Publicacao Relatorias em Direitos Humanos - 2007 2009

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Apresentação................................................................................................................................................05 Composição das Relatorias Nacionais em Dhesca no mandato 2007-2009................................................06 Mapa e quadro das missões realizadas pelas Relatorias Nacionais............................................................09 Painel fotográfico das Relatorias nacionais..................................................................................................12 Relatórios Analíticos Introdução.....................................................................................................................................................19 Histórico das Relatorias Nacionais ...............................................................................................................19 O processo de seleção para Relatores Nacionais em Dhesca ....................................................................19 O que mostram os (as) relatores(as)............................................................................................................20 A avaliação das relatorias nacionais e mudanças propostas .......................................................................22 Entidades filiadas à Plataforma Dhesca Brasil .............................................................................................24 Relatoria Nacional dos Direitos Humanos à Alimentação e Terra Rural.......................................................25 Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação .....................................................................................39 Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente............................................................................59 Relatoria Nacional dos Direitos Humanos à Moradia e Terra Urbana ..........................................................73 Relatoria Nacional do Direito Humano à Saúde ...........................................................................................87 Relatoria Nacional do Direito Humano ao Trabalho ...................................................................................103 O processo de avaliação das Relatorias Nacionais: novos horizontes para a atuação .............................121 A escolha dos Relatores Nacionais e a garantia de um olhar integral dos direitos humanos ....................122 O desenvolvimento das missões e a face pública das Relatorias..............................................................124 Os relatórios de missão e os instrumentos para exigibilidade dos Dhesca................................................125 Decisões apontam para um formato mais integral e público das Relatorias Nacionais .............................126 Edital de seleção - Relatorias nacionais – 2009-2011................................................................................129



05 APRESENTAÇÃO Esta publicação representa a síntese das realizações e desafios enfrentados pelas Relatorias Nacionais em Dhesca durante o mandato de 2007 a 2009. Organizada pela Plataforma Dhesca Brasil – Plataforma Brasileira de Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – ela dá continuidade a três edições anteriores, referentes aos Informes dos anos de 2004, 2005 e 2006. Desde seu surgimento, em 2002, as Relatorias Nacionais constituem uma iniciativa inovadora da sociedade civil brasileira para a promoção, monitoramento e exigibilidade dos direitos humanos em nosso país. Inspiradas no modelo de relatores especiais temáticos da ONU, foram constituídas seis Relatorias para tratar de direitos humanos específicos: alimentação e terra rural, educação, meio ambiente, moradia e terra urbana, saúde e trabalho. Nesses anos foram realizadas mais de cem viagens e missões, em diversas localidades no país, em praticamente todos os 27 Estados da federação. Durante o período de 2007 a 2009, as Relatorias representaram também um importante mecanismo de incidência política para a promoção dos direitos humanos no Brasil. Foram realizadas audiências públicas, reuniões, pronunciamentos, com o envolvimento de centenas de organizações e movimentos sociais, assim como representantes do Poder Executivo, membros no Ministério Público, Legislativo, Judiciário etc. Os relatórios e notas de imprensa elaborados pelos relatores(as), contribuíram para dar visibilidade na agenda pública a diversas violações de direitos humanos, ao mesmo tempo em que propunham recomendações e medidas que deveriam ser tomadas pelo poder público para garantir a dignidade das pessoas em situação de violação de direitos. Na parte inicial do volume apresenta-se o perfil dos(as) relatores(as) e assessores(as) deste mandato, mapa e quadro das missões realizadas ao longo de todo o período das Relatorias e nos últimos dois anos. As considerações sobre o atual cenário dos Dhesca no país, um breve histórico e cronologia das Relatorias Nacionais e destaques na contribuição de cada Relatoria constam da introdução. O conjunto dos relatórios analíticos produzidos pelos(as) seis relatores(as) e respectivos assessores(as), com um balanço do que foi possível realizar e dos desafios que permanecem para a efetivação dos direitos humanos no Brasil, constitui a parte I da publicação. Na segunda parte, apresenta-se o processo de avaliação e mudanças que vem alterando os rumos das Relatorias Nacionais e que demandou bastante energia de todos os envolvidos, nos últimos 18 meses. Importante ressaltar e agradecer a participação das agências internacionais: EED – Evangelischer Entwicklungsdienst, ICCO – Organização Intereclesiástica de Cooperação para o Desenvolvimento, Fundação Ford, Solidariedad, 11.11.11, que ao longo dos anos vêm garantindo o apoio financeiro para o conjunto das atividades da Plataforma Dhesca Brasil. Também dedicamos um especial agradecimento a UNV-PNUD – Programa de Voluntários das Nações Unidas, que até 2008 possibilitou o trabalho dos assessores(as) das Relatorias e à parceria mais recente com a UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que tornou possível essa e outras publicações. Um reconhecimento especial precisa ser feito aos(as) seis relatores(as) e assessores(as) que, com extrema competência e dedicação, em meio a agendas sobrecarregadas e problemas do cotidiano, encontraram tempo e energia para cumprir com o compromisso que assumiram para a promoção dos direitos humanos no país. Por fim, destacamos a generosa e imprescindível parceria dos movimentos sociais e organizações locais, regionais ou nacionais que estiveram presentes em todos os momentos do ciclo de cada Relatoria, seja com denúncias e dados de violação aos Dhesca, seja acompanhando as missões na investigação e audiências públicas, na discussão e difusão dos relatórios finais. Essa parceria continuada e enriquecedora entre o conhecer e o fazer constitui talvez o instrumento mais valioso para alavancar mudanças em um cenário de enorme desigualdade na distribuição das riquezas materiais e culturais deste país. Curitiba, setembro de 2009 A coordenação


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Relatorias Nacionais em Dhesca - Mandato 2007-2009 Relatoria Nacional dos Direitos Humanos à Alimentação e Terra Rural Email: dtta@dhescbrasil.org.br Clovis Roberto Zimmermann: Relator Nacional do Direito Humano à Alimentação e Terra Rural (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Membro da FIAN Brasil e professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É graduado em Sociologia e Teologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), com mestrado e doutorado em Sociologia pela mesma universidade. Jonia Rodrigues: Assessora da Relatoria Nacional do Direito Humano à Alimentação e Terra Rural (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Integra a FIAN Brasil.

Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação Email: educacao@dhescbrasil.org.br Denise Carreira: Relatora Nacional do Direito Humano à Educação (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Jornalista, mestre em educação pela USP e feminista. Exerce atualmente a coordenação do Programa Pesquisa e Monitoramento de Políticas Educacionais da ONG Ação Educativa. Suelaine Carneiro: Assessora da Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação (mandato 20072009) da Plataforma Dhesca Brasil Socióloga e integrante da organização de mulheres negras Instituto Geledés

Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente Email: meioambiente@dhescbrasil.org.br Marijane Vieira Lisboa: Relatora Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente (mandato 20072009) da Plataforma Dhesca Brasil. Doutora em Ciências Sociais pela PUC – SP e professora da mesma universidade. Trabalhou no Greenpeace Brasil desde sua fundação, em 1992, até o ano de 2002. Foi Secretária de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos no Ministério do Meio Ambiente entre janeiro de 2003 a junho de 2004. Juliana Neves Barros: Assessora da Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (2002), atua desde 2005 na equipe técnica da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia.


07 Relatoria Nacional dos Direitos Humanos à Moradia e Terra Urbana Email: cidade@dhescbrasil.org.br Lucia Maria Moraes: Relatora Nacional do Direito Humano à Moradia e Terra Urbana (mandato 20072009) da Plataforma Dhesca Brasil. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Católica de Goiás (1975). Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (2003). Especialista em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1978). Professora e orientadora dos cursos de graduação em Arquitetura e Urbanismo e do mestrado em Serviço Social da Universidade Católica de Goiás. Atualmente, é membro da equipe de expertos do Advisory Group on Forced Evictions (AGFE), vinculado ao Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (UN-HABITAT). Marcelo Dayrell Vivas: Assessor da Relatoria Nacional do Direito Humano à Moradia e Terra Urbana (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Advogado, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2004), especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília (2009) e cursando especialização em Democracia, República e Movimentos Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008-2010). Coordenador-geral de projeto de proteção e defesa de direitos humanos, na área da infância e juventude, desenvolvido pelo governo do Estado de Minas Gerais.

Relatoria Nacional do Direito Humano à Saúde Email: saude@dhescbrasil.org.br Fernando Aith: Relator Nacional do Direito Humano à Saúde (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, mestre em Saúde Pública pela Universidade de Paris, professor da Escola de Direito São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário da USP – CEPEDISA. Camila Gilberto: Assessora da Relatoria Nacional do Direito Humano à Saúde (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos, mestre em Direito Público pela Universidade de Londres, assumiu como assessora em julho de 2008.

Relatoria Nacional do Direito Humano ao Trabalho Email: trabalho@dhescbrasil.org.br Cândida da Costa: Relatora Nacional do Direito Humano ao Trabalho (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2004). Coordenadora do Núcleo Inter-universitário de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho – Unitrabalho/Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFMA. Rivane Arantes: Assessora da Relatoria Nacional do Direito Humano ao Trabalho (mandato 20072009) da Plataforma Dhesca Brasil. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (1993), é especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba. Foi consultora do PCRI – Programa de Combate ao Racismo Institucional – junto a Prefeitura do Recife (PE).


PLATAFORMA DHESCA BRASIL Coordenação: Ação Educativa – Salomão Ximenes INESC – Alexandre Ciconello Justiça Global – Andressa Caldas e Luciana Garcia Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos – Maria Luisa de Oliveira Terra de Direitos – Darci Frigo Secretaria Executiva Rua Desembargador Ermelino de Leão, n. 15 – cj. 72 CEP: 80.410-230 Curitiba-PR Fone/Fax: 041 3232-4660/3014-4651 www.dhescbrasil.org.br secretaria@dhescbrasil.org.br/ comunicacao@dhescbrasil.org.br


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MAPA DAS MISSÕES DAS RELATORIAS NO BRASIL RELATORIAS NACIONAIS - 2007-2009


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Municípios visitados pelas Relatorias Nacionais- 2007-2009

Relatoria Nacional do Direito Humano à Alimentação e Terra Rural Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente Relatoria Nacional do Direito Humano à Moradia Relatoria Nacional do Direito Humano à Saúde Relatoria Nacional do Direito Humano ao Trabalho


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MISSÕES REALIZADAS em ordem cronológica - 2007-2009 Data Julho/2007 Setembro/2007

Outubro/2007 Outubro/2007 Novembro/2007 Novembro/2007 Fevereiro/2008 Fevereiro/2008 Março/2008 Abril/2008

Nome da Missão São José dos Campos Sirinhaém, Acampamento Chico Mendes e Complexo Prado Natal Educação no Complexo do Alemão Rio Grande Complexo do Rio Madeira Cidades – Belém Saúde Indígena Missão Syngenta

Maio/2008 Junho/2008 Agosto/2008 Agosto/2008 Outubro/2008 Entre outubro de 2008 e Janeiro/2009 Novembro/2008

Agrocombustíveis e condições de trabalho Salvador Sirinhaém Aparecida de Goiânia Goiânia SOS Rio Educação no Sistema Prisional Brejo dos Crioulos

Novembro/2008 Novembro/2008

Cidades – Macapá Cidades – Manaus

Município São José dos Campos Sirinhaém, São Lourenço da Mata, Catende e Recife

Investigação Investigação

Rio Grande Porto Velho Belém Manaus Cascavel, Santa Tereza do Oeste, Medianeira e Curitiba Ribeirão Preto e Região

Investigação Investigação Seguimento Investigação Investigação

Salvador Recife Aparecida de Goiânia Goiânia Rio de Janeiro Belém, Recife, São Paulo, Brasília e Porto Alegre Verdelândia, Varzelandia e São João da Ponte Macapá Manaus

Seguimento Seguimento Investigação Seguimento Investigação Investigação

Relatoria Nacional do Direito Humano à Alimentação e Terra Rural Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente Relatoria Nacional do Direito Humano à Saúde Relatoria Nacional do Direito Humano ao Trabalho

Tipo Seguimento Investigação

Natal Rio de Janeiro

Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação Relatoria Nacional do Direito Humano à Moradia

Tema

Seguimento

Investigação Investigação Seguimento


Painel Fotográfico das Relatorias Nacionais

Missão de Moradia em São José dos Campos (SP): Durante a missão, a Relatoria conversou com moradores da Ocupação Pinheirinho, onde cerca de 1750 famílias moram sem qualquer urbanização ou atuação do Poder Público.

Missão de Moradia em Rio Grande (RS): Relatoria visitou o conjunto habitacional para onde querem transferir famílias de pescadores.

Missão Norte – Manaus (AM): Relatoria de Moradia chega a bairro em Manaus, onde as condições de moradia são um desafio aos poderes locais e as organizações populares.

Comunidade quilombola em Brejo dos Crioulos luta há mais de 20 anos por suas terras.

Missão Norte – Macapá (AP): Na Baixada Pará famílias vivem em palafitas construídas acima do rio.


Missão Norte - Macapá (AP): Relatoria visita também a Comunidade Quilombola do Curiaú.

Rita Fagundes - mon

tagem: Joka Madruga

Missão Norte – Macapá (AP): No bairro Mucajá as famílias aguardam a definição do Governo para a construção de um conjunto habitacional e urbanização.

O trabalhador rural Valdir Mota de Oliveira, conhecido como Keno, morto no oeste do Paraná por uma milícia privada que estava a serviço da empresa Syngenta. O caso mereceu uma missão das Relatorias de Alimentação e Meio Ambiente.

Missão de Moradia em Belém, onde as péssimas condições de moradia se proliferam pelos bairros da cidade.

Relatoria de Trabalho visita canavial em Ribeirão Preto, onde trabalhadores laboram em céu aberto, sem o uso devido dos equipamentos de proteção individual.


Relatoria de Trabalho realiza reunião para discutir as condições de trabalho em canaviais. Na reunião, representantes do Ministério Público de SP, SubDelegacias Regionais do Trabalho e Departamento de Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos.

Missão SOS RIO, onde Relatoria visitou hospitais e postos de saúde na cidade do Rio de Janeiro e investigou o difícil acesso da população aos serviços públicos.

Missão SOS Rio, onde Relatoria visitou a Unidade de Pronto Atendimento.

Missão de Educação visitou a Colônia Penal Feminina, em Pernambuco, e constatou as condições de vida das mulheres encarceradas.

Em visita ao Presídio Barreto Campelo, Relatora participa de reunião para discutir o acesso à educação pelas pessoas encarceradas.

No Presídio Aníbal Bruno, relatora visita uma sala de aula.


Relatoria de Educação participa de Audiência Pública em Pernambuco, onde o acesso à educação por populações encarceradas foi o tema principal.

Na Câmara dos Deputados, relatores discutem temas abordados pelos relatórios feitos em 2008.

Durante o Fórum Social Mundial de 2009, a Plataforma Dhesca realizou oficina sobre o funcionamento das Relatorias Nacionais.

Plataforma realiza reunião com assessores das relatorias para discutir a metodologia e sistematização do projeto.

O avaliador Domingos Armani expõe às entidades da Plataforma Dhesca Brasil sua análise sobre as Relatorias Nacionais.

Distribuição de Cartilhas: Durante o Fórum Social Mundial, mais de mil cartilhas em direitos humanos foram distribuídas ao público.


Para o mandato 2009 – 2001, o Conselho de Seleção e Acompanhamento se reuniu em Brasília para discutir os próximos Relatores Nacionais.

A caminho das ilhas de Sirinhaém (PE), onde o carro teve que ser abandonado por causa das condições de acesso ao local.

Missão no Acampamento Chico Mendes, em Pernambuco. Relatorias de Trabalho e Alimentação se dirigem as Ilhas de Sirinhaém, onde vivem comunidades pesqueiras tradicionais.

Relatores se reúnem com a comunidade de Sirinhaém.

Relator de Alimentação se reúne com comunidade quilombola em Brejo dos Crioulos (MG).



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19 INTRODUÇÃO Decorridos mais de 20 anos de promulgação da Constituição Federal e 17 anos da ratificação do PIDESC – Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais pelo Estado Brasileiro pode-se afirmar que a garantia de uma vida digna para milhões de pessoas nesse país ainda é uma realidade distante. Vivemos em um ambiente de desigualdades estruturais (renda, raça/etnia, gênero) que faz com que parte da população brasileira sofra diariamente com inúmeras violações de direitos. Buscando construir estratégias coletivas no âmbito da sociedade civil brasileira para a promoção dos direitos humanos, em 2001, foi constituída a Plataforma Dhesca Brasil, uma rede nacional de organizações e movimentos sociais que tem como um dos objetivos a construção e fortalecimento de uma cultura de direitos que avance nas estratégias de exigibilidade e justiciabilidade dos Dhesca e incidência na formulação, efetivação e controle de políticas públicas sociais. Parte da Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento (PIDHDD), que reúne organizações de 17 países na América Latina, a Plataforma Dhesca Brasil integra o conjunto de movimentos que luta pela efetivação dos direitos humanos no Brasil, com um enfoque na promoção dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Histórico das Relatorias Nacionais As Relatorias Nacionais em Dhesca são um instrumento para a construção e fortalecimento de uma cultura de direitos humanos, desenvolvido pela Plataforma Dhesca Brasil desde 2002. Inspiradas nos Relatores da ONU, elas funcionam como um mecanismo para monitorar a situação dos direitos humanos no país, em que relatores em áreas temáticas visitam locais onde existam violações aos direitos humanos, investigam denúncias e publicam relatórios com recomendações aos poderes públicos. O objetivo final é contribuir para que o Brasil adote um padrão de respeito aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, com base na Constituição Federal de 1988, no Programa Nacional de Direitos Humanos e nos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados pelo país. Nesse período de sete anos, as Relatorias Nacionais já visitaram quase todos os estados brasileiros, em 112 missões e diversos temas tratados pelos relatores transformaram-se em projetos de leis e políticas públicas. A metodologia desenvolvida pelo projeto, e que está em processo contínuo de aperfeiçoamento, tem sido replicada em outros países como Paraguai, Iêmen e Argentina. O processo de seleção para Relatores Nacionais em Dhesca O processo de seleção dos relatores nacionais acontece por meio de um edital público, divulgado entre redes, fóruns, organizações e amplos setores da sociedade civil. O objetivo é selecionar especialistas em direitos humanos, que trabalhem nas temáticas definidas em cada período. Para o mandato de 2009-2011 foram selecionados cinco relatores nas temáticas de Direito à Cidade, Direito à Educação, Direito ao Meio Ambiente, Direito à Saúde e aos Direitos Sexuais e Reprodutivos e Direito à Terra, Território e Alimentação.


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20 No edital são especificados os eixos prioritários que devem ser tratados por cada relatoria, indicados pela Plataforma Dhesca como elementos essenciais para a construção do mandato em questão. Com isso, temas como modelo de desenvolvimento, regularização fundiária na Amazônia, comunidades tradicionais, educação na área rural, direito à moradia e gestão democrática da cidade e riscos do aborto inseguro deverão ser alguns dos assuntos tratados pelos relatores/as selecionados para o próximo mandato. Também estão no edital as perspectivas que devem balizar o trabalho de todos os relatores, tais como as desigualdades sociais e a dimensão dessas desigualdades nas questões racial e gênero. O processo de seleção desses relatores (as), a partir dos requisitos mencionados no edital, é realizado por meio de um Conselho de Seleção independente, composto por representantes das organizações da coordenação executiva da rede e de órgãos públicos e agências da ONU. O que mostram os (as) relatores(as) Na primeira parte dessa publicação estão os relatórios analíticos das seis relatorias sobre o mandato que exerceram de 2007 a 2009. O mapa e o quadro resumo das missões realizadas no período e fotos das atividades, apresentados logo no início, já deram uma visão quantitativa e espacial da ação das relatorias. O texto de cada Relatoria foi elaborado com autonomia por seus responsáveis – relator (a) e assessor(a) – e reflete a visão particular de cada relatoria. Não há homogeneidade de estrutura entre eles, mas quase todos partem de um contexto nacional em que apontam avanços legais e institucionais para a realização do direito em questão, com um aprofundamento conceitual em certos casos, e traçam um panorama das principais realizações e desafios enfrentados pela relatoria em seu trabalho de promoção e defesa dos Dhesca frente às situações analisadas. Além do relato resumido das Missões – visitas in loco a comunidades ou grupos afetados, atividades de mediação e questionamento dos violadores, recomendações formuladas às autoridades responsáveis pelos problemas encontrados, resultados já alcançados –cada relato explicita outras atuações realizadas pela relatoria, como participação em seminários, audiências públicas e a produção de textos, a exemplo das Cartilhas de Direitos Humanos. Alguns apontaram também as dificuldades que marcaram o processo e os desafios que permanecem para o próximo mandato. O texto sobre os Direitos Humanos à Alimentação e Terra Rural valoriza as iniciativas públicas de institucionalizar a promoção e monitoramento desse direito, como a criação do CONSEA e a realização de Conferências sobre Segurança Alimentar e Nutricional. Mas lamenta a timidez dos mecanismos de exigibilidade e aponta as consequências danosas da acelerada expansão do agronegócio e da produção de combustíveis, para a preservação de áreas de floresta e cursos de água, além do desrespeito aos direitos de populações tradicionais quanto à produção de alimentos e preservação de seu modo de vida. Descreve de forma abreviada os problemas e recomendações formuladas nas três Missões que realizou em Pernambuco (Sirinhaém, acampamento Chico Mendes e complexo Prado); no Paraná (Missão Syngenta) e em Minas Gerais (Quilombo Brejo dos Crioulos). A relatoria do Direito Humano à Educação trata das duas missões que realizou no mandato, voltadas para a relação entre educação e segurança pública. No caso do complexo do Alemão – área de comunidade de favelas no Rio de Janeiro com uma população de 100 mil pessoas, aproximadamente - mostra que a situação deve ser enquadrada como “emergência complexa” devido à presença constante de conflito armado entre grupos de traficantes e entre eles e a polícia. Por isso reivindica que se aplique aí, conforme recomendações internacionais formuladas em 2004, um “conjunto de ações articuladas e coordenadas entre órgãos governamentais, com participação efetiva da sociedade civil”. Na investigação da educação das pessoas em situação prisional, feita em conjunto com o relator especial da ONU em 5 estados brasileiros, mostra que as


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21 conclusões vêm contribuindo para o avanço de medidas de reconhecimento do direito à educação das pessoas privadas de liberadade e para a tramitação de projeto de lei que resulte em remição da pena. O mandato da relatoria para o Direito Humano ao Meio Ambiente aponta a novidade da temática no campo dos direitos humanos, que não tem ainda relator similar na ONU, suas vantagens e desvantagens, e que é crescente a consciência de que seres humanos são parte do meio ambiente. Identifica que populações sofrem graves e imediatas consequências devido ao modelo predatório de desenvolvimento que ocorre no país, acirrado pela demanda dos países europeus e norte-americano por matérias primas, terras aráveis, energia e recursos hídricos. A relatoria priorizou investigar as violações de direitos causadas por grandes obras de infra-estrutura financiadas pelo PAC, como as hidrelétricas do rio Madeira e a transposição do rio São Francisco. Também contribuiu para as missões conjuntas em Pernambuco, no seguimento dos direitos dos ilhéus de Sirinhaém a manterem seu meio de vida tradicional, e na missão Syngenta no Paraná, identificando o uso irregular de sementes transgências e o risco de agrotóxicos para a agricultura familiar. A relatoria dos Direitos Humanos à Moradia e Terra Urbana reconhece avanços quanto à política habitacional, mas identificou a sistemática repetição de violações a esse direito devido à permanência de uma “lógica excludente do desenvolvimento humano e da inclusão urbana”, e também apontou a lentidão do poder judiciário na defesa do direito à moradia adequada. O mandato traçou três linhas de atuação: saneamento e urbanização; impacto dos mega-projetos de desenvolvimento; ameaças de realização de despejos forçados. Com articulação em todo o território nacional, apoiada por movimentos e organizações integrantes do Forum Nacional da Reforma Urbana, realizou quatro missões de investigação e cinco missões de monitoramento. Como desafio específico para o próximo mandato ressalta as obras que serão construídas em 10 capitais brasileiras que se preparam para a Copa de 2014 e que poderão provocar novos despejos forçados de popualções urbanas. O tema do Direito Humano à Saúde traz longa introdução sobre os marcos legais nacionais e internacionais, além de análise do contexto nacional, destacando a luta por mais recursos orçamentários para o SUS e a frágil rede de apoio que a saúde tem tido no campo dos direitos humanos. O mandato buscou ampliar a compreensão do tema ao realizar uma missão sobre a saúde indígena, em Manaus, e depois na extrema complexidade da rede pública de saúde na cidade do Rio de Janeiro, constatando a falta de integração entre os vários níveis de gestão do SUS, e a limitada capacidade da sociedade civil organizada para mudar essa situação. O tema da violência irrompe também aqui como impeditivo para acesso aos serviços e até para o exercício da vigilância epidemiológica de doenças que ameaçam a vida. A relatoria do Direito Humano ao Trabalho trata do conceito de trabalho decente segundo a OIT, trazendo um perfil das principais características que tornam algumas populações mais vulneráveis à violação de seus direitos no trabalho ou na falta dele, alertando que no modelo capitalista sempre haverá violações aos direitos humanos. O aprofundamento dessas questões demandou um seminário promovido pelo mandato, que também realizou duas missões: uma delas em Pernambuco, já referida (em conjunto com duas outras relatorias) e a outra no interior de São Paulo, como parte da missão internacional sobre agro-combustíveis. A oportunidade representou um monitoramento sobre as condições de trabalho extenuantes no corte da cana de açúcar já objeto de missão em 2005. Além de outros, teve como resultado um projeto de lei apresentado à Câmara federal no sentido de tipificar o evento “morte por exaustão” relacionando-o às condições de trabalho. Esse pequeno resumo de cada relatoria teve a única intenção de motivar para a continuidade da leitura. Toda a riqueza desses dois anos de trabalho só pode ser devidamente apreciada com o conhecimento integral dos textos que seguem aqui.


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22 Nesse cenário, às vezes desalentador, é da maior importância que as entidades e movimentos de direitos humanos se apropriem desse conhecimento e continuem em plena atividade. A possibilidade de mudanças efetivas na realidade social depende da sociedade civil, que construiu e constrói alternativas. Por isso pode questionar os poderes públicos e alimentar as mobilizações que reivindicam a ampliação dos investimentos públicos e mudanças no aparelho de Estado, em favor de milhões que não se beneficiam do modelo tradicional de crescimento e desenvolvimento. A democracia ainda frágil que se constituiu no Brasil nas ultimas duas décadas e os avanços verificados só aconteceram devido à grande contribuição dos movimentos sociais organizados, que não podem perder a esperança e a disposição de luta. A Plataforma Dhesca Brasil e as relatorias nacionais desejam se manter como um ponto de apoio nessa empreitada. A avaliação das relatorias nacionais e mudanças propostas Na segunda parte desta publicação apresenta-se uma síntese do trabalho de avaliação das relatorias nacionais, realizado pelo consultor externo Domingos Armani entre maio e agosto de 2008. Após uma análise de inúmeros documentos e entrevistas com atores fundamentais do processo de atuação das Relatorias Nacionais entre 2002 e 2008, ele nos mostra as principais contribuições das Relatorias Nacionais e algumas de suas fragilidades, apontando caminhos e sugestões que nos desafiam a avançar. Posteriormente, o debate ampliado na rede e com entidades parceiras, consolidou algumas propostas e um conjunto de diretrizes que darão direcionamento ao próximo mandato.


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Cronologia das Relatorias Nacionais O quadro abaixo mostra alguns momentos relevantes da trajetória das Relatorias Nacionais.

Data

Atividade

2001

Fundação da Plataforma Dhesca Brasil

2002

Criação das Relatorias Nacionais de Direitos Humanos, pela Plataforma Dhesca Brasil

2002 a 2005

Primeiro mandato de seis Relatores/as Nacionais

2003

Apresentação das Relatorias Nacionais ao Comitê DESC-ONU, em Genebra

2004

Apresentação das Relatorias Nacionais à Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH-OEA-Washington

2005 a 2007 2006

2007 a 2009 2008

Segundo mandato de seis Relatores/as Nacionais Audiência da Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente na CIDH - OEA, sobre contaminação ambiental. Terceiro Mandato de seis Relatores/as Nacionais Avaliação externa, realizada por Domingos Armani, seguida por debates com relatores, assessores e Assembléia Geral. Lançamento público conjunto de 05 relatórios de Missão de 2007-2008 na Câmara Federal. Audiência pública na Câmara Federal - Relatoria nacional do direito humano à Moradia, junto com Relatora da ONU Audiência pública na Câmara Federal – Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação, junto com Relator Especial da ONU


Desafios dos Direitos Humanos no Brasil e a experiência das Relatorias Nacionais em Dhesca

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ENTIDADES FILIADAS À PLATAFORMA DHESCA BRASIL ABRANDH - Associação Brasileira de Nutrição e Direitos Humanos - http://www.abrandh.org.br/ AÇÃO EDUCATIVA - http://www.acaoeducativa.org/ AGENDE- Ações em Gênero,Cidadania e Desenvolvimento- http://www.agende.org.br AMB - Articulação de Mulheres Brasileiras - http://www.articulacaodemulheres.org.br/ AMNB - Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras CDVHS - Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza - http://www.cdvhs.org.br/ CEAP - Centro de Educação e Assessoramento Popular - http://www.ceap-rs.org.br/ CENDHEC - Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social CFÊMEA - Centro Feminista de Estudos e Assessoria - http://www.cfemea.org.br/ CIMI – Conselho Indigenista Missionário - http://www.cimi.org.br/ CJG - Centro de Justiça Global - http://www.global.org.br/ CJP-SP - Comissão de Justiça e Paz de São Paulo http://www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/organismos_pastorais.htm Conectas - http://www.conectas.org/ CONIC - Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - http://www.conic.org.br/ CPT - Comissão Pastoral da Terra - http://www.cpt.org.br/ CRIOLA - Organização de Mulheres Negras - http://www.criola.org.br/ Fala Preta FASE - Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional - http://www.fase.org.br/ FIAN Brasil - Rede de Informação e Ação pelo Direito Humano a se Alimentar - http://www.fian.org.br/ GAJOP - Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares - http://www.gajop.org.br/ GELEDÉS - Instituto da Mulher Negra - http://www.geledes.org.br/ INESC - Instituto de Estudos Socioeconômicos - http://www.inesc.org.br/ MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens - http://www.mabnacional.org.br/ MEB – Movimento de Educação de Base - - http://www.meb.org.br/ MMC Brasil – Movimento das Mulheres Camponesas do Brasil - http://www.mmcbrasil.com.br/ MNDH - Movimento Nacional pelos Direitos Humanos - http://www.mndh.org.br/ MNMMR - Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - http://www.mst.org.br/ PÓLIS - Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais - http://www.polis.org.br/ Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos - http://www.redesaude.org.br/ Rede Social de Justiça e Direitos Humanos - http://www.social.org.br/ SDDH - Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia - http://www.soscorpo.org.br/ Terra de Direitos - http://www.terradedireitos.org.br/


Clovis Roberto Zimmermann Jonia Rodrigues Clovis Roberto Zimmermann: Relator Nacional dos Direitos Humanos à Alimentação e Terra Rural (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Jonia Rodrigues: Assessora da Relatoria Nacional dos Direitos Humanos à Alimentação e Terra Rural (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil.



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27 Relatoria do Direito Humano à Alimentação e Terra Rural CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO DE ATUAÇÃO DA RELATORIA PARA O DIREITO À ALIMENTAÇÃO E TERRA RURAL No Brasil, os anos de 2007 e 2008 marcam avanços nos processos de normatizar e promover a realização e a exigibilidade do Direito Humano à Alimentação– DHAA, no contexto da indivisibilidade dos direitos humanos. Os avanços decorreram tanto de fatores nacionais quanto internacionais. Por um lado, em âmbito internacional, a aprovação do Protocolo Facultativo[1] representa a reafirmação das obrigações dos Estados partes do PIDESC em relação à possibilidade de exigir os direitos econômicos, sociais e culturais. O Protocolo Facultativo é importante, pois proporcionará às vítimas de violações dos direitos econômicos, sociais e culturais, que não podem obter um recurso efetivo em seus sistemas legais em âmbito nacional, um foro internacional em que possam solicitar uma reparação das violações. Dessa forma, irá corrigir um desequilíbrio que existe há muito tempo na proteção dos diversos direitos humanos, especialmente pelo caráter marginal que desfrutavam os direitos econômicos e sociais no quesito das reparações. Por outro lado, em âmbito nacional deu-se continuação ao processo iniciado no período 2005-2006[2] em relação ao Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA. A antiga e a nova gestão do CONSEA, que tomou posse em janeiro de 2008, legitimada pela III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional realizada em junho de 2007, desenvolveram as seguintes iniciativas em direção à institucionalização da promoção e exigibilidade do DHAA: Apoio formal da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ao funcionamento da Comissão Permanente para o Direito Humano à Alimentação, cuja atribuição é analisar políticas e programas públicos de Segurança Alimentar e Nutricional – SAN, a partir da ótica do DHAA, emitindo recomendações aos organismos públicos. Em 2007 e 2008 foi discutido o maior programa de transferência de renda brasileiro, o Bolsa Família, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que atende hoje cerca de 11 milhões de famílias. Apoio formal da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ao funcionamento da Comissão Especial de Monitoramento de Violações do DHAA no âmbito do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH, da Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH. Além disso, com a participação da Relatoria, a Comissão Especial de Monitoramento de Violações do DHAA analisou a questão da desnutrição indígena no Estado do Mato Grosso do Sul, realizando reuniões com os órgãos públicos diretamente envolvidos. Ademais, a Comissão Especial de Monitoramento de Violações do DHAA efetuou uma missão ao Estado do Espírito Santo, mais precisamente no norte do Estado, para averiguar denúncias de violações ao DHAA das comunidades quilombolas residentes naquela região. Sanção pelo presidente da República da nova lei PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar, ocorrida no dia 16 de junho de 2009. Pela nova lei, pelo menos 30% dos produtos adquiridos para alimentar os estudantes com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE deve vir da agricultura familiar. A compra fica dispensada de licitação, desde que os preços sejam compatíveis com o mercado local e os produtos atendam normas de qualidade. Início da discussão de uma lei que visa inserir a alimentação no rol dos direitos fundamentais, incluindo-a como direito social no art. 6º da nossa Constituição. [1] O protocolo foi aprovado no dia 10.12.2008, dia em que se celebrou os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas ainda depende de assinatura e ratificação por pelo menos 10 Estados para entrar em vigor. Sobre o protocolo, vide http://www.opicescrcoalition.org/OptionalProtocol.pdf. [2] Ver relatório desta Relatoria contido in: Plataforma Dhesca Brasil. Relatorias Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais – Informe 2006. Plataforma DHESC Brasil, Rio de Janeiro, 2005.


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28 Ratificação do território indígena Raposa Serra do Sol, em 19 de janeiro de 2009. Seguimento das discussões sobre a coerência entre a promoção da segurança alimentar e nutricional e o modelo de desenvolvimento do país, no contexto da promoção da Soberania Alimentar e do DHAA, e as grandes diretrizes para o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN e para a Política e Plano Nacional de SAN, incluindo-se a questão do monitoramento. Além disso, no âmbito do Executivo federal foi possível observar que alguns ministérios continuam desenvolvendo atividades que incorporam a dimensão da promoção de direitos humanos na implementação das políticas públicas. Isso pode ser visto em alguns dos ministérios e instituições governamentais que compõem o CONSEA, como o Ministério do Desenvolvimento Social, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (CONAB), o Ministério da Saúde (DAB, CGPAN e ANVISA), o Ministério da Educação (FNDE/PNAE), a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, a Fundação Palmares entre outros. No entanto, essas instituições governamentais ainda não demonstraram que o respeito, a proteção e a promoção dos direitos humanos, em especial dos Dhesca, são verificáveis na implementação de suas políticas. O governo federal, especialmente o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, continua entendendo que o direito à alimentação é um sinônimo de combate à fome, esquecendo de instituir mecanismos de exigibilidade e justiciabilidade em suas políticas. Assim, um conteúdo essencial dos Dhesca fica totalmente comprometido, já que não tem havido avanços nos mecanismos de exigibilidade. Do mesmo modo, o modelo de desenvolvimento adotado pelo governo Lula continua voltado para a promoção da expansão do agronegócio de exportação, especialmente no aumento da produção de combustíveis renováveis e da atração de grandes investimentos industriais altamente poluentes e que requerem altos insumos energéticos. Essa opção tem gerado uma expansão da fronteira agrícola, com intensificação da grilagem de terras públicas, das florestas, das terras indígenas, territórios quilombolas e áreas historicamente ocupadas por populações tradicionais que garantiam sua sobrevida, sua segurança alimentar e nutricional, com o trabalho desenvolvido nas mesmas (agricultura, extrativismo, pesca, etc.). Ademais, esse modelo tem fomentado a onda de violência no campo, especialmente em virtude da expansão da fronteira agrícola, decorrente em grande parte da promoção do etanol no mundo. Esse tipo de modelo continua interferindo direta e negativamente na realização da reforma agrária e na homologação de terras indígenas e quilombolas, programas que ficaram bem aquém do necessário para garantir os direitos humanos à alimentação, água e terra rural dessas populações. Parte significativa da lentidão na implementação pode ser atribuída à obstrução oposta pelo Judiciário. Em muitos dos casos analisados há fortes indícios de parcialidade dos magistrados no julgamento das causas, em favor de grandes proprietários. Nas áreas urbanas, a situação também é grave. Nossas políticas públicas têm sido insuficientes para gerar empregos formais e informais em quantidade suficiente e os programas sociais de transferência de renda têm pequeno impacto no combate à fome nas grandes cidades, devido ao baixo valor repassado. Como resultado, apesar dos programas sociais de ampla cobertura (a exemplo do Bolsa Família) e alguns de incentivo à produção terem conseguido reduzir as desigualdades e o número de famílias em miséria absoluta no período, no Brasil ainda existem muitas famílias em situação de miséria e excluídas dos atuais programas sociais[3].

[3] Estima-se que, em 2008, mais de 4 milhões de famílias se encontravam nos critérios de elegibilidade do Bolsa Família, mas por causa da falta de mecanismos de exigibilidade administrativa estão excluídas do acesso ao Programa.


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29 DENÚNCIAS RECEBIDAS O quadro acima se reflete no espectro de denúncias recebidas pela Relatoria no período em questão. Foram inúmeras as denúncias de violações dos direitos humanos à alimentação, água e terra rural, provindas principalmente de organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Ressalta-se que a grande maioria está relacionada a situações de insegurança alimentar e nutricional associadas à questão territorial e despejos forçados, quer seja em áreas urbanas ou rurais, tais como acampamentos de sem terra, povos indígenas, quilombolas, atingidos por barragens, quer seja em outros megaprojetos, tais como expansão do agronegócio, implantação de polos siderúrgicos, transposição do São Francisco, etc. Em resposta a essas denúncias, a Relatoria, após investigação preliminar nas entidades denunciantes e nas comunidades em questão, emitiu notas e questionamentos às autoridades públicas, fez articulações no Ministério Público, Defensoria Pública, conselhos e outros instrumentos públicos de exigibilidade no sentido da superação das violações. Nos casos mais graves e agudos, realizou visitas e missões de investigação das violações denunciadas. Para o desenvolvimento dessa vasta gama de atividades, foi fundamental o trabalho da assessora, integrante da FIAN Brasil – Rede de Ação e Informação Alimentação Primeiro (Food First Information & Action Network) que foi bolsista voluntária da UNV – Programa de Voluntários da ONU para apoiar esta Relatoria, além das entidades e movimentos sociais que compõem a rede de apoio desta Relatoria[4], sem esquecer os parceiros institucionais citados ao longo do relatório. Os critérios adotados para a identificação de casos que demandam a realização de missões são os mesmos adotados no mandato anterior, e têm como fundamento a indivisibilidade dos direitos humanos[5]. MISSÕES, VISITAS, ATIVIDADES DE SEGUIMENTO E OUTRAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS EM 2007 E 2008 Os relatórios completos de todas as missões realizadas podem ser obtidos na Relatoria ou na Coordenação da Plataforma Dhesca Brasil[6]. Em todas as missões e visitas realizadas foi recomendada a criação de um mecanismo de monitoramento do cumprimento das recomendações apresentadas pela Relatoria, envolvendo movimentos sociais, representantes das comunidades ou povos visitados, de entidades da sociedade civil e do Ministério Público. Investigação de violação dos direitos humanos nas ilhas de Sirinhaém, Acampamento Chico Mendes e Assentamentos Prado (PE) Essa foi uma missão conjunta com a Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho, realizada nos dias 24, 25 e 26 de setembro de 2007, no Estado de Pernambuco, para investigar as denúncias recebidas por organizações, referentes a violações de direitos humanos nas áreas acima citadas. Além das visitas em área, foram realizadas reuniões com o governo do Estado, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –

4] Entre elas ressaltamos: COMIDhA (Comitê de Implementação do Direito Humano à Alimentação), FBSAN, FIAN- Brasil, CPT, MST, Terra de Direitos, INESC, MAB, Fóruns Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional, CONSEA Nacional, entre outros. [5] a) casos coletivos ou emblemáticos de violação de direitos humanos; b) grave risco ou iminência de risco social (risco de vida, despejos, violência física); c) apoio das entidades locais para preparar, acompanhar e dar seguimento aos encaminhamentos das missões ou visitas; d) populações com maior grau de vulnerabilidade, expostas a risco de difícil superação pela situação isolada da comunidade visitada e sua capacidade limitada de ação; e) conflitos relacionados à não realização dos direitos humanos à alimentação adequada, à água e à terra rural nas diferentes regiões do país. [6] Relatoria Nacional dos Direitos Humanos à Alimentação Adequada e Terra Rural alimentacao@dhescbrasil.org.br ou secretaria executiva da Plataforma Dhesca Brasil secretaria@dhescbrasil.org.br ou no site www.dhescbrasil.org.br


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30 Incra e uma audiência pública na sede do Ministério Público de Pernambuco. No que diz respeito diretamente à Relatoria para o Direito Humano à Alimentação e Terra Rural foram constatadas as seguintes violações: Violação do direito humano à terra rural Os três casos visitados são exemplos da não efetivação do direito humano à terra rural, pois todos têm questões fundiárias pendentes. No caso de Sirinhaém, o governo está sendo omisso e fomentador de conflito ao adiar o indeferimento do recurso administrativo interposto pela Usina Trapiche, que pleiteia o revigoramento do Título de Aforamento da União daquela área para si, em detrimento do interesse das famílias que sempre viveram lá e preservaram as ilhas, e, de maneira geral, da sociedade, que tem direito a um meio ambiente saudável. A situação de omissão é agravada pelo retardamento da criação da reserva extrativista e a constituição do grupo de trabalho que irá analisar a viabilidade das famílias conviverem de maneira harmoniosa e sustentável na referida reserva. Relatos dos moradores das ilhas afirmam que as famílias estão expostas à violência praticada pela Usina Trapiche, que se utiliza do próprio aparelho de segurança e justiça local, a exemplo da Companhia Independente de Policiamento do Meio Ambiente – CIPOMA, para intimidar e afastar as famílias das ilhas. Na situação do Acampamento Chico Mendes, já objeto de despejo violento, devido à omissão do Estado em regularizar a situação fundiária, o governo federal continuou mostrando lentidão para efetivar a desapropriação da área. Isso se torna mais grave quando há liminares que autorizam a reintegração da área à Usina Tiúma, apenas aguardando o decurso de prazo recursal de 120 dias concedido pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco – TJPE para oportunizar o Incra a cumprir sua obrigação de concluir o processo de desapropriação. Quanto à situação dos Assentamentos Prado, além dos governos federal e estadual não cumprirem com a obrigação de proporcionar a estrutura necessária às famílias assentadas na área, com a concessão dos créditos habitacionais, assistência técnica, fornecimento de energia elétrica, água encanada e saneamento, omitem-se diante da violência a que estão submetidas as famílias pelas milícias e agentes policiais locais. Violação do direito humano à alimentação O Estado brasileiro não está cumprindo as obrigações de respeitar, proteger e garantir o direito humano à alimentação a essas comunidades do Estado de Pernambuco e está sendo omisso no que se refere à regularização fundiária das terras visitadas pelas Relatorias. Além disso, permite que terceiros em prol do capital, como os usineiros, violem os direitos humanos. O Estado não garante segurança e acesso a recursos para a produção. Acesso à terra e aos meios de produção são pressupostos para a realização do direito humano à alimentação. PRINCIPAIS RECOMENDAÇÕES Ilhas de Sirinhaém O Ministério do Planejamento deve revogar, urgentemente, o aforamento das ilhas de Sirinhaém à empresa Trapiche, conforme decisão já tomada pela Gerência do Patrimônio da União em Pernambuco. O Ministério do Meio Ambiente deve priorizar a criação de uma Reserva Extrativista de Desenvolvimento Sustentável – RESEX, na região das ilhas de Sirinhaém, pois a manutenção de seus moradores é de extrema importância para as áreas de proteção ambiental, e, com orientação, passariam a exercer o papel de monitoramento e fiscalização daquele meio ambiente.


