Para um léxico dos usos / Stephen Wright

Page 1

Conceitos emergentes Emergent concepts (underpinning usership) Modos de usar Modes of usership Instituiçþes conceituais a serem aposentadas Conceptual institutions to be retired



Para um léxico dos usos

Stephen Wright

Toward a lexicon of usership Stephen Wright

Edições Aurora / Publication Studio SP


Index

Sobre a tradução

On the translation

7

Para um léxico dos usos

Toward a Lexicon of Usership

11

1:1

1:1

15

Atraência [allure]

Allure

21

Autonomia

Autonomy

25

Autoria

Authorship

29

Brechas

Loopholes

33

Caça furtiva

Poaching

37

Carona

Piggybacking

43

Coeficiente de arte

Coefficient of art

45

Competência

Competence

49

Desativar (a função estética da arte)

Deactivate (art’s aesthetic function)

55

Dupla ontologia

Double ontology

59

Edifícios conceituais

Conceptual edifices

63

Escapologia

Escapology

65

Espectador

Spectatorship

69

Espectador desinteressado

Disinterested spectatorship

75

Eventicidade

Eventhood

79

Excedente cognitivo

Cognitive surplus

81

Expertise / cultura dos especialistas

Expertise / expert culture

85

Externalidades (positivas e negativas)

Externalities (positive and negative)

89

Fazer a xepa

Gleaning

91

Hackeamento

Hacking

93

Imperformatividade

Imperformativity

99

Indolência (criativa e expressiva)

Idleness (creative and expressive)

101


Sumário

Jogatina

Gaming

103

Léxico (para uma paisagem verbal reaproveitada pelos usuários)

Lexicon (toward a userrepurposed wordscape)

105

Mundos da arte (ambientes arte-sustentados)

Artworlds (art-sustaining environments)

109

Museu 3.0

Museum 3.0

111

Narradoria (arte falada)

Narratorship (talking art)

117

Objeticidade

Objecthood

121

­Profanação

Profanation

123

Propósito sem propósito

Purposeless purpose

127

Propriedade (o direito do autor Ownership (copyright is not exclui os usuários) for users)

129

Protótipos e ready-mades assistidos

Assisted readymades and prototypes

131

Ready-mades recíprocos

Reciprocal readymades

135

Reaproveitamento

Repurposing

139

Reciprocidade extraterritorial

Extraterritorial reciprocity

141

Redundância

Redundancy

145

Slackspace

Slackspace

149

Sub specie artis (visibilidade específica)

Specific visibility (sub specie artis)

153

Use-junto

UIT (“use it together”)

157

Usologia

Usology

161

Usual (o usual ≠ o evento)

Usual (the usual ≠ the event)

163

Usos

Usership

165


On the translation

6

A first version of this translation was made thanks to the São Paulo Biennial Foundation for the Seminar Uses of Art, held in the occasion of the 31st São Paulo Biennial in September 2014. It remained nonetheless unpublished for almost two years, until it was revised and updated for the present edition by Aurora / Publication Studio SP in a collaborative and artisanal process much in afinnity with the spirit of Sthephen Wright’s proposition towards a lexicon of usership. It is not uncommon for critical thinking on processes of social and cultural transformation to be confronted with the problem of finding the right words to deals with these issues. It is not that we are lacking terms, says Wright: the lexical toolbox is full of utensils which, however, don’t seem to have purpose for the task we have at hand. The term usership, in English, has the merit of calling upon both the ways of using and the collective of users, as well as the perspective, the practical knowledge and the particular mode of relation implicated in making use. The translation proposes alternating this terms throughout the text, employing here and there the neologism usuaridade, a noun in which the suffix -idade expresses the notion o quality or condition. Althought in this sense it gets closer of the English term, the invented word has limited use value, as in its awkwardness it may sound like a concept of highly specialized definition. And that is not this is about: not about building a new specialized jargon, but about exploring exchanges, deviations and lexical re-purposing. The very usefulness of this lexicon for art related practices lies in is opennes to other areas of activity and knowledge, to the intense circulation of words between art and politics, between art and social theory, but also between art and the common knowledges of redistribution, translation and sharing, concerning what is nothing but usual: to plagiarize, to appropriate, to repurpose, to mend, to sample, copy and paste, to reuse. This are the pratices “at the heart of social transformation long before we are able to name it as such” (p.78), calling art practices to join


Sobre a tradução

Uma primeira versão desta tradução foi realizada graças à Fundação Bienal de São Paulo, em vista do seminário Usos da Arte, em setembro de 2014, parte da programação da 31a Bienal. Não tendo sido publicada na ocasião, ficou guardada por quase dois anos, até ser revista e atualizada para esta edição de Aurora / Publication Studio SP, em um processo colaborativo e artesanal muito afim à proposição de Stephen Wright para um léxico dos usos. Não é incomum que as reflexões dedicadas a investigar processos de transformação social e cultural se confrontem com o problema de como encontrar as palavras adequadas para tratar desses assuntos. Não é que nos faltem termos, afirma Wright: a caixa de ferramentas lexical está cheia de utensílios que, no entanto, parecem não ter serventia para a tarefa que temos a cumprir. O termo usership, em inglês, tem o mérito de invocar tanto os modos de usar quanto o coletivo dos usuários, bem como a perspectiva, o saber prático e o modo particular de relação implicados no fazer uso. A tradução propõe uma alternância desses diferentes termos ao longo do texto, servindo-se aqui e ali do neologismo usuaridade, substantivo em que o sufixo -idade exprime a noção de qualidade ou condição. Embora nesse sentido se aproxime do termo em inglês, a palavra inventada tem valor de uso limitado uma vez que sua estranheza tende a fazê-la soar como um conceito de definição altamente especializada. E não é disso que se trata: não de constituir um novo jargão especializado mas de explorar trocas, desvios e reaproveitamentos lexicais. A própria utilidade deste léxico para as práticas relacionadas à arte está em sua abertura a outras áreas de conhecimento e atividade, a uma intensa circulação de palavras e conceitos entre arte e política, entre arte e teoria social, mas também entre arte e conhecimentos comuns de redistribuição, tradução e compartilhamento que dizem respeito à dimensão do que há de mais usual: plagiar, apropriar-se, reaproveitar, remendar, samplear, recortar e colar, reutilizar. São essas práticas que, estando “no coração da transformação social muito antes que isso tivesse nome” (p.79), convocam as práticas de arte a aderir ao fazer interessado dos

7


the interested making do of usership, to operate in the real, as Wright puts it, in 1:1 scale, to desert the regime of exceptionality which keeps them apart from social and political action subject to uses and consequences. To vanish from the horizon of events and workswhich defines artistic visibility itself, to disappear from art to gain the world. This translation is also usological: with no pretension of representing an original writing, it makes use of that writing, availing itself of the procedures and of the diversity of tones the author has imprinted to each entry—narratives, conceptual architectures, poetry, escapological etymology and dynamic dialogues with authors as diverse as Marcel Duchamp and Aaron Swartz, put here side by side (in use) uncerimouniously. Making use of this resources with creative idleness—a quality of the translating activity, according to Wright (a experienced translator)—, is a little like working in the author’s workshop, using his tools: in the operations they carry out the translator benefits from the author’s (the former user’s) knowledge, while putting their own new competences and incompetences at the service of the cognitive surplus this shared usership produces. Seeing translating as a form o usership also allows us to make explicit another fundamental condition of this activity: it is always purposed, interested, therfore always partial and possibly dated. In this case, the matter of interest is to contribute with the possibilities of imagining and instantiating forms of using together and redistributing the conceptual resources one has at reach. I thank André Mesquita for many readings, Júlia Ayerbe for her skilled editing work, Fernanda Peixoto, Giancarlo Machado, Michel Riaudel and Rodrigo Nunes for their precious suggestions, Graziela Schneider and Henrique Cotrim for our endless conversation on the translation of life.

