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Ficha Técnica: Heranças Globais – Memórias Locais Revista de práticas de museologia informal Nº 2. primavera 2013 Diretor Pedro Pereira Leite ISSN - 2182-7613 Edição: Marca d‟ Água: Publicações e Projetos Redação: Casa Muss-amb-ike Ilha de Moçambique, 3098 Moçambique Lisboa: Passeio dos Fenícios, Lt. 4.33.01.B 5º Esq. 1990-302 Lisboa -Portugal

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Índice Museologia informal e Estudos Africanos ......................................................... 7 Cartografias dos Estudos Africanos .................................................................. 9 1ª Questão: Os Estudos Africanos como campo de investigação científica .............. 10 2ª Questão: De que forma a proposta das Epistemologias do Sul se constitui como uma problemática dos Estudos Africanos .............................................................. 15 3ª Questão: Qual é a relação entre Epistemologias do Sul e Estudos Africanos. ...... 29 A proposta da museologia informal como campo de investigação-ação ......... 35 Horizontes da emancipação Social: As epistemologias do Sul, o Barroco e a Fronteira ....................................................................................................................... 36 A Metodologia de investigação-ação .................................................................. 42 As Narrativas Biográficas e as metodologias de investigação-ação ................. 50 A Saúde Materno-Infantil e os Problemas do Desenvolvimento ..................... 61 Poética das viagens museológicas ................................................................. 75 Diário de Bordo .............................................................................................. 76 Moçambique ................................................................................................... 77 Viagens na fronteira (parte 1) .......................................................................... 88 Tertúlias na Baixa .......................................................................................... 95 Oficina do Riso ................................................................................................ 99 O Ciclo de Cinema Escravatura e Tráfico de Seres Humanos ........................ 102

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Apresentação

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Museologia informal e Estudos Africanos

Heranças Globais - Memórias Locais apresenta neste número uma reflexão temática sobre a relação da Museologia Informal e os Estudos Africanos. Como temos vindo a referenciar esta é uma revista semestral que apresenta os resultados do projeto de investigação ação em curso no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra financiando pela FCT com o nome “Heranças Globais: a inclusão dos saberes das comunidades no desenvolvimento integrado do território” (SHRH/BPD/76601/2011). Este projeto foi submetido no painel de avaliação de “Estudos Africanos” da FCT. A natureza interdisciplinar dos Estudos Africanos, e a sua intima relação ás questões dos processos de globalização, nomeadamente as questões da memória e do esquecimento justificam uma reflexão deste nosso projeto sobre esta questão. Um dos objetivos fundamentais do nosso projeto é o estabelecimento de uma rede de parcerias com outros investigadores e atores locais. Deste modo, neste número iniciamos igualmente a colaboração de outros autores, com o objetivo de ir progressivamente alargando o seu espaço de influência. Centrar na questão dos Estudos Africanos, permite-nos centrar as publicações das revistas em questões temáticas. A centralidade dos temas permitem aumentar a focagem em assuntos relevantes para os processos de investigação. Uma outra alteração, esta mais prosaica, diz respeito à periodicidade. Mantemos a sua natureza semestral, mas balizamos a publicação em torno da Primavera e Outono. Cremos que assim acentuamos melhor a sua natureza de “Encontros” dialógicos. A direção, junho 2013

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Sobre Estudos Africanos

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Cartografias dos Estudos Africanos1 Trabalhamos neste artigo um conjunto de questões relativas aos Estudos Africanos, aos Estudos Sobre o Desenvolvimento e sobre as Epistemologias do Sul. Durante os trabalhos de preparação da investigação no sul de Moçambique, nomeadamente na revisão de literatura, formos encontrando algumas questões umas de natureza teoria, outras de natureza metodológica que mereceram alguma atenção e reflexão. Aqui procuramos aprofundar essas questões duma forma crítica O artigo encontra-se articulado em torno de três questões. Estas questões não esgotam os campos de reflexão, mas constituem um importante momento reflexivo que permite o desenvolvimento dos trabalhos de investigação no âmbito do projeto Casa Muss-ambike. Ao mesmo tempo constituíram um importante contributo para o Curso de Formação Avançada do Doutoramento em Estudos Africanos, realizado por Ana Fantasia no ISCTE-IUL, com a qual temos vindo a desenvolver os projetos em Moçambique.