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31 Acampamento Chico Mendes O Incra, em Pernambuco, deveria ingressar, até dezembro de 2007, com a ação de desapropriação do Engenho São João, época em que vencia o prazo de suspensão definido pelo TJPE. A Presidência da República deveria ter decretado a desapropriação do Engenho São João até dezembro de 2007, destinando-o ao assentamento dos trabalhadores e trabalhadoras do Acampamento Chico Mendes, considerando inclusive os débitos rescisórios dos ex-empregados decorrentes de sua falência, que compõem parte dos trabalhadores hoje acampados, na forma do art. 186 da Constituição Federal[7]. O Incra deve regularizar a concessão de cestas básicas aos trabalhadores e trabalhadoras acampados. Assentamentos Prado O governo do Estado de Pernambuco, por intermédio da Secretaria de Defesa Social, deve apurar, com isenção e integralmente, as mortes dos trabalhadores rurais José João Gomes da Silva Filho e Severino Guilherme Lúcio da Silva, ocorridas entre junho e julho de 2007, bem como as circunstâncias das prisões e torturas sofridas por seis trabalhadores, no Assentamento Prado, em setembro de 2007. Além disso, garantir a retirada dos agentes de inteligência da Polícia Militar de Pernambuco – PMPE (P2) da área. O governo do Estado de Pernambuco, por intermédio do Programa Estadual de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, deve realizar o diagnóstico das situações de ameaça e risco a que estão submetidas as lideranças dos Assentamentos Prado, envidando esforços para garantir a proteção das mesmas, em sua condição individual e coletiva, insistindo na investigação completa e isenta das ameaças, como mecanismo fundamental no processo de proteção. O governo do Estado de Pernambuco deve agilizar a emissão de laudos ambientais e de instalação por parte da CPRH – Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, com vistas a garantir a liberação dos créditos habitacionais para os trabalhadores. O governo do Estado de Pernambuco deve garantir atendimento médico especializado para as famílias assentadas que têm sequelas físicas e psicológicas decorrentes das violências sofridas pela ação dos policiais militares nos Assentamentos Prado, durante os últimos despejos. O governo do Estado de Pernambuco e as prefeituras de Tracunhaém e Araçoiaba, em suas esferas de competência e no sentido da complementaridade das ações, devem adotar políticas públicas no sentido de garantir a realização dos direitos sociais dos trabalhadores e trabalhadoras assentados, dispostos no art. 6º da Constituição Federal, particularmente os relacionados à saúde e à educação. Missão conjunta: averiguação das denúncias de violação aos direitos humanos dos camponeses integrantes da Via Campesina, em Santa Tereza do Oeste (PR) Nos dias 12, 13 e 14 de março de 2008, foi realizada pela Relatoria para o Direito Humano à Alimentação e Terra Rural e pela Relatoria para o Direito Humano ao Meio Ambiente uma missão in loco para averiguar as denúncias recebidas do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional e da Terra do Estado do Paraná referentes às graves violações aos direitos humanos dos camponeses integrantes de movimentos sociais da Via Campesina, mobilizados em prol do direito à terra, da não contaminação das sementes crioulas e da criação de um Centro de Agroecologia na área do centro de experimentos da empresa multinacional Syngenta, localizado em Santa Tereza do Oeste no Estado do Paraná. [7] O Engenho São João foi desapropriado no dia 14 de outubro de 2008. O Incra recebeu a imissão de posse do engenho, em São Lourenço da Mata (PE), uma das áreas mais emblemáticas da luta pela reforma agrária no Estado. Com isso, o Incra deterá a posse do imóvel rural de 580 hectares que foi praticamente abandonado pelo Grupo Votorantim há 17 anos, quando da declaração de falência da Agropecuária Tiúma. Após quatro anos de espera, toda a área será destinada para a reforma agrária e as famílias do MST serão devidamente assentadas. Ver outras informações no capítulo da Relatoria para o Direito Humano ao Trabalho.


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32 A missão conjunta consistiu nas seguintes atividades: reunião na CAOPA – Central das Associações de Pequenos Agricultores do Oeste do Paraná para ouvir relato dos agricultores sobre a contaminação por organismos geneticamente modificados (OGMs); visita ao acampamento Terra Livre; audiências com o delegado da Polícia Federal, os juízes responsáveis pelos processos criminal e de reintegração de posse e o Ministério Público; reunião no Sindicato da Alimentação em Cascavel, no CONSEA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do Paraná – ITCG e Secretaria de Agricultura – SEAB, em Curitiba. Após a análise das informações recebidas e documentos reunidos, as Relatorias puderam constatar inúmeras violações aos direitos humanos das famílias campesinas. O conflito entre trabalhadores rurais e a multinacional Syngenta, devido ao campo de experimentos ilegais da empresa com soja e milho geneticamente modificados, mostrou que o Estado brasileiro não está cumprindo as obrigações fixadas nos tratados internacionais vigentes. No que refere ao direito humano à alimentação, o Brasil não dá acesso à terra para a garantia da produção, já que a área seria destinada a pesquisas, e não voltada ao desenvolvimento de modelos agrícolas sustentáveis na região. Muitos são os dispositivos legais, tanto constitucionais como da legislação ordinária, que dispõem sobre o acesso à terra rural como sendo aquele direito pertencente a quem dela vive. Esse direito está vinculado à realização integral da função social da terra. O Poder Executivo e o Judiciário violam o direito das famílias ao não efetivar o decreto de desapropriação, de novembro de 2006, para fins da criação do Centro de Agroecologia e Reforma Agrária, permitindo que interesses privados degradem o meio ambiente e impeçam as famílias camponesas de viver e produzir conforme sua cultura, obrigando-as a viver em condições precárias em acampamento. Dessa forma, para realização desse direito, se faz necessária a implementação imediata da reforma agrária.[8] Na situação investigada sobressai o alto nível de insegurança em que vivem os trabalhadores e trabalhadoras rurais, os recorrentes episódios de despejo e violência praticados por empresas de segurança, a situação de ameaça de muitos defensores de direitos humanos, a omissão de órgãos policiais e punitivos do Estado na garantia da segurança desses grupos e a consequência extrema do ocorrido no dia 21 de outubro de 2007, com a execução sumária do trabalhador Valmir Mota. Assim, o Estado do Paraná e o Estado brasileiro violam os direitos humanos, pela sua conivência e omissão diante das práticas do movimento ruralista e de empresas transnacionais, pelo assassinato do trabalhador e lesões corporais sofridas pelos demais integrantes da Via Campesina, bem como pela total falta de realização do direito à vida, à liberdade e à segurança determinados pelo art. 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Há também sérios indícios de que os trabalhadores(as) rurais, como um todo no Paraná, vêm sendo tratados de forma discriminatória pelo Poder Judiciário do Estado do Paraná, o qual comete atos de violação dos direitos humanos ao proferir sentenças sempre favoráveis aos latifundiários e multinacionais nas diversas ações possessórias. Na anulação do decreto de desapropriação da área para criação do campo agro-ecológico e anulação das multas aplicadas pelo Ibama, impedindo desse modo que os trabalhadores possam efetivar a função socioambiental da terra e produzir alimentos e sustento não só para suas famílias como também para as comunidades próximas.

[8] “Art. 184. Compete a União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária,...” (Constituição Federal 1988).


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33 RECOMENDAÇÕES Dessa forma, a Relatoria recomendou: Ao governador do Estado do Paraná: que faça publicar novo decreto de desapropriação do campo de experimentos da Syngenta em consonância com as formalidades previstas na legislação, a fim de superar os vícios de forma que geraram a nulidade do decreto anterior pelo Judiciário[9]. Ao Instituto de Terras do Paraná: que adote as medidas necessárias à criação da área de zoneamento ecológico no Parque Nacional do Iguaçu e área de entorno; que promova o levantamento, arrecadação e discriminação das terras públicas no Paraná. À Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Paraná: que promova maior fiscalização dos processos produtivos e da comercialização agrícola no Estado do Paraná a fim de evitar a contaminação de sementes orgânicas e convencionais e de garantir a proteção da biodiversidade. À Secretaria de Segurança Pública do Paraná: que implemente ações específicas de combate às milícias paramilitares que atuam no Paraná e garanta a segurança dos defensores de direitos humanos ameaçados com pedidos de proteção já encaminhados a essa Secretaria. Ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária – Incra: que acelere a redistribuição de terras no Estado, desapropriando áreas que efetivamente não cumprem a função socioambiental da propriedade, promova ampla e efetiva reforma agrária, assim como combata as ações recorrentes de grilagem de terras. Investigação de violações aos direitos humanos no Quilombo Brejo dos Crioulos no Estado (MG) A Relatoria Nacional para o Direito Humano à Alimentação e Terra Rural recebeu da FIAN Brasil, da Comissão Pastoral da Terra Norte de Minas – CPT e do Centro de Agricultura Familiar – CAA denúncias de violação aos direitos humanos das famílias do Quilombo de Brejo dos Crioulos, localizado às margens do Rio Arapuim, na divisa dos municípios de São João da Ponte, Verdelândia e Varzelândia, no norte do Estado de Minas Gerais. Considerando a gravidade das denúncias recebidas, as quais revelam a falta de efetivação dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais por parte do Estado, principalmente no que se refere ao processo de titulação do território das comunidades quilombolas, bem como a ausência de políticas públicas, foi realizada no dia 25 de novembro de 2008 visita à comunidade de Araruba, acampamento na fazenda Bonanza e às comunidades de Orion e Caxambu. No dia 26 de novembro foi realizada, no auditório da Câmara de Vereadores de Montes Claros, a Audiência Pública, cujo objetivo era fortalecer o processo da realização dos direitos humanos no Estado de Minas Gerais. Posteriormente constatou-se: Violação ao direito humano de acesso ao território O acesso ao território, terra e aos meios de produção é pressuposto para a realização do direito humano à alimentação. Contudo, o governo brasileiro não cumpre com a obrigação no que se refere à regularização do acesso ao território das 450 famílias que compõem Brejo dos Crioulos. Fato que se evidencia com a Instrução Normativa 49, publicada pelo Incra, em setembro de 2008, a qual demonstra um grave retrocesso no que se refere à garantia de direitos reconhecidos pela Constituição Federal, pela Convenção 169 da OIT e pelo decreto 4.887/2003. Essa normativa trará inclusive o aumento da burocracia, que poderá tornar o processo de titulação ainda mais moroso, ou até mesmo inviável. Em virtude disso, constata-se que o Estado brasileiro está violando gravemente o direito de acesso ao território das 450 famílias do Brejo dos Crioulos. [9] Após intensa pressão dos movimentos sociais, além das Relatorias Nacionais, a Syngenta assinou, no dia 14 de outubro de 2008, a escritura de cessão para o governo estadual da área de 127 hectares antes usada para a realização de experimentos transgênicos ilegais, em Santa Tereza do Oeste, no Paraná. Ver mais informações no capítulo da RNDH ao Meio Ambiente.


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34 Violação do direito humano de acesso à justiça e ao tratamento igualitário perante a justiça As famílias que vivem em Brejo dos Crioulos e reivindicam terras para poder viver estão submetidas a ações de pistolagem por parte dos pretensos donos dessas terras. Um dos agravantes é a postura de agentes da Polícia Militar, que não cumprem com o papel de proteção dos direitos das pessoas, ao contrário, agem na proteção dos interesses dos fazendeiros, e com extrema violência contra as famílias que estão reivindicando seus direitos. Fato que contribui para essa violação é a incapacidade da Polícia Civil de investigar, com integralidade e isenção, a prática de crimes cometidos contra as famílias. Violação do direito humano à alimentação [10] Considerando a indivisibilidade dos direitos humanos, a situação vivida em Brejo dos Crioulos revela várias violações aos direitos humanos: as moradias são precárias e possuem apenas pequenos quintais que garantem a produção de subsistência, como milho, feijão e mandioca, além de criação de porcos e galinhas, que não são suficientes para garantir o sustento familiar. Em decorrência dessa situação, muitos migram para o corte da cana e colheita do café em São Paulo, uma vez que no quilombo a condição de sobrevivência é bastante precária. Além disso, nas comunidades do Brejo dos Crioulos não existe posto de saúde (embora as prefeituras recebam recursos adicionais por haver comunidades quilombolas em seus municípios), nem equipe do PSF – Programa Saúde da Família que atenda adequadamente. O acesso a programas alimentares também é precário, as cestas básicas são insuficientes e entregues de forma irregular. O Programa Bolsa Família não atende a todos na comunidade, apesar do alto grau de carência e fome existente. Ademais, conforme informações repassadas à Relatoria, a Fundação Nacional de Saúde – Funasa também não realiza um trabalho satisfatório, pois inexiste qualquer indicador da situação nutricional. Verificou-se que o acesso à escola é extremamente complicado, já que muitas crianças precisam ir a pé por cerca de 14 quilômetros até a escola, uma vez que falta transporte escolar. Nas escolas, o acesso à merenda escolar não é permanente, e não há uma educação voltada para as comunidades quilombolas, o que mostra o descaso completo na preservação daquela cultura. Constata-se assim que o Estado brasileiro não está cumprindo as obrigações de respeitar, proteger e garantir o direito humano à alimentação dos quilombolas de Brejo dos Crioulos, nem outros direitos igualmente fundamentais. Violação do direito humano de acesso à água A Organização Mundial de Saúde – OMS estima que a quantidade mínima de água para uma pessoa, para uso próprio em alimentação e higiene pessoal, seja de 20 litros diários, sendo dois litros para ingestão. Essa quantidade é tão ínfima que pode colocar em risco a saúde. Assim, considerando as denúncias recebidas e o que pudemos verificar na visita in loco, constata-se que no Quilombo de Brejo dos Crioulos esse direito está sendo gravemente violado, pois as famílias que lá vivem têm acesso, em média, a 15 litros de água por família, e, no acampamento da Fazenda Bonanza, a apenas 8 litros.

[10] O Brasil é Estado parte do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais recepcionado pela Constituição de 1988, no artigo 5º, § 2º e, desta forma, está obrigado a proteger, respeitar e garantir estes direitos à sua população. Isto inclui a garantia e proteção do direito à alimentação adequada com dignidade, conforme prevê o artigo 11 do Pacto. O acesso físico e econômico aos recursos produtivos, inclusive o acesso à água e à terra, assegurado juridicamente, é condição essencial para a realização do direito a se alimentar, como assevera, no Comentário Geral 12, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.


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35 RECOMENDAÇÕES Considerando as constatações feitas, a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Alimentação e Terra Rural recomendou aos órgãos públicos responsáveis: Ao Ministério de Desenvolvimento Agrário: Prover dotação orçamentária ao Incra em Minas Gerais, compatível com as responsabilidades de realizar o reconhecimento e titulação definitiva das comunidades quilombolas do Brejo dos Crioulos e dos mais de 400 territórios quilombolas do Estado, bem como a reforma agrária num dos Estados de maior conflito agrário do país. Ao Incra: Apressar o processo de homologação e titulação do território do Brejo dos Crioulos e de outras comunidades quilombolas do Estado de Minas Gerais. Que seja garantida a continuidade e agilidade no andamento no processo de desapropriação das fazendas Bonanza, Vista Alegre e Morro Preto, em prol do Quilombo Brejo dos Crioulos, considerando que essas fazem parte de seu território. Da mesma maneira, deve-se fazer a vistoria em mais seis fazendas para totalizar a área dos 17 mil hectares do Brejo dos Crioulos, conforme consta nos laudos do Incra. Que seja revista, com muito zelo e atenção, a Instrução Normativa 49, garantida a realização dos direitos humanos como rege a Convenção 169 da OIT. Ao Ministério do Desenvolvimento Social: O abastecimento, com o máximo de urgência, de cestas básicas às famílias do Brejo dos Crioulos. As cestas básicas devem ser mensais e entregues com regularidade e adequadas aos hábitos culturais das comunidades quilombolas. Verificar, com urgência, o acesso das famílias do Brejo dos Crioulos ao Programa Bolsa Família. À Funasa: O empenho em implementar saneamento básico nas comunidades do quilombo, assim como constituir equipes de atendimento à saúde que contemplem o Brejo dos Crioulos. Que seja feito com urgência um diagnóstico nutricional da comunidade, assim como o mapeamento epidemiológico sobre os portadores da doença de Chagas. Ao governo do Estado de Minas Gerais: A abstenção da prática de ações violentas contra os moradores do Quilombo Brejo dos Crioulos por parte de seus agentes militares e civis, devendo atuar no sentido de punir os atos desses que violarem os direitos das pessoas que lá vivem, colocando à frente das ações policiais que efetivamente estejam treinados e aptos para realizá-las. O governo do Estado deve assegurar a integridade física das famílias do Brejo dos Quilombos. Em qualquer situação que coloque em risco a segurança dessas, o Estado será responsabilizado.


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36 Aos municípios de Verdelândia, Varzelândia e São João da Ponte recomenda-se que: Seja imediatamente regularizado o fornecimento da alimentação escolar, considerando que a verba para compra da alimentação escolar de comunidades quilombolas é o dobro do valor destinado para os não quilombolas. Seja regularizado o transporte escolar para as crianças do Brejo dos Crioulos e que sejam feitas melhorias nas estradas que ligam o quilombo aos municípios, para que se possa ter um sistema de transporte mais eficaz. Seja elaborado um plano pedagógico nas escolas, considerando as diferenças culturais, inclusive contemplando a contratação de professores quilombolas. Sejam implementadas, de forma urgente, medidas que garantam acesso permanente à água, considerando que um ser humano sofre risco de morte antes por falta de água do que por falta de comida.


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37 CONCLUSÕES Após dois anos de intenso trabalho, podemos constatar que as Relatorias Nacionais da Plataforma Dhesca Brasil estão ocupando um espaço importantíssimo em nossa sociedade, sendo capazes de aportar uma contribuição insubstituível para o processo de institucionalização da exigibilidade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. As Relatorias, com sua especificidade temática garantida pelo processo de construção coletiva de amplos movimentos sociais, ao longo de décadas de lutas, permite, por exemplo, que o conceito de direito humano à alimentação no Brasil seja apropriado pelas comunidades, pelos movimentos e pelos grupos cujos direitos são violados em nossa sociedade. Da mesma forma, é possível observar que os órgãos governamentais estão se apropriando desses conceitos, embora com um entendimento simplificado do que são os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Ao mesmo tempo, as Relatorias trazem consigo a legitimidade tanto da legislação internacional de direitos humanos e contam com o apoio da UNV, que é órgão ligado à ONU, bem como de nossa instituição nacional de maior exigibilidade de direitos, o Ministério Público. Isso em dúvida alguma garante que os posicionamentos da Relatoria tenham boa aceitação e ressonância frente às autoridades públicas e possibilita que a ação da Relatoria possa catalisar processos de superação de violações identificadas, de fortalecimento de instrumentos de exigibilidade e mesmo de revisão de políticas públicas. Apesar do trabalho desta Relatoria e do conjunto das Relatorias Nacionais da Plataforma Dhesca e de outros movimentos sociais, vários estudos apontam a permanência de números ainda inaceitáveis de pessoas submetidas à fome e insegurança alimentar. Dados de distintas fontes indicam que mais de 22 milhões de pessoas passam fome e entre 44 e 53 milhões vivem abaixo da linha da pobreza em nosso país. Para Flávia Piovesan (2004), uma das maiores especialistas brasileiras em direitos humanos, a existência da fome e da pobreza em um determinado país constitui-se numa grave situação de violação aos direitos humanos e ao direito humano à alimentação. Ou seja, enquanto persistir a situação de fome em determinado país, existe a violação ao direito à alimentação. Ademais, há um consenso de que no Brasil há disponibilidade de alimentos para garantir alimentação em qualidade e em quantidade suficiente para todas as pessoas. Estimativas da FAO – Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação mostram que o Brasil tem uma disponibilidade de alimentos per capita de 2.960 calorias/dia, bem acima do mínimo recomendado, que é de 1.900 calorias/dia. Da mesma forma, não existe no país estagnação econômica e uma insuficiência generalizada de recursos, pois o Produto Interno Bruto – PIB tem tido um crescimento maior do que o crescimento populacional. Por isso, o problema não está na insuficiente produção, mas, sobretudo, na sua má distribuição, decorrente da concentração de renda, de baixos salários pagos aos trabalhadores, da falta de reforma agrária e de políticas de proteção social e dos elevados níveis de desemprego e subemprego. Nesse sentido, vivemos ainda uma realidade de graves violações dos Dhesca e de um modelo econômico e de um aparelho de Estado que ainda privilegiam a proteção e a promoção da economia de mercado. Da mesma forma, existe ainda uma grande fragilidade na institucionalidade dos direitos humanos, seja no que se refere à sua incorporação efetiva na elaboração, implementação e monitoramento de políticas públicas, seja no que se refere à construção e consolidação dos mecanismos necessários ao recebimento, investigação e superação de denúncias de violações. Com base na experiência acumulada, consideramos estratégico o fortalecimento da atuação das Relatorias Dhesca, em forte parceria com os movimentos sociais, com o Ministério e a Defensoria Pública e com a ONU. As


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38 Relatorias, com infraestrutura adequada de trabalho, poderão ter mais agilidade para dar continuidade à visibilidade de situações inaceitáveis de violações de direitos humanos, que devem continuar a ser o eixo central do trabalho. Ao mesmo tempo, poderão, a partir da busca de superação das violações, reforçar a luta pelo fortalecimento e mesmo criação de mecanismos necessários para a superação das mesmas, e, mais do que tudo, poderão ter um papel central na disputa de paradigmas de desenvolvimento humano e social. Na área da promoção para a realização dos direitos humanos à alimentação e terra rural é fundamental a continuidade da atuação da Relatoria no processo de implantação do SISAN, instituído pela lei já mencionada, e que foi objeto de debates na III Conferência Nacional de SAN, realizada em julho de 2007, em Fortaleza. Também será fundamental a continuidade do trabalho de colaboração da Relatoria em várias outras frentes: Regulamentação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN, garantindo-se a efetiva incorporação da promoção do DHAA na elaboração, implementação e monitoramento das políticas de SAN e que o modelo de desenvolvimento do país seja coerente com a promoção desse e de todos os direitos humanos. Monitoramento da política nacional de SAN a partir da ótica do DHAA. Fortalecimento da Comissão Permanente de DHAA no CONSEA. Fortalecimento da Comissão de Monitoramento de Violações do DHAA, no contexto da SEDH, entre outras. As poucas, mas importantes, vitórias conquistadas ao longo dos anos demonstram o enorme potencial representado pelas Relatorias e indicam que deve ser feito um grande esforço para a maior consolidação possível desse projeto.


Denise Carreira Suelaine Carneiro Denise Carreira: Relatora Nacional dos Direitos Humanos à Educação (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Suelaine Carneiro: Assessora da Relatoria Nacional dos Direitos Humanos à Alimentação e Terra Rural (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil



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41 Relatório do Direito Humano à Educação EDUCAÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA As missões realizadas no período 2007-2009 da Relatoria para o Direito Humano à Educação tiveram como foco principal a relação entre educação e as políticas de segurança pública. As duas principais missões da Relatoria trataram dos desafios da garantia do direito humano à educação em contextos de violência armada e no sistema prisional brasileiro. A primeira missão abordou a situação educacional de crianças, jovens e adultos no Complexo do Alemão, comunidade localizada na cidade do Rio de Janeiro, após os conflitos armados entre narcotraficantes e policiais em 2007 que acarretaram mortes, violações diversas e o fechamento de escolas. A segunda missão mergulhou em uma problemática negada e tornada invisível na agenda pública brasileira: a situação de pessoas encarceradas, população que cresce assustadoramente a cada ano. Em ambas as missões, destaca-se que a violação sistemática dos direitos humanos pelo Estado brasileiro, em especial da população pobre e negra, é justificada em nome da “segurança pública”, entendida a partir de uma concepção autoritária e repressiva. Nessa perspectiva, há uma supervalorização das medidas e ações de segurança marcadas pela força e uma vergonhosa desvalorização e descuido com a garantia dos direitos humanos e políticas sociais. As comunidades populares que vivenciam uma situação crônica de violência armada, com acesso precário a serviços básicos de baixíssima qualidade, e as centenas de milhares de pessoas encarceradas em condições terrivelmente indignas, expõem de forma brutal e perversa os limites e contradições das políticas de segurança pública ainda hegemônicas e do modelo de desenvolvimento brasileiro, marcado pela exclusão de grandes contingentes e pela manutenção e acirramento de desigualdades diversas. EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA ARMADA A missão ao Complexo do Alemão em 2007 e o levantamento complementar de informações realizado em 2008 tiveram por objetivo apurar e analisar o que ocorreu antes, durante e após a suspensão por quase dois meses das aulas decorrente da megaoperação policial contra grupos do narcotráfico ocorrida em maio de 2007 e que levou à morte 19 pessoas. Uma das questões que mobilizaram este trabalho foi a de verificar se a situação de confronto armado, como intensificadora das históricas violações do direito humano à educação e de demais direitos, enfrentadas cotidianamente pela população de comunidades populares, restringiu-se ao período da ação policial ou se é algo permanente na vida da população do Complexo do Alemão. Para compreendermos a situação, visitamos escolas e ouvimos integrantes das comunidades, profissionais de educação, sindicalistas, autoridades públicas, organizações comunitárias do Complexo do Alemão e outras organizações da sociedade civil carioca.


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42 O Complexo do Alemão (RJ) O Complexo do Alemão é um conjunto de favelas localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, na Serra da Misericórdia, parte central da região da Leopoldina, abrangendo cinco bairros: Ramos, Inhaúma, Bonsucesso, Penha e Olaria. Em decorrência da falta de pesquisas sobre a área, há dados conflitantes por parte de diferentes fontes governamentais sobre sua população[1] e situação socioeconômica. Segundo dados do Censo Demográfico do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população do Complexo do Alemão em 2000 era de 65.021 habitantes. Atualmente é estimada por alguns órgãos públicos entre 120 e 160 mil pessoas, ocupando uma área de 6.185 hectares, sendo a segunda região mais populosa da cidade. O Complexo é composto por treze comunidades: Morro do Alemão, Grota, Nova Brasília, Alvorada, Alto Florestal, Itararé, Morro Baiana, Morro Mineiro, Morro da Esperança, Joaquim de Queiroz, Cruzeiro, Morro das Palmeiras e Morro do Adeus. Considerada uma das regiões mais pobres do Rio de Janeiro, o Complexo do Alemão apresenta Índice de Desenvolvimento Humano – IDH de 0,711, o mais baixo dos 126 bairros do Rio de Janeiro. A expectativa de vida é de 64,8 anos e aproximadamente 14% da população é analfabeta. Nessa região, cerca de 29% da população local vive abaixo da linha de pobreza, e a taxa de mortalidade infantil é de 40,15 por 100 mil nascidos vivos, número esse cinco vezes maior do que na Zona Sul da cidade, que é de 7,76 por 100 mil. A atividade econômica da região é exercida por seis mil pequenos estabelecimentos, sendo que 87,4% são do segmento do comércio e serviços. Apresenta altas taxas de natalidade, pequena área livre por habitante, pouca oferta de emprego, baixo índice de desenvolvimento infantil, e carência geral de atendimento no setor da saúde. Desde o final dos anos de 1990, a região do entorno do Complexo do Alemão viveu um intenso processo de desindustrialização, que acarretou a perda de cerca de 20 mil postos de trabalho. Educação, violência e situação de emergência O relatório sobre a missão discute a revisão internacional e a ampliação do conceito de conflito armado, na perspectiva de promoção dos direitos humanos. Revisão que está sintonizada com o que vem sendo chamado por outras organizações e governos em âmbito internacional de “violência armada”. Previsto na Declaração de Genebra sobre Violência Armada e Desenvolvimento (2006), o conceito de violência armada busca abarcar os fenômenos que ultrapassam a abordagem clássica de conflito armado restrita às guerras entre países ou a conflitos entre forças de segurança estatais e dissidentes dentro de um mesmo país. A América Latina é considerada a região mais afetada pela violência armada sem envolver guerra civil. A Declaração conta com a adesão de 42 países (entre eles, o Brasil) e tem por objetivo principal a promoção de políticas e programas de redução da violência armada nas agendas das políticas de desenvolvimento internacionais e nacionais. Considerando o que a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação apurou por meio da missão realizada em outubro de 2007, entendemos que a situação vivida pelas comunidades do Complexo do Alemão e de outras favelas cariocas se enquadra no conceito ampliado de conflito armado ou no que vem sendo chamado pela Declaração de Genebra de violência armada.

[1] Segundo estudo do Cedaps (2003), baseado em informações obtidas junto a Prefeitura, muitos moradores do Complexo do Alemão não informam seu endereço utilizando Complexo do Alemão como seu bairro de moradia – preferem antes informar os bairros a que pertenciam suas comunidades antes da existência do Complexo (Inhaúma, Ramos, Bonsucesso, etc). O estudo considera que tal situação decorre do estigma criado sobre o bairro, marcado por uma reputação cada vez pior com relação à violência e à pobreza.


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43 Tal situação se caracteriza por confrontos frequentes entre narcotraficantes e forças de segurança, gerando sofrimento, perdas civis e violações diversas dos direitos humanos desses territórios, entre eles, o de educação. Lembramos que a continuidade desse tipo de intervenção está posta já que, segundo o depoimento de autoridades do governo estadual à equipe da Relatoria, “as operações policiais continuarão da forma como vêm ocorrendo até o desmantelamento total da estrutura do crime organizado, gerando ônus inevitáveis para as comunidades envolvidas”. O que constatamos demonstra que a violência, na qual as escolas estão imersas, é permanente e cotidiana e não episódica, como informado por algumas autoridades. A violência tem momentos de pico e é sentida de forma diferenciada nas áreas do Complexo do Alemão e adjacências. Depoimentos apontam que ela se intensificou nos últimos anos em várias áreas, alcançando níveis preocupantes a partir da operação policial de maio de 2007. Grande parte das escolas da região sofre da falta de professores, um problema que afeta todo o Estado, mas de forma intensa a região do Complexo do Alemão e outras comunidades populares do Rio de Janeiro. Há escolas nas quais se encontram turmas inteiras sem aulas, e há anos não é ministrada a disciplina de matemática. Em decorrência da violência, das precárias condições de trabalho e dos baixos salários, muitos professores e professoras – sobretudo da rede estadual – não permanecem nas escolas. As escolas apresentam também infraestrutura inadequada ou sem manutenção, os recursos são insuficientes para a merenda, há grande demanda por vagas, como no caso das creches, e uma baixa qualidade do ensino em grande parte das unidades educacionais, apesar do esforço heróico de muitos profissionais da educação. Também destacamos o comprometimento da saúde mental de vários profissionais e estudantes. Ao se constituir em uma situação crônica de violência armada, a Relatoria apontou a urgência de que a educação no Complexo do Alemão, e em outras comunidades similares no país, seja assumida como uma educação em situação de emergência. Internacionalmente, “educação em situação de emergência” é aquela decorrente de catástrofes naturais ou das chamadas emergências complexas. As “emergências complexas” são situações de gravidade social geradas pelos seres humanos, entre elas, a violência armada. Em decorrência, a Relatoria reivindicou a aplicação imediata do documento internacional Requisitos Mínimos para a Educação em Situação de Emergência (Minimum Standards for Education in Emergencies, Chronic Crises and Early Reconstrution), lançado em 2004 pelo Interagency Network for Education in Emergencies – INEE. Os requisitos têm por base a Convenção dos Direitos da Criança – CDC, as metas de Educação para Todos – EPT de Dakar, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM e a Carta Humanitária do Projeto Esfera, lançada em 1997 pelos movimentos da Cruz Vermelha, do Crescente Vermelho e de um grupo de ONGs. Os três primeiros documentos afirmam o direito à educação pública de qualidade para todos, incluindo aqueles que foram afetados por situações de emergência. O documento Requisitos Mínimos para a Educação em Situação de Emergência prevê uma série de ações destinadas à superação da situação de emergência por meio de um conjunto de ações articuladas e coordenadas entre órgãos governamentais, com participação efetiva e crítica da sociedade civil, que vise acelerar a proteção da comunidade e a garantia de direitos e serviços sociais de qualidade.


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44 Para além da ação policial Em seu parecer, a Relatoria aponta ser dever do Estado restaurar sua autoridade no Complexo do Alemão e em outras comunidades do Rio de Janeiro dominadas pelas forças do narcotráfico que, como observado pelo relator especial da ONU para Execuções Sumárias Philip Alston, “dominam comunidades inteiras, submetendo os residentes a uma violência sem sentido e à constante repressão”. Porém, questiona a forma como vem sendo desenvolvida essa autoridade, baseada no uso arbitrário e excessivo da força. Durante a missão, a Relatoria identificou: Um conhecimento limitado por parte das autoridades públicas das dinâmicas sociais e das complexidades envolvidas na constituição do poder, do funcionamento e da reprodução das redes do narcotráfico na região. Essa visão é muitas vezes marcada por preconceitos diversos e pela estigmatização das comunidades. A inexistência de estratégias articuladas entre níveis de governo (municipal, estadual e federal) e entre áreas de governo (sociais, de segurança e de trabalho) que visem garantir os direitos humanos das comunidades e provocar impacto nas causas estruturais do conflito. Dessa forma, o Estado brasileiro, mais uma vez em sua história, se apresenta para a população de baixa renda com sua face predominantemente repressiva. A inexistência de estratégias de prevenção do conflito e de qualquer outra iniciativa que vise a proteção das comunidades envolvidas. A existência de diversas denúncias de violência cometidas pela polícia e pela Força de Segurança Nacional contra as comunidades, que abarcam casos de abuso de poder, homicídios, tortura e roubos, em fase de apuração pelo Ministério Público Estadual. Uma visão etapista da intervenção estatal presente nos discursos das autoridades públicas: em primeiro lugar o Estado chega com as operações de “limpeza” das redes criminais, seguidas de obras de infraestrutura do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento e, por último, a garantia de serviços sociais adequados. Reassumir o poder do território” não se dará por meio somente de políticas de segurança, mas com serviços sociais de qualidade, entre eles, com uma educação de qualidade que garanta os padrões básicos previstos na legislação educacional. Além disso, é necessário um atendimento de saúde com profissionais e equipamentos e uma política de assistência social consistente e articulada a políticas de trabalho e renda. O Complexo do Alemão e outras comunidades que enfrentam problemas similares de violência e exclusão social acentuada exigem um “choque de política social” que melhore as condições de vida daquelas populações e provoque impacto de forma estrutural a reprodução cotidiana das redes criminais nessas áreas. RECOMENDAÇÕES A Relatoria explicitou seu entendimento de que o Estado brasileiro (União, Estado e município) viola o direito humano à educação da comunidade do Complexo do Alemão e de outras comunidades similares ao não garantir condições mínimas que permitam a efetivação desse direito. A situação de emergência na qual se encontram exige um conjunto de medidas urgentes a serem implementadas pelo Estado, entre elas: Plano de ação: elaboração urgente de um plano de ação visando garantir o direito humano à educação de qualidade, levando em conta as várias dimensões do documento internacional Requisitos Mínimos para a Educação em Situação de Emergência. Além da infraestrutura adequada, especial atenção deve ser dada à necessidade urgente de recomposição do quadro de profissionais de educação com condições de trabalho adequadas, estímulo financeiro e suporte pedagógico para o exercício da função na área. O que


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45 implica estratégias que possibilitem a superação de uma situação marcada por contratações precárias, baixíssimos salários, intensa rotatividade e inexistência de apoio adequado por parte dos órgãos centrais às escolas dessas comunidades. O Plano também deve contemplar, de forma sistêmica, a rápida melhora do conjunto dos serviços sociais oferecidos nas comunidades e alternativas de trabalho que garantam condições de vida dignas para jovens e adultos desempregados ou subempregados. Presença de operadores de direito: instalação de postos de atendimento permanentes às comunidades da área, por parte Ministério Público Estadual e Federal e da Defensoria Pública. Realização de visitas periódicas por parte dos organismos da ONU, da Cruz Vermelha, da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e demais operadores do direito. Foi observado que, em decorrência da escalada da violência, vários desses órgãos e instituições deixaram de visitar ou diminuíram de forma significativa sua presença na área, contribuindo para o abandono total das comunidades à ação de narcotraficantes e vulnerabilidade ao abuso de poder de determinados policiais. Identificamos também que várias empresas prestadoras de serviço de água, luz, correio, telefone, entre outras, diminuíram sua presença ou deixaram de prestar atendimento às populações do Complexo e adjacências em decorrência da violência. Informação de qualidade: a Relatoria enfrentou muitas dificuldades para acesso a dados quantitativos e qualitativos referentes à região. Foram encontradas informações contraditórias e insuficientes fornecidas pelo poder público. Para se construir estratégias eficazes e efetivas é fundamental a constituição de um sistema integrado de informações, que possibilite uma base qualificada para o planejamento da ação do poder público e da sociedade civil e o monitoramento de indicadores diversos, entre eles, situação dos equipamentos, evasão, repetência, rotatividade de docentes, problemas de saúde entre muitos outros. Nesse ponto, foi destacada a importância de que todos os dados e informações públicas estejam disponíveis para consulta pública, vinculadas a uma política de promoção da transparência e controle social que garanta o direito à informação pública de todo cidadão e cidadã. Articulação e coordenação de políticas: é fundamental a articulação das políticas de segurança e das políticas sociais entre áreas de governo e entre governo federal, estadual e municipal. A articulação deve se concretizar por meio de uma instância coordenadora constituída para esse fim, que possibilite o planejamento, o monitoramento e a avaliação das ações e políticas consistentes. Participação comunitária: a constituição de instâncias institucionalizadas e permanentes de interlocução com as comunidades é fundamental em situações como a vivida pelo Complexo do Alemão e por outras comunidades dos morros cariocas. Instâncias baseadas não em uma participação figurativa, nem consultiva, mas em uma participação que efetivamente contribua no processo de tomada de decisões e que reconheça a diversidade inerente à organização comunitária. É importante que o poder público não reduza a convocação para participação nesses processos somente aos considerados “aliados” dos governos. Protocolo de segurança escolar: foi observado nas visitas que não existe nenhuma orientação às escolas e às famílias com relação à segurança em caso de conflito. Como foi dito pelo governo estadual que novas operações policiais serão realizadas nas comunidades, insistiu-se ser fundamental a criação de protocolos de segurança, construídos por meio da parceria entre segurança e áreas sociais, de forma a responder a algumas questões: O que fazer quando começa um tiroteio? Liberar ou não as crianças? Como orientar as famílias? Ouvimos depoimentos que mostram a total desorientação diante de tal situação, o que, no nosso entender, aumenta o risco. Cadastro de demanda: criação emergencial de cadastro de demanda por educação da população do Complexo do Alemão e adjacências. Esse cadastro deve abarcar os diferentes níveis e etapas da educação brasileira: educação básica (creche, pré-escola, ensino fundamental e ensino médio) e ensino superior e as modalidades (educação especial – para deficientes, educação de jovens e adultos, educação profissional e educação indígena). Evidentemente, é recomendável que o cadastro seja atualizado para o conjunto da população do município do Rio de Janeiro.


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46 As possibilidades do PAC das Favelas Também foi recomendado que o chamado PAC das Favelas, iniciativa do governo federal, que começou a ser implementado ao final de 2007 nas comunidades cariocas do Complexo do Alemão e de Manguinhos, possa ser assumido, não como mais um projeto, mas como uma estratégia que potencialize ao máximo a ação articulada entre os governos federal, estadual e municipal. Ação que permita a melhoria das condições de vida da população, baseada em uma participação efetiva das comunidades e de outras organizações do Rio de Janeiro. Nesse sentido, a Relatoria reforçou a importância da proposta de organizações do Rio de Janeiro de que fosse composto um “conselho da cidade” para monitorar e influenciar esse que é um dos principais projetos de intervenção pública em comunidades populares do país. Sem instâncias de controle social e participação, devidamente institucionalizadas e com poder efetivo, será difícil alterar a relação historicamente viciada e clientelista que marca a relação do Estado com essas comunidades. Comunidades que, apesar dos grandes desafios, possuem uma organização, um dinamismo, uma criatividade imensa na forma como organizam suas manifestações culturais, suas redes de solidariedade, suas ações políticas. Complexo do Alemão: nove meses depois Em agosto de 2008, a equipe da Relatoria entregou em audiência o relatório às autoridades do Estado e voltou a visitar as escolas do Complexo do Alemão. Para a secretária de Estado de Educação Teresa Porto e o secretário de Estado de Segurança Pública José Mariano Beltrame, há concordância com a necessidade de investimento em serviços sociais. “Nós, da polícia, só enxugamos gelo. Hoje, tenho consciência que precisamos de um grande investimento social nessas áreas para combater o crime organizado”. O secretário informou que havia acolhido a recomendação de desenvolver um conjunto de orientações às escolas sobre segurança pública. E avaliou que o PAC está contribuindo para articular as ações entre os governos estadual, federal e municipal. A secretária Teresa Porto informou que a situação nas escolas estaduais é bem diferente da encontrada pela Relatoria ao final de 2007. Com relação às recomendações da Relatoria, disse que novos docentes haviam sido contratados e que a Secretaria está construindo um sistema de informação que permitirá acompanhar de forma mais detalhada a situação de cada escola. A secretária municipal de Educação Sonia Mograbi não recebeu a equipe da Relatoria para entrega do relatório. Nas comunidades e escolas Ao visitar a comunidade e conversar com moradores e educadores, em agosto de 2008, a constatação foi a que os confrontos entre policiais e narcotraficantes diminuíram no Complexo do Alemão. Alguns acreditam que isso decorre das obras do PAC, outros que é resultado de algum “pacto” em um ano eleitoral, outros acharam que tudo poderia recomeçar a qualquer momento. Nas escolas da rede municipal Leonor Coelho e Monsenhor da Rocha, localizadas na Vila Cruzeiro, o clima é de temor e expectativa. Desde que uma ocupação policial teve início na segunda semana de agosto de 2008 com 300 policiais, motivada – segundo as autoridades – pelo caso do sequestro de um grupo de chineses e das denúncias de impedimento da presença de políticos e jornalistas na área, grande parte das crianças e adolescentes deixou de ir à escola.