Julia Ruiz Di Giovanni

8


usuários, a operar no real, como indica Wright, em escala 1:1, a desertar o regime de excepcionalidade que as separa da ação social e política sujeitas a usos e consequências. A sumir do horizonte dos eventos e obras que definem a própria visibilidade artística, a desaparecer da arte para ganhar o mundo. Esta tradução também é usológica: sem pretensão de representar uma escritura original, busca aproveitar-se dela, servir-se dos procedimentos e da diversidade de tons que o autor imprimiu a cada uma das entradas – a narrativa, as arquiteturas conceituais, a poesia, a etimologia escapológica e os diálogos vivos com autores tão diversos quanto Marcel Duchamp e Aaron Swartz, aqui postos lado a lado (em uso) sem cerimônia. Servir-se desses recursos com a indolência criativa que para Wrigth (tradutor experiente) caracteriza a atividade de tradução, é um pouco como trabalhar na oficina do autor, usando suas ferramentas: nas operações que realiza, quem traduz se beneficia do saber daquele usuário anterior (o autor), ao mesmo tempo em que coloca novas competências e incompetências a serviço do excedente cognitivo que esse uso compartilhado produz. Entender a tradução como modo de usar permite ainda explicitar outra condição fundamental dessa atividade: ela é sempre propositada, interessada, portanto sempre parcial e possivelmente datada. Neste caso, o que interessa é contribuir para as possibilidades de imaginação e instanciação de formas de usar junto e redistribuir os recursos conceituais que se encontram ao alcance. Agradeço a André Mesquita as muitas leituras; a Júlia Ayerbe o trabalho habilidoso de edição; a Fernanda Peixoto, Giancarlo Machado, Michel Riaudel e Rodrigo Nunes as sugestões valiosas; e a Graziela Schneider e Henrique Cotrim a nossa conversa sem fim sobre a tradução da vida.

Julia Ruiz Di Giovanni

9


Toward a Lexicon of Usership The cause and origin of a thing and its eventual usefulness, its actual employment and place in a system of purposes, lie worlds apart; whatever exists, having somehow come into being, is again and again reinterpreted to new ends, taken over, transformed, and redirected by some power superior to it; all events are a subduing, a becoming master, and all subduing and becoming master involves a fresh interpretation, an adaptation through which any previous “meaning” or “purpose” are necessarily obscured or even obliterated. Friedrich Nietzsche, On the Genealogy of Morals, § 12, 1887*

p. 160

p. 164

pp. 62 and 84 p. 68

p. 128

p. 54 p. 28

10

The past several decades have witnessed what might be described as a broad usological turn across all sectors of society. Of course, people have been using words and tools, services and drugs, since time immemorial. But with the rise of networked culture, users have come to play a key role as producers of information, meaning and value, breaking down the long-standing opposition between consumption and production. With the decline of such categories of political subjectivity as organised labour, and the waning of the social-democratic consensus, usership has emerged as an unexpected alternative—one that is neither clear cut nor welcomed by all. For usership runs up against three stalwart conceptual edifices of the contemporary order: expert culture , for which users are invariably misusers; spectatorship, for which usership is inherently opportunistic and fraught with self-interest; and most trenchantly of all, the expanding regime of ownership , which has sought to curtail long-standing rights of use. Yet usership remains as tenacious as it is unruly. The cultural sphere, too, has witnessed a shift. Turning away from pursuing art’s aesthetic function , many practitioners are redefining their engagement with art, less in terms of authorship than as users of artistic competence, insisting that art foster more robust use values and gain more bite in the real. Challenging these dominant conceptual institutions feels disorienting, however, as the very words and concepts one might “use” to name and clarify use-oriented practices are not readily available. All too often, user-driven initiatives fall prey to lexical capture by a vocabulary inherited from modernity. Yet no genuine self-understanding of the relational and dialectical category of usership will be possible until the existent conceptual lexicon


Para um léxico dos usos [...] a causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades, diferem toto coelo [totalmente] [...] algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de uma maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior [...] todo acontecimento do mundo orgânico é um subjulgar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação, um ajuste, no qual o “sentido” e a “finalidade” anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados. Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral, § 12, 1887*

As últimas décadas testemunharam o que podemos descrever como uma ampla virada usológica em todos os setores da sociedade. Certamente as pessoas vêm usando palavras e ferramentas, serviços e drogas desde tempos imemoriais. No entanto, com a ascensão da cultura de rede, os usuários passaram a desempenhar um papel fundamental como produtores de informação, significado e valor, interrompendo a persistente oposição entre produção e consumo. Com o enfraquecimento de categorias de subjetividade política tais como o trabalho organizado e o declínio do consenso socialdemocrata, a usuaridade emergiu como uma alternativa inesperada. Trata-se de uma alternativa que não está inteiramente nítida, nem é unanimemente bem-vinda, porque o uso se confronta com três sólidos edifícios conceituais da ordem contemporânea: no campo do conhecimento, a cultura dos especialistas , para quem usuários são invariavelmente maus usuários; no campo estético, o lugar privilegiado do espectador , para quem o uso é intrinsecamente oportunista e interesseiro; e, no domínio da economia política, o regime de propriedade , crescente e corrosivo, que busca restringir direitos de uso há muito existentes. Ainda assim, o uso permanece tão tenaz quanto indisciplinado. A esfera cultural também testemunhou uma mudança. Muitos praticantes da arte, recusando-se a perseguir sua função estética , estão redefinindo seu compromisso com ela, considerando-a menos em termos de autoria e mais enquanto usuários das competências artísticas, insistindo em que a arte crie valores de uso mais potentes e possa incidir no real com mais contundência. Ainda assim, desafiar essas instituições conceituais dominantes gera uma sensação de desorientação, já que as próprias palavras que podemos “usar” para nomear e esclarecer práticas orientadas

p. 161

p. 165 p. 63 p. 85 p. 69 p. 129

p. 55 p. 29

11


p. 138

12

is retooled. This requires both retiring seemingly self-evident terms (and the institutions they name), while at the same time introducing a set of emergent concepts. In the spirit of usership this may be done best by repurposing the overlooked terms and modes of use, which remain operative in the shadows cast by modernity’s expert culture.

* Translated by the author.


pelo uso não estão prontamente disponíveis. Com demasiada frequência, as iniciativas protagonizadas por usuários caem prisioneiras do léxico, capturadas por um vocabulário herdado da Modernidade. Entretanto, nenhum entendimento genuíno da categoria relacional e dialética da usuaridade será possível se o léxico conceitual existente não for reinstrumentalizado. Isso exige tanto aposentar termos aparentemente autoevidentes (e as instituições que estes termos nomeiam), quanto, ao mesmo tempo, introduzir um conjunto de conceitos emergentes. No espírito que é próprio do uso, a melhor maneira de fazer isso pode ser reaproveitar termos e modos de usar esquecidos, que continuam em operação à sombra da moderna cultura dos especialistas.

* NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, § 12.

p. 139

13


Authorship The possessive quality of modern democratic liberal theory is found in its conception of the individual as essentially the proprietor of his own person or capacities, owing nothing to society for them. C. B. MacPherson, The Political Theory of Possessive Individualism, 1962*

28

With the rise of possessive individualism in seventeenth century Europe, a previously unheard-of idea began to gain currency—one that today has achieved hegemony—according to which individuals are conceived as the sole proprietors of their skills and owe nothing to society for them, meaning that these skills (and those of others) are commodities to be bought and sold at the marketplace. One of the conventions for packaging those skills is the conceptual institution of authorship. People had been using words, notes and pigment to string together tales, tunes and pictures forever, and though history retains the names of some of the more illustrious, it hadn’t occurred to anyone that users of words, melodies and colours could somehow lay claim in any meaningful way to some particular arrangement that they had come up with; that they could claim authorship of some particular configuration of otherwise freely circulating marks and noises, and as such regulate other people’s use of them. Previously, ideas and sentences, rhymes and rhythms were socially available for all to use (that is, modify, or not, and reproduce). Authorship became the name for stabilising that semiotic swarm, commodifying it by congealing it around a single name—a signature—as if it owed nothing to the contributive usership of society. What Michel Foucault famously called the “authorship function” developed as a way of containing semiotic dispersion around an arbitrary signifier (a proper name). The twentieth century was not kind to authorship (though by then the institution of authorship had long since triumphed). Psychoanalysis, hermeneutics and post-structuralism amongst many others challenged the idea of a constituent subject underpinning authorship, shifting the locus of production toward the subconscious, the collective, the reader or the viewer... But these critiques, though they deconstructed the notion, paradoxically only


