céu por recompensa. E isso seria verdade, se a história fosse ditada pelo ódio dos deserdados da sorte. Isso seria verdade, se Jesus fosse um corrupto, capaz de enganar os desesperados com vagas promessas de que no além tudo vai melhorar.

Não estamos, porém, diante de uma profecia. No se trata de previsão. A história que Jesus conta, é uma parábola. E essa parábola não se refere, apenas, a coisas que estão por vir ou acontecer. A parábola fala de uma realidade presente, de uma atualidade cotidiana. Tanto assim que está construída em torno de duas cenas: antes da morte e depois da morte. Mas as duas cenas tratam de uma coisa chamada vida. Por isso, como muitas vezes acontece num romance, no cinema ou no teatro, a segunda parte vai esclarecer muita coisa da primeira.

E então pode acontecer uma surpresa: a gente nota como faz parte de toda a história...

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Quem é o rico? Quem é o pobre?

É impressionante observar como inicia a parábola: Era uma vez um homem rico. Quase que só isso descreve essa criatura. Além de alguns detalhes a respeito de roupas e banquetes, o que se fica sabendo é apenas isso: o homem era rico. Viveu, morreu e foi sepultado. E era rico.

Existe outra coisa que impressiona: à primeira vista, o homem rico nem é criticado. Não se mencionam vícios, defeitos ou atitudes condenáveis. Não se afirma que ele explorasse trabalhadores ou que fosse agiota ou qualquer coisa, de semelhante. Pelo contrário: num primeiro momento, o homem é tão vazio como todas as pessoas diariamente mencionadas nas colunas sociais dos jornais. Ele gostava de vestir-se bem e oferecia constantemente banquetes e festas e recepções esplêndidas. Resumindo: um dos dez mais elegantes, que sabia receber bem... Nem mais nem menos. Era rico. E ponto final.

Ponto final? Nem de longe! Assim como nos jornais também não se fala só de gente rica, a parábola de Jesus f az uma comparação. Provoca um confronto. Já na introdução, Jesus coloca sua parábola dentro da vida como ela é. E na vida sempre há pobres ao lado de ricos. O homem rico, de quem se sabia tão pouco ( nem mesmo o nome ! ), de repente está colocado ao lado de um pobre miserável , chamado Lázaro.

Lázaro é uma questão aberta, uma pergunta sem resposta, na vida do rico. Novamente chama a atenção o fato de que Jesus não é demagógico. Jesus não diz nem sugere que o rico deveria ceder um lugar à mesa para Lázaro. Jesus não diz que Lázaro deveria morar na mesma casa do rico. Para começo de conversa, Jesus apenas conta como Lázaro não

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tinha o que comer, não tinha casa e era perturbado por cães vadios. Só isso.

Por que Lázaro era pobre? Por que ninguém o ajudava? Que circunstâncias o tinham levado aquela situação? A parábola não responde a essas perguntas. Jesus tem um único interesse: colocar duas pessoas diferentes, lado a lado, e fazer com que o ouvinte da parábola faça bem outra pergunta: Que relação existia entre esses dois?

Sim, qual a ponte entre o rico e Lázaro? Existe uma?

Para os primeiros ouvintes dessa parábola, a introdução nem apresentava surpresa. Os escribas e fariseus tinham ideias e teorias prontas, a esse respeito: Deus é quem reparte a felicidade e a infelicidade, a riqueza e a pobreza, o êxito e o fracasso, o bem-estar e a desgraça (confira o que argumentam os amigos de Jó, no Livro; de Jó, cap. 4, 5, 8, 11, 15, 18, 20, 22). A tranquilidade desse tipo de pessoas (a quem Jesus conta essa parábola) se reflete no fato de terem elaborado toda uma doutrina a respeito de come dar esmolas. . .

Existirá ainda hoje esse tipo de pessoas? Parece que sim. Em todo caso, Jesus coloca diante dos ouvintes de ontem e de hoje uma pergunta diferente: Qual é a relação que existe entre o rico e Lázaro?

A tentativa de responder a essa pergunta de Jesus mostra que a relação tem muitos aspectos. Antes de mais nada, o rico imagina que pode viver sem Lázaro. Nada lhe falta. Não precisa de ninguém. O rico imagina que pode viver sem o irmão. Que não precisa do irmão. E quem lhe dá essa certeza? Sua riqueza.

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Mas há outro aspecto. E este aparece com a pergunta: Quem é Lázaro?

Parece que Jesus propõe uma resposta simples e imediata: Lázaro é aquele que precisa do homem rico, porque é pobre. Lázaro é aquele que precisa de alguém para viver, para sobreviver. Lázaro não pode viver sem um amigo, um irmão. E donde vem essa certeza? De sua miséria.

Que relação existe entre os dois? Cada um é o que é — por causa do outro. Só existem ricos porque existem pobres. Pode- se dizer também que só existem pobres porque existem ricos? Na segunda cena, em todo caso, acontece uma estranha inversão de papéis. Mais ainda: a segunda cena procura mostrar se existe ou não uma ponte entre ricos e Lázaros.

Ponte ou abismo?

Ricos e pobres morrem, neste mundo. Na parábola de Jesus também. E então vem a primeira descoberta: ambos são filhos de Abraão”, são judeus. Ambos esperam pelo juízo, pela ressurreição. Só que essa espera acontece em lugares e condições diferentes. Lázaro pode ficar reclinado à mesa dos justos e patriarcas (Cf. Mateus 8. 11), enquanto que o rico aguarda seu futuro no lugar da punição, no mundo dos mortos ( cf. Salmo 6. 6) . Para que o contraste ainda se torne maior, Jesus descreve uma situação bem especial: o homem rico pode observar a bem-aventurança de Lázaro de modo quase palpável.

Também a segunda cena está isenta de revoltas e paixões. O Rico sabe que só lhe resta assumir e suportar os desígnios de Deus. (Não tinha sido essa a sua fé em vida? ) No entanto, ele procura atenuantes, mesmo que passageiros, para sua situação: uma ponta de dedo, molhada em água...

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Mas não há atenuantes. Existe um tempo para que alguém descubra sua relação para com o outro, para com o próximo: hoje. Tempo é oportunidade. E a chance se oferece agora. Quem é você? Quem é o próximo?

Dentro do tempo, hoje, alguém está dizendo uma palavra que nos informa de duas coisas importantes quem é o próximo e quem somos nós. Jesus faz isso. Através dessa parábola, por exemplo.

Cristo, nós e o próximo

A segunda cena da parábola nos mostra como é crítica a relação entre o rico e Lázaro. Através de sua presença, através de sua pobreza, Lázaro põe em questão, destrói, torna impossíveI qualquer tentativa nossa de viver sem ele. A miséria de Lázaro descobre e revela a miséria fundamental do homem rico. A verdade de Lázaro comprova a mentira do homem rico. A distância entre ricos e Lázaros torna-se a mesma distância, o mesmo abismo entre ri cos e Deus. Existe uma ponte?

Sim, embora seja uma ponte pouco visível, pouco aparente: a ponte é Lázaro. E Lázaro é quem conta a parábola. Através das palavras dessa história (que não é profecia, mas comparação), aquele que a conta está deitado junto ao portão dos ouvintes. Jesus mesmo é o irmão Lázaro, com quem estamos sendo confrontados. Jesus é aquele que não se envergonha de ser o irmão e companheiro dos Lázaros deste mundo.

Sempre que alguém descobrir essa relação, terá descoberto a relação o entre o rico e o Lázaro (Mateus 25.31-46). Terá descoberto a ponte. Sem essa relação, porém, desaparece também a ponte. O fim de nosso tempo, o fim de nossa oportunidade, e também o fim da ponte.

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Assim é que fazemos parte da parábola. Diante do Cristo, somos lázaros sempre seremos os que tem mais ( mais que gostariam de viver, como homens ricos. Diante dos lázaros deste mundo, bens, mais tempo, mais oportunidade). Resta saber como vemos, como vivemos, como experimentamos essa relação. Resta saber se precisamos de alguém. Resta saber se temos consciência do próximo. Resta saber se reconhecemos no outro uma pergunta dirigida a nós.

Mas ainda existe um aspecto final de nossa relação com a parábola. Somo s todos personagens desta história, por causa de um Cristo que coloca ricos e pobres sob um critério diferente de julgamento. Não está excluída a hipótese de o pobre se tornar amargurado, descrente e, derrotado, devido a condição de Lázaro, sob a qual padece. Assim sendo, a parábola não se limita à crítica simplificada da riqueza e ao elogio exagerado da pobreza. Pelo contrário: a separação “após” a morte está intimamente ligada à separação antes” da morte. O que está em questão na parábola, é a vida no mundo das discriminações, das “diferenças”, das separações.

E Jesus aponta, na parábola, para uma possibilidade oposta de vida. Vida em que as pessoas veem uma as outras. Vida em que as pessoas vivem umas com as outras. Basta isso, para percebermos que a parábola representa crítica veemente ao nosso hoje.

(www.luteranos.com.br/conteudo/lucas-16-19-31-2)

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MEDITAÇÕES

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1 Samuel 2.1-10

Quantos de nós poderiam fazer suas, com toda a honestidade, essas palavras: Meu coração se regozija no Senhor? Quando pensamos em tudo aquilo que rádio, TV e jornais nos informam diariamente - há motivos para falar em alegria? Quando examinarmos tudo aquilo que acontece em nossa vida ou na vida de pessoas que nos são queridas - não haveria mais sinceridade se disséssemos: Meu coração está desconsolado?

