Revista Pivô #2

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R E V I S T A P I V Ô # 2


Num outro nível de vínculo Para nos afastarmos do cotidiano, do hábito, da preguiça mental que esconde de nós a estranheza da realidade, devemos receber algo como uma verdadeira porrada. [To tear ourselves away from the everyday, from habit, from mental laziness which hides from us the strangeness of reality, we must receive something like a real bludgeon blow.] eugène ionesco

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ano de 2020 contém, em si, pelo menos outros dois. Como uma rocha sedimentar, cujas múltiplas camadas revelam a complexa sobreposição de temporalidades distintas, o ano desdobrou-se pelo seguinte e seguirá a espraiar-se mesmo pelo próximo e ainda além diante dos efeitos brutais da pandemia global do vírus Sars-Cov-2, causador da Covid-19. Desde março de 2020, quando decretada oficialmente pela OMS, a pandemia foi responsável por alterar todos os âmbitos da vida social, o que modificou radicalmente tanto a esfera pública quanto a privada. No campo da arte, a imposição de uma agressiva mudança nos calendários e no funcionamento das muitas pontas do circuito, resultou em reconfigurações de naturezas diversas. No Pivô, esse processo de revisão acarretou não apenas o adiamento da execução do programa artístico pre-

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visto para o ano passado, como suscitou também uma reflexão fértil sobre a maneira como construímos narrativas e nos implicamos nelas. Feito um freeze-frame – expressão do vocabulário do cinema que designa o ato de isolar um quadro da linha do tempo de uma narrativa, de modo a criar um ponto de inflexão na trama – 2020 alterou nossas dinâmicas relacionais e mexeu radicalmente com a nossa apreensão do espaço-tempo, embaralhando e suspendendo qualquer senso de linearidade. A presente publicação tenta, de alguma maneira, circunscrever a estrutura tentacular que se revelou o último ano, propondo uma abordagem transversal ao programa artístico desenvolvido desde então, que se estendeu ao longo deste ano e continuará, em parte, até o ano que vem. Uma vez abolida a divisão temporal-temática que guiava nosso programa, propomos aqui uma abordagem que o tangencia em suas outras potencialidades, por vezes insuspeitadas ou complementares às suas realizações físicas, presenciais. Se a pandemia nos submeteu a uma mudança radical na forma como vivenciamos a esfera pública e os territórios que ocupamos coletivamente, os textos, entrevistas e ensaios aqui reunidos nos convidam à investigações que extrapolam os limites do espaço físico e questionam os códigos e formatos convencionais do fazer artístico e da prática expositiva. Aproximações, portanto, não da ordem documental ou meramente reprodutiva, mas que são perspectivas a fim de ampliar o escopo do programa por meio de leituras expandidas e novas interlocuções.

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A exposição República, individual do artista Luiz Roque, encontrava-se pronta para ser aberta aos/ às visitantes quando a pandemia nos apresentou seu primeiro e implacável corte: o fechamento em massa dos espaços públicos e a imposição do

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isolamento social para todos que pudessem se manter em quarentena em casa. Em um intervalo de tempo que se revelou um tanto mais longo do que as previsões iniciais, a experiência pandêmica intensificou o senso comum de que realidade e ficção têm se aproximado de tamanha maneira que parecem, frequentemente, fundir-se. Dentro desse contexto, a produção audiovisual de Roque, amplamente informada pelo campo da ficção científica, ganhou contornos ainda mais verossímeis. Sua incursão fílmica pelo bairro da República, nas vizinhanças do edifício Copan, funciona como um disparador livre para os exercícios de fabulação empreendidos nos textos do curador Bernardo José de Souza e da artista abigail Campos Leal, nos quais ambos especulam acerca de futuros próximos – no ano de 2074 para Souza e, 2077 para Leal. Diante do impasse da presença física, o Pivô Pesquisa, programa de residência artística, foi um dos primeiros a passar por reformulações gerais. Os ciclos de 2020, por exemplo, foram inteiramente repensados dentro das possibilidades do ambiente virtual, em suas potências e limitações. Na seção O que acontece em uma residência artística quando ela é feita da própria residência?, reunimos relatos de artistas e curadores participantes do programa, em diferentes ponderações acerca das especificidades dos processos dos quais fizeram parte. Por uma via similar, Sobre a coreografia convoca artistas envolvidos em diferentes programas do Pivô a partilharem, em depoimentos pessoais, visões que buscam expandir os limites da noção de coreografia, questionando compreensões hegemônicas que ainda a restringem ao campo da dança. Os textos propõem outras chaves de leitura atravessadas por dimensões políticas, estéticas ou mesmo institucionais. Adiado para este ano, e ainda em parte para o próximo, o programa de exposições previsto para 2020 é interpelado aqui por colaborações

que o atravessam obliquamente, no intuito de reverberar suas realizações físicas no espaço do Pivô, já acontecidas ou ainda por vir. Catalina Lozano, curadora da exposição coletiva Uma história natural das ruínas, aberta em fevereiro deste ano, entrevista o antropólogo Arturo Escobar, em uma conversa que aprofunda diversas questões que informam sua prática curatorial e a pesquisa para a mostra. A noção de pluriverso, fio condutor do programa do Pivô para 2020, é retomada por Lozano e Escobar, os quais refletem ainda sobre possíveis relações entre a decolonialidade e imaginações que ultrapassam a lógica moderna separadora de ideias de natureza e cultura, humano e não-humano. Também no formato de uma entrevista-conversa, os curadores João Mourão e Luís Silva discorrem junto a Manuel Solano, artista que nasceu e cresceu nos subúrbios do México, sobre a sensação de dilatação temporal que perpassou o trabalho do trio no processo da exposição individual de Solano, Heliplaza, concebida em um mundo pré-pandêmico e inaugurada apenas em setembro deste ano. Realizada em parceria com a 34ª Bienal de São Paulo, Oriana, individual da porto-riquenha Beatriz Santiago Muñoz, parte da epopeia feminista As guerrilheiras (1969), da escritora Monique Wittig, para criar um longa-metragem fragmentado. A obra de Wittig é analisada, aqui, tanto como objeto da livre adaptação feita por Muñoz na instalação audiovisual que compõe sua mostra, como pela tradutora Raquel Camargo, responsável, junto de Jamille Pinheiro, pela versão em português da obra, publicada pela editora Ubu em 2020. Ambas discorrem sobre as particularidades, as escolhas e os desafios enfrentados em suas adaptações da emblemática obra de Wittig. Por meio de uma troca de cartas, a artista Ana Vaz – cuja exposição individual está prevista para o próximo ano, no Pivô – endereça

à escritora Juliana Fausto, autora de A cosmopolítica dos animais (n-1 edições, 2020), um relato concebido durante o processo de filmagem de É noite na América, filme inédito a ser exibido no contexto de sua mostra. Fausto, por sua vez, responde aos apontamentos de Vaz sobre suas impressões sobre o zoológico de Brasília, cenário principal de seu filme em processo, também em uma chave poética. O artista argentino Eduardo Navarro, que realizou a exposição Predição instantânea do tempo, em 2019, no Pivô, encerra a publicação com um ensaio visual acompanhado de um poema, ambos de sua autoria. O interesse de Navarro pelo movimento dos ventos, tema recorrente de sua produção, manifesta-se aqui em uma série inédita de desenhos que o artista realizou após receber a notícia de que seus “trajes eólicos” criados para a sua exposição no Pivô, foram consumidos em um incêndio acidental. Diante da perplexidade e do desalento experimentados, Navarro recorreu mais uma vez aos fenômenos, desta vez como interlocutores na elaboração de perdas irreparáveis: “o que vemos, já aconteceu”, nos lembra o artista, cujos desenhos aparecem também na capa da publicação. Se os últimos tempos foram pautados por uma suspensão involuntária do ritmo de nossas vidas individuais e coletivas, nos cabe, talvez, buscar reestruturar o tecido do comum a partir de outras compreensões de tudo aquilo que nos cerca e nos constitui. Quem sabe o incontestável freeze-frame pandêmico nos permita vislumbrar o impossível, e, diante da incerteza que se descortina diante de nós, nos revelar novas alianças – interpessoais e interespécies – para que propostas artísticas, metafísicas, políticas e extrassensoriais se materializem, encontrando ressonâncias ou discordâncias dentro e fora de nosso espaço físico e virtual. Seguiremos em frente – ou na direção mais favorável que os ventos nos apontarem.#

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SOBRE

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O aparecimento do sujeito político: efeito e causa de um novo entendimento de coreografia andré lepecki

Ao passo que as formas de violência colonial que a dança canônica oculta começam a ser reveladas, novos entendimentos do significado de coreografia começam a surgir. Eles se expandem para além dos domínios da dança, e fornecem meios de teorizar o contexto social, funcionando como um elo entre práticas artísticas e a sociedade. A relação entre o estético e o político pode, portanto, ser investigada a partir das novas formas de entender o coreográfico. ¶ A seguir, artistas envolvidos recentemente na programação do Pivô compartilham, em depoimentos bastante pessoais, sua visão sobre a coreografia e os usos particulares que dela fazem. [LF]

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COREOGRAFIA

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ste texto é um acordo que faço comigo e fia como tecnologia, uma máquina do tempo que com Wallace Ferreira: coreografar para irá permitir a ele se reunir com o mestre após sua deixar rastro. ¶ É uma coletânea de formas partida. A ansiedade pela morte do mestre tornade defesas de si. Não desejo criar com isso qualquer -se fundamental para a criação do projeto coreoansiedade no porvir, apenas afirmar vida na inde- gráfico. ¶ Aqui, não existe qualquer aliança com terminação. Quando falo sobre coreografias de a performance melancólica da modernidade e o autodefesa, reescrevo apenas uma possibilidade seu desejo de permanecer inscrita no tempo. Atrade escapar disso tudo. Não escrevo nada novo – vesso esse espaço assombrado apenas com o desejo essas coreografias são movimentadas pelos becos de elaborar coreografias que podem desaparecer, da impossibilidade desde sempre. ¶ Em Exaurir que sejam provisórias, incertas. Aprendemos a nos a dança1 (2017), Lepecki discute que, em 1588, mover em solos rachados, a tropeçar, somos auThoinot Arbeau, pseudônimo do matemático e todestrutivos. E não há contradição nisso, pois o padre jesuíta Jehan Tauborot (1519–1595), publi- corpo negro tem a capacidade de efetuar a autocou um dos mais famosos manuais sobre as danças destruição sem repetir a violência colonial, mas francesas sociais renascentistambém sem se autodestruir tas: Orchesographie et traicte en por completo. ¶ Com essas forme de dialogue, par lequel coreografias, assumo o comtoutes persones peuvent facileCOREOGRAFIAS DE promisso de pensar criticaAUTODEFESA. ment apprendre & practiquer mente o mundo que vivemos, REPERTÓRIO COMO l’honneste exercice des dances,2 coreografo entre a imaginaRECOMENDAÇÃO PARA depois reimpresso em 1589 e ção e a intuição e tento liberDANÇAS DO FUTURO 1596. Dissolvidas em uma só tar o pensamento das ferrapalavra, e relacionadas uma mentas do entendimento. por Davi Pontes Nesse sentido, me interessa com a outra, dança e escrita propor uma coreografia rapassaram a mobilizar vínculos tão fundamentais quanto dical que confronta justainsuspeitas entre o sujeito mente o terceiro pilar ontoeque escreve e o que dança. Não à toa, o manual tem pistemológico, a sequencialidade – a partir da em sua introdução um diálogo inventado entre atravessabilidade, conceito apresentado por DeArbeau e seu discípulo Capriol, que debatem ma- nise Ferreira da Silva. ¶ Peço que esse experineiras de dançar, sua importância para a sociedade mento não se confunda com uma metáfora para da época, assim como sua permanência no tempo. tratar da violência e de seus desdobramentos. CoCom Arbeau, esses dois sujeitos fundiram-se em reografias de autodefesa não são metáforas. Deum. ¶ No manual Orchesographie, vemos o desejo vem ser percebidas como insubmissão contra esse masculino se construir ao lado da coreografia. Ca- mundo e suas formas de circunscrever a brutalipriol, o advogado, solicita que seu professor Ar- dade. Não quero com elas criar qualquer esperança beau, mestre de dança, padre e matemático lhe de que o mundo se tornará melhor para nós. Isso ensine a arte de dançar, para que possa viver mais não é uma decisão. Utilizo a atravessabilidade pela adequadamente. O advogado percebe a coreogra- sua capacidade de perfurar, criar uma rachadura no tempo linear, um experimento que se afasta do 1 lepecki, André. Exaurir a Dança: performance e a política do movimento. entendimento e guia o pensamento para os limites São Paulo: Anablume Editora, 2017. da imaginação. 2 Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k54531m/f192.image.

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oreografia. Tenho uma atração peculiar não pulsam todas as gramáticas de corpo que me por uma parte que compõe esse substan- ocupam? Não se forjam novos arranjos a partir tivo feminino: GRAFIA. Gosto da sono- dos alfabetos aprendidos nos invólucros corporidade ao dizê-la. Parece-me que quando pro- rais que me floresceram e continuam a me gernuncio, algo de dentro se marca no espaço fora minar? ¶ Aliás... percebo que GRAFIA ao estar de mim. É como se a minha voz assinasse alguma ao lado de COREO é presenteada com uma bela coisa que só o meu íntimo tem o conhecimento parceira, pois a circularidade da sua companheira mais cirúrgico. Espiralizo quando digo GRAFIA. potencializa os possíveis redondos que já residem E cardiografo minha imaginação quando escuto, dentro dela. Um duo poderoso, que singulariza a vejo, toco, danço e cheiro outras GRAFIAS. ¶ ação de compor movimentos. E mesmo nesse caCreio que meu encanto por minho, GRAFIA – espontâesse fragmento de palavra nea e leve – ainda se destaca. seja por ele trazer no seu sigQuestão de segundos. Não nificado a ideia de MANEIé proposital. Parece querer RAS de escrever e, em adição, apenas lembrar que muiCOREO[GRAFIA] a de estar/pertencer. Habitar tos são os jeitos de realizar tal façanha (compor moviatravés/por/com as palavras. por Deise de Brito [E não somente.] Por isso, mentos). Não esqueçamos... GRAFIA soa-me como algo ¶ Reza minha: que os entorque acolhe tudo e não se imnos sejam sempre apreciados porta com a variação, inclucom os sentidos que GRAFIA sive com a infinitude de difeme desperta. Que inspirada rentes caminhos que versos no múltiplo implícito nela, podem percorrer. Além disso, GRAFIA aparenta eu siga semeada de círculos. E que o existir seja existir para confirmar aquilo que é óbvio: muitas todas as pertenças grafando ou realizando suas são as formas de desejar, enunciar-se e deslocar-se. movências sem impeditivos, cercas, isolamentos ¶ Quando uso “palavras” quero dizer “movimen- e fascínio pelo domínio sobre outras coreosabêntos” e vice-versa. Recuso a distinção técnica e for- cias. Que o subjugar não encontre espaço, tempo mal que existe entre os dois vocábulos. Escolho ou peso na geo[grafia] dos meus sentidos a fim de ficar com as sensações que o corpo vive quando que sempre a minha corpo[grafia] mantenha-me realizo escrituras ou mobilidades. Assim, pala- na travessia da desmontagem de qualquer tentavreio quando me movo, por isso danço quando tiva de enrijecer os desígnios dos meus movimentambém escrevo. Afinal de contas, ao interpretar, tos. Que eu seja sempre coro – e – grafada.

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coisa mais difícil, além de dançar com li- sando canais atrofiados de transporte. Essas três berdade, é definir a coreografia. Convido coreografias me ajudaram a entender como sou vocês a conhecer minha primeira lem- hoje, uma pessoa que age pela própria capacidade brança coreográfica: tinha treze anos, quando de agir além da regulação do Estado. A coreouma colega da minha turma da sexta série do en- grafia é estética, política, repetitiva, intencionada; sino fundamental encontrou trechos de Bakunin acontece faz um longuíssimo tempo e está tamou de Thoreau na internet. Apesar de não lem- bém nas ondas de valor institucional de minorias brar as palavras exatas, nós, naquele dia, fizemos no campo das artes, que ainda vivemos hoje. No uma coreografia de revolução: escrevemos essas calor desse movimento, é totalmente comum que frases no quadro verde e – mesmo sem entender artistas diversas, colocadas em um mesmo lugar, totalmente – anunciamos que a turma 64 era tenham tensões institucionais. ¶ As ondas instianarquista. Afirmamos que tucionais também são coreonão aceitávamos ordens grafias, que não asseguram vindas de cima, fechamos permanência: fazem com que instituições que não se as portas da sala no horário manifestaram, ao longo do do recreio com uma barriINICIA MUITO ANTES tempo, para desmantelar cada de cadeiras escolares, E TERMINA MUITO DEPOIS as estruturas mortíferas do e distribuímos, entre nós e capitalismo, hoje, sejam as outras turmas, broches feipor Diambe da Silva mesmas que criam valor a tos de papel de caderno e capartir de identidades pluneta Pilot, com o símbolo do anarquismo, que passamos rais, multiculturais, fazendo a usar diariamente. ¶ Por isso em proveito de um meralgumas semanas vivemos cado de visibilidade. Como uma coreografia revolucionária, até que fomos diz Keyna Eleison: é preciso que a gente entenda interceptadas pelo núcleo pedagógico. Na escola que estamos falando de dança, estamos falando pública onde estudei, a coreografia da greve tam- de arte! Eu entendo, na minha produção plástica, bém era comum. As greves eram bienais, e então algo de coreografia. Isso facilita que tenha boas organizávamos passeatas, que funcionavam como companhias e torna nítido que, embora os cridesfiles de arte para interromper o fluxo de car- térios disponíveis não sirvam para dar conta do ros de uma das vias que liga ao Rebouças, nome que produzo, eles se transformam conosco. Esses de um engenheiro negro que é também um dos critérios também são feitos por nós, pelos positúneis mais movimentados da cidade, próximo à cionamentos que assumimos ao longo de uma escola. Morava longe de onde estudava, e por isso história da arte, e me alio para seguir vivendo. participava diariamente de mais uma coreografia: Talvez tenha me enganado: pode ser que aquela o deslocamento pendular para a escola, atraves- não tenha sido minha primeira coreografia.

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ecnologia ancestral. rota atemporal. mer- a própria terra, porque evocam, fazem baixar. gulhar na areia e escavar com as mãos memórias muito antigas viajaram até aqui e maa beira do atlântico. visões da travessia, nifestam em mim os caminhos para seguir entre corpos afundados, memórias das rochas. banzo, trânsitos, pausas, fugas. os mesmos gestos me geofagia. aqueles gestos. entrar no espaço, pre- acompanham 300 anos após o sequestro colonial, parar o terreno. agô!1 à bença. laroyè!2 fechar os 800 anos antes da travessia, e seguirá junto de olhos. ¶ venho de um lugar onde tudo é encan- mim. saias girando, abebés9 que são espelhos e tamento e presença. o rio é o centro da espiral escudos. o provérbio iorubá não nos deixa esquedentro de uma coreopoética cer èmi kó kán, èmí ní edbe: que cultua o mistério. com não sou só uma, sou uma coas águas, as forças se premunidade. cartografamos o sentificam, kalunga!3 iabás,4 sensível, o audível, e tamorixás,5 orikìs,6 voduns,7 bém o invisível aos olhos. as ifá.8 a dança é o fluxo desse memórias estão arquivadas coreografar o mistério rio. o nosso corpo, uma caem nossa carne, em nossos orìs,10 em nossos odús.11 ¶ baça. os cantos talvez sejam por Inaê Moreira

mergulhando no espaço, navegando entre o orun12 e o ayê, sentado, está o caboclo na sala da casa da minha mãe. ele acende o seu charuto, canta um ponto, e me diz: ¶ – você que está aí sentada, se aproxime. ¶ jurema me abraça, dá um giro antes de voltar a ser a outra. ¶ um cavalo, ou um corpo? aqui ou lá? transformação do espaço, subversão da lógica. coreografia, ou xirê?13 caminhos circulares, germinativos, acolhedores, curativos. é uma dança que sabe morrer, sabe nascer, sabe circular. espalhar o axé. ¶ – ô de casa! a bênça iyá.14 ¶ ela responde: ¶ – essa menina com esses olhos só pode ser de oxóssi.15 ¶ sim, meu corpo sempre foi mesmo como uma flecha. uma mirada certeira pra escapar do esquecimento. ¶ bravun,16 o ritmo das memórias

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Em iorubá, pedido de licença para movimentos de entrada, saída, passagem etc. Saudação ao orixá Exú, que abre caminhos e é o senhor das encruzilhadas. Inspiro-me aqui no pensamento do filósofo Tiganá Santana, que retoma a cosmopercepção oriunda das presenças civilizatórias Banto através da ideia/conceito/imagem da Kalunga – que pode ser entendida como um processo e princípio de mudança e vitalidade. Um símbolo que agrega os mistérios da morte e a saudade do que ficou para trás. Iabá, cujo significado em iorubá, é Mãe Rainha, é o termo empregado para se referir aos orixás femininos. Orixás (em iorubá: Òrìs. à) são divindades da religião iorubá. A palavra oríkì, em iorubá, significa louvar, saudar, evocar. Os oríkì’s, por sua vez, são palavras ou frases portadoras de axé (força) usadas pelos iorubás na hora das oferendas e pedidos aos orixás. Os oríkí’s também são usados para louvar os ancestrais, líderes sacerdotais e relatar ocorrências cotidianas e particularidades de cada família.

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Candomblé Jeje é o candomblé que cultua os voduns do Reino do Daomé levados para o Brasil pelos africanos escravizados de várias regiões da África Ocidental e África Central. Essas divindades são da rica, complexa e elevada mitologia fom. Ifá é um oráculo africano. É um sistema divinatório que se originou na África Ocidental entre os iorubás, na Nigéria. Não é propriamente uma divindade, é o porta-voz de Orumilá e de outros orixás. Abebé é um leque em formato circular. Se dourado, feito de latão ou com espelho no centro, é usado por Oxum, orixá das águas doces, rios e cachoeiras. Quando prateado e, geralmente, com símbolos, é usado por Iemanjá.

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Ori, palavra em iorubá que significa literalmente cabeça, refere-se à intuição espiritual e ao destino. Ori é o orixá pessoal, em toda a sua força e grandeza. É o primeiro orixá a ser louvado, representação particular da existência individualizada (a essência real do ser). É aquele que guia, acompanha e ajuda a pessoa desde antes do nascimento, durante toda vida e após a morte, referenciando sua caminhada e a assistindo no cumprimento de seu destino. Odú é um conceito do culto de Ifá também usado no candomblé, interpretado no merindilogum, na caida de búzios. A palavra vem do iorubá e significa destino. Cada ser-humano possui o seu destino que se assemelha a de outros, mas sempre com alguma particularidade. Para esse estudo são usadas diversas técnicas ou métodos oraculares, como por exemplo o merindilogum, o opelé-ifá, o iquim etc. Orun, em iorubá, é uma palavra que define o céu ou o mundo espiritual; é paralelo ao aiê, mundo físico. Tudo que existe no orum coexiste no aiê através da dupla existência orun-aiê. Em iorubá, xirê significa roda ou dança utilizada para evocação dos orixás, conforme cada nação.

em saudações aos mais velhos. mãos que tocam o chão e depois a cabeça ao entrar no barracão. o corpo estendido na terra em reverência a xangô17. a virada do atabaque que anuncia a presença de uma nova energia no espaço, e isso quer dizer: uma nova dança. tudo circular, em roda. a iyá, o babá,18 o fundamento epistemológico que é oxum. ¶ étimos gregos khorus, círculo, graphe, escrita. escrever com o corpo, desenhar, registrar, gravar o espaço circular. já o fazíamos. danças para a colheita, para a fertilidade. danças. e retorno para a areia, para o atlântico, para o escuro, a fim de reencontrá-las. em tempo, espiralar para não me perder da encruzilhada. dançando povoo as grafias das memórias que são o fundamento da nossa (re)existência.

14 É uma palavra utilizada em muitos segmentos das religiões afro–brasileiras, principalmente no candomblé, que significa “mãe”. 15 Oxóssi é uma divindade das religiões de matrizes africanas, também conhecida como orixá, que representa o conhecimento e as florestas. Por esta razão, ele também é conhecido como o orixá da caça, da fartura e do sustento. 16 O bravum, embora não seja atribuído especialmente a algum orixá, é frequentemente escolhido para saudar Oxumarê, Ewá e Oxalá. É um ritmo relativamente rápido, bem dobrado e repicado. 17 Xangô é uma entidade (orixá) bastante cultuada pelas religiões afro-brasileiras, sendo considerado deus da justiça, dos raios, dos trovões e do fogo. 18 Significa “pai” em iorubá.