Autoria O caráter possessivo da teoria moderna da democracia liberal reside na concepção de que o indivíduo é essencialmente proprietário de sua pessoa e de suas capacidades, não devendo nada à sociedade por isso. C. B. MacPherson, A teoria política do individualismo possessivo, 1962*

Com a ascensão do individualismo possessivo na Europa do século XVII, tornou-se corrente uma ideia até então inédita – e que hoje ganhou hegemonia –, segundo a qual os indivíduos são considerados os únicos proprietários de suas habilidades e não devem nada à sociedade por elas. Isso significa que suas habilidades (bem como as dos demais) são mercadorias a serem compradas e vendidas. Uma das convenções que serve de embalagem para essas habilidades é a instituição conceitual da autoria. Desde sempre, as pessoas vinham usando palavras, notas e pigmentos para articular narrativas, composições musicais e imagens, e, embora a história retenha os nomes de alguns dos mais ilustres, nunca ocorrera a ninguém que os usuários de palavras, melodias e cores pudessem de algum modo reivindicar para si um arranjo particular que encontrassem; que pudessem alegar autoria sobre uma configuração particular de marcas ou sons e, assim, limitar seu uso por outras pessoas. Antes, ideias e frases, rimas e ritmos estavam socialmente disponíveis para serem usados (ou seja: modificados, ou não, e reproduzidos) por todos. Autoria passou a designar a estabilização desse turbilhão semiótico, sua mercantilização através de seu congelamento em torno de um único nome – uma assinatura – como se nada devesse às contribuições que recebe de seus usuários na sociedade. Aquilo que Michel Foucault notoriamente chamou de “função-autor” desenvolveu-se como uma maneira de conter a dispersão semiótica em torno de um significante arbitrário (um nome próprio). O século XX foi impiedoso com a autoria (mesmo que, enquanto instituição, a autoria já tivesse há muito triunfado). A psicanálise, a hermenêutica e o pós-estruturalismo, entre outros, confrontaram a ideia de um sujeito constituinte que sustenta a autoria, mudando o locus da produção para o subconsciente, o coletivo, o leitor, o espectador... Mas essas críticas, embora tenham

29


p. 120 p. 68

30

strengthened the market value of authorship. Today, authorship continues to function in a sort of holy trinity with objecthood and spectatorship as a mainstay of the mainstream artworld. Indeed, from an investment perspective, authorship has now overtaken objecthood as a monetisable commodity. However, authorship is facing a challenge from contributive usership. As users contribute content, knowledge, knowhow and value, the question as to how they be acknowledged becomes pressing. With the rise of collectively organised artsustaining environments, single-signature authorship tends to lose its purchase—like possessive individualism in reverse.

* Macpherson, C. B. The Political Theory of Possessive Individualism: Hobbes to Locke. Oxford: Oxford University Press, 2011.


desconstruído a noção, só fizeram aumentar, paradoxalmente, o valor de mercado da autoria. Hoje, a autoria continua a funcionar, ao lado da objeticidade e do espectador , em uma espécie de santíssima trindade do mainstream artístico. De fato, do ponto de vista dos investimentos, atualmente ela tomou o lugar da objeticidade como mercadoria monetizável. No entanto, a autoria é confrontada pela dimensão contributiva do uso. Na medida em que os usuários contribuem com conteúdo, conhecimento, prática e valor, a questão de como suas contribuições podem ser reconhecidas torna-se premente. Com o crescimento de ambientes para sustentação da arte organizados coletivamente, como em um individualismo possessivo ao contrário, a autoria de assinatura individual tende a perder o que havia ganho.

* MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo. São Paulo: Paz e Terra, 1979.

pp. 121 e 69

31


Cognitive surplus The atomization of social life in the twentieth century left us so far removed from participatory culture that when it came back, we needed the phrase “participatory culture” to describe it. Clay Shirky, Cognitive Surplus, 2010

80

The expression “user-generated content” describes both individual and, more importantly, social acts. No one generates content just for themselves. Insofar as user-generated knowledge creates meaning, and value, it must be user-shared. Detractors of usership are quick to point to that category’s built-in component of self-interest. Yet even as users pursue self-interest, they mutualise uses and produce a kind of usership surplus, building upon and expanding prior uses. In this way, usership is contributive and yields more than the sum of the individual uses that comprise it: sharing all the tools in a workshop allows everyone to benefit both from the use of the tools and (even more so) from the compounding know-how of their collective usership. Call it a utility surplus. When the mode of usership in question involves connecting brainpower—what Gabriel Tarde calls “intercerebral collaboration”—the type of excess produced is referred to as “cognitive surplus.” For instance, when users tag images, texts, sounds or videos, they make those tags available and avail themselves of others’ tags in an upward spiral. The rise of contributive usership through new media tools came as something of a surprise; indeed, it could not have been predicted because the possibility of that usership was less determined by the tools themselves than by the desire to gain access to one another. The potential impact of usership-driven cognitive surplus is pretty staggering. Wikipedia, for instance, an extraordinary user-made initiative by any account, has been built out of roughly 1% of the man-hours that Americans spend watching television each year... What makes user-uploaded libraries and film archives and p2p file-sharing arrangements work is usership surplus. User-aggregated task engines, such as reCAPTCHA (those distorted texts found at the bottom of online registration forms,


Excedente cognitivo A atomização da vida social no século XX deixou-nos tão afastados da cultura participativa que, agora que ela voltou a existir, precisamos da expressão “cultura participativa” para descrevê-la. Clay Shirky, Excedente cognitivo, 2010*

A expressão “conteúdo gerado pelo usuário” descreve tanto atos individuais como, o que é mais importante, atos sociais. Ninguém gera conteúdo apenas para si. À medida que produz significado e valor, o conhecimento gerado pelo usuário é necessariamente compartilhado pelo usuário. Os detratores dos usos são rápidos em apontar o conteúdo de interesse pessoal implícito nessa categoria. No entanto, mesmo quando os usuários agem em interesse próprio, eles mutualizam usos e produzem uma espécie de excedente de uso, reaproveitando usos anteriores e expandindo-os. Desse modo, a usuaridade como modo de relação é contributiva e rende mais do que a soma dos usos individuais que a compõem: compartilhar todas as ferramentas em uma oficina permite que todos se beneficiem, seja pelo uso das ferramentas quanto (ainda mais) pelo saber prático composto que deriva de seu uso coletivo. Vamos chamar isso de um excedente de utilidade. Quando o modo de usar em questão implica conectar capacidades intelectuais – o que Gabriel Tarde chamou de “colaboração intercerebral” – o tipo de excesso que se produz é chamado “excedente cognitivo”. Por exemplo, quando os usuários atribuem tags a imagens, textos, sons ou vídeos, eles tornam essas tags disponíveis e dispõem por sua vez das tags atribuídas por outros, em uma espiral ascendente. A ascensão dos usos contributivos através das novas ferramentas midiáticas foi vista com certa surpresa. De fato, não poderia ter sido prevista, porque a possibilidade desses usos foi determinada mais pelo nosso desejo de acesso uns aos outros do que pelas ferramentas em si. O impacto potencial do excedente cognitivo produzido pelos usuários é bastante surpreendente. A Wikipedia, por exemplo, uma iniciativa extraordinária criada, sem dúvida, por usuários, foi construída em aproximadamente 1% do número de horas-homem que os

81


that one has to retype to reduce spam) produce astronomical amounts of cognitive surplus that in the case of reCAPTCHA is turned toward transcribing all the books and newspapers prior to 1945, whose print cannot be machine read with reliable accuracy. It is estimated that some 200 millions CAPTCHAs are solved by humans every day, requiring on average a mere ten seconds of labour time... which, totals some 150,000 hours of unremunerated labour each day. One of the largest factories in the world, driven by inadvertent labour alone. Leaving aside the question as to the universal human value of the tasks into which projects such as reCAPTCHA have yoked internet users, they underscore the prodigious cognitive-surplus potential that aggregated usership embodies. A labour force tantamount to the one required to build the pyramids or put astronauts on the moon—accomplished as the by-product of a primary task! Aggregated usership brings a previously unheard-of potential for cognitive surplus into play, one liable to utterly transform our conception of labour. For now usership has precious little say over the use of its community-generated surplus, and rarely accrues its share of the benefits it produces.