* * *

Seja como for, uma coisa é certa: a gente só recebe consolo, só se sente consolado, quando aprende a entender, a compreender a própria situação - uma nova perspectiva, sob novos e diferentes pontos de vista. Em outras palavras: não adianta ficar remoendo a própria dor ou desilusão, não adi anta ficar chorando a desgraça. Quem se limita simplesmente a isso - não sai do lugar - e não é consolado. Agora - como é que a gente entende sua situação? Como é que a gente aprende a examinar a própria situação?

* * *

Lembremos uma vez, aquilo que as pessoas desejam umas às outras, por ocasião de um aniversário, de uma formatura, de qualquer momento marcante na vida: felicidade, Saúde, dinheiro, sucesso...

Mas esses bons votos abrem novas perspectivas? Ajudam a entender uma situação? Mostram uma salda - quando não há felicidade, saúde, dinheiro, sucesso?

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Mais uma pergunta. Esses votos todos expressam uma maneira de pensar e de viver. Essa maneira de pensar = mentalidade de consumo. Maneira de viver = vida de consumidores. Nós fomos ensinados, somos incentivados constantemente, estamos habituados a consumir, mas, gastar felicidade, saúde, dinheiro e sucesso. E que é que se faz quando tudo isso não existe para consumir, usar e gastar?  *

É com essa pergunta, quando chega essa hora amarga, que a vida nos abandona, os amigos nos abandonam - e nós, de repente, nos transformamos em consumidores que não têm o que consumir. Nessa situação de desconsolo, vale a pena recordar que o verdadeiro ritmo da realidade, da vida, é esse. No entanto, através desse ritmo, podemos ouvir a melodia típica de Deus. As palavras do hino que acabamos de ouvir (um salmo em Samuel) são um convite para isso. Um encoraja mento para que reaprendamos a entoar um cântico de louvor - apesar da situação aflitiva. Ou: para aprendermos a entender nossa atualidade através do Louvor.

(www.luteranos.com.br/conteudo/1-samuel-2-1-10-2)

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* *

Lucas 13.6-9

Fim de ano

Teria sido bom, se nós - eu  não disse  vós, mas sim  nós tivéssemos deixado todos os nossos desejos, esperanças e sonhos lá fora, diante da porta. E, se o tivéssemos feito, teria sido melhor ainda, se algum transeunte tivesse apanhado todos esses desejos, esperanças e sonhos e levado em bora. Mas nós não fizemos nada disso. E porque nada de parecido aconteceu, eis-nos aqui sentados, com toda essa carga. É claro que já sabemos antecipadamente o que acontecerá com os novos desejos, esperanças e sonhos, no decorrer do próximo ano. Acontecerá o mesmo que com as ilusões deste ano que finda. Tudo isso nos entristece, nos desanima, chega até a encolerizar-nos. Ou nos torna indiferentes.

Mas nós viemos. E estamos à procura de uma resposta. Fazendo um retrospecto do ano que passou e procurando prever o que nos trará o ano que se iniciará dentro de algumas horas, surgem perguntas.

E o que todo mundo quer é uma resposta a essas perguntas. Talvez isso nos deixe ainda mais desanimados ou até furiosos, mas é preciso dizê-lo: o Evangelho não nos oferece soluções prontas, respostas de encomenda. Quem quiser encontrar respostas prontas, indicações por encomenda, tem de consultar o horóscopo. Infelizmente, não posso recomendar nenhum horóscopo, dos muitos que são publicados. Não porque eu seja pastor: Mas porque os diversos horóscopos e previsões astrológicas não concordam entre si mesmos. Embora as informações sejam

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(www.luteranos.com.br/conteudo/lucas-13-6-9)

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aparentemente fornecidas pelos astros - que são sempre os mesmos! - há sempre uma resposta diferente para a mesma pergunta.

1 Pedro 5.1-5

Faz algumas semanas que nossa Comunidade renovou o mandato de todo o Presbitério. E no domingo passado foi consagrada nossa nova Igreja Central - uma obra que exigiu a concentração de boa parte dos esforços, da imaginação, da criatividade, do sacrifício de nossos presbíteros. E interessante relembrar que entre a consagração de nossa Capela em São Vicente e da Igreja Central decorreu um período de 10 anos. Nesses 10 anos, nossa comunidade conheceu e participou do trabalho de 4 pastores, cada um com seu estilo, seus métodos. No entanto, mais importante que o, pregador é a pregação. O anúncio do Evangelho é que é a marca permanente da Igreja - não os homens que dirigem a mensagem aos ouvintes.

O mesmo pode ser dito em relação aos presbíteros. Passam as gerações e Deus, sempre de novo, vai chamando homens a Seu serviço. Os homens passam - a tarefa como tal é permanente. Mas que tarefa é essa? Que homens são esses, os presbíteros? O trechinho da carta de I Pedro, que acabamos de ouvir, dá uma resposta interessante a essas perguntas.

Em primeiro lugar, o autor que no início da carta se apresentava como apóstolo, no momento que dirige sua exortação aos presbíteros, denomina-se modestamente de presbítero, também. Isso não é apenas uma questão de gentileza. Pelo contrário, é por aí que descobrimos a importância desse ministério, dessa função, na Igreja. Ao mesmo tempo que o apóstolo se identifica com os presbíteros, a função deles aproxima-se do apostolado. Apóstolo

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é aquele que foi escolhido e enviado por Deus para dar testemunho dos sofrimentos e da glória do Cristo. Mais ainda: apóstolo é alguém que se torna participante dessa glória do Cristo.

Presbíteros são pessoas convidadas a dar esse testemunho do Cristo de uma maneira bem especial, bem específica, bem própria: pastorai o rebanho de Deus que há entre vós, diz o apóstolo. Quer dizer: enquanto o apóstolo tem uma missão universal, a missão do presbítero está ligada a uma comunidade local, à igreja do lugar onde mora. Nesse lugar, nessa cidade, o presbítero cumpre uma missão pastoral que lhe foi confiada por Deus: ajudar aos fracos na fé, reanimar os cansados, renovar a esperança dos aflitos.

(www.luteranos.com.br/conteudo/1-pedro-5-1-5-1)

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ARTIGOS

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UM QUILO DE CULTURA

Às vezes é interessante verificar o conceito que certa gente tem de cultura. Não sei se é a diferença de temperamento ou a menor porção de vergonha na cara ou a pura ignorância, o fato é que as mais estapafúrdias declarações são ditas e escritas por estes brasis à fora e levam o nome de cultura.

Tudo isso me ocorre ao ler o panfleto nº. 19 da Federação dos Centros Culturais 25 de Julho. Retornei de Curitiba, onde fora participar do 3º. Encontro de Líderes da Mocidade Evangélica, e encontrei o dito papelico à minha espera. Relatórios e discursos que primam pela uniformidade com que se bate na mesma tecla e pela incrível superficialidade e leviandade com que se discorre sobre herança cultural, ensino, propaganda cultural e culto. É, até os serviços de culto são men-

cionados, embora a turma tenha deliberado não debater assuntos de ordem religiosa e política. Estranhei o libelo contra a falta de propaganda cultural, porque existem muitas e autorizadas personalidades que frisam ser a propaganda «o maior destruidor de valores culturais do mundo hodierno».

Em suma, aprendi através do boletinzinho que certas pessoas há por aí, que possuem incalculável quantidade de cultura armazenada, que a mocidade brasileira não pode chegar até essa verdadeira mina, porque os citados armazenadores de cultura não transmitem o tesouro. Vai daí, um grupo de abnegados decidiu dar o exemplo, começando a distribuir cultura e fazendo propaganda para que os outros os imitem. A distribuição da cultura é feita mediante o envio da módica quantia de Cr$ 30,00 e consiste em um quilo de matéria cultural, através da qual a mocidade brasileira ficará sabendo da terrível solidão da rainha Soraya, será informada acerca das medidas da Miss Tal e Tal

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e tomará conhecimento dos mais recentes divórcios de Hollywood. Não é notável? Chega a emocionar o desprendimento desses paladinos da cultura!

Cuidado, senhores! Cultura é uma coisa muito séria. É algo que cresce com a nação. É algo que evolui na medida das necessidades naturais de um povo. Cultura é o retrato de um povo em seus grandes e pequenos momentos históricos. E cultura, não só no Brasil, é sempre um processo de assimilação e miscigenação de valores humanos e espirituais. Em uma época que se caracteriza por uma intensificação das relações entre os povos, é lastimável que um grupinho comece a querer bancar vinho de outra pipa. Há uns vinte anos, aconteceu a mesma coisa, E as consequências foram vergonhosas e dolorosas. Se a gente compara os artigos daquela época com os discursos que agora são pronunciados, percebe-se uma esquisita semelhança de propósitos. Até o vocabulário é o mesmo. Isso não me cheira bem, senhores! Cautela! Cautela, porque a brincadeira pode não acabar bem de novo. E então, novamente os justos pagarão pelos injustos.

(Revista da Juventude Evangélica. nº. 4, 1960)

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UMA CRÔNICA: LIBERDADE CRISTÃ

Quanto mais restrições são impostas à liberdade, tanto mais desejamos vê-la restabelecida, tanto mais ansiamos por vivê-la. É bem verdade que cada um sente e entende a liberdade à sua maneira. Mas o importante é que todos concordam num ponto; a liberdade é uma das mais preciosas e belas dádivas, em nossa vida. Em última análise, para não sermos desumanizados, precisamos de liberdade, de justiça, de paz. Tudo isso está relacionado, na vida de cada homem e na existência de toda a humanidade.