Por Pedro Pereira Leite, CES- Universidade de Coimbra. e Ana Fantasia –CEA- ISCT-IUL. (Uma parte deste texto foi usada nos trabalhos do Curso Avançado de Estudos Africanos) 1

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1ª Questão: Os Estudos Africanos como campo de investigação científica

relevância para o conhecimento científico é a resposta epistemológica que vamos procurar responder.

Iniciemos pela reflexão sobre o que distingue os fenómenos estudados pelos Estudos Africanos no âmbito da ciência. Os A investigação científica pode definir-se Estudos Africanos são uma disciplina como o processo de busca de científica ou um campo disciplinar? conhecimento. O conhecimento científico é um processo de observação do real, Sabemos que o pensamento científico se construído por determinadas ferramentas tem vindo a consolidar em termos de através de determinados procedimentos, disciplinas. As primeiras ciências modernas por determinados sujeitos. Esta distinção a afirmarem-se, de onde derivaram os entre o sujeito que conhece e o objeto que modelos disciplinares foram a ciências é alvo da ação desse sujeito constitui um ditas puras, ou exatas. As ciências da dos paradigmas em que assente a ciência matéria. A busca dos elementos básicos do moderna. Um conhecimento que se diz mundo exterior. A ciência construi também objetivo, porque parte da observação de uma linguagem, a matemática. Das factos, da sua aceitação como fenómenos primeiras ciências, com base na alegoria interdependentes, mas ao mesmo tempo da ramificação foram emergindo diferentes constrói uma consciência dos seus limites. disciplinas científicas que estudavam O conhecimento científico, pelo seu fenómenos naturais. A astronomia, o procedimento opõe-se assim a outras mundo exterior, a Ciência Natural, o formas de pensamento, tais como o mundo vivo, a geologia, o planeta, a pensamento mágico ou o senso-comum. medicina o corpo humano, a psicologia a A delimitação do objeto de investigação constitui-se como a questão crucial na formação do conhecimento científico. O quê, como e para que se observa o real é uma operação mental, feita por um sujeito: Um cientista, segundo determinados procedimentos, expostos claramente aos seus pares. É a relação entre o sujeito e o objeto. O cientista, para além de aplicar os métodos e os procedimentos científicos, é também um produtor de conhecimento. E a produção desse conhecimento inicia-se com o questionamento sobre o real. A ciência observa fenómenos. Fenómenos que se constituem como questões relevantes para a comunidade científica, para a sociedade em geral. Para além da delimitação do seu objeto, importa também questionar a sua relevância, para a comunidade científica em particular e para a sociedade em geral. Qual será então a delimitação do objeto da investigação em estudos africanos e a sua

mente humana, a etologia, o comportamento animal, a sociologia, a organização das sociedades, a antropologia, o homem e a sua relação com o mundo. Com o crescente conhecimento dos fenómenos do mundo as diferentes áreas foram-se fragmentando em especialidades. Algumas delas deram origem às ciências aplicadas. A medicina, por exemplo, uma área praticada desde a antiguidade, é um campo onde o método científico produz um crescimento e eficácia extraordinária, como consequencia no aumento da qualidade de vida e na longevidade da espécie humana. Também os fenómenos humanos, mais diretamente relacionados com a organização da vida social dos homens, do seu passado, forma alvo da proposta de estabelecimento das regras do conhecimento científico. Embora seja um fenómeno que se gerou mais tarde do que nas ciências naturais, a ciência social, desde os trabalhos de Augusto Comte que aspira à constituir-se como metodologia