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ólen é o veículo da germinação, o que da linguagem. – Dançar é construir espaços. ¶ se move no presente como algo origi- – Por uma psicanálise da dança: o pingue-pongue nário. – As inflorescências são como do devir inconsciente da linguagem sobre uma hastas, variações gestuais da mão que indicam interpretação do movimento e do gesto – do uma qualidade da ação. Não há diferença real en- não dito, mas feito. – Para Leroi-Gourhan a tre o abrir da flor de lótus e o movimento do hasta técnica – ou seja, a mão – vem antes da voz. – lótus. ¶ – Lótus é o elo entre os tubérculos e as A sístole e diástole do movimento universal cheplantas aquáticas. O olho da planta é um espelho gam na extremidade das mãos como linguagem. entre elementos. ¶ – O pólen de Novalis é dança ¶ – O braço está para a mente das mãos como o estática: fecunda o pensamento e germina como pescoço está para a mente da cabeça, essa é uma ação análoga. ¶ – Mover-se das chaves para se comjunto com o movimento é preender o Lago dos Cisnes. estar no estático do tempo. ¶ – O cisne e a mulher têm ¶ – Uma coreografia metauma transa metamórfica. ¶ mórfica se desdobra em sua – O cisne é uma espécie de própria estrutura: antes e NOTAS SOBRE DANÇA mulher, segundo Bateson. ¶ depois são embaralhados no – Leda é também um cisne. ¶ – O cisne está no tempo meio. ¶ – Girar e andar de por Maria Noujaim costas alteram a percepção como um lago, move-se em progressiva do tempo, são todas as direções. – O mito metamorfoses reversivas. e o folclore são metamorfoO olho da planta – reproses de corpos na linguagem. dução por clone e não por Mesmo Lévi-Strauss se contransformação contínua – é um olho nas costas. tradisse: não há linguagem sem imanência. ¶ – ¶ – Os xapiri são sem número, transitam por es- Poesia é dança estática. Um corpo que se move pelhos e dançam. Observação e ação são os dois inteiro sem sair do lugar. – A linguagem dos lados do espelho. ¶ – Como os xapiri através gigantes é metafórica, a terra está para o nome, dos espelhos, dançar é mover-se entre dimen- assim como o corpo está para a terra. ¶ – Dançar sões. – Um espelho é diferente de dois espelhos. uma metáfora é dançar uma pergunta. ¶ – Me¶ – Um corpo é muitos corpos. ¶ – Abelhas, táforas são metacinéticas, movimentam o moviformigas, pinguins, castores, veados e outros mento. ¶ – A bailarina é uma espécie de mulher animais que vivem em corpos coletivos: o com- e uma espécie de cisne, o cisne é uma pergunta. portamento espacial é o início da espacialidade ¶ Terras Altas da Mantiqueira | Julho 2021

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HETEROTOPIAS ANIMAIS: MACAU E OUTRAS ESTÓRIAS

Originalmente prevista para o último ano, a exposição da artista Ana Vaz foi um dos projetos atravessados por uma significativa dilatação temporal em seu processo de realização, uma vez que foi remanejada para acontecer em maio de 2022, no espaço do Pivô. Vaz – brasiliense que reside entre Lisboa e Paris – estava no Brasil em pesquisa e filmagens de sua nova obra audiovisual quando se viu impedida de voltar para a Europa. Em visita à Brasília, onde vive parte de sua família, a artista realizou diferentes incursões ao zoológico da capital federal, objeto de curiosidade e pesquisa, e acabou por elegê-lo o ambiente principal de seu filme, buscando aproximar-se dos diferentes animais que ali residem, em condições adversas. ¶ Macau, uma ariranha nascida no zoológico de Dortmund na Alemanha e transferida sob recomendação do eaza (Associação Europeia de Zoos e Aquários) para o zoológico de Brasília, em 2019, torna-se objeto de intensa aproximação e observação por parte de Ana, que passa a filmá-lo em diferentes dias, em suas visitas ao zoológico. Sua experiência resulta em um delicado relato endereçado a Juliana Fausto, autora de A cosmopolítica dos animais (editora n-1, 2020), obra que havia influenciado Ana durante seu processo de pesquisa. Fausto, por sua vez, acolhe as reflexões de Ana e a endereça uma carta-réplica em que aprofunda questões em torno da perpetuação de um modelo perverso de cárcere aos quais animais selvagens são submetidos, vigente ainda hoje em zoológicos mundo afora. [VG]

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MACAU

uito antes de vê-lo, já ouvia as frequências agudas e incisivas de Macau. As notas alternavam-se em volume e cadência num polirritmo estridente pausado apenas pela sua ágil natação. A flauta-garganta de Macau ecoava num misto que interpretei como fúria ou excitação que rompia a pasmaceira do meio da manhã e irrompia o fluxo contínuo de um rio de carros passando nas traseiras do seu aquário, situado às margens da Avenida das Nações ou Via L4 Sul. Na mesma avenida, encontram-se as embaixadas de quase todos os países representados na cidade-capital, arquitetando assim uma espécie de heterotopia que uniformiza o exótico e o moderno num só eixo. São nove da manhã e Macau está furioso com o atraso de quase meia hora em sua alimentação, hoje interrompida pela chegada da equipe de cinema. O sol escaldante do semiárido é abafado por um conjunto de nuvens escuras e baixas que anunciam a caída de um temporal até antes do meio-dia. Somos os únicos ali: a equipe de cinema, os animais e os cuidadores. Hoje, nem os visitantes, nem as crianças usualmente ansiosas e extáticas na esperança de ver em carne e tédio seus animais preferidos (tão prontamente preteridos por não serem os bichos-humanoides fantasiados pela Disney e co.), nem as vendedoras de pipoca, nem a equipe de limpeza e nem mesmo os macacos pregos que coreografam o mais perfeito arrastão de comidas, lixos e objetos esquecidos estão presentes. É feriado de Carnaval num ano de pandemia. Macau aguarda a entrada de Luís Antônio, cuidador dedicado ao seu aquário e ao da sua vizinha Ravena, uma lontra resgatada por alunas de biologia em Curitiba que viveu como pet delas durante seus primeiros anos de vida. Luís Antônio chama Macau pelo nome e lhe pede paciência, a sua alimentação já está a caminho. Ele nos diz que mudanças repentinas em seu horário de alimentação são positivas, já que a frustração e a fúria quebram o tédio de um cotidiano regulado pelos horários da comida. “Não há nada pior do que um animal que sempre pode prever o horário da sua alimentação. Aqui, tentamos manter um ecossistema que se assemelhe às intempéries da vida selvagem”, nos conta o biólogo encarregado dos mamíferos americanos. Ele carrega um grande balde de plástico repleto de Tilápias (provavelmente também criadas em aquário) preparadas diariamente pelo setor de nutrição do zoológico. Macau é biologicamente classificado como representante da Pteronura brasiliensis, espécie endêmica da América do Sul que já percorreu todo o norte do sul da América chegando até a Argentina, Uruguai, Paraguai e até mesmo ao centro-oeste brasileiro. O que a ciência ocidental chama de Pteronura brasiliensis é para indígenas do tronco Tupi ariranha,

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ou seja, onça d’água. Pelxs Kaiapós nativxs de Goiás do tronco macro-Jê é chamada de iópaçán, e pelxs brasileirxs transplantadxs, de ariranha ou lontra gigante. À revelia de suas raízes sul-americanas, Macau nasceu no zoológico de Dortmund na Alemanha, e foi transferido sob recomendação do EAZA (Associação Europeia de Zoos e Aquários) para o zoológico de Brasília, chegando no dia 7 de setembro de 2019. Também a sua revelia, Macau foi eleito representante da espécie Pteronura brasiliensis para retornar ao seu território de origem, a fim de repovoar a terra dos seus ancestrais que foram dizimados pela poluição dos rios e nascentes, pela consequente perda de seu habitat e pela intensiva caça furtiva de suas peles, exportadas como matéria exótica na forma de casacos e chapéus até a década de 1970. É como se o retorno de Macau fosse uma espécie de cavalo de Troia pós-colonial, isto é, as peles retornam vivas para ensinar aos súditos coloniais que se esforcem pela preservação daquilo que só os colonos sabem preservar. Enfim, afinaram a maligna arte da preservação desde o início da tempestade moderna:1 tudo o que se destrói, se embalsa, tudo o que se mata, se categoriza.2 Curiosamente, a história do zoológico de Brasília com os antepassados de Macau começa mais cedo, também na década de 1970, quando ainda era aceitável que zoológicos capturassem espécies de animais em seus habitats, e os trouxessem para povoar suas cenografias de “mundos naturais”3. Foi assim que uma equipe do zoológico foi à captura de um grupo de ariranhas na região de Flores de Goiás, um município historicamente marcado pela fundação de quilombos de indígenas, negrxs e brancxs empobrecidxs fugindo da opressão e da miséria imposta pelas senzalas coloniais. O município, localizado a mais ou menos três horas de Brasília, é abraçado pelo fluxo dos rios Paraná e Macacos, integrantes de uma rede de nascentes oriundas 1

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“Tempestade colonial” é a expressão utilizada pelo filósofo Malcom Ferdinand em seu imenso livro Por uma ecologia decolonial: pensar a ecologia a partir do mundo caribenho (Éditions du Seuil, 2019) no qual ele re-situa o pensamento ecológico numa eco-crítica pós-colonial aonde tempestades, ciclones e furacões ganham dimensões histórico-naturais à revelia da ruptura moderna que separa a história ambiental da história colonial. Como já dizia Bruno Latour em Jamais fomos modernos: “Os modernos têm a doença da História. Querem guardar tudo, datar tudo, pois pensam terem rompido definitivamente com o seu passado. Quanto mais acumulam revoluções, mais querem conservar, quanto mais capitalizam, mais museificam. Sua maníaca destruição se paga simetricamente pela conservação também maníaca.” Aliás, este povoamento distópico é plenamente cumprido pela inauguração do zoológico de Brasília, que precede em três anos a inauguração da cidade sob o pretexto de entreter os trabalhadores vindos para árida odisseia da construção da modernidade. É curioso sublinhar que o local onde o zoológico foi construído foi inteiramente dinamitado, com os relevos rochosos do planalto planificados a fim de produzir a brita necessária para a construção da cidade. Foi justamente em meio a essas explosões que se supõe a extinção do Juscelinomys candango: “o rato que Brasília matou” (relato também presente em A cosmopolítica dos animais, de Juliana Fausto). Até Clarice Lispector faz uma alusão opaca a esse episódio no seu conto “Brasília”: “Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construção com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo”.

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do centro-oeste que seguem até a bacia amazônica. Provavelmente, às margens do Paraná ou Macacos foram capturados os antepassados de Macau e, em seguida, levados até o zoológico de Brasília, onde se tornaram um exemplo de “sucesso” (sic) na reprodução de ariranhas em cativeiro. Com curiosidade, suponho que a família de ariranhas capturadas em Flores de Goiás foi também, muito provavelmente, a mesma que estampou as capas dos jornais da cidade no ano de 1977 envolta sob o maligno estigma de “ariranhas assassinas”. Cresci na cidade ouvindo diversos relatos de que elas, por vezes confundidas com piranhas ou lontras, matavam criancinhas no zoológico de Brasília. Lembro-me até hoje de imaginar essa cena diversas ocasiões como uma fábula cautelar fascinante em que o sangue derramado da criança me impactava muito menos do que a incrível capacidade da suposta fera em dilacerar a carne humana com tamanha agilidade. A imagem mental dos dentes pontiagudos dessas feras me acompanhou em diversos banhos de rio. Poucos minutos antes da tempestade, vim a conhecer tanto a narrativa oficial por trás desta estória como o seu lado b, muito mais sombrio do que qualquer fantasia infantil poderia imaginar. A narrativa oficial conta que, em agosto de 1977, numa tarde de domingo, o sargento do Exército Silvio Delmar Hollenbach salvara uma criança de um suposto ataque de ariranhas, após ela ter pulado dentro do recinto dos mamíferos. Alguns dias depois, o sargento veio a falecer no hospital do Exército devido a uma também suposta infecção proveniente das mordidas das ariranhas. Desde então, o soldado foi imortalizado como “primeiro herói” da cidade numa estátua que hoje decora a entrada do zoológico. Já o lado b desta lenda, quem reza são os cuidadores e guardas do zoológico, aqueles que tiveram suas perspectivas absolutamente silenciadas pela lenda oficial. Esta versão narra a cena a partir de outra perspectiva: uma criança, no auge de uma travessura, pula para dentro do recinto das ariranhas. Um sargento, à paisana e supostamente embriagado, pula no recinto para retirar-lhe dali. As ariranhas, por sua vez, guardando suas crias recém-nascidas, iniciam um coro coletivo que alerta em alto e bom som os intrusos para se afastarem. Em resposta ao coro, o sargento se lança a dar pontapés na família das Pteronuras brasiliensis, que por sua vez mostram dentes e fúria a àquele Homo sapiens não sapiens. Alguns dias depois, o sargento falece no hospital do Exército em função de uma infecção hospitalar causada por uma bactéria, a qual não era encontrada na Pteronuras brasiliensis (espécie, aliás, não peçonhenta). Assim sendo, tudo indica que a bactéria que colonizou o corpo do soldado até a morte era oriunda do próprio hospital. A decisão dos militares foi então de condecorar a memória sargento, esconder o estado de calamidade do hospital e demonizar as ariranhas em canto uníssono com uma população

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de humanoides nada sábios como “assassinas”. É curioso como quando não quer, Narciso não se vê no espelho. Os cuidadores dizem que até os dias de hoje, excursões infantis param em frente ao aquário do solitário Macau para gritar em uníssono “assassina”. No entanto, Macau é cantador de outros cantos, nunca uníssonos. São muitas as variações e ritmos tanto crescentes quanto crípticos que Macau traqueja para se comunicar com Luís Antônio, e agora com a intrusa equipe de cinema que lhe observa, lhe grava, lhe olha. Macau retorna o olhar, ágil, incapturável em imagem, voraz. Ao perguntar ao gerente de projetos educacionais e historiador do zoológico sobre o destino de Macau, este me responde que “ele tem condições de ser uma ariranha, cava as tocas dele, é uma ariranha praticamente completa. Só precisa ter uma companheira para formar um grupo reprodutivo e se tornar uma ariranha plena.” E então eu me pergunto: ser uma Pteronuras brasiliensis plena seria então completar o desejo de preservação do Homo sapiens sapiens? Em meio a esse imbróglio, qual será o desejo pleno de Macau? As primeiras gotas do temporal começam a cair. Trovões altíssimos interrompem a flauta de Macau, que mergulha com sua inigualável agilidade para debaixo do aquário. Em menos de um minuto estamos encharcados, correndo para a van, para debaixo das árvores, buscando proteger as máquinas, lentes e gravadores. Não estou certa que gravamos verdadeiramente nada do espírito ou da estória de Macau. Os dois rolos de 16mm fora da validade podem ter sido usados “em vão”. Talvez não haverá nenhuma imagem, apenas alguns ruídos para acompanhar o seu canto. Fecho os olhos e vejo as membranas aquosas de Macau, a pele espessa que conecta seus dedos e unhas, seu pelo molhado reluzindo ao sol, as mãos famigeradas devorando a tilápia, o azul escuro que reluz da iluminação, os olhos fixos que nos atravessam, o grito incansável que nos chama, a velocidade desconcertante de seus movimentos lembrando-nos que chegaremos sempre tarde demais para filmá-lo. Não é possível acompanhar um corpo em fuga, um corpo em movimento, a câmera estará sempre em atraso até onde ela resiste em ser o instrumento cúmplice da extinção. Em vez de revelar, poderia a imagem simplesmente velar por e ao lado de Macau? 21 de abril de 2021 Ana V para Juliana F

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uerida Ana, Quando preparava A cosmopolítica dos animais para publicação, cortei uma nota em que me referia brevemente ao conceito de heterotopia, evocado por você ao me contar sobre os primeiros sinais de Macau – a música que ele toca com sua flauta-garganta, capaz de desequilibrar os eixos brasilienses. A nota era suscitada por um comentário dos autores de Zoos. Histoires des jardins zoologiques en Occident (xvi-xvi siècles), Éric Baratay e Élisabeth Hardouin-Fugier. Eles diziam que “por uma especificidade intelectual francesa”, mesmo “Michel Foucault, filósofo das prisões, da clínica e da loucura, não se interrogou sobre o zoológico”. Eu observava, então, que havia duas aparições zoológicas importantes em sua obra, na conferência “De espaços outros” (1967) e no livro Vigiar e punir (1975). A segunda é bastante conhecida e se trata da ideia de que o panóptico teria sua origem nas coleções reais de animais, especificamente na ménagerie construída por Le Vaux em Versalhes na segunda metade do século xvii: “O animal é substituído pelo homem” (p. 205). Nos espaços outros, um discurso denso e curto, em que a noção de heterotopia é definida, os jardins surgem como sua forma mais antiga; neles, “o mundo inteiro vem realizar sua perfeição simbólica”, sendo “a menor parcela do mundo e, então, a totalidade do mundo”. São, “desde o início da Antiguidade, uma espécie de heterotopia feliz e universalizante (daí os nossos jardins zoológicos)” (2013, p. 118). Já passei um bocado de tempo pensando sobre essa passagem, tão curta e ao mesmo tempo cheia de sentido. Acho que Foucault queria dizer que os zoológicos se inscrevem em uma tradição de alguns povos humanos de fazer coexistir em um mesmo locus o cosmos inteiro. Quando penso em tapetes, segundo o filósofo, “originariamente, representações de jardins” (idem), essa me parece uma bela tradição. Um microcosmos feliz, total. Se me recordo das histórias da colonização, expropriação, assassinato, sequestro e transporte forçado de seres vivos, humanos e mais-que-humanos; daquilo que Donna Haraway, em conversa com Brigitte Baptiste, explicou em termos de “sucção da vitalidade e quebra da generatividade e sua substituição por produção e reprodução a partir das quais a extração de valor possa se dar” (2019, s/p), dou-me conta de como totalizar e universalizar são gestos perigosos. Quem é, afinal, o sujeito dessa felicidade? Macau primeiro me vem como uma música, uma flauta-garganta. Como polirritmo que abala as harmonias de uma heterotopia composta à sua revelia. As ariranhas são um povo que vive em grupo, embora ele, Macau, seja obrigado a viver sozinho. São um povo falante, dos mais falantes de sua família de lontras. Macau canta – talvez tenha aprendido a cantar com seus pais no seu país de nascimento, a Alemanha, de onde veio como “pele viva”, conforme você me diz, como “pele viva” para o Brasil, em um movimento da metrópole para a colônia. De alguma forma isso me remete aos apelos de

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povos indígenas mundo afora para que os museus devolvam artefatos e até mesmo corpos outrora surrupiados. Penso então em Macau como um manto Tupinambá vivo que não encontra mais seu povo quando chega em casa. De uma prisão a outra, incapaz de viver entre os seus. Em A queda do céu, Davi Kopenawa relata mais de uma vez a ganância dos brancos diante das peles de ariranha. Ele também explica que o demiurgo Omama e o espírito zangão Remori, “que deu aos brancos a sua língua emaranhada” (p. 126), decidiram não conceder a mesma língua às suas gentes a fim de evitar conflitos entre elas. Não sabendo o que cada uma diria de mal a respeito da outra, além de afastadas territorialmente, poderiam coexistir. Um estudo conduzido com ariranhas em zoológicos, na Alemanha, e na natureza, no Peru, encontrou evidências estatísticas que indicam a existência de assinaturas nas vocalizações de grupos diferentes (Munn e Knörnschild, 2017). Como se cada grupo de Pteronura brasiliensis tivesse o seu próprio sotaque, que não se confundiria com outros; assim, uma série de informações poderia ser transmitida, inclusive a identificação territorial. Listado na seção de materiais e métodos, entre os zoológicos estudados na Alemanha, está o de Dortmund, a heterotopia original de Macau. As gravações foram feitas em 2011. Será que sua voz ou a de algum parente seu foi registrada? Ele a reconheceria? Qual será o seu sotaque? Você me conta que ainda hoje há quem se reúna em torno do recinto que foi dado a Macau habitar, a esse estranho viajante de quem o mundo foi roubado, para o acusarem de assassinato. Não que ele, este espécime, este Macau tenha matado um ser humano. Nem, na verdade, que algum outro grupo de ariranhas o tenha feito. Mas essa é a estória. A “estória matadora”, “estória do matador”, talvez nos dissesse Ursula K. Le Guin, aquela mesma estória trágica e triunfante que narra a Ascensão de Homem o Herói, para quem tudo o mais é resto. Nós temos o hábito de acreditar que somos maiores e melhores que os outros quando eles estão presos. Que os submetemos, que já os derrotamos. Conforme relato colhido por Jacques Lizot e repassado por Tânia Stolze Lima a Eduardo Viveiros de Castro, “as ariranhas levantam suas cabeças [emergindo da superfície da água] porque elas percebem os Yanomami como pontos minúsculos” (2006, p. 336). O que Macau vê quando olha para os parentes dos assassinos de seu povo? Que roubam seu território, atacam sua gente e a difamam? Qual será o tamanho de seus acusadores? O que ele escuta na sua gritaria? O que fala de volta para eles? Quem são eles na sua cosmologia, a cosmologia de Macau? Tive a oportunidade, certa vez, de visitar uma Organização Não Governamental cujo objetivo é “a triagem taxonômica e reabilitação física de animais silvestres para soltura em áreas geográficas de ocorrência natural”. Prefiro não nomeá-la aqui simplesmente porque não pedi permissão, pois o trabalho que presenciei sendo feito lá foi dos mais sérios e dedicados. Conheci muitos bichos lá: araras, tucanos, um filhote de veado, um cachorro-vinagre,

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macacos-prego, um lobo-guará, uma jaguatirica, algumas suçuaranas e um sem número de passarinhos. Nem todos poderiam ser soltos pois apresentavam traumas físicos que os impediam de sobreviver no que restava de seu habitat. Esse era o caso de Marie, a Puma concolor filhote cuja foto envio em anexo para você. Nesse instantâneo, estou de costas, segurando a pequena onça, que tenta escapar de meu agarre. Ela finca as garras no meu braço, tem a boca aberta e seus olhos enormes miram para fora do quadro. Para fora do enquadramento natureza versus cultura, humanidade versus animalidade em que foi apanhada. Em uma região dominada pela cana-de-açúcar, foi mais uma vítima da prática da queima da palha de cana, que facilita a colheita posterior. Eu já havia recebido notícias de outras suçuaranas recolhidas com queimaduras, às vezes tão severas que lhes tinham custado a vida. Esse filhote, entretanto, sobrevivera, mas nunca poderia viver livre. Liberdade, como sabemos, é uma palavra-armadilha. Lembro-me sempre das palavras de Rotpeter, o ex-macaco que falou através da pena de Kafka: “Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída”, refrão repetido junto à gargalhada primata diante da pretensão da humanidade emancipada, aquela da liberdade enquanto “movimento soberano” (1994, p. 61). Como Macau, a ariranha, ou Marie, a onça, podem ser livres em um mundo que acredita na liberdade como movimento soberano, isto é, na terceirização do trabalho sujo, do sofrimento, na “liberação” de qualquer reciprocidade? Mas será que eles ainda conseguem construir saídas? Há ainda saídas quando a Amazônia, o cerrado e o pantanal ardem? Invoco Rotpeter, o Pedro Vermelho – que ganhou esse nome por causa de uma cicatriz causada pela arma de um caçador, um traficante de animais – para arrancar as placas de saída das rodovias e estradas que destrem florestas, ecossistemas e povos de todas as gentes e restituir a saída aos animais. Se há vida, há de haver saídas. Há um livro muito bonito da filósofa Vinciane Despret chamado Habiter en oiseau (2019). Não sei se você o leu, mas tenho certeza de que, se já não gosta, gostará. Sei disso porque além de utilizar imaginações mais-que-humanas para desenvolver uma concepção animal de território, ela dá atenção especial ao canto dos pássaros, ao som e à música, que sei que são caros a você. Em vez do procedimento triste de procurar as origens dos piores traços de nosso mundo em comportamentos animais, inscrevendo sobre eles aquilo que queremos ver, e produzindo falsos mitos de origem, Despret ousa “abrir a imaginação ao honrar as invenções”, afinal “trata-se de multiplicar os mundos, não de reduzi-los aos nossos” (p. 42). Macau ou Marie ou os pássaros no céu não possuem propriedade privada, mas não param de criar formas de territorialização. O que nós podemos aprender com eles? Se há territórios que insistem em ser cantados ou, mais precisamente, que não querem senão ser cantados, se há territórios que insistem em ser marcados pela potência de simulacros de presença, territórios que devêm corpos e corpos que se expandem em lugares onde se vive, se há lugares onde se vive