Mas existe outro desejo que igualmente acompanha a vida de qualquer pessoa: cada um quer ser dono de si mesmo. E todos confundimos isso com liberdade. Por isso mesmo, vale a pena relembrar: o dono de seu próprio nariz, no fundo, não passa de um espião de si próprio. De tanto querer governar-me, acabo sendo obrigado a fazê-lo. E, se estou sendo forçado a fazê-lo, já perdi minha liberdade. Por isso é que cada um de nós se torna um escravo de si mesmo. O resto são consequências dessa primeira confusão: Será que vai dar certo? E se os outros não permitirem? E o medo! E a inveja!

Não é por acaso que o Evangelho se constitui na mais jubilosa mensagem de liberdade, para cada pessoa. Só a Verdade pode libertar alguém. E nós sabemos e cremos que a Verdade não é uma teoria (que se modifica de vez em quando), mas uma Pessoa - chamada Jesus Cristo. Nesse sentido, pode-se resumir o Evangelho numa sentença: Cristo libertou todos os que são escravos de si mesmos, escravos de outros e escravos de todos e quaisquer poderes. Nossa voca-

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ção chama-se liberdade. Onde se encontra o Cristo, existe liberdade. E nessa liberdade pode-se permanecer!

Assim sendo, cada novo dia de nossa vida encerra um renovado convite, um apelo à liberdade que já nos foi presenteada. Todas as leis humanas contêm uma limitação à liberdade. Mas o Evangelho determina a liberdade! Podemos sair de nossa própria prisão e iniciar nova caminhada, abandonando tudo o que nos estava ameaçando e impedindo novos horizontes. O Cristo abriu todos os cárceres. Para sempre!

Essa liberdade (que não depende dos outros nem das circunstâncias) nos foi dada para ser vivida na prática diária. E todo aquele que a viver, sentirá seu efeito benéfico, os reflexos à sua volta. Justamente porque: tons querem ser livres, é importante o exemplo e a palavra da verdadeira, da genuína, da completa libertação. Lutero foi um cristão que procurou proclamar e viver a liberdade cristã. E é, talvez, por essa razão que um de seus primeiros livros, versando esse tema, continua sendo uma fonte de inspiração até hoje, em todo o mundo. Em última análise, cada culto pode ser considerado uma festa da liberdade. E cada exemplar da Bíblia, o documento básico da libertação que veio para dentro deste nosso mundo — para ficar!

(Revista da Juventude Evangélica – n.° 7, 1967)

(www.luteranos.com.br/conteudo/liberdade-crista)

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Existência Cristã na Realidade Política

Não é preciso ser leitor assíduo da Bíblia para perceber que a relação entre cidadania e fé se constitui em questão das mais controvertidas e, por sua própria natureza, constantemente atual. Sempre houve quem desejasse solucionar a dialética inerente ao problema, estabelecendo uma rígida distinção entre Igreja e Estado, crente e sociedade, “religião” e “mundo”. A te!ltativa, contudo, revela-se tão irrealista quanto inócua. Quaisquer que sejam as circunstâncias, o cristão se vê reiteradamente colocado diante de opções que pertencem indiscutivelmente ao âmbito político, ou seja, à realidade na qual tem de viver. Desde a luta pela sobrevivência (remuneração, jornada de trabalho, condições de vida) até as possibilidades de participação social (eleições, regimes e sistemas sócio-políticos), sem esquecer a liberdade de expressão religiosa, o cristão sempre enfrentará alternativas e, pelo menos na prática, estará assumindo uma posição. Nesse caso, quem pretender ser “cristão” num setor e “cidadão normal” noutro, estará apenas dando expressão à sua esquizofrenia. Não é por acaso que o nome de Pôncio Pilatos figura no Credo Apostólico: a relação entre Jesus e o governante romano expressa paradigmaticamente o encontro e a ruptura, o diálogo e a tensão existentes entre a comunidade dos fiéis (a Igreja) e a comunidade dos cidadãos (o Estado). E ninguém se isenta desse fato.

Após 450 anos da Reforma da Igreja, como foi propugnada e realizada por Lutero, qual o possível significado de sua reflexão teológica a respeito do binômio Igreja-Estado? Quais as conseqüências de seu pensamento, na ética

201 01/10/1967

política dos cristãos? O lapso de tempo que nos separa do Reformador não é irrelevante, bastando mencionar alguns dos fenômenos mais capitais da Idade Moderna, para verificarmos quão outra é a nossa real idade: a descoberta de nosso planeta, o auge e decadência do colonialismo, o Racionalismo e a Revolução Francesa, Marx e a Revolução Russa, o progresso técnico-científico e a civilização da máquina, apogeu e, talvez, crepúsculo do imperialismo e a era espacial. Diante de uma nova realidade histórica, qual a validade e relevância das opiniões de um monge quase medieval, mesmo que tenha sido o “rebelde obediente que abalou o mundo”?

São várias as possibilidades de resposta a essas questões. Mas todas elas pressupõem uma compreensão do que seja história. Ninguém pode considerar a história como mero espectador ou como analista que vai computando dados e fatos obietivos. Para compreender uma realidade histórica é preciso encontrar-se com ela, participar existencialmente dos fatos e ocorrências, quer nos sejam favoráveis ou não. É preciso que determinada realidade histórica ultrapasse tempo e espaço, tornando-se contemporânea nossa. Aplicando o que foi dito: é necessário que entremos em diálogo com a história de Lutero, ouvindo suas perguntas, respondendo a elas, para que o compreendamos. Evidentemente, a tarefa não se esgota com isso. Mas não nos parece que possa ser ence tada de outra maneira – a não ser que se prefiram os chavões, os dogmatismos “definitivos” ou as autolimitações do intelecto.

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COMO ENTENDE LUTERO A HISTÓRIA?

O ponto de partida do Reformador reside especialmente na razão última de todos os eventos, que para ele consiste na ação de Deus: “Com Sua vontade imutável, eterna e infalível, Deus prevê, ordena e consuma todas as coisas”. Deus age sozinho, quer os homens o aceitem ou não. “Não existem causa original nem razão fundamental que fossem prescritas a Deus como regra ou critério, iá que nada se lhe equivale ou sobrepõe: Ele mesmo é o critério para tudo”. Eis porque “vemos em toda História e experiência, como Ele eleva um reino e destrói o outro(... ), multiplica um povo e dizima o outro, como fez com os assírios, babilônios, persas, gregos, romanos, que julgavam poder permanecer no pináculo eternamente.

É nesse ponto que se levanta a primeira questão: não são os homens que agem na História, que a determinam? Sim, aparentemente, diria Lutero, porque não podemos ver como Deus determina os acontecimentos e evoluções. Mas o cristão crê que, através dos eventos, Deus mesmo esteja agindo. Isso se aplica tanto às nações como à Igreja, sendo que Lutero chega a afirmar que tanto os reis como os apóstolos não passam de marionetes de Deus. Onde fica, porém, a atividade, a responsabilidade do homem? Se os líderes são marionetes, que seriam os demais? Espectadores? Ou nem tanto, já que esses podem, eventualmente, aplaudir ou vaiar? Nesse ponto, é preciso considerar a antinomia, típica do pensamento de Lutero. Deus quer que os homens ajam e esse é o sentido de Sua criação. Justamente por serem criaturas de Deus, os homens são responsáveis por sua ação ou omissão. E isso se aplica inclusive ao âmbito político: o cristão não pode considerar-se “neutro” porque sua abstenção também terá conseqüências históricas.

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Através dessa reflexão, Lutero procura uma possibilidade de acesso aos enigmas da história, com suas hediondas confusões e mesclas de direito e injustiça. A dubiedade se torna uma característica fundamental da história porque Deus não exerce diretamente seu Senhorio. Se Ele o fizesse, não haveria história. É interessante observar que, no fundo, o homem procura fugir à dinâmica da história: todos os sistemas totalitários (religiosos ou não) procuram fixar-se em elementos que, a partir de determinado momento, são considerados sagrados ou imutáveis. Surgindo um fato novo, que interessa impor, criam-se explicações nem sempre evidentes, comprovando que tal elemento já “sempre” existira - subjacente, latente, incluso ou coisa que o valha. Para todos os efeitos, não se trata de “novidade”. Porque tudo o que pudesse inovar, reformar ou modificar o arcabouço, ameaçaria diretamente a intocabilidade da estrutura. Mas é a própria história, como ação de Deus através de eventos humanos, que impede o êxito de tais fugas, inapelavelmente.

A discrepância que se evidencia entre o fato de Deus agir sozinho, ao mesmo tempo que os homens decidem e desenca deiam eventos, não é dissolvida por Lutero. Para ele, é expressão da ação oculta de Deus. Essa ação “abscôndita” não possibilita apenas nossa existência histórica: corresponde inclusive à maneira como Deus Se revela aos homens. Jesus Cristo é o Deus encarnado para os que crêem, mas o que vemos é apenas um bebê de fraldas molhadas, na manjedoura dos animais. Vemos apenas um criminoso, condenado à pena mais degradante, pendendo nu da cruz do Gólgota. Assim age Deus através dos atos humanos. Por quê? É uma pergunta última, cuja resposta só Deus conhece. O que não impede que sem especulações que só conduziriam à aporia, Lutero reconheça e postule um sentido da História – e só isso já o situa no consenso de todos os

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cristãos. Sua reflexão não conduz ao determinismo nem se apóia na visão otimista ou idealista de um “mundo melhor”. Se existe sentido na História, certamente não residirá no evolucionismo do “super-homem” ou do “homem feliz”. A História adquire sentido como âmbito de um diálogo entre Deus e os homens, um diálogo de palavras e ações, através das quais reconheçamos nossos caminhos como sendo jornadas de Deus conosco. Dito de maneira diversa: quando um homem se encontra com seu Deus, encontrando assim o sentido de sua existência, terá reconhecido o sentido da História. Existe, por assim dizer, uma correspondência entre história e existência.