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47 A escola Monsenhor da Rocha informou que na segunda quinzena de agosto quase 40% faltaram às aulas. Na escola Leonor, na primeira semana da ocupação, a ausência chegou aos 90% e ficou em mais de 50% a partir da segunda semana. “Aqui a gente vive sempre um sobe e desce. As famílias estão segurando as crianças em casa com medo do que virá”, afirma a diretora Vera Caldas. No Ciep Theóphilo de Souza Pinto, localizado na Vila Brasília, o vice-diretor Kleber Coelho observa que muito pouco mudou do ano passado para cá. “Continuamos com a falta de professores. Temos capacidade para atender 4 mil estudantes e estamos com pouco mais de mil”. Como retrocesso, destaca que não mais consegue fornecer o café da manhã para as crianças do período integral. “O dinheiro não dá, fizemos de tudo. E sabemos que essa alimentação é fundamental para a maioria”. Mais uma vez, a direção pede o apoio da Relatoria para que o consultório odontológico da escola – devidamente equipado – volte a funcionar. “Já não sabemos mais para quem pedir. São tantas as promessas de políticos e tanta a demanda por atendimento. É um absurdo”. A educação no sistema prisional brasileiro As pessoas encarceradas, assim como todos os demais seres humanos, têm o direito humano à educação. Esse direito está previsto nas normas internacionais e na legislação nacional. Foi para verificar a garantia do direito à educação nas prisões brasileiras que a Relatoria de Educação realizou missão entre outubro de 2008 e março de 2009. O trabalho se vincula à missão desenvolvida anteriormente pela ex-relatora de Educação, professora Edla Soares, e por sua assessora, professora Ednar Cavalcanti, em 2006, sobre a situação da educação em unidades prisionais femininas do Estado de Pernambuco. A missão foi realizada nos Estados de Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, São Paulo e o Distrito Federal. Nesses Estados, visitou unidades prisionais, entrevistou a direção das unidades, profissionais de educação, pessoas encarceradas, ativistas de sociedade civil e agentes penitenciários, participou de eventos sobre o tema da educação no sistema prisional, pesquisou documentos oficiais e estudos que tratam do assunto. Além de verificar a situação da educação no sistema prisional brasileiro, a missão buscou contribuir para o debate público e somou vozes pela apreciação urgente da proposta de Diretrizes Nacionais de Educação no Sistema Prisional pelo governo federal e dos projetos de lei da remição da pena por estudo pelo Congresso Nacional. Dados do Ministério da Justiça apontavam que em 2004 cerca de 70% da população encarcerada no país não tinham o ensino fundamental completo e 8% eram analfabetos. Do total de pessoas privadas de liberdade, mais de 60% eram jovens entre 18 e 30 anos e somente 18% tinham acesso a alguma atividade educativa. Em 2008, segundo informações do MEC, entre 18 e 20% da população carcerária teve acesso ao atendimento educacional. No conjunto das matrículas efetuadas no sistema formal de educação dentro das unidades prisionais verifica-se que dentre os analfabetos(as) foram 45% , mas dentre os que tinham ensino fundamental incompleto eram apenas 12% e entre os que tinham ensino médio incompleto só 6% [2]. Quando ofertada, a educação formal é de responsabilidade das secretarias estaduais de educação ou realizadas por meio de convênios com secretarias municipais, organizações não governamentais ou com Sistema S. Em São Paulo, a Secretaria Estadual de Educação não responde pela educação no sistema prisional, sendo essa assumida pela Funap – Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel de Amparo ao Preso, instituição vinculada ao governo do Estado de São Paulo.

[2] A Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação solicitou outros dados atualizados sobre a situação da educação no sistema prisional ao governo federal que informou estar em fase de análise de informações resultantes do Infopen e do Censo Escolar. Segundo o MEC, foram identificadas no início de 2009 inconsistências e contradições entre essas duas bases de dados que estão sendo apuradas.


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48 Informações e análises de diversas fontes apontam a profunda precariedade do atendimento educacional no sistema prisional brasileiro, que enfrenta graves problemas de acesso e de qualidade marcados pela falta de profissionais de educação, projeto pedagógico, infraestrutura, formação continuada, materiais didáticos e de apoio; descontinuidade; resistências de agentes e direções de unidades prisionais; desarticulação entre organismos do Estado, falta de planejamento e políticas de Estado, baixo investimento financeiro, inexistência de diagnósticos precisos, entre outros. Mulheres encarceradas e a educação infantil Das mulheres encarceradas, a maioria é jovem: 17,6% têm entre 18 e 24 anos, 16,1% entre 25 e 29 anos, 12,5% entre 30 e 34 anos e 13,4% entre 35 e 45 anos, segundo dados do Sistema de Informações Penitenciárias – Infopen, divulgados em 2007. Do total de presas, 3,2% são analfabetas; 9,8% têm o ensino fundamental completo; 6,3% o ensino médio e 0,5% o ensino superior. Da onde se deduz que quase 80% das mulheres não têm o ensino fundamental completo. Segundo estudo realizado pela pesquisadora Rosângela Peixoto Santa Rita, divulgado em 2007, a situação das crianças que permanecem com suas mães encarceradas é extremamente precária. Cerca de 60% das unidades permitem somente que a criança permaneça com a mãe até os seis meses de idade. No restante das unidades, há crianças até a idade de seis anos. Somente 18,9% delas têm acesso a creches ou pré-escola, que oferecem em sua maioria um atendimento com problemas de qualidade. Em maio de 2009, foi aprovado pelo Congresso Nacional o projeto de lei 335, de 1995, de autoria da deputada Fátima Pelaes. O projeto aborda, entre outros pontos, o direito à educação infantil das crianças filhas de mulheres encarceradas até completarem os sete anos. Ação governamental: o projeto Educando para a Liberdade e o Pronasci Em resposta à fragilidade do atendimento educacional nas unidades prisionais, no segundo semestre de 2005, os Ministérios da Justiça e da Educação iniciaram articulação de suas ações. Desse processo, nasceu o projeto Educando para Liberdade, desenvolvido em parceria com a Unesco e com recursos do governo japonês. Em 2008, segundo informações do MEC, o projeto se transformou em estratégia da política de jovens e adultos vinculada ao PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação por meio dos Planos de Ação Articulada –PARPrisionais. Além da expansão da oferta, o projeto Educando para a Liberdade assumiu como objetivo construir as bases de uma política nacional de educação no sistema prisional brasileiro. Para isso, em julho 2006, ocorreu, em Brasília, o Seminário nacional pela educação nas prisões: significados e proposições. No evento, foi elaborada a proposta de Diretrizes Nacionais para a Educação no Sistema Prisional, estruturada em três eixos: gestão, articulação e mobilização; formação e valorização dos profissionais envolvidos na oferta; aspectos pedagógicos. Depois de mais de dois anos de espera, as Diretrizes foram aprovadas no Conselho Nacional de Políticas Criminal e Penitenciária e encaminhadas em março de 2009 para apreciação do Conselho Nacional de Educação. É importante registrar que, a partir de 2006, entidades da sociedade civil fizeram pressão por meio de abaixoassinados e cartas para o Ministério da Justiça pela agilização da aprovação das Diretrizes Nacionais e que desde 2005 há um importante esforço de constituição de uma rede nacional de organizações comprometidas com a educação nas prisões.


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49 Em 2007, o governo federal apresentou ao Congresso Nacional proposta de lei do Executivo sobre a matéria, como uma das 94 ações previstas no Pronasci – Programa Nacional de Segurança com Cidadania. A proposta veio se somar aos outros oito projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional sobre o assunto (Silva, 2009). Atualmente, a remição é garantida em alguns Estados brasileiros, dependendo do entendimento dos juízes e juízas locais[3]. Além da remição, a educação no sistema prisional consta nas ações do Pronasci por meio do investimento em formação dos agentes prisionais, do apoio à construção de novas unidades prisionais com módulos de saúde e de educação (sala de aula, laboratório de informática e biblioteca) e da realização de uma pesquisa nacional sobre a situação da oferta de educação no sistema prisional, a ser desenvolvida por meio de convênio com a OEI – Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura. A pesquisa deve ser iniciada ainda em 2009. PARECER DA RELATORIA Partindo do reconhecimento da indivisibilidade dos direitos humanos, não é possível tecer considerações e recomendações sobre o direito humano à educação nas prisões brasileiras sem relacioná-lo ao contexto do sistema prisional. Dessa forma, no Relatório sobre a missão, foi explicitado o posicionamento da Relatoria com relação ao que se compreendeu e observou sobre tal sistema. Ao mesmo tempo em que destaca a obrigação do Estado brasileiro de combater efetivamente todas as formas de impunidade de crimes cometidos contra a sociedade e contra o Estado, a Relatoria se soma às vozes daqueles e daquelas que questionam profundamente o modelo de punição centrado predominantemente na ampliação do confinamento de seres humanos em unidades prisionais como resposta não somente ao crescimento do crime organizado no Brasil e no mundo, mas ao aumento dos conflitos sociais e interpessoais decorrentes das desigualdades (econômicas, étnico-raciais, regionais, de gênero, de orientação sexual, etárias, etc.) e da falta de acesso a direitos básicos. Esse entendimento decorre das seguintes observações: A grande maioria das unidades prisionais brasileiras enfrenta problemas crônicos de superlotação, oferecendo condições degradantes e indignas aos presos e presas. Tal situação fere o previsto na Convenção Internacional (1984) e no Protocolo (2002) Facultativo contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes; a Resolução da Assembleia Geral da ONU que estabelece o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão (1988); a Lei de Execução Penal Brasileira (1984); a Resolução n. 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, quanto às regras mínimas para o tratamento de presos no Brasil (e a resolução da Assembleia Geral da ONU de 1990), entre outros marcos legais nacionais e internacionais. A maior parte das unidades prisionais se constitui em espaços de vivências e de aprendizagens negativas e de múltiplas e contínuas violações dos direitos humanos de pessoas encarceradas com relação à saúde, alimentação, assistência jurídica, garantia da integridade física e mental, educação, comunicação com familiares, acesso à documentação, entre outras. O sistema de justiça não dá conta do crescimento acelerado de prisões: as portas de entrada são bem maiores do que as portas de saída. Tal situação se traduz no grande número de presos provisórios (quase 50% das pessoas presas no país) e de encarcerados com penas já cumpridas ou sem acesso a benefícios previstos na legislação, o que caracteriza violação de direitos.

[3] Como já abordado, a Súmula não-vinculativa 341 do STJ, de junho de 2006, recomenda a remição da pena por estudo, tendo se constituído em uma importante conquista na luta pelo direito à educação nas prisões. Porém, segundo depoimentos à Relatora Nacional, muitos juízes a desconhecem ou afirmam ter outro entendimento da matéria, por isso a importância de que a remição se transforme em lei.


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50 Destaca-se também o número extremamente limitado de visitas de juizes(as) e promotores(as) de execução penal nas unidades prisionais, além de uma concepção predominante, entre muitos desses servidores públicos, que privilegia o confinamento a outras alternativas punitivas. É assustador constatarmos que crimes como roubos de cestas básicas, de galinhas e de outros gêneros alimentícios para suprir necessidades familiares, como alguns casos que encontramos em nossas visitas, ainda são motivos para se manter pessoas nas prisões por mais de ano. O número de defensores e defensoras públicas é insuficiente diante da gigantesca demanda. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional – Depen, em 2008 foi a primeira vez que o número de cumpridores de penas e medidas alternativas (498.729) ultrapassou o número de pessoas presas (439.737). Um avanço importante que precisa ser reconhecido e se deve ao trabalho do Ministério da Justiça e da Magistratura. Mas um número superior a 80 mil pessoas segue dentro das prisões por crimes que poderiam ser punidos por penas e medidas alternativas. A ampliação do encarceramento não é seguido do crescimento do número de agentes penitenciários. Grande parte das unidades prisionais carece de número adequado de agentes, sobrecarregando os profissionais existentes e tensionando ainda mais o ambiente prisional, potencializando a ocorrência de abusos de poder, arbitrariedades diversas e conflitos violentos. Encontramos unidades em que dois agentes eram responsáveis pela segurança de pavilhões com quinhentos detentos cada. O predomínio de população jovem, negra (parda e preta, segundo o IBGE), de baixa escolaridade e de origem popular nas unidades prisionais. População que, em sua maioria, apresenta trajetórias marcadas pela falta de acesso a direitos básicos como a alimentação, saúde, educação, trabalho, segurança, entre outros. Grande parte dessas pessoas, antes de ser presa, estava desempregada ou vinculada ao subemprego. Do total de pessoas presas no Brasil, as mulheres representavam, em 2002, 3%, dobrando para 6% em 2007. O crescimento acelerado do encarceramento feminino decorre do maior envolvimento das mulheres com o tráfico de drogas, especificamente como “aviõezinhos”. É necessário buscar alternativas punitivas e de assistência social às políticas antidrogas defendidas por determinados governos e organismos internacionais que postulam a ampliação dos anos de prisão. Ainda sobre as prisões destinadas às mulheres, observa-se em muitas delas a inadequação das instalações, a falta de acesso a medicamentos e a produtos básicos de higiene pessoal, a falta de espaços de lazer e de espaços para convivência com filhos e filhas, entre outros problemas que reafirmam as desigualdades de gênero também no ambiente prisional. Destaque ao uso de contêineres metálicos para confinamento de mulheres na unidade feminina de Belém, na qual a temperatura interna em dias de verão ultrapassa os 50 graus; o número excessivo de presas por celas na unidade de Recife, o que leva as encarceradas a se revezarem à noite para dormirem no chão e o grande consumo de depressivos e remédios para dormir na unidade de Porto Alegre. Apesar dos avanços propiciados pelo aprimoramento do Infopen, faltam dados atualizados, informações sistematizadas e análises sobre a realidade dos Estados e do sistema prisional brasileiro como um todo e, especificamente, da situação educacional nas unidades prisionais de todos os Estados.


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51 O direito à educação como privilégio Por meio da missão da Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação, foi constatado que: A educação para pessoas encarceradas ainda é vista como um “privilégio” pelo sistema prisional. A educação ainda é algo estranho ao sistema prisional. Muitos professores e professoras afirmam se sentir “estrangeiros” nas unidades e percebem a unidade prisional como um ambiente hostil ao trabalho educacional. A educação se constitui, muitas vezes, em “moeda de troca” entre, de um lado, gestores e agentes prisionais e, do outro, encarcerados, visando a manutenção da ordem disciplinar. Há um conflito cotidiano entre a garantia do direito à educação e o modelo vigente de prisão, marcado pela superlotação, por violações múltiplas e cotidianas de direitos e pelo superdimensionamento da segurança e de medidas disciplinares. Quanto ao atendimento: O atendimento educacional nas unidades prisionais em sua maior parte é descontínuo e atropelado pelas dinâmicas e lógicas da segurança. O atendimento educacional é interrompido quando circulam boatos sobre a possibilidade de motins; na ocasião de revistas (blitz); como castigo ao conjunto dos presos e presas que integram uma unidade na qual ocorreu uma rebelião, ficando à mercê do entendimento e da boa vontade de direções e agentes penitenciários, etc. O atendimento educacional, quando existente, é muito inferior à demanda pelo acesso à educação. As visitas às unidades e os depoimentos coletados apontam a existência de listas de espera extensas e de um grande interesse pelo acesso à educação por parte das pessoas encarceradas. O atendimento educacional, quando existente, em sua maior parte sofre de graves problemas de qualidade, apresentando jornadas reduzidas, falta de projeto pedagógico, materiais e infraestrutura inadequados e falta de profissionais de educação capazes de responder às necessidades educacionais dos encarcerados. Quanto à gestão: Há uma grande diversidade de situações no atendimento educacional entre os Estados brasileiros e entre unidades prisionais de um mesmo Estado. O atendimento educacional, quando existente, é garantido por meio: 1) de instituições ou estruturas vinculados aos próprios órgãos de segurança pública; 2) das secretarias estaduais de educação; 3) das secretarias municipais de educação (principalmente no caso de unidades do interior) ou 4) de organizações da sociedade civil conveniadas. Existem iniciativas e experiências educacionais importantes em algumas unidades, mas faltam políticas estaduais de educação no sistema prisional (com metas de ampliação do acesso e melhoria da qualidade educacional, projeto pedagógico, financiamento, prazo, responsabilidades, etc.). Graves problemas de articulação e coordenação entre secretarias de educação e órgãos responsáveis pela administração penitenciária, resultando, muitas vezes, em acirradas disputas. O acesso aos recursos do Fundeb – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação para a educação prisional ainda é pequeno. Muitos gestores do sistema prisional e de educação prisional nas secretarias de educação desconheciam a possibilidade de acesso por meio dos sistemas de ensino municipal e estadual.


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52 Quanto à situação dos educadores e educadoras: A diversidade da condição dos(das) educadores(as): há profissionais de educação concursados das redes de educação; há profissionais temporários vinculados às redes de ensino e há o atendimento por parte de estagiários de pedagogia e monitores presos (caso de São Paulo). Os depoimentos apontam que predominam relações precárias de trabalho. Existem redes de ensino que garantem gratificação salarial aos profissionais que atuam no sistema prisional, a exemplo do Distrito Federal, do Rio de Janeiro e do Paraná. Grande parte dos educadores e educadoras que atuam no sistema prisional acabam sendo cotidianamente testemunhas de violações de direitos cometidas contra os presos e presas. O drama vivido pode ser sintetizado em duas falas de professores que deram depoimentos a esta Relatoria: “Eu não quero ser omissa, mas eu tenho medo e não sei o que fazer. Isso me atormenta”; “Se nós denunciássemos tudo o que vemos na prisão, daria uma CPI por dia”. Em muitas unidades, os professores e professoras enfrentam a desconfiança dos agentes e são submetidos a forte controle por parte deles e das direções. Os conflitos em muitas unidades são frequentes. Como repreensão, há agentes que demoram a autorizar a entrada e saída dos profissionais de educação e interferem na dinâmica de sala de aula. O lugar da afetividade na relação professor-aluno também é um ponto de conflito. Um aperto de mão ou um toque no ombro de um preso, por parte de uma professora, pode ser lido pelos agentes como a manifestação de interesse sexual. Professoras do Pará foram afastadas das salas de aulas em decorrência de denúncias dessa natureza[4]. A educação entre pares, desenvolvida pela Funap em São Paulo, ao mesmo tempo em que é uma experiência que valoriza o conhecimento das pessoas encarceradas e promove relações de solidariedade, também faz parte do quadro de precarização das condições do atendimento educacional do Estado, ainda não assumido como política de educação pela Secretaria Estadual de Educação. Quanto à infraestrutura e aos materiais: Problemas generalizados de infraestrutura (faltam salas de aula na maior parte das unidades e os espaços existentes são muitas vezes adaptações de corredores ou de locais totalmente inadequados). Predominam espaços úmidos com iluminação fraca e limitada ventilação. Falta de cadernos, canetas, lápis, materiais didáticos e de apoio. Muitas vezes os materiais existentes são totalmente desatualizados. Na maioria das unidades visitadas, não se utiliza a escrita de cartas e bilhetes, muito comum nas prisões, como estratégia de letramento dos presos e presas. O acesso ao papel é extremamente controlado. As bibliotecas, quando existentes, possuem acervos pobres ou problemas de acesso (encontramos acervos de livros novos fechados em salas há mais de um ano). São poucas as unidades que apresentam algum tipo de estratégia de estímulo e mediação de leitura. Há unidades que castigam o preso/presa pela perda de um livro da biblioteca, utilizando regras disciplinares de segurança, como a ida para a “solitária”. Faltam exames oftalmológicos periódicos e acesso a óculos, o que compromete os processos de aprendizagem. Os computadores, quando existentes, sofrem da falta de manutenção, são de difícil acesso e em número insuficiente à demanda.

[4] No caso efetivo de envolvimento amoroso entre presos(as) e educadores(as), e não como objeto de calúnia e desqualificação de profissionais de educação, os professores e professoras do Rio de Janeiro estabeleceram em seu código de ética que a educadora ou o educador deve pedir transferência para outra escola e solicitar o direito à visita ao preso ou presa com o qual inicia um relacionamento amoroso.


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53 Quanto aos procedimentos, comunicação e gestão interna: A fragilidade do acompanhamento da trajetória escolar dos encarcerados entre unidades prisionais (transferências) e dos/das egressos/as do sistema prisional. Há graves problemas de fluxo de comunicação nas unidades, entre unidades e com os órgãos responsáveis pela execução penal (o que prejudica a obtenção de benefícios). Faltam normas técnicas que regulem o fluxo e os procedimentos. Como a demanda por educação é maior do que as possibilidades reais do acesso, realiza-se a triagem com base nos chamados critérios de “bom comportamento”, muitas vezes vagos, ambíguos ou parciais. Dessa forma, o acesso à educação é visto como um prêmio. Como no acesso ao direito ao trabalho nas prisões, identificamos em algumas situações a existência de critérios raciais em detrimento de pessoas negras. Faltam procedimentos pedagógicos para avaliar o nível de escolaridade efetivo dos presos e presas. Por meio dos depoimentos, identifica-se um gigantesco número de “analfabetos funcionais” (já apontado pela pesquisa do Indicador de Analfabetismo Funcional – INAF dos presídios). Há falta de espaços de encontro, diálogo e de qualquer ação articulada entre plantões de agentes penitenciários e desses com outros profissionais que atuam nas unidades como educadores, profissionais de saúde, assistentes sociais. Impera o isolamento interno dos agentes e das equipes especializadas. Quanto às resistências internas à educação: Conflitos entre horário de trabalho e horário de estudo, o que restringe a possibilidade de conciliação. Há empresas que exploram a mão de obra de detentos e que criam obstáculos para o acesso à educação. É importante registrar que as experiências de trabalho, observadas pela Relatoria, em sua maioria, constituem-se na realização de atividades repetitivas, com pagamentos extremamente baixos e que não agregam conhecimentos aos detentos. Ainda assim, muitas vezes as empresas são tratadas como aquelas que estão fazendo “um grande favor à sociedade” por trabalharem com pessoas encarceradas. É necessário abordar o acesso ao trabalho como direito humano ao trabalho e regrá-lo de forma mais precisa. Em todas as unidades visitadas, foi identificada a resistência, que chega muitas vezes ao boicote, por parte dos/das agentes penitenciários à liberação de presos para as aulas. Em algumas unidades, observamos a existência de revistas (blitz) regulares por agentes e policiais militares que destroem materiais e trabalhos escolares. Como já citado, há casos de agentes que criam problemas para a entrada e saída de professores e geram constrangimentos e coação ao trabalho dos educadores e educadoras. A existência de uma mentalidade entre muitos agentes, diretores, juízes e promotores que entende o direito à educação como um privilégio aos presos e presas. Quanto à formação de agentes penitenciários e educadores: Grande parte dos agentes também apresenta trajetórias de vida marcadas pela falta de garantia de seus direitos educativos. Falta formação continuada de agentes (destacando seu papel de educadores) e número adequado de agentes que garanta a movimentação dos presos para os espaços escolares das unidades. A inexistência ou a realização de iniciativas pontuais de formação continuada específica para profissionais de educação relativa ao universo prisional e espaços de trabalho coletivo. Destaca-se a importância que o projeto Educando para a liberdade (implementado pelo governo federal em administrações estaduais com apoio da Unesco) exerceu no estímulo à formação desses profissionais. A importância da existência de agentes penitenciários de educação em algumas unidades, realizando trabalho de mediação entre a direção da unidade, os demais agentes penitenciários e os(as) profissionais de educação. Falta política de valorização profissional dos agentes penitenciários.


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54 Quanto à educação profissional, educação infantil e a educação física: A educação profissional nas unidades prisionais é restrita – em sua maior parte – a cursos de pequena duração e voltados para funções de baixa remuneração, não fazendo parte da política de educação profissional desenvolvida pelas Secretarias de Educação e/ou Secretarias de Ciência e Tecnologia e/ou Trabalho. Muitas vezes, entende-se que o treinamento para a realização de trabalhos internos à prisão ou para empresas privadas instaladas nas unidades constitui educação profissional. O direito à creche para as crianças de 0 a 3 anos inexiste, de fato, na maior parte das unidades femininas ou é entregue ao trabalho de voluntárias. Nos Estados em que os juízes permitem a permanência dos filhos para além do período da amamentação, as crianças ficam nas celas junto com as mães sem nenhum atendimento. O acesso à educação física é incipiente ou restrito a algumas unidades. Destaque para a experiência de professores de educação física e arte-educação do Pará. Quanto à transparência e ao controle social: A participação da sociedade civil é vista predominantemente na perspectiva filantrópica e religiosa. Os conselhos de comunidades têm pouco poder efetivo de monitoramento e de influência na rotina prisional. O tema da educação nas prisões é pouquíssimo abordado pelos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipal de Educação e pelos Conselhos Nacional e Estaduais de Política Criminal e Penitenciária. O Infopen é um avanço, mas é necessária a realização do censo penitenciário, que mostre a trajetória educacional do encarcerado no sistema, entre outras informações.

RECOMENDAÇÕES Diante desse quadro, a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação apresenta as seguintes recomendações. Adequação urgente da Lei de Execução Penal aos avanços previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e definição de metas no novo Plano Nacional de Educação, às Resoluções do Conselho Nacional de Educação, aos decretos, às convenções e tratados assinados pelo Brasil que atualizam e viabilizam os compromissos assumidos no país e em âmbito internacional com a garantia do direito humano à educação, assegurando de imediato o acesso dos encarcerados ao ensino fundamental e médio e à educação profissional, assim como o atendimento de crianças filhas de encarceradas à educação infantil. Aprovação das Diretrizes Nacionais de Educação no Sistema Prisional. As diretrizes foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Política Penitenciária em fevereiro de 2009 e encontram-se no Conselho Nacional de Educação aguardando apreciação. O documento define os referenciais para a construção de uma política nacional e de políticas estaduais de educação no sistema prisional. Aprovação da lei da remição da pena por estudo: tramitam no Congresso Nacional sete projetos de leis que tratam da remição da pena por estudo. É fundamental que haja um acordo urgente entre os parlamentares visando a priorização da matéria.


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55 Criação de planos estaduais de educação prisional: para que se supere um quadro marcado pelo improviso e precarização do atendimento educacional no sistema prisional é fundamental a construção de planos estaduais de educação nas prisões que estabeleçam metas de acesso e qualidade, responsabilidades, prazos e financiamento em um período de dez anos. Deve-se buscar a articulação desses planos com os planos de educação dos Estados e municípios. Atendimento educacional realizado por profissionais de educação contratados e vinculados aos sistemas de ensino: o atendimento educacional deve ser realizado por profissionais de educação contratados(as) e vinculados(as) aos sistemas de ensino. O trabalho de estagiários, de monitores presos e de organizações não governamentais deve ser complementar e articulado ao trabalho de profissionais de educação. Ampliação e melhoria dos espaços escolares com garantia de equipamentos e materiais didáticos e de apoio: aumento dos recursos destinados à ampliação e à adaptação de espaços prisionais para funções educacionais visando a existência de um parque escolar nas unidades prisionais com salas de aula, sala de professores, sala de direção escolar, ventilação, iluminação, sanitários, mobiliário, biblioteca, laboratório, sala de informática, auditório e quadra poliesportiva. Os materiais escolares (livros, cadernos, lápis, caneta, borracha) devem ser garantidos e repostos periodicamente. Criação de escolas como unidades vinculadoras: devem ser criadas escolas dentro das unidades prisionais com autonomia pedagógica e financeira, com equipe, coordenação pedagógica e direção. O certificado de conclusão de curso, emitido por essas escolas, deve preservar o encarcerado e a encarcerada da estigmatização por ter estudado em uma escola vinculada à unidade prisional. Financiamento adequado: especial atenção deve ser dada ao acesso dos recursos do Fundeb. Aprimoramento dos mecanismos de controle social e de transparência de informação: a educação nas prisões deve ser objeto de avaliação e monitoramento dos Conselhos Nacional e Estaduais de Política Criminal e Penitenciária e dos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação. Especial atenção deve ser dada ao fortalecimento dos conselhos de comunidade (previstos na lei de execução penal) e à criação de ouvidorias. Além dessas recomendações que entendemos ter um caráter estruturador das condições para a garantia do direito humano à educação no sistema prisional, foram propostas outras quatorze recomendações que tratam do fluxo de comunicação nas unidades, da criação de procedimentos para denúncias de violação de direitos dos encarceradas e encarcerados testemunhadas por educadores; da articulação com a política de saúde: direito à creche e acesso ao ensino superior; da inclusão digital, implementação da lei 10.639/2003 [5] nas unidades prisionais; do estímulo à leitura; entre outras.

[5] A lei 10.639/2003 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Sua conquista é resultado da luta histórica do movimento negro brasileiro.


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56 CONCLUSÃO Além das duas principais missões, a Relatoria Nacional realizou ações de incidência, de monitoramento, pedidos de esclarecimento a autoridades públicas e elaboração de nota técnica sobre outras problemáticas vinculadas à garantia do direito humano à educação, recebidas por meio de denúncias, entre elas: O caso de demissão de professoras homoafetivas da rede municipal de Campo Grande – MS; O fechamento de escolas do povo indígena Pankará em Pernambuco. As dificuldades enfrentadas no acesso a vagas escolares por parte de imigrantes indocumentados em São Paulo, em especial, por famílias bolivianas, peruanas e africanas. A expulsão de 60 alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Tarso de Castro pela secretaria de educação do município de Barueri – SP, a partir da alegação de indisciplina. O uso indevido de verba pública por direção de escola pública e problemas na efetivação da matrícula de crianças em escolas da cidade de São Paulo. Uma tentativa de estupro no município de Embu – SP. A Relatoria também participou intensamente no processo de preparação e no desenvolvimento no Encontro da Sociedade Civil das Américas para Avaliação de Durban/2001, ocorrido em junho de 2008, em Brasília. A Conferência de Durban –contra o racismo, a xenofobia e intolerâncias correlatas – foi realizada em 2001, na África do Sul. Em decorrência das problemáticas complexas e polêmicas que aborda (racismo, conflito Palestina-Israel, imigração, etc.), é uma Conferência que vem sofrendo grande resistência por parte de governos de vários países. Contribuímos com outras organizações para a elaboração de um texto sobre Durban e o direito humano à educação no Brasil que foi entregue na conferência dos governos das Américas sobre Durban, realizada também em junho de 2008, em Brasília. Avaliação do mandato De maneira geral, as missões possibilitaram ou fortaleceram a relação entre os diferentes grupos e organizações da sociedade civil envolvidos nas problemáticas abordadas. Na missão do Complexo do Alemão, foi constituído um grupo apoiador da missão composto por entidades comunitárias do local e por outras organizações da sociedade civil carioca. Tal articulação, liderada pela organização comunitária Raízes em Movimento, exerceu um papel fundamental na definição da agenda da missão, no acesso a informações e no contato com vários setores da comunidade. Com relação ao sistema prisional, assumimos como interlocutores a recém-criada Rede de Educação nas Prisões, articulação de sociedade civil que reúne ativistas de direitos humanos, de educação de jovens e adultos, pesquisadores(as) e professores(as) do sistema prisional. A Rede contribui com muitas informações e contatos. A Relatoria também buscou tornar visível esse esforço de sociedade civil em vários Estados, fazendo a ponte entre grupos locais e a Rede. Sobre as outras temáticas abordadas ao longo do mandato, a atuação sempre foi a de reconhecer e dar visibilidade aos sujeitos políticos de cada campo. Conforme a realidade estadual, estabelecemos uma relação de parceria com o Ministério Público Estadual, com o Ministério Público Federal e com o Legislativo Estadual.


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57 Destaque merece ser dado aos trabalhos desenvolvidos com o Ministério Público de Pernambuco e com a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que resultaram em audiências públicas com forte presença de autoridades e sociedade civil, o que permitiu a confrontação de ideias, o questionamento de competências e a construção de propostas. As missões realizadas contaram com o interesse da mídia nos temas tratados, o que resultou em boa cobertura das missões, sobretudo nos meios de comunicação locais. Um dos resultados da missão ao Complexo do Alemão foi a revisão do conceito de situação de emergência, em especial, a discussão realizada no interior do Unicef/Brasil e a possibilidade aberta pelo Ministério da Justiça de apoiar a adaptação dos Requisitos Mínimos para a Garantia do Direito à Educação em regiões de violência armada, como parte das condicionalidades para o repasse de recursos do Pronasci aos Estados. Com relação ao sistema prisional, audiências nos Estados e uma audiência pública na Câmara Federal chamaram a atenção para o problema. Uma audiência pública no Senado, para fechamento de um termo de compromisso entre órgãos governamentais responsáveis pela questão, e a apresentação do relatório para o Conselho Nacional de Educação – CNE estão previstas para os próximos meses visando acelerar o processo de definição das Diretrizes Nacionais para Educação nas Prisões e a apreciação dos projetos de lei que tratam da remição da pena por estudo pelo Congresso Nacional. O trabalho da Relatoria, com relação à questão prisional, foi citado na justificativa do texto de aprovação, pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, do projeto de lei da Câmara nº 95, de 2002, que modifica a Lei de Execução Penal e institui a obrigatoriedade da oferta do ensino médio nas penitenciárias brasileiras. A matéria seguirá para votação no plenário do Senado. Destacamos também articulações importantes realizadas por esta Relatoria com as representações do Sistema ONU, em especial com o Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef-Brasil, que apoiou e participou ativamente de todas as ações da missão no Complexo do Alemão, e com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – Unesco, que apoiou todas as missões da Relatoria e participou de visitas às unidades prisionais. Outro ponto importante no mandato foi o fortalecimento da relação com o relator da ONU para Educação, o costa-riquenho Vernor Munhoz, que encaminhou cartas solicitando posicionamentos do governo brasileiro sobre questões apontadas pela Relatoria Brasileira e manifestou publicamente apoio inúmeras vezes ao projeto relatores. Outro apoio fundamental foi o da Campanha Nacional para o Direito à Educação e de seus comitês locais, que contribuíram na divulgação e na organização de algumas ações, e da ONG Ação Educativa, que liberou parte do tempo de trabalho de Denise Carreira para o exercício da função de relatora, além de outros apoios. Os desafios e as dificuldades são muitos, tanto no que se refere às condições para o desenvolvimento do trabalho das Relatorias como, e principalmente, das complexidades e obstáculos envolvidos na luta pela garantia dos direitos humanos no Brasil. De maneira geral, outros passos dependem da capacidade de articulação da sociedade civil local, fator decisivo para o seguimento, controle social e pressão que “empurre” o poder público a cumprir as recomendações. Mesmo considerando esses desafios, a equipe da Relatoria acredita ter contribuído, por meio das visitas, das denúncias, das análises e das propostas concretas, para adensar o debate público, chamar a atenção a problemáticas “invisíveis” e fortalecer a atuação da sociedade civil brasileira em prol do direito humano à educação.



Marijane Lisboa Juliana Neves Barros Marijane Lisboa: Relatora Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Juliana Neves Barros: Assessora da Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil.



Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente

61 Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente O mandato da Relatoria para o Direito Humano ao Meio Ambiente no período 2007 a 2009 deparou-se com uma conjuntura de acirramento do modelo predatório de desenvolvimento, do qual o Programa de Aceleração do Crescimento Econômico –PAC, lançado em janeiro de 2007 pelo governo Lula, constitui o exemplo mais acabado. O PAC previu grandes obras de infraestrutura energética e hidroviária no país, retomando uma forma de integração ao mercado mundial no qual vem cabendo ao Brasil o papel de celeiro de matérias-primas para indústrias do mercado europeu, asiático e norte-americano, cuja produção requer grande quantidade de energia, terras aráveis e recursos hídricos. A intensificação desse modelo foi responsável pela expansão da fronteira agrícola para regiões que haviam permanecido até então relativamente protegidas e pelo uso extensivo e cada vez mais predatório dos bens naturais. A expansão também fez e faz proliferar os conflitos entre populações tradicionais e indígenas, que veem ameaçados os seus modos de vida, e os agentes dessas ameaças, empresas privadas e órgãos estatais. Por essa razão, o plano de atuação da Relatoria priorizou a investigação das violações de direitos decorrentes das grandes obras de infraestrutura ligadas ao PAC, em particular as hidrelétricas do Madeira e a transposição do rio São Francisco. Além disso, considerando outras questões centrais no debate nacional sobre desenvolvimento e direitos humanos ambientais, apontou para a necessidade de aprofundar a discussão sobre os prejuízos causados pela expansão de monoculturas da cana, do eucalipto e da soja, bem como o uso de sementes transgênicas e de agrotóxicos para a agricultura familiar, indígena e de outras populações tradicionais. Traduzindo as prioridades eleitas, a Relatoria realizou três missões investigativas: a primeira, no Estado de Rondônia, sobre o Complexo Madeira; a segunda, no Estado do Paraná, sobre o conflito envolvendo trabalhadores rurais sem-terra e a multinacional Syngenta, que resultou na morte de um trabalhador e um segurança no campo de experimentos transgênicos da empresa; a terceira, no Estado de Pernambuco, tratando da expulsão de comunidades tradicionais das ilhas Sirinhaém em decorrência da expansão da monocultura de cana e de crimes ambientais praticados pela Usina Trapiche. Foi ainda realizada uma visita ao Vale do Ribeira, entre Paraná e São Paulo, para levantamento preliminar das violações decorrentes do projeto da Usina Hidrelétrica – UHE Tijuco Alto. Além das missões sobre casos específicos, a Relatoria procurou monitorar o desdobramento de missões realizadas pelo mandato anterior, como foi o caso da transposição do rio São Francisco e o avanço da monocultora da soja, cana e eucalipto no Baixo Parnaíba, no Maranhão. Em outros conflitos, atuou na elaboração de notas públicas, adesão a manifestos e envio de ofícios a autoridades públicas do país a fim de solicitar providências para proteção de direitos fundamentais, como é o caso da ameaça de retrocesso no marco legal dos direitos das comunidades quilombolas, os processos de criminalização de defensores de direitos humanos e assassinato de lideranças indígenas. Além disso, fez-se presente em reuniões e seminários nacionais com o objetivo de discutir a questão ambiental e o modelo de desenvolvimento no Brasil, atuando em importantes espaços de debate da sociedade civil e entre sociedade civil e poder público, como o Seminário Nacional sobre Agrotóxicos, o Seminário da Plataforma Dhesca e o Fórum Social Mundial em Belém, entre outros. Nesse último, a relatora participou da oficina Monitoramento dos Dhesca no Brasil: seis anos de experiência das Relatorias Nacionais, bem como do seminário promovido pelo Processo de Articulação e Diálogo – PAD e parceiros sobre Impacto dos Grandes Projetos e as Violações dos Direitos Humanos, no qual relatou o caso das hidrelétricas do Madeira. A assessora da Relatoria participou também do seminário sobre o Aquífero Guarani no Mercosul, com o objetivo de promover um nivelamento das informações técnicas sobre o Aquífero e tratar da elaboração de uma política comum a respeito do uso das suas águas, visando o equilíbrio e preservação do mesmo.


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62 Em todos os conflitos acompanhados, a Relatoria encontrou um dos seus pontos fortes na legitimidade que lhe confere a percepção ainda bastante recente de que o acesso a um meio ambiente equilibrado deva ser encarado como uma questão de direitos humanos. É sempre uma surpresa, e não só para aqueles que violam os direitos humanos ambientais, mas inclusive para as próprias vítimas das violações, que os conflitos em que se veem envolvidos possam ser compreendidos como uma questão de direitos humanos. Não é um paradoxo, entretanto, que os desafios do trabalho desta Relatoria residam justamente nessa mesma “novidade”. A percepção clássica e errônea de que o meio ambiente se refere apenas à natureza ainda relativamente preservada impede vítimas de violações e seus agressores de entenderem que todo e qualquer ambiente em que nos encontramos e com o qual nos relacionamos, é “meio ambiente”. A complexidade das questões ambientais requereu que a Relatoria investigasse a atuação de diversos órgãos públicos, além daqueles estritamente responsáveis pela questão ambiental e em âmbito municipal, estadual e nacional, bem como Ministério Público Federal – MPF e Ministérios Públicos estaduais – MPE. A missão a Porto Velho, por exemplo, requereu visita a diversas secretarias estaduais e municipais, MPE e MPF e mais tarde viagem a Brasília para entrevista com autoridades federais como o Incra, Fundação Nacional do Índio – Funai, Ministério de Minas e Energia – MME, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, Ministério do Meio Ambiente – MMA. Grosso modo, dada a transversalidade do Direito Humano ao Meio Ambiente – DHMA e a indivisibilidade dos direitos, percebeu-se em cada conflito um conjunto de direitos humanos violados, fazendo com que a missão tivesse que abordar outros aspectos além daqueles estritamente ambientais. Boa parte das violações examinadas apresenta um padrão recorrente, no qual o polo violador é constituído por grandes empresas nacionais e transnacionais, assim como pelos diversos órgãos de governo. Do ponto de vista dos direitos inerentes a um Estado democrático, percebe-se em todos os conflitos a ausência de um debate público e informado a respeito dos grandes empreendimentos e políticas que afetam as populações. Os instrumentos de participação e instâncias compartilhadas de controle, como são os conselhos de meio ambiente, os comitês de bacia e as audiências públicas, e mesmo mecanismos legais como a exigência de consulta pública às comunidades tradicionais, são constantemente negligenciados. Os processos decisórios são atropelados e privilegiam interesses externos aos da população local, preponderando sempre as supostas vantagens econômicas de empreendimentos de mercado sobre graves danos sociais e ambientais, quase sempre de natureza irreversível. No que toca ao direito à informação ambiental, seja no caso das grandes obras de infraestrutura energética e hídrica, seja no avanço da agroindústria, não há informação qualificada, mas, sim, uma retórica de propaganda, que explora a ideia do “progresso para a região” e da “geração de empregos”, omitindo os impactos negativos. Em termos da atuação dos órgãos de controle e fiscalização ambiental, como é o caso do Ibama, percebe-se a total distorção da legislação de licenciamento ambiental, pois estudos de impacto incompletos e insatisfatórios vêm sendo aceitos para efeito da concessão de licenças, aceitando-se igualmente a postergação indefinida do cumprimento de eventuais condicionantes ambientais. Por outro lado, o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental – EIA/RIMA realizado por equipe contratada pelo empreendedor permanece como uma das mais sérias anomalias da legislação ambiental brasileira. No caso de dois grandes empreendimentos, como a transposição do rio São Francisco e o Complexo do Madeira, a atuação de órgãos como a Funai, que deveria avaliar o impacto em terras indígenas, foi tímida ou omissa, pouco ou nada interferindo na elaboração de termos de referência para os estudos e nas decisões finais referentes às obras. Na afetação das águas, a Bacia deixou de ser usada como unidade de referência, em que pese a legislação nacional e internacional de proteção das águas ordenar o contrário. Finalmente, os projetos têm sido retalhados em partes, visando a rápida concessão de licenças e a criação de fatos consumados.