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cientifica e a compreender as leis gerais da vários olhares disciplinares era convocada. sociedade. A essa multidisciplinaridade foi então adicionara a defesa do dialogo Se olharmos atentamente para as diversas interdisciplinar a a convocação da reflexão disciplinas, no âmbito da sua génese, de metodologia interdisciplinares. Mas a verificamos então que o que as distingue é questão não se reduz apenas a isso. A fundamentalmente o campo de observação mobilização dos contributos de diversas do sujeito que observa e o conjunto de disciplinas implica a produção de produtos regras e procedimentos que utiliza. Desse de investigação mestiços. modo ao que se observa, como se observa é também relevante entender de onde se O caso dos Estudos Culturais na sua observa. relação com as ciências da educação é um exemplo paradigmático. Quando em A questão dos Estudos Africanos como meados dos anos cinquenta os sistemas de campo disciplinar é útil para entender esta ensino europeus se tornam universais questão de “onde se observa”, já que pela (universal no sentido de se estender a sua definição plural de “estudos” parece todo o universo do Estado, embora a teoria indicar uma pluridisciplinaridade e assim do ensino para todos também se torne integrar um novo tipo de investigações universal no sentido da sua expansão por científicas interdisciplinares que mais do todos os estados do mundo, em ações de que se definirem pela delimitação do seu disseminação promovidas pela UNESCO), objeto, definem-se pelo seu processo. emergem as questões da compreensividade dos sistemas. Isto é por Vale a pena olhar para a formação do via da consciência de que à “alta cultura” paradigma científico moderno para objeto de estudo dos sistemas escolares entender a forma como a fragilidade das coexistia com uma “cultura tradicional ou fronteiras disciplinares. Uma primeira popular” vinculada pelas organizações distinção, entre a observação do mundo sociais e comunitárias. Colocava-se então natural e o mundo dos homens, permite o problema de como incluir esses fazer evoluir a ciência natural e a formação elementos, até aí considerados marginais, das suas disciplinas de observação, do para as escolas. Facilmente se entende infinitamente grande (astronomia) ao que com as questões das migrações, dos infinitamente pequeno (física). Do estudo grupos minoritários estes problemas da matéria ao Estudo da Vida é um passo. tornam rapidamente objeto de estudo, A ciência natural ainda dividida nos três mobilizando diferentes áreas disciplinares, reinos (mineral, vegetal, e animal) ev olui sejam dos estudos literários, da história, a partir a classificação das espécies com a da antropologia, da sociologia, de aplicação da metodologia de Lineu e com a psicologia, criando “diálogos horizontais” ideia da evolução de Darwin. Mantendo entre diferentes ramos das disciplinas naturalmente a divisão entre natureza e o tradicionais, na busca de propostas homem, estudado pela Filosofia e pela metodológica de compreensão de Teologia. Só em pleno século XIX, o diversidade e da inclusão. humano será alvo do olhar científico, com base no mesmo paradigma. Um outro exemplo desta questão, talvez até mais relevante para a questão dos Uma outra questão que tem levantado estudos africanos são os “Estudos para o alguma polémica na academia, coloca-se Desenvolvimento”. A ideia de com a emergência da interdisciplinaridade. desenvolvimento no discurso Grosso modo podemos dizer que quando o contemporâneo está presente uma ideia de objeto de investigação deixava de ser que a mobilização da vontade de mudança, investigação pura para passar ser de transformação da sociedade se mede investigação aplicada a convocação de por indicadores do progresso.

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Etimologicamente desenvolvimento significa o crescimento natural das forças contidas num ponto2. Mas, para além do seu significado etimológico a palavra foi apropriada pelas ciências sociais, em particular pela economia (BEIROCH, 1986) e rapidamente se torna num conceito interdisciplinar. Rogério Roque Amaro, em 2003 propôs uma leitura crítica deste conceito através da sua releitura crítica (AMARO, 2003). O autor situa a sua formulação inicial em Adam Smith na “Riqueza das Nações”3. No entanto a questão emerge fundamentalmente no pós-guerra como um conceito que situa as condições da aplicação dos processos de industrialização nas sociedades do Norte. O Desenvolvimento seria então um modelo de aplicação de um conjunto de procedimentos e técnicas que faria crescer as economias e criava bem-estar nas sociedades.

quarenta a sessenta do século XX, o desenvolvimento torna-se num objeto semiófero. A independência é feita, entre outras bandeiras, para trazer desenvolvimento e bem-estar aos países colonizados. Ainda que essa visão reducionista tivesse sido criticada por diversos economistas, a avaliação da aplicação dos planos de desenvolvimento nesses países evidenciou, num primeiro momento, a grande eficiência das campanhas de saúde pública e dos planos de vacinação. Através dessas ações tinham aumentado a esperança média de vida e diminuído a mortalidade, especialmente a mortalidade infantil. Por seu lado a aplicação dos planos de educação tinham aumentado a taxa de escolaridade de muitos dos países recémindependentes. Tudo faria esperar progressos da produtividade económica e do aumento generalizado do Bem-estar social.