O homem que dialoga com Deus, encontra nesse relacionamento sua liberdade. Sabendo quem é o Senhor do mundo e da história, o homem é suficientemente autônomo para viver e agir, no diálogo e encontro com seus semelhantes. Como se vê, trata-se de uma autonomia em sentido bem especial. Em última análise, uma autonomia na heteronomia. Os que bendizem ou maldizem Lutero como pioneiro da liberdade de consciência tout court, como campeão do livre exame e propugnador do mais desenfreado individualismo, deveriam ser suficientemente honestos (intelectual e/ou religiosamente) para confessar que nunca leram sua obras. Justamente no âmbito da ética política, em que mais intensa se torna a diástase entre Evangelho e Estado, é interessante pôr à prova a contribuição teológica do Reformador. Não que se considerassem válidas todas as suas conclusões. A aceitação pura e simples de todas as teses de um pensador é sempre maléfica (tanto à Igreja como ao Estado). O que se pode e deve é ouvir. Para, então, discernir.

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OS DOIS REINOS – DISTINÇÃO E UNIDADE

Do ponto de vista cristão, nada há, de fato, que seja secular. A fé cristã sempre colocou o Estado em relação direta com a vontade de Deus. Isso significa que o Estado tem uma função determinada por Deus, existindo para servi-lo, através da preservação da justiça e da ordem jurídica, fundamentos sobre os quais se alicerçam todos os relacionamentos entre os cidadãos. Para manter e preservar a ordem jurídica, o Estado necessita de poder, fazendo, por vezes, uso da força. Só esse aspecto já denota uma distinção notável entre Igreja e Estado. Mas também as funções de ambos são diversas.

O que acabamos de afirmar é, desconsiderados os detalhes, expressão de opinião quase unânime (excetuados os que defendem a “dissolução” da Igreja e do Estado). Basta, porém, transferir a proclamação teórica para o âmbito da realidade e se tornará evidente que as distorções são bem mais profundas. Não só as relações entre Igreja e Estado têm assumido formas diferentes, através dos séculos. Isso ainda não afetaria a natureza de qualquer dos dois. Bem mais grave do que a exorbitância de funções de um deles (que implica automaticamente em “invasão da área” do outro), é a perversão de uma ordem, assim que a injustiça passa a ser considerada justa e legal, a opressão é integrada nas estruturas jurídicas e a violência se torna sinônimo de poder. Neste caso, o Estado estará desrespeitando flagrantemente a vontade de Deus. Que poderá ou deverá fazer a Igreja? Eis a questão.

A reflexão de Lutero rejeita o ideal do “Corpus Christianum”, típico da Idade Média (com resquícios mais do que palpáveis no século XX). O ideal medievo previa uma unidade sócio-político-religiosa, governada por dois poderes, o espiritual

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e o secular, com predominância (expressa sempre que possível) do primeiro. A dourrina dos dois reinos, embora não implique na superação total e absoluta do “Corpus Christianum”, permite que se distinga claramente entre Igreja e Estado, reconhecendo simultaneamente sua unidade, sem confundir um e outro.

Funcionalmente, o conteúdo da doutrina dos dois reinos pode ser compreendido como a dupla modalidade, pela qual Deus (!) governa os homens e o mundo: pelo Evangelho e pela autoridade (estatal). Enquanto que o Evangelho relaciona os homens com Deus, a função da autoridade é a de zelar pela paz que possibilita o relacionamento mútuo dos homens. De um ponto de vista personalista, a doutrina enfatiza a destinação escatológica do mundo e dos homens: distinguem-se os verdadeiros cristãos (que se submetem à graça) dos demais homens (que estão sob a ira de Deus). Todos, porém, encontram-se no âmbito da humanidade total, ou seja, ninguém fica entregue à própria sorte ou ao caos: a vontade de Deus é que reine uma ordem que possibilite a convivência. A dignidade da autoridade (estatal) reside justamente no fato de ter recebido um mandato de Deus. A problemática se torna candente a partir do momento em que o orgulho humano, o egoísmo e a tentação do poder subjugam a autoridade. A função estatal (preservar uma ordem político-social que permita a convivência pacífica e fraterna dos homens), corrompida e pervertida, adquire bem outro sentido. Veremos adiante as conseqüências disso.

Distinguindo entre Igreja e Estado, a reflexão luterana rejeita, evidentemente, fenômenos como a teocracia, o cesaropapismo, governo eclesiástico do Estado e governo estatal da Igreja, devido às possibilidades latentes, de perversão, que os caracterizam. Para muitos, parecerá contraditório

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que Lutero tenha apelado aos príncipes territoriais, instando-os a participar do governo eclesiástico. Sem esquecer que tais autoridades não configuravam um poder estatal comparável com o moderno, será preciso registrar o descontentamento e insatisfação do Reformador com tal solução precária. As circunstâncias tinham forçado um relacionamento por demais estreito entre os príncipes e as Igrejas territoriais. Uma justificativa, embora insuficiente, poderia apoiar-se em dois fatores: o fato de os príncipes serem cristãos (o que não pode nem deve ser bagatelizado através de eventuais comparações hodiernas) e o despreparo das comunidades eclesiásticas para um governo autônomo. Lutero, porém, nunca considerou que essa emergência pudesse consolidar-se e adquirir legitimidade permanente. Dizer-se que transformou os príncipes territoriais em bispos “luteranos” não passa de ficção. Em seu cerne, e levando-se em conta sua doutrina do sacerdócio universal dos fiéis, a doutrina dos dois reinos impede todo e qualquer falatório inconsequente acerca de pretensos Estados, nações ou civilizações “cristãos”. As tarefas são distintas. Em que consiste, agora, a unidade que não confunde Igreja e Estado? Antes de mais nada, em Deus. E, a partir de Deus, nas tarefas que um presta ao outro.

Na medida em que o Estado garante de modo justo a convivência de todos os cidadãos, estará abrindo possibilidades, pelo menos formais, para que a Igreja realize sua missão. Na medida em que a Igreja cumprir sua tarefa de “consciência do Estado”, principalmente através da proclamação do Evangelho, estará prestando àquele um serviço inalienável e que não deve ser negligenciado. O Estado precisa ser reiteradamente lembrado de que não constitui um fim em si mesmo e que sua dignidade é conferida e não, inerente. Ao embra-lo disso, a Igreja não estará cometendo ingerências

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indevidas. Pelo contrário: os cristãos, com isso, estarão simultaneamente prestando seu testemunho diante do mundo e dando sua mais original contribuição à coletividade. As formas concretas dessa contribuição serão várias. Mas aqueles que veem nesse testemunho “mera politicagem”, deveriam perguntar-se, se não estarão traindo seu apostolado, numa das esferas decisivas da realidade humana. A rigor, deveriam perguntar-se, se ainda são cristãos.

Por outro lado, o relacionamento dos dois reinos garante a liberdade da mensagem que a Igreja tem a transmitir ao mundo. A proclamação do Evangelho possui uma soberania própria, que só deve lealdade ao Senhor da Igreja. Não é o Estado, ou seja, não são os detentores do poder a instância decisória sobre o conteúdo e a forma do ensino e pregação da Igreja. Cristo mesmo é quem fala, pela pregação da Igreja, admoestando e advertindo o Estado sobre o perigo latente de sua própria perversão. Assim como é o mesmo Cristo quem lembra à Igreja do perigo, sempre presente, de excessiva acomodação e silêncio cúmplice.

Além de considerar a Igreja como um todo, será preciso lembrar que o cristão, como indivíduo, também se relaciona com o Estado. Segundo a reflexão de Lutero, o amor a Deus e ao próximo será o diapasão pelo qual o cristão afina sua atitude diante da autoridade. Isso significa que o cristão não agirá pressionado por medidas repressivas, previstas pelo Estado, mas sua lealdade e obediência estarão alicerçadas no mandamento de Deus. O cristão, conhecedor da origem da dignidade estatal, será o primeiro a colaborar para que o Estado não se perverta, cumprindo sua tarefa essencial, tarefa de justiça e de paz. Sabendo da transitoriedade do Estado e de todas as instituições, o cristão não obstante envidará todos os esforços que visem a promoção do homem

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e o respeito pela incomparável dignidade da criatura humana. É muito provável que o cristão o faça sem o açodamento, sem o dogmatismo asfixiante, dos que só admitem uma opinião, um princípio, um sistema, um instrumento. Justamente porque tem uma esperança bem definida, o cristão não necessita de uma cosmovisão totalitária (inclusive a que se rotulasse de “cristã”).

Mas ainda resta a pergunta: Que fazer no situação limítrofe, em que o Estado realmente sucumbiu à perversão, transformando-se em instrumento de destruição e degradação do homem? Qual será, então, a posição do cristão, da Igreja?

SUBMISSÃO OU REVOLTA?

Toda a problemática envolve a difícil questão do limite de lealdade e obediência, em relação ao Estado. Lealdade e obediência totais, o cristão só as deve a seu Deus. Nem o Estado nem qualquer outra instância podem exigi-las para si. Qualquer transigência, nesse ponto, atingiria o âmago mesmo da fé. E é por isso que, desde o tempo das catacumbas, os cristãos são sempre “suspeitos”, sobretudo quando o Estado não os encara como cidadãos e sim, como súditos. Mesmo sem cobater abertamente o absolutismo, o cristão já terá traçado uma fronteira intransponível, para esse, pelo simples fato de crer no Deus Todopoderoso. Às vezes é com paciência – e por que não dizê-lo? – com certo humor que o cristão contempla o aparato dos potentados de todos os tempos e lugares. Mas há outras opções.