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63 O padrão agrário e agrícola do país continua sendo fonte de conflitos violentos envolvendo trabalhadores rurais e o grande agronegócio. A criminalização das ocupações de terras e a tolerância com a atuação de milícias armadas no campo brasileiro, traduzidas emblematicamente na missão ao Estado do Paraná, revelam a faceta perversa e desigual do acesso ao sistema de justiça no Brasil. Mostram ainda a desproporcional correlação de forças entre poderosas transnacionais interessadas na produção transgênica de grãos para exportação, que recebem privilegiado tratamento jurídico-institucional no país, e os pequenos agricultores interessados na produção agroecológica de alimentos. No caso dos agrocombustíveis, a expansão dos canaviais para produção do etanol sob incentivo entusiástico do governo federal é responsável por sérios danos ambientais em função da utilização intensa de agrotóxicos, poluindo rios e mangues e expulsando comunidades tradicionais inteiras de seus territórios. Exemplo disso é a situação das 52 famílias expulsas das ilhas Sirinhaém, no Estado de Pernambuco, pela Usina Trapiche. Chama-nos a atenção nos diversos conflitos acompanhados como frequentemente os poderes públicos se desincumbem totalmente de mediar os processos de negociação entre empresas e populações afetadas. Não bastasse desconsiderar os mecanismos de participação popular para autorizar a implantação de empreendimentos, uma vez tomada a decisão, as autoridades públicas seguidamente deixam a cargo dos grupos privados o processo de abordagem das famílias a serem desalojadas por obras. Em vez de constituir uma etapa de interesse público, conduzida pelas autoridades, as negociações para a retirada de populações afetadas são levadas a cabo caso a caso, pelo empreendedor, normalmente acompanhadas de uma intensa violência psicológica. No caso da UHE Tijuco Alto, no Vale do Ribeira, mais de 60% das terras necessárias à implantação da barragem já foram compradas há algum tempo pelo Grupo Votorantim, atingindo vários posseiros e meeiros que simplesmente foram expulsos da terra, contribuindo para o aumento da miséria social no município de Ribeira. O mesmo se pode dizer do processo de pressão exercido sobre as famílias da Usina Trapiche. Em ambos os casos, quando provocados os poderes públicos, é recorrente a omissão, alegando-se que não têm nenhuma responsabilidade sobre eventuais acordos realizados. Constatamos que os violadores, quando não vinculados ao próprio Estado, são grupos que se beneficiam largamente de dinheiro público para atuar. São grupos contemplados com financiamento do BNDES, como é o Complexo Madeira em Rondônia; com perdão ou arrolamento de dividas, como é o caso de muitos dos grandes produtores rurais que produzem soja e milho transgênicos no país; muitas vezes esses grupos são grandes devedores da Previdência Social e violadores da legislação trabalhista, como é o caso de muitos usineiros no Estado de Pernambuco. Em contrapartida, são parcas as destinações orçamentárias para ações de desapropriação de terras, demarcação de territórios, incentivo à agricultura familiar, estruturação de equipes para exercer a fiscalização ambiental, entre outras políticas voltadas para a defesa de direitos socioambientais. Todas as violações denunciadas à Relatoria foram levadas ao conhecimento das autoridades públicas e sistematicamente monitoradas para aferir a adoção das medidas recomendadas. Os órgãos ambientais, porém, revelam-se reféns de outros órgãos estratégicos da política, como o Ministério de Minas e Energia, Integração Nacional e Ministério do Planejamento. O Judiciário, na maioria das vezes, trata com descaso a legislação ambiental sob o argumento do interesse público no desenvolvimento econômico, restringindo-se a discutir reparações ou compensações, recusando-se a considerar a hipótese de suspensão ou proibição de empreendimentos em virtude do princípio da precaução e dos danos graves ao meio ambiente e à população afetada. Lamentável, nesse sentido, foi a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal – STF no julgamento das várias ações civis públicas contra o projeto de transposição do rio São Francisco, proferindo entendimento que as falhas do EIA/RIMA e o não cumprimento de condicionantes não poderiam interromper o licenciamento ambiental nem prejudicar o desenvolvimento do país e que eventuais distorções poderiam ser corrigidas a qualquer tempo pela administração. O Legislativo tem se revelado de uma grande fragilidade na discussão ambiental, eximindo-se de seu papel constitucional de poder de deliberação sobre muitos empreendimentos,


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64 como é o caso de grandes obras que envolvem o uso de recursos hídricos em terras indígenas. Nesse quadro de omissão e negligência dos poderes públicos, o Ministério Público Federal se distingue por sua atuação em defesa dos direitos ambientais, produzindo notas técnicas e movendo ações jurídicas em várias oportunidades. O mesmo infelizmente não se pode dizer dos Ministérios Públicos Estaduais, que, com raras exceções, são em geral omissos e negligentes no que se refere às populações que têm os seus direitos ambientais violados. Essas são algumas das constatações gerais a que chegamos a partir dos vários conflitos ambientais acompanhados pela Relatoria direta ou indiretamente. Tanto as missões da Relatoria quanto as cartas e audiências solicitadas aos diversos órgãos dos poderes públicos obtiveram resultados positivos, embora não se deva esperar que a intervenção da Relatoria possa levar a uma eliminação definitiva das violações sofridas. O estancamento dessas violações dependerá de uma série de condicionantes ligadas aos processos locais de enfrentamento dos conflitos, como o grau de organização dos movimentos locais, o nível de abertura do Poder Público e os interesses e grupos econômicos envolvidos, entre outros. No geral, as missões obtiveram resultados imediatos como terem contribuído na interlocução com os órgãos públicos, pela realização de audiências públicas, entrega do relatório e emissão de recomendações às autoridades responsáveis; no fortalecimento de articulações de organizações não governamentais, movimentos e lideranças comunitárias, na medida em que a organização da visita e as audiências provocam a mobilização de diversos atores; na produção do relatório como ferramenta de denúncia também para os movimentos, que inclusive o utilizam em ações internacionais e no Judiciário para reparação de direitos, como foi o caso das usinas no Madeira. Como uma importante contribuição na divulgação e afirmação do direito humano ao meio ambiente, acumulando a experiência de mais de seis anos no acompanhamento de alguns conflitos emblemáticos no país, a Relatoria produziu uma cartilha que traz informações sobre os direitos garantidos na legislação nacional e internacional, os instrumentos de exigibilidade, orientação de como acionar órgãos públicos e articular-se com outras redes sociais, os principais problemas ambientais no país e desafios a serem enfrentados. A cartilha pretende ser um instrumento de formação e qualificação para ajudar a população brasileira na percepção das violações aos direitos humanos ambientais e na mobilização para lutar pela sua efetivação. DESAFIOS: NOVOS TEMAS De um ponto de vista temático, dois novos temas emergem como problemáticas importantes para o direito humano ambiental em nosso país: as catástrofes associadas às mudanças climáticas e os impactos de empreendimentos predatórios de empresas brasileiras em outros países. A maior frequência nos últimos tempos de catástrofes associadas às mudanças climáticas como enchentes, secas e marés altas, de um lado, gerando massas crescentes de refugiados ambientais, e, de outro, a assustadora incapacidade com que a comunidade internacional está reagindo às mudanças climáticas já em pleno curso exige que a perspectiva da justiça climática passe a ser elemento central tanto nas negociações internacionais como nas políticas nacionais, visando analisar os impactos sobre as populações carentes, assim como a adoção de medidas urgentes de adaptação, necessárias à sua proteção. Também é preciso participar mais ativamente do debate sobre os projetos de integração entre os países América Latina, bem como examinar a atuação das empresas brasileiras multinacionais em outros países, considerando seus impactos sociais e ambientais. Em países latino-americanos nos quais empresas brasileiras violam os direitos ambientais de povos indígenas e comunidades tradicionais há uma forte expectativa de que a sociedade civil brasileira investigue e questione a atuação dessas empresas.


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65 Repercussão externa A inexistência de Relatoria em Meio Ambiente no âmbito da Organização das Nações Unidas – ONU cria uma dificuldade especial para a Relatoria para o Direito Humano Ambiental da Plataforma Dhesca repercutir a sua atuação no âmbito internacional. É preciso encontrar maneiras de contornar essa dificuldade, quer intensificando o contato com a ONU, quer encontrando outras oportunidades e instâncias para divulgar os seus relatórios em outras entidades e agências internacionais voltadas para o desenvolvimento de países do Sul. Incidência sobre políticas públicas Os grandes avanços em termos de legislação ambiental obtidos paulatinamente desde a Constituição de 1988 estão sendo ameaçados por um esforço concentrado do Estado e do Mercado interessados em explorar de forma ainda mais predatória os recursos naturais. A “flexibilização” da legislação ambiental em curso no Legislativo ou em negociação entre o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Agricultura, de que a revisão do Código Florestal é apenas um exemplo, pode trazer um enorme retrocesso nesse aspecto. Além disso, é urgente empreender uma análise crítica e compreensiva das políticas públicas de meio ambiente e sua implementação, visando propor mudanças que garantam efetiva proteção ao direito humano ambiental. Em particular, se requer rever a legislação referente ao licenciamento ambiental e a introdução de instrumento legal que garanta a equidade ambiental no processo de tomada de decisões. É preciso, igualmente, estabelecer meios para um controle mais efetivo dos órgãos de fiscalização ambiental, bem como encontrar formas de sensibilizar e qualificar o Judiciário para a problemática ambiental. MISSÕES E CASOS ACOMPANHADOS Missão Complexo Madeira (RO) A Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente realizou entre os dias 15 e 19 de novembro de 2007 uma missão ao Estado de Rondônia para investigar as possíveis violações de direitos humanos decorrentes do projeto de implementação das Usinas Jirau e Santo Antonio no rio Madeira, integrantes do chamado Complexo Madeira, sob responsabilidade inicial do consórcio Furnas Centrais Elétricas e empresa Norberto Odebrecht. O Complexo Madeira é um dos grandes projetos do Executivo federal visando aumentar a oferta de energia nos próximos anos, prevendo o aproveitamento das águas do rio – maior afluente da Bacia Amazônica – para a construção de quatro usinas e uma hidrovia em direção ao Oceano Pacífico. Estimativas apontam para um custo total do empreendimento acima dos 21 bilhões de reais. O financiamento vem de um consórcio de bancos, entre eles o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES. Recheado de lacunas e contradições nos seus estudos de impacto ambiental, o licenciamento das obras do Madeira enfrenta grande resistência dos movimentos sociais brasileiros e bolivianos, que denunciam no projeto altíssimos custos sociais e ambientais. A obra, além de implicar no deslocamento forçado de milhares de comunidades ribeirinhas no Brasil e na Bolívia, compromete a qualidade da água, a cadeia alimentar dos peixes e induz à proliferação da malária. Na verdade, em que pese o discurso oficial de geração de empregos e desenvolvimento da região, a obra monumental efetivamente parece pretender o aumento da oferta de energia para indústrias energointensivas de mineração, siderurgia, celulose e cimento, quase todas exportadoras de suas commodities, e facilitar por meio das hidrovias o escoamento de outras matérias-primas como a soja e o gado.


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66 Durante a missão, a relatora esteve com populações ribeirinhas que poderão ser afetadas pelo empreendimento, como é o caso das comunidades de Santo Antonio, São Carlos, Brasileiro e Cai N'água, e com movimentos e organizações que assessoram povos indígenas da região; entrevistou uma delegação de camponeses e índios bolivianos, preocupados com a possibilidade de que as futuras represas venham a atingir suas terras e forçá-los a abandoná-las; e percorreu os bairros mais pobres da cidade de Porto Velho para avaliar os impactos socioeconômicos que poderiam resultar de um súbito inchaço da população local, em virtude da chegada de vagas de imigrantes contratados para a execução das obras. Reuniu-se também com autoridades públicas estaduais e municipais para esclarecer questões sobre o projeto. As informações colhidas e documentos apresentados trazem algumas questões de extrema relevância que preocupam a Relatoria e que configuram violações a tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, a exemplo da falta de consentimento das comunidades indígenas afetadas e a ameaça aos índios isolados na região. Além disso, verificou-se a total ausência de informação e participação por parte das comunidades ribeirinhas, graves riscos do empreendimento à saúde da população, com o aumento da contaminação por mercúrio e proliferação da malária; ameaça de extinção de várias espécies de peixes que garantem a subsistência dos ribeirinhos; inundação de terras e perda de áreas ocupadas pela agricultura familiar e agressões a vários bens arqueológicos que remontam à historia de ocupação da Amazônia e à origem dos grupos de língua tupi-guarani, ainda não pesquisados. No geral, os estudos de impacto ambiental apresentam inúmeras lacunas, sendo uma das mais graves o fato de desconsiderarem os impactos em outros Estados e países que compõem a Bacia do Madeira, como Bolívia e Peru. Dentre as recomendações dirigidas aos órgãos públicos, a Relatoria apontou em primeiro lugar a necessidade de imediata suspensão do empreendimento e a concomitante instauração de um amplo debate público a respeito das reais necessidades energéticas do país e de uma política energética ambientalmente sustentável. Para a tomada de decisões referentes à realização de obras, a Relatoria propõe a adoção de modelo de decisão multicriterial, que inclua outros critérios além daqueles referentes aos ganhos econômicos de curto prazo, como a preservação dos modos de vida tradicionais e do patrimônio ambiental, cultural, histórico e paisagístico e a consulta ampla visando o consentimento de grupos sociais que possam ser diretamente afetados. O relatório As violações de direitos humanos ambientais no Complexo Madeira foi entregue e discutido com autoridades do Ibama, do Incra, do Ministério de Minas e Energia e Funai. Todos os órgãos se comprometeram a examiná-lo e responder aos principais questionamentos colocados. O Incra, que admitiu não ter participado até então do processo de discussão governamental, queixou-se da falta de informações mais qualificadas sobre os impactos do projeto e comprometeu-se a realizar o levantamento das áreas federais que seriam inundadas, o número de ribeirinhos a serem atingidos e de participar mais ativamente das rodadas de discussão sobre os possíveis reassentamentos em outras áreas. O Ibama defendeu a legalidade do processo e a correção das audiências públicas realizadas, afirmando que estudos complementares foram feitos para a concessão da licença prévia e que todos os pontos pendentes são condicionantes a serem atendidas antes da concessão de licença de instalação. Em relação ao impacto sobre a população indígena e o patrimônio histórico, resguardou-se em manifestação favorável da própria Funai e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. A Funai, por sua vez, admitiu que deveria rever sua manifestação oficial no licenciamento uma vez que surgiram fatos novos, como indícios da presença de índios isolados na área de influência do empreendimento, os quais comprometem o projeto. O órgão afirmou que teria criado nova frente de identificação para índios isolados, cujos estudos deveriam levar cerca de dois anos e admitiu não ter participado de reuniões com comunidades indígenas nos termos que orientam a legislação internacional, para obtenção do consentimento prévio dessas


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67 comunidades. Esta Relatoria, no entanto, ao ter acesso posteriormente ao laudo antropológico elaborado à época para integrar os Estudos de Impacto Ambiental do Complexo, pôde constatar que tais indícios já aí constavam. O MME, reafirmando a importância estratégica do empreendimento para o país, manifestou a sua preocupação em acompanhar de perto o diálogo social e o processo de compensação e deslocamento dos atingidos, a fim de eliminar erros cometidos no passado, na construção de outras hidrelétricas, e prometeu examinar o relatório com atenção e enviar suas observações e críticas posteriormente. Desde então, organizações bolivianas integrantes do Fobomade – Fórum Boliviano de Meio Ambiente e Desenvolvimento ofereceram denúncia internacional contra o Brasil na OEA. O governo continua tocando o projeto, apesar das ilegalidades e violações denunciadas. Recentemente a Relatoria recebeu denúncia de que a população ribeirinha de São Domingos e Engenho Velho estaria sendo realocada por meio de negociação individual realizada pela empresa Terra Nova, contratada pelo consórcio responsável pela UHE Santo Antônio, ainda antes, portanto, que houvesse saído a licença de instalação. Solicitadas informações e providências ao Ministério de Minas e Energia, através da Coordenação Estratégica de Apoio Socioambiental, a Relatoria não teve retorno. Missão Syngenta (PR) Entre os dias 12 e 14 de março de 2008, as Relatorias para o Direito Humano ao Meio Ambiente e a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Alimentação e Terra Rural realizaram missão conjunta ao Estado do Paraná para averiguar denúncias de violação aos direitos humanos dos agricultores integrantes de movimentos sociais da Via Campesina, mobilizados em prol do direito à terra, da proteção de suas sementes crioulas contra a contaminação com sementes transgênicas e pela criação de um Centro de Agroecologia na área do centro de experimentos da empresa multinacional Syngenta, localizado em Santa Tereza do Oeste no Estado do Paraná. A área foi palco de um conflito entre trabalhadores rurais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST e equipe armada da NF Segurança, empresa privada de segurança, que resultou na morte de Valmir Mota e ferimento grave em outros cinco trabalhadores do MST e na morte de um agente da própria NF. Durante a missão, as Relatorias tomaram conhecimento de que a multinacional Syngenta vinha plantando milho transgênico na vizinhança do Parque Nacional do Iguaçu, prática ilegal conforme a legislação brasileira; que vários pequenos produtores agroecológicos na região de Medianeira sofreram prejuízos com a contaminação de suas sementes crioulas por sementes transgênicas, tendo sido, assim, afrontados os seus direitos à biodiversidade, à alimentação e ao trabalho; e que, de modo preocupante, latifundiários e empresários do agronegócio local estavam contratando empresas de segurança “de fachada”, que atuavam como milícias rurais, ameaçando e agredindo trabalhadores rurais, bem como reprimindo violentamente manifestações públicas e invadindo assentamentos.


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68 RECOMENDAÇÕES Como recomendações, as Relatorias propuseram: Ao governador do Estado do Paraná e ao Instituto de Terras do Paraná a criação da área de zoneamento ecológico no Parque Nacional do Iguaçu e área de entorno, e de um centro de referência de sementes crioulas na área do centro de experimentos transgênicos e a priorização do processo de retomada das terras públicas griladas, com o levantamento, arrecadação e discriminação das terras. Ao governo federal, as Relatorias enfatizaram a necessidade de que o orçamento federal priorize os recursos destinados à reforma agrária. Em relação à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Paraná, os relatores recomendaram uma maior fiscalização da produção e comercialização agrícola no Estado do Paraná, a fim de evitar a contaminação de sementes orgânicas e convencionais por sementes transgênicas e garantir a proteção da biodiversidade. À Secretaria de Segurança Pública do Paraná, recomendou-se a implementação de ações específicas de combate às milícias paramilitares que atuam no Paraná e a garantia da segurança dos defensores de direitos humanos ameaçados com pedidos de proteção já encaminhados a essa Secretaria. Ao Ministério Público do Estado do Paraná, a Relatoria instou sua Procuradoria-Geral a fortalecer ações de sensibilização institucional no combate à violência no campo, reprimindo ações de despejo e intimidações contra trabalhadores(as) rurais protagonizadas pelas entidades representativas dos latifundiários e grandes proprietários rurais da região; exercendo concomitantemente fiscalização da legislação ambiental e do cumprimento da política agrícola e agrária nacional, sobretudo de princípios relacionados à função social da propriedade e à defesa da biodiversidade. Ao Ibama, a Relatoria recomendou que sejam corrigidos os autos de infração sobre empresas e fazendeiros que plantaram transgênicos ilegalmente no Parque Nacional do Iguaçu, cujas multas foram anuladas por incompetência de função no Judiciário, e realize com urgência concurso para contratação de corpo de fiscais suficiente para monitorar a região e as unidades de conservação. À Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, que estabeleça uma moratória na liberação de novos cultivos transgênicos, de modo a processar uma avaliação participativa dos impactos ambientais, de saúde e socioeconômicos causados pelos cultivos da soja transgênica no país, e no Paraná em particular; e que suspenda autorização para plantio de milho e algodão transgênicos, enquanto se proceda à avaliação acima mencionada, já que a possibilidade de contaminação dos milhos transgênicos é extremamente maior, dada à polinização cruzada desta planta. Por último, a Relatoria recomenda à CTNBio que organize um amplo debate público sobre a conveniência de se autorizar o cultivo comercial de transgênicos no país, fornecendo toda a informação técnica necessária e garantindo a participação de todos os grupos de interesse no debate, particularmente do movimento de pequenos agricultores e agricultores ecológicos. E, em caso de manutenção das autorizações concedidas, que se adotem medidas de regulamentação mais rigorosas para impedir a contaminação, acompanhadas da garantia de controle e fiscalização da lei, de modo que os produtores cujos cultivos tenham sido contaminados por cultivos transgênicos possam processar e obter indenização com os responsáveis pela contaminação, ou seja, os detentores da tecnologia de organismos geneticamente modificados – OGM.[1] [1] Outras recomendações, ver Relatoria de Alimentação e Terra Rural.


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69 Como avanço positivo na ação governamental, destaca-se que, no dia 14 de outubro de 2008, o governo do Estado do Paraná divulgou a assinatura de contrato com a Syngenta, por meio do qual a empresa passou ao governo a área de 127 hectares antes usada para realização de experimentos transgênicos. O governo do Paraná divulgou que irá transformar a área em um Centro de Referência de Sementes Crioulas. Outro resultado positivo posterior à missão foi a conclusão do inquérito aberto em Brasília pela Polícia Federal para apurar a legalidade das empresas de segurança em Cascavel, e que até então caminhava lentamente. O inquérito identificou irregularidades de todo o tipo no funcionamento de grande parte daquelas empresas, o que levou ao seu fechamento, inclusive daquela envolvida diretamente no episódio da fazenda da Syngenta. Um dos líderes do agronegócio da região e presidente da Sociedade Rural do Oeste, Alessandro Meneghel, foi preso recentemente por porte ilegal de armas (março de 2009) e condenado a cinco anos de prisão em regime semiaberto. Missão Sirinhaém (PE) Entre os dias 16 e 19 de junho de 2008, as Relatorias para o Direito Humano ao Meio Ambiente e para o Direito Humano ao Trabalho realizaram missão de seguimento ao Estado de Pernambuco para tratar especificamente do conflito nas ilhas Sirinhaém, a continuidade das violações e ameaças sofridas pelas famílias que resistem nas ilhas, bem como para discutir com as autoridades públicas o processo de criminalização[2] iniciado pela Usina Trapiche contra as Relatorias de Direito à Alimentação e Terra Rural e Direito Humano ao Trabalho, em virtude da missão anterior, realizada em setembro de 2007. As Relatorias observaram a persistência das violações detectadas em relatório anterior, em especial a persistência das ameaças contra as duas últimas famílias que residem nas ilhas e a continuidade da prática de crimes ambientais pela usina, que vem poluindo com agrotóxicos o rio e as áreas de mangue que garantem a atividade extrativista das famílias. Persiste sem solução a situação das 54 famílias já expulsas, que habitam em condição miseráveis na periferia do município. No geral, constatou-se a omissão ou mesmo uma postura criminalizadora das vítimas por parte dos órgãos locais de acesso à justiça frente às ameaças sofridas pelas famílias; pouca ou nenhuma atuação dos órgãos de proteção dos defensores de direitos humanos e a omissão e parcialidade da Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos – CPRH-PE na fiscalização do cumprimento da legislação ambiental estadual. Como avanços, apontou-se a ação fiscalizadora do Ibama, intitulada Operação Engenho Verde, sobre a atuação de extrema degradação socioambiental das usinas em Pernambuco e a conclusão dos estudos etnobiológicos para constituição de uma reserva extrativista nas ilhas Sirinhaém e o comprometimento das Coordenadorias de Cidadania, Agrária e Ambiental do Ministério Público na promotoria local para investigar e responsabilizar os autores de ameaças às famílias.

[2] A Usina Trapiche ofereceu uma queixa-crime contra os relatores Cândida Costa e Clovis Zimmermman por tornarem públicas as denúncias de violações cometidas pela empresa.


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70 RECOMENDAÇÕES Diante da insuficiente atuação dos poderes constituídos estaduais e federais, as Relatorias reiteraram todas as recomendações apontadas pelas missões de investigação das Relatorias Dhesca a Pernambuco nos anos de 2005 e 2007: A ratificação do cancelamento de aforamento das ilhas de Sirinhaém à empresa Trapiche pelo Ministério do Planejamento, conforme decisão já tomada pela Gerência do Patrimônio da União em Pernambuco. A finalização dos estudos preliminares à constituição da Unidade de Conservação Sustentável – Reserva Extrativista – Resex, na região das ilhas de Sirinhaém, pelo Ibama, e envio com urgência, ao Instituto Chico Mendes, no Ministério do Meio Ambiente, para a realização da Audiência Pública na cidade de Sirinhaém visando criação da Reserva Extrativista recomendada. Fiscalização efetiva das atividades das usinas em Pernambuco pelo Ibama e CPRH, particularmente as 24 usinas recentemente autuadas pelo Ibama, na Operação Engenho Verde, pela degradação ambiental da Mata Atlântica. Criação da Resex na região das ilhas de Sirinhaém pelo Instituto Chico Mendes; Efetivar o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público de Pernambuco, visando evitar ações de violência e de criminalização por parte dos agentes da polícia militar, particularmente da Companhia Independente de Policiamento do Meio Ambiente – CIPOMA, agentes da delegacia local, bem como agentes da própria Usina Trapiche, contra as famílias moradoras das ilhas, e de seu entorno. Julgamento célere das Ações Civis Públicas interpostas pelo órgão ministerial contra a ação de poluição ambiental atribuída à Usina Trapiche S.A. Fiscalização das condições de trabalho dos trabalhadores e trabalhadoras da cana-de-açúcar em Sirinhaém pela Superintendência Regional do Trabalho de Pernambuco. Intercessão da Coordenação Nacional do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos no Tribunal de Justiça de Pernambuco para combater a criminalização dos defensores(as) de direitos humanos no Estado, em particular, a situação dos trabalhadores e trabalhadoras das ilhas de Sirinháem, e dos relatores nacionais Dhesca, ambos processados pela Usina Trapiche e a falta de acesso à Justiça dos ilhéus. Transposição do rio São Francisco A Relatoria também promoveu o monitoramento da missão realizada pela Relatoria anterior, sobre o projeto de transposição das águas do rio São Francisco. Nesse período, acompanhou, em conjunto com organizações da sociedade civil e a Coordenação das Promotorias Estaduais da Bacia do São Francisco, as audiências em Brasília com os ministros do Supremo Tribunal Federal – STF para o julgamento das ações civis públicas sobre o projeto de transposição, uma vez que as obras avançavam sem que tivesse havido posicionamento judicial sobre as várias ilegalidades denunciadas. Em dezembro de 2007, o STF promoveu julgamento, deliberando por seis votos a três, no sentido de liberar o projeto de transposição, com base em argumentos que, a nosso ver, tornam-se precedentes perigosos no tratamento da questão ambiental pelo Judiciário. O voto do STF expressa uma apreciação política, que subordina a proteção ambiental ao que os juízes entendem por “imperativos do


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71 desenvolvimento econômico do país”. Apesar de insistir por diversas vezes em obter no Ibama e na Funai – antes e após o julgamento do STF – informações a respeito da afetação das terras indígenas na região das obras e a participação da Funai no licenciamento, a Relatoria não obteve resposta oficial. O único que sabemos é que, apesar da realização de estudos etnoecológicos sobre quatro povos indígenas afetados – Truka, Tumbalala, Kambiwa e Pipipâ –, a Funai não manifestou óbice à realização do empreendimento. Seminário Baixo Parnaíba (MA) Nos dias 7 e 8 de agosto de 2008 , a título de monitoramento da missão realizada ao Baixo Parnaíba no ano de 2005, as Relatorias para o Direito Humano ao Meio Ambiente e para o Direito Humano à Alimentação participaram do seminário Desenvolvimento e Direitos Humanos no Baixo Parnaíba, em São Luis – MA, com o objetivo de debater os impactos socioambientais das monoculturas de soja, cana-de-açúcar e eucalipto na região e constituir formalmente a Força-tarefa do Baixo Parnaíba Maranhense, que fora uma das recomendações do relatório de missão anterior. Algum tempo depois, as Relatorias foram informadas pelo Fórum de Defesa do Baixo Parnaíba que a primeira reunião da Força-tarefa contou com a participação de sete órgãos federais[3], sete órgãos estaduais[4], coordenação e entidades membros do Fórum. Entretanto, foi registrada com bastante preocupação a ausência das Secretarias de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Sustentável e da Secretaria de Meio Ambiente, que são estratégicas para o conjunto de ações efetivas da Força-tarefa, principalmente no que tange à questão agrária e ambiental. Foi igualmente denunciado aos relatores que a Secretaria de Meio Ambiente concedeu licenciamento prévio ao projeto de reflorestamento com eucalipto para a empresa Margusa, sem que houvesse o levantamento integral das comunidades existentes nas áreas, o que deveria ter sido feito previamente pelo Instituto de Terras do Maranhão – Iterma.[5] Frente às denúncias relatadas, a Relatoria enviou comunicação ao governador do Estado do Maranhão, Jackson Lago, solicitando todo apoio material e institucional à Força-tarefa do Baixo Parnaíba, garantindo-se em especial a participação da Secretarias de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Sustentável e da Secretaria de Meio Ambiente em todo o processo; solicitou ainda que, uma vez confirmada a concessão de licença prévia para a empresa Margusa para exploração de eucalipto, que tal licença fosse anulada caso não tivesse ocorrido o devido levantamento integral das comunidades afetadas. Segundo retorno do Fórum do Baixo Parnaíba, após tal solicitação, o governador convocou ampla reunião com todos os órgãos da Força-tarefa e a partir de então as Secretarias de Meio Ambiente e Agricultura vêm participado do processo. Havia o temor por parte dos movimentos locais, contudo, de que a iminente cassação do mandato do governador Jackson Lago pudesse trazer novo retrocesso às políticas de proteção à região do Baixo Parnaíba.

[3] Ibama, Instituto Chico Mendes, Polícia Federal, Incra, Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, Ministério Público Federal e Universidade Federal do Maranhão. [4] Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Secretaria de Estado de Educação, Secretaria de Estado de Igualdade Racial, Secretaria de Estado de Segurança Cidadã, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, Universidade Estadual do Maranhão e Ministério Público Estadual. [5] Oficio do Fórum de Defesa do Baixo Parnaíba, nº 18/08, de 21 de agosto de 2008.


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UHE Tijuco Alto, no Vale do Ribeira (SP) Entre os dias 13 e 17 de março de 2009, a Relatoria iniciou uma investigação in loco sobre os impactos socioambientais da Usina hidrelétrica – UHE de Tijuco Alto, no Vale do Ribeira, por solicitação da Frente de Apoio ao Vale do Ribeira em São Paulo, do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens e do Coletivo de Educadores Lagamar. Nesse primeiro momento foram visitados os municípios de Ribeira, Eldorado, Adrianópolis e comunidades rurais do Morro do Rocha, na divisa São Paulo-Paraná. Segundo denúncias colhidas, o processo de implantação da hidrelétrica Tijuco Alto pelo grupo Votorantim, a partir do aproveitamento das águas do rio Ribeira do Iguape, visa tão somente atender interesses privados desse grupo, uma vez que gerará energia para seu próprio complexo metalúrgico localizado no município de Mairinque. O processo tem violado os direitos ambientais, territoriais, culturais e de participação política das comunidades tradicionais do Vale do Ribeira (caiçaras, indígenas, pescadores e quilombolas). O projeto constitui, além disso, uma grave ameaça à sociobiodiversidade do lugar, considerada patrimônio natural da humanidade e detentora de 21% do total remanescente de Mata Atlântica no país. A região é constituída por muitos parques estaduais e área de incidência do Aquífero Karst. Embora os estudos sobre a qualidade do solo e dos impactos sobre o aquífero sejam incompletos, apontam para grande risco de reacomodação do solo da região em função da construção da barragem. Mais de 60% das terras necessárias à implantação da barragem já foram compradas pela CBA – Companhia Brasileira de Alumínio e muitos meeiros e posseiros foram expulsos de suas terras por falta de títulos de propriedade. Calcula-se que mais de 54 comunidades quilombolas poderiam ser diretamente afetadas pelo empreendimento. Como violações associadas ao modelo de desenvolvimento na região do Vale do Ribeira, é preocupante também a atuação de mineradoras e reflorestadoras, que têm causado bastante devastação em áreas de morro da região, desmatando florestas e agravando o risco de desmoronamentos. A prática de trabalho escravo pelas reflorestadoras é denunciada pela população local e foi objeto de flagrante pelo Ministério Público do Trabalho – MPT em recente operação na região[6]. Ao lado disso, rejeitos de chumbo acumulados nos morros, que muitas vezes escoam para o rio Ribeira, têm contaminado peixes e provocado sérios danos à saúde da população. A perspectiva é que a Relatoria, em conjunto com a Rede Brasileira de Justiça Ambiental e as organizações e movimentos da região construam conjuntamente um seminário para debater o modelo de desenvolvimento e as violações de direitos humanos ambientais no Vale do Ribeira, alcançando uma abordagem de outros conflitos além da luta contra a barragem Tijuco Alto.

[6] O Ministério Público está investigando denúncias de trabalho escravo na região do Vale do Ribeira, próximo a Curitiba. Em áreas de reflorestamento, trabalhadores foram encontrados vivendo em barracos improvisados, em condições subumanas e sem receber salários. Informação disponível no endereço http://www.reporterbrasil.com.br/clipping.php?id=210


Lucia Maria Moraes Marcelo Dayrell Vivas Lucia Maria Moraes: Relatora Nacional dos Direitos Humanos Ă Moradia e Terra Urbana (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Marcelo Dayrell Vivas: Assessor da Relatoria Nacional dos Direitos Humanos Ă Moradia e Terra Urbana (mandato 20072009) da Plataforma Dhesca Brasil.



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75 Relatoria dos Direitos Humanos à Moradia Adequada e Terra Urbana [1] A Constituição Federal, em atenção às reivindicações da sociedade civil brasileira, define a moradia como um direito social. O Estado, em todas as suas instâncias, deve garantir o direito à moradia e coibir a regressividade desse direito, efetivando-o e protegendo-o por meio de políticas públicas específicas. A implementação da moradia adequada assegura a dignidade humana e tem impacto direto no desenvolvimento social e econômico das cidades e do país. As cidades brasileiras são consequência do modelo de industrialização e desenvolvimento adotado, resultando em uma dinâmica que recria exclusão social e segregação territorial para grande parcela da população. Temos, atualmente, cidades cujo déficit habitacional é, em geral, inferior ao número de imóveis vazios, o que demonstra a não efetivação da função social da propriedade urbana e a força da especulação imobiliária. A dificuldade de acesso à terra regular é um dos principais fatores responsáveis pelo explosivo crescimento de favelas e loteamentos ilegais nas periferias, conforme constatado in loco pela Relatoria. Os conflitos fundiários urbanos e rurais estão ligados diretamente à questão da terra, sendo constantes os despejos de comunidades que buscam a terra para sustento próprio e/ou para abrigo familiar – é a negação ao direito à propriedade que deveria cumprir a sua função social. As missões realizadas pela Relatoria Nacional para o Direito Humano à Moradia Adequada e Terra Urbana identificaram políticas discriminatórias de intervenção urbana. Apesar dos comprovados esforços do governo federal na temática nos últimos anos e das lutas dos movimentos sociais urbanos, o Estado não consegue cumprir sua obrigação de proteger os direitos fundamentais das parcelas mais desprotegidas e marginalizadas da população. Contexto nacional: a política urbana e a implantação do direito humano à moradia adequada e à cidade sustentável no Brasil A luta pelo direito à moradia e à cidade tem obtido progressos importantes, especialmente após a aprovação do Estatuto da Cidade (2001) e a criação do Ministério das Cidades (2003), que buscam implantar a gestão participativa e a formulação de uma política nacional de desenvolvimento urbano voltada para o desenvolvimento regional, a sustentabilidade e o combate à pobreza e à desigualdade social. A Relatoria registra a importância do Sistema Nacional de Habitação, principal instrumento do Plano Nacional de Habitação, que visa integrar os três níveis de governo; a institucionalização do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, que tem como objetivo principal implementar políticas e programas que promovam o acesso à moradia digna para a população de baixa renda e o estabelecimento do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que pode ser acessado diretamente pelas associações de moradores.

[1] O presente relatório visa apresentar um breve resumo do trabalho desenvolvido pela Relatoria Nacional no mandato 2007-2009. As cartas, manifestações e relatórios completos podem ser consultados no sítio eletrônico www.dhescbrasil.org.br. As ações empreendidas pela Relatoria Nacional contaram com a colaboração de diversos atores da sociedade civil. Agradecemos a todos os movimentos de moradia e a todas as lideranças comunitárias envolvidas na promoção e defesa do direito humano à moradia adequada. Os relatórios elaborados e o presente texto resultam do trabalho desenvolvido pela Relatora Nacional Lucia Maria Moraes, pelo Assessor Marcelo Dayrell Vivas e pelas valiosas contribuições e colaboração voluntária dos colegas Igor Antônio Lourenço da Silva, responsável pela revisão minuciosa e crítica de todo o material apresentado, e Reinaldo Silva Pimentel, responsável pelas pesquisas e levantamento de dados para missões e relatórios. Foi igualmente imprescindível o apoio do Instituto Brasil Central (IBRACE) e do Escritório de Direitos Humanos de Minas Gerais (EDH-MG). Os erros e omissões, por sua vez, são todos de responsabilidade dos autores.


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76 O governo federal lançou, em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, visando aliar investimento em infraestrutura e medidas econômicas, estimulando os setores produtivos e levando benefícios sociais para todas as regiões do país (www.pac.gov.br). Na área das cidades, o PAC-Moradia e o PACSaneamento foram criados visando atender ao maior número possível de famílias que vivem em área de risco. O Ministério das Cidades estabeleceu o Programa dividido em três eixos de infraestrutura: logística (rodoviária, ferroviária, portuária, hidroviária e aeroportuária); energética (geração e transmissão de energia elétrica, petróleo, gás natural e energias renováveis) e social/urbana (Programa Luz para Todos, saneamento, habitação, metrôs, recursos hídricos). No total, estão previstos investimentos da ordem de R$ 503,9 bilhões até 2010, embora o PAC-Moradia e o PAC-Saneamento não venham sendo implementados conforme proposta apresentada. Durante missões realizadas nas cidades de Rio Grande, Macapá, Belém e Manaus, a Relatoria detectou muitas obras atrasadas e paradas devido à burocracia administrativa das instituições responsáveis para seu o gerenciamento, bem como o impacto social negativo nas comunidades locais. O programa Minha Casa, Minha Vida, lançado em março de 2009, tem como objetivo básico a implementação do Plano Nacional da Habitação, por meio da construção de um milhão de moradias, do aumento do acesso das famílias de baixa renda à casa própria e da geração de emprego e renda fomentada pelo aumento do investimento na construção civil. O pacote habitacional foi recebido com muita expectativa pela população que busca a casa própria e com muita euforia pela classe empresarial da construção civil. Embora qualquer análise sobre o programa seja prematura, tendo em vista o pouco tempo desde seu lançamento, a Relatoria ressalta a necessidade de integrar o espaço urbano e o espaço construído, evitando que seja reforçada a segregação da população de baixa renda presente nas cidades. É de extrema importância a especificação da qualidade arquitetônica e tecnológica da unidade habitacional pretendida, priorizando-se a produção adequada das moradias dentro da cidade legal. As Conferências das Cidades são aspectos positivos da atual política urbana e buscam discutir as diretrizes urbanísticas e os caminhos do desenvolvimento urbano. Aqui, também se destaca o Grupo de Trabalho de Conflitos Fundiários Urbanos, vinculado ao Conselho Nacional das Cidades e ampliado durante a Conferência Nacional, a fim de discutir diretrizes para construir uma política pública para mediação e prevenção dos conflitos vividos pela população de baixa renda (como os despejos) e para implementação do direito humano à moradia e à cidade. A Relatoria Nacional constatou, em todas as missões realizadas, que a participação do Judiciário tem se dado de forma tímida e isolada na defesa do direito humano à moradia adequada. Em grande parte dos casos em que há sentença para execução dos despejos, os juízes, face às ações de reintegração propostas em áreas ocupadas por famílias de baixa renda, autorizam o uso de força policial e não avaliam o cumprimento do princípio da função social da propriedade e da posse. O Poder Judiciário, em sua maioria, tem dificuldades em compreender que a propriedade não pode ter supremacia sobre a vida, não se sensibiliza diante das carências sociais, ao não visualizar a dimensão do problema social em questão, e não busca conciliar ou intermediar as negociações para evitar o despejo violento e arbitrário. Nesse contexto, ressalte-se que o Comitê de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas publicou, em maio de 2009, suas observações e recomendações em relação ao grau de efetivação e respeito dos Dhesca no Brasil. Na temática concernente à moradia, foi destacado que mais de 6 milhões de pessoas vivem em assentamentos urbanos precários, que um grande número de pessoas não tem moradia e que vem aumentando o déficit habitacional em razão de fluxos significativos de migração para áreas urbanas.


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77 O Comitê também ressaltou a ausência de medidas adequadas para prover moradia social para famílias de baixa renda e para grupos e indivíduos vulneráveis e marginalizados: “O Comitê recomenda que o Estado-Parte adote medidas adicionais para tratar do problema das pessoas sem moradia, para assegurar acesso adequado à moradia para famílias de baixa renda, indivíduos e grupos vulneráveis e marginalizados e para melhorar a oferta de serviços de água e saneamento às unidades habitacionais urbanas”. As políticas públicas implementadas na área habitacional e de saneamento ambiental continuam, em grande medida, perpetuando uma lógica excludente do desenvolvimento humano e da inclusão urbana. Há, portanto, um nítido processo de exclusão da pobreza urbana, gerando uma cidade sustentável para uma pequena parcela populacional e outra, precária, não sustentável e excludente, para a maioria. É preciso estimular e tornar prática corrente a capacidade da sociedade brasileira divulgar, capacitar e monitorar os instrumentos, aplicando a legislação de maneira a contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e democrática. Linhas de atuação do mandato 2007-2009 A Relatoria Nacional para o Direito Humano à Moradia Adequada e Terra Urbana constitui uma das principais estratégias de monitoramento do direito humano à moradia e à cidade no país, favorecendo a articulação e o fortalecimento da sociedade civil na luta pela moradia digna, como o Fórum Nacional da Reforma Urbana, a Frente Nacional de Saneamento Ambiental, movimentos sociais de moradia e organizações não governamentais. A Relatoria tem como objetivo desenvolver no Brasil uma cultura de respeito à moradia adequada e o direito de viver com dignidade na cidade. Dentre os temas relacionados à efetivação do direito humano à moradia adequada e à terra urbana, a Relatoria Nacional destacou três linhas de atuação estratégicas para o mandato 2007-2009: Saneamento e Urbanização: enfoque priorizado pela relação entre moradia e meio ambiente, especialmente no que tange ao acesso ao saneamento ambiental e ao combate às situações de risco (como ocupações em lixões, encostas de morro, áreas ribeirinhas) e moradias inadequadas. Impacto dos megaprojetos de desenvolvimento: a criação dos PACs e a liberação de vultosos recursos financeiros para o desenvolvimento urbano, econômico e turístico das cidades têm resultado na violação dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais das comunidades de baixa renda, inclusive no despejo das famílias e remoção das moradias em razão de projetos grandiosos de desenvolvimento urbano, turístico, imobiliário, paisagístico, viário e/ou comercial. Ameaças de despejos e despejos forçados: a população sem-teto que mora em ocupações vem sofrendo constantes ameaças de remoção, sendo verificados, em alguns casos, despejos violentos e com vítimas fatais. Articulação em rede e participação em eventos, seminários, conferências e outros Dentre as linhas de atuação do mandato em tela, buscou-se uma rearticulação política da Relatoria Nacional com os fóruns e redes, além de uma participação na maior parte dos eventos e conferências relacionadas à temática dos Dhesca. Durante os anos de 2007, 2008 e 2009, a Relatoria Nacional participou de diversas conferências temáticas no campo dos direitos humanos, como a Conferência Nacional de Direitos Humanos e as Conferências Estaduais de Direitos da Pessoa Idosa, da Pessoa com Deficiência, dos LGBTs e da Igualdade Racial, além da Conferência Nacional das Cidades. Ademais, a Relatoria apresentou seu trabalho e esteve presente nos


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78 debates do Congresso Mundial sobre Desenvolvimento das Cidades (em Porto Alegre) e no Fórum Social Mundial (em Belém). Outro enfoque dado foi a participação nos fóruns, congressos, reuniões e eventos promovidos por movimentos, redes e organizações, como atividades promovidas pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana, e os Congressos da Central de Movimentos Populares – CMP, em Brasília, da União Nacional pela Moradia Popular – UNMP, em Goiânia, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM, em Belém, e da Confederação Nacional das Associações de Moradores – CONAM, em Salvador. Na mesma proposta, a Relatoria esteve presente em eventos promovidos pelo COHRE, em Porto Alegre, pelo Observatório das Metrópoles, em Natal, e por movimentos locais. No âmbito global, a Relatoria integra o grupo de especialistas do AGFE – Advisory Group on Forced Evictions, vinculado à UN-HABITAT, assim como o Grupo de Trabalho sobre Conflitos Fundiários do Conselho Nacional das Cidades. Tendo em vista o foco adotado nas missões e a realização da missão Norte, que será explicada adiante, a Relatoria participou ativamente da articulação e acompanhamento do Observatório Belém, proposto pela Aliança Internacional dos Habitantes – AIH e lançado no Dia de Ação Global 2008 do Fórum Social Mundial. Foram também realizadas reuniões com órgãos e instâncias, como o Ministério das Cidades, a Caixa Econômica Federal, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Procuradoria Federal de Direitos dos Cidadãos, o Banco Mundial, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e a Relatoria Especial das Nações Unidas para a Moradia Adequada como Componente do Direito a um Padrão de Vida Digno, para entrega dos relatórios das missões realizadas, busca de comprometimento das autoridades para com as recomendações dispostas nos relatórios e monitoramento das atividades e/ou alterações sugeridas. A última articulação empreendida pela Relatoria Nacional consistiu em uma audiência pública no Congresso Nacional, articulada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, apresentando suas constatações e recomendações acerca das violações de direitos humanos constatadas no mandato ora apresentado. Missões Realizadas entre 2007-2009 Considerando que, durante os dois primeiros mandatos da Relatoria Nacional para o Direito Humano à Moradia Adequada e Terra Urbana, foram realizadas missões a 25 cidades, de diversos Estados brasileiros,[2] um dos focos do atual mandato foi o monitoramento das recomendações propostas. Assim, em articulação com os movimentos locais e com o Fórum Nacional da Reforma Urbana, foram realizadas missões de seguimento às cidades de São José dos Campos (SP), Goiânia (GO), Belém (PA), Salvador (BA) e Manaus (AM). Além disso, foram realizadas novas missões às cidades de Natal (RN), Rio Grande (RS), Aparecida de Goiânia (GO) e Macapá (AP).