82

* Shirky, Clay. Cognitive Surplus: How Technology Makes Consumers into Collaborators. London: Penguin Group, 2011.


americanos passam assistindo televisão a cada ano... O que faz funcionar as bibliotecas, arquivos de filmes e mecanismos de compartilhamento de arquivos p2p1 é o 1.  Peer to peer: par a par ou ponto a ponto, refere-se à arquitetura de redes de excedente de uso. informação e comunicação em que Mecanismos que demandam ações o compartilhamento de serviços e do usuário para cumprir tarefas, como o dados se dá entre usuários, não precireCAPTCHA (aqueles textos distorcidos sando passar por um servidor central. [Nota da tradutora] ao final de formulários de cadastramento, que é preciso digitar para reduzir o risco de spam), produzem quantidades astronômicas de excedente cognitivo – excedente que, no caso do reCAPTCHA, é direcionado para a transcrição de livros e jornais anteriores a 1945, cuja impressão não pode ser reconhecida por máquinas com precisão confiável. Estima-se que cerca de 200 milhões de CAPTCHAs são decifrados por humanos diariamente, demandando cada um, em média, meros dez segundo de tempo de trabalho...: o que resulta no total aproximado de 150 mil horas diárias de trabalho não remunerado. Uma das maiores fábricas do mundo, movida unicamente por mão de obra desavisada. Deixando de lado a questão do valor humano universal das tarefas para as quais projetos como o reCAPTCHA recrutam os usuários da internet, elas ressaltam o potencial prodigioso de geração de excedente cognitivo que a ação agregada dos usuários representa. Uma força de trabalho equivalente à que foi necessária para construir as pirâmides do Egito ou colocar astronautas na lua – obtida como subproduto de uma tarefa primária! A agregação das ações dos usuários coloca em cena um potencial inédito de excedente cognitivo, potencial que pode transformar inteiramente nossa concepção de trabalho. Por enquanto, os usuários pouquíssimas vezes tem poder de decisão sobre uso do excedente que geram coletivamente e raramente são beneficiários dos ganhos que ele produz.

* SHIRKY, Clay. A cultura da participação. Criatividade e generosidade no mundo conectado. São Paulo: Zahar, 2010, p. 23.

83


Expertise / expert culture B’s competencies enrich A’s competencies if C’s incompetencies enrich B’s competencies then C’s incompetencies change polarity and move to a higher order. François Deck, “Reciprocal Expertise”, 2004*

From the high-minded perspective of expert culture, users’ claims are inherently shot through with self-interest. Take the experts of State. On the one hand anxious to uphold their regime of exception with respect to the market-driven private sector, public-sector experts are quick to point out that they serve users, rather than customers or clients; and on the other hand, they are the first to again uphold their exceptional status by stigmatizing users (or consumer advocacy groups) as the Trojan Horse of this same market-driven logic... But the person who takes such and such a bus line every morning at dawn to get to work knows something about that line which no urban planning expert, whose perspective is informed by countless disinterested “studies,” can simply ever know. This cognitive privilege is user specific. It is expert culture—whether the editors, the urban planners, the curators—which is most hostile to usership: from the perspective of expertise, use is invariably misuse. But from the perspective of users, everywhere, so-called misuse is simply... use. In The Production of Space, Henri Lefebvre points out a fundamental difference between the cognitive space of usership and the epistemological chauvinism of expert culture. The user’s space is lived—not represented... When compared with the abstract space of the experts (architects, urbanists, planners), the space of the everyday activities of users is a concrete one which is to say, subjective.

84

Of course, this is also what makes usership something of a double-edged sword, which is precisely what makes it interesting to consider, not as an alternative to the supposedly universal


Expertise / cultura dos especialistas As competências de B enriquecem as competências de A se as incompetências de C enriquecerem as competências de B, então as incompetências de C invertem sua polaridade e se deslocam para uma ordem mais elevada. François Deck, “Reciprocal Expertise”, 2004*

Consideradas do ponto de vista decoroso da cultura dos especialistas, as demandas dos usuários são intrinsecamente interesseiras. Tomemos, por exemplo, os especialistas do Estado. De um lado, empenhados em demarcar sua excepcionalidade frente ao setor privado, regido pelo mercado, os especialistas do setor público são rápidos em apontar o fato de que atendem usuários, e não clientes ou fregueses; de outro, sempre para demarcar sua posição excepcional, são os primeiros a estigmatizar os usuários (ou grupos de defesa dos consumidores) como “cavalos de troia” da mesma lógica dirigida pelo mercado... No entanto, a pessoa que pega uma determinada linha de ônibus todos os dias ao amanhecer para chegar ao trabalho sabe algo sobre aquela linha que simplesmente jamais saberá nenhum especialista em planejamento urbano, cuja perspectiva é informada por inúmeros “estudos” desinteressados. Este privilégio cognitivo é exclusivo do usuário. A cultura dos especialistas – sejam eles editores, urbanistas, curadores – é o que há de mais hostil aos usos: na perspectiva dos expertos, uso é sempre mau uso. Mas na perspectiva dos usuários, em toda parte, o que se chama de mau uso é simplesmente... uso. Em La Production de l’espace, Henri Lefebvre aponta uma diferença fundamental entre o espaço cognitivo dos usos e o chauvinismo epistemológico da cultura dos especialistas. O espaço dos usuários é vivido – e não representado... Quando comparado ao espaço abstrato dos especialistas (arquitetos, urbanistas, planejadores), o espaço das atividades cotidianas dos usuários é concreto, quer dizer, subjetivo.

É claro, isso também é o que faz do uso uma espécie de faca de dois gumes, e é justamente isso que torna interessante levar os

85


category of the “proletariat,” for instance, but as a way of rethinking the dialectics of collective and individual agency. Michel Foucault is premonitory in this respect. In his usage, usership at once designates the site where individuals and their comportments and needs are expected, where a space is available for their agency, both defining and circumscribing it; and it refers to the way in which these same users surge up and barge into a universe, which, though accustomed to managing their existence, finds itself thrown off balance by their speaking out as users. In other words—and this is related to Foucault’s theory of political action—it is not as if users burst forth in places where they are not expected; rather, the very immediacy of their presence is ambivalent and cannot be reduced to a progressive recognition, nor to a mere cooptation by the powers that be. Governance, control, disciplining devices of all kinds, necessarily generate users whose agency is neither exclusively rebellious nor purely submissive toward an exterior norm. They know they will never be owners; that they will never eliminate that dimension of exteriority from the power relations that impact on them. Users take on those instances of power closest to them. And in addition to this proximity, or because of it, they do not envisage that the solution to their problem could lie in any sort of future to which the present might or ought to be subordinated (very different in this respect to any revolutionary horizon). They have neither the time to be revolutionary—because things have to change—nor the patience to be reformists, because things have to stop. Such is the radical pragmatism of usership.

86

* Deck, François. “Reciprocal Expertise”. Third Text, 18, 2004. http://www.thirdtext. org/issues?item_id0=672&issue_number=Volume%2018,%202004&offset=0


usuários em conta, não como uma alternativa à categoria supostamente universal do “proletariado”, por exemplo, mas como uma maneira de repensar a dialética entre agência coletiva e individual. Michel Foucault é perspicaz nesse sentido. O modo como utiliza a noção de uso designa, ao mesmo tempo, o lugar em que se espera encontrar os indivíduos, seus comportamentos e necessidades, onde há um espaço disponível para sua agência, que define e circunscreve esta agência, referindo-se à maneira pela qual esses usuários emergem e invadem um universo que, embora de costume exerça controle sobre sua existência, é posto em desequilíbrio quando estes se manifestam abertamente. Em outras palavras – e isso tem a ver com a teoria da ação política de Foucault – não se trata de que os usuários irrompam em lugares onde não são esperados; e sim de que a própria imediatez de sua presença é ambivalente e não pode ser reduzida a um reconhecimento progressivo, nem à cooptação pelos poderes vigentes. Governo, controle, dispositivos disciplinares de toda espécie, necessariamente produzem usuários, cuja agência não é unicamente rebelde nem puramente submissa a uma norma exterior. Eles sabem que nunca serão os donos; que nunca eliminarão aquela dimensão de exterioridade das relações de poder às quais estão submetidos. Os usuários tomam para si as instâncias de poder que estão mais próximas. E além dessa proximidade, ou por causa dela, não consideram que uma solução para seu problema possa estar em alguma espécie de futuro, ao qual o presente está ou deve estar subordinado (algo muito diferente nesse aspecto de qualquer horizonte revolucionário). Eles também não têm tempo para esperar a revolução, porque as coisas tem que mudar; nem paciência para serem reformistas, porque já basta. Este é o pragmatismo radical dos usuários.