Lutero, embora acentuando a legitimidade do serviço militar, defendia a opinião de que ninguém pode ser coagido a cometer injustiça, pelo que nada obriga aos cristãos a participação em uma guerra injusta. É evidente que, em

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nossos tempos, as guerras assumiram proporções e caráter tão terríficos que dificilmente poderemos argumentar com o auxílio de conceitos tão ultrapassados como os de guerra justa ou injusta. Seia como for, a recusa em participar de um conflito, de acordo com Lutero, pelo menos, é atitude legitimamente cristã. Não se trata propriamente de pacifismo, porque este envolve outras motivações.

Acerca das conseqüências dessa recusa em participar de um conflito, Lutero opinava de modo favorável à resistência passiva, a qual também se aplicaria no caso de um cristão se recusar a exercer determinada tarefa, no Estado, por reputá-la contrária à sua fé. Tal resistência passivo, porém, podia adquirir caráter pronunciodamente ativo, sobretudo quando exercitada no setor espiritual. A resistência passiva do pastor ou clérigo, através da pregação do Evangelho e da ação pastoral, pode adquirir relevância política indiscutível, principalmente se o meio social estiver submetido a uma ideologia de sentido totalitário. Isso não significa que o sermão esteja sendo utilizado como arma política. Durante a vigência do regime hitlerista, por exemplo, qualquer menção ao pecado ou à penitência já era considerada como atentatória aos prin cípios legais. Em tal situação, poderia haver um sermão que não fosse subversivo, que não configurasse uma espécie de resistência?

Mas será preciso ainda considerar a situação limítrofe, que supera uma série de outros estágios graves. Estágios graves, segundo a concepção luterana, seriam os seguintes:

1) Quando a autoridade (legítima) abusa ocasionalmente do poder, quaisquer que sejam os motivos, ferindo os princípios legais. A resistência ativa do cristão consistirá em lembrar os detentores do poder de suas atribuições e seus

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limites. Ao fazê-lo, o cristão não considerará as possíveis reações da autoridade, ou seja, rejeitará o oportunismo e a cautela dos irresponsáveis. A resistência que opõe, apesar de ativa, exclui a violência (já porque se trata de uma autoridade legítima).

2) Quando a autoridade (legítima, cristã ou não cristã) passa a perseguir os cristãos. Como a fé, segundo a Reforma, não deve nem pode ser defendida por meios de força, a resistência dos cristãos será incondicional, mas terá caráter espiritual. Os cristãos não recuarão diante do martírio, atitude que, sendo passiva, não deixa de ter efeitos claramente ativos, como o demonstra a história.

A situação limítrofe configura-se no momento em que a autoridade coloca-se acima da lei e do direito, determinando ela própria o que seja o bem e o mal, justiça e injustiça. É um caso que supera inclusive o chamado “direito da força”, porque a força, como tal, torna-se sinônimo de lei e direito. Justamente para expressar tal superlativo de tirania e usurpação, Lutero dá a essa autoridade a designação de “tirano universal” (lembrando a II Epístola aos Tessalonicenses 2.8). O tirano universal caracteriza-se como uma espécie de monstro que a tudo destrói e devora. Ao contrário de outros tiranos que desrespeitam a lei, o universal nem toma conhecimento dela, pelo que se torna impossível qualquer espécie de ordem em qualquer setor da existência. O tirano universal torna-se uma ameaça mortal à existência humana, em todos os seus aspectos. Por isso mesmo, não só os cristãos, mas todos os homens têm o dever de assumir uma atitude de resistência ativa, inclusive por meios violentos. É a única situação em que Lutero (e os demais Reformadores) reconhecia a necessidade inadiável da revolta, com participação cristã. Nesse caso, os cristãos considerariam apenas

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a calamidade presente e concreta, resistindo sem mesmo aguardar a eventual opinião dos juristas. Seria uma resistência que inclusive dispensa a ponderação em torno das reais ou potenciais chances de vitória ou derrota. Tem caráter expontâneo e inadiável, valendo pelo que representa e não, pelos resultados eventualmente alcançados. Trata-se de uma revolução como atitude de obediência, como atitude de quem está disposto a viver e morrer para os homens. Só poderá aquilatar corretamente tal atitude e assumi-la, quem reconhecer a dignidade de uma autoridade autêntica. E a origem de tal dignidade. A partir de tal reconhecimento e nesse contexto, pode-se compreender o que significam as palavras de Lutero: “Se puder fazer sozinho a revolta, ainda assim a farei”. Em última análise, o tirano universal pretende ocupar o lugar do próprio Deus. Eis porque o cristão considerará como expressão de seu testemunho a resistência à blasfêmia. Lutero não desconhecia o fato de nesse caso, os cristãos serem difamados como “revoltosos”, mas é com tranquilidade que lembra também “não ser mera revolta tudo aquilo que os mastins classificam como tal”. Afinal de contas, prossegue, não são os cristãos que criam as condições de tal situação. Da mesma forma, os cristãos não procuram justificar-se a si próprios. A Igreja sobe que só Deus pode perdoar e justificar.

E NÓS?

Não nos cabe entender as opções de Lutero como receituário para nossos dias. A ética cristã não se compõe de uma lista de conselhos práticos, paro as diversas ocasiões.

Em seu tempo, o Reformador desconhecia o princípio da soberania popular.

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A situação do homem moderno é bem outra. Se, de um lado, existem regimes que se fundamentam na participação de todos os cidadãos na coisa pública, não é menos verdade que o Estado moderno, em qualquer regime, depende muito mais da tecnocracia, das equipes de planejamento e segurança interna. O nível de burocratização e o aparelho técnico assumiram tais proporções que a participação popular em todo o processo governamental tornou-se relativa, mais teórica do que efetiva. O Estado moderno, por suas características, tende a desenvolver uma autoridade cada vez mais anônima.

A existência cristã em tal realidade política vê-se colocada diante de uma problemática nova, para a qual não existem soluções prontos. O cristão, mesmo verificando e reconhecendo o governo de aparelhos e forças, de movimentos e influências, não deixará de levantar, apesar de tudo, o séria questão da responsa bilidade. Não importo que os computadores decidam sobre os problemas sócio-econômicos. Para o cristão, tais problemas continuam a envolver destinos humanos. E os manipuladores de aparelhos continuam a ser homens que devem prestar contas de seus atos, planejamentos e decisões. Para os cristãos, a civilização do máquina e do dinheiro não se constitui em argumento para a ocultação dos atos de quem quer que seja. Apesar de toda o anonimidade de que se revestem, existem donos da máquina e do dinheiro. E apesar da anonimidade de seu sofrimento, existem as vítimas da máquina e do dinheiro. O Evangelho, porém, refere-se a ambos. O Evangelho coloca a todos no âmbito da história. Todos estão, portanto, colocados na presença do Senhor da História. E é diante deste Senhor que se farão as opções. Ninguém se iluda: os opções são bem mais difíceis do que parecem à primeira visto. A dinâmica do Evangelho tem um poder bem mais tremendo do que o imaginam alguns de seus pouco convictos segui-

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dores e alguns de seus mais ou menos decididos adversários. Nem sempre se po derá saber, se alguém se rotula de cristão, paro melhor perseguir o fé, através de um exemplo de acomodação, compromissos espúrios ou silêncio tácito. Nem sempre se saberá, se o não cristão, através de uma opção humana, não estará vivendo mais autenticamente o conteúdo do Evangelho. Os julgamentos, para nós, são praticamente impossíveis. Na situação limítrofe, a consciência do homem sempre estará só. E é nessa solidão, para dentro da qual Deus talvez fale, que o homem deverá assumir suo tarefa e sua destinação humana.

Um dos exemplos mais impressionantes, que se conhecem, o respeito de uma opção da existência cristã na realidade político, é o de Dietrich Bonhoeffer. Durante o encarceramento que precedeu sua execução, um dos detentos perguntou-lhe como fora capaz, na qualidade de pastor luterano, de participar de um complô, destinado a assassinar Hitler. Bonhoeffer deu a seguinte resposta, que poderia vir a ser uma indagação a todos nós:

“Se um motorista embriagado, desenvolvendo alta velocidade, precipitar-se pela avenida principal, matando grande número de pessoas, a obrigação de um pastor consistirá em enterrar suas vítimas e consolar os sobreviventes ou em arremessar-se contra o carro, arrancando o volante das mãos do louco?”

(Centro Ecumênico e Informações –CEI Suplemento, outubro de 1967)

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ENTREVISTA: É POSSÍVEL SER CRISTÃO FORA DA IGREJA?

Considera-se ligado à igreja? Como?

Não. Só me considero como sou plenamente, membro do povo de Deus, do corpo de Cristo. De que maneira? Através do batismo cotidianamente reatualizado, em termos de vivência, de testemunho. Através da auscultação da palavra de Deus, em cada novo dia. Através da participação na Santa Ceia, que reitera o encontro com o Cristo e a comunhão com os irmãos. Através do diálogo com qualquer ser humano, nas mais diversas circunstâncias. Houve um momento em que, para poder realizar e viver plenamente tudo isso, se tornou necessário (para mim) interromper as atividades paroquiais (no sentido restrito).

Acha indispensável participar da vida da paróquia para ser cristão?

Depende do que se entende por vida de paróquia. O cristão sempre vive em comunhão com os irmãos, pelo simples fato de ser parte integrante de um Povo, de um Corpo. A forma dessa comunhão é que varia (e muito). Seja como for, não se pode conceber uma comunhão que não se abra para o testemunho no mundo e para o mundo (assim como o Cristo é Senhor do mundo, no mundo e para o mundo). Se for esse o denominador comum da vida da paróquia, será indispensável a participação, justamente para ser cristão. Existem, porém, paróquias, cujas estruturas estão de tal maneira deturpadas que só resta uma alternativa (para ser cristão!): retirar-se o mais depressa possível. Porque a indiferença, a mornidão são altamente contagiosas.