[2] Cidades visitadas pela Relatoria Nacional: Alcântara (MA), Aliança (PE), Anapurus (MA), Belém (PA), Brejo (MA), Chapadinha (MA), Fortaleza (CE), Goiânia (GO), Guarulhos (SP), João Pessoa (PB), Maceió (AL), Manaus (AM), Mata Roma (MA), Olinda (PE), Osasco (SP), Porto Velho (RO), Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), São João do Meriti (RJ), São José dos Campos (SP), São Luís (MA), São Paulo (SP), Teresina (PI) e Tracunanhém (PE).


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79 São José dos Campos (SP) A região de São José dos Campos abriga 16 áreas de favelas, com aproximadamente 2.800 famílias. Nos últimos 10 anos, a prefeitura municipal tem tomado medidas para implementar o Programa de Desfavelização da cidade, que consiste basicamente em remover para a periferia da cidade as famílias de menor poder aquisitivo que moram em favelas localizadas na região central. Nessa cidade, a Relatoria visitou as comunidades Jardim São José, Ocupação RFFSA, Henrique Dias e Pinheirinho, que haviam recebido a missão em 2006, e também avaliou in loco as comunidades do CDHU e de Santa Cruz I e II. Uma nova área visitada pela Relatoria foi a Vila Rossi, tendo em vista o deslocamento de diversas famílias para a construção da Via Norte, uma obra de infraestrutura do governo municipal para reduzir a necessidade de tráfego urbano pela Via Dutra. O objetivo é interligar bairros e regiões da cidade para os quais e dos quais o acesso é comumente realizado pela rodovia. Um dos bairros atingidos por esse empreendimento será a Vila Rossi, bairro de classe média, no qual os moradores vêm recebendo da prefeitura municipal propostas de compra de suas casas. A principal demanda dos moradores consiste na disponibilização de informação pública e correta por parte dos órgãos públicos, bem como na consulta sobre os interesses dos atingidos, na apresentação de informação confiável sobre o real destino de seus terrenos, na atuação dos órgãos públicos em respeito aos seus direitos e, nos casos de acordo com a prefeitura, no pagamento de indenização nos valores de mercado dos imóveis. A partir da análise dos depoimentos e informações obtidas nas missões realizadas à cidade, a Relatoria Nacional registrou várias violações que ferem os direitos humanos, como a ausência de diálogo da prefeitura com os movimentos sociais da cidade de São José dos Campos, assim como a falta de informações precisas dos projetos elaborados e dos empreendimentos a serem construídos pela administração municipal, os quais não haviam sido discutidos com a comunidade que seria atingida. Além disso, destacam-se a inexistência de uma política de habitação municipal que atenda aos interesses da população com menor rendimento econômico e a necessidade de promoção de condições humanas de habitabilidade para as famílias que moram em conjuntos habitacionais, garantindo segurança às famílias que vivem em constante ameaça de despejo. Natal (RN) A cidade de Natal, fundada em 1599, é a capital do Estado do Rio Grande do Norte. Conta com uma área de 169,9 km² e uma população de 712.317 habitantes, totalizando uma densidade demográfica de 4.192,6 hab/km². Segundo dados do PNUD, mais de 40% da população encontra-se abaixo da linha de pobreza. Notam-se, a partir dos relatos dos moradores e dos problemas identificados durante a missão de investigação, dificuldades relacionadas a duas temáticas principais: o ambiente físico-natural e a questão social. Em primeiro lugar, cumpre salientar a questão do meio ambiente como condicionante da qualidade de vida na cidade. Além da consideração do meio ambiente como um direito humano, inclusive para gerações futuras, o progresso da cidade se deve muito a suas belezas naturais e a seu clima ameno, tendo em vista que a economia local é fortemente orientada pela expansão do turismo internacional. O grande número de áreas de proteção ambiental na cidade impõe limitações naturais ao se pensar a gestão urbana nessa capital, implicando o possível comprometimento dos recursos naturais estratégicos da região em razão da ausência de uma política de habitação social adequada. No mesmo sentido, destaca-se a correlação existente na cidade entre o desenvolvimento econômico provocado pelo turismo (ressaltando o fato de que Natal é a capital brasileira mais próxima geograficamente do continente europeu), a especulação imobiliária internacional e a violação do direito à moradia das comunidades


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80 de baixa renda. Ressaltem-se, ainda, os problemas em curso e as ameaças que se apresentam para a moradia popular na cidade, face à dissociação entre a política de habitação de interesse social, os projetos de investimentos públicos em infraestrutura urbana e os empreendimentos privados, sobretudo no campo do turismo imobiliário, com caráter predatório e especulativo da terra. Foram visitadas as comunidades de Vila de Ponta Negra, Mãe Luiza, Maruim, Brasília Teimosa, Favela do Detran, Boa Esperança, Passo da Pátria e África. Destaca-se, ainda, o bairro Mãe Luiza, zona especial de interesse social (ZEIS), que vem sendo alvo de grande interesse de especuladores imobiliários por se situar em área nobre da cidade. Rio Grande (RS) A cidade do Rio Grande atualmente possui uma população de 194.351 habitantes, distribuídos em um território de 2.814 km2. A pesca, desde o início do povoamento da cidade, tem um papel de grande importância para muitas famílias dessa cidade, as quais vivem direta ou indiretamente dessa atividade, em especial da pesca oceânica. A ligação com o mar tem forte influência na cultura de vida, no trabalho e nas relações sociais dessas comunidades, as quais se desenvolveram na costa oceânica, ponto geográfico que facilita a prática pesqueira e possibilita às embarcações chegarem à costa com segurança. Entretanto, todas essas áreas na linha de costa são de propriedade da União e atualmente estão cedidas ao Estado do Rio Grande do Sul, para exploração pela Superintendência do Porto do Rio Grande. A ampliação do Porto do Rio Grande, na forma proposta, implicará a remoção de mais de 1.000 famílias que moram próximas às áreas de intervenção. Os projetos elaborados e apresentados até o momento preveem o realocamento das famílias para áreas mais distantes do mar ou onde o mar é mais agitado, o que impediria o desenvolvimento da atividade pesqueira. As comunidades atingidas por essa expansão foram visitadas pela Relatoria durante a missão preventiva: Barra Nova, Barraquinhas, Mangueira, Bairro Getúlio Vargas e Santa Tereza. Outro bairro visitado pela Relatoria foi Cidade de Águeda, construído há quatro anos em área da prefeitura, fora da região central. Criado com o propósito abrigar moradias populares e implementar a política de produção habitacional municipal, o bairro contava com 580 famílias e com 300 novas unidades habitacionais em construção na época da visita da Relatoria (novembro de 2007). No entanto, o projeto apresenta três problemas críticos: a localização do bairro (14 km do centro da cidade), a habitabilidade das casas (27 m² em terrenos de 6x20m e baixa qualidade técnica das unidades habitacionais) e a falta de infraestrutura do bairro (sem posto de saúde, escola, policiamento, saneamento, transporte urbano, pavimentação etc.). A Relatoria foi informada que as unidades habitacionais desabaram em janeiro de 2009, e encontram-se em processo de reconstrução pela prefeitura. Goiânia (GO) Após o despejo do Parque Oeste Industrial, o Poder Público Estadual transferiu as famílias, que foram alojadas nos ginásios para um assentamento provisório no Setor Grajaú, conforme constatado na missão de investigação realizada em 2006[3]. A situação inicialmente provisória perdurou por mais de dois anos, mantendo diversas famílias em barracas de lona plástica, com precária infraestrutura. O Residencial Real Conquista agrupa atualmente 1.200 famílias, das quais 200 estão na parte mais baixa da área (instaladas em [3] Verificar Informe 2006 das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, publicado pela Plataforma Dhesca e disponível em www.dhescbrasil.org.br.


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81 12/04/2006) e 1.000 vivem na parte mais elevada da área (instaladas a partir de 11/01/2007). No período da missão de monitoramento realizada em agosto de 2008, verificou-se que, devido a atrasos na entrega dos módulos habitacionais previstos, 21 famílias ainda moravam no abrigo para idosos, construído ainda na primeira etapa, e cerca de 20 famílias moravam nos fundos de outras casas, em barracos de lona. Os moradores denunciavam também a inexistência de creches, escolas e posto de saúde, e também dificuldades em tais equipamentos da rede pública nos bairros vizinhos. Durante missão, os moradores relataram interrupções constantes do abastecimento de água, chegando a ficar de três a quatro dias sem água. Além disso, ainda não foram concluídas as obras de urbanização e pavimentação e não há rede de esgoto e saneamento na área. Ressalte-se, finalmente, a distância entre o conjunto habitacional e a infraestrutura urbana de Goiânia, o que viola o direito humano à moradia adequada e à cidade sustentável. Cabe destacar, ainda, a morosidade judicial nas ações de responsabilização do Estado e indenização às vítimas, bem como na investigação dos assassinatos das lideranças comunitárias e Pedro Nascimento e Wagner Silva Moreira, ocorridos durante o despejo em 2006. Por sua vez, verifica-se a criminalização dos movimentos sociais, tendo sido informado durante a missão que as lideranças comunitárias Américo Novais e Josuel Pereira Feitosa foram indiciadas pelo crime de homicídio em um episódio em que um tiro atingiu um policial militar durante o despejo[4]. Aparecida de Goiânia (GO) A cidade de Aparecida de Goiânia, localizada na região metropolitana da capital do Estado, possui, de acordo com dados da Fundação João Pinheiro, déficit habitacional de 10.193 domicílios, embora existam 14.291 imóveis vazios. A missão preventiva, realizada em agosto de 2008, teve como objetivo verificar denúncia de despejo das 880 famílias moradoras dos setores Serra das Brisas e Belo Horizonte, as quais adquiriram seus terrenos das Construtoras Gutemberg e Norte Sul no final da década de 1980. O loteamento foi aprovado pela prefeitura municipal e, desde então, os setores vêm se constituindo como bairros urbanizados, com devido recolhimento de tributos municipais e equipamentos urbanos básicos, como policiamento, energia elétrica e água. Ocorre que a família Lino propôs, ainda no início da década de 1980, uma ação de nulidade contra o Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás – IDAGO pela emissão de títulos. Tal ação, após longo trâmite judicial, foi deferida, e os títulos foram devidamente declarados nulos (portanto, juridicamente inexistentes). O passo seguinte foi a execução da sentença, com a reintegração de posse contra os atuais moradores. Durante a visita da Relatoria, os moradores informaram que o prefeito de Aparecida de Goiânia (gestão 20052008) e o vice-governador haviam visitado a área e declarado que ela estava sendo desapropriada. No entanto, conforme constatado em consulta ao processo judicial, a liminar de reintegração de posse não havia sido suspensa e o juiz se recusara a receber uma comissão de moradores, o que justificou a emergência da missão e a publicidade dada à precária situação de ameaça de despejo sofrida pelas famílias. Em setembro de 2008, a Relatoria foi comunicada de que a reintegração de posse foi suspensa por uma ação judicial proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Em março de 2009, a prefeitura municipal publicou o decreto de desapropriação da área, a fim de repassá-la para as famílias que dispõem de documentação de compra do lote e que naquele local construíram suas casas.

[4] Américo Novais foi condenado em abril de 2009 a uma pena de quatro anos e cinco meses em regime aberto, estando o processo atualmente em grau recursal.


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82 Salvador (BA) Além do Pelourinho, a problemática habitacional de Salvador está colocada na área do Centro Antigo, o qual abrange o Centro Histórico (Pelourinho) e as localidades consolidadas em seu entorno, como Nazaré, Piedade, Comércio, Av. Sete, Av. Carlos Gomes, Dois de Julho e Mourari. Tais localidades são marcadas por uma contradição: por um lado, contam com uma infraestrutura instalada (pavimentação, saneamento, energia elétrica) e com a oferta de equipamentos e serviços públicos; por outro, devido à expansão da cidade na direção do Iguatemi e Paralela, essa área se encontra esvaziada habitacionalmente, havendo uma grande concentração de domicílios vagos, em Estado de abandono ou de subutilização, sem cumprir a função social da propriedade que é estabelecida pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade. Durante a missão de monitoramento, realizada em maio de 2008, foram visitadas as seguintes ocupações dos movimentos de moradia em prédios abandonados na área do Centro Antigo de Salvador: ocupação do Edifício Lord, na Avenida Carlos Gomes, organizada pelo MNLM; ocupação do Edifício Chile, na Rua Chile, organizada pelo MSTS; e ocupação do prédio da Prefeitura, na Ladeira da Praça, organizada pelo MDMT. Também foi visitada a área do Projeto da Sétima Etapa do Centro Histórico. MISSÃO NORTE A Relatoria Nacional vem acompanhando a situação do direito à moradia em Belém e Manaus desde as missões realizadas em novembro de 2006, já que uma das atividades empreendidas pelas Relatorias é o monitoramento das recomendações e das condições de moradia dos locais visitados. Nesse sentido, foi instituída a missão Norte como uma ação integrada com o objetivo de realizar missões nas cidades de Belém, Macapá e Manaus e, então, diagnosticar a situação de (des)respeito e (não) efetivação do direito humano à moradia. Essa ação foi encerrada com a divulgação durante o Fórum Social Mundial 2009 das violações até então constatadas. A mMissão Norte contou com o apoio do Fórum Nacional da Reforma Urbana, dos movimentos de moradia de âmbito nacional (CMP, CONAM, MNLM e UNMP) e das organizações locais. Belém (PA) Durante a missão de monitoramento realizada em 2008, foi constatada a precária situação vivenciada pela parcela populacional que reside às margens de igarapés e cujos direitos humanos à moradia, ao meio ambiente e à saúde vêm sendo violados em razão da falta de saneamento ambiental. Destaca-se que grande parte das comunidades existentes próximo à orla está sendo reassentada em locais distantes para que essa área seja criteriosamente urbanizada e dê lugar a empreendimentos de luxo. Dentre as denúncias recebidas pela Relatoria, realça-se a paralisação das obras de urbanização da prefeitura de Belém, como o Projeto Orla e o Projeto Tucunduba. Algumas obras de urbanização e construção de conjuntos habitacionais estão sendo executadas com recursos financeiros oriundos do Programa de Aceleração do Crescimento, desenvolvido pelo governo federal. Compete ressaltar a grave situação observada nessas áreas, onde a deterioração dos materiais de construção pode ocasionar desabamentos, além do fato de que a falta de saneamento básico e de urbanização adequada para o convívio familiar e comunitária é contrária aos preceitos do direito humano à moradia adequada. Tais considerações foram observadas em especial nas comunidades da Vila Coraci e da Vila da Barca.


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83 A regularização fundiária constitui uma das principais reivindicações dos moradores que vivem em ocupações há mais de 30 anos. Apesar da precariedade das unidades habitacionais, os moradores almejam receber o título da propriedade, visando à segurança jurídica para sua família e ao afastamento das recorrentes ameaças de despejos. Considerável número de ocupações se situa em terras de marinha, de propriedade do governo federal, fato que dificulta a regularização sem a autorização expressa das autarquias federais responsáveis pela administração das glebas. A falta de saneamento básico também constitui grave problema na cidade de Belém, cabendo mencionar que 14 igarapés, que foram canalizados, recebem redes de esgotos, sem tratamento, da cidade e desaguam nas bacias dos rios Guajará e Guamá. Manaus (AM) A missão de monitoramento em Manaus teve como objetivo o seguimento das recomendações realizadas na visita em 2006. A Relatoria então visitou as seguintes comunidades e ocupações: Igarapé 40/PROSAMIN, Parque Residencial Manaus, Área da Suframa, Ocupação Luis Otávio, Nova Cidade, Conjunto Cidadão, Deus é Fiel, Santa Etelvina, Bom Jardim, área de risco Riacho Doce e Ramal do Brasileirinho Ibere. Apesar da visibilidade das violações, muitas famílias que moram às margens dos igarapés vêm sendo desrespeitadas pelos gestores públicos responsáveis pela realização de obras de urbanização nas comunidades. Uma das reclamações colocadas pelas lideranças locais refere-se ao Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, um dos principais agentes financiadores das obras, e à falta de diálogo com os moradores e organizações locais. Segundo consta, os projetos focam um maior desenvolvimento econômico e especulativo da paisagem urbana, em detrimento do desenvolvimento social das comunidades que moram na região há mais de 30 anos. Dentre as situações constatadas, destacam-se ameaças constante de despejo, as quais deixam as pessoas inseguras quanto à moradia e à própria vida, pois grande parte dos despejos ocorre com agressão da força policial. Assim como nas demais missões, foram visitadas famílias moradoras em áreas de risco e em casas com ameaça de desabamento, com ausência de regularização fundiária da área urbana, em especial nas comunidades que moram em ocupações. Verifica-se, ainda, a violação de outros direitos fundamentais, como direito à educação, à saúde, ao desenvolvimento social e ao meio ambiente sustentável. A Relatoria alerta ainda acerca da situação das famílias moradoras do Lago do Aleixo, que poderão ser atingidas devido à construção do Porto das Lages, na região de encontro dos rios Negro e Solimões. Macapá (AP) Durante a missão de investigação em Macapá, a Relatoria Nacional constatou diversas violações de direitos nas seguintes comunidades visitadas: Vila do Mucajá, Quilombo Curiaú, Jardim Marco Zero, Bairro Palmares, Feirinha e Baixada Pará. A Vila Mucajá é uma área incluída nas obras do PAC, localizada em um declive no bairro Santa Inês, com habitações em toda sua extensão. Em 2007, foram iniciadas as obras de construção de um conjunto habitacional para atendimento à população de baixa renda. Contudo, diversas dificuldades vêm sendo enfrentadas pela comunidade quanto ao aluguel de residências provisórias e à continuidade das obras, tendo-se inclusive a notícia de inadimplemento do Poder Público com a construtora. As comunidades da Baixada Pará e do Conjunto Ego são áreas consolidadas sem qualquer saneamento básico, água potável ou rede de esgoto. Dada a inexistência de políticas públicas de proteção social básica e especial, pode-se verificar altos índices de violência, além do tráfico de drogas. As três áreas estão ameaçadas de despejo e não foram criados canais pacíficos de negociação. Em relação ao Conjunto Ego, a Caixa Econômica Federal propôs a aquisição das residências pelos moradores do local; entretanto, a proposta


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84 apresentada não corresponde às reais possibilidades financeiras dos ocupantes. Destaca-se, na visita, a área da Feirinha, composta atualmente por 40 unidades construídas nas calçadas e apoiadas em muros de duas propriedades particulares. Residem no local cerca de 50 famílias, cada qual possuindo, em média, quatro filhos – crianças e adolescentes. As casas não têm saneamento básico nem água encanada, e a única forma de obtê-la é em uma escola próxima. Outra área visitada pela Relatoria foi a Comunidade Quilombola do Curiaú, a cerca de 12 km do centro de Macapá e composta por aproximadamente 1.600 pessoas. Foi constatada a inadequação de alguns casebres como locais de moradias, e a inexistência de uma política articulada de moradia, proteção ambiental e preservação cultural que garanta o fortalecimento e a manutenção da comunidade quilombola. Acompanhamento sistemático de conflitos fundiários A Relatoria Nacional buscou, durante o atual mandato, monitorar os conflitos fundiários urbanos em todo o país, procurando, sempre que possível, formalizar denúncias ao Poder Público e elaborar recomendações a fim de que a solução pacífica e o diálogo com os movimentos sociais fossem efetivados. Na Região Metropolitana de São Paulo, foram acompanhados conflitos fundiários e ameaças de despejos em diversas cidades, como São Bernardo do Campo, Diadema, Embu, Guarulhos, Itapecerica da Serra, Mauá, Osasco e Taboão da Serra. Trata-se, na maioria dos casos, de ocupações realizadas por movimentos locais de moradia e que sofreram ameaças de despejos forçados (em alguns casos concretizados), sem que qualquer alternativa fosse negociada entre o Poder Público e as famílias. O Ministério das Cidades, por meio da gerência de conflitos urbanos, intermediou algumas negociações a fim de que o governo do Estado e as prefeituras locais evitassem despejos violentos e oferecessem alternativas de moradia digna. A Relatoria também realizou o monitoramento das missões de São Paulo e Rio de Janeiro, ocorridas em 2006. No caso de São Paulo, foi verificado o crescimento dos despejos da região central, reforçando a política de higienização e de criminalização dos movimentos sociais. No monitoramento da situação constatada no Rio de Janeiro, além de atualização do relatório e encaminhamento para as autoridades, foi possível auxiliar os movimentos locais na busca de financiamentos habitacionais para solução da questão da moradia, de forma autogestionada pelos moradores. O Estado de Minas Gerais, por sua vez, ainda não recebeu a visita da Relatoria Nacional para o Direito Humano à Moradia Adequada, mas vem sendo acompanhado sistematicamente, em especial quanto aos despejos forçados na capital e na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Trata-se, em alguns casos, de áreas públicas e de implantação de projetos de desenvolvimento urbano, sem uma negociação aberta e pacífica com as famílias. Em Belo Horizonte e em outros locais, a Relatoria vem acompanhando também a temática quilombola e verificando os empecilhos colocados ao reconhecimento previsto constitucionalmente. Finalmente, dentre outros casos acompanhados pela Relatoria, cabe destacar os despejos e a criminalização dos movimentos sociais promovidos pela prefeitura municipal de Curitiba, em especial o caso da Ocupação Fazendinha, já denunciado em órgãos internacionais de proteção de direitos humanos. O objetivo da Relatoria, nesses casos, é dar visibilidade para situações de violação do direito humano à moradia adequada, ainda que não seja possível a realização de visitas in loco. A Relatoria recebe denúncias dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e promove uma investigação da situação local, por meio de contatos com entidades parceiras, o Fórum Nacional da Reforma Urbana e o poder público local.


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85 RECOMENDAÇÕES GERAIS Em cada cidade visitada, a Relatoria elaborou um estudo aprofundado sobre a situação de respeito ao direito humano à moradia adequada e à cidade sustentável, formulando diversas recomendações a fim de sanar as violações constatadas. De maneira geral, os conflitos fundiários urbanos e o descumprimento das obrigações legais e internacionais são similares em muitos municípios brasileiros. Considerando o quadro geral do país e com base nas missões realizadas, a Relatoria recomenda que: O Estado adote uma política social de respeito aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais da população de baixa renda que mora nas cidades. O Estado implemente o direito à moradia e às cidades contando como requisito a condição humana de habitabilidade, de sustentabilidade e de segurança para as famílias que vivem em situação de risco devido à precariedade da urbanização e das unidades habitacionais e em razão das constantes ameaças de despejos. O Estado estabeleça um canal de informações precisas e promova discussões nas comunidades que serão atendidas pelos programas habitacionais que serão implantados nas cidades, em especial pelos Programas PAC – Moradia/Saneamento e Programa Minha Casa, Minha Vida. Todo e qualquer projeto e obra de melhoria urbana tenha acompanhamento e participação da comunidade a ser atendida e de entidades locais que apoiam a luta pela moradia adequada, sendo assegurado o direito à informação clara e precisa. O Estado garanta assessoria jurídica gratuita às famílias que buscam a regularização fundiária de suas casas. Os órgãos públicos e o Poder Judiciário adotem uma política pacifica de negociação com os moradores das ocupações, de modo a implementar o direito à moradia e à cidade, tal qual determina a Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos; O Estado adote uma política de inclusão social das famílias de baixa renda nas cidades, garantindo que os conjuntos habitacionais a serem construídos para famílias de baixa renda sejam localizados nas áreas urbanas de toda e qualquer cidade. Os Planos Diretores, elaborados conforme os princípios do Estatuto das Cidades, sejam implantados de forma a garantir uma gestão democrática e sustentável das cidades. A implantação de megaprojetos de desenvolvimento, como portos, usinas, anel viário, pontes, dentre outros, seja realizada respeitando os direitos fundamentais das famílias que moram nas áreas atingidas. As recomendações específicas para cada cidade visitada podem ser verificadas nos relatórios de missão, disponíveis no sítio eletrônico da Plataforma Dhesca Brasil.


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86 Desafios futuros Dentre os desafios que se apresentam à próxima Relatoria Nacional para o Direito Humano à Cidade, sucessora da Relatoria Nacional para o Direito Humano à Moradia Adequada e Terra Urbana, a partir de 2009, tem-se a construção de uma atuação mais ampla da Relatoria Nacional, englobando de forma mais institucional e sistemática a questão do saneamento e do direito à água e, sobretudo, o diálogo voltado à equação violência urbana e segurança pública. Para além da manutenção e fortalecimento da articulação já realizada com atores da área urbana, como o Fórum Nacional da Reforma Urbana, a Frente Nacional de Saneamento Ambiental, os movimentos de moradia e a Relatoria Especial das Nações Unidas para a Moradia Adequada como Componente do Direito a um Padrão de Vida Digno, a nova Relatoria terá que construir uma articulação com organizações e fóruns que discutam as cidades de maneira ampla, abordando a questão da população em situação de rua, do tráfico de drogas, do crime organizado e da violência urbana. Quanto às missões já propostas e discutidas, tem-se o foco no monitoramento, em especial em relação à missão Norte, Rio Grande, São José dos Campos, Rio de Janeiro e São Paulo. Novas missões demandadas e devidamente estudadas referem-se à Região Metropolitana de São Paulo (São Bernardo do Campo, Diadema, Embu, Guarulhos, Itapecerica da Serra, Mauá, Osasco, Sumaré e Taboão da Serra) e a Belo Horizonte, no que tange aos projetos de regularização fundiária, aos projetos de desenvolvimento em implantação e à questão quilombola urbana. Nessa perspectiva, cumpre salientar as obras em realização em todo o país relacionadas com a Copa de 2014, as quais vêm ocasionando despejos forçados a fim de promover o desenvolvimento turístico e urbano das cidades-sede.


Fernando Aith Camila Gilberto Fernando Aith: Relator Nacional do Direito Humano à Saúde (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Camila Gilberto: Assessora da Relatoria Nacional do Direito Humano à Saúde (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil.



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89 Relatoria do Direito Humano à Saúde A saúde é hoje reconhecida como um direito humano em diversos documentos normativos nacionais e internacionais. No âmbito internacional, destaque-se a Constituição da Organização Mundial de Saúde, adotada em 1946, que reconhece a saúde como um direito fundamental do homem e determina aos Estados uma série de medidas concretas para a sua efetivação. Dois anos depois, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabeleceu importantes diretrizes para a proteção internacional ao direito humano à saúde, diretrizes essas complementadas pelo Pacto Internacional dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, instrumento formulado pelas Nações Unidas em 1966 e ratificado por mais de 150 nações, entre elas o Brasil. Nesse Pacto, o direito à saúde é formulado como o direito “de toda pessoa desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental” (art. 12). No âmbito do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o Comentário Geral nº 14 do Comitê sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais - Comitê DESC, que monitora o PIDESC, estabelece: “A saúde é um direito humano fundamental indispensável para o exercício de outros direitos humanos. Toda pessoa humana tem direito a desfrutar do mais elevado nível de saúde que a conduza a viver uma vida com dignidade”.[1] O direito à saúde também está codificado no direito interno de diversos países, inclusive em suas constituições. Nesses documentos normativos estruturantes dos Estados de Direito modernos, pode-se encontrar diferentes dispositivos de proteção do direito à saúde (prevenção de riscos à saúde, definição de direitos de acesso à atenção básica de saúde, ou outros direitos que invariavelmente atingem o direito à saúde, como o direito a um meio ambiente saudável). No Brasil, apenas com a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que o direito à saúde foi expressamente reconhecido como um direito fundamental das pessoas, em seus artigos 6º e 196 a 200. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 dispõe que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196). O reconhecimento dado pelo art. 6º, que expressamente define a saúde como um direito humano fundamental, foi um avanço significativo para a saúde no Brasil e deu ensejo ao crescimento do Direito Sanitário no país, ampliando consideravelmente a proteção jurídica do direito à saúde no país. Desde 1988 a produção normativa no que se refere à proteção do direito à saúde no Brasil vem mantendo ritmo inédito em termos de qualidade, quantidade e diversidade. Destacam-se, no cenário normativo de proteção do direito à saúde, as leis 8.080/90 e 8.142/90, que organizaram o Sistema Único de Saúde – SUS e definiram formas inovadoras de participação da comunidade na gestão das políticas públicas de saúde. Essas leis, por suas características estruturantes das garantias de proteção do direito à saúde no Brasil, são também conhecidas, no seu conjunto, como Lei Orgânica da Saúde.

[1] Comitê DESC, Comentário Geral 14, UN ESCOR, 2000, Doc. No. E/C.12/2000/4


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90 Na esteira da Constituição e da Lei Orgânica de Saúde produziram-se diversos outros instrumentos normativos de proteção do direito à saúde, tais como os diversos Códigos Sanitários Estaduais e Municipais; as leis de criação das Agências Nacionais de Vigilância Sanitária (lei 9.782) e de Saúde Suplementar (lei 9.656); a recente lei que criou a Hemobrás e a Lei da Bioética (lei 11.105/05), dentre outras. Isso sem falar dos inúmeros regulamentos infralegais (decretos, portarias, resoluções, criados a partir dessa nova ordem normativa) produzidos para concretizar a proteção estatal do direito à saúde. Esse conjunto normativo de proteção do direito à saúde caracteriza-se por um “sentido social” comum: contribuir para uma correta organização das ações e serviços de saúde, visando sempre ao desenvolvimento do país e à defesa dos valores juridicamente protegidos pela sociedade, notadamente a dignidade da pessoa humana e a proteção da saúde das pessoas. O Direito Sanitário brasileiro possui princípios e normas jurídicas específicas que lhe dotam de uma dinâmica peculiar e que se insere nos ditames gerais do Direito, especialmente aqueles relativos à sua eterna busca pelos ideais de justiça e equidade, dos quais a história dessa ciência nos dá vivo testemunho. O correto cumprimento do ditame constitucional que reconhece a saúde como um direito humano fundamental está diretamente relacionado com a proteção da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, III). O Direito Sanitário é, dessa forma, um dos pilares da República para a proteção da dignidade da pessoa humana. Sendo um direito social, o direito à saúde tem como característica marcante a exigência de um Estado atuante na sua proteção, promoção e recuperação. Como a maioria dos direitos humanos, o direito à saúde possui uma preocupação maior com as parcelas mais carentes da sociedade, especialmente aqueles que vivem em condições de extrema miséria. Ainda que seja considerado como um direito humano de realização progressiva, o direito à saúde necessita de políticas públicas inclusivas e eficientes que assegurem aos membros de uma sociedade o acesso a um sistema de saúde de qualidade. Assim, o Estado deve assumir a posição de ente regulador das ações e serviços de interesse à saúde, bem como de principal responsável pela prestação de serviços públicos universais, integrais, de qualidade e que promovam a equidade. Assim, os princípios jurídicos e conceitos constitucionais, como os da universalidade, integralidade, responsabilidade, acesso igualitário, participação da comunidade, entre outros, tornam-se concretos e eficazes por meio de atuação efetiva do Estado. CONTEXTO DE ATUAÇÃO DA RELATORIA DO DIREITO HUMANO À SAÚDE A Relatoria para o Direito Humano à Saúde, durante este mandato (agosto/2007 a julho/2009), atuou dentro de um contexto bastante complexo, tanto no que diz respeito às questões políticas e sociais atinentes à efetivação do direito à saúde no país quanto no que diz respeito ao momento vivido pela própria Plataforma Dhesca. No que se refere às principais questões políticas e sanitárias que permearam as discussões públicas sobre o direito à saúde no Brasil durante esse período, destacam-se: i) tramitação legislativa do projeto de lei complementar que irá regulamentar o art. 198 da Constituição Federal, sobre financiamento das ações e serviços públicos de saúde no país; ii) terceirização dos serviços públicos de saúde prestados pelo Estado, por meio da contratação de pessoas jurídicas de direito privado para a prestação dos serviços; iii) epidemias da dengue, febre amarela e, em alguns locais, tuberculose, hanseníase e riscos epidêmicos da influenza (vírus H1N1); iv) recuo político do governo com relação a temas polêmicos como aborto e a “pílula do dia seguinte”.


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91 Os recursos financeiros estatais destinados ao financiamento de ações e serviços públicos de saúde encontram-se regulados pela emenda constitucional nº 29/2000, que define os percentuais mínimos de aplicação em ações e serviços públicos de saúde e estabelece regras para o período de 2000 a 2004. A EC 29/2000 alterou o art. 198 da Constituição Federal e nele inseriu uma previsão segundo a qual União, Estados, Distrito Federal e municípios devem realizar um aporte de recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. O atual art. 198 prevê que uma lei complementar irá regulamentar como se dará o financiamento. Provisoriamente, até que a lei complementar seja aprovada, haverá um aporte de recursos provisório conforme estipulado pelo art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. Na hipótese da não edição da lei complementar prevista no art. 198, permanecerão válidos os critérios estabelecidos na própria emenda constitucional e inseridos no ADCT. A EC 29 representou um importante avanço para diminuir a instabilidade no financiamento que o setor de saúde enfrentou a partir da Constituição de 1988 (com o não cumprimento dos 30% do orçamento da seguridade social), bem como uma vitória da sociedade na questão da vinculação orçamentária como forma de diminuir essa instabilidade. A luta pela regulamentação se dá por não haver definição do processo para depois de 2004, e o art. 198 da Constituição Federal, em seu parágrafo 3º, define a criação da lei complementar, a ser reavaliada, pelo menos, a cada cinco anos, estabelecendo os seguintes parâmetros: percentuais, normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, municipal e no Distrito Federal. Existem alguns projetos tramitando no Congresso para a regulamentação do referido dispositivo constitucional, destacando-se o projeto de lei complementar 01/2003, de autoria do então deputado Roberto Gouveia (PT/SP), e o substitutivo, do deputado Guilherme Menezes. A tramitação da regulamentação da EC 29 sofreu um grande revés com a decisão do governo de utilizar justamente esse projeto de lei para criar uma nova contribuição social sobre movimentações financeiras. Tal manobra do governo fez com que a regulamentação da EC 29 saísse da ordem do dia e voltasse para os grotões da tramitação legislativa no Congresso Nacional, fato que significou grande perda para a saúde brasileira. Outro movimento muito forte que está ocorrendo no âmbito da saúde pública brasileira é o de terceirização dos serviços públicos de saúde. Antes prestados pela Administração Direta ou Indireta da União, dos Estados e dos municípios, a tendência atual é que esses entes federativos contratem organizações não governamentais, organizações da sociedade civil de interesse público, organizações sociais, dentre outros tipos de pessoas jurídicas de direito privado, para prestarem serviços públicos de saúde. Trata-se de um movimento expressivo, que encontra no governo federal um grande apoiador, em especial com a criação das chamadas Fundações Estatais de Direito Privado para prestarem os serviços públicos de saúde. Essa opção de gestão dos serviços públicos de saúde encerra alguns perigos, em especial no que se refere ao controle dos repasses de recursos públicos para as entidades privadas e ao controle da qualidade dos serviços de saúde prestados pela via da terceirização. O terceiro aspecto que merece destaque, e que foi uma constante ao longo do mandato, refere-se aos ciclos epidêmicos vividos no Brasil. A epidemia da dengue voltou a matar no Rio de Janeiro e na Bahia e continua sendo uma constante em todo o território nacional; além disso, epidemias de doenças que deveriam estar erradicadas, como a hanseníase e a tuberculose, vêm sendo constatadas em regiões do Norte e do Nordeste e inclusive nas periferias dos grandes centros urbanos do Sudeste brasileiro. Some-se a isso o aparecimento de novas epidemias como a gripe suína (ou gripe A/H1N1). A organização do poder público brasileiro para a contenção desses riscos sanitários ainda é precária e provoca mortes evitáveis no Brasil.


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92 Finalmente, ainda no que se refere ao panorama geral político e sanitário que permeou a atuação da Relatoria de Saúde, merece ser destacado o recuo do governo brasileiro sobre temas altamente sensíveis à saúde pública, tais como a questão do aborto, da pílula do dia seguinte e da atenção aos usuários de drogas. Embora o ministro da Saúde tenha feito alguns movimentos de defesa do direito da mulher ao aborto, a posição do governo federal foi de não sustentar esse debate nacional. Também no que se refere à ampliação das políticas contraceptivas e de planejamento familiar, em especial a chamada “pílula do dia seguinte”, a posição dos governos em geral tem sido bastante tímida. Igual posição foi adotada com relação às políticas de atenção aos usuários de drogas e de redução de danos. No que se refere ao contexto da Relatoria no âmbito interno da Plataforma Dhesca, merece ser destacado o fato de que as Relatorias Nacionais passaram por um processo de avaliação externa e de modificações profundas em suas estruturas e lógicas de funcionamento, desde o início da Relatoria de Saúde, em agosto de 2007. A própria seleção do relator de saúde foi atrasada devido a dificuldades internas[2] da Plataforma, demorando mais tempo que as demais Relatorias para inserir-se no âmbito do projeto, e para conseguir iniciar os seus trabalhos, em decorrência de vários descompassos de planejamento global e de orientação geral sobre o funcionamento básico das questões administrativas. Outro aspecto que dificultou as atividades da Relatoria de saúde foi a mudança de coordenação das Relatorias Nacionais, bem no momento em que a Relatoria de Saúde iniciava seus trabalhos. A coordenação mudou de entidade (da FASE para a Terra de Direitos), de cidade (do Rio de Janeiro para Curitiba) e, consequentemente, seu modo de trabalho, provocando diversas questões operacionais, administrativas e políticas bastante onerosas. Ainda com relação a esse contexto interno, vale destacar que o direito humano à saúde não é um tema especifica e diretamente defendido pelas entidades que participam da Plataforma Dhesca. Os interesses das entidades da Plataforma na área da saúde estão concentrados em direitos sexuais e reprodutivos, com enfoque muito grande na questão de gênero. Embora sejam questões de alta relevância, esta Relatoria entendeu ser igualmente relevante ampliar o leque de preocupações da Plataforma com relação ao direito humano à saúde, inserindo discussões de violações do direito à saúde de outros grupos vulneráveis (índios e população mais pobre) bem como violações relacionadas às dificuldades de acesso aos serviços do SUS e de tratamento adequado e igualitário. Essa opção, no contexto interno da Plataforma, representou uma dificuldade a mais na articulação de novos parceiros que pudessem auxiliar na apuração das violações do direito humano à saúde verificadas. Finalmente, importante destacar que durante o mandato a Plataforma viveu períodos de dificuldades com relação à manutenção dos assessores da Relatoria, seja pela retirada do apoio da UNV – Programa de Voluntários da ONU, seja pela falta de recursos próprios para remunerar adequadamente os assessores. PLANO DE TRABALHO E JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA Pode-se observar ao longo da existência do projeto relatores nacionais em Dhesca, e, em especial, no que tange ao trabalho desenvolvido pelas Relatorias de Saúde ao longo de sete anos, que temas/violações se repetem e tendem a continuar se repetindo no âmbito da saúde.

[2] Nota dos organizadores: A demora no processo de seleção para esta Relatoria decorreu da ausência de inscrição de candidaturas nos prazos estabelecidos pelo edital de seleção do ano de 2007.


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93 Não é novidade que a temática da mortalidade materna continua sendo ponto sensível quando se trata de políticas públicas, levando-se em conta um contexto de 100 vezes mais mortes por aborto em toda América Latina. Os informes produzidos pelas Relatorias nos anos de 2003, 2004 e 2005 não deixam dúvidas quanto a isso. A questão da mortalidade materna associada ao aborto inseguro produz indicadores assustadores em pleno século XXI, como os expostos acerca das condições de atendimento de mulheres em situação de aborto inseguro em Belo Horizonte[3]. A alta incidência de mortes de mulheres em curto espaço de tempo também foi foco central da missão realizada em João Pessoa, em 2005. Os fatores preponderantes para ocorrência de tantos óbitos são os mesmos encontrados anos depois para “justificar” a ocorrência de tantas outras mortes (homens, mulheres e crianças) no sistema público de saúde: os problemas concentram-se na falta de recursos financeiros, problemas de reformas e/ou ampliações de áreas físicas que não foram concluídas, hospitais operando no limite de suas possibilidades, redes municipais sem profissionais adequados, equipes do PSF precárias e atuando sem resolutividade, alta rotatividade dos profissionais de saúde (principalmente médicos), precariedade dos contratos, falta de supervisão adequada, inexistência de referência e contrarreferência, resistência dos médicos ao uso de determinados procedimentos nos casos de eclâmpsia (uso de sulfato de magnésio como preconizado nas normas técnicas), transporte de pacientes em ambulâncias inadequadas, morosidade no atendimento nos hospitais e a desumana peregrinação das gestantes em busca de hospitais para o parto[4]. A gestão do sistema público de saúde revela-se, assim, como cerne do problema que atinge o direito à saúde dos cidadãos. Falta de pessoal, falta de medicamentos e filas para o atendimento foram observadas na missão em Porto Alegre em 2006, com graves indícios de falta de acesso aos serviços de saúde e desumanização no atendimento[5]. Nesse sentido, o Planejamento Estratégico da Relatoria da Saúde, em seu mandato 2007-2009 previu como um dos eixos de ação a investigação de denúncias relacionadas com o acesso aos serviços públicos de saúde pela população, uma vez que acreditou ser o cerne do problema do sistema público de saúde atualmente. Tomou-se como base a inarredável garantia de que a Constituição Federal prevê em seu art. 196 que a saúde é direito de todos e dever do Estado, a ser garantido por meio do acesso universal e igualitário às ações e serviços públicos de saúde. O art. 198 prevê, ainda, que o Sistema Público de Saúde ofereça atendimento integral, ou seja, a rede pública de serviços de saúde deve ser capaz de atender a todos os tipos de problemas de saúde da população, desde os preventivos até os de alta complexidade. Esses dispositivos constitucionais foram regulamentados pela lei 8.080/90, Lei Orgânica da Saúde, que reforça as ideias de acesso universal e igualitário, acrescentando ainda que os serviços públicos de saúde devem ser integrais, resolutivos, seguros e eficazes. Outro eixo trabalhado pela Relatoria durante o mandato 2007-2009 refere-se à vulnerabilidade de alguns grupos sociais e a atuação dos órgãos estatais na prestação de serviços específicos para o atendimento desses grupos, como é o caso da população indígena do país, que reflete condições indignas de vida, que atentam contra a saúde dessa comunidade.