* Traduzido para esta edição. DECK, François. “Reciprocal Expertise”. In Third Text, volume 18, 2004. Disponível em http://www.thirdtext.org/issues?item_id0=672&issue_number=Volume%2018,%202004&offset=0

87


Gleaning Leftovers are clusters of possibilities. Pierre Pons, in Agnès Varda, The Gleaners and I, 2000

p. 36

90

Gleaning has been a customary right to farm products in Europe and elsewhere since the Middle Ages. It refers to both the right and the practice of gathering leftover crops from farmers’ fields after they have been commercially harvested or where reaping is not economically viable. Gleaning differs from scrounging in that, unlike the latter, it is legally regulated it is a common and informal type of usufruct that ensures gleaners a circumscribed right to use (usus) others’ property and to enjoy its fruits (fructus). Because it is specifically regulated (for instance, after thrashing, the collecting of the straw and the fallen grains of wheat is authorised) it is distinguished from pilfering defined as the offence of stealing fruit or vegetables before they have fallen to the ground. A more subordinate mode of usership than, say, poaching , gleaning is nevertheless significant because it points to historically entrenchced rights of common usership over resources found in private domains. Today, immaterial gleaning is widely practiced by a whole host of art-related practitioners; its agricultural antecedents offer it a haven from encroachment by groups lobbying on behalf of increased intellectual property rights and the foreclosure of the epistemic commons.


Fazer a xepa Sobras são conglomerados de possibilidades. Pierre Pons em Os catadores e eu, de Agnès Varda, 2000

p. 37

Catar as sobras é um direito consuetudinário de acesso a produtos agrícolas, na Europa e em outros lugares, desde a Idade Média. Refere-se ao direito ou à prática de recolher as sobras dos cultivos dos agrícolas depois que a colheita comercial já tenha sido realizada, ou em lugares onde ela é economicamente inviável. É diferente de parasitar, já que, ao contrário deste segundo termo, trata-se de algo regulado legalmente1 – é 1.  O autor se refere à regulação, na um tipo comum e informal de usufruto, Idade Média europeia (possivelmente verificável em outros contextos) do que garante aos catadores um direito cir- direito dos trabalhadores agrícolas cunscrito ao uso (usus) e aos frutos (fructus) a catar as sobras comercialmente da propriedade alheia. Por ser objeto de uma inviáveis ou culturalmente irrelevantes do cultivo que realizam para regulamentação específica (por exemplo, um senhor ou patrão. Em português é permitido recolher a palha do trigo e os o termo que designa essa relação é grãos que caíram depois de descartados), “respiga”, mais próximo nesse sentido à origem do termo gleaning usado por também é diferente de furtar – o que se Wright. Enquanto prática, a respiga define como crime de apropriar-se de frutos é certamente aparentada àquela que, ou hortaliças antes que caiam do pé.2 Como no Brasil, chamamos de fazer a xepa: a coleta dos alimentos descartados um modo de uso mais submisso do que, pelos comerciantes, deixados na rua digamos, caçar furtivamente em terras ao final da feira livre. A xepa, prática alheias, a xepa é significativa porque indica amplamente disseminada, mesmo não sendo objeto de nenhuma reguladireitos historicamente enraizados de uso ção legal, é considerada uma atividade comum sobre recursos que se encontram em perfeitamente legítima, ainda que domínio privado. Hoje, a xepa imaterial é vista como marca de pobreza e segregação social. [Nota da tradutora] amplamente feita por multidões em atividades relacionadas à arte; seus antecedentes 2.  No caso da xepa, certamente, há agrícolas a protegem da ofensiva dos grupos uma série de regras mais ou menos implícitas que a diferenciam do roulobistas que defendem a ampliação dos bo: só se pode pegar o que foi jogado direitos de propriedade e o embargo dos fora, o que está no chão, só quando as barracas da feira são desmontadas, anbens epistêmicos comuns. tes da chegada do serviço de limpeza. [Nota da tradutora]

91


Hacking What calls for a creative application of the hack is the production of new vectors along which the event may continue to unfold after its initial explosion into social space, and avoid capture by representation. McKenzie Wark, A Hacker Manifesto 2004*

92

Hacking is a great old Saxon word. A hack is a kind of beveled cut with an axe. Not a clean slice, but an oblique chop—opening something up in a way that’s not easy to repair. There has been much speculation about when and why the term was adopted by programmers. But the most thought-provoking discussion of what hacking means socially is to be found in A Hacker Manifesto, by McKenzie Wark. It is a rare thing, and the measure of genuine intellectual creativity, when a writer is able to develop and deploy a full-fledged, conceptual vocabulary and use it in a sustained way: the writing becomes at once the staging ground and the first application of a new way of talking. A hacker, in Wark’s lexicon, is very different from the image of the super-specialised anarcho-programmer, or criminal subculture, which the term still conjures up for most people; it refers to someone who hacks into knowledge-production networks of any kind, and liberates that knowledge from an economy of scarcity. “While not everyone is a hacker, everyone hacks,” writes Wark, suggesting that hacking is really quite akin to usership of knowledge, information, images, sounds and other social resources that one might find useful. In a society based on private-property relations, scarcity is always being presented as if it were natural; but in the contemporary context, where intellectual property is the dominant property form, scarcity is artificial, counter-productive—and the bane of hackers—for the simple reason that appropriating knowledge and information deprives no one else from accessing it. This is a key issue in art-related practice—indeed, Wark talks about hacking as if it were an art-related practice—for the system of value-production in the mainstream artworld is also premised on a regime of scarcity, underpinned by the author’s signature. Wark hacks his rather


Hackeamento O que a aplicação criativa do hackeamento permite é a produção de novos vetores em que o evento pode continuar a se desdobrar após sua primeira irrupção no espaço social e evitar, assim, ser capturado pela representação. McKenzie Wark, A Hacker Manifesto 2004*

Hacking é uma boa e velha palavra saxã. Um hack é um tipo de corte chanfrado, feito por um machado. Não uma incisão precisa, mas um talho oblíquo – que abre uma fenda difícil de remendar. Já houve muita especulação sobre porque este termo foi adotado pelos programadores. Mas a discussão mais inspiradora sobre o significado social do hackeamento está no A Hacker Manifesto de McKenzie Wark. Que um escritor seja capaz, como ele, de desenvolver e apresentar um vocabulário conceitual amadurecido e de usá-lo de modo consistente é um fato raro e uma marca de criatividade intelectual genuína: o texto torna-se ao mesmo tempo terreno de preparação e primeira aplicação de um novo modo de dizer. No léxico de Wark, um hacker é muito diferente da imagem do anarcoprogramador superespecializado ou da subcultura criminosa a que a maioria das pessoas associa este termo. Wark se refere a alguém que abre fendas em redes de produção de conhecimento de qualquer espécie e liberta aquele conhecimento da lógica de uma economia da escassez. “Embora nem todas as pessoas sejam hackers, todas elas hackeiam”, escreve, sugerindo que o hackeamento é na verdade muito próximo do uso do conhecimento, da informação, de imagens, sons e outros recursos que possam ser úteis a alguém. Em uma sociedade baseada em relações de propriedade privada, a escassez é sempre apresentada como se fosse natural, mas no contexto contemporâneo, em que a propriedade intelectual é a principal forma de propriedade, a escassez é artificial e contraproducente – e uma desgraça para os hackers –, pela simples razão de que apropriar-se de conhecimentos ou informações não significa impedir que outras pessoas tenham acesso a eles. Essa é uma questão fundamental na prática relacionada à arte – de fato, Wark fala do hackeamento