216 20/01/1968

Considerando que a fé sobrevive isolada; e que a fé tem expressão concreta nos assim chamados frutos, como se concretiza o seu ser cristão?

A partir do que afirmei na primeira resposta. tenho procurado concretizar meu ser cristão, especialmente, no âmbito do movimento ecumênico. Como? Empregando o conjunto do que sinto serem as dádivas que Deus me deu, em benefício dos esforços que visam dar expressão nova à (já existente) unidade da Igreja de Jesus Cristo. Escolhi e aceitei empregos que tivessem alguma correlação com essa tarefa (e que financiassem o tempo que dedico ao ecumenismo) . Artigos, conferências, grupos de estudo e debate constituem (para mim) campo de atividade pastoral, de encontro e diálogo com o ser humano concreto. Como co-fundador e atual Secretário Geral do Centro de Ecumenismo do Rio de Janeiro, como assessor de praticamente todos os empreendimentos ecumênicos da Guanabara, creio que estou tentando, de modo que me parece válido, ser cristão. Não conto mais porque pareceria propaganda. E não respondo aos críticos, por dois motivos: 1º.) os construtivos sempre vêm falar comigo, no sentido de ajudar a mim e à causa; 2.°) os outros podem ir plantar batatas.

Que papel tem a estrutura na Igreja?

Somente um: servir de instrumento para o plano salvífico de Deus no mundo. Daí resulta que a Igreja tem de assumir, sempre de novo, características de povo peregrino, que abandona terreno conhecido, rumo a horizontes novos e, por isso mesmo, desconhecidos. Sempre que a Igreja se assusta diante da jornada e se instala, tem início a perversão (que mencionei acima). E não acredito em refor-

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(www.luteranos.com.br/conteudo/possivel-ser-cristao-fora-da-igreja)

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mismos graduais de estruturas superadas. Só acredito que justamente a fé em Deus nos capacite a adotar soluções criativas e originais, nesse campo.

UM CREDO PARA NOSSA ÉPOCA: EXISTE ISSO?

O falar da Igreja nunca pode ser neutro. Os antigos e já clássicos credos e formulações similares da fé cristã são o atestado mais indiscutível desse fato. Aquilo que popularmente ficou conhecido como breve resumo da fé teve antecedentes bem mais movimentados do que se pode supor pelo texto lido hoje! Cada palavra esta prenhe de significados polêmicos.

O conhecido teólogo suíço Lukas Vischer dedica-se, no momento, a uma tarefa simultaneamente fascinante e embaraçosa: levantamento e coleta de todas as formulações da fé cristã, de todas as épocas, igrejas e lugares. A etapa seguinte da pesquisa é evidente: verificar a concordância e as disparidades, descobrir quais fatores concorreram para uma e outras, estabelecer as consequências do todo na história e procurar a viabilidade de síntese. O último item provocará sérias dúvidas em alguns. Parece-me que a mais importante é esta: será a síntese a tarefa mais urgente de nossa geração?

O SILÊNCIO IMPOSSÍVEL

Qualquer comunidade que se compreende como Igreja de Jesus Cristo precisa falar, precisa expressar e possuir a combinação de palavras e experiências. Mesmo a assim chamada igreja do silêncio tem essa vivência: a designação, antes de tudo, representou uma metáfora, manipulada posteriormente por certa propaganda sempre ávida de slogans mentirosos. A necessidade inevitável de falar, no entanto, ainda deixa em aberto outra questão: que é que precisa ser dito? Justamente o problema do conteú-

219 10/08/1972

do é que tem resultado em todas as concordâncias e disparidades, na história. Porque o falar da Igreja é sempre confissão, profissão de fé, testemunho. Ora, o testemunho revela obrigatoriamente mais do que interesse por algo. O testemunho sempre implicará adesão, engajamento. Quando o indivíduo ou a comunidade dão testemunho de sua fé, estão expondo uma parte de si próprios, estão oferecendo algo da própria pessoa, da própria vida. Assim, a mera comunicação de um fato, diante do qual o comunicador poderia manter-se neutro, salvaguardando a própria objetividade, seria tudo menos testemunho. O falar da Igreja nunca pode ser neutro.

Os antigos e já clássicos credos bem como formulações similares da fé cristã são o atestado mais indiscutível desse fato. O que popularmente ficou conhecido como breve resumo da fé teve antecedentes bem mais movimentados do que faria supor o texto lido hoje. A rigor, cada palavra está prenhe de significados polêmicos, cada vocábulo foi escolhido a partir da praxis e cada formulação depende de duas grandezas multiformes que necessitam constante reinterpretação: a Bíblia e os desafios de uma época. Vejamos o que isso significa mais precisamente.

TESTEMUNHO COMO PROCESSO

Dois aspectos básicos caracterizam a confissão de fé dos primitivos cristãos: a referência a Jesus de Nazaré e a concisão. Por exemplo: O Senhor é Jesus Cristo (1 Coríntios 12.3); Jesus é o Cristo (1 João 2.22); Jesus Cristo veio em pessoa (1 João 4.2).

Tais formulações, é óbvio, pressupõem toda a longa história da fé de Israel. E seu caráter polêmico dificilmente

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poderia ser superado. Pois, de um lado, o título de Senhor só era admissível como referência a Deus; de outro, era contestada a pretensão do César romano, que exigia o título para si. O martírio de não poucos cristãos comprova, antes de mais nada, que esse credo comunicou muito bem e que foi perfeitamente entendido, em todas as suas implicações, por não cristãos. De resto, é indiscutível que nos defrontamos com certa reinterpretação do Antigo Testamento. No entanto, é importante ressaltar que, para os primeiros cristãos (que nem sequer tinham essa designação), bastou a vinculação do Nazareno a Javé. A elaboração de nova doutrina de Deus (de nova teologia!) pareceu desnecessária. Assim como a nascente comunidade cristã não revelou qualquer preocupação pela designação de seu grupo, limitando-se a adotar o vocábulo secular referente a qualquer reunião popular ou assembleia corporativa.

Certos desafios da época provocaram gradativa ampliação dos credos primitivos. O paganismo foi um desses desafios e o testemunho acerca do Deus Criador, a resposta da Igreja primitiva. Resposta que retomaria a milenar fé de Israel, também expressa em desafio aos babilônios. Outro desafio representou a concepção antropológica que vê a alma como imortal e o corpo como mera prisão ou receptáculo desprezível. A resposta cristã a isso faz clara referência à ressurreição do corpo (ou da carne), reafirmando assim a responsabilidade pelo próprio corpo, pelas necessidades alheias e pelo mundo em geral. Sendo Deus quem ressuscita, o testemunho cristão nos informa que Deus leva a sério o homem todo, e que nesse fato se fundamenta a incomparável dignidade humana. Será preciso perder tempo, relembrando que consequências pode e deve ter esse credo?

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Na opinião de alguns, a referência ao Espírito Santo, no Credo, deve-se à prática do batismo, ocasião em que a profissão de fé era exigida. E o Espírito era considerado como dádiva e efeito do batismo. Assim, a liturgia, a disciplina e o próprio ambiente do Cristianismo primitivo foram suscitando fórmulas e provocando sucessivas modificações, acréscimos, elaborações novas. Em todo caso, ao contrário do que alguns continuam a sustentar, os credos pós-neotestamentários não resultaram de elaboração teológica orientada unicamente pelo texto bíblico. É bem verdade que refletem um conjunto de tendências teológicas que poderão ser localizadas, com maior ou menor evidência, no Novo Testamento. Mas suas fontes são diversificadas e variados os impulsos que conduziram ás formulações que hoje conhecemos e usamos. Mais diversas ainda se tornaram as interpretações dadas aos credos clássicos. Ficou célebre a explicação do Credo (dito) Apostólico que se encontra no Catecismo Menor de Martim Lutero: todos os fatos salvíficos objetivos foram transpostos para a esfera existencial do crente. Sob certo ponto de vista, trata-se de um novo credo, tanto no que se refere ao conteúdo como ao estilo. Se, e parece ser o caso, o Credo já se tornara ininteligível no século 16, que dizer da situação em nossos dias?

Testemunhar, temos visto, não é apenas afirmar. É também viver o que se confessa. Por isso mesmo, nenhum credo poderá abstrair, por exemplo, da oração, do serviço, do amor. O credo não poderá ignorar as estruturas de vida. Nas palavras de Tielko Tilemann, mesmo que não houvesse igrejas e teólogos, permaneceriam as perguntas que precisam de resposta. Ora, todas as questões da vida estão relacionadas à fé e vice-versa. Pergunta-se: é possível professar a fé através de fórmulas que exigem o estudo de compêndios de história e dogmática para serem

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realmente compreendidas? Mais ainda: é possível dar um testemunho de fé diante dos desafios de nossa época, de nossa geração, usando formulações que refletem polêmicas de 17 ou 18 séculos atrás? Em resumo: é possível ignorar o longo processo histórico que conduziu a determinadas fórmulas (e que a elas sucedeu)?

Diversos grupos, de variadas tendências teológicas, respondem a essas perguntas com um não unânime. Para eles, tornou-se candente a questão do testemunho hoje. E são de opinião que chegou o momento em que não é mais suficiente explicar e interpretar. Palavras e vivências mudaram e, portanto, será obrigatória a nova confissão de fé, o credo para a nossa época. Rudolf Bembenneck coloca a problemática da seguinte maneira: Nosso testemunho precisa tornar compreensíveis os efeitos e implicações da fé cristã diante de determinados problemas e situações contemporâneos. E postula um credo circunstancial em analogia à chamada ética circunstancial (ou situacional), considerando indispensável o concurso da sociologia, psicologia social, politologia e disciplinas afins. Em sua opinião, um credo hodierno precisaria reportar-se a questões como a da paz, das relações com Israel e o Judaísmo, do racismo, das bases do humanismo, etc.