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que devêm cantos ou cantos que criam um espaço, se há potências do som e potências dos cheiros, há, sem dúvida, muitos outros modos de habitar os mundos que os multiplicam. Quais verbos poderíamos descobrir para evocar tais potências? Existem territórios dançados (potência da dança em acordo e acorde)? Territórios amados (que não querem senão ser amados? Potência do amor), territórios disputados (que não querem senão ser disputados?), compartilhados, conquistados, marcados, conhecidos, reconhecidos, apropriados, familiares? (p. 41). Despret conta, informada por estudiosos que trabalham com bichos, que ao marcar os territórios, certos mamíferos também se marcam daqueles, daquela terra, daqueles cheiros – não reivindicam a terra para si, mas viram a terra em si e se viram em terra. Que territórios podem ser a situação, a ocasião de cantos e danças para pássaros muito mais do que algo que defendem; e que a sua vitalidade é tal em suas performances que, possuídos, exprimem uma espécie de cogito territorialmente alado: eu canto, logo eu sou aqui. Para esses pássaros, seu canto é um “ato de presença”. O que acho que quero te dizer é que quando ouço Macau, sabendo que um dos modos de territorialização das ariranhas é a vocalização, escuto um grito-mundo, um encantamento. Sei que Marie, mesmo não podendo realizar as excursões a que é chamada pela terra, se banha em terra seca e se vira em terra, transformando-se em fantasma no recinto em que vive. Cometeu-se um crime contra esses animais, não é possível denegar isso. Um crime de consequências irreversíveis, que determina sua vida, empobrecendo-a. Mas isso não é tudo, Ana, e eu sei que você sabe disso, porque você também cria território com seus filmes, bicho-Ana. Contigo, o grito de Macau se estende e faz corpo pela cidade toda, uma flauta que encontra o céu. Estamos cansadas de viver “à sombra de toda essa morte”, como disse Deborah Bird Rose e eu não me canso de repetir. E, se nós estamos cansadas, o que dizer de quem vive a destruição no seu corpo-território que é diariamente aviltado? Uma onça ou uma ariranha não são a palavra-onça ou ariranha, nem a imagem de onça ou de ariranha, mas elas também podem habitar, de modo misterioso e sacramental, as palavras e as imagens de onças e ariranhas sem jamais deixarem de ser aquela onça e aquela ariranha que se esforçam diariamente para manter as partes de seu corpo unidas e reunidas à terra que as fabrica e que elas fabricam. A cidade moderna é um lugar triste, malgrado suas pretensões utópicas. Meu desejo é que Macau, o flautista, no encontro contigo, qual no conto dos irmãos Grimm, lidere a saída para fora dela. Afinal, Dortmund não é tão distante de Hamelin. Um beijo, Juliana F para Ana V 23 de Julho de 2021

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UM MUNDO ONDE CABEM MUITOS MUNDOS

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exposição Uma história natural das ruínas, com curadoria de Catalina Lozano, reuniu nos dois espaços do Pivô trabalhos que revelam diferentes formas de resistência aos modos como o imaginário colonial moderno hegemônico tem capturado nossa imaginação. No centro da exposição havia uma crítica à divisão moderna entre natureza e cultura e suas implicações ontológicas e sociopolíticas. ¶ O antropólogo colombiano Arturo Escobar é um dos fundadores do importante coletivo transdisciplinar latino-americano Modernidade/Colonialidade, e desde os anos 1990 tem se dedicado a investigar os efeitos da mentalidade desenvolvimentista na América La-

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CATALINA LOZANO Gostaria de começar ARTURO ESCOBAR Bom, são sempre perperguntando como você chegou à antropologia guntas importantes: “como se começou?”, “qual e à necessidade de um questionamento radical da foi a trajetória?”. Há cerca de três anos, aqui em episteme moderna/colonial. Cheguei ao seu tra- Chapel Hill, houve uma audiência por ocasião balho, anos atrás, quando me aproximei do que da minha aposentadoria, e me pediram que eu chamam de grupo modernidade/colonialidade, e fizesse uma apresentação sobre a minha carreira, o conceito de “colonialidade do poder”, de Aníbal e resolvi fazer uma espécie de retrospectiva, que Quijano, foi muito importante para começar a intitulei “Transumância epistêmica: Reflexões de pensar várias coisas que se tornaram centrais em quatro décadas de prática acadêmico-política”. meu trabalho. Talvez sua resposta à minha per- Comecei na engenharia química, e depois biogunta possa incluir algo acerca da sua relação com química, nutrição, ciência dos alimentos. Ali coessa “corrente” de pensamento. mecei a me interessar pela problemática da fome, e fiz um mestrado nesse campo. Então, comecei a me dar conta também de que o problema da fome não era apenas um problema fisiológico ou de saúde, mas também um problema socioeconômico e político. Aos poucos, isso me levou à economia política. A economia política foi o meu primeiro deslocamento epistêmico — chegar a me dar conta de que o problema da fome era um problema de distribuição e de poder, era um problema político.

tina a partir de sua prática acadêmica e do seu envolvimento com movimentos sociais e ativistas. Escobar articula de maneira sempre propositiva ideias sobre como comunidades locais podem entrar em diálogo com o mundo moderno sem que abram mão de suas especificidades ou sejam aniquiladas. Lozano e Escobar advogam, cada um à sua maneira, a favor do conhecimento e das práticas ecológicas dos povos indígenas como exemplos de práticas produtivas desafiadoras das as categorias coloniais ainda em funcionamento. A convite da revista, a curadora conduz uma entrevista inédita com o antropólogo sobre temas que permearam a pesquisa da exposição e o programa do Pivô como um todo. [FB]

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CL E isso foi em que ano, mais ou menos?

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AE Isso foi no final dos anos 1970. Terminei engenharia química em 1975. Aí comecei o mestrado em bioquímica na Universidad del Valle, em Cali, e em seguida entrei na Universidade de Cornell para fazer o mestrado com uma bolsa, e era o momento em que eu explorava a preocupação com a fome no mundo, sobretudo a partir da escassez de comida na região do Sahel, na África; isso me comoveu muito, e comecei a passar do lado tecnológico e científico para o lado sociopolítico da desnutrição e da fome. Eventualmente isso me levou à problemática do desenvolvimento: a fome era uma dimensão de um problema muito mais amplo, que era chamado de “subdesenvolvimento”. Comecei o meu doutorado em Berkeley, ainda em economia política do subdesenvolvimento, com enfoque na problemática da fome e da desnutrição, fazendo um estudo de caso. Mas eu queria demonstrar que as teorias que haviam sido originadas no hemisfério norte — especialmente em universidades inglesas e estadunidenses — com fins de “desenvolver” o terceiro mundo, sobretudo para resolver a questão da fome, da desnutrição e da pobreza, simplesmente perpetuam o problema, e têm mais a ver com a manutenção das estruturas de poder. Cheguei até ali por meio da ciência, da tecnologia e da economia política e, em seguida, dei o salto, no começo dos anos 1980 e em pleno doutorado. Então comecei, digamos, o segundo deslocamento epistêmico, na direção daquilo que, naquela época, começavam a chamar de estudos culturais, inspirados pelo pós-estruturalismo. Teve a ver com meu encontro com a obra do pensador francês Michel Foucault, especialmente no que diz respeito à sua noção de discurso e de formação discursiva enquanto o espaço em que se modelam os imaginários, as formas de pensar e as práticas historicamente construídas de todas as populações. Então comecei a pensar na fome como um discurso e, assim, no subdesenvolvimento como discurso. E, pelas contingências da vida, naquele

momento havia em Berkeley dois professores que tinham trabalhado muito com Foucault, motivo pelo qual ele começara a visitar a universidade no final dos anos 1970. Um desses professores era o antropólogo Paul Rabinow (falecido recentemente), que acabou sendo o orientador da minha tese, não formalmente, mas sim na prática. Encontrei a antropologia como algo libertador: essa forma de pensar que nos ensina a analisar toda formação social, toda cultura, todo grupo social como uma realização histórica particular, como algo historicamente constituído. Ela nos ensina que toda ordem social e cultural é arbitrária, foi constituída historicamente e, obviamente, sob a hegemonia de uma ordem social particular — que é a ocidental, considerada verdadeira, enquanto as outras são vistas como menores, ou subdesenvolvidas, ou simplesmente atávicas, anacrônicas. No entanto, o modo de pensar e de ser, e o modelo de vida ocidental são tão historicamente construídos como os outros. Nesse contexto, pouco a pouco também fui encontrando a teoria decolonial, que se articulava bem com o pós-estruturalismo foucaultiano — a análise dos discursos, incluindo os discursos coloniais. Nos anos 1980, sobretudo na Califórnia, houve um grande auge dessas análises dos chamados discursos coloniais, centrados nas representações que as metrópoles faziam das colônias. Orientalismo, famoso livro de Edward Said, foi publicado em 1978. Ele foi o paradigma desses estudos, e analisou em detalhes como o Ocidente constituiu e construiu ativamente o Oriente por meio da produção de discursos e representações na literatura, na filologia, na economia, na história, nas artes, em todos os campos do saber. O Ocidente criou um Oriente que não tinha nenhuma relação com o assim chamado “Oriente”, mas sim com a maneira como Ocidente precisava criar o resto do mundo — à sua imagem e semelhança ou a partir de sua perspectiva hegemônica, para assegurar sua dominação em nível global.

Já em Massachusetts, no fim dos anos 1990, comecei a me conectar com o grupo que viria a se chamar modernidade/colonialidade/decolonialidade. Meu primeiro contato com alguns deles tinha sido em 1991, em Caracas, onde fizemos uma reunião — organizada por Edgardo Lander, Margarida López Maya e Luis Lander — sobre pensamento crítico e desenvolvimento. Ali apresentei a minha primeira desconstrução do desenvolvimento. O grupo se constituiu como tal — e há várias genealogias deste grupo — em 1998, em Montreal, no Congresso Mundial de Sociologia, mais especificamente em uma reunião da qual participamos eu, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Edgardo Lander, Fernando Coronil, e María Lugones ou Enrique Dussel — já não me lembro bem. Enquanto grupo, tivemos uma série de reuniões ao longo de quinze anos, em diferentes partes do mundo: Caracas, Bogotá e Chapel Hill. Em 2002, escrevi um artigo no qual descrevi o grupo como um programa de investigação sobre a modernidade e a colonialidade. Na última década, me embrenhei por outros caminhos. Não é que não tenha interesse pelo pensamento decolonial, pois ele segue me interessando e faz parte da minha formação, mas, digamos que a transumância epistêmica me levou para o terreno da ecologia e ontologia políticas.

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CL Acho que uma das coisas que me fizeram AE Sim, com certeza; esse foi um ponto fraco falta no grupo de modernidade/colonialidade foi do grupo de colonialidade/pensamento decolojustamente uma perspectiva feminista, além do nial, em seu início. María Lugones e Catherine fato de poucas mulheres participarem dele... Re- Walsh era integrantes, e nos inspirávamos um centemente, você retomou muito o pensamento pouco nas feministas chicanas, mas de fato não cultivamos isso plenamente. Foi necessária feminista. uma geração de jovens feministas interessadas no marco decolonial para que realmente se iniciasse um grande desenvolvimento do feminismo decolonial, que agora me parece ser o filão mais interessante dentro do pensamento decolonial, e um dos mais interessantes dentre os grandes feminismos latino-americanos.

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CL A partir da noção de colonialidade, mas AE A captura da imaginação pelos discursos também do trabalho de Silvia Federici, come- dominantes é muito real. Não apenas capturam a cei a entender melhor o que você articula como imaginação, mas também o conceito de possível; “ontologia da separação” — moderna, capitalista, domesticam as concepções do possível. E há esse colonial, patriarcal —, em contraste com uma on- célebre aforismo que você parafraseia na sua pertologia relacional — que caracteriza o pluriverso. gunta. Eu não o conhecia dessa forma. Conhecia Uma das implicações desse regime binário de se- da seguinte forma (e creio que seja atribuído a paração é a divisão entre natureza e cultura, ou [Fredric] Jameson ou a David Harvey): “é mais natureza e sociedade. Acredito que realmente se fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do produz uma naturalização da episteme moderna capitalismo”. Eu o digo de outra maneira: “é mais ocidental que cria a ilusão de que noções como fácil imaginar o fim do mundo do que o fim da progresso e desenvolvimento — dentro do ca- modernidade”. Com colegas estadunidenses, inpitalismo, é claro — são inevitáveis ou indubita- gleses ou do norte da Europa, acontece muito velmente desejáveis, algo que você já desmante- de alguém falar do fim da modernidade e isso lou por meio de seu trabalho há décadas. Há um produzir um medo e uma espécie de angústia, cineasta britânico de que gosto muito, Patrick que é preciso considerar muito verdadeira. Mas Keiller e, em seu filme Robinson in Ruins, ele faz a modernidade, enquanto projeto histórico civia seguinte citação de F. Jameson: “Hoje parece lizatório, está chegando ao fim. E isso é dito por ser mais fácil para nós imaginar a deterioração muitíssimas pessoas, não apenas os ativistas de profunda da terra e da natureza do que a quebra movimentos indígenas da América Latina, que do capitalismo tardio; talvez isso se deva a alguma já o propõem há trinta anos, mas também lídefraqueza em nossa imaginação”. Interessa-me res espirituais, ambientalistas e feministas que já entender e desafiar a forma como o capitalismo se atrevem a sugerir que o que está em jogo é o e a modernidade capturaram a capacidade de fim disso que chamamos de modernidade; que a imaginar outros mundo para nós, a quem você deterioração da terra não é causada apenas pelo chama de modernos urbanos. Você poderia me capitalismo, mas que o capitalismo é uma fase contar um pouco de sua experiência concreta de algo mais antigo — o patriarcado, e também com comunidades negras e indígenas na Colôm- a modernidade. bia, e comentar como esse percurso lhe permitiu Eu realmente aprendi muito com os ativisidentificar essa captura da imaginação que faz tas do Proceso de Comunidades Negras (pcn) no com que apenas um mundo pareça possível — e Pacífico Sul e no norte do Cauca. Em suas lutas, como essas comunidades criam outros mundos e, eles e elas sempre enfatizavam que o objetivo da inclusive, outras noções de humanidade? luta era a defesa da diferença cultural. Nem sequer a luta contra o racismo. Naquele momento, pelo menos no Pacífico colombiano, ainda não se falava muito em racismo. Falava-se da luta pela diferença cultural e pelo território, a defesa do território. Nos anos 1990, o pcn e outros grupos formularam quatro grandes princípios para as lutas, que continuam sendo vigentes. O primeiro é o direito a ser, o direito à identidade, à identidade negra; o segundo é o direito

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ao território como espaço para o ser; o terceiro, o direito à autonomia como garantia ao exercício do ser e ao controle do território; e o quarto, o direito à sua própria visão de desenvolvimento de acordo com sua cosmovisão, ou o direito a sua concepção do mundo, do bem-viver e do futuro. Então, quando trabalhamos a partir da realidade dxs outrxs — e é isso o que permitem a antropologia e a etnografia — acabamos entrando em outra cosmovisão. E aí nos damos conta de que há outros mundos, imaginações e futuros possíveis. Naquele momento, ainda não se usava o conceito de ontologia como se usa hoje em dia. Usava-se em filosofia, obviamente, mas não na ecologia política. E tampouco existia o campo da ontologia política, como o chamamos agora. Mas o pcn e os movimentos indígenas dos anos 1990 — em uma nova grande onda de mobilizações, de surgimento de identidades negras, indígenas, entre outras — basicamente ressaltavam que o mundo não é um só, e sim que o mundo é muitos mundos. Os zapatistas, a partir de 1996–98, já vinham dizendo muito claramente: “queremos um mundo onde caibam muitos mundos”, o pluriverso. Então, sim, o discurso hegemônico captura a imaginação e naturaliza uma só forma ou expressão do possível como continuidade do que está dado; o possível não pode existir como ruptura. Até certo ponto, o pensamento decolonial — e, hoje, a ontologia política — diz: “não, é preciso romper, é preciso tornar visíveis os muitos mundos que existem e, portanto, libertar o próprio futuro dessa imaginação de um mundo único que foi imposto a ele.”

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CL Falando em imaginação, eu gostaria de saber o que você pensa dos sonhos enquanto ferramentas de investigação e de criação. Airton Krenak, por exemplo, diz: “Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia”. Davi Kopenawa também diz a Bruce Albert que seus mestres não lhe ensinaram a sonhar como fazem os Yanomami. Mas também sei que antropólogas como Barbara Tedlock incorporaram o sonho a suas “tecnologias” de investigação, e Eduardo Kohn disse que os sonhos “crescem do mundo e crescem sobre o mundo, e aprender a estar em sintonia com suas lógicas especiais e suas frágeis formas de eficácia ajuda a revelar algo sobre o mundo além do humano”. Estou curiosa para lhe perguntar, num âmbito mais pessoal, como você se relaciona com os seus sonhos, com a noção de sonho como exercício enquanto dormimos, talvez para pensar em como expandir a imaginação para romper essa hegemonia, essa imagem unívoca de mundo que a modernidade produziu.

AE Neste caso acho que não posso ajudar muito, porque na verdade eu sei que sonho, mas nunca pensei ativamente nos sonhos, e poucas vezes me lembro deles; acho que Kopenawa está certo quando diz que os ocidentais não foram ensinados a sonhar, a cultivar os sonhos e a aprender com eles, como fazem muitos povos originários. Assim, acho super interessante quando ouço as pessoas falarem dos sonhos, do papel dos sonhos dentro da antropologia, por exemplo, e em muitos povos originários. Os sonhos são uma dimensão ativa da vida, do presente, da composição do mundo. Um dos meus autores favoritos, e um dos poucos autores do hemisfério norte que continuo lendo de vez em quando, é Gaston Bachelard. Sua obra fenomenológica me fascina — não a epistemologia, que também é interessante —, e especialmente livros como A poética do espaço, O direito de sonhar, O ar e os sonhos, seus livros sobre a água, o fogo, são preciosíssimos. Nesse sentido, eles têm mais a ver com os devaneios e a imaginação do que com o sonho, mas acredito que aqui e ali os sonhos também aparecem. Pode haver algo a se explorar aí.

CL Ultimamente tenho me interessado, ainda que sem muita reflexão, pelas formas como as concepções do tempo são representadas espacialmente: no ocidente, predomina a linearidade e a noção de que o futuro está à frente, e o passado, atrás; para os povos aymara, é o contrário: caminha-se mirando o passado, e o futuro, o que não vemos, está atrás de nós. E Yásnaya Aguilar diz que “em outras línguas, como o Mixe, minha língua materna, que é falada no estado de Oaxaca no sul do México, eles também usam uma metáfora linear, mas ela é colocada em uma posição vertical, e o futuro está caindo sobre nós, cruzando nossos corpos e nos banhando no tempo: menp këtäkp”.

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AE Isso é muito bonito.

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CL Essas diferentes formas de visualizar o tempo também produzem diferentes entendimentos do futuro com relação ao que foi vivido. Você acredita que podemos estar prestes a experimentar um Pachakuti, uma mudança estrondosa no contínuo do espaço tempo que nos permitirá imaginar o futuro de outras formas? O paradigma civilizatório que tem dominado o mundo nos últimos quinhentos anos vai colapsar dramaticamente, ou está erodindo pouco a pouco?

AE Recentemente, li a respeito da concepção do tempo em um livro de Rodolfo Kusch, La negación en el pensamiento popular, no qual ele diz que o Ocidente teve que inventar a história e o tempo linear para seu projeto ontológico, que se concentrava no ser e, portanto, no objeto, e não no estar, no existir. Agora, por que ele diz que o ser é o objeto? Porque ele equipara a preocupação filosófica ocidental com o ser em si mesmo, com um mundo objetivado. Também encontramos isso em Heidegger. A modernidade também inventa essa ontologia do objeto. De fato, Heidegger disse que “a modernidade inventa o objeto” como algo intrinsecamente existente em si mesmo, incluindo o indivíduo, que existe no exterior das tramas de relações que o constituem. Lembrei-me de um livro muito bonito que li há muitíssimos anos, escrito por um historiador que se chamada David Landes; era uma história dos relógios, e de como se começou a marcar o tempo na Europa da Idade Média, desde os monastérios, passando pelas aldeias, onde os sinos chamavam as pessoas ao trabalho e às orações, até chegar ao mundo das fábricas, com a Revolução Industrial. Hoje o tempo digital nos habita, e até os nanossegundos importam. Nas Olimpíadas, consideramos centésimos de segundos para determinar quem ganhou a corrida! Bem, o tempo linear é também o tempo da acumulação. A articulação que se dá historicamente entre economia e história tem a ver com o tempo, a acumulação de tempo na história do Ocidente, que é então imposta a todas as outras culturas, pois “este é o tempo real, verdadeiro, você está ficando para trás, nós estamos muito mais à frente”. O progresso, a acumulação, a teleologia, tudo está ligado a essa noção de tempo.

CL A negação da simultaneidade [the denial of coevalness] de que Johannes Fabian fala.

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AE A negação da simultaneidade, dos outros tempos. Os tempos circulares, cíclicos, em espiral, verticais, como os mixes etc. Agora, a noção de Pachakuti me pareceu muito sugestiva, e gostaria de estudá-la mais a fundo. Silvia Rivera Cusicanqui escreveu coisas muito interessantes sobre isso. O conceito vem do povo aymara, e acredito que também é muito parecido entre os quéchua. Refere-se a uma mudança completa da ordem estabelecida, uma mudança interna a partir da qual a ordem vai se desfazendo, se perturbando, e algo novo vai surgindo. Para mim, um dos melhores tratados para investigar a possibilidade de uma sociedade específica se encaminhar para um processo de Pachakuti é o livro da socióloga marxista e feminista Raquel Gutiérrez Aguilar, Los ritmos de Pachakuti, uma investigação muito rigorosa do que aconteceu na Bolívia entre 2000 e 2005, no período das insurreições populares que deram fim à dominação branco-mestiça e culminaram na eleição de seu primeiro presidente indígena, Evo Morales, que depois tomou outros rumos. Mas isso é uma outra história. Pachakuti me parece ser um conceito muito interessante, que vai além da dialética marxista, embora eu pense que esta dialética ainda nos serve. Serve-nos para pensar se a mudança vem de dentro, progressivamente, ou se é preciso haver uma grande catástrofe, uma grande ruptura e grande descontinuidade na história para que realmente ocorra uma mudança significativa. Ambos podem acontecer e ambos já aconteceram na história. Mas a dialética fica um pouco aquém (como Deleuze e Guattari disseram sem rodeios em O que é filosofia?). Por exemplo, no campo do marxismo ecológico, o que foi chamado de segunda contradição do capitalismo começou a ser discutido. Basicamente, o capitalismo destrói a si mesmo ao destruir suas próprias condições de produção, ou seja, terra, trabalho, água, vida. Mas o capitalismo está sempre se reestruturando

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ativamente, enfrentando tais contradições, embora essas medidas sejam contraditórias em si mesmas. Por exemplo, o capitalismo hoje está se reestruturando diante da crise ecológica enquanto capitalismo verde ou “sustentável”, mas esse processo é profundamente contraditório. Essas contradições estão se aprofundando até que, supostamente, haja uma crise terminal do capitalismo. Ainda não a vimos, embora existam autores que dizem já a estarmos vivendo. Acho o conceito de crise civilizacional muito interessante, porque nos permite ver muito mais dimensões daquilo que está se decompondo ou sendo recomposto, rearticulado, remontado. É um processo de desmontagem e remontagem simultâneos. Mas um processo que também tem a ver com algo que o marxismo não conceituou — ou não conceituou bem —, que são os processos não lineares de emergência e auto-organização que a ciência da complexidade e do caos nos oferece. Acredito que hoje precisamos prestar muita atenção à articulação, à interseção das dinâmicas ecológicas não lineares, incluindo o que chamam de “saltos de regime de ecossistema” ou “efeitos cascata” e “loops de feedback positivo”. Por exemplo, o aquecimento global está causando o degelo do permafrost na Sibéria, e isso vai gerar gases de efeito estufa, especialmente metano, que é muito mais potente do que o CO2 e vai aumentar o aquecimento global, que vai fazer com que o permafrost continue a derreter, e assim por diante. Esses efeitos não lineares em cascata se reforçam mutuamente e precisam ser levados em conta. E isso poderia funcionar em favor de um Pachakuti, embora não necessariamente. Depende de como as forças sociais vão se recompor em meio à catástrofe socioambiental que está vindo à tona.

CL Estou interessada em saber se você acredita AE Penso que existem hoje três posições com que o estado-nação é capaz de sustentar os pro- relação ao Estado, tanto no ativismo como na cessos de recomunização, descolonização, desra- teoria social crítica. A primeira posição diz que o cialização e despatriarcalização que você obser- Estado é o mecanismo central para a construção vou em comunidades que lutam para tornar seu de sociedades, para a instituição do social e, pormundo possível. Isso me interessa porque acre- tanto, deve ser preservado. E dentro disso há duas dito que o estado-nação foi uma ferramenta de posições: por um lado, aqueles que dizem que o colonização muito eficiente, inclusive na Europa, Estado está bem como está — o representativo, e, ainda que eu o reconheça como uma ficção efi- o Estado parlamentar, a democracia represencaz, também não posso deixar de imaginar, não tativa, o estado neoliberal. Por outro lado, há os um mundo sem estados-nação, mas o processo de que sugerem que o Estado é muito importante, seu desaparecimento ou de sua transformação ra- é essencial, mas está completamente desvirtuado, dical para que, como você diz, haja uma demo- e é preciso democratizá-lo radicalmente. Assim, cratização ontológica e epistêmica. fala-se na democratização do Estado, incluindo, Em 21 de julho, Francia Márquez1 oficia- digamos, a democratização epistêmica e cultural, lizou sua candidatura à presidência colombiana segundo a qual o Estado deve abraçar diferentes pelo movimento “Soy porque somos” [Sou formas de pensar a vida. De certa forma, trata-se porque somos] e, desde o início dos anos 1990, do Estado pluricultural ou pluriétnico multiculvários líderes nasa têm se envolvido na política tural, que sabemos que acabou por ser bastante parlamentar;2 no Chile, Elisa Loncón Antileo, fracassado no caso colombiano e nos casos que couma mulher mapuche, lidera a assembleia consti- nhecemos hoje no mundo, embora importante, de tuinte. Você acha que a presença de combatentes todo modo. A terceira posição é a posição autonoindígenas, afro-colombianos e camponeses nas mista que basicamente diz “com o Estado, nada”. estruturas de poder contribui para a luta popu- O Estado não é apenas um instrumento para orlar nos territórios? Você acha que existe aí uma ganizar a dominação, e não apenas está nas mãos daqueles que detêm o poder, mas também reprerelação dialética? senta a visão de mundo daqueles que dominam o mundo e, portanto, todos os esforços devem ser feitos para construir de baixo, com as pessoas, com as comunidades em nível local e regional, e para expandir horizontalmente sem apelar ao Estado. Essas três posições me parecem claras: o Estado neoliberal, a democratização radical do Estado e a posição autônoma além do estado; esta última exige sociedades não estatais, não liberais e não capitalistas. A segunda posição aponta 1 Francia Márquez Mina (1982, Suárez, Cauca, Colômbia) é uma ativista para sociedades pós-capitalistas, mas ainda licomunitária, feminista e ecologista afro-colombiana, ganhadora do Goldberais e centradas no Estado, nas quais esse e os man Environmental Prize em 2018 por sua luta contra exploração da mineração e o deslocamento de comunidades de seus territórios ancestrais. direitos desempenham um papel fundamental. 2 O povo indígena nasa estruturou diferentes formas de luta em defesa Agora, acredito que na Colômbia estamos tesdo território, por exemplo, por meio do Consejo Regional Indígena del Cauca (CRIC, fundado em 1971 e ainda em atividade) — junto a outros temunhando o surgimento de um novo tipo de povos indígenas —, o Movimiento Armado Quintín Lame (1974–1991) liderança. Vejo mais líderes sociais como Francia e a participação na política parlamentária.