93


unorthodox theory out of Marxism: like Marx, Wark believes human history can be conceptualised in terms of class relations and conflict. Today though, he argues, this conflict is most acute between what he calls the “vectoralist” class (the class that owns the pipelines, the satellites and the servers, which has come to supplant the hegemony of the capitalist class) and the new productive class that Wark describes as hackers, whose purpose it is to free knowledge from illusions of scarcity. The hacker class, he argues, arises out of the transformation of information into property, in the form of intellectual property. This is a usefully redescriptive understanding of hacking. And it sheds an interesting light on the Obama Administration’s unwavering reaction to the recent Snowden hack, whose shock waves continue to reverberate through global civil society: “The documents are the private property of the United States Government and must be returned immediately.” As if the hacked documents’ ownership were their salient feature! In another way, though, it makes sense to see hacking as a way of turning documents against their owners. In political terms, one might argue that leaking documents is the “southern” response to the “northern” privatization of information—southern being understood in an epistemic and political sense. A counterhegemonic gesture, using the information power produced by the adversary—the readymade documents—to tactical advantage. Something that in the hacker milieu is often referred to as “hack value.” Hack value is difficult to define and ultimately can only be exemplified. But, by and large, it refers to a kind of aesthetics of hacking. For instance, repurposing things in an unexpected way can be said to have hack value; as can contributing anonymously to collectively used configurations, in the spirit of free software. Steven Levy, in his book Hackers, talks at length about what he calls a “hacker ethic.” But as Brian Harvey has argued, that expression may be a misnomer and that what he discovered was in fact a hacker aesthetic. For example, when free-software developer Richard Stallman says that information should be given out freely—an opinion universally held in hacker circles—his opinion is not only based on a notion of property as theft, which would be an ethical position. His argument is that keeping information secret is inefficient; it leads to an absurd, unaesthetic duplication of effort amongst the information’s usership. 94


como uma prática relacionada à arte – porque o sistema de produção de valor no mundo da arte dominante também tem como premissa um regime de escassez, sustentado pela assinatura do autor. Wark hackeia do marxismo sua teoria pouco ortodoxa: como Marx, acredita que a história da humanidade possa ser conceitualizada em termos de relações e conflitos de classe. Hoje, porém, argumenta, esse conflito é mais intenso entre o que ele chama de “a classe vetorialista” (a classe que é proprietária dos canais, satélites e servidores, que teria chegado a suplantar a hegemonia da classe capitalista) e a nova classe produtiva que Wark descreve como hackers, cujo propósito é libertar o conhecimento da ilusão da escassez. A classe hacker, segundo ele, emerge da transformação da informação em propriedade, sob a forma da propriedade intelectual. Este entendimento nos proporciona um modo útil de descrever o hackeamento. Ele lança luz sobre a reação intransigente do governo Obama no caso Snowden, cujas ondas de choque continuam a reverberar na sociedade civil: “Os documentos são propriedade privada do governo dos Estados Unidos e devem ser devolvidos imediatamente”, como se a coisa mais importante nos documentos hackeados fosse o fato de serem propriedade do Estado! Por outro lado, no entanto, faz sentido ver o hackeamento como um modo de fazer com que os documentos se voltem contra seus donos. Em termos políticos, pode-se argumentar que o vazamento de documentos é uma resposta do “Sul” à privatização da informação pelo “Norte” – sendo Sul e Norte entendidos aqui em seu sentido epistêmico e político. Um gesto contra-hegemônico, que usa o poder de informação produzido pelo adversário – os documentos já prontos – como vantagem tática. Algo que no meio hacker costuma chamar-se de “valor de hack”. O valor de hack é difícil de ser definido e, em última instância, pode apenas ser exemplificado. Mas, em geral, refere-se a uma espécie de estética do hackeamento. Por exemplo, pode-se dizer que reaproveitar coisas de uma maneira inesperada tem valor de hack, porque isso contribui anonimamente para as configurações de uso coletivo, no espírito do software livre. Steven Levy, em seu livro Hackers, fala longamente sobre o que chama de “ética hacker”. No entanto, essa expressão pode ser errônea, como argumenta Brian Harvey: trata-se de fato de uma estética hacker. Quando, por exemplo, o desenvolvedor do software livre Richard Stallman

95


96

* Wark, McKenzie. A Hacker Manifesto. Massachusetts: Harvard University Press, 2004.


diz que a informação tem que ser oferecida livremente – uma opinião compartilhada universalmente nos círculos hackers – isso não está baseado unicamente na noção de que propriedade é roubo, o que seria uma posição ética. Seu argumento é que manter uma informação sob segredo é ineficiente; conduz a um absurdo, a uma duplicação inestética de esforço de parte dos usuários da informação.

* Traduzido para esta edição. WARK, McKenzie. A Hacker Manifesto. Massachusetts: Harvard University Press, 2004.

97


Idleness (creative and expressive) Stasis is the new movement. Kenneth Goldsmith, Uncreative Writing, 2011*

Can we think of art, not as something that must be performed, but which might well exist as a latent competence, an active yeast or undercurrent beneath the visible field of events, all the more potent in that it remains unperformed? Can we not think of art as capable of a self-conscious, Bartelby-like decision to prefer not to (in this case, not to inject competence into the art frame) but instead to bide its time and, perhaps, redirect that competence elsewhere? Even in its most proactive, productivist moments, there is something profoundly idle about usership. Something slack. It uses what is, what’s there. Plagiarism, appropriation, repurposing, patching and sampling, cutting and pasting, then databasing and tagging for reuse—these are the domains of usership’s expertise. Translating is a form of usership (of a text, a word, a string of words, an image or a sound): users are translators, transposing what they find in one idiom into another. And while translating can be hard work, it is creatively idle, making do with what is available rather than feeling compelled to add something else.

100

* Goldsmith, Kenneth. Uncreative Writing: Managing Language in the Digital Age. New York: Columbia University Press, 2011.


Indolência (criativa e expressiva) A estase é o novo movimento. Kenneth Goldsmith, Uncreative Writing, 2011*

Podemos pensar a arte não como algo que precisa ser feito, mas que existe como uma competência latente, um germe ativo ou uma corrente subterrânea sob o campo visível dos eventos, tanto mais potente quanto mais permanece irrealizada? Não se pode pensar a arte como sendo capaz de uma decisão consciente de recusa, como o “prefiro não fazer” de Bartelby, de tomar seu tempo e talvez redirecionar essa competência para outra coisa? Mesmo em seus momentos mais proativos e produtivistas, o uso tem algo de profundamente indolente. Uma certa folga. Usa-se o que há, o que está à mão. Plagiar, apropriar-se, reaproveitar, remendar, samplear, cortar e colar, recatalogar e reclassificar para reutilização – eis os domínios em que os usuários são especialistas. Traduzir é uma forma de uso (de um texto, uma palavra, uma sucessão de palavras, uma imagem ou um som): usuários são tradutores, transpõem o que encontram em um idioma para outro. E, embora traduzir possa ser um trabalho duro, é criativamente indolente, tratando de fazer render o que está à disposição em vez de ceder ao impulso de acrescentar algo mais.

* Traduzido para esta edição. GOLDSMITH, Kenneth. Uncreative Writing: Managing Language in the Digital Age. Nova York: Columbia University Press, 2011.

101


Profanation Once profaned, that which was unavailable and separate loses its aura and is returned to use. Profanation deactivates the apparatuses of power and returns to common use the spaces that power had seized. Giorgio Agamben, Profanations, 2007*

122

Profanation, as Giorgio Agamben defines it, is “the returning to common usership what had been separated in the sphere of the sacred.” To suggest that profanation instantiates a return is of course to imply that common use constitutes the initial state. In Europe today, Agamben is the philosopher who has looked most searchingly into the issue of usership, recently disclosing that the forthcoming final volume of Homo sacer will be devoted to the question. That which is sacred is removed from the realm of usership; it is intangible, untouchable, and must not be profaned by consumption. This is true literally and figuratively. Today, as Agamben argues, the usership prohibition has found its place of choice in the Museum, where it is protected by the stalwart institution of spectatorship. Of course the museification of the world is almost total—spectatorship allows its extension far beyond the museum walls to any “separated dimension where that which is no longer perceived as true and decisive has been transferred.” It’s art, but, well, it’s just art. This is why in the institution of spectatorship, the analogy between capitalism and religion becomes so evident. And why usership, understood as the reality of using, is a political act: for it repurposes what is used. Repurposing, by transforming former ends into new means, neutralises the sacred. In this respect, usership is synonymous with the act of profanation. The useful, indeed the used in general, is profane. In his essay on profanation, Agamben both challenges a fundamental proscription of autonomous art and Kantian aesthetics (that art, in essence, must not be profaned... under the threat of ceasing to be art at all) yet also seems to rule out the possibility of something like... “useful art.” For in the act of artistic profanation, as he sees it, objects do not so much gain use value as a kind of ludic value... But what about practices that have multiple uses?