[3] Informe 2004 – Relatoria Nacional para o Direito Humano à Saúde. [4] Informe 2005 – Relatoria Nacional para o Direito Humano à Saúde. [5] Informe 2006 – Relatoria Nacional para o Direito Humano à Saúde.


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94 Assim, buscou-se, ainda que de forma concisa, investigar a própria concepção do sistema, como será explanado adiante no relato reduzido das missões realizadas. Seria o lapso de sete anos tempo suficiente para concluir que o Sistema Público de Saúde, tal qual desenhado para atendimento universal e igualitário da população, vem sofrendo um processo de estagnação (que na pior das hipóteses poderia ser tratado como involução) quando ainda é propalado como referência mundial? MISSÕES E DEMAIS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS Durante o mandato 2007-2009, a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Saúde teve a oportunidade de realizar duas missões investigativas, abrangendo assim grande parte dos eixos de trabalho planejados no início do mandato; e também esteve presente em fóruns de discussão expondo seu trabalho e interagindo com outras organizações da sociedade civil. A primeira missão, realizada entre os dias 18 e 20 de fevereiro de 2008 ocorreu na cidade de Manaus e teve como escopo a investigação de violações a grupos vulneráveis, em especial sobre o atendimento à saúde indígena daquela região. No segundo semestre de 2008 foi realizada a segunda missão da Relatoria, entre os dias 19 a 22 de outubro, na cidade do Rio de Janeiro, intitulada Missão Saúde para o Rio, buscando explicitar as deficiências de gestão no sistema de saúde do país que tanto afetam a população. Missão Saúde Indígena em Manaus (AM) A missão em Manaus teve início por meio de contato realizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB, em conjunto com pesquisadores da Coordenação de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, que procurou a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Saúde da Plataforma Dhesca Brasil para denunciar as condições de saúde as quais são submetidos povos indígenas no Brasil. A missão realizou-se entre os dias 18 e 20 de fevereiro de 2008 e durante esse período o relator visitou o Distrito Sanitário Indígena de Manaus (AM), a Coordenação Regional (CORE) da Funasa do Amazonas, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB, as aldeias urbanas dos Sateré Mawes e Tikunas localizadas no município de Manaus e, por fim, a Casa do Índio – CASAI do DSEI – Distrito Sanitário Especial Indígena-Manaus. Foram realizadas, ainda, reuniões com diversos atores envolvidos com a questão indígena, recebendo denúncias e coletando depoimentos dos chefes dos DSEI, enfermeiras, coordenadores regionais da Funasa, representantes da COIAB e os próprios índios, membros de aldeias urbanas. As denúncias recebidas abrangem diversos aspectos da política de saúde indígena brasileira, e vão desde a lógica organizacional dos serviços de saúde oferecidos pelo Estado até a atenção concreta à saúde dos povos indígenas. Em breve síntese as principais violações encontradas: A organização do Subsistema de Saúde Indígena, atualmente sob a atribuição da Fundação Nacional de Saúde – Funasa, entidade vinculada ao Ministério da Saúde, não possui recursos humanos e materiais suficientes para dar conta da atenção à saúde indígena no Brasil. As ações e serviços oferecidos pela Funasa aos índios não respeitam, em vários aspectos, as especificidades da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas;


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95 Os índios que migram para a cidade de Manaus estão à margem do sistema de atenção à saúde indígena no Brasil, em decorrência da má organização dos serviços da Funasa, que ignora os indígenas que habitam áreas urbanas. Isso se deve ao fato de que, ao se integrarem ao espaço urbano, os índios passam a ocupar um curioso papel social na medida em que não são mais reconhecidos como índios, mas também não são considerados cidadãos como todos os demais. Os mecanismos de participação dos índios na gestão e no controle das políticas de saúde indígenas implementadas mostram-se, atualmente, precários e insuficientes às necessidades e peculiaridades dos povos indígenas. O processo de municipalização dos serviços de saúde oferecidos às aldeias indígenas, acelerado pela portaria MS 2.656, de 17 de outubro de 2007, está desvirtuando o subsistema indígena e causando sérios problemas de atendimento, dentre os quais o de discriminação e o de inadequação dos serviços oferecidos às necessidades indígenas, o que se configura em verdadeira violação aos direitos dos índios. Os serviços de organização de sistemas de saneamento básico e abastecimento de água potável nas aldeias indígenas visitadas são precários e mal-organizados. As condições de atendimento aos índios que moram nas aldeias e necessitam de serviço especializado em Manaus são precárias e, muitas vezes, insuficientes. As condições geográficas de certas aldeias dificultam esse trabalho e nesse sentido há ausência de soluções adequadas para dar conta dessas dificuldades. Em que pese o amplo rol de instrumentos normativos (onde podemos incluir dois dispositivos constitucionais, o Estatuto do Índio e todo um Subsistema de Atenção à Saúde – “Lei Arouca” – criados há no mínimo uma década) voltados à Política Indígena no país percebe-se que muito pouco é efetivamente realizado. A complexa estrutura hierárquica ainda encabeçada pela Funasa não atende as necessidades mais elementares da população indígena. Enquanto responsabilidade da União, paulatinamente cada vez mais descentralizada a Estados e municípios, as ações voltadas à saúde indígena adquiriram caráter regionalizado, com atuação maior de municípios e organizações não governamentais. Na realidade, municípios e ONGs vêm ocupando um papel cada vez maior na prestação dos serviços. Mediante convênios e contratos firmados com a União, são eles que prestam diversos tipos de serviços de atenção à saúde diretamente nas comunidades indígenas. O crescente distanciamento do ente federal gera um grave problema de accountability, uma vez que qualquer tipo de fiscalização de ações e aplicação de recursos é totalmente deficitário, dando oportunidade à ocorrência de sérios desvios de recursos (como denunciado sobre o caso dos índios do Vale do Javari) e agravando ainda mais a precária prestação de serviços. Durante as visitas realizadas pode-se perceber o claro distanciamento entre os ideais preconizados pela portaria MS n. 254 de 31 de janeiro de 2001, que aprovou a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e a preocupante realidade encontrada. Distritos Sanitários Indígenas, idealizados como referência de atendimento e suporte à população indígena, são usados como verdadeiros depósitos. O depoimento de funcionários comprova que a organização administrativa, difusa e de difícil coordenação (pautada em três frentes de gestão administrativa: ações desenvolvidas pela Funasa; ações desenvolvidas pelas Secretarias Municipais de Saúde financiadas pela Secretaria de Atenção à Saúde Indígena do Ministério da Saúde; e ações desenvolvidas por ONGs) acaba provocando ineficiência e ineficácia das ações dos DSEI, o que se reflete diretamente na situação da saúde indígena na região. Representantes da COIAB entrevistados também ressaltaram a preocupação com os rumos da saúde indígena no Brasil. Demonstraram grande preocupação com o processo de municipalização e a lenta retirada da União, e com o suposto desvio de recursos públicos destinados à saúde indígena que estaria ocorrendo na região.


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96 A missão realizada em Manaus permitiu-nos perceber que a atual política de saúde indígena do governo federal, executada pela Funasa e pelo Ministério da Saúde, apresenta vários problemas financeiros e organizacionais que acabam provocando um conjunto de violações sistemáticas e permanentes ao direito à saúde indígena. As visitas realizadas às aldeias urbanas e à CASAI Manaus, bem como as informações coletadas sobre o atendimento de saúde oferecido aos índios no Brasil, nos permitem afirmar que, atualmente, os povos indígenas estão sujeitos a sucessivos casos de violação do direito à saúde, que vão desde ausência de atendimento adequado (Vale do Javari, p.e.) até um modelo de gestão que discrimina e não considera as especificidades culturais dos índios (a questão da municipalização, p.e.). Os casos de violação identificados têm relação com a inadequada estrutura de atenção à saúde indígena oferecida atualmente, incapaz de garantir, na totalidade, o respeito às especificidades culturais que deveriam ser preservadas no atendimento de saúde aos índios, nos termos da Constituição da República. O caso do Vale do Javari, no Estado do Amazonas, documentado pelo relatório apresentado na 173ª Reunião Ordinária do CNS – Conselho Nacional de Saúde, em Brasília, realizada em 10 de maio de 2007 (que relata surtos de hepatites B e Delta, tuberculose e malária), é emblemático sobre os problemas crônicos que atingem a saúde indígena no país e serve de parâmetro para orientar as possíveis ações do poder público para a melhoria do atendimento à saúde indígena. Verifica-se, portanto, uma situação permanente de violação ao art. 231 da Constituição e seus artigos regulamentadores da lei 8.080/90, violação que podemos definir como “crônica”, pois derivada da ineficácia do atual sistema de saúde indígena brasileiro. A modelação do atendimento à saúde indígena, calcada no tripé Funasa /Secretarias Municipais de Saúde/ONGs Conveniadas, não encontrou um equilíbrio harmônico e não está funcionando de maneira eficiente. O Ministério da Saúde não controla adequadamente os serviços prestados com os repasses de recursos aos municípios, via fundo-a-fundo. As ONGs conveniadas nem sempre são corretamente fiscalizadas pela Funasa ou pelo Ministério da Saúde, dando ensejo a potenciais conflitos políticos, problemas de relação entre agentes de saúde e índios e desvios de recursos públicos. Por fim, a Funasa não apresenta estrutura, equipamentos e recursos humanos e financeiros suficientes para prestar os serviços legalmente a ela atribuídos. O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena criado pela lei nº 9.836 de 1999 possui diretrizes bem delineadas, que lidas em conjunto com a portaria MS nº 254, de 31 de janeiro de 2002, demonstram a preocupação do governo brasileiro com a população indígena. O histórico da saúde indígena trazido no preâmbulo da portaria MS nº 254/2002 deixa claro as melhoras promovidas desde os idos de 1910 quando o primeiro Serviço de Proteção ao Índio – SPI foi desenvolvido pelo governo federal. Em praticamente um século de efetiva elaboração de políticas de saúde e ações indigenistas há de se reconhecer conquistas reais, como a criação da Funai – Fundação Nacional do Índio e, posteriormente, a indicação de um órgão federal específico para a proteção da saúde indígena, a Funasa. A garantia constitucional aos povos indígenas trazida na Carta de 1988 é o maior exemplo disso.


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97 No entanto, é alarmante que os excelentes documentos jurídicos produzidos, que em teoria atendem com amplitude as necessidades e especificidades dos povos indígenas ao formularem uma política indigenista inclusiva e abrangente, não sejam ampla e efetivamente aplicados. A cuidadosa organização criada para o desenvolvimento dos trabalhos dos DSEI pela portaria MS nº 254/2002 ainda não alcançou os seus objetivos práticos. A divisão de responsabilidades com alto grau de descentralização na prestação dos serviços, mascarada por uma municipalização dos serviços de atenção à saúde indígena, e a confusa política de incentivos e repasses criada pela portaria MS nº 2.656 de 17 de outubro de 2007, cria lacunas de fiscalização e amplia espaço para desvios de recursos e para a organização de serviços inadequados às necessidades indígenas. As ações indigenistas executadas por Estados e municípios distanciaram-se, nesse período, do grau de complementariedade definidos no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, para um modelo municipalizado e burocratizado, definido por uma portaria aprovada no afogadilho às vésperas do início de ano de eleições municipais. RECOMENDAÇÕES FEITAS AO GOVERNO BRASILEIRO SOBRE SAÚDE INDÍGENA: Apuração das violações acima relatadas para verificação da sua real existência e eventuais responsáveis, bem como para que sejam adotadas as ações administrativas e jurídicas necessárias ao pronto restabelecimento do direito à saúde indígena. Restabelecimento do diálogo entre os povos indígenas e a Funasa que possibilite efetivo avanço nas discussões sobre a política de saúde e proporcione uma avaliação transparente e fidedigna da situação da saúde indígena no país. Definição objetiva de responsabilidades tanto do governo federal como dos demais órgãos que atuam na política indigenista que acarretem, em caso de violações, responsabilização civil e criminal. Priorização aos programas de formação de agentes indígenas de saúde, mediante regulamentação de suas contratações, sendo-lhes asseguradas as devidas garantias trabalhistas. Realização de investimentos urgentes na infraestrutura dos DSEI que atendam às exigências da Portaria MS nº 254. Inclusão de índios urbanos nas políticas indigenistas para que sejam atendidos dignamente e não fiquem no atual limbo jurídico, onde não são mais reconhecidos como índios e tampouco são considerados cidadãos. Melhora na coleta de dados, diante da divergência de informações encontradas no que diz respeito ao número de índios urbanos na região de Manaus, com integração dos sistemas utilizados atualmente que retratem a situação dos índios, para que políticas eficazes de atenção à saúde indígena possam ser traçadas. A efetiva estruturação da política criada pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, organizado com autonomia, recursos e orçamentos próprios, capacidade de gestão e exercício pleno do controle social pelos usuários; ao invés do crescente processo de municipalização e terceirização que vem sendo implementado. Atenção às reflexões e determinações das Conferências Nacionais de Saúde Indígena previamente realizadas, em especial a realizada em 2006, que propôs dar autonomia administrativa e financeira aos Distritos Sanitários, mediante sua transformação em unidades gestoras do SUS, contando com orçamentos próprios administrados através dos Fundos Distritais de Saúde.


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98 Missão Saúde para o Rio: o acesso aos serviços de saúde no município do Rio de Janeiro O Rio de Janeiro vem passando na última década por intenso processo de sucateamento da rede de saúde pública. A situação caótica na prestação dos serviços culminou com a intervenção federal ocorrida em seis hospitais da rede municipal em 2005. Naquela época, os principais problemas identificados pelo então ministro da Saúde, Humberto Costa, já se relacionavam basicamente a problemas de gestão: descaso do poder público municipal, falta de pagamento a fornecedores e profissionais, desabastecimento de medicamentos e equipamentos quebrados. Com a intervenção realizada em 2005 veio a promessa de reverter o quadro da saúde na cidade, garantindo o abastecimento de medicamentos e insumos, a compra de equipamentos e a realização de reformas físicas para acolher as pessoas adequadamente. Não pode ser afastada, entretanto, a responsabilidade do próprio Ministério da Saúde – MS sobre a situação de calamidade pública que sofre o Rio de Janeiro, juntamente com as Secretarias Municipal e Estadual de Saúde. Isso se deve ao fato de ser previsível, antes mesmo da promulgação do decreto de intervenção, que o caos estava instaurado. O processo de municipalização de unidades de saúde federais, mediante convênios entre o MS e a prefeitura do Rio, sofreu vários entraves quando o município buscou o reajuste dos recursos, que, por força dos convênios, eram repassados pela União ao município. Pouco antes da promulgação do decreto de intervenção, o MS reconheceu uma dívida com a municipalidade da ordem de R$ 192, 6 milhões de reais. Passados dois anos da intervenção, o governador Sérgio Cabral não avaliou melhor a situação no Rio de Janeiro, tendo classificado o Estado dos hospitais da rede pública como verdadeiro genocídio da população. A má estruturação e organização da rede pública de serviços de saúde no Brasil se torna mais grave no Rio, que conta com uma rede hospitalar controlada pelos governos municipal, estadual e federal. A falta de articulação entre os três entes federados foi comprovada no decorrer da missão, não apenas através das entrevistas realizadas como pela inauguração de inúmeras Unidades de Pronto Atendimento de responsabilidade do governo estadual, em diversos pontos da cidade, sem qualquer planejamento integrado com a gestão municipal. Some-se a essa deficiente articulação o fato de o Rio de Janeiro ser uma das cidades com maior índice de violência no país, o que se reflete diretamente tanto na possibilidade de prestação de serviços pelos profissionais de saúde como no acesso da população aos serviços, sem que com isso coloquem a própria vida em risco. A realidade de mais de um milhão de pessoas que vivem em favelas e bairros da periferia do Rio de Janeiro traduz-se num capítulo à parte no acesso à saúde da população. Esse contingente de pessoas vive uma realidade totalmente díspar e que agrava a violação de seus direitos: são automaticamente criminalizados por viverem em áreas de conflito, e ainda por não apresentarem situação econômica que lhes assegure pronto atendimento em postos de saúde e hospitais. Dependem intermitentemente da atuação dos agentes voluntários de saúde, integrantes da Rede de Comunidades Saudáveis do Estado do Rio de Janeiro,[6] para ter o mínimo de dignidade assegurada no dia a dia. Em razão de suas peculiaridades naturais, o Estado do Rio de Janeiro, em especial sua capital, foi o mais afetado nos últimos anos com as epidemias de dengue. A falta de plano de contingência por parte do governo municipal, e a má articulação entre os governos, foi incapaz de conter o surto que assolou a cidade entre os anos de 2006 e 2008, conforme pudemos observar através das diversas ações propostas pelo Ministério Público Estadual e pela Defensoria Pública da União[7]. Face às denúncias recebidas, a Relatoria de Saúde realizou uma missão investigativa no município do Rio de Janeiro, optando por concentrar suas atividades na capital do Estado, que invariavelmente atende parte da população de municípios vizinhos. A missão ocorreu entre os dias 19 e 22 de outubro de 2008 e durante esse [6] Mais informações sobre a Rede de Comunidades Saudáveis em http://www.cedaps.org.br/2547. [7] No verão de 2007/2008 a taxa de mortalidade da doença chegou a 20%, índice 20 vezes maior que o aceito pela Organização Mundial de Saúde.


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99 período a Relatoria para o Direito Humano à Saúde esteve com diversos atores estratégicos, colhendo depoimentos e coletando dados sobre a situação da saúde na cidade do Rio de Janeiro. A Relatoria visitou hospitais da rede municipal (Miguel Couto e Souza Aguiar) e estadual (Getúlio Vargas), reuniu-se com membros das comunidades – os principais usuários da rede pública de saúde (lideranças dos Complexos do Alemão e Penha); entrevistou profissionais da saúde, tanto nas visitas aos hospitais como no próprio Conselho Regional de Medicina, e esteve em audiência com a Secretaria Municipal de Saúde e com o Ministério Público Estadual. Em que pese o curto período da missão e os inúmeros compromissos agendados, a Relatoria procurou ouvir todos os envolvidos, ativa e passivamente, na temática da saúde, não poupando esforços para montar uma agenda que englobasse todas essas pessoas. No entanto, diversas foram as tentativas para agendar audiência com a Secretaria Estadual de Saúde, que, infelizmente, às vésperas da missão, declinou receber esta Relatoria, assim como não autorizou visita aos hospitais selecionados da rede estadual (Albert Schweitzer e Getúlio Vargas). Contamos, no entanto, com apoio de redes extremamente atuantes e embora a visita ao Hospital Estadual Getulio Vargas não tenha sido completa a Relatoria teve acesso à situação e condições com que presta atendimento aquela instituição. Foi ponto pacífico durante a missão “Saúde para o Rio” que a rede de saúde não é integrada. Pode-se explicar a falta de integração – sem jamais justificá-la; levando em conta a dificuldade de relacionamento do governo municipal e estadual. É evidente que o embate político entre governos transborda os limites de seus respectivos gabinetes para assumir frente eleitoreira sobre quem pode mais. A incipiente cobertura de 18% do Programa Saúde da Família e a falta de infraestrutura dos postos se refletem claramente no chamamento dado à Zona Leste da cidade pela promotora do Ministério Público Estadual: “um deserto sanitário”. A população não encontra atendimento na maior parte das vezes ou precisa se deslocar muito para chegar a um posto. A situação da rede estadual não é melhor. Hospitais totalmente deteriorados (ver as constatações da visita ao Hospital Getúlio Vargas, e os dados colhidos no relatório disponibilizado pelo SINMED-RJ – Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro), com carência de pessoal (exemplificada nas diversas notícias veiculadas ao longo do ano de 2008 indicando que o setor de emergência de grandes hospitais teve que fechar as portas diante da falta de profissionais) e insumos, e sem capacidade de atender referenciamentos realizados pela rede municipal de saúde. Novamente, a justificativa de insuficiência financeira se revela tola quando nos deparamos com mais e mais Unidades de Pronto Atendimento – UPA sendo inauguradas pelo governo estadual. Sua função híbrida e sua organização vão contra a sistemática prevista pelo Sistema Único de Saúde. Com o deslocamento que a população precisa realizar para ter acesso à rede de saúde há o aumento da violência. Atravessar comunidades rivais revela-se extremamente perigoso e muitas vezes o atendimento não é realizado. A violência é fator preponderante para que as ambulâncias não subam nos morros mesmo quando a Secretaria Municipal de Saúde recebe graves denúncias sobre a condição de uma pessoa. A falta de integração no transporte dificulta ainda mais o acesso: seja pelo tempo que o paciente leva para chegar à unidade de atendimento, seja pela falta de condições financeiras para ter acesso ao transporte. A falta de programas de promoção de saúde pela secretaria municipal que contemple, entre outras, ações de moradia adequada, saneamento básico e coleta de lixo, fica evidenciada quando percebemos que quem promove educação em saúde é, muitas vezes, um membro da própria comunidade que, sem ter outra alternativa, busca o apoio de ONGs para conseguir insumos e realizar seu trabalho, voluntariamente. É evidente que não só a falta de educação em saúde como a precariedade de insumos para sua efetiva realização contribui exponencialmente para a proliferação de doenças e agravamentos na saúde. Acrescente-se aí, como fator determinante para o impedimento dessas ações, a violência. Um exemplo eloquente foi citado: a Secretaria Municipal de Saúde, ciente de focos de febre tifóide entre o Morro do Vidigal e da Rocinha, não tomou as providências necessárias em função da violência.


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100 A falta de médicos ficou marcada pelo fechamento da emergência do hospital Miguel Couto no primeiro dia da missão, deixando claro que o atual sistema de cooperativas de profissionais da saúde não é adequado para a população, tampouco para a dignidade do exercício da profissão, revelando seu precário vínculo. A rede instalada atual, seja nas unidades básicas ou pronto atendimento, encontra-se sucateada enquanto se promove a construção de mais UPAs. Tal medida não previne a ocorrência de filas, uma vez que o número de atendimentos não é ampliado, apenas desloca-se de unidades abandonadas para outras recém-criadas. A missão realizada no Rio de Janeiro foi essencial para verificar as reais condições de acesso da população carioca aos serviços públicos de saúde, levando-se em conta a questão da universalidade, da integralidade, da igualdade no atendimento, entre outros aspectos legalmente assegurados à população brasileira. Não se discute que a precária situação da rede de saúde municipal é real mesmo que os argumentos utilizados para decretação do Estado de calamidade em 2005 não sejam juridicamente sustentáveis. Seja porque não havia se passado nem uma década da gestão plena assumida pelo município não podendo ainda ser afastada a responsabilidade do próprio MS na instauração do caos; seja porque existiam meios menos dramáticos, que não a promulgação de um decreto presidencial, para desabilitar o município da gestão plena do sistema de saúde municipal. Percebe-se claramente que os mandamentos da portaria n. 648 de 28 de março de 2006, que estabeleceu que o PSF é a estratégia prioritária do Ministério da Saúde para organização da atenção básica, não vem sendo cumpridos, uma vez que a cobertura de serviços no Rio de Janeiro é baixíssima. Os fundamentos da referida portaria são possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade, reafirmando os princípios básicos do SUS de universalização, equidade, descentralização, integralidade e participação da comunidade – mediante cadastramento e a vinculação dos usuários. Tampouco vêm sendo observadas as determinações da portaria MS n. 1.101 de 12 de junho de 2002, que estabeleceu, entre outros, parâmetros que representam recomendações técnicas ideais, constituindo-se em referências para orientar os gestores do SUS dos três níveis de governo no planejamento, programação e priorização das ações de saúde a serem desenvolvidas, podendo sofrer adequações regionais e/ou locais de acordo com realidades epidemiológicas e financeiras. RECOMENDAÇÕES FEITAS AO PODER PÚBLICO Recomenda-se que a União, o Estado do Rio de Janeiro e o município do Rio de Janeiro se articulem para melhorar a interação entre os serviços de saúde prestados por cada um desses entes federativos, integrando os programas e os investimentos de forma a otimizar os seus resultados. Recomenda-se que o gestor do SUS no município do Rio de Janeiro planeje melhor a alocação de profissionais de saúde nos hospitais municipais para evitar o fechamento de emergências e serviços como o verificado no Miguel Couto durante a missão realizada. Nesse sentido, recomenda-se melhor seleção e controle das entidades terceirizadas para a alocação de médicos nos serviços públicos municipais. Recomenda-se melhor gestão dos recursos e serviços de vigilância em saúde no território do município do Rio de Janeiro, pelo Estado e pelo município, para que se evitem mais mortes em decorrência da dengue. Recomenda-se ao governo do Estado do Rio de Janeiro a melhoria das instalações e condições de funcionamento do Hospital Getúlio Vargas. Recomenda-se ao governo do Estado do Rio de Janeiro uma avaliação do programa das Unidades de Pronto Atendimento – UPAs, para que, em se mantendo o modelo, seja o mesmo realizado com os devidos controles.


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101 Recomenda-se aos governos estadual e municipal do Rio de Janeiro que evitem criar embaraços para os usuários de serviços voltados à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e planejamento familiar, como o cadastramento indevido de adolescentes. Recomenda-se aos governos estadual e municipal do Rio de Janeiro a melhor distribuição da rede de serviços públicos básicos, evitando o que pode ser denominado de “desertos sanitários” hoje identificados no território municipal. Recomenda-se ao gestor do SUS no município do Rio de Janeiro uma ampliação dos serviços oferecidos nos postos de saúde para evitar as filas desmesuradas e, também, uma fiscalização rigorosa do sistema de senhas dos postos de saúde para evitar a venda de lugares e de atendimentos, como denunciado pela sociedade civil. DEMAIS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELA RELATORIA Em agosto de 2008, a Relatoria da Saúde esteve presente no Simpósio Questões Jurídicas – Marcos Legais para Apoio aos Pacientes e Ex-pacientes de Tuberculose” organizado pela Rede Paulista de Controle Social da Tuberculose e GAPA-SP – Grupo de Apoio à prevenção à AIDS. O objetivo principal do simpósio foi discutir os direitos dos pacientes e ex-pacientes de tuberculose, tanto em relação ao tratamento e cura quanto no contexto da sociedade para o enfrentamento ao estigma, aos preconceitos e pela inclusão. Dentre os temas discutidos podemos destacar: direitos contidos no SUS; direitos contidos na LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social; direitos contidos na LOSAN – Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional; direitos à cidade e à moradia; direitos ao INSS e direitos ao trabalho; direitos à justiça e cidadania; e direitos complementares. Já no final do mandato, a Relatoria da Saúde teve a honra de participar da primeira Consulta Sul-Americana sobre o Direito à Saúde com o relator especial da ONU para o Direito à Saúde, Anand Grover. O encontro organizado pela Conectas ocorreu em São Paulo entre os dias 25 e 26 de março e contou com a participação de mais de 30 organizações da América Latina.[8]. O encontro não constituiu uma visita formal do relator à região (uma vez que dependeria de convite oficial do governo brasileiro), mas consistiu em diálogo informal entre o relator e a sociedade civil. Essa espécie de consulta não é prática habitual entre relatores especiais das Nações Unidas, sendo a primeira consulta regional organizada por Anand que, futuramente, definirá as linhas de atuação de seu mandato com base nas informações colhidas. Os participantes fizeram breve explanação em painéis seguida de discussão aberta sobre temas que incluíram: “Visão geral sobre a situação do direito à saúde na América Latina” (este painel foi dirigido pelo relator Fernando Aith); “O impacto da religião no direito à saúde na América Latina”; “Contaminação ambiental e seu impacto na saúde”; “Povos indígenas”; “Raça e saúde”; “Conflito armado”; “Mulheres e saúde”; “Orientação sexual e direitos sexuais”; “HIV e o acesso a medicamentos”; “Tuberculose e outras doenças infecciosas”; “Profissionais do sexo”; “Saúde mental”; “Crianças e saúde”. [8] Entre elas: ILGA-LAC/ABGLT (Brasil); Observatório Interdisciplinar de DH da UFRGS (Brasil); DAWN – Development Alternatives with Women for a New Era (Brasil); CASVI/ABGLT (Brasil); GAPA/SP (Brasil); CLADEM (Brasil); Associación Turmequé (Colombia); CELS/Red Desc (Argentina); RSMLAC – Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y Del Caribe (Brasil); Aliança de Controle do Tabagismo (Brasil); CLACAI – Consorcio Latinoamericano contra El Aborto Inseguro (Brasil); FOROSALUD/AMA (Peru); APRODEH – Asociación Pro Derechos Humanos (Peru); PROMSEX – Centro de Promoción y Defensa de los Derechos Sexuales y Reproductivos (Peru); CLAM – Centro LatinoAmericano em Sexualidade de Direitos Humanos (Brasil); GIV/GTPI (Brasil); Rede Afro Saúde Brasil (Brasil); Mujer y Salud en Uruguay (Uruguay); CRR – Center for Reproductive Rights (US); LACCASO – Consejo Lat. Y Del Caribe de ONGs con Serv. en HIV (Argentina); Observatório Del Sistema Judicial (Uruguay); RDLACTRANS (Argentina); IGLHRC – Comision Internacional de los Derechos Humanos de Gays y Lesbianas (Argentina); CCR – Comissão de Cidadania e Reprodução (Brasil); Programa Venezolano de Educación Acción em Derechos Humanos (Provea) (Venezuela); REDTRASEX – Red de Trabajadoras Sexuales Latinoamerica y el Caribe (Paraguay); Pela Vida/GTPI (Brasil); Mulabi – Espacio Latinoamericano de Seexualidades y Derechos (Argentina); ABIA/GTPI (Brasil); ABIA/SPW (Brasil); Geledés (Brasil); FALCOSIDA – Fórum Associações Comunitárias de Luta contra SIDA (Guiné Bissau); Associação Cabo-Verdiana de Mulheres Juristas (Cabo Verde); LAMBDA – em Defesa das Minorias Sexuais (Moçambique); Liga Moçambicana de Direitos Humanos (Moçambique); AMM – Ação Angolana para a Mulher (Angola); AHARPE – Ação Humanitária, Assistência e Reintegração dos Presos e Exilados (Angola).


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102 CONCLUSÕES A forma como o Sistema Único de Saúde foi organizado em nossa Constituição, com o reconhecimento dos princípios da universalidade, da integralidade e da gratuidade, exige do Estado uma organização eficiente dos serviços públicos de saúde, que deve contar com gestão eficaz e aporte de recursos financeiros perenes e suficientes para fazer frente à demanda de serviços de saúde da população brasileira. É certo que, atualmente, os desafios para a efetivação do direito à saúde no Brasil dependem bastante da melhoria da capacidade financeira do sistema e da boa aplicação dos recursos destinados à saúde pública. O orçamento público destinado ao SUS ainda é insuficiente. Relatórios da Organização Mundial da Saúde – OMS revelam que o gasto do Brasil com saúde por pessoa é menor do que em países como Argentina, Chile, Costa Rica, México, Uruguai, África do Sul e Botsuana. Nesse sentido, urge a aprovação da regulamentação da EC 29 para que o aporte de recursos para a saúde pública no Brasil seja regularizado e melhorado. Problemas como filas, falta de vagas, vigilância em saúde precária, saneamento básico insuficiente ou inexistente, falta de profissionais, falta de preparo dos próprios profissionais, baixa remuneração dos profissionais, falta de insumos, falta de equipamentos, etc., são pontos que certamente perdurarão por anos e que exigem ação enérgica, constante e permanente dos órgãos públicos, bem como fiscalização atenta da sociedade. Outro aspecto importante refere-se à necessidade de se ampliar as políticas multissetoriais, que ultrapassem a obtenção de serviços médicos e a obtenção de medicamentos. Uma revisão das políticas públicas atuais é necessária para enfrentar os determinantes complexos da saúde da população em geral. Condições de emprego, salário, moradia, alimentação, educação, lazer e transporte se refletem diretamente na qualidade de vida e na saúde das pessoas. Quando esses aspectos não vão bem, mais pessoas adoecem e o sistema fica ainda mais sobrecarregado. Como pôde ser observado na missão realizada no Rio de Janeiro, os problemas de gestão encontrados são piorados por problemas sociais que afetam a saúde dos cidadãos. O cenário se agrava quando acrescentam-se às deficiências problemas outros como corrupção e desvios, ainda constantes na área da saúde. O trabalho desenvolvido nesse sentido, pelas Relatorias Nacionais dentro da Plataforma Dhesca, revela-se essencial para monitoramento e visibilidade das violações. As missões constituem-se, sem sombra de dúvida, em meio eficaz de monitoramento de violações do direito humano à saúde. A discriminação de índios e pobres ainda é uma constante na organização dos serviços públicos de saúde, em desrespeito direto ao princípio constitucional do acesso universal e igualitário aos serviços públicos de saúde (cf. art. 196). No que se refere aos índios, urge que a União encontre uma melhor organização jurídica e administrativa que dê conta dos direitos dessa população específica. A Fundação Nacional de Saúde – Funasa e o sistema de prestação de serviços via organizações não governamentais vêm se mostrando insuficientes, para dizer o mínimo, para a proteção e recuperação da saúde indígena. No que se refere à população mais pobre de nosso país, é evidente a insuficiência de serviços de saúde próximos aos seus locais de moradia, em afronta direta ao princípio da regionalização previsto na Constituição Federal (art. 198). A Plataforma Dhesca deve continuar monitorando as violações a esse importante direito assegurado pela Constituição, para que o Sistema Único de Saúde se aperfeiçoe em busca de um atendimento universal, igualitário e integral no Brasil.


C창ndida da Costa Rivane Arantes C창ndida da Costa: Relatora Nacional do Direito Humano ao Trabalho (mandato 2007-2009) da Plataforma Dhesca Brasil. Rivane Arantes: Assessora da Relatoria Nacional do Direito Humano ao Trabalho (mandato 20072009) da Plataforma Dhesca Brasil.



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105 Relatoria do Direito Humano ao Trabalho Referente aos anos de 2007-2009, esse relatório apresenta a experiência de intervenção sociopolítica da Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho no Brasil. A Relatoria cumpre a missão de contribuir para que se adotem medidas de proteção e efetivação do direito humano ao trabalho, baseando-se na Constituição Federal de 1988, legislações ordinárias e tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil é signatário. Para isso, apresentaremos o marco conceitual que orienta a noção de direito humano ao trabalho da Relatoria; um breve panorama da situação desse direito no país; uma análise do trabalho a partir dos indicadores do “trabalho decente” da Organização Internacional do Trabalho – OIT; e, em seguida, relataremos as ações realizadas pela Relatoria, na tentativa de dar conta de sua missão, durante o mandato. Ao final, apontaremos as dificuldades que marcaram o processo, os impactos das ações empreendidas e os desafios que permanecem para o próximo mandato. MARCO CONCEITUAL DO DIREITO HUMANO AO TRABALHO As ações desenvolvidas pela Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho são, entre outras, a de observação dos “mundos” do trabalho e do monitoramento dos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro na Constituição Federal, legislações ordinárias e tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário; podemos citar, ainda, a repercussão sobre políticas públicas de trabalho, o recebimento de denúncias de violação ao direito humano ao trabalho e a proposição de medidas e políticas públicas para a área. Para isso, a Relatoria adotou como paradigma o conceito de “trabalho decente” desenvolvido pela OIT, que tem na dignidade humana a sua centralidade e que se coloca como elemento fundamental para transformar crescimento econômico em inclusão social. Ou em desenvolvimento humano nas atuais sociedades globalizadas, como afirma a própria OIT. A Relatoria se filia à compreensão de que a atual condição de pobreza e desigualdade nos “mundos” do trabalho, particularmente as relacionadas a classe, gênero e raça, não serão substancialmente modificadas apenas pela geração de novos postos de trabalho, mas pela qualidade dessas novas relações. Essa qualidade, por sua vez, tem na noção do trabalho decente a sua melhor caracterização, porque é capaz de conectar os três pilares centrais do debate contemporâneo sobre os direitos humanos: democracia, direitos humanos e desenvolvimento. Assim, segundo a OIT, trabalho decente é “o trabalho produtivo e adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, e que garanta uma vida digna a todas as pessoas que vivem do trabalho e as suas famílias”. Como se vê, para que uma relação de trabalho se adeque à condição de trabalho decente, faz-se necessária a observância de quatro dimensões: Respeito às normas internacionais do trabalho, em especial aos princípios e direitos fundamentais do trabalho, dentre eles: a liberdade sindical, o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, a eliminação de todas as formas de trabalho forçado, a abolição efetiva do trabalho infantil e a eliminação de todas as formas de discriminação. Promoção do emprego de qualidade. Extensão da proteção social quando não puder ser exercido o trabalho, como em caso de desemprego, doenças, aposentadoria, etc. Diálogo social, isto é, direito de representação e existência de espaços e mecanismos de diálogo social que envolvam empregadores e trabalhadores[1]. [1] Emprego, desenvolvimento humano e trabalho decente: a experiência brasileira recente. Brasília: CEPAL/ PNUD/OIT, 2008 (Projeto CEPAL/PNUD/OIT).


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106 A REALIDADE DO TRABALHO NO BRASIL Ao ingressar no século XXI, o Brasil mantém-se como uma das economias mais ricas do planeta, sendo, paradoxalmente, um dos países mais desiguais do mundo. Os fios que tecem essa estranha lógica, entretanto, revelam com igual intensidade que o conflito capitaltrabalho continua sendo motor dessas desigualdades, principalmente quando visualizadas sob as lentes de classe, gênero e raça. Em verdade, não há chance para a vivência de um trabalho compatível com a dignidade das pessoas em uma experiência de capitalismo. Todavia, a assunção de um modo de trabalho que se adeque às condições do trabalho decente, pode ser o elo para a constituição de sociedades mais equitativas. Para entender a realidade do trabalho hoje, retornamos às décadas de 80/90, momento de grande retrocesso nas conquistas dos trabalhadores(as) nos países que, como o Brasil, optaram por uma inserção subordinada à economia global. Nessa ocasião, o aprofundamento da crise nos ditos “países subdesenvolvidos”, a fragilidade do Estado em assegurar os interesses econômicos nacionais e os direitos sociais da coletividade e a assunção da política neoliberal, com a adesão ao Consenso de Washington, impôs uma agenda de deterioração da vida dos trabalhadores(as) brasileiros(as). Destaque-se que, mesmo tendo sido derrotado eleitoralmente, esse projeto manteve coesão política e se estruturou fundamentalmente na desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas. Isso se deu e tem sido encaminhado em duas frentes da relação capital-trabalho: a) no ambiente das empresas, ao se impor as regras do mercado entre empresários(as) e trabalhadores(as) como mecanismo para “livremente”, sem a intromissão do Estado, contratarem novas regras da relação laboral, a partir da necessidade da empresa e da economia em geral; b) no ambiente do Estado, onde se impõe desregulamentação dos direitos trabalhistas, sobrepondo-se o negociado ao legislado; política de Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital, com a redução de gastos públicos (até mesmo com servidores e serviços essenciais); vigência de legislações impeditivas à ação dos movimentos sociais e a própria criminalização dos movimentos e suas lideranças políticas. Nesse contexto, a chamada reestruturação produtiva de cunho tecnológico e de domínio do capital financeiro especulativo internacional, pelo seu caráter exploratório e concentrador de riqueza, vem causando um desmonte da força de trabalho nacional, extinguindo milhares de ocupações e impondo o desemprego aos trabalhadores(as) do Brasil. Isso tudo associado ao desassalariamento e à generalização de postos de trabalho extremamente precários e caracterizados pela informalidade e rotatividade, operando veladamente processos de racismo e sexismo como mecanismos de diferenciação e exclusão. Durante esse período, as políticas públicas acenadas pelos governos, ainda fragmentadas em sua maioria, com baixa cobertura social, escassez de recursos públicos, sobreposição de funções, desvios de objetivos e elevados custo-meio, não conseguiram incidir significativamente sobre essa realidade, o que manteve o Brasil no grupo dos países com alta taxa de desempregados[2]. Por sua vez, a experimentação de novos processos de democracia política e os sensíveis avanços socio econômicos vivenciados pelo país, já neste novo século, particularmente as políticas relacionadas à transferência de renda, acessibilidade aos direitos sociais, crescimento econômico e os esforços no sentido do diálogo social, também não foram suficientes para modificar a lógica predadora e concentradora do modo de exploração do trabalho no Brasil. [2] Segundo o IBGE, taxa de desemprego apurada nas seis regiões metropolitanas do país, em junho de 2009, foi de 8,1%. Fonte: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2009/07/23/economia,i=129026/IBGE+T AXA+DE+DESEMPREGO+EM+JUNHO+CAI+ PARA+8+1.shtml)


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107 Outro dado relevante nessa análise são as consequências da expansão das economias asiáticas, particularmente a chinesa e a indiana, cujo crescimento agressivo, marcado por um custo de mão de obra abaixo da média internacional e alta produtividade, vem desequilibrando o sistema de produção capitalista e impondo um grau de precariedade que em nada reflete a potencialidade do modo de trabalho atual. Mas a lógica da concentração de riqueza, o controle por um pequeno número de países ricos e o capital especulativo que marcam o atual modelo de globalização financeira, manifesta-se de maneira extremada na crise econômica mundial que se alastra desde 2008, tornando mais dramática a situação dos trabalhadores(as) em países como o Brasil, uma vez que “parte importante dos custos da crise financeira e econômica recairá sobre centenas de milhões de pessoas que não receberam os benefícios do crescimento ocorrido nos últimos anos”[3]. Para se ter uma ideia, apenas uma parte dos ganhos com o crescimento da economia do Brasil, registrados no Produto Interno Bruto – PIB entre 1995 e 2007, foi repassada para o salário dos trabalhadores. Ao passo que o PIB per capita cresceu 16% nesse período, o rendimento médio real dos trabalhadores registrou uma queda de 6%[4]. Isso significa que, no Brasil, os ganhos de produtividade medidos pelo PIB não implicaram em ganhos salariais para os trabalhadores(as) e o crescimento do emprego ocorreu ao mesmo tempo em que a redistribuição de renda afastou-se do trabalho. Essa situação é acentuada no caso das mulheres e da população negra, que, no Brasil, representam juntas a maioria da População Economicamente Ativa – PEA, por exemplo, em 2006 formavam 71,8% da PEA de 16 anos ou mais. Dados da OIT informam que os efeitos da crise financeira imporão o desemprego a homens e mulheres, mas serão as mulheres, particularmente as negras, as mais gravemente afetadas, uma vez que constituem o grupo populacional que tem empregos mais vulneráveis, piores condições de trabalho, menos produtivos e salários mais baixos[5]. Nesse cenário, as novas tecnologias, o crescimento econômico experimentado nos primeiros anos desse século, a recuperação da economia brasileira responsável por alçar o país ao rol dos países mais influentes do mundo – integrando o atual G-20 – e as políticas de distribuição de renda inauguradas pelo governo Lula não conseguiram debelar os efeitos excludentes do modo de produção atualmente praticado a partir de interesses mercantis no Brasil. Desse modo, persistem formas degradantes e ilegais de trabalho. Ainda que o trabalho escravo e o infantil tenham sido reduzidos, continuamos a nos deparar com jornadas de trabalho extenuantes de mais de 10 horas diárias, baixos salários, condições de insalubridade e rotatividade, desintegração da força de trabalho pelo desemprego estrutural ou de longa duração e pela informalidade, práticas antissindicais expressas na criminalização e perseguição das pessoas que se organizam pela busca de seus direitos e a flexibilização e desregulamentação dos direitos trabalhistas. Essas realidades ocasionam baixa autoestima, sentimento de descartabilidade e fome nos trabalhadores(as), aviltando a dignidade inerente àqueles(as) sujeitos políticos de todos os direitos humanos e ameaçando o exercício de outros direitos com os quais o direito ao trabalho mantém relação de interdependência (meio ambiente, saúde, educação, etc.). Nunca é demais lembrar que no Brasil esse direito representa para a maioria da população a principal porta de acesso aos demais direitos humanos. [3] Relatório sobre o Trabalho no Mundo 2008: desigualdades de renda na era das finanças globais, elaborado pelo Instituto de Estudos Laborais da OIT (http://www.oitbrasil.org.br/relatorio_mundo_trab.php) [4] Relatório Mundial sobre Salários 2008/2009 da OIT. [5] Segundo o relatório Tendências Mundiais de Emprego 2009 da OIT, o agravamento da crise econômica pode fazer com que a taxa global de desemprego atinja 7,1% neste ano, comparado com 6% em 2008 e 5,7% em 2007. Nesse caso, o número de desempregados pode chegar a quase 230 milhões, sendo 50,5 milhões a mais que os 179,5 milhões registrados em 2007, ano em que a economia global ainda não havia sido atingida pela primeira grande crise da globalização capitalista.