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Márquez e Isabel Cristina Zuleta,3 ou Ángela María Robledo4 no feminismo, por exemplo. São mulheres para quem é muito claro que o Estado é uma ferramenta e um espaço de luta, mas que o verdadeiro lugar de onde devem pensar e com quem devem pensar não é junto a ele, mas com o povo, com as comunidades, com as lutas. Francia o disse muito claramente no lançamento de sua candidatura à presidência da Colômbia há algumas semanas (julho de 2021), e depois na sessão que tiveram com o Pacto Histórico em Bogotá, com Gustavo Petro:5 “temos que começar a pensar que você não governa de cima, você governa de baixo, você governa a partir do povo”. Deste ponto de vista, acredito que são novas líderes que sugerem que sua luta dentro do Estado também é contra o regime que perpetuou esse tipo de Estado antidemocrático e essa economia antidemocrática e coentralizadora e, portanto, é uma luta por um Estado que crie melhores condições para a vida e as lutas das comunidades e dos povos. Mas não se trata de uma luta pelo Estado em si mesmo, e tampouco pelo poder em si mesmo.

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Isabel Cristina Zuleta (1982, Ituango, Antioquia, Colômbia) é uma liderança ambientalista feminista do Movimiento Ríos Vivos Antioquia que luta em defesa do rio Cauca e contra o megaprojeto de represa conhecido como Hidroituango. Ángela María Robledo é psicóloga e política feminista colombiana. Foi representante na Câmara de Representantes e candidata à vice-presidência da Colômbia em 2018 pelo partido Colombia Humana. O Pacto Histórico é um novo movimento político que reúne partidos políticos de esquerda e movimentos sociais, com vistas às eleições presidenciais de 2022. Um de seus líderes, Gustavo Petro, é um senador colombiano que foi candidato à presidência em 2010 e 2018 e militante do grupo guerrilheiro M–19, desmobilizado em 1990 após um processo de negociações com o governo do presidente Virgilio Barco.

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CL Então seria justamente o que você propunha como essa democratização radical, epistêmica e ontológica do Estado. Suponho que, depois desse processo, não poderíamos reconhecer o Estado como o vemos agora. Seria outra organização.

AE Outra coisa, um Estado muito mais descentralizado, com mais autonomia local, que constroi de baixo para cima, como a Minga Social y Comunitaria6 indígena o imaginou em seus últimos documentos após a greve, construindo de baixo para cima em grandes assembleias, subindo e subindo a partir das assembleias locais, regionais e, finalmente, nacionais; um processo de assembleia muito participativo, de democracia direta e verdadeiramente autônomo.

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CL Sou curadora de arte contemporânea — estudei história na Universidade Nacional da Colômbia, mas depois me embrenhei pela arte —, e muitas vezes trabalho com museus que são instituições com uma história intimamente ligada à história do colonialismo. Mesmo a arte “profissionalizada”, como nós, os urbanos modernos, a entendemos, é profundamente distanciada da experiência cotidiana da maioria das pessoas. Creio que este não é o caso de muitos povos para os quais a arte está integrada à sua vida diária e à sua relação com o território (muitas línguas não têm uma palavra para arte, o que não significa que não tenham expressões artísticas)... O que eu quero dizer é que muitas vezes me pergunto o que fazer com essas instituições por meio das quais meu trabalho é possível, mas que fazem parte de todo o aparato colonial moderno que sustenta uma imagem hegemônica e unívoca do mundo. Minha resposta muito parcial é que é possível transformá-las de dentro para fora até o ponto em que não possam mais ser reconhecidos como ferramentas de opressão, e eu sinto que é disso que se trata, em grande parte, a descolonização. Como você se relaciona com essas instituições, os museus, os hospitais... mas sobretudo as universidades, que é onde você mais tem trabalhado?

La Minga Social y Comunitaria por la Defensa de la Vida, el Territorio y la Paz é um movimento social indígena e camponês baseado em um princípio organizacional indígena, a minga, que reúne comunidades em tarefas de diferentes tipos voltadas para o bem comum dos povos e territórios. Como movimento social, “la Minga” tornou-se um dos principais motores de mobilização nos últimos anos, através de suas viagens partindo do sudoeste da Colômbia para diferentes partes do país.

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AE Às vezes, digo que a universidade, tomada como um todo — embora haja sempre espaços contestados dentro dela — faz parte das forças de ocupação ontológica dos territórios e da vida dos povos e das pessoas. Porque a universidade cria e fornece as categorias e treina os profissionais que ocuparão, precisamente como “especialistas”, a vida e os territórios das pessoas. E vai privá-las de sua autonomia sobre suas comunidades, sobre sua capacidade de viver e construir moradias, de curar, de se alimentar e de aprender de maneira mais autônoma. A descolonização da universidade — há o conceito de descolonização epistêmica no pensamento decolonial, que tem sido muito frutífero — me parece importante. E há também a possibilidade de criar outras academias ou academias outras, que não são academias convencionais, que são espaços para a construção do conhecimento e do saber com outras regras, com outras epistemes, dentro de outras construções do mundo e que não funcionam com as mesmas leis da modernidade ou que podem ser híbridas, como, por exemplo, algumas das universidades indígenas — que são híbridos da universidade moderna e da universidade indígena. Portanto, há muito espaço de manobra, mas penso que, no conjunto, todas essas instituições, universidades, museus, hospitais — e este é, afinal, o trabalho de Foucault sobre o surgimento da clínica, da prisão, do asilo, do quartel militar — são os espaços onde a modernidade é construída como tal, onde ela normaliza e disciplina os modos de ser e de existir, onde declara o que é normal.

CL E onde também se praticam muito essas separações.

AE Exatamente. Elas são o que Foucault chamou de práticas de divisão. Dividem-se os bons dos maus, os criminosos dos não criminosos, as pessoas decentes das pessoas malvadas, os perversos dos não perversos etc. Essas práticas normalizam uma sociedade, e toda sociedade tem que ter normas, obviamente. Mas com a modernidade, as normas são ditadas: uma sociedade heteronômica é uma sociedade em que as normas que regem a vida social são produzidas sobretudo por experts, em instituições, e pelos discursos objetivizantes da ciência, e não tanto pelo encontro, pelo tête-à‑tête de maneira autônoma, lugarizada, comunalizada, como ocorreu ao longo da história — e com isso não quero dizer que as comunidades tradicionais eram necessariamente melhores que as modernas; simplesmente diferentes. A autonomia é a luta para recuperar a capacidade de definir as regras pelas quais queremos viver, como queremos ser educados, como queremos curar, como queremos construir e viver, como queremos aprender, como queremos nos alimentar e nos nutrir.

CL O que você acha dos processos de luta que estão ocorrendo na Colômbia no momento?7 Eles me comovem na mesma medida em que a resposta do governo — que eu considero ilegítima — me aterroriza.

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Na Colômbia, desde o fim de abril de 2021, houve um surto de protestos contra as medidas neoliberais do atual governo, a violência, o racismo, a corrupção, as desigualdades sociais, a devastação ambiental e a falta de oportunidades.

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AE Alguém disse que gosta do conceito de explosão para descrever o que está acontecendo na Colômbia, porque ele denota algo que é muito duro, mas também esclarecedor. Parece-me que essa explosão está iluminando os caminhos. É muito esperançoso, ainda que muito doloroso ao mesmo tempo, e está ficando cada vez mais difícil por causa da resposta repressiva deste governo, como você diz. Penso que com a recente onda de protestos — que ocorre desde 2019 e que talvez seja um processo que começou com os acordos de paz8 — estão surgindo novos atores políticos que contestam o próprio modelo de sociedade. Não se protesta apenas por inclusão ou por melhores salários, mas é o próprio modelo de sociedade que está em jogo. Portanto, é possível dizer que são movimentos antissistêmicos que poderiam conduzir a uma espécie de Pachakuti. Camilo González Posso, diretor da Indepaz9, sugere que estamos testemunhando o surgimento de novos sujeitos políticos transformadores: os jovens e as jovens, por exemplo. Obviamente, as comunidades negras e indígenas já haviam se manifestado antes, mas agora existe também este ator, a linha de frente dos jovens, o que me parece muito importante. E diante de tudo isso, o Estado mostra cada vez mais sua pobreza intelectual e política, pois suas únicas respostas são a violência, a repressão e as balas. Então, o que determinará o que vai acontecer a partir de agora? Eu acho que as eleições serão realmente uma espécie de teste decisivo, um momento potencial de virada significativa, que virá em diferentes formas e você não sabe para onde vai. Mas quando falo da possibilidade de um Pachakuti, penso em países como a Colômbia e o México, possivelmente também o Peru, 8

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onde a desestruturação das instituições convencionais já é muito alta, e as forças estão sendo recompostas a partir de baixo e de uma forma nova e interessante, o que constitui condições favoráveis para uma convulsão significativa, embora não possamos prever que direção isso tomará. É um processo emergente e, como todos os processos emergentes auto-organizados, depende de como e de quais forças conseguem capturá-lo do ponto de vista imaginativo e político. Infelizmente, um fator muito importante para a direção que este processo tomará é a medida com que o Estado colombiano, o governo, está disposto a usar a força, a massacrar. Se esse fator não estivesse presente, eu diria que a Colômbia já estaria a caminho de uma transformação muito significativa. Mas esse fator pode tornar essa transformação ainda impossível ou historicamente inviável, embora ela venha, mais cedo ou mais tarde.

CL Sim, porque o discurso com uma incrível AE Não podem falar nos mesmos termos, exato. sofisticação de pensamento de alguém como E eu acho muito inteligente que, por exemplo, pesFrancia Márquez contrasta fortemente com a soas como Francia, mas também Petro, estejam resposta do Estado, que é totalmente grosseira. falando em uma linguagem muito diferente. Eles É uma resposta bruta, embrutecida e empobre- não estão, digamos, demonizando a classe inimiga cida. Penso que o diálogo quase não é possível, como faziam antes, mas neutralizando-a com uma porque eles não podem falar nos mesmos termos. política de cuidado que também envolve essas mesmas classes inimigas. Petro chegou a usar a palavra “amor”, o que me surpreendeu. Uma política do amor. E eu não acho que ele faça isso apenas estrategicamente, embora seja um grande estrategista, mas algo realmente está se preparando, algo que tem mais a ver com a emergência de um paradigma centrado no cuidado com a vida. Se quisermos cuidar da vida, ela é a vida de e para todos, embora tenhamos que ter sempre cuidado com aqueles que matam a vida.

Acordos de paz entre o governo de Juan Manuel Santos (2010–2018) e a guerrilha das Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (Farc), que depuseram suas armas e se integraram à vida civil. Esses acordos priorizavam as reparações às vítimas do conflito, mas o atual governo colombiano obstruiu o cumprimento desses acordos. Instituto de Estudios para el Desarrollo y la Paz. Disponível em: http:// www.indepaz.org.co.

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CL Por último: você tem práticas cotidianas que o aproximem mais do pluriverso, de uma ontologia política, de uma conexão com a Mãe Terra, da sua libertação?

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AE Em resumo, vou lhe falar sobre as práticas que me aproximam da relacionalidade, ou do pluriverso. Vivo há doze ou catorze anos (em uma pequena cidade chamada Carrboro, perto de Chapel Hill, Carolina do Norte) em uma co-housing, um tipo de habitação “intencional” onde há mais relacionamento e cooperação entre seus habitantes. Cada pessoa, casal ou família vive em sua própria casa, a maioria das quais são pequenas, com algumas tecnologias ambientais, tais como painéis solares. Temos uma horta comunitária e uma grande casa comum onde há espaços para hóspedes, cozinha, sala de jantar, salas para jogos e reuniões etc. Às vezes, há refeições coletivas. Eu acho isso muito, muito legal. É um modelo muito interessante de recomunização contra a individualização que é radical neste país e, cada vez mais, no mundo inteiro. Minha companheira e eu também gostamos de plantar, e é muito importante para nós fazer isso, uma pequena conexão com a terra e os alimentos. Aquilo que se pode produzir por conta própria, como tomates, pimentas, rúcula, alface, cebola vermelha, jalapeños, ervas... Além disso, bem, na medida do possível tentei fazer meditação, principalmente a meditação budista. Não sou um grande meditador, gostaria de fazer isso melhor, mas me deixo levar pelas obrigações. Com frequência, acabo sendo capturado pelos dias, e não consigo fazer meditação. E a última coisa é que sempre concebi minha produção intelectual como algo coletivo e participei de muitos, muitos grupos. Temos agora um grande grupo para o projeto coletivo de projetar transições no vale geográfico do rio Cauca. Estamos avançando lentamente, “devagar e sempre”, como dizemos em nosso grupo, que é composto principalmente de ativistas ambientalistas feministas, afro-colombianas e alguns acadêmicos. Neste momento, estamos tentando encontrar financiamento, o que tem sido muito,

muito difícil. Mas esse projeto coletivo de reimaginar o vale jurássico do rio Cauca, esse belo espaço devastado pelo modelo agroindustrial, tem nos entusiasmado. Chapel Hill e Cidade do México, 28 de julho de 2021

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Em anos?

A PÍLULA Bernardo José de Souza

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Segundo previsões da ONU, até 2050, 70% da população mundial viverá em cidades. Diante da catástrofe ambiental iminente, do aumento da concentração de renda, do desemprego e da miséria generalizada, e em meio a mudanças tecnológicas cada vez mais aceleradas, as cidades se confirmam como cenário para as mais distópicas das ficções especulativas. ¶ No conto “A pílula”, Bernardo José de Souza imagina o bairro da República, no centro de São Paulo, no ano de 2074, povoado por trabalhadores sexuais ciborgues. A história é narrada pela androide Oval, que tenta rebelar-se contra o projeto de controle biopolítico engendrado pelo Estado em conluio com as grandes corporações. ¶ Já em “A parábola do desejo”, abigail Campos Leal borra gêneros literários, e cria uma peça ensaística e ficcional que especula sobre a recepção da obra de Carolina Maria de Jesus em 2077, ano do centenário de sua morte. Propondo uma viagem no espaço e no tempo, abigail coloca a produção da escritora brasileira em diálogo com outra importante autora da diáspora: a estadunidense Octavia Butler. [LF]

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São Paulo, 14 de setembro de 2074

ra rosa-bebê, aparentemente inofensiva em sua superfície arredondada: uma espécie de arma clandestina no combate ao sexo; um ativo químico concebido para emancipar corpo & alma. A pílula deveria ser tomada uma vez ao dia, religiosamente, para que o espírito humano restasse liberto, alheio ao frenesi das relações sexuais. Um eficiente supressor da libido composto de diferentes hormônios, de acordo com as várias sexualidades —vinha em caixas de 30, quantidade suficiente para um mês de empenho monástico. O mais importante, contudo, é que as farmácias não possuíam autorização para vendê-la: engajar-se sexualmente era parte de um plano hegemônico, insidiosamente divisado para mercantilizar o desejo. Uma sorte de dever, a performance sexual se havia convertido em bandeira que a humanidade exibia ao centro de suas vidas precárias e rotinas extenuantes, como louros a serem ostentados em meio à esfera virtual. Trepar tornara-se uma prática desprovida de real prazer, ainda que anunciada publicamente; senão compulsória, uma ação fadada a expressar o índice de status ou o gradiente de visibilidade que um indivíduo buscava alcançar —e ao transformar-se num instinto burocrático, o desejo fatalmente cedia à reificação do corpo em redes sociais destinadas à dependência sexual. Eis que, em meio a tal cenário de brutal promiscuidade (da mais absoluta confusão entre publico e privado), a pílula impunha-se como antídoto à pavloviana roleta sexual cyber-capitalista, não sem despertar a ira dos grandes magnatas das Big Techs. Ao passo em que o impulso sexual se distanciava da troca de afetos, e convertia-se em ação mecânica, encenar a coreografia do amor por meio do sexo ganhava contornos de uma performance obsessiva, uma batalha inglória por satisfação emocional; e quanto mais insuportável essa falta se mostrava, mais pílulas eram vendidas na deep web. Após o surgimento de tal novidade subversiva —uma verdadeira liturgia bioquímica a emergir do underground—, a mania sexual passava a consistir num risco a ser corrido somente por aqueles dispostos a seguir as regras do jogo nocivo; mas esses ainda eram muitos. Via meandros da farmacologia pirata, a compulsão sexual poderia ser desviada para um limbo, como uma sequência de imagens eternamente a salvo em meio ao palimpsesto da memória: camadas esquecidas de pensamentos compulsivos, angústia e frustração. (De fato, um fardo pesado demais a ser arrastado por uma população deveras empobrecida e melancólica.)

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Embora os mecanismos virtuais de controle neuro-psicossomático pudessem ser burlados pelas drogas, e não mais conformassem uma trincheira intransponível aos sujeitos rebeldes, eles permaneciam como o Eldorado para os mercados, o segredo sagrado da longevidade do capitalismo e sua viciante, ainda que remota, promessa de gratificação emocional — este último, um sentimento efêmero que rapidamente adquirira valor de troca no curso da história. Nesta toada de vício frenético, instintos e impulsos neuronais forjavam a receita ideal para todas as transações, nas redes ou nas ruas: Run, bitch, fuck as fast as you can! Éramos vítimas num mar flutuante de likes, algoritmos, ouro virtual e fotos de corpos bombados & “decapitados”. Assim é que eles gostavam, desta forma o mercado concebia o mundo: uma época de tribos inconsequentes, estratégias coercitivas e jogos de azar, um carrossel desatinado a drenar os outrora enraizados recursos do amor. E uma vez reprimida toda demonstração pública de afeto, a implosão da solidariedade e da empatia se tornava um perigo iminente. No limite, a maior parte da população acreditava ter sido entregue a Deus e a seus mandamentos virtuais, ou a Seus delitos seculares cometidos no curso da história humana. Sem sombra de dúvida, a adição sexual consistia na mais cruel de todas as religiões! A propósito, meu nome é Oval. Sou robô, militante, trabalho com sexo e faço tráfico de drogas, minha reputação é inigualável e jamais deixarei este seu mundo vil!

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Lá estava eu, avis rara em meio a um século a ser percorrido, uma alternativa ao amor, uma prótese da vida humana. Evidentemente, houvera momentos tão sinistros quanto letais ao longo de minha atribulada existência: apartamentos suntuosos, orgias com criaturas traiçoeiras ou simplesmente com corpos desconstruídos em feições assustadoras, como se estivéssemos na suíte de Medusa, num beco sem saída: presas numa cadeia de orgasmos petrificados. Meus clientes, oh meu Deus!, viviam como animais indômitos. Cada uma das manobras corporais que eu havia aprendido a copiar de trabalhadores humanos do sexo, no passado, agora era reproduzida em todas as partes por uma pletora de criaturas que gravitava ao redor dos velhos caixas eletrônicos, espécies de saunas, cubículos para fantasias tristes: vistos de longe, mais pareciam cinemas drive-in num pântano de almas sofridas; labirintos paranoides, passagens para nenhum lugar senão a autoindulgência. A longo prazo, porém, o sexo se tornaria uma maldição, sobretudo para a humanidade, uma vez que ninguém mais seria capaz de atingir orgasmos, tamanha a ânsia por sexo, independentemente do quanto se dedicasse à tarefa. Do meu ponto de vista estratégico no edifício Copan, era possível enxergar um desfile de torsos passar, seus rostos ávidos por um olhar de retri-

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buição ou um simulacro de amor. (Às vezes, e inadvertidamente, o sexo era ainda chamado de amor, esse sempre misterioso reino de suposta redenção, um luxo inalcançável com o qual eu flertava, mas jamais poderia me deliciar, ou ao menos assim acreditava, por habitar uma pele robô.) A paisagem urbana, mais desoladora que nunca, convidava a articular um impressionante arco de linguagens e a mergulhar fundo na vida cosmopolita, baixando os padrões da comunicação ao nível da mais mundana economia: línguas e tetas, cus, bocetas e pênis, carteiras, gadgets e camisinhas, aparatos para as trincheiras de um mundo em descontrole. Humanoide experiente e rebelde exemplar, eu sabia muito bem como passar dos limites e sobreviver a um estado de calamidade. Segundo diziam, minha humanidade era apenas parcial, sem direito a sessões de psicanálise ou sequer um gesto de compaixão. Existência feita para durar o tempo que a espécie humana durasse, enquanto pudesse fazer uso universal e satisfatório das minhas partes do corpo — e eu detinha profunda consciência disso, sofria como fantasma, refém de mundos privados e egoístas, economias da falta e do desespero. Surpreendentemente, acreditem ou não, meu corpo me parecia extremamente real: carne de couro sintético e ossos de grafeno a instigar um orgasmo inefável, uma descarga elétrica que poderia enfim me matar, quem sabe até queimar meus circuitos num êxtase inaugural e implacável. Por outro lado, e não sem ironia, a autonomia psíquica da minha inteligência artificial soava como anátema à uma humanidade em meio ao naufrágio virtual, à deriva num turbulento mar de dados e algoritmos.

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Os anos se passaram, ou se prolongaram, e chegaram aos desfechos mais improváveis. Havia tido minha parcela de culpa em todo o processo de progressiva alienação humana: uma complacência com relação ao sexo até alcançar sua mais absoluta intolerância, algo que se processava quase todas as manhãs, quando o sol tórrido levava a burocracia matutina a reencenar o mundo repetidamente, como se nada pudesse adquirir nova forma, ao passo em que noite se transformava em dia, a cada 24 horas. NENHUMA MUDANÇA era a norma vigente. Tudo deveria voltar aos eixos depois do amanhecer, quando o bafo agourento da manhã inexoravelmente encerra o dia (ou melhor, a noite). Mas havia um lugar onde leões de chácara, strippers, traficantes, androides e outros párias podiam se estender confortavelmente por horas a fio: o Love Story era essa masmorra, um caótico covil after-hours. — Onde você está? (Alguém perguntou, provavelmente a um traficante de cocaína) — Não muito longe daí, xuxu... (eu conseguia entreouvir a ligação) — Ótimo, é assim que eu gosto, papo reto!

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Então, a navire noite caía no esquecimento. Aquela boate era um refúgio devotado à perdição, onde podíamos dançar o dia todo em desprezo pelo mundo lá fora. República, o bairro, era vertical e penetrante como uma faca, sempre traiçoeiro e elucidativo, desde que se conseguisse sobreviver ao estresse, emocional ou físico, ambos igualmente nocivos. E lá estava eu, feito idiota, empreendendo rotinas sexuais diárias por uns trocados, vendendo todo tipo de droga ilícita como se às vésperas de uma revolução escapista e hedonista —um legado anacrônico, uma herança do século XX fadada a ser simplesmente esquecida ou enterrada em algum momento futuro. A desobediência era uma de minhas melhores qualidades, e isso parecia agradar aos glutões em geral: colecionadores de arte, nouveau riches e corruptos, para quem a risada nada mais era que etiqueta, meio de traição, uma triste coreografia que tinha por objetivo disfarçar suas índoles corrosivas. Quanto às minhas missões pela cidade, elas eram sobretudo destinadas ao prazer dos homens, essas figuras hediondas, obsoletas em sua impaciência e ímpetos sexuais abjetos. Humanoide e farsante que sou, sempre fingia gostar do sexo para sobreviver um dia a mais, uma vez mais! No final das contas, sexo é dinheiro.