Como se vê, a questão do conteúdo permanece, mesmo num credo circunstancial, nascido dentro de determinada etapa do processo histórico, em determinado lugar. Mas o reconhecimento de que existe tal processo impede, pelo menos, que essa ou aquela fórmula se tornem absolutas, permanentes e imutáveis.

O que segue é uma seleção de testemunhos modernos de fé. Os modelos foram escolhidos bastante ao acaso. O in-

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teresse maior reside em torná-los conhecidos, para que possam ser aproveitados como material de discussão e reflexão. As observações que acompanham cada modelo apontam alguns dos problemas teológicos latentes e não são, nem de longe, exaustivas.

UM CREDO ESTADUNIDENSE

O homem não está só, pois vive no mundo de Deus.

Nós cremos em Deus: que criou e continua criando, que veio no verdadeiro Homem, Jesus, para reconciliar e renovar, o qual atua em nós e entre nós por seu Espírito.

Nós confiamos nele.

Ele nos chama a ser sua Igreja: para celebrar sua presença, amar e servir aos outros, desejar a justiça e resistir ao mal. Nós proclamamos seu reino.

Na vida, na morte, na vida além da morte, ele está conosco.

Nós não estamos sós; nós cremos em Deus.

A primeira constatação do credo parece refletir uma típica situação existencial-urbana: a solidão. Solidão e mundo, o individual e o global introduzem a fé em Deus, expressa em termos trinitários tradicionais. Toda a linguagem, aliás, é bastante bíblico-tradicional, o que levanta um imediato temor: compreenderá o homem moderno (e solitário) o que seja Espírito, reino, vida além da morte? Em outros

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momentos, a formulação é feliz. Por exemplo: a ênfase no processo de criação como algo que continua hoje. A solução de compromisso (em nós e entre nós), para resolver célebre problema filológico-teológico, é simplesmente brilhante. O mesmo deve ser dito acerca do fecho: os que confessam também conhecem o que seja solidão. Mas conhecem e confessam mais do que isso. Assim, a confissão expressa solidariedade com os homens, anexando um convite-apelo aos outros: confiem também! (A dimensão do humor não ficou ausente: uma das sentenças quase repete o lema impresso no papel-moeda norte-americano...)

UM CREDO DA COMUNIDADE ESTUDANTIL EVANGÉLICA DE BONN

Nós cremos em Deus que dá sentido à nossa vida, origem e alvo de toda realidade, através do qual estamos ligados a todas as coisas. E em Jesus Cristo, nosso Senhor, um homem nascido como nós, no qual estava a vida propriamente dita, a proximidade de Deus e seu poder para nos chamar a uma vida nova, presenteada imerecidamente, em liberdade e gratidão. Rejeitado pelos homens, entregue ao poder estatal, exposto ao mais profundo absurdo, na cruz e na morte, ele faz um apelo à nossa decisão, apesar de tudo, e dá-nos coragem para crer, amar e esperar, pois participa, agora, da realidade vivificante de Deus, que se aproxima de nós, exige algo de nós e nos agracia.

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Nós cremos em sua atuação presente, que todas as igrejas estão unidas nele, que através dele é possível a comunhão autêntica, que ele nos liberta de toda alienação e dá sentido à esperança mesmo diante da morte. Nós cremos. Senhor, ajuda-nos em nossa falta de fé.

Eis um texto que quase poderia ser adotado por universitários do mundo inteiro: linguagem sofisticada, formulações dialéticas, alguns termos-chave que lembram outros tantos debates acadêmicos fundamentais. O esquema trinitário foi mantido de forma discreta (Espírito Santo — realidade vivificante de Deus — sua atuação presente) e ortodoxa. A combatida virgindade de Maria foi abolida em benefício de enfoque mais paulino (involuntário?). As referências a Deus, quase generalizadas e filosóficas, recebem clara especificação através do “homem nascido como nós, no qual estava a vida”. A expressão nosso Senhor é só aparentemente tradicional: a rigor, foi retomado o sentido bíblico-polêmico original (veja-se a sentença “entregue ao poder estatal”!). A tônica dos conceitos é de ordem existencial e é quase inevitável verificar a influência de Sartre, Camus, Bultmann. A situação ecumênica é abordada com honestidade, embora a rejeição do “creio numa igreja” seja questionável. O tema da justificação pela graça (ausente no Credo Apostólico!) foi oportunamente incluído. O fecho é comovente, no melhor sentido da palavra, ao retomar a confissão de fé de “um homem”, a quem Jesus ajudou. É bom relembrar que, no caso, a confissão foi anterior (!) ao milagre (Marcos 9.14-29).

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CREDO USADO EM CULTO DE JOVENS, EM GÜTERSLOH

(Christoph Wahl)

Creio em Deus, o Pai de todos os homens e Senhor do mundo, seu Criador e mantenedor.

Creio que Deus me colocou neste mundo e que sou responsável diante dele.

Creio em Jesus, o Cristo, no qual Deus se encontra com o homem.

Creio que ele me reconcilia com Deus, que ele vive e reina e me chama a servir aos homens.

Creio que Deus está agindo no mundo através de seu Espírito Santo.

Creio que ele me chama por sua palavra à sua comunidade e que tenho comunhão com ele pelo pão e pelo vinho.

Creio que Deus estabeleceu um alvo para este mundo e permite que eu participe de seu futuro. Amém.

A formulação procura expressar a fé individual e consegue, ao mesmo tempo, evitar todo individualismo. Pois o eu está constantemente correlacionado com os outros: todos os homens, a realidade deste mundo, a comunidade. O que alguns preferem chamar de ortodoxia, está assegurado plenamente: todas as relações humanas tornam-se possíveis pela ação de Deus; a ação de Deus é fundamentalmente seu encontro reconciliador com o homem, em Cristo; esse encontro cria comunidade, indica tarefas e tem um objetivo. (Note-se que seu futuro é o de Deus, não o do mundo, de acordo com o original.) O credo mantém a referência trinitária e é quase a paráfrase do Apostólico,

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abstendo-se, porém, de mencionar tudo aquilo que costuma provocar polêmicas e enérgica rejeição da parte dos jovens: geração e nascimento sui generis de Jesus, descida aos infernos, ascensão. A supressão do termo ressurreição não constitui aspecto novo, já que nem o Novo Testamento o utiliza sempre. É possível que jovens de todas as ideias prefiram confessar que Cristo vive, que existe um futuro e que se pode contar com esse futuro como sendo nosso.

OUTRO CREDO PARA JOVENS

Creio que Jesus foi o que deveríamos ser: Servidor e irmão de todos os que precisavam dele.

Porque amou, teve de sofrer.

Porque não foi só prudente, teve de morrer.

Mas ele não morreu em vão e, a rigor, não foi derrotado.

Será dele a última palavra e todos, os mortos, os vivos e os vindouros, serão avaliados por seu critério.

Creio que, com Jesus, entrou novo espírito no mundo, que ensina uma linguagem comum a homens tornados inimigos,

fazendo com que se reconheçam como irmãos; que nos encoraja a prosseguir a rebelião do amor contra o ódio;

que aguça nossa capacidade de julgar, vencendo o desespero e tornando compensadora uma vida fracassada.

Creio que sou o que sou, através de Jesus.

É através dele que experimento o poder de Deus.

E, assim como eu, todos os homens devem tudo isso a ele, mesmo que não saibam.

Como a mim, chamou todo o mundo para dentro da vida.

É dele o mundo, diante dele somos responsáveis por tudo o

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que fazemos. Sim, estou de acordo com minha vida e digo sim à minha destinação: dar adiante o que recebi de Deus.

Eis uma tentativa fulgurante de retomar o mais antigo, original e conciso credo (Jesus é Senhor) e traduzi-lo em termos contemporâneos e informais. O carpinteiro de Nazaré é a medida de todas as coisas, a começar por mim. E, quando me olho, ocorre um juízo, uma crise. A crise de uma descoberta incômoda e constrangedora: não somos irmãos e detestamos servir. Não amamos e preferimos ser prudentes. Mas ele foi o que deveríamos ser!

A descoberta do eu está relacionada, de maneira muito adulta, com a descoberta de todos os outros, de toda a realidade. E o juízo, a crise recai sobre tudo isso que se conhece. Todas as frustrações e até mesmo a vida perdida recaem sob um juízo proclamado com gana, com o ímpeto de reiterado Pentecostes. Mas não é juízo excludente nem condenatório, pois cumpre prosseguir a rebelião do amor. O novo espírito trazido para dentro do mundo é conscientizador. Por isso, o sim à vida e à tarefa implícita no ato de viver.

CREDO FORMULADO EM RETIRO PARA SOLDADOS

Jesus Cristo — nosso Senhor!

Ele viveu na terra o amor de Deus, fazendo-nos ver como um homem pode se encontrar com outro homem.

Ele fez a experiência de como nos excluímos mutuamente da comunidade por força de preconceitos. Mas também demonstrou que é possível reconduzir excluídos para dentro da comunhão.

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Igualado aos excluídos, teve de sofrer e morreu como criminoso na cruz. Mas nós sabemos que ele não ficou na morte, e, sim, vive ainda hoje. Com todos os que confiam em Jesus, espero que ele permaneça comigo também, quando sinto medo e não consigo crer. E quando eu morrer.