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108 UM OLHAR A PARTIR DOS INDICADORES DO TRABALHO DECENTE A caracterização do trabalho decente, segundo a OIT, diz respeito ao tipo de trabalho que observa, pelo menos, quatro dimensões fundamentais: qualidade do trabalho, proteção social, respeito aos direitos humanos e diálogo social. Assim, insistindo numa abordagem a partir dessas dimensões, podemos afirmar que o Brasil, apesar dos esforços de inclusão, ainda mantém altos déficits de trabalho decente. Estudo da OIT[6] informa que, “entre 1992 e 2006, o aumento da taxa de desemprego das mulheres (41%) foi quase o dobro da alta de desocupação masculina (21%), e, paradoxalmente, isso ocorreu numa situação de aumento do ingresso das mulheres no mercado de trabalho”. Nesse sentido, não é surpresa visualizar que as mulheres, particularmente as negras, foram o grupo populacional mais atingido pelo desemprego[7], ainda que sua taxa de ocupação tenha aumentado. É significativo, também, considerar a disparidade dos índices no caso dos jovens. O mesmo estudo aponta que a taxa de desemprego das pessoas com 25 anos ou mais subiu de 4,3% para 5,6%, enquanto que a dos jovens de 16 a 24 anos cresceu de 11,7% para 17,9%. Quanto à qualidade dos postos de trabalho, considera-se o alcance da formalização – contratos regulares de trabalho, remuneração e jornada de trabalho. Nesse sentido, no Brasil, os efeitos da crise submeteram de maneira mais intensa as mulheres e a população negra a uma inserção informal e precária no mercado de trabalho, quando se compara os demais trabalhadores(as), ainda que haja registro de ampliação dos postos de trabalho. Mesmo tendo diminuído para as mulheres e a população negra em 2006, a taxa de informalidade manteve-se em patamares muito superiores: 42,8% para homens brancos, 47,4% para mulheres brancas, 59,8% para homens negros e 62,7% para mulheres negras. Quanto à remuneração, cabe destacar o esforço governamental de recuperação do salário-mínimo, especialmente a partir de 2005. Constitui-se uma importante estratégia de aumento do rendimento dos trabalhadores(as), principalmente os menos qualificados, de baixa renda e com fraco poder de barganha, onde estão inseridos majoritariamente os trabalhadores negros e as mulheres. Essa leitura nos leva à equação de que ampliar o salário-mínimo tem impacto positivo e significativo sobre as desigualdades de gênero e raça no interior da sociedade brasileira. O limite disso é a forma como o mercado de trabalho continua se comportando no Brasil, ou seja, com baixa remuneração para a maioria das pessoas, alto nível de desigualdade salarial e discriminação entre homens e mulheres. Estudo da OIT informa que, em 2006, os homens negros ocupados e sem instrução recebiam 73,9% do rendimento dos brancos sem escolaridade, as mulheres brancas recebiam 70,7% e as mulheres negras 54,9%[8]. No que se refere à jornada de trabalho, a realidade informa que continua alta a quantidade de trabalhadores(as) submetidos a jornadas exaustivas de trabalho. Em 2006, pelo menos 34,7% estavam nessa situação, atingindo em maior grau os homens (42,4%) que as mulheres (24,5%); todavia, o mesmo estudo aponta que a população negra despende mais horas com o trabalho.

[6] Emprego, desenvolvimento humano e trabalho decente: a experiência brasileira recente. Brasília: CEPAL/ PNUD/OIT, 2008 (Projeto CEPAL/PNUD/OIT). [7] De 1992 a 2006 aumentou de 8,6% para 12,5%, enquanto para os homens brancos variou no mesmo período de 4,7% para 5,6%. [8] Isso se agrava quando consideramos as pessoas que têm 15 anos ou mais de estudo: os homens negros recebiam no mesmo período 72,5% do que recebiam os homens brancos, as mulheres brancas recebiam 56,2% e as mulheres negras 42,4%.


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109 O tema jornada de trabalho relacionado ao excesso da carga horária é um dos mais sensíveis às mulheres. Nesse aspecto, se, de um lado, o dado aponta que os homens têm cargas mais excessivas; há que se reconhecer que, do outro, continua sendo sobre as mulheres que recai o peso de todo o trabalho doméstico. Essa realidade as mantém numa condição de realizar várias jornadas de trabalho, sem que isso seja suficientemente considerado como trabalho e sem que essa situação reverbere em compartilhamento das tarefas pelos homens. Esse é um grande problema se pensarmos que, entre a população ocupada, os homens despendem 9,1 horas semanais para as atividades domésticas, enquanto que as mulheres 21,8 horas; e, entre as mulheres de 25 a 49 anos – que integram a maioria da população economicamente ativa, 94% delas ocupam o seu tempo de descanso com esse tipo de trabalho. No tocante à proteção social, destacamos que o Brasil é um dos países em que os desempregados têm menos proteção social. Os acidentes de trabalho se mantêm em níveis elevados[9] e afetam majoritariamente os homens, embora as lesões por esforço repetitivo – LER atinjam expressivamente as mulheres e ainda não sejam identificadas como resultantes do trabalho, a exemplo de outros males. Essa invisibilidade, no caso das mulheres, também ocorre quando se relacionam taxas de incidência[10] e de mortalidade[11]. Nesse campo, assinalamos ainda que um dos problemas é que o Brasil possui um sistema de registro de doenças relacionadas ao trabalho e de acidentes de trabalho e programas de prevenção muito frágeis e insuficientes diante do tamanho do problema. Os dados registrados de doenças incapacidades e mortes revelam condições inseguras de trabalho, mas mostram apenas parte do quadro geral, pois se referem ao setor formal de emprego, não dando conta do setor informal, do trabalho rural e doméstico, e dos servidores públicos. Outra questão é que os serviços do Sistema Único de Saúde – SUS voltados à saúde dos(as) trabalhadores(as) existem apenas nas grandes cidades e, mesmo nestas, conta com pequena participação de representação de sindicatos e associações dos principais interessados. A Relatoria do Trabalho pôde identificar em várias situações a não emissão da Comunicação de Acidente do Trabalho – CAT, bem como a ocorrência de morte por exaustão de trabalhadores do corte da cana-de-açúcar no interior de São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Em razão da gravidade do problema, frente à inexistência de medidas para se combater esse mal, vem discutindo com representantes no Congresso Nacional a apresentação de um projeto de lei que trate da matéria, qual seja, a instituição de lei que regule a morte por exaustão e morte súbita de trabalhadores no Brasil. Outro dado relevante no que se refere à cobertura protetiva é o baixo nível de contribuição à previdência social. Estudo da OIT aponta que, em 2006, apenas metade do total dos ocupados contribuía para a Previdência, agravando-se esse perfil conforme a identificação por gênero e raça: a cobertura previdenciária beneficiava 58,6% dos homens brancos, mas apenas 40,6% das mulheres negras. O seguro desemprego é outro elemento indicativo da proteção social, destinado a garantir renda nas situações de desemprego e de busca de ocupação. No Brasil, todavia, dados da OIT apontam que “93% daqueles que perdem o trabalho não recebem o seguro-desemprego”[12]. Ademais, as suas condicionantes são bastante restritivas e acabam por excluir os trabalhadores informais e domésticos(as) (a não ser que contribuam para o FGTS) e não consideram o caráter precário expresso nos contratos temporários, bem como a rotatividade do mercado de trabalho brasileiro[13]. [9] Em 2006, foram registradas 503.890 ocorrências. Emprego, desenvolvimento humano e trabalho decente: a experiência brasileira recente. Brasília: CEPAL/ PNUD/OIT, 2008 (Projeto CEPAL/PNUD/OIT). [10] É uma taxa ou número relativo, que expressa o risco ou probabilidade de ocorrência de um agravo ou acidente na população de trabalhadores expostos àquelas condições – em 2006 a taxa foi de 18,6 acidentes de trabalho por mil trabalhadores. (Idem) [11] Taxa ou número de acidentes fatais decorrentes do trabalho sobre uma dada população. Em 2006 foi de 10 ocorrências para 100 mil trabalhadores. (Ibidem) [12] Estudo divulgado pela OIT com base nas medidas anunciadas por 32 países contra a crise – Folha de São Paulo 25.03.09. [13] À exceção dos pescadores(as) em tempo de defeso e os trabalhadores/as resgatados de regimes de trabalho forçado ou condição análoga a escravidão.


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110 Por fim, pode-se afirmar que o processo de deterioração das relações de trabalho se refletiu diretamente no nível de organização sindical e na sua consequente capacidade (ou não) de diálogo social. As taxas de sindicalização só recentemente sofreram um lento crescimento, sendo maiores entre os homens que entre as mulheres. Todavia, paralelo ao esforço de negociação coletiva, intensificou-se a estratégia de descrédito, intimidação, criminalização e até assassinatos de lideranças de movimentos sociais de luta pelos direitos do trabalho. Referindo-se ao trabalho forçado, algumas iniciativas foram adotadas pelo governo federal na tentativa de enfrentar o problema. Foi o caso da criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, que fiscaliza a ocorrência de trabalho escravo a partir de denúncias; o Cadastro de Empregadores, conhecido como “lista suja”, onde são registrados os empresários e empresas flagrados pelo GEFM – Grupo Especial de Fiscalização Móvel; o pacto empresarial pela erradicação do trabalho escravo proposto e monitorado pela OIT, Instituto Ethos e a organização não governamental Repórter Brasil; e o Compromisso Nacional para aperfeiçoar as condições de trabalho na cana-de-açúcar, assinado no dia 25 de junho deste ano por mais de 300 empresários, além de trabalhadores(as) e governo, com o objetivo de melhorar as condições de trabalho dos cortadores(as) de cana no país. O acompanhamento dessas iniciativas, todavia, tem nos informado que o trabalho escravo ainda é uma realidade entre nós e que a ausência de sanções suficientes e a polêmica aberta em torno da competência para o julgamento desse crime têm sido um entrave à eliminação desse problema no país, juntamente com a demora na aprovação do Projeto de Emenda Constitucional – PEC 438/01, que propõe a expropriação de propriedades e sua destinação a programas de reforma agrária ou de habitação popular onde for identificada a exploração de trabalho escravo. Quanto ao trabalho infantil, uma série de medidas foram implementadas pelo governo, destacando-se o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI. Pesquisa apontou que, “entre 1992 e 2006, o número de crianças e adolescentes trabalhando caiu pela metade, embora ainda existam 2,4 milhões deles nessa situação”. Esse é um problema cuja solução tanto deve se voltar para o público adulto quanto para o público infanto-juvenil. É fundamental, de um lado, um conjunto de ações que as protejam de toda forma de exploração ou trabalho capaz de aviltar sua condição de criança e adolescente; e, de outro, crie uma retaguarda protetiva que garanta aos adultos um trabalho decente. A AÇÃO DA RELATORIA Ao longo dos dois anos de mandato, a Relatoria do Trabalho se dedicou a dar seguimento às ações planejadas no mandato anterior, de maneira particular: o monitoramento das vicissitudes do trabalho no setor sucroalcooleiro no Nordeste e Sudeste, com o acompanhamento dos impactos do modelo usineiro e do agronegócio pautado pelas monoculturas; a expulsão dos trabalhadores(as) da agricultura, pescadores e marisqueiras nos Estados atingidos por usinas de açúcar no Nordeste; o trabalho doméstico, principalmente no tocante à condição das mulheres negras; e, ainda, o trabalho escravo e infantil. Pretendia-se avançar na análise do trabalho informal no país, através da investigação da situação dos catadores de lixo reciclável, assim como o acompanhamento da tramitação das emendas constitucionais relacionadas à erradicação do trabalho escravo, reforma sindical e reforma trabalhista no Congresso Nacional, levando-se em conta os 20 anos da promulgação da Constituição Federal Brasileira. Contudo, dificuldades relacionadas à articulação entre os movimentos dos trabalhadores informais e a mudança no percurso da Relatoria do Trabalho durante o mandato resultaram na impossibilidade de realização de uma série de atividades, dentre elas as missões destinadas à investigação da situação das trabalhadoras domésticas e do trabalho informal.


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111 Nesse sentido, importa esclarecer que as velhas dificuldades vivenciadas pela Relatoria, sobretudo relacionadas à fragilidade da rede social, à descontinuidade do apoio da UNV – Programa de Voluntários da ONU e a uma ambiência social de incompreensão sobre a centralidade do direito ao trabalho no cerne dos direitos humanos. Chegou-se a questionar a própria razão da prática social desta Relatoria, fizeram com que parte dos esforços e recursos financeiros fosse destinado a um encontro com diversos sujeitos políticos da área do direito ao trabalho intitulado Diálogos sobre o Direito Humano ao Trabalho, com o fim de compartilhar essas preocupações e construir estratégias para a continuidade da ação da Relatoria no próximo mandato. Ainda assim, durante o mandato 2007/2009, a Relatoria do Trabalho recebeu denúncias de violação ao direito humano ao trabalho; realizou ações de advocacy no sentido de propor políticas públicas e projetos de lei; participou de conselhos, conferências, seminários, audiências públicas e ações urgentes; realizou missões de investigação e monitoramento, inclusive em conjunto com outras Relatorias e organismos internacionais; contribuiu com a missão de monitoramento da Relatoria de Educação a Pernambuco em 2008; mediou conflitos entre sociedade civil e Estado; buscou diálogo com organismos locais e internacionais da área do trabalho; realizou ações de seguimento e elaborou cartilha sobre o direito humano ao trabalho. AS MISSÕES A Relatoria do Trabalho realizou três missões, sendo uma de investigação e duas de monitoramento, todas elas em conjunto com outras Relatorias e organismos internacionais. Missão para investigar as violações dos direitos humanos dos trabalhadores(as) das ilhas de Sirinhaém, Assentamento Engenho Prado e Acampamento Chico Mendes (PE) Essa missão foi produto das denúncias de violação aos direitos humanos dos trabalhadores(as) dos Assentamentos Engenho Prado[14],, nas cidades de Tracunhaém e Araçoiaba; das ilhas de Sirinhaém, no município de mesmo nome; e do Acampamento Chico Mendes [15], em São Lourenço da Mata, regiões de monocultura da cana-de-açúcar e domínio dos empresários de usinas em Pernambuco. As denúncias foram realizadas pela Comissão Pastoral da Terra – CPT, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST e Terra de Direitos, em Pernambuco. A gravidade dessas denúncias suscitou a realização de uma missão conjunta entre as Relatorias Nacionais para o Direito Humano à Alimentação e Terra Rural e a do Trabalho, apoiada por aquelas organizações, além do Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, Associação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos – ABRANDH, FIAN Brasil e Ministério Público local, tendo ocorrido entre os dias 24 a 26 de setembro de 2007. A missão teve o caráter de investigação e consistiu na visita in loco às famílias afetadas, reuniões com organizações da sociedade civil local, vice-governador de Estado, superintendente do Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e Ibama – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e Audiência Pública na sede do Ministério Público Estadual.

[14] O INCRA foi imitido na posse do Complexo Engenho Prado em 23.07.06. (http://www.incra.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=860:0&catid=1:ultimas&Itemid=278) [15] O INCRA foi imitido na posse do Acampamento Chico Mendes no dia 21.10.08. (http://www.incra.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=11034:0&catid=1:ultimas&Itemid=278)


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112 Segundo denúncias, 53 famílias moradoras das 17 ilhas de Sirinhaém, em Pernambuco, há várias gerações, foram expulsas mediante fraude e violência atribuída à Usina Trapiche, empresa que atua no segmento de açúcar e álcool na região. As ilhas fazem parte de uma Área de Proteção Ambiental – APA, propriedade protegida da União. Por viverem de uma cultura extrativista e ajudarem na preservação do lugar, com isso, as comunidades aguardavam ser beneficiadas com o Título de Aforamento da União, o que lhes permitiria permanecer nas ilhas para morar e nelas trabalhar. Entretanto, em 1999, a Gerência Regional de Patrimônio da União – GRPU do Ministério do Planejamento concedeu-o à Usina Trapiche. A partir de então, as famílias de trabalhadores(as) relataram ter passado por um processo de expulsão, que culminou em 2002 com a perda da posse das ilhas e com a interdição ao exercício de outros direitos humanos que lhes garantia uma vida com dignidade naquela localidade (trabalho, alimentação adequada e moradia). Sem alternativa, foram obrigadas a viver na periferia urbana de Sirinhaém, em condições sub-humanas, onde não há condição de produzir sua subsistência, pois não podem mais viver conforme sua cultura, marcada pelo plantio para consumo próprio e pesca nos manguezais, sem nenhuma política pública que lhes permita um padrão de vida digno. Destaque-se que, em 2005, a Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente recebeu denúncias relacionadas à poluição ao meio ambiente naquelas ilhas, as quais foram incorporadas, juntamente com as recomendações aos órgãos responsáveis, no relatório da missão conjunta dos relatores em Dhesca ao Estado de Pernambuco. No que se refere à situação dos trabalhadores(as) do Assentamento Engenho Prado, desde 2005, aquelas terras estavam destinadas aos mesmos[16]. Entretanto, as famílias permaneciam morando em barracos de taipa e lona, as terras não haviam sido demarcadas, o Plano de Desenvolvimento do Assentamento – PDA não estava elaborado, as famílias não haviam recebido o crédito de habitação nem os recursos do Programa Nacional de Agricultura Familiar – PRONAF. Além disso, havia falta de energia elétrica, água encanada, condição de trabalho e exposição à constante situação de violência (ameaças, prisões ilegais, assassinatos, queima de plantações, etc.). Com relação ao Acampamento Engenho São João, em 2004, 600 famílias do MST ocuparam essas terras, local onde havia funcionado a Empresa Agropecuária Tiúma, conhecida como “Usina Tiúma”, pertencente ao Grupo Votorantim, que havia falido e estaria abandonada há 17 anos. Dentre as famílias acampadas, muitas haviam sido empregadas da usina, teriam ficado desempregadas com sua falência e não teriam recebido as verbas rescisórias. Na ocasião da missão, os trabalhadores(as) acampados haviam sido submetidos a violentos despejos e aguardavam a tramitação do processo de desapropriação no INCRA. A visita in loco às áreas afetadas e o contato com os moradores permitiram constatar uma série de problemas e violações relacionadas a vários direitos humanos, tais como violação do direito humano ao acesso e ao tratamento igualitário perante Justiça, exercício da defesa dos direitos humanos, direito à terra rural, à alimentação e moradia adequada e ao trabalho decente. No que se refere ao trabalho, a partir do relato das famílias afetadas, foram observados dois tipos de violências às várias dimensões do direito humano ao trabalho nas três situações: no âmbito dos grandes grupos empresariais de Pernambuco o primeiro e o outro no âmbito do Estado.

[16] A imissão na posse para o INCRA ocorreu em 2005.


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113 No primeiro caso, destacamos a ação abusiva e patrimonialista de empresas, que teriam chegado a agir com violência por intermédio de vigilantes e agentes públicos, apreendendo e destruindo os instrumentos e o produto do trabalho. Dessa forma, o acesso aos meios de produção das famílias, inclusive pelo esgotamento dos recursos naturais, restou interditado, precarizando-se o trabalho das famílias expulsas e daquelas que lá ainda resistem. Os resultados não poderiam ser outros: baixo rendimento, jornadas exaustivas, intimidação aos trabalhadores(as) (assassinatos, prisões ilegais e criminalização), impedimento ao acesso à terra, educação e moradia adequada. No âmbito do Estado, destacamos a ação abusiva e criminalizadora do aparelho de segurança e justiça do Estado de Pernambuco, que não havia apurado, até aquela ocasião, os crimes cometidos por particulares e/ou por agentes públicos contra os trabalhadores(as). E mesmo assim, criminalizava-os e os prendia pelo exercício da defesa dos seus direitos. Destaca-se também a omissão dos executivos municipal, estadual e federal que não implementaram políticas públicas para garantir a inclusão das famílias. Outros fatores que atingiram diretamente o direito ao trabalho das famílias foram burocracia e lentidão por parte daqueles entes. À época, não foram capazes de consolidar o Assentamento Prado, concluir o processo de desapropriação do Acampamento Chico Mendes nem definir sobre a concessão do aforamento e a constituição de uma reserva extrativista nas ilhas de Sirinhaém. Infelizmente, um dos desdobramentos dessa missão foi o ajuizamento de uma ação criminal por parte da Usina Trapiche, contra os relatores Clovis Zimmermann e Cândida Costa, algo singular nos sete anos do projeto Relatorias Nacionais em Dhesca. Em verdade, isso só reforça o contexto gravíssimo de criminalização em Pernambuco, caracterizado pela judicialização dos conflitos sociais como forma de afastar o centro político, social e econômico da discussão. RECOMENDAÇÕES Ilhas de Sirinhaém No caso das violências contra os trabalhadores(as) das ilhas de Sirinhaém, a Relatoria do Trabalho apresentou recomendações: Às instâncias federais a não renovar o aforamento das ilhas à empresa Trapiche, priorizando a criação da Reserva Extrativista de Desenvolvimento Sustentável – RESEX. Às instâncias estaduais, foi recomendado o exercício do controle externo da atividade policial. O julgamento a contento e com isenção das ações civis interpostas pelo Ministério Público Estadual – MPE contra a poluição ambiental atribuída à Usina Trapiche S.A. A fiscalização das condições de trabalho na produção da cana-de-açúcar, com atenção à emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho – CAT, jornada de trabalho e condições de trabalho de adolescentes. A atuação complementar do município de Sirinhaém na implementação de políticas públicas para a inclusão dos trabalhadores(as) expulsos(as) das ilhas.


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114 Acampamento Chico Mendes No caso do Acampamento Chico Mendes, a Relatoria recomendou: Aos órgãos federais a decretação da desapropriação do Engenho São João até dezembro de 2007, destinando-o ao assentamento dos trabalhadores(as); a concessão de cestas básicas aos acampados(as) e a indenização desses pela perda dos bens nos despejos forçados a que foram submetidos. Aos órgãos do Estado, a garantia da segurança no acampamento, prevenindo e investigando as violências sofridas; a adoção de políticas públicas, de maneira complementar com o município de São Lourenço, para garantir os direitos sociais dos trabalhadores(as) e o diálogo com o Grupo Votorantim para prevenir conflito de maior proporção e solução da questão, com a regularização fundiária da área. Engenho Prado E, quanto ao Engenho Prado, as recomendações foram: Às instâncias federais no sentido de garantir a concessão de energia elétrica, saneamento básico, água encanada, liberação dos créditos habitacionais, assistência técnica e construção do PDA dos assentamentos; a conclusão dos trabalhos de topografia e conserto das estradas; a criação do Mecanismo Preventivo Nacional relacionado à Tortura e Maus Tratos; a provisão de dotação orçamentária ao INCRA/PE para realização da reforma agrária; e o diálogo entre os órgãos responsáveis pela política agrária no país, particularmente o MDA. Ao Ministério da Justiça e do Meio Ambiente, recomendou-se, a fim de superar as dificuldades burocráticas, que passasse a considerar prioritários os casos em que existam conflitos. Às instâncias do Estado foram recomendadas as seguintes medidas: apurar as mortes, possíveis torturas e ameaças sofridas por trabalhadores(as) rurais, inclusive no que se refere ao controle externo da atividade policial; retirar os agentes de inteligência da Polícia Militar de Pernambuco –PMPE; realizar diagnóstico das ameaças às lideranças do assentamento, bem como sua proteção; agilizar a emissão dos laudos ambientais e de instalação; atender com tratamento médico as famílias que guardam sequelas das violências dos despejos; adotar políticas públicas para garantir os direitos sociais dos trabalhadores(as) e indenizá-los pela perda dos bens nos despejos forçados, tudo isso como condição para o exercício do direito ao trabalho decente. Monitoramento – Morte dos trabalhadores(as) da cana-de-açúcar em Ribeirão Preto (SP) Essa missão foi realizada em conjunto com a missão internacional sobre agrocombustíveis no Brasil composta por FIAN Internacional, MISEREOR, EED, Pão Para o Mundo, ICCo, HEKS FIAN Holanda, ROPPA, Coletivo de advogados José Alvear Restrepo e especialistas internacionais, no período de 3 a 10 de abril de 2008. Teve o objetivo de monitorar os resultados da missão realizada em 2005 na região de Ribeirão Preto (SP), quando foram investigadas denúncias de superexploração de trabalho exercida pelas usinas de cana-deaçúcar contra os trabalhadores rurais, a partir da denúncia da Pastoral do Migrante – Diocese de Jaboticabal, na qual constava a morte de 10 trabalhadores entre 2004 e 2005[17].

[17] Segundo a Pastoral do Migrante de Guariba - SP, em torno de 20 trabalhadores(as) do setor sucroalcooleiro morreram por causas relacionadas à exaustão em São Paulo entre 2004 a 2007. (Dados de 14.02.08 – vide Relatório de Monitoramento da Missão de Ribeirão Preto – SP – www.dhescbrasil.org.br).


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115 Para tanto, foram realizadas visitas e entrevistas com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cosmópolis, Ministério Público Estadual, pesquisador prof. Francisco Alves da Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR, Pastoral do Migrante de Guariba, Federação dos Trabalhadores na Agricultura de São Paulo – FETAESP e Secretaria de Relações de Trabalho do MTE. A partir do relato dos trabalhadores afetados e organizações apoiadoras, foi possível concluir que os trabalhadores(as) estão submetidos a condições de superexploração, ocasionadas por pagamento por produção, que os leva a produzir além de seus limites; jornada de trabalho de 10 horas/dia em virtude de metas de produção fixadas em 10/12 toneladas/dia; baixos salários, pela terceirização das atividades e não pesagem da produção; deficiência na intermediação e fiscalização das relações de trabalho, expressas na permanência de condições insalubres e perigosas no ambiente de trabalho[18]; ausência de condições para armazenamento da alimentação, água inadequada, equipamentos de proteção individual em número insuficiente ou em condições inadequadas, ausência de ambulância e equipamentos de primeiros socorros; desrespeito à legislação nacional e internacional de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário (aliciamento de trabalhadores por ‘gatos’, intimidação aos trabalhadores, não emissão de CAT, não pagamento integral das verbas rescisórias); e práticas antissindicais, expressa na política da empresa de ameaças aos trabalhadores(as) que denunciam irregularidades e na recusa em contratar ex-dirigentes sindicais. A associação desse conjunto de evidências nos permite relacionar a morte dos trabalhadores(as) direta e indiretamente à exaustão no trabalho[19]. RECOMENDAÇÕES As recomendações apontadas foram no sentido do Estado: Investigar e adotar medidas judiciais quando do descumprimento de acordos celebrados entre usinas e trabalhadores(as), da Constituição Federal e dos dispositivos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Priorizar a fiscalização do cumprimento da legislação trabalhista na área rural, com especial atenção para emissão de CATs. Investigar práticas antissindicais e jornada de trabalho, e a ação das polícias no tocante a criminalização das lutas dos trabalhadores(as). No âmbito do diálogo social: Investir para a conclusão dos trabalhos da comissão tripartite para proibir o pagamento por produtividade. Constituir fórum de debate para propor substituição do pagamento por produção. Constituir comissão tripartite para propor parâmetros de enquadramento da morte súbita no trabalho. Constituir nos municípios comitê de investigação de morbimortalidade do trabalhador da lavoura de cana, para acompanhar e analisar as CATs da área rural e cada óbito, informando os resultados semestralmente ao Conselho Municipal de Saúde, que deverá informar o Conselho Estadual de Saúde, entidades sindicais e outras autoridades ligadas ao tema[20].

[18] Os acidentes de trabalho nas usinas de açúcar e álcool ultrapassaram os da construção civil. Os dados do Ministério da Previdência Social são de 2006 e indicam que nas usinas ocorreram 14.332 acidentes de trabalho contra 13.968 na construção civil. (Folha On line, 05.05.2008). [19] A morte súbita é um acometimento fatal por sobre-esforço, sendo considerado um agravo relacionado ao trabalho e que frequentemente está associado a longos períodos de horas trabalhadas, não podendo ser descartada na situação em análise. [20] O modelo desses comitês é inspirado nos Comitês de Investigação de Morte Materna, já implantados na maior parte do país, em especial no Paraná.


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116 No que se refere à implementação de políticas públicas: Investir na qualificação dos trabalhadores(as) da cana para reduzir o impacto da mecanização. Combater o aliciamento de trabalhadores(as), extinguindo a figura do “gato”. Suspender incentivos governamentais às empresas flagradas em situações de desrespeito aos direitos de trabalhadores(as). Investigar as causas das mortes dos trabalhadores e notificá-las de maneira esclarecedora, visando à responsabilização. Incluir o contrato social para respeito da legislação trabalhista e humanização das condições de trabalho no setor sucroalcooleiro, como condição para empréstimos a indústrias da cana-de-açúcar. Por fim, no âmbito do legislativo: Aprovar a PEC 438/01. Rejeitar a Medida Provisória – MP 410, que cria dificuldades à fiscalização do Ministério do Trabalho e favorece a informalidade das relações de trabalho no campo. Rejeitar a alteração do Código Florestal de redução das áreas ambientais a serem preservadas. Monitoramento das violações de direitos humanos dos trabalhadores(as) de Sirinhaém (PE) As Relatorias Nacionais para o Direito Humano ao Meio Ambiente e Trabalho, juntamente com a coordenação da Plataforma Dhesca Brasil, realizaram missão de seguimento em Pernambuco, diante da insuficiência de esforços do Estado para reparar as violações sofridas pelos trabalhadores(as) das ilhas de Sirinhaém. A missão foi realizada entre os dias 17 e 18 de junho de 2008 e consistiu em reuniões com trabalhadores(as) vitimados, organizações da sociedade civil, autoridades públicas estaduais e federais responsáveis pela garantia dos direitos humanos das famílias de Sirinhaém. A avaliação das organizações sociais, o depoimento dos moradores das ilhas e os documentos entregues às Relatorias apontaram para a manutenção das variadas e sistemáticas violações de direitos humanos observadas durante as missões de investigação realizadas em 2005 e 2007, bem como o não cumprimento da maior parte das recomendações emitidas pelas Relatorias por ocasião dessas missões. Manteve-se assim circunstâncias que favorecem um tratamento discriminatório por parte do aparelho de segurança e justiça de Sirinhaém com relação aos trabalhadores(as) das ilhas, agravado pelas interdições impostas aos trabalhadores(as), às organizações de assessoria popular que acompanham os ilhéus, a exemplo da CPT, Terra de Direitos e, mais recentemente, as próprias Relatorias Nacionais em Dhesca. Relatou-se terem sido objeto de intimidação, interdição de suas funções e até de criminalização, por atuarem na defesa dos interesses dos trabalhadores. O único avanço desde a última missão foi a conclusão dos estudos socioeconômico e biológico para criação da Reserva Extrativista por parte do Ibama, bem como a força-tarefa empreendida pelo mesmo órgão resultou numa grande ação de fiscalização e responsabilização sobre as 24 usinas de Pernambuco, com dados divulgados nos meses de junho/julho de 2008 que atestam a irresponsabilidade ambiental e social das usinas e do modelo de desenvolvimento por elas experimentados. No mais, o não cancelamento do aforamento das ilhas de Sirinhaém em favor da usina pelo Ministério do Planejamento vem causando constrangimento aos ilhéus, inviabilizando o exercício dos direitos humanos ao meio ambiente sadio, trabalho, alimentação e moradia, ainda forçando os trabalhadores(as) a viver com medo e


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117 em condições de muita precariedade na periferia de Sirinhaém. A não atuação a contento da CPRH – Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, permitiu a violação impune de inúmeros direitos humanos dos trabalhadores(as) daquelas ilhas, bem como aos direitos difusos ao meio ambiente sadio da população em geral. A não realização do direito à terra, ao meio ambiente e à segurança dos ilhéus tem significado impedimento aos mesmos de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito, de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, capazes de garantir condições de dignidade para si e para suas famílias. Os executivos municipal, estadual e federal continuam omissos na implementação de políticas públicas para garantir os Dhescas das famílias trabalhadoras, compelindo-as a subempregos e informalidade, a condições de habitação inadequadas, a nenhum acesso aos meios de produção e a grandes episódios de fome. Diante do agravamento da situação, todas as recomendações apontadas pelas Missões de Investigações das Relatorias Dhesca a Pernambuco nos anos de 2005 e 2007 foram reiteradas. LIMITES Como uma experiência de intervenção social no campo dos direitos humanos e exercitada a partir de uma rede de organizações da sociedade civil – Plataforma Dhesca Brasil, o projeto relatorias nacionais em Dhesca esteve sensível aos mesmos problemas políticos e financeiros que atingiram as demais organizações desse campo. A criminalização de relatores(as) e a restrição de recursos são indicadores nesse sentido. Não sem razão, ao ser objeto de avaliação externa, uma das principais conclusões acerca das Relatorias Nacionais é que suas fragilidades são oriundas das fragilidades da Plataforma Dhesca, e que suas vicissitudes continuarão até que as mesmas sejam resolvidas. Todavia, a Relatoria do Trabalho, além das dificuldades vivenciadas pelas demais Relatorias, vivenciou adicionalmente peculiaridades vinculadas sobretudo à complexidade do tema objeto de sua atuação, isto é, o direito humano ao trabalho num contexto de capitalismo globalizante. Foi o caso dos limites relacionados à consolidação de uma rede social que tenha como fazer político o trabalho como direito humano, circunstância que resultou, durante praticamente todo o mandato, na dificuldade de encontrar suporte, dentro da Plataforma Dhesca e de outras redes, para o debate sobre o tema. Assim, recaiu sobre a Relatoria toda a responsabilidade acerca do debate sobre o tema, sobre a articulação da Rede e das missões, parcerias, seguimento e contatos no Congresso Nacional. Nesse cenário, optou-se por priorizar o monitoramento da situação dos trabalhadores de Ribeirão Preto, articular o projeto de lei sobre morte súbita e organizar o encontro Diálogos sobre o direito humano trabalho, como forma de definir referenciais para o debate sobre o trabalho com o direito humano, no interior da Plataforma Dhesca. Nessa linha, representou grande limite a dificuldade de “individualização” desse direito frente a outros direitos humanos. Em que pese a interdependência e a indivisibilidade do trabalho no conjunto dos demais direitos, não se pode olvidar que, se de um lado, a não individualização lhe obsta a visibilidade como um direito autônomo, e tão somente um complemento aos demais; de outro, continua sendo reivindicado pela maioria das organizações, numa perspectiva meramente corporativista e desvinculada do paradigma dos direitos humanos, ainda que nesta referência seja concebido como um direito estruturante da dignidade de todas as pessoas, porque é porta de acesso aos demais direitos humanos. Por fim, inescapavelmente, a intervenção da Relatoria do Trabalho esbarrou nos limites impostos pela ampliação das formas de exploração da classe trabalhadora, pelo aprofundamento do capitalismo; na


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118 permanência, ainda que em menor escala, de formas de trabalho precário e degradante; nas tentativas de desconstituição dos direitos trabalhistas; no insuficiente diálogo com as organizações de trabalhadores(as); no pouco retorno do Estado em termos de implementação de políticas públicas estruturadoras e na reparação aos trabalhadores violados em seus direitos; e no acirramento dos processos de criminalização e ameaça da luta dos trabalhadores(as). IMPACTOS Mesmo considerando a amplitude dos limites apontados, podemos atribuir à ação da sociedade civil e, nesse contexto, situar a singularidade da contribuição da Relatoria do Trabalho na: Incorporação de recomendações da Relatoria do Trabalho pelo MTE, que resultou na formação de comissões para debater alternativas ao pagamento por produtividade, envolvendo CONTAG, MTE, CNA e Ministério Público; potencialidade da Relatoria no campo da mediação das relações entre sociedade civil e governo, de forma a abrir canais de interlocução entre as vítimas diretas e os órgãos, desburocratizando e acelerando a atuação do governo na resolução da questão, fato experimentado no caso do diálogo entre os órgãos de Estado e os trabalhadores(as) do Assentamento Engenho Prado. Capacidade da Relatoria tornar os problemas preocupações públicas, retirando-os da invisibilidade e “dando voz” às vítimas das violências. Acolhimento das recomendações pelos Ministérios Públicos Estaduais no que se refere à exigibilidade das políticas públicas para as populações atingidas pelos problemas denunciados. Proposição do Projeto de Lei sobre Morte Súbita e Morte por Exaustão no Trabalho a representantes da Câmara dos Deputados, e a acolhida da iniciativa[21]. Difusão do paradigma do direito humano ao trabalho através da divulgação de cartilha e relatórios, bem como o acesso a programas de mídia[22]. DESAFIOS E PERSPECTIVAS Acreditando que o trabalho ainda ocupa lugar central na vida de mulheres e homens e que essa situação não se transformará nos próximos anos, vislumbramos que os desafios para os próximos mandatos da Relatoria do Trabalho permanecem sendo diretamente influenciados pelos desafios que condicionam os “mundos” do trabalho, como vetor de produção da dignidade. Isto é, as relações materiais sobre as quais o trabalho se reproduz na vida concreta de mulheres e homens e sua capacidade de garantir a essas pessoas o aprofundamento do humano. Logo, mantém-se como desafio a necessidade de acumular um debate em torno do trabalho sob a ótica dos direitos humanos, que seja capaz de superar a retórica jurídica e incorporar as dimensões estruturantes das violações ao direito ao trabalho. Hoje, nesse aspecto, é estratégia imprescindível o questionamento do modelo de desenvolvimento operado pelo Estado e os grandes grupos econômicos, em certa medida articulados por meio do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, bem como a reivindicação de um tipo de desenvolvimento que não se baseie na exploração dos trabalhadores(as), concentração de riqueza, discriminação e esgotamento dos recursos ambientais. [21] A proposta foi apresentada aos deputados federais Vicente de Paula e Flavio Dino de Castro e Costa, tendo esse último se comprometido a apresentá-la ao Congresso nacional. [22] Por ocasião da missão de investigação em Pernambuco no ano de 2007, as Relatorias para o Direito Humano ao Trabalho e Alimentação Adequada e Terra Rural participaram do Programa da TV Universitária de Pernambuco intitulado “Opinião Pernambuco”, dedicado integralmente ao debate em torno dos direitos humanos.


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119 Para isso, é necessário à Relatoria construir uma intervenção mais próxima às lutas dos trabalhadores(as), valorizando principalmente aquelas situações que historicamente tem sido estruturantes das desigualdades na sociedade brasileira. Referimo-nos às vicissitudes do trabalho das mulheres, particularmente das empregadas domésticas e pessoas negras, que são maioria da população economicamente ativa, mas que, como demonstrado, num contexto de crescimento econômico, mostram ainda os piores indicadores de trabalho do país. Também resta como desafio uma maior aproximação com os organismos e mecanismos internacionais que tratam do direito humano ao trabalho, como a OIT e as Relatorias da ONU que monitoram situações específicas no âmbito do trabalho, a exemplo da Relatoria Especial sobre formas contemporâneas de escravidão e suas consequências, com vistas a fortalecer o mandato da Relatoria, seguindo a orientação do encontro Diálogo sobre o Direito Humano ao Trabalho, como algo que a diferencie do “mandato” das organizações sociais nacionais. A oportunidade para esse contato teria sido na planejada visita da relatora especial da ONU sobre Formas Contemporâneas de Escravidão, Ms.Shahinian, prevista para ocorrer em junho de 2009, tendo a Relatoria do Trabalho contribuído com perguntas e sugestões. No entanto, a visita foi cancelada sem qualquer explicação por parte da ONU. Nessa oportunidade, cabe trazer as demais reflexões construídas, nesse encontro, em torno das questões que desafiarão o próximo mandato[23]. São elas: o acompanhamento e monitoramento do trabalho das Relatorias num contexto de fragilidade da sociedade civil e de ausência de uma pauta comum; a mobilidade das pessoas por causa do trabalho; o mercado de trabalho heterogêneo e precário, em que a maioria da população está na informalidade; o tipo de desenvolvimento e de Estado que as organizações do mundo do trabalho formal almejam e como irão encampar a informalidade; o debate sobre como se dá o lucro, como a produção se movimenta, como a riqueza é distribuída e como as discriminações operam através das relações de trabalho; o aumento da violência contra os trabalhadores(as); a impossibilidade, como sociedade civil, de assumir todos os desafios; a necessidade de definir foco, campo de atuação e tema central sensível a vários setores da população; e a constituição de outra visão de Estado. Para isso, o encontro apontou que a Relatoria deve ter como foco: a dignidade como condição central nos mundos do trabalho, nos próximos cinco anos; o trabalho ilegal, degradante, no corte da cana e nos setores doméstico e informal; a precarização sob o olhar de classe, gênero, raça, etnia e geração; o rendimento, o desemprego, a qualificação profissional, a saúde do trabalhador e o trabalho infantil; a ideia dos “males das relações do trabalho” que atingem sistematicamente as mulheres; e a problematização e revisão do papel do Estado. No que se refere às estratégias, foi proposta a realização de missões conjuntas, como caminho para garantir o acompanhamento posterior; uma intervenção que dê poder às comunidades locais na relação com o Estado e a sociedade civil; o enraizamento da intervenção com os governos estaduais e municipais, inclusive cobrando a responsabilidade no modelo de desenvolvimento; a visibilidade às denúncias da Relatoria e a constituição de estratégia de aproximação com a ONU para referendar o mandato. Para isso, a Relatoria deverá priorizar trabalhar com quem já cuida do mundo do trabalho (sindicatos, federações, confederações, movimentos sociais, CPT); fazer aliança especial com os agentes da reforma agrária nacional (FETAPE, CPT, MST) e internacional (Via Campesina); e buscar parcerias, no âmbito nacional, em espaços não tradicionais (universidades, observatórios, centros de pesquisa, etc.).