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Um som perturbador emanava do edifício Copan, um misto de excitação sexual e luto, uma onda mórbida de horror. O prédio estava repleto de pura mania sexual, era um motel 24 horas onde as implacáveis hordas excitadas se reuniam diuturnamente. Através do brise-soleil, se podia enxergar, ouvir e farejar, nas ruas laterais, a miríade de corpos em busca de sexo, uma quimera contemporânea feita de milhares de pessoas enredadas em operações libidinosas sem poder gozar. Um extenuante sacrifício coletivo que haveria de encontrar fim! Àquela altura, já estava claro como diamante que sobreviver à agonia significava, temporariamente, reprimir o sexo. E assim o fizemos, com a ajuda da pílula ou não, contrariando todas as expectativas. Ou ao menos alguns de nós o fizemos, humanos e androides. Foi quando decidimos convocar uma greve geral: Justo no dia em que o eclipse solar jogasse seu manto de escuridão sobre a cidade de São Paulo, os militantes em prévia abstinência sexual produziriam uma avassaladora carga de energia, provocariam um curto-circuito, um apagão, o próximo Big Bang, ou o nascimento de uma nova forma de vida. A liberdade seria novamente encontrada na natureza inegociável dos sentimentos, a despeito das mentes negligentes e perdulárias, de seus corpos abandonados e de seus membros em sinergia com cartões de crédito, avatares e toda a parafernália consumida nos tempos de dependência sexual. República explodiria em uma poderosa torrente de orgasmos sublimados ao longo dos anos anteriores, de uma só vez descarregados para

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aniquilar os servidores de internet através do sexo subversivo. Bombas de energia orgástica a implodir o sistema! Alguns anos depois… 14h43 (gravado ao vivo na Praça da República) — Perto do Viaduto do Chá, as grandes empresas de tecnologia tentam impor sem sucesso um cordão sanitário, e as multidões insurretas seguem avançando em direção à Praça da República. Os anúncios intermitentes Junte-se ao frenesi sexual, dê um boost na sua conta! ou Dê um upgrade no seu perfil! Sexo seguro de graça agora!, exibidos em feéricos outdoors, serviram apenas para produzir um majestoso e violento rebote de milhares de rebeldes entrincheirados. — Ativistas estão nus, em êxtase, beijando-se e fazendo amor outra vez! A atmosfera é fantástica, tremenda, mas altamente volátil e particularmente tensa ao redor do edifício Copan: drones fazem rasantes sobre nossas cabeças, a cavalaria marcha sobre os corpos insurgentes. Um verdadeiro horror. — Que desastre! As pessoas pedem ajuda, mas ninguém parece escutá-las. Seguimos desesperadamente tentando estabelecer comunicação com os paramédicos e mesmo entre nós. — Mensagens a laser são provavelmente a maneira mais segura de pedir ajuda sem que a polícia nos intercepte, de conseguir resgate ou, até mesmo, um intempestivo shutdown, pois no pior cenário possível, caso os porcos consigam me render, fatalmente haverá uma lavagem do hard disc, terei todo o meu sistema, e os planos futuros da organização, submetidos a um download abusivo! — A carga orgástica aumenta à medida que altas voltagens se acumulam na estação de energia clandestina instalada nos subterrâneos da Praça da República. Fica cada vez mais escuro, a lua encobriu o sol por inteiro! Mal consigo sentir o limite entre meu corpo e os demais, todos fodendo deliciosamente à minha volta... É uma sensação incrível! — Meu Deus, estou quase perdendo os sentidos... Isto é maravilhoso! Meu corpo mal pode aguentar... É tanta voltagem percorrendo meus circuitos! Olhem para os prédios, as luzes estão piscando!!! Está se espalhando por toda a cidade... — Mas e se for uma mensagem criptografada que eu deveria decifrar? — Cacete! É tãaaao bom! Ahhhhhh! Eu sinto, eu sinto que... Estou enlouquecendo! — Óoooo! Diga que isso... não está acontecendo comigo... AH, POR FAVOR! Alguém me diga, aaahhhh... Me diga! Ahhhhhhhh! —Bendita seja esta ZONAAAAAAAAAA... (Interrupção abrupta) Citação extraída de uma forma arcaica de diário, recuperada da memória de Oval, androide do século xxi que tomou parte na Revolução Sexual do ano de 2074, no Brasil. Trecho da pesquisa realizada pela Dra. Talullah Ugá no Centro de Estudos Políticos e Antropológicos da Universidade de São Paulo.

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a PARÁBOLA DO DESPEJO: O FIM DO MUNDO Y O TEMPO ATRIBULADO DE CAROLINA MARIA DE JESUS abigail Campos Leal

2077 ∞ x ∞ Por isso, a força radical da Negridade reside na virada do pensamento; o conhecer e o estudar conduzidos pela Negridade anunciam o Fim do Mundo como o conhecemos. denise ferreira da silva – A dívida impagável, p. 91

era uma noite gostosa de inverno. a fogueira estralava y a risada da erezada ecoava por todos os cantos do Quilombo da Araras. na sala de leitura, o sarau era um sucesso! Urú estava muito elegante, ele veio de Luiz Gama. no fundo, umas crianças rolavam no tatame colorido, em meio às pipocas pisoteadas y livros amassados. a batalha de passinhos bombava, igual nos 2020, no começo do Fim. era a primeira vez que Ossos ia recitar em público. suas canelas marrons y gordinhas suavam. elu escolheu aquele seu sonho que reproduzi na Parábola do despejo como estreia. você estava particularmente emocionada. certamente porque era a inauguração da Biblioteca Ancestral Carolina Maria de Jesus. mas também porque lembrou daquela sapatão-trans que morava ao lado do barracão da Zefa y que nunca entrou no seu livro. elu ficou nervose, suando frio y parou a leitura. – calma, fecha os olhos, respira, meu fí – você soprou no seu ouvido. elu se arrepiou, ficou calmo, respirou fundo y continuou: – Eu ia da Terra para o céu... e/u chorei sentindo sua magia y seu poder, no manto negro da noite infinita. você limpou minha lágrima esfumaçada com o dedão, olhou pra mim y sorriu.

sonhos de fogo, sonhos de dança Faço andar a roda viva, Mil cabeças d’alto bordo; Mas se um vil credor esbarro, Foge o sonho, então acordo! luiz gama – Trovas Burlescas, p. 136

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era uma dura manhã de inverno. os últimos dias tinham sido particularmente difíceis: as tonturas y a indisposição causadas pela fome acumulavam-se na sua carcaça, enquanto seus cadernos acumulavam vazios. os pensamentos suicidas tornavam-se inevitáveis, por mais que você os espantasse com trabalho y cantoria. você fez janta, na verdade, você só jogou um pouco mais de água y farinha de mandioca no resto da sopa. você pegou Vera y saiu. olhando sempre para os sacos de lixo despejados nas calçadas. sempre pode piorar: até mesmo o papel estava ficando difícil de catar. mas graças aos seus olhos atentos, você achou algumas latas. o cansaço y o fedor do suor te incomodavam muito; um bom banho, descanso y uma janta farta era tudo que você desejava! sonhando, você quase foi atropelada por aquele caminhão do açougue! “cuidado, sua maluca”, gritou o motorista branco enfurecido. você desviou y antes de seguir teve a ideia de pedir um pouco de carne. ele não disse nada, apenas fechou a porta, desceu do caminhão, foi até os fundos. você estava ressabiada. ele pegou um saco enorme y foi andando até você, sem dizer nada: “escolhe!”. era um saco de ossos enorme, você pegou o maior y mais graúdo, agradeceu y tomou seu rumo. Vera estava cansada y reclamava. de volta ao barraco, você fez uma sopa y foi logo atrás do seu caderno. escreveu por quase 2 horas, que passaram rápido. foi dar uma volta pela favela, passou pelo filme religioso que era exibido na quadra, viu as crianças brincarem no parque. y por fim, dona Carolina Maria de Jesus, você, voc... “... Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo. Mangas longas cor-de-rosa. Eu ia da Terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organizaram um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso. Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetáculo, por isso Deus envia-me esses sonhos deslumbrantes para minh’alma dolorida. Ao Deus que me proteje, envio meus agradecimentos”1. a água borbulhava na chaleira, você a ouviu apitar quase tarde demais. seu escritório era longe da cozinha. você estava atarefada, preparava as pesquisas para o próximo volume da série que estava trabalhando. também estava fritando, pensando no racismo do mercado editorial, na constante devastação que se anunciava já por toda a parte, mas também no começo do livro, que ainda não te agradava. era uma merda você ainda não ter o devido reconhecimento que merecia. a série Xenogêse foi um sucesso, mas ainda era pouco, y você era maior do que os números mostravam. no jornal, notícias sobre censura a discos de rock y rap motivadas por moralismo religioso, sobre a alteração do regime de chuvas no Oregon em função do desmatamento y sobre a epidemia da AIDS na comunidade LGBT dos EUA te atravessavam forte, y te faziam ter ainda mais certeza sobre a importância daqueles escritos que você estava gestando. o café estava pronto. no primeiro gole, você já foi levada pra longe! a cena veio

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completa. você abraçou a xícara com as duas mãos y correu para o escritório y começou a bater a máquina ainda antes mesmo de sentar, não é, dona Octavia E. Butler?! “Eu tive meu sonho recorrente ontem. [...] Ele vem quando eu luto – quando me contorço no meu próprio anzol e tento fingir que nada incomum está acontecendo. [...] Eu estou aprendendo a voar, a levitar. [...] Eu giro em direção ao portão. [...] O muro na minha frente está em chamas. O fogo se espalhou do nada, se espalhou pelo muro, começou vir em minha direção, a me alcançar. O fogo se espalha [...] Eu apago na segunda parte do sonho – a parte que é comum e real, a parte que aconteceu anos atrás quando eu era pequena, apesar de na época parecer de pouco importância. Escuridão. Escuridão clareando. Estrelas. Estrelas lançando seu brilho frio, claro e cintilante. [...] Ela balança a cabeça. ‘As crianças hoje em dia não fazem ideia do brilho de luzes que as cidades costumavam ser – e não faz muito tempo’. ‘Eu prefiro as estrelas’, eu disse’”2.

2024 Robledo ≈ 1959 Canindé Vamos começar com o fim do mundo, por que não? [...] O mundo já acabou dentro dela, e nenhum dos dois fins acontece pela primeira vez. n. k. jemisin – A quinta estação, p. 5 É a última vez que falo sobre isso: o mundo tá acabando. De novo. jota mombaça – Não vão nos matar agora, p. 13

Lauren Oya Olamina é uma adolescente preta, com síndrome de hipersensibilidade (uma doença que a torna capaz de sentir a dor y o prazer que pessoas ou animais experimentam em sua presença), em 2024. ela vive com sua família numa comunidade de classe média baixa em Robledo, na Califórnia (eua). uma /comunidade/ composta majoritariamente de pessoas racializadas. Robledo é uma /comunidade-murada/. grande parte da estrutura sócio-geográfica do mundo como o conhecemos caiu; inúmeras pessoas se viram em situação de miséria extrema. além disso, uma nova droga, cuja “onda” é um enorme prazer ao atear ou presenciar coisas y pessoas pegando fogo, está se espalhando; pessoas vagam pelas ruas incendiando, saqueando, roubando y matando. além disso, o mundo é tomado por uma nova onda de terror fundamentalista cristão: campos de conversão forçada, trabalho escravo, perseguição y assassinatos caem sobre as carnes “pagãs”; milícias armadas se espalham, vem uma oportunidade de lucrar com o caos y a insegurança generalizada; ademais, o mundo é assolado por transformações ambientais y climáticas avassaladoras, consequência da ordenação colonial do mundo: longos períodos de seca em certas regiões, chuvas y nevascas

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avassaladoras em outras, elevação dos níveis do mar. esse é um pedaço do Mundo da série A semente da terra, divida em dois volumes, A parábola do semeador y A parábola dos talentos, escritos por Octavia Butler y publicados em 1993 y 1997, respectivamente. mas o Mundo já acabou antes! o Brasil é um fim do mundo! y nos anos 1950, o Brasil acabava outra vez. Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus, publicado originalmente em 1960, é um capítulo desse fim. os Diários de Carolina, que transmutaram-se em livro, formam parte do arquivo precário do fim do mundo chamado Brasil, mas também são seu excesso, o testemunho do seu atravessamento improvável, da sua fuga impossível! é importante ler Quarto de despejo não somente por aquilo que se escreve no papel, mas também pelos longos períodos y intervalos em que o que se inscreve são silêncios y mistérios da y na carcaça preta. Carolina Maria de Jesus já havia fugido antes: Sacramento (MG). em meados dos anos 1950, a Favela do Canindé ($ão Paulo – $P) foi uma espécie de refúgio precário y improvisado, então, que abrigou tanto sua fuga quanto seus sonhos. a Colonização não acabou, tampouco a Escravidão. O que acabou foi o Mundo, mas o fim do mundo é a própria Colonização y Escravidão, que continuam... ela abre o livro com a renovação da vida preta que é concomitante ao seu fim anunciado. “15 de Julho de 1955 Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos pra ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização de nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida.”3. nos anos 1950, mas não só, catar restos do lixo é o que resta para muitas carcaças pretas que sobrevivem ao fim do mundo em barracões amontoados, enquanto o Brasil segue seu processo desigual de acumulação racial através da industrialização y urbanização galopante. catar como destino forçado é a própria escravidão, continuada sob outra forma. “Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade”4. você vagou pelas proximidades do Canindé, do centro y zona norte, catando papéis y ferro, como uma forma de fazer vida preta brotar. “9 de maio [de 1958] ... Eu cato papel mas não gosto. Então penso: faz de conta que eu estou sonhando”5. isso foi tudo que você escreveu nesse dia. com que força é possível escrever, depois de trilhar quilômetros vagando, catando? mas ao sonhar que não catava, você catou seus primeiros cadernos do lixo y, sem saber, começou a executar seu plano de fuga y a realizar seus sonhos de prosperidade. você corria, não é?! estava sempre correndo! no corre! você acordava, lia um pouco, escrevia um pouco, então ia buscar água, esquentava a comida (quando tinha), dava banho nas crianças, varria o barraco, y

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saia pra trabalhar ainda cedo, andava, vagava, corria, vasculhava, fugia y sonhava. na maior parte das vezes, só voltava a noite, quando tornava a escrever y ler y fugir y sonhar. é, dona Carolina Maria de Jesus, é babado! “16 de julho [de 1955] [...] Cheguei em casa, aliás, no meu barracão, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que levo. Cato papel, lavo a roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta [...] Mas o pobre não repousa. Não tem o privilégio de gosar o descanso”6. é difícil viver entre os tempos da morte preta, o tempo da Escravidão y Colonização que continuam, o tempo da Indústria y da Cidade que anunciam o despejo infinito que chega. o agora preto é a coagulação dos fins. quem corre entre temporalidades distintas para viver, invariavelmente, se cansa y sente a vertigem. “8 de julho [de 1958] [...] Às quatro comecei a escrever. Quando desperto custo a adormecer. Fico pensando na vida atribulada”7. é difícil ter sono fugindo y atravessando incessantemente as diferentes temporalidades da aniquilação anti-preta que é o Brasil ontem-amanhã-agora. “31 de dezembro [de 1958] [...] eu tenho uma vida confusa igual um quebra-cabeça”8. você estava desorientada y cansada, mas não a ponto de não perceber sua localização nas encruzilhadas dos fins do mundo y nem a ponto de não conseguir continuar fugindo y planejando. as encruzilhadas dos tempos são também geografias. você vagava entre os fins. você sabia que a favela do Canindé era o fim, y andava nas suas ruínas antes mesmo do seu despejo total nos anos 1960 para a construção da Marginal Tietê. perdida nos tempos, vagando no espaço, você criava uma outra experiência geo-histórica. uma sensibilidade do fim. “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita [...] E quanto estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo [...] e o que está no quarto de despejo queima-se ou joga-se no lixo”9. uma sensibilidade geo-histórica do fim. uma ética preta do valor. a favela não é só o quarto de despejo, mas o próprio fim, a morte social como condição da existência preta, desprovida de valor. “Favela, sucursal do Inferno, o próprio Inferno”10. mas o que sua sensibilidade y ética anunciam, portanto, não é a morte, mas a ressurreição! morta-viva, Zumbi, quilombo! você nunca teve lar, nem quando morava no barracão, nem quando comprou sua casa, porque a experiência preta no Brasil é o despejo infinito! “Mas ele deve aprender que a favela é o quarto de despejo de São Paulo. E que sou uma despejada”11. mas ainda assim, apesar de tudo, apesar do Brasil y do fim do mundo, do esgotamento y vertigem que esses fins lhe geravam, você conseguiu sonhar y abrir a fuga impossível! “10 de maio [de 1956] É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela”12. sair da favela era uma forma de atravessar o fim. vagando, catando, escavando, reciclando, você sonhava y

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escrevia a fuga. “30 de julho de [de 1959] ... Escrevi até tarde, porque estou sem sono. Quando deitei adormeci logo e sonhei que estava noutra casa. E eu tinha de tudo. Sacos de feijão. Eu olhava os sacos e sorria. Eu dizia para o João – Agora podemos dar um ponta-pé na miséria”13. as Deusas pretas estavam contigo, no barracão, cruzando as avenidas enormes y sujas de $ão Paulo, revirando lixo para criar escritas y outros alimentos. “Se Deus auxiliar-me hei de sair daqui, e não hei de olhar para trás”14. você atravessou o fim y escapou da demolição y do despejo. 1 de janeiro de 1960 é o ultimo registro dos seus diários que me restaram. naquele mesmo ano, você publicou Quarto de despejo, que de imediato foi traduzido para uma dúzia de idiomas. naquele ano você conseguiu, finalmente, fugir do barraco, da favela, do fim. você estava com Deus y Deus é mudança! logo, logo, você percebeu que fugir da favela não era escapar do fim anti-preto, que voltava de novo y de novo... o que você conquistou, isso sim, foi um uma certa estabilidade, um chão seu, para seguir fugindo y sonhando...

outra vez 2077 – Vem aqui – você disse – quero te mostrar uma coisa. então voltamos à biblioteca. lá estava Ossos, recitando, dessa vez outro texto. bem mais solto, fluido, quase à vontade. eu meio que reconhecia aquelas palavras, mas não conseguia lembrar de onde. tudo ainda estava muito confuso pra mim. – Cê tá certa, cê conhece bem esse texto – você disse, dando uma risadinha debochada. você ergueu as mãos diante de si, com as palmas plantadas para cima y fechou os olhos. o ar começou a se adensar ao seu redor formando uma espécie de globo de fumaça viva entre as suas mãos, que pulsava y se mexia, rodopiando em múltiplas direções. mesmo depois de tudo que vivi naqueles últimos meses, ainda ficava maravilhada com o mistério que a noite infinita carregava. dentro do globo esfumaçado estava Ossos. vibrando como uma flâmula de fumaça. provavelmente na quadra do Quilombo, ainda mais criança, com seu Quarto de despejo em mãos, lendo y escrevendo. riscando algumas frases, juntando outras. abrindo algumas páginas, ora pulando-as rápido, ora demorando-se nelas. juntando frases cortadas de cima pra baixo, de baixo pra cima, juntando frases da mesma página, de páginas cruzadas, juntando só de páginas ímpares, de trás pra frente, aumentando fluxo de intensidade, cruzando os métodos, como... – Como você já fez? Sim (risos)... y de repente, um outro globo de fumaça começou a se formar de dentro do primeiro. agora era eu quem estava lá, uma das muitas eus que

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fui.. eu também estava lá com seu Quarto em mãos, cortando y juntando palavras suas para criar outra coisas. naquela época, talvez, eu já soubesse que aqueles arrepios eram também a marca da sua presença, do nosso encontro. reunir aquelas palavras era uma invocação. era difícil me concentrar no agora, pois não existia mais o aqui. eu sonhei muito com Quilombo das Araras, mas admito que jamais imaginei que pudesse plantar meus pés nele, algum dia. pelo menos não em vida. risos. Quilombo era diferente de todas as vezes que escrevi, mas estranhamente, alí eu me sentia em casa. você falava pouco, y isso não era um problema entre a gente. eu sentia você como uma avó, como uma professora. era confortável y calmo, quase como um lar. você manipulava o Mundo, y podia recriar cenas, memórias, profecias, acontecimentos, sonhos, miragens y coisas que eu nem sequer imagino. não sei se me lembrava ou se apenas via, mas estavam ali, as cenas do Segundo Golpe M1l1c14n0, os primeiros enxames de drones, o surgimento das desertificações, o nascimento de Quilombo das Araras, Quilombo do Jabaquara na Nova Mooca... acontecimentos y texto misturavam-se em mim. a sensação era de que ia desmaiar a qualquer momento. me sentia honrada, diante de uma comandante de guerra, mas também grata, diante de um cometa. hoje É o dia da Abolição. Nas prisões os negros... são os mais cultos Que deus elimine os brancos para que os pretos sejam felizes Continua chovendo... a chuva está forte Estou escrevendo com o dinheiro dos ferros Eu acendi o fogo e saí correndo Segui pensando na desventura... [do] mundo Eu sonhei com 4 mil cruzeiros Disse-lhe que ia internar a fome de Jerusalém eu não vim ao mundo para esperar hei de acabar com o Homem você já viu... um cão... afluir... meu repertório poético? eu desejava ser preta... , Inferno o Mundo é o gabinete do Diabo Antigamente eu cantava... está chovendo fui ... entrar na água de manhã? tem carne? Tem... a favela furiosa… Deus criou o preto e deu-me comida Ele disse que os pretos podiam se revoltar Eu escrevo porque... não tenho medo daquele puto Eu comendo o que sonhei

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Parece que a minha vida estava mais bonita do que o sonho fui escrever... no sol para aquecer ... com as agruras da vida... perambulando aqui nesse mundo deleite de não ser... Homem (nem mulher) Quando anoiteceu, cantamos a Jardineira Se Deus auxiliar-me hei de d’esse mundo

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de jesus, Carolina Maria, Quarto de despejo: diário de uma favelada [1960]. São Paulo: Ática, 2014, p. 120. butler, Octavia E. The Parabole of the Sower. Nova York: Grand Central Publishing, 2007, p. 3-6. de jesus, Carolina Maria. Ibid, p. 11. Id. Ibid., p. 81. Id. Ibid., p. 29. Id. Ibid., p. 12. Id. Ibid., p. 85. Id. Ibid., p. 149. Id. Ibid., p. 37. Id. Ibid., p. 165. Id. Ibid., p. 147. Id. Ibid., p. 27. Id. Ibid., p. 185. Id. Ibid., p. 188.

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O

que

acontece

com

uma residência artística N

os primeiros dias de março de 2020, a equipe do Pivô dava as boas vindas aos artistas residentes do primeiro ciclo do programa Pivô Pesquisa, que foram recebidos na sede da instituição, no edifício Copan. Em menos de uma semana, antes mesmo que todo o grupo tivesse se instalado nos ateliês, os desdobramentos da pandemia levaram ao fechamento do espaço. ¶ A proposta de um programa à distância foi rapidamente desenhada e apresentada aos residentes. O novo programa se apoiava na experiência das curadoras responsáveis pelo acompanhamento do ciclo, Livia Benedetti e Marcela Vieira, fundadoras da plataforma digital aarea.co, voltada a projetos artísticos especialmente concebidos para a internet - a propósito, foram Lívia e Marcela que apresentaram à instituição o Zoom, que naquele momento ainda não era a ferramenta ubíqua no cotidiano do trabalho em regime de home office. ¶ O primeiro ciclo do Pivô Pesquisa 2020 foi um

quando na

ela

própria

experimento-piloto. A pandemia abriu caminho para que, a partir da residência remota, a instituição pensasse com mais profundidade a respeito das especificidades dos meios digitais, reavaliando também suas formas de atuação no espaço físico e virtual, e sua missão perante à comunidade artística e o público. Desde então, os três ciclos anuais vem ocorrendo à distância e, conforme a volta do convívio social se torna realidade, ocupando gradualmente o espaço dos ateliês. No último ano, o Pivô também estabeleceu o pagamento de uma bolsa-auxílio de pesquisa para os participantes – uma enorme conquista para a residência. ¶ A residência sem sair de casa foi um fato – ainda que tenha tido seu significado constantemente questionado. Como é possível que uma residência artística seja realizada de forma remota? O que pensar de uma residência quando ela é feita na própria residência? Alguns artistas e curadores que partilharam da experiência tentam responder a estas perguntas. [LF]

é

feita

residência?