O responsável pela formulação desse modelo, o pastor luterano alemão Helmut Ruhwandl, foi acusado de heresia e difamação de Jesus Cristo, há dois anos. Mas a direção de sua Igreja rejeitou os argumentos dos opositores.

O credo, como tal, desconhece referências trinitárias, enfatizando o fato salvífico da cruz (e da ressurreição). Mas essa ênfase não desconhece a relevância que cabe ao Cristo que age hoje. Daí a sequência de problemas atuais: humanidade, preconceitos, solidariedade, justiça. Além dos protestos, não faltou quem elogiasse o abandono de formulações metafísicas e incompreensíveis em prol de expressões extremamente simples (ou quase simplórias): que ele permaneça comigo também... quando eu morrer. Além de evitar o impessoal e distante, o autor também conseguiu traduzir o que seja solidariedade universal ou ecumenismo de modo agradável e inteligível: todos os que confiam em Jesus. A crítica mais objetiva, talvez, foi a formulada por Werner Schmidt: não estariam os participantes do retiro por demais preocupados com seus próprios problemas? A pergunta é séria. No entanto, que é que nos preocupa ao professar a fé?

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CREDO DE DOROTHEE SOLLE

Creio em Deus que não criou o mundo já pronto, como coisa que deva ficar como está, para sempre; que não governa segundo leis eternas de imutável validade, nem segundo ordenações naturais de pobres e ricos, especialistas e desinformados, dominadores e dominados.

Creio em Deus que deseja a resistência do que vive e a transformação ele todas as condições através de nosso trabalho, através de nossa política.

Creio em Jesus Cristo que tinha razão ao lutar pela transformação de todas as condições, sozinho como nós sem nada poder fazer, e que com isso se arruinou.

Comparando com ele, reconheço como nossa inteligência se atrofia, nossa imaginação sufoca, nosso esforço é vão, porque não vivemos como ele viveu.

A cada dia temo que ele tenha morrido em vão porque está soterrado em nossas Igrejas, porque traímos sua revolução em obediência e por medo às autoridades. Creio em Jesus Cristo que ressurge em nossa vida para que fiquemos livres de preconceitos e arrogância, de medo e ódio, continuando sua revolução em direção de seu reino. Creio no Espírito que entrou no mundo, com Jesus, na comunhão de todos os povos e em nossa responsabilidade pelo que resultar de nosso mundo: um vale de lágrimas, fome e violência ou a cidade de Deus. Creio na paz justa que é realizável, na possibilidade de uma vida plena de sentido para todos os homens e no futuro deste mundo de Deus. Amém.

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É pouco conhecida no Brasil a combativa teóloga alemã que redigiu esse último credo de nossa seleção. No entanto, é possível que sua reflexão fornecesse elementos mais relevantes para a tarefa de cada um do que os oferecidos por certas correntes neofeministas. Seja como for, será impossível, nos próximos anos, ignorar a contribuição de D. Sölle sempre que a teologia tiver de levar a sério problemas imanentes, questões de solidariedade e universalidade. A mulher que certa vez definiu ateísmo como sinônimo de resignação (!) desafia-nos com seu modelo de profissão da fé.

O credo apresenta estrutura quase trinitária (seria a paz objeto de um quarto artigo?), embora não se constatem maiores pruridos de ortodoxia. Ao mesmo tempo que menciona a criação, a autora centraliza a atenção nas condições e situações reinantes nessa criação: subdesenvolvimento e os males que o configuram. Todo aquele que confessa sua fé é uma criatura engajada na luta pelo equacionamento e/ou solução de problemas contemporâneos — que são problemas da fé. É compreensível, portanto, que desapareça qualquer menção explícita a fatos salvíficos (em vez de foi crucificado, encontramos ele se arruinou). Da mesma forma foram rejeitadas as diversas interpretações tradicionais (caráter sacrificai, vicário e/ou gracioso da morte de Jesus).

Por outro lado, aquilo que ninguém consegue sozinho torna-se viável com a união de todos (os povos): a comunidade universal, a paz justa (e não apenas maquilada), a vida dotada de sentido. Como é possível a realização dessa empreitada? Pelo Cristo que vive (ressurge) em nós, capacitando-nos a continuar sua revolução, que tem um objetivo bem claro: a cidade de Deus, imanente, para todos os homens, a terra em que é possível uma paz justa e uma

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vida que tenha sentido. Com muita razão, D. Sölle relembra que o reino de Cristo não se situa nos céus — e que seria irresponsável rejeitar este mundo de Deus em prol de uma noção vaga de transcendência.

UM CREDO SEMPRE NOVO?

Nenhum dos exemplos e modelos apresentados resolve a problemática inerente a qualquer confissão de fé. Mas todos eles evidenciam a necessidade da procura, a validade da tentativa e a urgência da experiência. A fé, além de ser questão pessoal, é também tarefa comunitária, envolve a história de um grupo e não pode prescindir de contemporaneidade. A fé nunca é a mesma e nunca é de ontem. Veja-se a insistência no hoje, no livro do Deuteronômio (5.3 ou 26.16-19) ou na Epístola aos Hebreus.

Sob esse ponto de vista, os diversos modelos de credos atuais cumprem função pedagógica. Resta saber se a necessária universalidade já foi alcançada. Inquirir a respeito dessa ecumenicidade não é exagero, já que toda confissão de fé responde, também, aos desafios de um tempo, de uma época, de uma geração. E os problemas e desafios de nosso tempo têm dimensão planetária.

A questão da universalidade talvez se torne mais clara na releitura dos textos selecionados em perspectiva latino-americana. Conseguiremos identificar-nos com tais formulações?

Ou refletem tais credos a preocupação de elementos, honestos sim, mas ainda oriundos de estruturas sociais afluentes?

Por último, a pergunta que terá ocorrido a alguns: onde ficou o modelo mais nosso, a profissão de fé gerada em nosso contexto?

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Em matéria de textos já elaborados e em uso, dispomos de pouca informação. Para a última Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, no entanto, foi sugerido um texto do Credo Social da Igreja Metodista do Brasil. Ainda é impossível saber onde foi liturgicamente aproveitado, e desconhecem-se reações e comentários. A título de comparação e complementação vai reproduzido aqui:

Cremos em Deus, Criador de todas as coisas e Pai de toda a família humana, fonte de todo o amor, justiça e paz.

Cremos em Jesus Cristo, Deus que se fez homem como cada um de nós, amigo e redentor dos pecadores, Senhor e servo de todos os homens. Cremos no Espírito Santo, Deus defensor, que conduz os homens livremente à verdade. Cremos que a comunidade cristã universal é serva do Senhor; que a unidade cristã é dádiva do sacrifício do Cordeiro de Deus e que viver divididos é negar o Evangelho. Cremos que o culto verdadeiro, que Deus aceita dos homens, é aquele que inclui a manifestação de uma vivência de amor, na prática da justiça e no caminho da humildade junto com o Senhor. Amém.

Constata-se logo que o texto é universal em sua linguagem no sentido de que poderia ter sido formulado em qualquer parte do mundo onde haja cristãos preocupados com a dimensão ecumênica da fé e com questões de justiça, liberdade e paz. É evidente a ausência de vários tópicos fundamentais da fé cristã, assim como não transparece a

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(www.luteranos.com.br/conteudo/um-credo-para-nossa-epoca-existe-isso)

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preocupação pelos desafios próprios do tempo brasileiro.
No entanto, é possível que justamente indique, com muita clareza, o âmbito e a dimensão de nosso testemunho. A ausência das palavras é indicadora, por vezes, da ocorrência de uma profissão de fé que fala mais alto. E que se chama martírio.

Fontes:

• Ressurreição. Centro Ecumênico de InformaçãoSuplemento no. 4, Tempo e Presença Editora, julho, 1973.

• Esperança. Centro Ecumênico de Informação - Suplemento no. 7, Tempo e Presença Editora, março, 1974.

• QUATRO TEXTOS ESCOLHIDOS. BRENNO ARNO SCHUMANN. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO CULTURAL. ÓRGÃO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA.

Número 2, ano 1, abril de 1974. GOVERNO ITAMAR FRANCO

• Auxílios para a Prática Pastoral - Seleção póstuma de prédicas e meditações do Pastor Breno Schumann. Editora Sinodal, 1974.

• Celebração em memória dos 25 anos da morte do Pastor Breno Schumann (Vídeo)

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Gênesis 3.1-13 84 Gênesis 11.1-9 53 Êxodo 32.15-20,30-34 30 Êxodo 33.11 71 1 Samuel 2.1-10 190 Salmo 4.8 164 Salmo 73.28 75 Salmo 75 153 Salmo 127.1 149 Isaías 29.18-21 146 Isaías 42.1-8 92 Isaías 66.13 43 Zacarias 9.9-10 174 Mateus 9.10-13 138 Mateus 10.7-15 57 Mateus 13.44-46 62 Mateus 22.15-22 66 Marcos 9.14-29 89 Marcos 10.13-16 162 Lucas 9.51-56 96 Lucas 10.17-20 39 Lucas 12.48b 178 Lucas 13.6-9 192 Lucas 16.1-9 142 Lucas 16.19-31 182 Lucas 23.33,39-48 104 João 4.31-38 80 João 13.1-17 26 João 15.26-16.4a 119 João 16.22 22 João 17.1-8 34 Atos 2.37-39 126 Romanos 14.7-13 134 Efésios 2.8 18 Efésios 4.21-32 158 Colossenses 3.1-4 114 2 Timóteo 2.8 110 Hebreus 11.1 48 Hebreus 11.35b-40 99 1 Pedro 5.1-5 194 1 João 4.18 129 Apocalipse 5.5-13 169
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