[23] Os desdobramentos dessas questões em termos de foco, estratégias e parcerias estão informadas no Relatório do Diálogo sobre Direitos Humano ao Trabalho junto a coordenação da Plataforma Dhesca Brasil e no site www.dhescbrasil.org.br


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120 Além disso, é fundamental a redefinição da estrutura e da ação da Plataforma Dhesca, de forma a dar suporte à ação das Relatorias Nacionais, garantindo as condições para o funcionamento adequado das mesmas, conforme apontado pela avaliação externa do projeto e complementado pelas Relatorias. Por fim, o desafio de qualificar a ação da Relatoria aprofundando sua capacidade de monitoramento do direito humano ao trabalho, de enfrentamento dos processos de criminalização, e o seu consequente reconhecimento como mecanismo de exigibilidade dos Dhescas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONTRA INFORME DA SOCIEDADE CIVIL BRASILEIRA sobre o cumprimento do pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais pelo Estado brasileiro./Projeto coordenado pela Articulação dos Parceiros de Misereor no Brasil, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, Processo de Articulação e Diálogo entre Agências Ecumênicas Europeias e suas Contrapartes Brasileiras. Brasília/Passo Fundo: MISEREOR; MNDH; DhESC BRASIL, PAD, IFIBE, 2007. 2007. 224 p. ISBN 978-85-99184-33-2 Relatório Emprego, desenvolvimento humano e trabalho decente: a experiência brasileira recente. Brasília: CEPAL/ PNUD/OIT, 2008 (Projeto CEPAL/PNUD/OIT). (www.oit.org.br) Relatório do Encontro Diálogo sobre o Direito Humano ao Trabalho. Plataforma Dhesca Brasil. 2009. Relatório Mundial sobre Salários 2008/2009 da OIT. (www.oit.org.br) Relatório sobre o Trabalho no Mundo 2008: desigualdades de renda na era das finanças globais elaborado pelo Instituto de Estudos Laborais da OIT (http://www.oitbrasil.org.br/relatorio_mundo_trab.php) Relatório sobre Tendências Mundiais de Emprego 2009 da OIT (www.oit.org.br)


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121 O processo de avaliação das Relatorias Nacionais: novos horizontes para a atuação As Relatorias Nacionais em Dhesca passaram por uma avaliação de sua estrutura, metodologia e relevância, iniciada em abril de 2008 e com a conclusão de suas principais diretrizes no primeiro semestre de 2009. A avaliação teve o objetivo de analisar o impacto das Relatorias Nacionais para os Dhesca, buscando refletir “sobre sua viabilidade, sua aplicabilidade e sobre as consequências da criação de um sistema nacional de proteção dos direitos humanos”[1]. Além do olhar metodológico do avaliador externo, o sociólogo Domingos Armani, as organizações que compõem a rede e os relatores ,.do mandato 2007-2009 discutiram e reviram os fundamentos do projeto, suas potencialidades e limites perante o cenário dos direitos humanos, levando em consideração os espaços políticos existentes para intervenção, as principais causas de violação dos Dhesca e o desafio latente de construir um Sistema Nacional de Direitos Humanos. A avaliação[2] partiu de uma análise dos documentos elaborados ao longo da história do projeto e um extenso trabalho de campo do avaliador, que entrevistou 43 pessoas que participaram e auxiliaram na construção do projeto. O avaliador também acompanhou uma das missões desenvolvidas, onde pôde conhecer melhor esse instrumento. Depois, apresentou suas principais recomendações às organizações da Plataforma, à Secretaria Executiva da rede, aos relatores e assessores do mandato 2007-2009, onde recolheu novas percepções sobre por onde o projeto poderia avançar e em quais áreas era necessário ter um maior acúmulo. Ao conhecer as ferramentas utilizadas, as organizações envolvidas e os resultados já alcançados pelo projeto, a avaliação feita por Domingos Armani reforçou a importância das Relatorias Nacionais para a afirmação dos Dhesca no Brasil e para a criação de uma cultura de direitos no país. Foi com a intervenção dos relatores que diferentes comunidades, organizações e movimentos sociais puderam reconhecer seus problemas, falar publicamente sobre eles e ainda identificá-los como violações de direitos humanos. O projeto tem sido exitoso ao longo dos sete anos de sua existência, tanto que seu formato constitui-se numa referência para outros países que desejam implementar ferramenta semelhante à desenvolvida pela sociedade civil brasileira. Para Armani, “a ideia genial de propor uma iniciativa inovadora no Brasil que transpusesse a experiência dos Relatores Especiais das Nações Unidas para o plano nacional permitiu não somente o desenvolvimento de uma experiência inédita, como também levou à difusão da ideia e ao início de experiências similares em outros países, além de abrir uma reflexão sobre a ferramenta nas próprias Nações Unidas”. Durante a avaliação, também foram apontados alguns limites ao projeto, alguns dos quais referem-se ao próprio tema direitos humanos. “Mesmo os principais dilemas e tensões vividos pelo projeto são expressão da emergência de questões de fronteira no campo da promoção dos Dhesca”. O pacto norteador dos Dhesca é o PIDESC – Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado pelas Nações Unidas em 1966 e ratificado pelo Brasil apenas em 1992. Em âmbito internacional, a discussão sobre um Protocolo Facultativo para o PIDESC, o que permitiria às vitimas de violações buscarem reparações e justiça às suas causas, aconteceu mais de quarenta anos depois da aprovação do pacto, ainda sem data prevista para entrar na discussão das casas legislativas dos Estados-Parte. No Brasil, a ratificação do PIDESC não garantiu um avanço concreto para a garantia desses direitos à população brasileira, já que faltavam e ainda faltam instrumentos para sua implementação e exigibilidade. Basta dizer que o projeto de lei que institui o Conselho [1] O objetivo da avaliação foi extraído do Termo de Referência para a avaliação das Relatorias Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais. [2] A avaliação resultou em um relatório, denominado “A luta pela dignidade humana nas fronteiras da democracia”, de onde foram extraídas todas as citações deste texto.


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122 Nacional de Direitos Humanos em substituição ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana tramita na Câmara Federal desde 1994 e que o próprio Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH ainda não avançou significativamente na construção de instrumentos para a implantação de suas diretrizes e propostas. Para Armani, “a relevância da iniciativa (as relatorias) fica ainda mais evidente quando se reconhece que são muito limitados os instrumentos de monitoramento e exigibilidade dos Dhesca no Brasil”. É por essa necessidade de afirmação dos Dhesca que as Relatorias Nacionais compõem um quadro muito mais amplo de articulação em prol dos direitos humanos. A Plataforma Dhesca Brasil, rede responsável pela gestão e articulação do projeto, integra também o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil, composto ainda pelas redes Parceiros de Misereor, MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos e Projeto de Articulação e Diálogo. Essa articulação permite uma rica troca de informações, porque enquanto as Relatorias incidem nacionalmente levantando dados, presenciando e denunciando violações e monitorando concretamente os direitos humanos, o Projeto Monitoramento, entre outras atividades, elabora e apresenta para o Comitê DESC da ONU o Contra-Informe da Sociedade Civil Brasileira. O Comitê, que também recebe o informe oficial do governo brasileiro, cruza as informações apresentadas e faz recomendações ao Estado, o que garante parâmetros para implantação de uma política eficaz para a promoção dos direitos humanos. Por essas questões, é possível perceber em que cenário estão as Relatorias Nacionais e qual foi a importância de avaliar essa ferramenta, justamente para aumentar ainda mais seu impacto. O que permanece indiscutível é a potencialidade inerente às ações implementadas pelos relatores nacionais. Entre outubro de 2002 e junho de 2008, as Relatorias realizaram 112 missões para verificação de denúncias de violações de direitos humanos, estando em 22 estados brasileiros e em mais de 100 municípios deste país. Com isso, o projeto levou os Dhesca a capitais, pequenos municípios, assentamentos rurais, quilombos, áreas indígenas, periferias urbanas e comunidades isoladas; conversou com mulheres, crianças, idosos; levou denúncias ao Congresso, a comissões, ao Ministério Público, aos comitês internacionais, e assim o projeto cresceu, se ampliou, enfrentou desafios e agora desenhou seus próximos passos em busca de maior qualidade de sua intervenção e de um maior avanço que garanta os direitos humanos no Brasil. Os frutos dessa avaliação estão sendo colocados em prática, com o devido reconhecimento de que a leitura metodológica das Relatorias Nacionais permitirá uma intervenção mais qualificada e criativa nos próximos mandatos. Acompanhe a seguir as principais conclusões do relatório da avaliação e como a rede Plataforma Dhesca Brasil tem atuado para implementá-las. A escolha dos Relatores Nacionais e a garantia de um olhar integral dos direitos humanos A avaliação se debruçou em cinco pontos principais: o processo de seleção de relatores e assessores, o planejamento do projeto, as missões, o desafio da comunicação, e coordenação e gestão do projeto. Depois disso, apresentou resultados, limites e impactos, apontando recomendações para a construção de novas diretrizes de funcionamento e organização. O processo de escolha dos relatores é o primeiro passo para o funcionamento das Relatorias Nacionais. A escolha dos relatores acontece mediante um edital divulgado em diversos meios, incluindo redes, organizações e movimentos sociais. Essa prática se repete desde 2002, sendo que em todas as quatro seleções ocorridas houve mudanças nos critérios de escolha, o que alterou o perfil dos relatores das quatro gerações. Armani identificou que a primeira geração de relatores, eleita para o período 2002/2004, possuía “um perfil político com projeção pública, associado com qualidade técnica”. Na segunda geração, o perfil dos relatores selecionados “tendeu a acentuar a qualificação técnica, observando-se, de modo geral, uma relativa redução do


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123 perfil político e da projeção pública”. Para o avaliador, essa escolha partiu do princípio de que “se fazia necessário avançar na conceituação e fundamentação técnico-metodológica dos direitos”, além do que, era fundamental aliar a autonomia política dos relatores à capacidade de gestão e coordenação do projeto por parte da Plataforma Dhesca Brasil. Já para o edital do mandato 2009/2011, elaborado após o processo de avaliação, a coordenação da rede optou por coordenar não apenas a seleção, mas também os temas estruturantes para os direitos humanos no Brasil, elencados com auxílio de organizações da rede, ex-relatores e outros convidados. Um dos pontos tratados por todos os editais foi a indicação do relator por redes e organizações sociais. Esse vínculo, muitas vezes dado de forma orgânica, foi analisado pela avaliação, que apontou dois problemas em potencial: o relator assumir para si a estratégia de atuação das organizações e redes que o indicaram e o limiar existente entre fazer parte de um organismo social e manter a independência necessária para o papel desempenhado pelo relator. A independência dos relatores é tida como estratégica porque confere maior validade e legitimidade às denúncias investigadas. Para Armani, a legitimidade dos relatores auxilia na resolução dos problemas, na interlocução com órgãos públicos responsáveis e, com isso, na valorização das próprias organizações que realizam a denúncia e que são as vítimas diretas das violações em questão. O fato do relator não ser remunerado e, mesmo assim, ter que possuir uma intervenção exemplar em temas de extrema importância para o país, fez com que a rede optasse por ter relatores com vínculos a organizações sociais, o que garante também sua legitimidade perante a sociedade civil. Outro motivo para essa escolha foi o limite concreto da Plataforma quanto ao financiamento de um projeto com essa envergadura, responsável em financiar os recursos humanos (como um assessor para cada Relatoria) e os recursos materiais, como passagens, estadias, publicação de relatórios e outros materiais para cada missão desenvolvida. “Ser indicado e ter vínculo com uma ou mais redes da sociedade civil sempre foi um critério fundamental para a seleção de relatores (as), uma vez que isto além de legitimar politicamente sua atuação, facilita a articulação necessária às missões e favorece a compreensão conceitual, política e jurídica dos direitos em questão”. A avaliação apontou que o vínculo orgânico existente entre muitos relatores e organizações sociais, aliado a uma coordenação de projeto não articulada às entidades filiadas da Plataforma, “levaram a uma situação de relativo isolamento e fragmentação do trabalho de cada relator(a)”. A fragmentação dos trabalhos fez com que muitas violações fossem analisadas pelo viés de apenas um direito, deixando de lado a característica integral e complementar dos direitos humanos. Como resposta a esse problema, Armani indicou que “o que deve ser fortalecido neste momento é o vínculo de organizações, movimentos sociais e redes à própria Plataforma Dhesca e ao processo de planejamento das Relatorias Nacionais em Dhesca, dotando-a de vida associativa densa e significativa”. Como encaminhamento a esse ponto, a avaliação destacou a necessidade da regulação coletiva dessas questões pela Plataforma Dhesca, com maior valorização de sua estrutura e maior domínio em termos de gestão, incluindo também a supervisão do trabalho dos assessores. O fortalecimento da Plataforma refere-se, entre outras questões, à criação de espaços onde se tomem decisões coletivas sobre quais temas as Relatorias devem enfrentar, levando em consideração uma leitura ampla da realidade brasileira. A partir desse planejamento, criar um marco conjuntural e político único, que defina um foco estratégico de atuação para todas as Relatorias. Nessa perspectiva de maior unidade política da Plataforma e de um planejamento das Relatorias feito de forma compartilhada com outras organizações, o avaliador propôs que a estrutura das seis relatorias temáticas existentes até então fosse substituída por uma “abordagem mais flexível e mais integrada de trabalho para fazer frente às exigências complexas postas à efetividade do projeto”.


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124 O desenvolvimento das missões e a face pública das Relatorias As missões constituíram-se, ao longo dos anos, nos momentos mais públicos das Relatorias Nacionais. Elas acontecem quando relatores e assessores vão a campo e fazem uma interferência direta na realidade marcada por violações sistemáticas dos direitos humanos. A partir das missões e de toda a estrutura que as compõe – visitas às comunidades, audiências públicas, entrevistas na mídia etc. – as autoridades podem observar as violações a partir do olhar metodológico dos relatores. As missões também são de grande importância para as comunidades locais que têm os seus direitos violados, “projetando-as como interlocutores válidos no espaço público, o que materializa vivências muitas vezes inéditas do ponto de vista da sua afirmação como detentores legítimos de direitos na sociedade”. Apesar de sua importância no funcionamento das Relatorias, é ainda um desafio para a Plataforma construir um documento que explique didaticamente as possibilidades e os limites das missões, a melhor forma de fazê-las e planejá-las, tendo em vista que “os relatores e assessores deram formas variadas às missões, cada qual resolvendo problemas e dilemas da forma que melhor conviesse aos objetivos e circunstâncias”. O avaliador apontou ainda que a visita in loco feita pelo relator ocorre em dois ou três dias, um tempo relativamente pequeno para o que se propõe a fazer. Podemos citar como tarefas do relator e assessor articular, fortalecer, capacitar, divulgar, analisar, denunciar, entre tantos outros papéis elencados pelos entrevistados ao longo da avaliação. O curto espaço de tempo existente para uma missão e a variedade de atividades propostas impedem, muitas vezes, que a comunidade dê sequência ao processo, criando frustrações sobre a potencialidade do projeto. Armani afirma que “todas as missões parecem ter alcançado um grau de resultado significativo quanto à visibilização de violações e conflitos, ao empoderamento dos atores locais e ao exercício da pressão e diálogo com as autoridades relevantes. Mas os resultados tenderam a ser bem mais limitados ao nível da resolução direta do problema, do fortalecimento da capacidade dos atores locais para aperfeiçoar suas estratégias de ação e ao nível de promoção da uma cultura de direitos, para o quê, se faria necessário outro tipo de estratégia”. Uma das funções das missões é, por exemplo, deixar como legado às comunidades e organizações locais a importância de categorizar as reivindicações e enxergar os direitos como direitos humanos a serem exigidos, trabalhando assim para a promoção da cultura dos Dhesca no Brasil. “O papel do relator neste âmbito é o de um educador que, por seu conhecimento técnico e visão política, propicia um aprendizado sobre papel do Estado, sobre democracia e sobre a dinâmica do espaço público”. Para tal objetivo, foi sugerido que o caráter das missões seja alterado, deixando o status de eventos isolados e passando a compor uma estratégia mais ampla de incidência em torno do tema tratado. Essa estratégia mais ampla refere-se a outros dois momentos principais para uma experiência exitosa nas Relatorias: o momento pré-missão e o pós missão, sendo que a qualidade do trabalho feito no primeiro momento interfere diretamente no seguimento das atividades após a visita do relator. Pela avaliação feita, é necessário investir em uma coleta de informações anterior à visita, preparando os atores locais e costurando alianças para o fortalecimento da estratégia de incidência local. Com isso, fica viável o empoderamento dos atores locais, para que eles continuem trabalhando na superação dos problemas publicizados e para que mantenham o canal de dialogo com autoridades públicas. “Assim, se investiria muito mais tempo relativamente, no momento pré-missão. E as ações não se resumiriam à missão, mas se desdobrariam em reuniões com autoridades nacionais, eventos de mídia, encaminhamento de procedimentos às Nações Unidas e à OEA, etc. (...) Em síntese, as missões materializariam ações-chave dentro de estratégias mais gerais de incidência, com uma forte dimensão de aprendizagem e de protagonismo popular”.


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125 Armani sugeriu também uma revisão no formato das Relatorias, quanto ao número, aos temas e ao tempo de mandato, priorizando o “fortalecimento de seu caráter multidisciplinar na ótica da indivisibilidade dos Dhesca” (25). Até 2009, as Relatorias eram divididas em seis temas, sendo eles: alimentação e terra rural; educação; meio ambiente; moradia e terra urbana; saúde e trabalho. A divisão temática, aliada à falta de planejamento integrado das Relatorias, fez com que o projeto não trabalhasse com um olhar integral dos direitos humanos, o que compartimentou o processo da construção de uma cultura em Dhesca. Esse problema já havia sido identificado, tanto que, até junho de 2008, haviam sido realizadas 24 missões conjuntas, onde mais de um relator fazia a visitação das localidades e preparavam um relatório sobre o problema. Mas a distância física entre os relatores, a falta de um planejamento dos casos, de um grupo de referência para as temáticas estudadas e o alto custo de missões desse tipo inviabilizam a manutenção dessa categoria como sendo a ideal. Para essa situação, a sugestão é de um “rompimento com a atual fragmentação temática como algo dado, instituindo-se um número menor de Relatorias por período (12 a 18 meses), com uma abordagem mais integrada dos Dhesca, e com perfis complementares entre os(as) relatores(as)”. Outro ponto levantado por Armani diz respeito à “dificuldade reiterada para elaborar e utilizar indicadores de monitoramento e avaliação da experiência”. É fato que as organizações de direitos humanos de modo geral têm o desafio de conseguir sistematizar as informações levantadas e, a partir disso, produzir dados que garantam uma leitura qualitativa dos direitos humanos, deixando de lado o acúmulo de processos, ofícios e denúncias. Mas, para a elaboração de indicadores que permitam o monitoramento dos Dhesca, é necessário haver também um esforço dos poderes públicos na consolidação de espaços políticos onde exista a convergência dessas informações, de onde sejam tiradas políticas públicas e com o poder de vincular ações em projetos desenvolvidos pelo Estado. Os relatórios de missão e os instrumentos para exigibilidade dos Dhesca Após realizar as missões, coletar informações e estudar as principais recomendações para os poderes responsáveis para a resolução dos conflitos estudados, o relator tem como praxe desenvolver um relatório que contenha todas essas informações, aliadas a uma análise conjuntural do direito em questão. Durante o processo de avaliação, foram identificados alguns problemas nesse processo, principalmente no que diz respeito a “ausência de abordagens de integração dos direitos e a falta de esforços no sentido de construção de tipologias das violações de direitos humanos”. Essa situação decorre do próprio formato das Relatorias, com a divisão temática, e também pelo fato que o trabalho dos relatores pouco dialogava, o que impedia um trabalho coletivo na construção de um olhar sobre os direitos. A apropriação dos relatórios pelas comunidades visitadas também foi uma das questões apontadas. Para Armani, “há muitas indicações sobre a utilidade dos relatórios, especialmente para embasar ações jurídicas por parte de organizações locais (...)”. Mas pela linguagem utilizada e pela extensão dos conteúdos, os relatórios não se apresentam como o melhor instrumento para o empoderamento das comunidades. O apelo de educação em direitos humanos foi parcialmente solucionado com o lançamento, em 2008, das Cartilhas de Direitos Humanos, onde cada edição abordou de forma didática um tema em Dhesca, apresentando o que significa cada direito, quem deve garanti-lo e quais são as principais formas existentes para sua violação. Esse foi um produto de extremo valor para o projeto, tendo em vista que faltava ao relator um documento educativo sobre o tema. As cartilhas permitiram maior apropriação dos conteúdos teóricos e também dos caminhos existentes para o acesso à justiça pelas comunidades visitadas. Como a distribuição delas não se restringiu às missões, o material permite também uma maior promoção dos direitos humanos pelo país.


Desafios dos Direitos Humanos no Brasil e a experiência das Relatorias Nacionais em Dhesca

126 Ainda sobre o relatório, a avaliação apontou como desafio o acompanhamento das recomendações emitidas. Cada relatório contém, em média, trinta recomendações aos mais diversos órgãos públicos, em suas três instâncias – executivo, legislativo e judiciário. Durante esses anos, sempre coube aos relatores o acompanhamento das missões realizadas em anos anteriores e também o enfrentamento das questões atuais, que necessitam de novas missões e, com isso, novas recomendações. Durante o processo de avaliação, foi consenso de que, para dar vazão a esse volume de orientações, era necessário fortalecer o laço com as organizações locais e instrumentá-las para que conseguissem levar adiante tais recomendações, utilizando-as como uma forma de pressão perante os órgãos responsáveis. DECISÕES APONTAM PARA UM FORMATO MAIS INTEGRAL E PÚBLICO DAS RELATORIAS NACIONAIS Do processo de avaliação de Domingos Armani surgiram novas diretrizes, com ideias, formatos e adaptações ao processo que já estava em curso. Mas de nenhuma forma vieram para negar o que já foi construído e nem para alterar o objetivo principal do projeto. As Relatorias Nacionais permanecem em seu campo de experimentação, no sentido de que estão abertas às propostas para o fortalecimento dos Dhesca no Brasil. Após a finalização do relatório de avaliação, as organizações da Plataforma discutiram sobre como tais diretrizes seriam implementadas, o que significou a readequação das funções exercidas pela Secretaria Executiva, por exemplo. Isso porque a avaliação permitiu um olhar externo não apenas do projeto, mas também da rede que o implementa – a Plataforma Dhesca Brasil – e de suas estruturas administrativas. As Relatorias Nacionais sempre foram o projeto principal da Plataforma Dhesca, por onde é possível construir o espaço político necessário e legítimo para a intervenção na política de direitos humanos do país. Pensá-las em uma nova gestão significa integrá-las às linhas de atuação estratégica da rede, em um cenário de articulação com suas organizações afiliadas e redes parceiras. Para a realização do edital de seleção para o mandato 2009/2011, diversas das mudanças apontadas pela avaliação foram contempladas e muitas delas já têm previsão de ser colocadas em prática. O texto do edital (Pág. 129) aponta para um papel de maior responsabilidade da Plataforma Dhesca Brasil, que elencou eixos prioritários para a atuação de cada relatoria. A definição dos eixos ocorreu com a participação de ex-relatores e organizações filiadas, já no sentido de envolver um maior número de pessoas nas definições estratégicas do projeto. Outra mudança explicitada pelo edital foi a redução do número de Relatorias e a possibilidade de formular novos editais ao longo do mandato. Após dois seminários com relatores, ficou definido que seriam priorizadas cinco Relatorias, sendo que três delas tiveram seu enfoque alterado por uma leitura crítica da realidade enfrentada. Dessa forma, permanecem as Relatorias de Educação e Meio Ambiente. A relatoria de Alimentação e Terra Rural passou a ser Relatoria para o Direito Humano à Terra, ao Território e à Alimentação, com o objetivo de enfrentar as duras investidas contra a reforma agrária e os projetos de assentamentos rurais e também contra os territórios tradicionais, ocupados legitimamente por indígenas, quilombolas, pescadores, cipozeiros, faxinais (típicos no estado do Paraná), entre outros. A relatoria de Moradia e Terra Urbana passou a ser Relatoria do Direito Humano à Cidade, na tentativa de que ela se debruce não apenas no acesso à moradia, mas analisando os centros urbanos como espaços coletivos de socialização e culturalidade. A relatoria de Saúde ganhou um enfoque específico para o próximo mandato, o dos Direitos Sexuais e Reprodutivos. Essa decisão partiu da análise de que no atual cenário é necessário avançar na exigibilidade dos direitos humanos para as mulheres criminalizadas pela prática do aborto e também quanto à autonomia sexual e reprodutiva.


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127 Outro resultado da avaliação foi o amadurecimento da ideia de trabalhar com Relatorias que façam recortes, sejam eles territoriais, geracionais ou outras ideias que surgirem. Assim, poderemos ter no futuro uma Relatoria que faça um recorte da Amazônia e, a partir disso, leia todos os direitos que vêm sendo sistematicamente violados nesse espaço. A Argentina já replicou o formato das Relatorias em Buenos Aires, a partir de um recorte geracional. E assim foi criada a Relatoria de los Derechos de Niñas, Niños y Adolescentes en la Ciudad de Buenos Aires, coordenada pelo Capitulo argentino da Plataforma Interamericana de Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento – PIDHDD. Para contemplar essa ideia, foi necessário avançar também na proposta de ter editais no decorrer dos mandatos iniciados, com o intuito de criar novas Relatorias, retomar a Relatoria do Direito Humano ao Trabalho ou nomear relatores ad hoc, para atuar em temas específicos. Quanto à seleção dos relatores e assessores, uma das recomendações de Armani refere-se à composição do Conselho de Seleção e a realização de um “debate político sobre os rumos e as prioridades das Relatorias”. Nesse sentido, durante a reunião para escolha dos relatores para o mandato 2009/2011 [3], a Coordenação da Plataforma Dhesca apresentou a proposta de ampliar a participação do Conselho de Seleção para o acompanhamento das atividades ao longo do mandato. Com isso, o conselho passou a ser chamado por Conselho de Seleção e Acompanhamento, com o compromisso de estar ao lado das Relatorias, dando o suporte necessário para o desenvolvimento das atividades. Outra recomendação acatada pela rede foi a organização de um seminário de planejamento com a presença de todos os relatores eleitos, coordenação executiva, grupo de referência da Plataforma para as Relatorias, redes indicadoras e também de uma pessoa com o papel de olhar os planos de trabalho e debater a incorporação da perspectiva de gênero e raça no desenvolvimento de missões. A organização do seminário se deu com o objetivo de fazer uma “análise de conjuntura quanto aos direitos humanos/Dhesca, identificação das problemáticas prioritárias para o próximo período, retomada da avaliação anterior, planejamento das estratégias e ações-chave para incidência das Relatorias (...)”. Com esse planejamento de eixos estratégicos para as Relatorias, foi possível abordar a integralidade dos direitos humanos, com os relatores elaborando no coletivo um marco único para todas as Relatorias, levando em consideração as condições políticas e conjunturais para os Dhesca no país. Mas ainda fica como desafio à Plataforma avançar na proposta de ter um grupo de referência para os temas abordados pelas missões, “com a atribuição de condução política e metodológica do processo, bem como para oferecer o apoio necessário ao(à) relator(a)”. Esse grupo se difere do grupo de referência da Dhesca Brasil para o projeto das Relatorias, porque estaria mais voltado a dar suporte teórico aos relatores no desenvolvimento de suas missões e estratégias de incidência, o que equivaleria ao Working Groups das Nações Unidas. Quanto ao desenvolvimento das missões, a avaliação retomou a importância desse instrumento para o projeto. “Quando uma missão chega e arma todo o contexto político de visibilização das vítimas e das situações de violação, e constrói uma situação de legitimação pública das organizações locais como defensoras de direitos frente às organizações oponentes, aos poderes públicos e à mídia, acontece um processo de fortalecimento da auto-estima das pessoas, um fortalecimento de sua credibilidade e força política para se colocar no espaço público e ser percebido e valorizado como interlocutor legítimo. O ápice deste processo costuma ser as audiências públicas, instrumentos extremamente úteis desenvolvidos pelo projeto para dar voz e vez às pessoas com direitos violados, legitimar seus pleitos e constranger autoridades, facilitando o estabelecimento de acordos e compromissos para a resolução dos problemas”. [3] Integraram a reunião: Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, Ministério das Relações Exteriores, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Secretaria Especial de Direitos Humanos, UNESCO e UNV, além das cinco organizações que compõem a coordenação executiva da rede.


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128 Embora seja uma importante ferramenta para o projeto, a avaliação de Armani propõe que as missões façam parte de uma estratégia mais ampla de incidência, que sejam anteriormente planejadas com a participação de todas as Relatorias e de organizações que compõem a Dhesca Brasil, que sejam melhor preparadas e que desenvolvam nas comunidades locais uma maior capacidade para dar continuidade a essa movimentação política. Para isso, a diretriz a ser implementada pela rede é a de melhor articular a chegada dos relatores nos locais de visitação, já com articulações feitas, dados levantados e uma agenda política previamente discutida. As redes e organizações locais se tornarão mais protagonistas nesse processo, porque são elas que deverão prosseguir com as recomendações e com o fomento da luta cotidiana pela implementação dos Dhesca. Com isso, as missões permanecem um momento muito especial para as Relatorias, mas não serão o objeto principal de trabalho. Na elaboração de dados, foi recomendação do avaliador que “se defina um conjunto de indicadores de resultado, efetividade e impacto das Relatorias Nacionais e que estes sejam monitorados regularmente”. Por isso, permanece como tarefa da Relatoria elaborar um documento que reúna as informações coletadas ao final de cada missão e mais um relatório analítico ao final do mandato, já com o intuito de sistematizar informações e elaborar indicadores. A construção de indicadores em direitos humanos e em Dhesca permanece como desafio não apenas para a Plataforma, mas também para todo o conjunto de organizações de direitos humanos. Está na pauta da rede seguir a recomendação de “realizar anualmente um evento específico para sistematização da experiência, aprofundamento conceitual e produção de conhecimento sobre Dhesca, articulado pela Plataforma em associação com outras instituições e redes”, mas com a clareza de que esse é um debate a ser feito em diversos outros espaços de direitos humanos. A articulação necessária com outras redes e instituições refere-se também ao relacionamento com as agências da ONU. Ao longo dos anos, houve aproximações com as agências, não apenas para financiamento para atividades, mas para a troca de informações entre os relatores das Nações Unidas e os relatores nacionais. Um dos primeiros passos para isso foi a participação de duas agências no processo de seleção dos relatores nacionais, já com o objetivo de aproximar as experiências e integrar atividades. Dentre todas as recomendações da avaliação segue em aberto o debate sobre a participação deste projeto para a criação de um Conselho Nacional que comporia um Sistema Nacional de Direitos Humanos. Em alguma medida, as redes de direitos humanos pautaram esse tema na construção do Programa Nacional de Direitos Humanos III. Para Armani, “não se chegou ainda a criar um mecanismo nacional que obrigue as autoridades a tomar providências perante os encaminhamentos e denúncias, nem se avançou no debate sobre um futuro Sistema Nacional de Direitos Humanos, no entanto, há certamente maior consciência em muitos setores públicos e do Poder Judiciário e da sociedade em geral de que isto se faz necessário”. As Relatorias apresentam-se nesse cenário como uma ferramenta altamente eficaz para dar vazão à enxurrada de denúncias de violação dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, com o papel de levantar não apenas os problemas, mas também apontar os caminhos possíveis para a sua superação, ao mesmo tempo em que promove a cultura dos Dhesca no país e fortalece as organizações locais para o enfrentamento dos problemas estruturais.


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129 EDITAL DE SELEÇÃO- Relatorias nacionais – 2009-2011 Termo de Referência para a Seleção de Relatores(as) Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais Através do presente edital a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais – DhESCA Brasil, dá início ao processo de seleção de 05 (cinco) especialistas em direitos humanos para o exercício da função de Relator(a) Nacional em Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, com a finalidade de atuarem no mandato 2009-2011. As Relatorias Nacionais em Direitos Humanos, Econômicos Sociais, Culturais e Ambientais são uma iniciativa da DhESCA Brasil iniciada em 2002. Sua missão é ser um instrumento de ampliação da exigibilidade dos DhESCA no Brasil, tendo em vista sua realização integral (promoção, proteção e reparação) para todos e todas, através da análise e da articulação de situações de violações locais de direitos humanos com a situação geral desses direitos no país. O referido mandato tem como objetivo contribuir para que o Brasil adote um padrão de respeito aos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, sexuais e reprodutivos, com base na Constituição Federal, no Programa Nacional de Direitos Humanos e nos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ratificados pelo país, através da implementação de mecanismos de controle da sua exigibilidade. A partir dos temas e eixos abaixo definidos, cabe ao mandato das Relatorias fazer um estudo de aprofundamento sobre tais temáticas, definir os espaços políticos onde incidir, quais articulações políticas devem ser feitas, quais violações existentes no Brasil são significativas para serem investigadas com missões, e propor encaminhamentos. Temáticas para o Mandato 2009-2011 Neste processo de seleção serão nomeados Relatores Nacionais em relação aos seguintes direitos:

1. Relatoria Nacional do Direito Humano à Terra ,Território e Alimentação: Eixos Prioritários a) Direito à Terra e a Reforma Agrária: questões da função social da terra e a regularização fundiária na Amazônia. b) Direito ao Território: a questão das comunidades tradicionais quilombolas e das comunidades indígenas. c) Direito à Alimentação e à Água: Biodiversidade e Segurança Alimentar.

2. Relatoria Nacional do Direito Humano à Educação: Eixos Prioritários a) Desigualdades e discriminações estruturais presentes no ensino. b) Condições de trabalho dos trabalhadores de educação. c) Violações do direito à educação da população que reside na área rural.


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130 3. Relatoria Nacional do Direito Humano à Cidade: Eixos Prioritários a) Compreensão desse direito de forma ampla, com base nos três princípios da Carta Mundial pelo Direito à Cidade, a saber, o exercício pleno da cidadania; a gestão democrática da cidade e a garantia da função social da cidade e da propriedade urbana b) Além do direito à moradia, deverão ser contemplados o direito à água, ao acesso e à administração dos serviços públicos domiciliares urbanos; ao transporte publico à mobilidade urbana; à segurança pública; ao trabalho; ao meio ambiente sadio e sustentável, dentre outros.

4. Relatoria Nacional do Direito Humano ao Meio Ambiente: Eixos Prioritários a) Documentação e análise do impacto do atual modelo de desenvolvimento, dos grandes projetos energéticos e mineradores sobre os Dhescas b) Impacto do agronegócio/monoculturas nos direitos das populações tradicionais c) Mudança climática d) Outros: regularização fundiária na região Amazônica; critérios de licenciamento ambiental; contaminação do solo e da água.

5. Relatoria Nacional do Direito Humano à Saúde: Eixo Prioritário: Direitos Sexuais e Reprodutivos a) Direito à autonomia sexual e reprodutiva b) Direito ao aborto legal e seguro, considerando o contexto da criminalização das mulheres por abortamento.

Eixos Transversais a todas às Relatorias: a) Desigualdades raciais no acesso aos DhESCA, b)Desigualdade das violações dos DHESCA sobre homens e mulheres. Nesse sentido, será realizada uma oficina de planejamento no momento da posse dos novos relatores/as, a fim de que essas duas dimensões da desigualdade – racial e de gênero – possam ser incorporadas na metodologia de trabalho de todas as relatorias ao longo deste mandato.


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131 Descrição dos Cargos

Relatores(as) Nacionais

Elaborar e executar estratégia de incidência política em DhESCA. Exercer suas atividades em parceria com as redes temáticas. Realização de estudos de aprofundamento sobre as temáticas indicadas; Identificar práticas, no campo das políticas públicas, da justiciabilidade e do controle social, relacionadas ao respeito dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Diagnosticar, relatar e recomendar temas, casos, contradições, conflitos, demandas, saberes e poderes, trazendo estes conteúdos e metodologias para o debate na sociedade. Subsidiar o fortalecimento da capacidade organizativa de controle social e de monitoramento independente da sociedade civil organizada para incidir na qualificação das políticas públicas e no controle dos espaços privados do mercado. Estabelecer relação de cooperação com os relatores especiais das Nações Unidas, especialmente aqueles diretamente relacionados ao direito ao qual o seu mandato se refira. Levantar, junto a organismos governamentais e não governamentais, informações necessárias à elaboração de relatórios anuais sobre o respectivo mandato do(a) relator(a) nacional. Definição de espaços políticos onde pretende incidir para alterar a situação geral de violação de DhESCA; Intervir nos espaços públicos de discussão e deliberação das temáticas específicas, representando a respectiva Relatoria Nacional durante o período do mandato. Receber denúncias de violação aos direitos respectivos, através de comunicações individuais e coletivas. Realizar missões investigativas a municípios e/ou estados brasileiros com vistas a conhecer a realidade relacionada ao direito a que refere o seu mandato, assim como levantar soluções junto aos diversos organismos da sociedade contatados. Estabelecer contatos com vítimas de violações aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais e ambientais. Elaborar relatório analítico e propositivo em relação ao direito ao qual o seu mandato se refere, a ser apresentado: à sociedade civil; à Comissão de Direitos Humanos e Minorias; à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa; à Conferência Nacional de Direitos Humanos; ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Humana e aos Conselhos Setoriais; e outros organismos nacionais e internacionais relevantes.


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132 Qualidades Pessoais Requeridas Relatores(as) Nacionais

Formação acadêmica - nível superior completo. Compromisso com a causa dos direitos humanos. Conhecimento teórico e prático em relação aos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, particularmente em relação ao direito para o qual tenha sido indicado(a). Comportamento ético nas relações sociais e de trabalho. Fluência escrita e oral na língua portuguesa. Conhecimento dos instrumentos e mecanismos nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos. Disponibilidade para as atividades do mandato, e para viagens por períodos de 2 (dois) a 5 (cinco) dias consecutivos, pelo menos duas vezes ao ano. Disponibilidade para o desempenho do cargo a título não remunerado. Exercer o mandato com independência.

Critérios Adicionais de Seleção

Além das qualidades pessoais acima descritas, o processo de seleção levará em conta os seguintes aspectos: Equilíbrio de raça/etnia, gênero e distribuição geográfica. Vinculação a uma das redes temáticas específicas parceiras da Plataforma Dhesca Brasil, a qual deverá expressamente expor sua contrapartida nas atividades do projeto. Prevalência da rotatividade Apresentação de um plano de ação provisório no qual deverão constar os seguintes aspectos: a) principais ações: nas quais indicará o que pretende realizar durante o mandato, considerando os eixos e temas prioritários de atuação; b) metodologia: na qual descreverá os elementos metodológicos que pretende empregar para o desenvolvimento das ações; c) parcerias e apoios: no qual descreverá com quais atores sociais pretende atuar e como procurará envolver as diversas organizações que atuam no/s tema/s afins da respectiva relatoria nacional.


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133 Início das Atividades Investidura nos cargos: 11 de agosto de 2009, terça-feira, em evento público, onde ocorrerá o lançamento do Relatório Analítico do mandato 2007-2009 das Relatorias Nacionais que agora se encerram. É imperativo que os candidatos tenham disponibilidade de agenda para esta data e o dia subseqüente, para a realização da cerimônia de posse e de uma oficina de preparação e planejamento das atividades.

Remuneração Os(as) Relatores(as) Nacionais em DhESCA não são remunerados(as).

Processo de Seleção Relatores(as) Nacionais O processo de seleção e posse dos (as) relatores(as) nacionais será concluído até o dia 12 de agosto, com recebimento de inscrições entre os dias 15 de junho e 14 de julho de 2009 e constará dos seguintes passos:

[1] No Termo de Compromisso da Rede Temática deverá expressamente constar o apoio que será dado no desenvolvimento do trabalho da Relatoria especificada.


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134 Indicações As Redes proponentes dos nomes dos relatores deverão enviar a ficha de indicação, acompanhada de cartas de recomendação, de Termo de Compromisso com a relatoria e dos currículos dos(as) candidatos(as), até o dia 14 de julho de 2009, seja por correio (com a data postal) ou por e-mail para os seguintes endereços. Plataforma DhESCA Brasil / Relatorias Nacionais em DhESCA Secretaria Executiva Rua Ermelino de Leão, 15- cj72- centro Curitiba-Paraná- CEP 80 410-230 Email: secretariaexecutiva@dhescbrasil.org.br e ligiacardieri@gmail.com Conselho de Seleção dos(das) Relatores(as) Nacionais O Conselho de Seleção das Relatorias Nacionais em DhESCA será composto pela Coordenação colegiada da Plataforma Dhesca; Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados; Comissão de Direitos Humano do Senado Federal; Secretaria Especial de Direitos Humanos; Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão; Divisão de Direitos Humanos do Ministério das Relações Exteriores; e sete organismos da Organização das Nações Unidas vinculados a direitos humanos econômicos, sociais e culturais e ambientais: OMS/OPAS; UNICEF; UNESCO; PNUD; UNV; FAO; OIT. Apoio ao Trabalho aos(as) Relatores(as) Nacionais Os(as) relatores(as) nacionais em direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais receberão apoio e suporte de trabalho de organizações da sociedade civil, bem como contarão com a colaboração de assessoria da Plataforma Dhesca Brasil nas diferentes temáticas.

Brasília, 15 de junho de 2009 Coordenação colegiada da Plataforma Dhesca Brasil Secretaria Executiva


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135 FORMULÁRIO PARA INDICAÇÃO DE CANDIDATURA PARA RELATORIA NACIONAL EM DhESCA 1. PROPONENTE Nome do/a proponente (rede, organização, fórum): Endereço Completo: Fone/Fax:

E-mail:

Nome do Responsável pela Indicação: Cargo do Responsável pela Indicação: Assinatura do Responsável pela Indicação: 2. CANDIDATO/A Nome do/a Candidato/a: Profissão:

Atuação:

Vínculo Institucional: Endereço Completo: Fone/Fax:

E-mail:

Assinatura do Candidato/a: OBS: A assinatura do/a candidato/a expressa sua concordância com a indicação. 3. RELATORIA Assinalar a relatoria nacional para a qual está sendo feita a indicação (assinalar apenas uma): ( ) Direito à Terra,Território e Alimentação; ( ) Direito à Educação ( ) Direito à Cidade ( ) Direito ao Meio Ambiente ( ) Direito à Saúde: Direitos Sexuais e Reprodutivos Secretaria Executiva da Plataforma DhESCA Brasil Rua Des. Ermelino de Leão, 15, conj. 72 – Centro – CEP: 80410-230 – Curitiba/PR – Brasil +55 (41) 3014-4651 - + 55 (41) 3232-4660 www.dhescbrasil.org.br – secretaria@dhescbrasil.org.br



As Relatorias Nacionais em Dhesca constituem uma experiência inovadora para o monitoramento, análise e difusão de informações sobre os direitos humanos no Brasil, especialmente dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Esta publicação reúne as experiências das seis relatorias temáticas que atuaram entre 2007-2009, com a descrição do trabalho desenvolvido, análise sobre a conjuntura dos direitos humanos no país e as recomendações dadas aos poderes responsáveis para a superação das violações investigadas. A partir dessas análises, é possível visualizar um quadro sobre a situação dos direitos humanos no país, identificando os principais desafios para esse tema e o papel assumido pelas Relatorias Nacionais na promoção de uma cultura de direitos humanos. Este livro contém ainda uma avaliação metodológica sobre o projeto e aponta os novos horizontes de trabalho para as futuras gerações de relatores nacionais.


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