A residência pode ser um momento para abrir espaços, mover os artistas dentro de inquietações sobre o próprio trabalho. Acredito que, na residência do Pivô, esse movimento se deu por uma investigação acerca dos significados ocultos nas palavras que desenhamos para mover nossa prática. ¶ Proporcionando um tempo distorcido para construir reflexão, o qual sempre esbarrava no pensamento de outro artista e criava uma provocação individual, muitas vezes compartilhada (via áudios, desenhos, printscreens), resultou em uma aproximação onde o sentido das palavras “físico” ou “presencial” fraquejavam em sua importância. ADRIANO MACHADO

Pensar uma residência sem sair de casa implica desvincular a ideia do espaço de estúdio como um lugar de pesquisa. ¶ Em muitos casos, as residências artísticas procuram um lugar para desenvolver fisicamente nossas pesquisas plásticas e criativas. O espaço físico e a possibilidade de conhecer outro contexto, diferente do pessoal, nos obriga a questionar nossas práticas em relação a outras realidades. Desta forma, o espaço influencia e é agente de uma residência. Entretanto, quando desenvolvemos uma residência artística sem residir em um contexto que não seja o pessoal, e mesmo que o façamos virtual ou remotamente, isso faz com que nossa abordagem seja menos material em termos de produção artística e com que a prática assuma uma posição mais crítica e reflexiva. ¶ É por isso que as residências remotas ou domiciliares estão mais próximas da ideia de um grupo de estudo sobre a mesma prática e as diferentes realidades daqueles que participam. CHRISTIAN SALABLANCA DÍAZ

Quando corpo e casa se confundem e se tornam inseparáveis, residir noutro lugar talvez signifique aproximar-se de outros corpos; habitar, ainda que à distância, perspectivas que somente relações com quem não equivale a nós podem nos provocar. ¶ Por isso, na experiência do Pivô Pesquisa on-line, naquele 4º mês de pandemia no Brasil, o deslocamento que nos pareceu não só possível, como também desejável, foi um convite para que, durante a residência, os participantes não precisassem exclusivamente se dedicarem a si mesmos. Na tentativa de aliviar um pouco a saturação de si que muitos de nós já vinham experimentando, propusemos um espaço-tempo de interlocuções que tomaram como central não somente o processo de dar-se a conhecer mas, com igual importância, o de mergulhar no outro. Tentamos provocar alguma – ainda que mínima – inflexão na experiência da clausura social que tende a colocar cada um no seu quadrado, misturando um pouco mais os nossos ângulos, desenhando uma geometria mais relacional. ¶ Esse foi o deslocamento que, numa residência em nossas próprias residências, tivemos como horizonte. CLARISSA DINIZ

Tensionar o conceito de residência artística, onde tudo que se opera dentro do campo “institucional” passa a ser uma extensão doméstica. Os processos que se guardam para um espaço como “ateliê” não se dirigem mais para fora de casa, adaptam-se ao sistema do lar sem qualquer tipo de projeção/ fantasia de espaço artístico versus espaço de casa. A questão é só: disciplina para não se afundar num “burnout com pintas de gozo estético” ou seja, a ilusão de funcionar 24 x 7 já que a tal Arte não se separa mais da vida quando é feita dentro da própria residência. DENISE ALVES-RODRIGUEZ

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Fotoperformance. Essa foi a linguagem possível. ¶ Em 10 de março chego a São Paulo. Fico na casa do Juan Parada. ¶ Cheguei no Copan! Avistei o Helô Sanvoy e fomos investigar as muralhas do castelo. Meu espaço é incrível, iluminado e abismal. Uma tabula rasa. Me interessa a varanda, um suntuoso corredor entre toneladas de concreto e vidro e gente. Pela fresta, consigo espiar os trabalhos dos vizinhos, de altíssimo nível, David Bergé, que vive entre Atenas e Bruxelas, trabalha com espaços e trajetos. Consigo espiar uma área de torneiras. Um spa? ¶ Somos recebidos pela Fernanda Brenner, Leo Felipe e Rachel Sena, um círculo-oráculo para estabelecer o primeiro contato. Para a residência Pivô proponho um ciclo de ações com os/as artistas Eleonora Gomes, Gustavo Francesconi, Leo Bardo e Adriana Tabalipa. Práticas em sessão aberta de performance art. ¶ Agora tenho duas cadeiras de praia do labirinto-oficina. Matias Oliveira divide o ventilador comigo. ¶ Dia 15 tenho que voltar, antes que fechem tudo. David deixou um livro para mim no escritório! ¶ Em Curitiba, isolado, como fazer performance art? ¶ (Desistir do Pivô não é uma possibilidade). Olhando para dentro! Dentro do ovo. ¶ Vem a interlocução da Carolina Mendonça (!!!) e discutimos as poéticas da monstruosidade. ¶ A Fernanda Pompermayer vai fotografar os objetos que eu levei para São Paulo. EDUARDO CARDOSO AMATO

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Quando me inscrevi para a seleção do Pivô Pesquisa, já tinha um pensamento que esse tempo de residência seria de muito ganho para meu processo artístico e meu crescimento pessoal. Participar de uma residência artística, em tempos difíceis, de distanciamento social, de paralisação do setor cultural, torna-se um modo de manter-se ativo artisticamente. O Pivô Pesquisa, remotamente, me proporcionou discussões com diversos artistas e curadores, de diversos locais do Brasil. Durante esse período de residência remota, estive mais perto do meu processo de criação, dos cadernos – dos materiais e pensamentos de se trabalhar em casa. Próximo dos processos dos outros residentes, pude notar semelhanças/diferenças que cada um tem vivenciado, no atual momento de incertezas que vivemos. Assim, ser residente e ter espaço de residências em ambientes virtuais se faz de suma importância no contexto artístico atual. Residências se tornam lugares de resistência poética. ESTEVÃO PARREIRAS

A pergunta que vocês fizeram foi uma das coisas que me perguntei quando vi que tinha sido selecionada para o programa do ano passado, e que ele aconteceria de forma remota. Eu fiquei: “gente, será que isso é possível? Será que tudo que eu estava pensando para o programa de residência do Pivô, que eu gostaria de pesquisar e pensar, será que tudo isso seria possível? Será que as trocas que eu gostaria de ter vão ter o mesmo nível de qualidade que imaginei que teriam?” E surpreendentemente a resposta foi sim. Surpreendentemente porque sobretudo o meu trabalho acontece, ou melhor, acontecia, de forma muito presencial, sendo essa presença, no caso, não-virtual. Não só o meu, como o de outros colegas que participaram do mesmo ciclo que eu. E foi muito interessante perceber como a gente conseguia contornar o que então seria esse vazio, mas que não era um vazio. O que seria essa relação pelo intermédio da luz, tanto desse corpo-tela que emite a iluminação, quanto o corpo-câmera que capta a luz também. E o quanto de esforço foi necessário pra que isso acontecesse, o quanto percebi que não só eu, mas todas as pessoas estavam ali no mesmo intuito de se conectarem pra muito além de uma ideia de estarem conectados on-line na internet, de buscar essa ideia de conexão que talvez a gente pudesse ter interpessoalmente se estivéssemos todos fisicamente no espaço do Pivô, no Copan. E que tudo, no final das contas, virou uma grande especulação e não deixou de acontecer. Na verdade, o ciclo foi muito marcante porque uma das dobras que ele me deu foi esta: a possibilidade de pensar nas múltiplas formas em que o meu trabalho conseguiria estar presente agora. E uma delas era participar de um processo de pesquisa, de imersão, que não necessariamente exigia estarmos conectados corpo a corpo, porque existiam outras maneiras sem que a gente perdesse a qualidade de estar juntos. Isso foi muito mágico e, ao mesmo tempo, muito trabalhoso. Era preciso de fato que todas as pessoas estivessem com a vontade de que isso acontecesse pra que não fizéssemos apenas uma reunião qualquer de zoom. O que não significa que não tivemos entraves. Durante o processo, silêncios, cansaço também, acho que existe uma exaustão de estar ali, um esgotamento da própria tela, porque não só eu, mas acho que as outras pessoas estavam envolvidas com outros trabalhos que também tinham como mediação o computador. Mas, enfim, não sei dizer do que é feita uma residência remota, mas sei que a residência que eu fiz no Pivô foi feita de muito esforço, e de esforço coletivo de estar ali. Esforço coletivo pra estar junte mesmo. Talvez por mais piegas que isso pareça, é muito real, porque realmente foi uma vontade coletiva de fazer com que aquilo desse certo, sem saber exatamente o que seria dar certo dentro daquele contexto. E acabou dando (risos). IAGOR PERES

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Estar em residência artística é abrir-se para trocas e conexões. Seja com os outros, seja com aquilo que reverbera interna ou externamente. Para mim, é mais um “modo de estar”, do que um “onde estar”. Podemos fazer nossas residências (aqui, num sentido amplo) em qualquer lugar, desde que a intenção esteja lá. JULIA DA MOTA

ontem, quebrei uma xícara branca de louça. por sinal, essa xícara, eu trouxe pra casa após sair da noite de inauguração do 23º festival cultura inglesa, no centro de cultura britânica. era uma noite que a instituição oferecia para os ganhadores do festival. no caso, estávamos por conta da peça IMAGINE. eu saí do prédio, em pinheiros, tomando meu chá inglês nessa xícara que passou a fazer parte do conjunto de louças daqui de casa, cada uma vinda de uma situação diferente. ¶ quando olhei pra louça quebrada, me dei conta que ela própria era o trabalho da yoko, e que, também, yoko e john são as principais referências pra nossa peça IMAGINE. “mend piece” (peça de emendar): cacos de louças brancas dispostos para serem colados coletivamente. ¶ angélica freitas já postou no instagram: “o corretor ortográfico sempre teima em colocar louca quando escrevemos louça.” ¶ esse evento produziu em casa, na cozinha, a desobstrução da linha de fronteira que supostamente define “obra de arte” e que, em situações como essa, e contraditoriamente por causa de uma “obra”, somos capazes de ver a estranha beleza de uma xícara branca quebrada. ¶ e a louça a louca louça tem sido a grande parceira da residência em tempos de crise sanitária. ¶ como temos feito todas as refeições em casa desde março de 2020, lavar a louça-lavando a louça, é a mais insistente prática artística do momento. ¶ respondo a pergunta. ¶ primeiro, não podemos separar que o contexto de residência pivô pesquisa, no caso do meu ciclo, se deu simultaneamente à suspensão do mundo ¶ – durante os três primeiros meses que ninguém sabia onde ia dar. ¶ então todo processo aconteceu a partir dessa adaptação/adequação que tivemos que inventar quase instantaneamente. ¶ se é possível? foi possível. ¶ não sei exatamente descrever o que aconteceu. ¶ talvez pude reiterar que grande parte dos meus processos é doméstica. sempre trabalhei em casa, a “é selo de língua” é em casa, a biblioteca está em casa. ¶ e me lembro dessa entrevista em que dominique gonzalez-foerster deu ao obrist sobre seu encontro com félix gonzalez-torres ¶ “sim, ficava à mesa, lia, trabalhava sempre em casa, e nisso nós também éramos muito parecidos: eu também nunca fui uma artista de ateliê. nós éramos artistas de apartamento, também no sentido em que nós dois falávamos de livros, de leituras, do que fazíamos pra comer, de fotos... partilhávamos o mesmo amor pelo formato 10x15, os snapshots e por tudo que podia ter a ver com um formato doméstico. e também as cartas que ele me escrevia (...). nunca conheci ninguém que tivesse essa atenção, uma atenção também como forma de beleza, uma beleza que não está congelada. (...). seu sentido de beleza ia em direção ao efêmero , e não ao que já está pronto e acabado.” ¶ muito do que produzi, foram e-mails, tentativas de endereçar. ¶ conversar. ¶ e algumas conversas se alongaram ¶ se estenderam – e estão em fluxo até agora ¶ também acho importante ¶ o grande pedaço q não sabemos ¶ que de repente aparecem outros pontos de contato ¶ eu trabalho pra isso ¶ pra liberar os acessos ¶ e deixar as coisas vagarem soltas por aí. ¶ ps: lembrei q a legenda da minha publicação no blog trazia esse vice-versa ¶ deixo colado ¶ “... é em casa, assim como a residência remota que faço parte. o espaço de trabalho na residência é a minha casa que é a residência onde trabalho.” ¶ ps: pra chegar no blog, caí num página q dizia ¶ “... Aos participantes é oferecida uma bolsa-auxílio-pesquisa no valor de r$ 750 mensais, durante a duração do programa.” ¶ e não recebi. ¶ valeu gente, ¶ louca/louça pra ler a seção! JULIA ROCHA

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Em uma atuação bem exclusiva, tratando-se do aarea (que optou por habitar o virtual em suas diferentes facetas) – a residência é completamente possível – e quero dizer com isso que a acho completa em sua totalidade. A experiência que já vínhamos investigando, perscrutando, depurando nos trabalhos de arte exibidos no site se ampliou, e passou para os encontros e, consequentemente, para a zona de afetos, esta não menos óbvia, dona de surpresas e desafios pela própria natureza, seja ela virtual ou não. Tudo aí nos interessava, e tudo aí pôde ser interessante. E foi. ¶ A residência feita na própria residência (na internet) deve ser pensada sem prejuízo e sem comparação (com o espaço físico). Mas a fórmula não existe; a resposta só pode ser encontrada ao fim do processo, com um olhar retrospectivo. Ainda que os propositores tenham em mente um projeto, uma proposição, a residência será descoberta em conjunto, dentro desse espaço e tempo tão relativos, abertos – e aqui falo com otimismo – a toda oportunidade da linguagem. Pura construção. MARCELA VIEIRA

11:06:59 De █████████ : Começaremos em breve, obrigado! 11:24:26 De ████████████ : só eu não estou escutando? 11:24:46 De █████ ████████████ : aqui está normal 11:24:48 De ███████ ██████ : █████, aqui está funcionando 11:25:40 De ████ ██████ : Aqui normal também. █████, veja se tem um ícone Incluir Audio no lado esquerdo embaixo 11:25:57 De ████ ██████ : Do lado de iniciar video 11:26:41 De ████████████ : agora foi. brigado gente 11:48:29 11:49:35 11:49:36 navegador 11:49:40 11:49:44 11:53:40

De ███ ███████ : o link não tá ativo De ████████ █████ : fui direto pelo spotify De ██████ ████ : abre o google e cola esse link no

11:54:12 11:54:16 11:59:42 12:28:26 12:28:28

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De ████████ █████ : ta meio travando o seu video

15:09:53 15:09:54 15:09:54 15:09:54 15:09:55 15:09:55 15:09:55 15:09:55 15:09:57 15:09:58 15:09:59 15:10:16 eco... 15:14:31 15:14:31 15:14:32 15:14:32 15:14:32 15:14:32 15:14:33 15:14:34 15:14:34 15:14:35 15:14:37

13:06:58 13:07:42 13:07:47 13:08:05

De De De De

15:42:46 15:43:01 15:43:01 15:43:05 15:43:05

De ██████ ████ : pra mim abriu De ██████ ████ : vou jogar no zap De █████ ███████ : nossa é muito bom ████████ █████ : gafanhoto ████ █████ : gafanhoto ███████ : formigas ███████ ███████ : asco e nono ███████ ███████ : nojo

█████████ : Opa n rolou o link █████████ : Só copiar colar ██████ ████ : manda por email leo ████ ████████████ : ou bota no drive

14:58:12 De ██████████████ : ola, 14:58:20 De █████ ███████ : olá 14:58:22 De ██████ : ola 14:58:28 De ██████ : td bem? 14:58:30 De █████ : ola 14:58:30 De ██████████████ : tem alguém falando agora? Não, né? 14:58:37 De ██████ : Nops, n começou ainda 14:58:42 De ██████ : aqui está silencio total 14:58:43 De █████ : aqui está mudo 14:58:45 De ██████ : não ouço nada 14:58:48 De ██████████████ : Ok, obrigada. 14:59:01 De ███ █████ : Aqui mudo tbm 14:59:41 De ██████ : Olá, boa tarde! :) 15:00:25 De █████ ██████ : Olá pessoal, boa tarde :) 15:00:36 De ███████ ██████ : ola! 15:00:37 De █████ ███████ : Oi, Boa tarde ! 15:00:39 De ███████ ██████ : Boa tarde! 15:00:50 De ███████ ██████ : boa tarde! 15:01:22 De █████ ██████ : Boa tarde! 15:02:33 De █████ ███████ : Ta sem o áudio habilitado ainda né? 15:02:46 De ███████ ██████ ██ ██ : Boa tarde! A transmissão está com eco... 15:02:58 De ██████ : para mim, o audio está bom... um pouco baixo, mas dá para ouvir 15:03:38 De ███ ███████ ██████ : sugiro os fones d ouvido 15:08:36 15:08:42 15:08:53 15:09:26

MATHEUS CHIARATTI

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15:09:28 De ███████ █████ : Vocês estão pensando em compartilhar a gravação depois?

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████████ █████ : show! █████ █████ : Obrigada! ███████ █████ : Obrigada! ██████ ██████ : Obg!!

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███ ███████ ██████ : ouvindo sim ███████████████████ : Ouvindo sim █████ ███████ : estamos ouvindo ██████ : Travou a imagem █████████ ████████ : travou um pouco mas voltou ███████ ██████ : ouvindo ███████ ████████ : sim ouvindo ██████████████ : To ouvindo, nao vendo. █████ █████ : te ouvindo ██████ : travou a imagem, som ok ██████ : Mas ouvindo super bem ███████ ██████ ██ ██ : Continuo ouvindo com

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█████████████ : sim! ████ ████████████ : sim █████ █████ : sim ███████ ████ : ouvindo ██████████ : sim ███████████████████ : sim █████████ : sim █████████████ : Estamos ouvindo ████ █████ : sim █████ ██████ : simm █████████ : O audio ta ok

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█████ ███████ : sem audio █████ ████████████ : aqui ta normal █████ ███████ : áudio ok █████████ : Pra mim ok ████ █████ : sim posso fazer

15:45:03 De ██████ : Obrigada por sua fala! 15:45:43 De ██████ ██████ : Obrigada! 15:46:01 De █████ █████ : Obrigado, maravilhoso. 16:37:34 De ██████ ████ : obrigado à █████ e ao Pivô por organizar ! 16:37:42 De ████ ███████ : Parabéns pela iniciativa. Muito bom participar. 16:38:23 De █████ █████ : Precisamos ter mais discussão dessas. 16:38:23 De ███ █████ : foi ótimo gente, obrigade! 16:42:04 De ██████ ██████ : Obrigada!! Foi ótimo! 16:42:04 De ██████ ██████ : Obrigado e até a próxima. 16:42:20 De █████ ███████ ███████ : Valeu <3 16:42:29 De ███████ █████ ██ ██ : Muito obrigada, █████ e equipe da Pivô pelas reflexões e pelo debate! 16:42:32 De █████████████ : valeu █████!!!! ███████, █████, pivô, super obrigada!!! 16:42:47 De ███████ : Valeu, █████! Valeu, pessoal! foi demais 16:42:54 De ██████████████ : Obrigada, gente. Ótimo poder acompanhar aí com vocês. 16:43:12 De ████████████ : valeu! valeu! 16:43:18 De ███████ █████ : Obrigada pivô, obrigada █████, █████ <3 sdds e queria tá indo pro bar depois conversar 16:43:23 De ████ ██████ : Obrigada!! 16:43:23 De █████████████ : obrigada! █████, maravilha de análise, obrigada por partilhar essas reflexões! parabéns aarea e pivô 16:43:25 De ██████ █ █████ ██████████ : foi tude <3 muito obrigad!! 16:43:32 De ██████████████ : Obrigada! 16:43:33 De ███████ : valeeeu █████ <3

PEDRO ZYLBERSZTAJN

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Primeira vez que passarei mais de um mês no Brasil depois de oito anos fora. ¶ Antes de começar o Pivô, uma viagem pela costa. Meu irmão viria comigo, faríamos a travessia da Joatinga. Compro as passagens, snacks e repelente para quatro dias de acampamento, mas uma hora antes de partirmos ele tem um surto ansioso e desiste da viagem. ¶ Estou na farmácia comprando antialérgico quando minha mãe liga com a notícia. Meu irmão mora com ela, eu com minha avó. “Seu irmão está estirado no chão do quarto, no escuro, imóvel, com medo que você fique bravo com ele.” ¶ Tudo bem. Vou sozinho. São Paulo – Paraty, Paraty – Rio. Refaço os passos do meu tio. Aos 21 saiu de casa e foi morar em Copacabana, apartamento comprado pelo meu avô. ¶ No Rio, noticiam os primeiros casos da Covid no Brasil. Nas farmácias, álcool gel em falta. Visito minha tia, conversamos sobre meu tio. Ela me revela as circunstâncias em que ele pegou hiv no início dos anos 90, e como foi quando eles moravam juntos, quando voltaram a São Paulo e ela cuidava dele. ¶ No avião de volta pra São Paulo, já sinto medo do coronavírus, e a vergonha a cada vez que minha alergia me leva a um espirro... abafado na máscara, espirro pra dentro, implosivo. ¶ Começa a residência, entramos nos ateliês, compro uma poltrona de rodinhas e a arrasto pela Consolação até o Copan. ¶ A convivência com minha avó anda difícil. Ela dorme de porta aberta e acorda toda vez que chego em casa à noite, ouve meus passos no corredor, me pergunta se está “tudo bem”, e isso me desarranja, já não estou acostumado com alguém tão preocupado comigo. ¶ As infecções crescem em São Paulo. A residência se torna virtual. Com medo de infectar minha avó, me mudo para o apartamento com minha mãe e meu irmão, longe de tudo, mas com duas varandas e uma pequena piscina no pátio. ¶ Novos hábitos: ler romances de pé dentro da piscina. Madame Bovary e La Disparition. Tópicos do meu tio. Com minha mãe e meu irmão, uma nova convivência, inesperada. afinal não vivemos juntos há mais de dez anos e, até pouco tempo, morava ali meu pai e sua presença gerava tensão em todos. ¶ Nós três agora muito unidos. Cozinho pra eles os pratos que aprendi a cozinhar sozinho: shakshuka e yakissoba. Fazemos exercício: crossfit na sala e krav magá no pátio. Numa das aulas, meu irmão me soca com toda a violência contida de já dois meses de quarentena. Começa uma dor no meu ombro direito que ibuprofeno e a rodinha de massagem aliviam, mas não resolvem. ¶ Três meses depois, de volta à Alemanha, a ressonância magnética revela: “Desgaste na articulação acromioclavicular, início de artrose (apesar da pouca idade).” ¶ Um ano depois, ainda dói. Mesmo com fisioterapia e injeções de corticoide. Há três semanas, minha mãe foi operada de um câncer de mama. A operação parecia ter dado certo, mas a biópsia revela que fragmentos do câncer ainda permanecem e ela deve ser operada de novo em três semanas. ¶ Seio direito. Um gânglio está comprometido. Voltarei para o Brasil: ela precisa de ajuda. Que alguém cozinhe, lave a louça e lhe dê banho. WALTER SOLON

questionando a possibilidade de ter uma bolsa, uma bolsa de permanência, isso foi muito uma flecha, do jeito que nossa residência se deu. Acho que foi um primeiro momento, acho que a gente provou também que uma residência artística se faz muito de encontros, porque estando separados um do outro, a gente ainda assim compartilhou um espaço-tempo de residência. Foram trocas muito intensas, mas ao mesmo tempo foram trocas que exigiram de nós uma gama de encontros. acho que se fosse de outra forma… talvez seria intenso de outra forma também. Enfim, são algumas coisas que penso, esses espaços de dignidade, onde o dinheiro, os encontros sejam assim alguns dos pilares que sustentam a nossa relação com a instituição e com a própria ideia de criação coletiva e de diálogo coletivo. YHURI CRUZ

Acho que pra fazer uma residência artística de casa, a primeira coisa é ter casa, entender que casa é muito mais do que o teto, a parede. é realmente você ter um lugar de dignidade para pensar mesmo a criação. Porque eu acho que fica bem difícil pensar a criação num lugar sem dignidade. Claro que muitos de nós pensam dentro dessas circunstâncias. Sinto que tanto a Pivô quanto os próprios residentes, a gente tentou fazer desse momento da pandemia um momento de repensar e realmente de questionar quais eram as formas com as quais a gente queria se relacionar, e que a gente queria estar bem um com o outro. Quando a gente lançou a carta pra vocês, de início assim,

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Beatriz Santiago Muñoz sobre sua tradução visual de Les Guérrillères (em depoimento a Fernanda Brenner)

TRADUZINDO LES GUÉRRILLÈRES Todo tradutor sabe que existem barreiras intransponíveis entre idiomas ou entre linguagens. Um processo de tradução vai muito além do exercício de encontrar correspondências diretas entre palavras estrangeiras. Muitas vezes, o “intraduzível” é antes um gatilho para experimentações de linguagem e para abertura de novas chaves de acesso a conteúdos criados em contextos distintos da frustração da incomunicabilidade. ¶ O romance Les Guèrrilléres, de Monique Wittig, publicado em francês, em 1969, revelou as limitações desta língua enquanto estrutura supostamente neutra. No livro, Wittig subverte o uso dos pronomes e outras estruturas linguísticas para narrar uma espécie de epopeia vivida por uma comunidade formada por corpos lidos como femininos a quem ela chama, no original, de “elles”. Quando a autora recusa a binariedade de gêneros, até então tida como um dado natural, a partir da subversão do uso da linguagem, ela lança um desafio até então pouco usual aos seus tradutores: como contar uma história que escape totalmente às amarras e predeterminações da heteronormatividade? ¶ Em 2021, a artista porto-riquenha Beatriz Santiago Muñoz, apresentou, no Pivô a instalação audiovisual em vários canais Oriana, baseada no romance de Wittig, o qual foi traduzido pela primeira vez para português brasileiro por Raquel Camargo e Jamille Pinheiro, em 2020. Santiago Muñoz e Camargo refletem sobre o processo, as escolhas e as impossibilidades de tradução deste texto emblemático para outro idioma e para a linguagem audiovisual.[FB]

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u li Les Guérillères (1969) quando tinha cerca de dezenove anos. Acho que passei todo esse tempo tentando entender o que o livro faz e como ele o faz; quais são os elementos formais e estruturais... Falo sobre o uso dos pronomes1 — que Wittig questionou, e sobre os quais escreveu especificamente em ensaios que eram, de certa forma, o tema de L’Opoponax (1964) e também de Les Guérillères. Nesses livros, ela cria um sujeito externo ao binarismo heterossexual — ou ao binarismo decorrente da heterossexualidade compulsória — que existe na vida política e social e está indexado na linguagem. Por exemplo, o início do romance — ou do que pode ser lido como o início, segundo o tempo cronológico — aparece quase na metade do livro, que tem uma estrutura circular. Outros elementos contribuem para essa quebra da normatividade de gênero, como a presença de nomes próprios deslocados ao longo do texto, e outros aspectos mais difíceis de descrever. Não há no texto, por exemplo, qualquer menção à interioridade. Wittig era uma pensadora marxista materialista, e também levava em conta a estrutura clássica do romance e a ideia de indivíduo. Ela criou uma história que, de alguma maneira, se levanta contra a sobrevalorização da subjetividade do indivíduo no mundo moderno. Les Guérillères é um romance que, em termos formais, faz com que este lugar desapareça completamente. Você passa direto de um sujeito a outro. A descrição se baseia em sensações, ações e na relação entre corpos e objetos. As pessoas podem gritar, mijar e vomitar, embora você não acesse sentimentos ou qualquer tipo de interioridade. Cada personagem é narrado a partir da descrição de sua vida sensorial, o que é, ao mesmo tempo, muito interessante e estranho. Isso tem algo a ver com a insistência de Wittig em criar um sujeito que exista fora do binarismo heteronormativo. De certo modo, o livro é em si um comentário sobre as relações do sujeito com o mundo. Em The Straight Mind,2 há um ensaio em que ela fala a respeito, digamos, de sua insatisfação com a tradução inglesa, que substitui “elles” por “the women”; como se as mulheres só pudessem ser definidas em relação aos homens. O que ela queria com o livro era criar, ou enfatizar, o surgimento de um sujeito que existe fora desse sistema. Nesse ensaio, ela aponta que o “they” deveria ser sem gênero, e que pode ser redefinido por meio de sua 1

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O pronome mais usado no livro de Monique Wittig, Les Guérillères, é elles (elas). A autora considera que o corpo lésbico existe para além das categorizações de gênero. Ao apontar isso com a linguagem, subvertendo o uso de pronomes já nos anos 60, Wittig levanta uma discussão até então impensável. Veja mais em: Namascar Shaktini (org.), On Monique Wittig: Theoretical, Political, and Literary Essays. Urbana: University of Illinois Press, 2005. Monique Wittig, The Straight Mind and Other Essays. Boston: Beacon Press, 1992.