­Profanação Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado. Giorgio Agamben, Profanações, 2007*

A profanação, como define Giorgio Agamben, é a “restituição ao uso comum daquilo que havia sido separado na esfera do sagrado”. Dizer que a profanação é uma forma de devolução significa, assim, sugerir que o uso comum constitui um estado inicial das coisas. Na Europa, atualmente, Agamben é o filósofo que com mais atenção tem tratado a questão do uso, tendo recentemente anunciado que o próximo volume de Homo sacer será dedicado a este tema. Aquilo que é sagrado é retirado do domínio do uso; é intangível, intocável, e não pode ser profanado pelo consumo – isso vale no sentido literal e no sentido figurado. Atualmente, como argumenta Agamben, a proibição do uso encontrou seu lugar preferencial no Museu, onde é protegida pela fiel instituição da espectatorialidade. Evidentemente, a museificação do mundo é quase total – a relacionalidade protagonizada pelo espectador permite que ela se expanda muito além dos muros do museu, permeando qualquer “dimensão separada para onde se transfere aquilo que já não é mais considerado verdadeiro e decisivo”. É arte, certo, mas é só arte. É por isso que, na instituição da condição do espectador, a analogia entre o capitalismo e a religião se torna tão evidente. E é por isso que o uso, entendido como a realidade de usar, é um ato político, já que redireciona o propósito daquilo que é usado. Reaproveitar, transformando velhos fins em novos meios, neutraliza o sagrado. Nesse aspecto, uso é sinônimo de profanação. Tudo que é útil, tudo que é usado, é profano. Em seu ensaio sobre a profanação, Agamben questiona a proscrição do uso, fundamental para arte autônoma e para a estética kantiana (segundo a qual a arte não pode ser profanada... sob o risco de deixar inteiramente de ser arte), mas também

123


p. 14

124

Can 1:1 scale practices not be conceptualized in terms of profanation—inasmuch as they would seem to embody the very essence of a living form that has become inseparable from life itself?

* Agamben, Giorgio. Profanations. New York: Zone Books, 2007, p. 77.


parece deixar de fora a possibilidade de algo como... a “arte útil”. Porque no ato da profanação artística, segundo ele, os objetos não ganham valor de uso, e sim valor lúdico... Mas e quanto às práticas que têm múltiplos usos? Podem as práticas em escala 1:1 serem conceitualizadas em termos de profanação, na medida em que incorporam a própria essência de uma forma viva, que se tornou inseparável da própria vida?

* AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 68.

p. 15

125


Assisted readymades and artworld-assisted prototypes I realised very soon the danger of repeating indiscriminately this form of expression and decided to limit the production of “readymades” to a small number yearly. I was aware at that time, that for the spectator even more than for the artist, art is a habit-forming drug. Marcel Duchamp, “Apropos of Readymades”, 1961*

130

In a short exposé delivered in 1961, Marcel Duchamp offered some acute insights into the logic of readymades—describing them as highly “addictive drugs.” In addition to standard readymades, by which usual objects have their use value suspended (as if placed between invisible parentheses) as they are inserted into the performative framework of the artworld, and his farsighted (but uninstantiated) suggestion of reciprocal readymades, which restore use value to artworks through their withdrawal from the performative frame, Duchamp briefly describes an intermediary variant. These, he says, are basically standard readymades, except that they have been modified ever so slightly. He calls these “assisted readymades” (readymades aidés). It’s a nice term—and prescient too; today we have a different name for such deeds and contrivances modestly tweaked by artistic subjectivity: we call them contemporary art. While the assisted readymade has become the addiction of the autonomous artworld, apparently intent on pursuing its logic exhaustively until such time as every commodity on earth has an identical counterpart in the realm of art, it is now rivaled by another trope: the artworld-assisted prototype. On the one hand, the prototype borrows the principle of industrial-design characteristic of the readymade but rather than embracing the logic of the multiple, it insists upon its experimental uniqueness. One might say that the proliferation of prototypes in contemporary art production is yet another symptom of an ongoing usological shift; but inasmuch as these prototypes are by no means autonomous but require artworld assistance to function at all, they are above all rather spectacular examples of an attempt to square the conceptual architecture and protocols of autonomous art with


Protótipos e ready-mades assistidos Logo percebi o perigo de repetir indiscriminadamente essa forma de expressão e decidi limitar a produção de ready-mades a um pequeno número anual. Eu estava consciente naquele momento que, para o espectador, e ainda mais para o artista, a arte é uma droga que causa de dependência. Marcel Duchamp, “Apropos of Readymades”, 1961*

Durante uma rápida apresentação feita em 1961, Marcel Duchamp ofereceu alguns insights profundos sobre a lógica dos ready-mades – descrevendo-os como “drogas” altamente “viciantes”. Além dos ready-mades normais, em que objetos usuais têm seu valor de uso suspenso (como que colocado entre parênteses invisíveis) ao serem inseridos no quadro performativo do mundo da arte; e de sua sugestão perspicaz (embora nunca concretizada) a respeito dos ready-mades recíprocos, que devolvem o valor de uso às obras de arte retirando-as de seu quadro performativo, Duchamp descreve brevemente uma variante intermediária. Estes, diz ele, são basicamente ready-mades normais, exceto por terem sido ligeiramente modificados. Ele os chama de ready-mades aidés [ready-mades assistidos]. É um termo adequado – e uma intuição antecipada; hoje damos um nome diferente para esses feitos e dispositivos sutilmente aprimorados pela subjetividade artística: os chamamos de arte contemporânea. O ready-made assistido, tendo se tornado um vício do mundo da arte autônoma, aparentemente destinado a reproduzir sua lógica até o dia em que cada mercadoria do planeta tenha ganhado um correspondente idêntico no campo artístico, agora é rivalizado por outro tropo: o protótipo assistido pelo mundo da arte. Por um lado, ele toma emprestado o princípio do desenho industrial característico do ready-made, mas, em vez de aderir à lógica do múltiplo, insiste em sua singularidade experimental. Pode-se dizer que a proliferação de protótipos na produção da arte contemporânea é mais um sintoma de que uma virada usológica está em curso, mas, na medida em que esses protótipos não são de forma alguma autônomos, exigindo assistência do mundo da arte para poderem funcionar, eles são acima de tudo exemplos

131


emergent intuitions. Such prototypes might indeed be functional, if ever they were freed from their artworld-assistance mechanisms and made available for genuine use.

132

* From Marcel Duchamp’s lecture at the Museum of Modern Art (MoMA), 19 October, 1961.


espetaculares de tentativas de enquadrar intuições emergentes nas arquiteturas conceituais e protocolos da arte autonomizada. Esses protótipos podem até ser funcionais, desde que sejam libertados dos mecanismos de assistência do mundo da arte e colocados à disposição do uso genuíno.

* Traduzido para esta edição. Leitura no Museum of Modern Art (MoMA), em 19 de outubro de 1961. Publicado em Art and Artists, 1, 4, julho de 1966.