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relação com os adjetivos e verbos e com outras palavras que o rodeiam. Wittig fala de como não se trata apenas de pronomes, mas também de uma espécie de reconstrução estrutural da linguagem, “nos nervos da linguagem”, como ela diz. O motivo por qual esse livro me interessa há tanto tempo é que eu penso que ele funciona! Acho que ele faz o que se propõe a fazer por meio de um mecanismo formal muito direto: não tome nada como garantido; não tome a linguagem de gênero como certa; não pressuponha a estrutura do romance, e nem mesmo a ideia de que é preciso entender uma personagem ou entrar em contato com a sua subjetividade. Então, tenho pensado no que significa fazer isso em filme. É claro que se trata de um problema impossível, pois é muito diferente fazer isso com a linguagem escrita. Seria outra coisa se Wittig tivesse optado pela fala, pelo discurso oral, que é incorporado. Há uma forma com a qual a linguagem escrita pode existir por conta própria na página, e a falada, não. Isso por si só — a mudança do texto para a fala — já seria uma complicação. Ainda assim, colocar as palavras em um corpo presente ou tentar encontrar o que seria seu análogo em um filme ou vídeo é outro problema, por conta da “linguagem do olhar” que o cinema pressupõe. Essas são coisas nas quais tenho pensado nesse novo projeto. Tento constantemente responder à impossível pergunta do que esse “análogo” poderia ser. Consegui me ater à ideia original de que você não segue ninguém, você não vê uma pessoa aparecer e então descobre o que aconteceu com ela, ou de que forma ela está em um dilema, ou qual a relação entre essa pessoa e à outra. Isso tão tem a menor importância. O que importa é o momento específico em que esses sujeitos se relacionam um com o outro, e suas descrições sensoriais e visuais. Fiquei com a imagem desse grupo de elles singulares que formam um coletivo mais amplo. Existem aspectos da linguagem escrita que se comportam de forma distinta quando vocalizados; por exemplo, quando um nome próprio é mencionado no filme, ele tem um peso diferente do que tem no texto. O “ela” falado por uma mulher no filme não faz a mesma coisa que o “ela” que se lê no texto. Essas são algumas questões com as quais tenho me debatido. Outro aspecto que considero essencial no texto é o fato de se dar em um presente extremo. A forma como ele descreve as coisas é sempre não hierárquica. Quando Wittig escreve que as personagens “podem fazer isso”, ou “podem fazer essa outra coisa”, ou “podem sonhar-se rumo ao esquecimento, ou colher flores, ou então decidir essa outra coisa...” nunca há uma descrição direta de uma batalha ganha ou perdida. Um romance diferente contaria quem foi o vencedor de uma luta específica e a descreveria em detalhes ou de modo emotivo. Há uma espécie de distância em

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suas descrições que revela um conjunto realmente forte de imagens, cheiros, sensações... tudo parece partir deste desejo de retirar o gênero da linguagem, dos pronomes, e de desmontar qualquer tipo de oposição binária ou forma de dominação. O que Wittig de fato detesta é “o macho” como sujeito genérico, na gramática, no campo da filosofia... o masculino como uma experiência universalizante, enquanto o feminino é particular. Ela está realmente interessada não apenas em uma inversão disso, mas também em encontrar um tipo diferente de sujeito universal. Wittig sabe que não se trata apenas da problemática em torno do uso dos pronomes, mas de tudo o que representam e se constrói em torno deles. Esse aspecto me faz pensar que há algo aí que posso transferir para o universo visual imagem. Na criação de filmes, o que importa não é apenas a história que você conta ou a maneira como as coisas se movem de lá para cá, mas também a forma como a câmera se aproxima de um corpo ou sugere a posição do espectador, e também como ela cria uma espécie de “espectador desejante”. Estou interessada nas possibilidades de se enquadrar uma cena, o ângulo através do qual se observará algo, em como também há uma espécie de ética, por exemplo, na maneira como a câmera se movimenta. Se ela se move como um corpo ou uma máquina, ou se olha diretamente para um assunto ou a partir de algum lugar... acho que todas essas coisas já são, em muitos sentidos, premissas. São análogas à maneira como a estrutura do romance pode questionar a própria construção do sujeito. É mais ou menos assim que tenho pensado na tarefa que Wittig se propôs em termos de linguagem. Também me chama a atenção essa espécie de “gesto grandioso”, a ideia de “batalha total”, em que ela situa seus experimentos com a linguagem. Não diria que esses aspectos algo futuristas ou sci-fi retrôs que ela usa para descrever tribos imaginárias, animais, armas ou sinais sejam utópicos... Acho que ela trabalha com a certeza de que a linguagem e o mundo se criam mutuamente. Wittig está interessada em como a linguagem carrega intrinsecamente a marca do gênero. O que me motiva a perguntar como uma construção visual também traz em si o gênero. Há corpos em movimento neste filme. Não se trata apenas de como a câmera se movimenta ou de como eu a utilizo, mas do fato de que corpos vistos como femininos povoam o filme, e isso não é o mesmo que palavras povoarem uma página. Isso cria suas próprias perguntas. Alguns anos atrás, li um livro de Svetlana Aleksiévitch chamado Unwomanly Face of the War [na edição brasileira, A guerra não tem rosto de mulher]. Ela é jornalista e escritora bielorrussa que trabalha sobretudo a partir de histórias e entrevistas orais. São testemunhos e memórias de mulheres sobre a Segunda Guerra Mundial. A maneira como aquelas mulheres descrevem suas experiências e memórias é muito parecida com o romance de Wittig.

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É tão estranho. Curiosamente, essa foi a única vez que me deparei com uma estrutura semelhante à de Les Guérillères. Menciono isso porque me intrigou. Por quê? O que há nas experiências delas, e na forma como elas relembram, que me levou a pensar nessa conexão? Há um momento em que a autora descreve um homem que, sentado ao lado da mulher que ela está entrevistando, corrige as datas e lugares que ela menciona. Ela não se lembra das datas ou lugares, mas recorda precisamente da tensão que viveu ao se esconder em um pântano com outra pessoa que tinha um bebê pequeno. Sua descrição dessas cenas é semelhante ao que Wittig faz no livro. Talvez não haja aí qualquer relação, mas Wittig tentava descrever as condições materiais das mulheres enquanto classe, e como essa classe foi criada por meio de estruturas políticas, físicas e materiais. A categoria mulher é forjada a partir desses diferentes sistemas, e o livro ressalta isso. Falando mais especificamente sobre tradução, neste trabalho estou pensando em traduzir em filme as ideias transmitidas no livro. Não apenas as ideias, mas as próprias perguntas. Como essas perguntas se traduzem em algo que acontece diante de uma câmera, ou em uma fala, em vez de num texto escrito? Uma última coisa que é muito importante no texto são os momentos em que as personagens falam, gritam e se fazem perguntas. A maneira como narram é tão importante, tão central. O que importa ali é criar um registro da ação, para então questioná-lo. Contar uma história enquanto se questiona essa história, desmembrando-a. O texto dobra-se o tempo todo sobre si mesmo, e isso faz todo sentido. Em termos de tradução, as perguntas que eu devo fazer são a respeito de como ver, como alguém é visto, como incorporar, o que é a incorporação e outros tipos de questões sensoriais. Talvez a minha primeira tentativa de responder visualmente a essas questões devesse ter sido uma adaptação de L’Opoponax,3 que é narrado em primeira pessoa e se passa na infância — durante o desenvolvimento do “eu”—, e do que ela chama de “sujeito do discurso”. Esse outro livro implica uma experiência do mundo em primeira pessoa, e claramente indica como você deve usar a câmera. Talvez tivesse sido um experimento mais fácil (risos), mas eu ainda amo Les Guérillères.

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ntre os muitos modos de enxergar a tradução, um deles é pensá-la como uma atividade especular. A ela caberia produzir um espelhamento do texto original, projetá-lo na língua de chegada, alguns diriam, do modo “mais fiel possível”. A ideia de fidelidade na atividade tradutória é hoje insustentável – fiel a que, a quais dimensões do texto, a quais escolhas?, seria uma primeira pergunta a ser feita visando desmontar esse paradigma. Igualmente, a imagem (única) do espelhamento não parece uma boa opção. Não por acaso, no campo dos estudos tradutológicos a noção de refração, justamente produtora de desvios, é hoje considerada mais apropriada para pensar a atividade tradutória. Entre outros aspectos, esse conceito permite perceber que as transferências de um texto a outro não são lineares. Na tradução de Les Guérillères (As guerrilheiras),1 porém, o desafio que estava posto nos pediu para ir além.2 No âmbito do próprio texto, nos questionamentos feitos pelas Guerrilheiras, a linguagem é fonte de desconfiança. Ela está eivada de vícios e urge desconstruí-la: Elas dizem: a língua que você fala é feita de palavras que a matam. Elas dizem: a língua que você fala é feita de signos que, em si mesmos, designam as coisas das quais eles se apropriaram. Aquilo em que eles não conseguiram colocar as mãos, aquilo que eles não atacaram como aves de rapina de múltiplos olhos é o que não aparece na língua que você fala. Isso se manifesta precisamente no intervalo que os senhores não foram capazes de preencher com suas palavras de proprietários e possuidores.3

Se o patriarcado se apropriou da linguagem a tal ponto que ela não nos permite dizer e pensar de outros modos, fossilizada que está num mundo moldado por homens, como então dizer o que não pode ser dito? Como inventar uma nova linguagem para falar dos silêncios, para pensar nos intervalos, para dar conta daquilo que não aparece na plasticidade dos signos, não se forma nas palavras? Como musas anárquicas, as Guerrilheiras nos sopram aos ouvidos: Procure nas lacunas, em tudo que não é continuidade dos discursos deles, no zero, no O, no círculo perfeito que você inventa para aprisioná-los e derrotá-los.4 1 2

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Monique Wittig, L’Opoponax. Paris: Les Éditions de Minuit, 1986.

Traduzindo As guerrilheiras, de Monique Wittig Raquel Camargo

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Para nos referir ao livro, utilizaremos o título em itálico As guerrilheiras; para nos referir propriamente às guerrilheiras que compõem a obra, grafaremos a palavra com letra maiúscula: Guerrilheiras. O livro As guerrilheiras, prosa épico-poética de Monique Wittig, foi publicado em 1969 pela Éditions de Minuit. Ganhou sua tradução para o português, realizada por Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo (autora do presente texto) em 2019, com a publicação da Ubu. wittig, Monique. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo, Ubu, 2019, p. 104. Id. Ibid., p. 104.

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Intervalos, descontinuidades, lacunas. Brechas para reinventar, para criar sobre novas bases. No projeto wittigiano, é do interior da língua que a revolução precisa partir. A desestabilização da ordem virá de um estremecimento na linguagem. Por isso, a linguagem das Guerrilheiras é – precisa ser – inventiva. Mas haveria um ponto de partida para tal desconstrução? Por onde começar para dar conta de tamanha inventividade? Em seu projeto coletivo, a fim de fundarem uma nova ordem revolucionária, as Guerrilheiras se perguntam: “Qual é o começo?”. E elas nos dizem que, no começo, estão prensadas umas contra as outras. Parecem ovelhas negras. Elas abrem a boca para balir ou dizer alguma coisa, mas não há som que saia. Seus cabelos, seus pelos encaracolados estão grudados na testa. Elas se deslocam na superfície lisa, brilhante. Seus movimentos são translações, deslizamentos. Elas vão ao encontro de reflexos que as deixam atordoadas. Seus membros não aderem a lugar nenhum. Na vertical, na horizontal, é o mesmo espelho nem frio nem quente, o mesmo brilho que em nenhum lugar as retém. Elas seguem, não há anterior, não há posterior. Elas avançam, não há futuro, não há passado.5

O desafio das Guerrilheiras se reflete, pois, no próprio desafio da tradução. E, para entendê-lo, é preciso a cada vez, a cada escolha tradutória, “ouvir” o texto, colher o que ele tem a dizer para que a tradução também o diga a seu modo. Recuemos, pois, brevemente, e pensemos um pouco sobre o que atua nas Guerrilheiras, sobre as questões presentes no livro. Em diálogo com a crítica francesa do livro, é possível pensar As guerrilheiras como uma espécie de epopeia.6 Um poema épico, se assim podemos chamá-lo, tendo por sujeito principal o coletivo anônimo elles (elas). A estrutura “elas dizem que”, tão presente no original e igualmente na tradução, capta a fundação de um novo mundo enunciado por “mulheres”. As aspas aqui se justificam porque esse sujeito coletivo feminino, o “elas”, não corresponde exatamente à imagem de mulheres, uma vez que a noção de “mulher” está aprisionada num sistema de pensamento binário; numa ecologia heteronormativa que encerra qualquer noção de mulher, de feminino, num sistema dual: masculino/feminino; homem/mulher. Escapar a essa dualidade é, portanto, recriar mundos possíveis, fundar novas ecologias de vida que ainda são um devir, que ganham existência na medida em que são executadas, vividas, recriadas sem o auxílio de um marco pré-existente à coletividade do “elas”. A partir desse sujeito coletivo, que reflete também um lugar de enunciação plural num mundo sem homens, as Guerrilheiras fundam ordens 5 6

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Id. Ibid., p. 25. Entre outras autoras, cf. ECARNOT, Catherine. “Monique Wittig : Le chantier littéraire et le métier d’écrivain”, Nouvelles Questions Féministes, v. 31, n. 1, 2012, pp. 141–44 . Disponível em: <https://doi.org/10.3917/nqf.311.0141>.

revolucionárias mediante seus discursos, fazem funcionar uma comunidade de contornos utópicos, inaugurando realidades possíveis. Assistimos a essas “mulheres”, aos seus modos de vida e às suas descobertas numa realidade sem homens a partir de uma organização de três partes, cujas divisões são graficamente marcadas por círculos. Nas duas primeiras, vemos em marcha uma sociedade de “mulheres” que escapam aos binarismos próprios a essa categoria. Já na última parte, o que se tem é uma guerra entre mulheres e homens, que poderia ter se dado no início, na fundação da nova ordem. O que se combate, porém, não são os homens propriamente, mas a lógica de dominação. A lógica da posse, o apropriar-se de coisas e mundos, os símbolos estabelecidos: Elas dizem: eles previram tudo, batizaram de antemão a sua revolta com o nome de revolta da escrava, revolta contra a natureza, chamam de revolta você querer se apossar do que pertence a eles, o falo. Elas dizem: a partir de agora, recuso-me a falar essa linguagem, recuso-me a murmurar como eles as palavras de falta, falta de pênis falta de dinheiro falta de signo falta de nome. Recuso-me a pronunciar as palavras de posse e de não posse. Elas dizem: se eu me apoderar do mundo, que seja para me desapoderar dele imediatamente, que seja para criar novas relações entre mim e o mundo.7

A guerra é necessária para que a nova ordem se funde, mas o status de inimigo em relação aos homens não visa ser mantido pelas Guerrilheiras: Elas dizem que seria um erro grave imaginar que eu, mulher, falaria violentamente contra os homens quando eles deixassem de ser meus inimigos.8 À força poética extraordinária da prosa de Wittig junta-se uma força filosófica, uma revolução epistemológica. Uma vez que o heteropatriarcado e o universal fálico são derrotados, é preciso pensar novas lógicas, recriar com inteligência para não reproduzir formas de dominação sob outras roupagens. Neste ponto, retomemos a tradução. Diante desse rápido panorama, o que lhe cabe? Não nos parece uma opção embarcar numa leitura tradutológica de As guerrilheiras sem refletir sobre o projeto em curso no próprio livro. Ao escutá-lo, ao apreendê-lo, como é possível que a tradução lhe responda, reaja a ele? Dito de outra maneira, para conceber um projeto tradutório e realizá-lo, é preciso, a cada vez, e sempre de um modo próprio, perceber o que nos diz o texto original, quais são os seus tempos e o que pode ser transladado em outras línguas e em outro contexto de recepção. 7 8

Id. Ibid., p. 98. Id. Ibid., p. 121.

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No caso de texto literários, é comum, e mesmo recomendado, que a tradução funcione como uma película muito fina, permitindo que o texto original atravesse, chegue ao novo contexto sem muitos empecilhos, sem tropeços, com fluidez. Assim, pode-se ver o colorido do texto de partida, e as estranhezas não se apagam, não se perdem no caminho. Para falar com Lawrence Venuti,9 a ética com a alteridade do texto estrangeiro, com os seus outros, deve ser contemplada. Essa dimensão de respeito à estrangeiridade do texto de partida foi mobilizada na tradução de As guerrilheiras; porém, foi também necessário aderir a um projeto tradutológico de tendência mais interventiva. Em termos gerais, pode-se dizer que a tradução de As guerrilheiras se deu em resposta a um impulso, a um estímulo. Foi esse o modo encontrado para fazer o projeto wittigiano chegar ao português, ao Brasil, ao século XXI: uma resposta, uma reação ao texto original. Num plano mais específico, três aspectos podem ser destacados no âmbito das escolhas tradutológicas que compuseram tal projeto. Um deles é, como dito, uma atuação, até certo ponto, interventiva por parte das tradutoras. De algum modo, o texto original pede por uma tradução forte, por um texto igualmente potente. Afinal, trata-se de Guerrilheiras. Para que cheguem até nós, com a força e a potência revolucionárias que lhes são próprias, não basta permitir, mediante escolhas linguísticas, que atravessem as fronteiras das línguas e existam do lado de cá. Em outras palavras, a revolução da linguagem preconizada pelas Guerrilheiras precisa ser ouvida e replicada pela tradução. Ela precisa responder a esse elã, passando, claro, por escolhas. Precisa assumir uma tarefa de recriação, interventiva, num certo nível, mas nunca de forma autônoma, sempre em resposta ao texto original. Ao serem transpostas para realidades brasileiras, As guerrilheiras soarão de outro modo, voarão de outros modos, revolucionarão de outros modos. E, para que explodam deste lado, do lado do português, é necessária uma atuação enérgica, uma força, uma atividade de recomposição que pode ser definida como interventiva. Em outras palavras, para que a potência do texto seja transferida, é necessário que as Guerrilheiras se atualizem no momento que povoam outra língua. E um dos exemplos mais evidentes dessa atividade de intervenção pode ser encontrado na tradução dos próprios nomes das Guerrilheiras: ce qui les désigne commme l’œil des cyclopes, leur unique prénom, osée balkis sara nicée

iole coré sabine danièle galswinthe edna josèphe10 o que as nomeia como o olho dos ciclopes, seu único nome próprio, oseias balkis sara niceia iole coré sabine daniela galsuinta edna josefa11

Em princípio, traduzir nomes próprios vai na contramão do que seria uma tradução que respeita a alteridade do texto fonte, deixando estranhezas soarem, fazerem-se presentes no texto de chegada. Porém, nesse caso, o respeito passa também por uma ideia de expansão das Guerrilheiras, pela criação de mecanismos de identificação, por uma nova roupagem necessária para que se produzam adesões nas leitoras e nos leitores deste lado do Atlântico. Em outras palavras, o respeito pelo projeto utópico wittigiano implica a inclusão de outras alteridades nesse projeto, a ampliação do seu alcance mediante um mecanismo de aproximação do texto de seus leitores situados no Brasil de hoje, mais de 50 anos após a publicação de Les Guérrillères na França. Para que as Guerrilheiras aterrissem neste lado de cá, é fundamental deixar que coisas que se ligam possam se ligar, não eliminar os efeitos comparativos. Pode-se, por exemplo, lançar um olhar trans-histórico para a tribo de mulheres Guerrilheiras mobilizando, ainda que com cautela, referências do matriarcado de Pindorama, de Oswald de Andrade12. Ou, por que não?, pode-se evocar, inclusive, a versão mitológica das Amazonas guerreiras no Brasil indígena, que remete ao mito das Icamiabas,13 mulheres guerreiras de uma tribo sem homens, vivendo numa sociedade matriarcal. Tais referências, quando mobilizadas, permitem leituras do texto situadas, próximas de imaginários familiares aos muitos brasis do Brasil. Um segundo aspecto igualmente importante na tradução dos nomes próprios é a possibilidade de vocalizá-los, de evocar tais nomes, de pronunciá-los em português. Novamente, o respeito à alteridade do texto passa aqui também por uma atenção aos leitores e às leitoras no sentido de inseri-los na realidade das Guerrilheiras, com a possibilidade, inclusive, de 10 11 12

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Cf. venuti, Lawrence. Escândalos da Tradução: por uma ética da diferença. Trad. Laureano Pelegrini, Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Dias Esqueda e Valéria Biondo. Bauru: edusc, 2002.

wittig, Monique. Les Guérrillères, op. cit., p. 15. Id. Ibid., p. 11. Cf. amaral, Maria Carolina de Almeida; nodari, Alexandre. “A questão (indígena) do Manifesto Antropófago”. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, 2018. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rdp/a/ nRTJWzK4pkWq8CMwG7Lqz7G/?lang=pt>. Cf. almeida, Luiz Sávio; galindo, Marcos; silva, Edson. Índios do Nordeste: temas e problemas. Maceió: Edufal, 1999. Disponível em: <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Amindlin-1999-amazonas/ Mindlin_1999_AsAmazonasOuIcamiabas.pdf>.

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proncunciar seus nomes com alguma familiaridade. Nesse sentido, verter nomes próprios para o português é também uma forma de realizar um possível ethos da epopeia wittigiana. Ainda que escrita no ano seguinte a maio de 1968 e, claro, em franco diálogo com ele, a prosa de Monique Wittig vai além, extrapola, extravasa. Sua potência e sua capacidade de atravessar temporalidades explicam, há quem diga, a ratificação do maio de 1968, mas também sua necessidade de expansão.14 Portanto, são efeitos políticos que decorrem dessa escolha, que permeia todo o livro, de “transladar” as Guerrilheiras para o Brasil permitindo-lhes, inclusive, serem chamadas por seus nomes brasileiros. Elas são Niceia, Daniela, Josefa, Lélia, Isadora. São Marlene, Gabriela, Domingas, Helena. São Regina, Madalena, Cecília. E, por que não?, se atualizadas em realidades brasileiras do século xxi, são também mulheres de periferia no Brasil, mães solo de comunidades periféricas cujas vivências práticas se aproximam do que poderíamos reconhecer como um matriarcado. Traduzir nomes próprios, foi, portanto, uma escolha política de atualização do texto; de permitir que ele seja (re)situado e (re)atualizado; seja lido também pelas lentes de uma realidade corrente no século xxi no Brasil, produzindo conexões possíveis, e, em todo caso, realizando esse ethos politemporal e de abertura do texto. Em outras palavras, por se situar em uma realidade movente, de contornos fluidos, o projeto das Guerrilheiras pode ser expandir para outras realidades, traduzindo-as, mas também se deixando traduzir por elas. Ainda no que concerne a essas aberturas, às indefinições do texto que o fazem grande, inclusivo, politemporal, algumas escolhas passaram por manter, senão estranhezas, aspectos que chamam a atenção. Ou, em diálogo com Antoine Berman,15 aspectos que convergem para a formação de redes semânticas no texto, isto é, modos de dizer, composições específicas que tecem sentidos na obra. Por vezes, esses sentidos se constroem por meio de distorções na língua e na sintaxe. Um exemplo de tais composições pode ser lido em um dos trechos traduzidos acima citado, e aqui retomado: [Elas dizem] que no começo estão prensadas umas contra as outras. Parecem ovelhas negras. Elas abrem a boca para balir ou dizer alguma coisa, mas não há som que saia. Seus cabelos, seus pelos encaracolados estão grudados na testa. Elas se deslocam na superfície lisa, brilhante (grifos meus).16 Apesar da menção à uma anterioridade, da narrativa que supostamente remeteria a um tempo passado, um começo que antecede o agora, os verbos franceses são usados no presente. A tradução, propositadamente, restaura essa escolha no português. A temporalidade habitual que pres-

supõe, com alguma linearidade, a ordem passado, presente e futuro, é perturbada pela escolha do tempo verbal. As Guerrilheiras nos contam sobre o começo, supostamente um “antes”, mas o situam no presente. Essa sobreposição de temporalidades diz algo sobre a própria revolução em curso. Ainda que exista um começo, não há um passado que dite os rumos do presente e nem um futuro a ser antecipado, vislumbrado. O tempo é de rupturas. É de ganhar espaço para o novo, para a invenção. As guerrilheiras não são estáticas. A prosa de Monique Wittig desliza, se mantém numa zona cambaleante. A tradução, por sua vez, busca responder a isso, (re)produzir esses movimentos. Mediante escolhas tais como as aqui exemplificadas, pensadas todas as vezes e com uma atenção desenvolvida às várias camadas do texto, a tradução foi se compondo. Foi ganhando vida própria, sendo ao seu modo, mas sempre como resposta, como refração. Se por um lado composta de decisões refletidas, por outro se abriu ao extravasamento, deixando, por vezes, que o texto transbordasse. E, nessas fendas, partindo do sujeito coletivo de enunciação “elas” e do embaralhamento temporal que privilegia o presente, a seguinte derivação pode ser feita: a revolução é feminina, é agora!#

14 Cf. <https://www.franceculture.fr/oeuvre/les-guerilleres>. 15 berman, Antoine. La Traduction et la lettre ou l’auberge du lointain. Paris: Éditions du Seuil, 1999. 16 wittig, Monique. Les Guérrilères, op. cit. 2019, p. 25.

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MEMÓRIAS DO PLAZA

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anuel Solano nasceu na Cidade do México e, atualmente, vive em Berlim. Partindo de sua experiência individual como corpo dissidente (no seu caso, de pessoa não-binária que perdeu a visão em decorrência de uma complicação provocada pelo hiv), examina como a cultura pop produz identidades conflitantes e molda sensibilidades. ¶ A exposição Heliplaza explora a relação de Solano com os shoppings centers que frequentou com a família durante a infância, quando ainda enxergava, através da ativação de um espaço mental de lembranças. O projeto é resultado direto do lidar de Solano com as memórias de seu crescimento e com o edifício Copan, onde o Pivô está localizado. Para a realização da mostra, Solano, que pinta diretamente com as mãos, aplicando a tinta na tela, partiu de uma maquete do espaço expositivo, que também pôde ser conhecida através de seu toque. ¶ A dupla portuguesa João Mourão e Luís Silva, que assina a curadoria da exposição, conversou com Solano sobre a mostra aberta em setembro deste ano. [LF]

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JOÃO MOURÃO, LUÍS SILVA Manuel, é muito bom estabelecer este diálogo virtual, considerando a atual situação da pandemia de Covid-19. A sensação é a de que faz uma eternidade que estivemos juntos pela última vez — creio que no início de março do ano passado —, no seu estúdio em Berlim, e discutimos o projeto para o Pivô; parece que vivíamos em um mundo completamente diferente. Começando pelo começo, como você tem lidado com esse novo estado de normalidade? E como ele afetou a sua prática? MANUEL SOLANO Quando nos encontramos em março de 2020, tinha acabado de montar um estúdio temporário em Berlim. Ainda não tinha sequer assimilado todo o peso daquele momento, mas, desde antes de ter ficado cegue, eu estava trabalhando no sentido de me estabelecer longe de casa. Tínhamos começado a trabalhar em três telas de grande escala para essa exposição, além de alguns modelos tridimensionais. Lembro que muitos aspectos dessa exposição futura me pareceram muito novos, embora eu a estivesse planejando já há algum tempo, e acabara de pedir que minha assistente produzisse um modelo arquitetônico em escala do Pivô. Tinha acabado de saber da arquitetura, vamos dizer, peculiar do espaço. Então tive que ir à Cidade do México, e planejava voltar a Berlim depois de três semanas para continuar e finalizar a produção. Ou seja, estava quase pronto para trabalhar a todo vapor. E então começou o lockdown. Depois da chateação de encontrar um voo adequado rumo à Europa, voltei para meu estúdio em Berlim, mas fiquei paralisade, sem conseguir trabalhar muito, já que as restrições às viagens impossibilitaram as pessoas com que trabalho de virem me ajudar. Então assumi o treinamento de outras pessoas, para ensiná-las as técnicas que compõem o método de pintura com o qual tenho trabalhado nos últimos anos. Daí, no meio disso tudo, tive que me mudar outra vez e montar o estúdio em outro espaço. Assim, por um período longo, senti como se nadasse contra a corrente enquanto produzia essa exposição. Agora estou finalmente instalade e, já faz um ano, encontrei estabilidade, o que me fez muito bem, não apenas em termos de conseguir trabalhar, mas na vida em geral. JM, LS Vamos falar de Heliplaza, que é, simultaneamente, o título da sua exposição e o nome de um shopping center na Ciudad Satélite, o bairro onde você cresceu, subúrbio da Cidade do México que se desenvolveu a partir dos anos 1950. Por que essa referência é importante para você e para a exposição? MS Sempre tive um amor especial por shoppings centers. Onde eu cresci, no subúrbio de uma grande cidade, não havia muito o que fazer a não ser ir a um ou outro shopping. Lembro-me com nitidez de uma tarde de domingo, daquelas em que você começa a sentir aquele pavor se infiltrar quando pensa que o fim de semana vai acabar e haverá escola no dia seguinte. Tinha sete anos e me lembro de me sentir triste sem saber por quê. Meus pais também pareciam estar meio

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para baixo, todos na casa estavam quietos e reservados. Então senti a necessidade de estar num shopping. Rodeado por desconhecidos que não interagem, mas olham para as vitrines, o chão brilhoso e as novidades. Perguntei à minha mãe se podíamos ir ao shopping e algo na expressão dela me disse que ela conseguia ver a tristeza por trás do meu pedido. Então ela se virou para o meu pai e repetiu a minha proposta. E não foi preciso dizer nada, simplesmente concordamos em silêncio que a melhor coisa a se fazer naquele momento era ir ao shopping, mesmo que não tivéssemos nada para fazer lá. Eu adoro até mesmo o ruído de fundo que há nos shoppings, gostaria que ele estivesse disponível como uma opção ao procurarmos na rede por sons ambiente relaxantes. E amo em especial o fato de os shoppings terem uma identidade ou personalidade que se expressa sobretudo visualmente. Essa personalidade afeta tudo, desde aquilo que podemos encontrar lá até a forma como as pessoas se comportam naquele espaço. E, nesse sentido, Heliplaza é um mistério. É um shopping com uma personalidade muito forte e peculiar. Construído numa encosta muito íngreme, o prédio tem duas entradas principais, uma no topo da montanha, e outra na base. E a parte interna do prédio tem a forma de uma espiral que contorna um espaço vertical e circular. Foi mobiliado com materiais que, no final dos anos 1980, pareciam modernos. O logo do shopping me parecia ter um design excelente, pois faz lembrar as letras P e H, ao mesmo tempo que transmite a forma espiralada do interior do prédio. Esse logo sintetiza o design, a personalidade da arquitetura e dos serviços oferecidos lá. No entanto, algo que não sei identificar parece estranho no Heliplaza, já que ele permanece meio vazio desde que estou vivo, abrigando sobretudo dentistas e agências de turismo e não lojas de moda ou entretenimento, o que faz dele um lugar fascinante. JM, LS Você mencionou que a arquitetura do Pivô é peculiar, e também como os shoppings, tem sua própria personalidade identificável. Isso é algo que você está explorando no momento? Um senso de autoexpressão por meio da arquitetura e da decoração? MS Quando estava prestes a me formar no ensino médio, tivemos pequenos workshops sobre a escolha de carreiras, e me lembro de responder uma espécie de questionário em que pediram que eu pensasse nas atividades que me fazem sentir inspirado ou criativamente abastecido. Recordo que me surpreendi comigo, pois as primeiras respostas que me ocorreram foram folhear livros de arquitetura e design de interiores na Gandhi, uma livraria mexicana um pouco no estilo da Barnes&Noble. Ou seja, em vez de pinturas, preferia imagens de casas bonitas ou prédios com atitude. Não foi uma decisão consciente, no entanto. Logo antes de ficar cegue, tinha terminado uma pintura chamada Interiores Requintados e Inovadores para esta Estação, que retratava um enorme e luxuoso banheiro com janelas altas. Dediquei bastante atenção ao detalhe da torneira da banheira, e fi-

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quei muito orgulhose de como capturei bem a refração de luz naquela superfície. No entanto, preciso admitir que meu principal objetivo com aquela pintura não foi alcançado. Queria que minha pintura tivesse a aparência daquelas fotografias estampadas nas revistas de decoração da minha mãe, nas quais a luz parece um pouco nebulosa. Acho que sempre tive apreço por arquitetura e decoração. E uma relação frustrada com elas, agora que não posso enxergar. E sim, me lembro, por exemplo, de banheiros da minha infância que tinham muita personalidade. Lembro de ter sete ou oito anos e achar uma maravilha o fato de minha tia avó Ana, cujo estilo e carisma eu já registrei em pinturas, ter pia e privada pretas. JM, LS Você também menciona se lembrar de, quando criança, sentir, digamos, tédio ou ansiedade com relação ao futuro, e de como os shoppings e a personalidade deles podem combater esses sentimentos. Qual o papel das memórias de infância e, aliás, da sua biografia, neste projeto? MS Sim, quando eu era criança, tinha a impressão de que nada ruim poderia nos acontecer num shopping. E de que ir ao Plaza (assim chamávamos o shopping) era uma atividade em si. Ciudad Satélite, o subúrbio onde nasci, é literalmente construída em torno desse shopping. Se você olhar para um mapa da Satélite, verá que as ruas se concentram em circuitos ao redor dessa única e grande área central, que é onde o Plaza Satélite foi erguido. Acredito que ele também foi o primeiro shopping do México. Em certos momentos da minha vida, a depender da parte do subúrbio em que morava, eu tinha que atravessar um ou dois shoppings para ir à escola ou ao restaurante da minha família para almoçar, uma ou duas vezes por dia. E quando íamos visitar meu pai, nosso destino era o shopping. Ou ir de carro até San Antonio, no Texas, e ir ao shopping. Meu shopping preferido em San Antonio tem uma escultura de um gigantesco par de botas de cowboy do lado de fora; e, na parte interna, um longo corredor branco e vazio, onde há um letreiro com o nome: The Promenade. Uma das pinturas desta série retrata um mural que eu costumava ver em um dos shoppings. Uma vez, quando era bem pequeno, minha mãe, enquanto me carregava no colo, apontou para essa pintura, na qual alguns pássaros voavam em direção ao sol poente. Mas, a princípio, eu não consegui distinguir a forma dos pássaros. Minha mãe precisou explicar que víamos os pássaros da pintura como se estivessem de costas, já que voavam para longe de nós. Então, daquele ângulo, não se via o bico, o rosto e nem mesmo a cabeça dos pássaros, apenas suas asas. E foi assim que compreendi, pela primeira vez, os conceitos de profundidade, campo e perspectiva. Num shopping. Certamente, estou correspondendo à mesma parte de mim que anseia por esses lugares e por sua aparência. Tentei pintar isso por algum tempo. Como uma pessoa que pinta, gostaria de ser capaz de expressar a personalidade e a humanidade tanto em pinturas de prédios ou itens decorativos, como de pessoas.

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JM, LS Falamos de como sua exposição por um lado entrelaça, a partir das suas memórias de infância, a arquitetura e o design de interiores, e, por outro, a cultura do shopping center, para resgatar noções de autoexpressão e talvez até de autoestima. Além disso, você inclui elementos escultóricos, pinturas e escolhas expositivas que se associam a piscinas comunitárias e centros esportivos. Você diria que testemunhamos uma convergência da decoração, do consumismo e do lazer enquanto elementos decisivos para suas recordações de infância e para o processo de desenvolvimento e cristalização da sua personalidade? Esses três elementos podem ser considerados forças queer dos subúrbios da Cidade do México dos anos 1980? MS Acho que há definitivamente uma verdade nisso. Crescendo na classe média baixa, esses espaços e atividades certamente tinham um encanto especial para mim e ajudaram a moldar minha personalidade. Não sei se diria que as expressões na direção das quais gravitei, no que diz respeito a meu gosto por decoração e arquitetura, são queer por si só. No entanto, elas são, por vezes, camp e kitsch, características que, com frequência, são sinalizações visuais para a expressão do queer. JM, LS Geralmente os artistas tentam se afastar de suas biografias, num movimento que, com sorte, garantirá a eles uma voz mais universal. Você, por sua vez, tem feito da sua biografia, da sua vida, o núcleo narrativo e formal da sua prática. Heliplaza é, por certo, um perfeito exemplo disso, mas projetos mais antigos, como a série Blind Transgender with Aids [Transgênero cegue com Aids], colocam você mesmo no centro do palco. A que você atribui isso? MS Há muito tempo, certamente desde antes de atuar como artista profissional, só me propus a fazer trabalhos a respeito das coisas que constituem minha personalidade e identidade. Nem sempre esteve claro, mas agora consigo enxergar como meus objetivos são a comunicação e a intimidade, e que tenho usado meu trabalho como meio para esse fim. Esse sempre foi meu objetivo, mesmo que eu não soubesse. Nunca se tratou de uma escolha consciente entre produzir trabalhos sobre mim ou sobre outros temas. Pessoalmente, não consigo entender como uma pessoa faz arte que não fale sobre si mesma, simplesmente não sei como alguém lida com isso ou qual seria o apelo desse trabalho. Enquanto crescia, sempre dei como certo que eu era o personagem principal na história da vida, e simplesmente comecei a fazer arte de acordo com isso. Porém, acredito vivamente que, ao abordar a mim mesme com meu trabalho, posso alcançar outras pessoas — que talvez o vejam e sintam que aspectos semelhantes de sua personalidade foram reconhecidos. Gosto de fazer uma arte de sabor forte e totalmente carregada. Não tenho tempo para o críptico, o inerte e o estéril. #

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Las panteras

Pimienta, en un acto de locura se desnuda en público y deja que todos vean su verdadero ser.

i En una gran hoguera

(pimienta era una foca)

Quemó todo Quemó todo

Sal se hace mar en pristina comunión.

pie de pan duro camina inmaculado sobre braza blanca

Foca vista a Sal y juegan en la eternidad de las olas.

Ojos bizcos de un sinfín de flechas clavadas en un bizcocho borracho

iii

No quedo nada? no.

el viento apantalla con su lengua muda las llamas

soy madera, por que no me queme? En Brazil el fuego baila sobre los techos corazón a baño María Cuece en cacerola tronco tierno que nace sin voz

Los bomberos se disfrazan de panteras para ahuyentarlo haciendo gruñidos roncos

ii

Las panteras regresan a sus casas a quitarse el hollín y lamerse las quemaduras

Nada se salvó, solo fotos quedan de los techos que una vez fueron

Sal y Pimienta (inseparables)

iiii

se separan frente al mar

La pérdida echa una lista,

Sal mira el mar

1-poema chino milenario se consume entre las llamas.

llora lágrimas saladas

Decía así: “Donde reencarnan las rosas, crecen espinas”

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Irreemplazable perdida

que tardan años en llegar.

iiiii

Recordándonos:

Soy ceniza echa vajilla en casas de familias y fantasmas que coleccionan esqueletos firmados

Lo que vemos ya ocurrió

Lo que se quema se hace nube La nube se hace pis El pis cura quemaduras

iiiii Loro amazónico dibuja con su pico el cosmos a cambio de pan con banana Loro escribe su último poema: "Por que soy loro-soy fénix soy pan con banana repito, repito y repito. a mis obras el fuego no las quema"

iiiiii estrellas miran el suceder esa noche olvidan su lugar en las constelaciones cambiando el destino para siempre de lo que el fuego consume Avergonzadas, parpadeantes besitos de luz envían desde arriba

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Las panteras

Foca avista Sal e brinca pela eternidade em suas ondas.

i

O mijo cura queimaduras

iiiii iii

Em uma grande fogueira Queimou tudo Queimou tudo pé de pão duro caminha imaculado sobre a brasa branca Olhos vesgos de um sem-fim de flechas cravadas em um bolo bêbado Não sobrou nada? não. sou madeira, por que não me queimei?

coração em banho-maria Cozinha na panela tronco terno que nasce sem voz

o vento abana com sua língua, muda as chamas No Brasil o fogo dança sobre os telhados

Papagaio escreve seu último poema “Porque sou papagaio – sou fênix

Os bombeiros se disfarçam de onças para afugentá-lo, soltando grunhidos roucos

sou pão com banana Sou o que Repito, repito e repito:

Nada se salvou, só sobraram as fotos dos telhados de outrora As onças voltam para suas casas se livrando da fuligem e lambendo as queimaduras

“minhas obras o fogo não as queima”

iiiiii estrelas observam o que acontece

iiii A perda produz uma lista,

ii

Papagaio amazônico desenha com o bico o cosmos em troca de pão com banana

1-poema chinês milenar se consome entre as chamas.

Sal e Pimenta

nesta noite esquecem seu lugar nas constelações mudando o destino para sempre daquilo que o fogo consome e enviam lá de cima envergonhados beijinhos de luz

Dizia o seguinte: (inseparáveis) se separam perante o mar

que demoram anos a chegar “Onde reencarnam rosas, crescem espinhos” Insubstituível perda

Sal observa o mar chora lágrimas salgadas

Pimenta, em um ato de loucura, se desnuda em público e permite que todos vejam seu verdadeiro ser. (pimenta era uma foca) Sal se transforma em mar em comunhão imaculada.

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iiiii Sou cinza transformada em louça em casas de famílias e fantasmas que colecionam esqueletos assinados O que se queima se transforma em nuvem A nuvem se transforma em mijo

Recordando: O que vemos já aconteceu


REVISTA PIVÔ #2

1 Editorial: Num outro nível de vínculo Fernanda Brenner, Leo Felipe, Victor Gorgulho 4 Sobre a coreografia Davi Pontes, Deise de Brito, Diambe da Silva, Inaê Moreira, Maria Noujaim 14 Heterotopias animais: Macau e outras estórias Ana Vaz, Juliana Fausto

26 Um mundo onde cabem muitos mundos Catalina Lozano, Arturo Escobar

46 Em 50 anos? Bernardo José de Souza, abigail Campos Leal

62 O que acontece com uma residência artística quando ela é feita na própria residência Adriano Machado, Christian Salablanca Díaz, Clarissa Diniz, Denise Alves-Rodriguez, Eduardo Cardoso Amato, Estevão Parreiras, Iagor Peres, Julia da Mota, Julia Rocha, Marcela Vieira, Matheus Chiaratti, Pedro Zylbersztajn, Walter Solon, Yhuri Cruz 72 Traduzindo Les Guérrillères Beatriz Santiago Muñoz, Raquel Camargo 86 Memórias do Plaza João Mourão, Luís Silva, Manuel Solano 93 Las panteras Eduardo Navarro 98 Colaborações

Revista Pivô #2 Vol 1. n. 2, 2020/2021/2022 Setembro 2021 Edição trianual Direção editorial: Fernanda Brenner Edição: Leo Felipe e Victor Gorgulho Produção executiva: Carolina de Sá Projeto gráfico: Bloco Gráfico Tradução: Ana Ban e Julia de Souza Revisão: Eloah Pina e Richard Sanches

Colaborações: abigail Campos Leal transita entre Arte y Filosofia. Vive e trabalha em São Paulo; Adriano Machado é artista visual. Vive e trabalha em Salvador; Ana Vaz é artista e cineasta. Vive e trabalha em Paris, Lisboa e Brasília; Arturo Escobar é antropólogo e Professor na Universidade da Carolina do Norte. Vive e trabalha em Chapter Hill, EUA; Beatriz Santiago Muñoz é artista. Vive e trabalha em San Juan, Porto Rico; Bernardo José de Souza é curador e escritor. Vive e trabalha em Madri, Espanha; Catalina Lozano é curadora e escritora. Vive e trabalha na Cidade do México; Christian Salablanca Díaz é artista. Vive e trabalha em San José, Costa Rica; Clarissa Diniz é curadora, escritora e professora em arte. Vive e trabalha em Recife; Davi Pontes é artista, coreógrafo e pesquisador. Vive e trabalha no Rio de Janeiro; Deise de Brito é artista da dança e do teatro, educadora e escritora. Vive e trabalha em São Paulo; Denise Alves-Rodrigues é tecnóloga autodidata, artista plástica e astrônoma amadora. Vive e trabalha em São Paulo; Diambe da Silva é artista visual. Vive e trabalha no Rio de Janeiro; Eduardo Cardoso Amato é artista. Vive e trabalha em Castro; Eduardo Navarro é artista. Vive e trabalha em Buenos Aires; Estevão Parreiras é artista. Vive e trabalha em Goiânia; Iagor Peres é artista. Vive e trabalha em Recife; Inaê Moreira é mulher negra, artista e mãe de Ayomi. Vive e trabalha em Salvador; João Mourão e Luís Silva são curadores. Vivem e trabalham em Lisboa, Portugal; Júlia Rocha é artista. Vive e trabalha em São Paulo; Juliana Fausto é filósofa e escritora. Vive e trabalha em Curitiba; Manuel Solano é artista. Vive e trabalha em Berlim, Alemanha; Marcela Vieira é curadora, editora e tradutora. Vive e trabalha em São Paulo; Maria Noujaim é artista. Vive e trabalha entre a Serra da Mantiqueira e São Paulo; Matheus Chiaratti é artista. Vive e trabalha em São Paulo; Pedro Zylbersztajn é artista. Vive e trabalha no Rio de Janeiro; Raquel Camargo é tradutora. Vive e trabalha em São Paulo; Walter Solon é artista. Vive e trabalha em Colônia, Alemanha; Yhuri Cruz é artista visual e escritor. Vive e trabalha no Rio de Janeiro.

Imagens: Eduardo Navarro, Ideas and sketches flying in the mind wind, 2021. Cortesia do artista. (capa, p. 92, 95) Davi Pontes e Wallace Ferreira, Repertório N. 1, 2018. Foto: Victor de Beija. (p. 4, 5) Diambe da Silva, Direito ao ócio, 2018-2021. Foto: Herbet de Paz. (p. 8) Maria Noujaim, Estudos para metamorfose das plantas, 2020. Cortesia da artista. (p. 12) Ana Vaz, É noite na América, still de filme em processo, 2021. Cortesia da artista. (p. 14, 15, 24, 25) Uma história natural das ruínas, vista da exposição, Pivô, São Paulo, 2021. Foto: Everton Ballardin. (p. 30, 40, 45) Luiz Roque, República, vista da exposição, Pivô, São Paulo, 2021. Foto: Everton Ballardin. (p. 52, 53) Eduardo Cardoso Amato, Pavê, fotoperformance, 2020. Foto: Fernanda Pompermayer. (p. 65) Matheus Chiaratti, 2020. (p. 68) Beatriz Santiago Muñoz, Oriana, film still, 2021. Foto: Bleue Liverpool. (p. 77, 78) Manuel Solano, Heliplaza, vista da exposição, Pivô, São Paulo, 2021. Foto: Everton Ballardin. (p. 91) Fonte: Signifier Papéis: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo), Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) Impressão: Ipsis

Pivô Direção artística: Fernanda Brenner Direção executiva: Paula Signorelli Coordenação executiva: Carolina de Sá Curadoria: Leo Felipe Produção Pivô Pesquisa: Thiego Montiel Zeladoria e montagem: Matias Oliveira Assistência de produção: Marina Schiesari Assistência institucional: Jessica Gonçalves Atendimento ao público: Daniel Lima Apoio administrativo: Luana Lima Limpeza e manutenção: Cristina Serra Assessoria de imprensa: Pool de Comunicação Assessoria financeira: 2P Financeiro Assessoria jurídica: Pannunzio Trezza Donnini Advogados Contabilidade: Quality Contabilidade O Pivô agradece a seus mantenedores: Alexandra Mollof, Almeida e Dale, Ana e Marco Abrahão, Andrea e José Olympio da Veiga Pereira, Bergamin & Gomide, Carbono Galeria, Coleção Coletiva, Fabiana Brenner, Fernando Marques Oliveira, Fortes D’Aloia & Gabriel, Galeria Kogan Amaro, Galeria Luisa Strina, Galeria Millan, Galeria Nara Roesler, Georgiana Rothier e Bernardo Faria, Graham Steele e Ulysses de Santi, José Leopoldo Figueiredo, Marcelo Tilkian Maia, Mendes Wood DM, Vera e Luiz Parreiras, Virgínia e Daniel Weinberg, Vivien Hertogh e Jairo Okret e aqueles que preferiram permanecer anônimos. As opiniões expressas nos artigos desta revista são de responsabilidade exclusiva das/os autoras/es. A grafia das designações de gênero está a cargo das/os mesmas/os. © Todos os direitos reservados por Pivô Arte e Pesquisa. Não é permitida a utilização, total ou parcial, por qualquer modalidade, de qualquer elemento desta publicação sem a prévia autorização expressa pelo Pivô Arte e Pesquisa.

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