133


Reciprocal readymades Wanting to expose the basic antinomy between art and readymades I imagined a “reciprocal readymade”: use a Rembrandt as an ironing board! Marcel Duchamp, “Apropos of Readymades”, 1961*

pp. 126 and 74

134

In a late text, Marcel Duchamp set out to distinguish several different types of readymades. Of particular interest in the present context is the genre he punningly described as “reciprocal readymades.” Anxious, he claimed, “to emphasize the fundamental antinomy between art and the readymade,” Duchamp defined this radically new, yet subsequently never instantiated genre through an example: “Use a Rembrandt as an ironing-board.” More than a mere quip to be taken at face value, or a facetious mockery of use-value, Duchamp’s example points to the symbolic potential of recycling art—and more broadly, artistic tools and competences—into other lifeworlds. In that respect, the reciprocal readymade is the obverse of the standard readymade, which recycles the real—in the form of manufactured objects—into the symbolic economy of art. Historically speaking, the readymade is inseparably bound up with objecthood: it refers to a readymade, manufactured object. Yet, it would be reductive to confine the readymade to its objective dimension alone, if only because it provides such a strong general image of the reciprocal logic between art and the real. In the same way that framing an object in an art context neutralises it as an object (distinguishing it, as it were, from the mere real thing), can the de-framing of an artwork neutralise it, in reciprocal fashion, as art? This is an important question, and one to which Duchamp was expressly alluding, because it would enable art to produce a use-value. Since Immanuel Kant’s influential championing of purposeless purpose and disinterested spectatorship as defining features of our engagement with art, it has been broadly held that art cannot produce use-value. Kant argued in effect that art, unlike design, could not be evaluated and appreciated on the basis of its objective purpose—be it external, regarding the object’s utility, or internal, regarding the object’s perfection. In so doing, Kant sought to preserve art from the realm


Ready-mades recíprocos Interessado em expor a antinomia fundamental entre a arte e os ready-mades, imaginei um “ready-made recíproco”: usar um Rembrandt como tábua de passar! Marcel Duchamp, “Apropos of Readymades”, 1961*

Em um texto tardio, Marcel Duchamp dedicou-se a descrever diferentes tipos de ready-mades. No contexto presente, ganha interesse particular o gênero que ele descreve em um jogo de palavras como ready-mades réciproqué [ready-made recíproco]. Esperando “enfatizar a antinomia fundamental entre a arte e o ready-made”, Duchamp definiu esse gênero radicalmente novo – e no entanto nunca posto em prática – através de um exemplo: “usar um Rembrandt como tábua de passar”. Mais do que uma brincadeira a ser levada ao pé da letra, ou do que uma forma de ridicularizar o valor de uso, o exemplo de Duchamp aponta para o potencial simbólico de reciclar a arte – e, de modo mais geral, as ferramentas e competências artísticas – para o uso em outro âmbitos da vida. Nesse sentido, o ready-made recíproco é o inverso do ready-made comum, que recicla o real, trazendo objetos manufaturados para a economia simbólica da arte. Historicamente falando, o ready-made é inseparável da objeticidade: refere-se a um objeto já pronto, manufaturado. No entanto, seria incorreto reduzir o ready-made exclusivamente à sua dimensão de objeto porque, entre outras razões, ele oferece uma imagem geral muito potente da lógica de reciprocidade existente entre a arte e o real. Da mesma maneira que um objeto enquadrado em um contexto artístico é neutralizado enquanto objeto (tornando-se, por assim dizer, distinto da coisa meramente real), poderia a retirada de uma obra de arte de seu contexto, reciprocamente, neutralizá-la enquanto arte? Trata-se de uma questão importante, a que Duchamp faz alusão expressa, porque isso permitiria que a arte produzisse valor de uso. Desde a influente defesa de Kant em favor do propósito sem propósito e do espectador desinteressado como elementos definidores da nossa relação com a arte, tornou-se amplamente aceito que esta não pode produzir valor de uso. Kant de fato argumentou que a arte, ao contrário do design, não poderia

pp. 127 e 75

135


of the “merely useful”; and in our contemporary world where utilitarian rationality and the sort of cost-benefit analysis to which it leads reign supreme, where art is regularly co-opted by such profit-driven, subjectivity-production industries as advertising, to even mention use-value tends to smack of the philistine. Of course one might say that in such a context there is something circular about defending art on the basis of its uselessness alone (or even its “radical uselessness,” as Adorno put it), for it would seem to suggest there is something very worthwhile and thus useful about something entirely lacking use-value... At any event, an increasing number of art-related practices in the public sphere cannot be adequately understood unless their primary ambition to produce a use-value is taken into account. In trying to grasp what is at stake and at play in many of the art-informed practices which are, today, self-consciously concerned with generating use-value by injecting artistic skills into the real, it is no doubt useful to anchor their approach in art-historical terms. And perhaps the most straightforward way to understand such works is as attempts to reactivate the unacknowledged genre of artistic activity conceived by Duchamp. For though he never got beyond the speculative phase—never actually putting his thoughts on the reciprocal readymade into practice—Duchamp clearly saw it as a way of “de-signing” art, of removing the signature by using an artwork to produce a use-value. For it is quite difficult to imagine how an artistsigned artwork (a “Rembrandt”), put to use as an ironing board, could then be re-signed as an “artistic” ironing board, at least not within the sphere of autonomous art. Indeed, Duchamp’s point was that (until such time as the art-sustaining environment changed substantively) it would revert to non-art status—the price to be paid for acquiring use-value, though it would assuredly be a most uncommon ironing board. With the rise of usership-determined practices, it just may be that after lying dormant so long the reciprocal readymade’s time has finally come.

136

* From Marcel Duchamp’s lecture at the Museum of Modern Art (MoMA), 19 October, 1961.


ser avaliada e apreciada com base em seu propósito objetivo – seja ele externo, referente à utilidade do objeto; seja interno, relativo à perfeição deste objeto. Ao fazê-lo, Kant buscava preservar a arte do domínio do “meramente útil”; e, em nosso mundo contemporâneo, onde imperam a racionalidade utilitária e os cálculos de custo-benefício a que ela conduz, onde a arte é cooptada por indústrias de produção de subjetividade com fins lucrativos como a publicidade, tão somente mencionar o valor de uso já parece coisa de filisteus. É claro que se pode argumentar que, em um tal contexto, há algo de circular no argumento que defende a arte unicamente com base em sua inutilidade (ou de sua “inutilidade radical”, como diria Adorno), porque parece sugerir que há alguma vantagem, algo útil, portanto, em coisas inteiramente desprovidas de valor de uso... Em todo caso, um número crescente de práticas relacionadas à arte na esfera pública que não podem ser entendidas se não for levada em conta sua ambição primeira de produzir valor de uso. Para tentar captar o que está em jogo em muitas das práticas artisticamente informadas hoje empenhadas deliberadamente em gerar valor de uso, introduzindo no real habilidades próprias do campo da arte, é sem dúvida útil ancorar nossa abordagem em termos histórico artísticos. E talvez a forma mais direta de entender essas práticas seja considerá-las como tentativas de reativar o gênero esquecido de atividade artística concebido por Duchamp. Embora nunca tenha passado da fase especulativa – nunca de fato colocou em prática suas ideias sobre o ready-made recíproco – Duchamp claramente viu aí um modo de “des-assinar” a arte, remover dela a assinatura utilizando-a para produzir valor de uso. É difícil imaginar, pelo menos na esfera da arte autônoma, como uma obra de arte assinada (um Rembrandt) colocada em uso como tábua de passar pudesse depois ser reassinada, como uma tábua de passar “artística”. De fato, o que interessava a Duchamp (pelo menos até que o ambiente de sustentação da arte passasse por uma transformação substantiva) era a passagem da obra a um status de não-arte – preço a ser pago pela aquisição de valor de uso, ainda que se tratasse, com certeza, de uma tábua de passar bastante incomum. Com a ascensão das práticas determinadas pelos usos, pode ser que, depois de um longo período de dormência, tenha finalmente chegado a hora do ready-made recíproco. * Traduzido para esta edição. Leitura no Museum of Modern Art (MoMA), em 19 de outubro de 1961. Publicado em Art and Artists, 1, 4, julho de 1966.

137


Créditos Tradução Julia Ruiz Di Giovanni Edição Júlia Ayerbe Projeto gráfico Laura Daviña composto em Lexicon No 1 e NexusSans impresso em risograph sobre offset 75g/m2 no Publication Studio São Paulo

isbn 978-85-5688-004-8 Agradecemos a Stephen Wright, Julia Ruiz Di Giovanni, André Mesquita e 31a Bienal de São Paulo. São Paulo, setembro de 2016

Credits Translation Julia Ruiz Di Giovanni Edition Júlia Ayerbe Design Laura Daviña typeset in Lexicon No 1 and NexusSans printed in risograph on offset 75g/m2 at Publication Studio São Paulo

isbn 978-85-5688-004-8 Thanks to Stephen Wright, Julia Ruiz Di Giovanni, André Mesquita and 31st Bienal de São Paulo. São Paulo, September 2016



Edições Aurora Publication Studio SP

www.edicoesaurora.com


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.