Com a emergência das independências do Sul, na Ásia e na África, nas décadas de Contudo, como muitos estudos acabaram por revelar, não se verificou esse progresso e em muitos casos, tinha havido 2 Desenvolvimento, acto de desenvolver. mesmo um retrocesso nos indicadores de Crescer, fazer medrar. desenvolvimento para níveis anteriores à 3 Adam Smith, (1723-1790). Filósofo e independência. No início do sáculo XX, Economista inglês. A sua obra mais famosa, “O quando se estabelecerem os Objetivos de Inquérito sobre a Natureza e Causa da Riqueza Desenvolvimento do Milénio, falava-se das das Nações, publicado em 1776, é uma das “Décadas perdidas”, do desenvolvimento obras fundadoras ciência económica clássica. Segundo Adam Smith, é o funcionamento do em África. mercado e a liberdade de troca (livre-câmbio) que fundamenta a riqueza das nações. A sua teoria irá também opor-se às teorias da fisiocracia, fundamentado a mecanização e a divisão do trabalho como criadores de riqueza. Segundo Adam Smith, o interesse individual, em concorrência no mercado permitiria a criação da máxima riqueza para a sociedade (SMITH, 1987). Adam Smith, com a sua teoria do mercado fundamenta a ideia do crescimento contínuo e cumulativo (ou acumulativo se preferirmos). A esta ideia opunha-se na época as conceções de Thomas Malthus (1766-1834) o economista inglês que argumentava a necessidade de equilibrar o crescimento geométrico da produção de bens, com o crescimento exponencial do consumo dos recursos.

A questão que interessa aqui relevar é que este campo de Estudos, que agrega a economia, a sociologia, a antropologia, a história, a saúde, a gestão e as questões ambientais (pela preocupação do desenvolvimento integral), a educação instalou-se nas academias permitindo desenvolver a tal interdisciplinaridade. O mesmo acontece com o Estudos Africanos. Como refere Franz-Wilhem Heimer na sua apresentação dos Cadernos de Estudos Africanos em 2001, “Estudos Africanos em Portugal, Balanços e Perspetivas” os Estudos Africanos

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emergem, como campo institucional nos anos sessenta na Europa (HEIMER, 2001,17), como uma substituição dos antigos Estudos Coloniais. Com a recomposição do sistema mundo emergem na Europa os “area studies” tomando como objetos de estudos as problemáticas específicas das regiões. Ora se nesse primeiro momento se o que caracterizava o “africanista” era o seu interesse por África, portanto o local de investigação, os seus objetos de investigação deveriam estar ligados a um espaço específico; rapidamente algumas questões se irão levantar rompendo esta barreira. Um exemplo dessa rutura com o local é o caso da apropriação da “condição africana” como objeto de investigação científica pela da História e pela filosofia. No primeiro caso verificámos a emergência nos anos 70 do século XX da História de África através da escola dos Analles. A questão dos povos sem história foi, no âmbito da renovação da historiografia francesa, uma das questões abordadas pela “Nova História”. Os historiadores salientaram então que a História era em grande medida a narrativa dos vencedores. Os vencidos, como era o caso dos africanos até aí sujeitos à condição colonial, estavam ausentes das narrativas. Henri Moniot escrevia em a “história dos povos sem história” que escreveu “Havia a Europa e era toda a História. Por cima e à distância, algumas grandes civilizações. Cujos textos, ruínas, por vezes os laços de parentesco, de troca ou de herança da Antiguidade Clássica, nossa mãe, ou a amplitude das massas humanas que opuseram aos puderes e ao olhar europeus, faziam admitira às margens do império de Clio, aos bons cuidados dum orientalismo apaixo-nado pela filologia e pela arqueologia monumental e votados, frequentemente, à ostentação das “invariantes” espirituais. O Resto: povos sem história, como de comum acordo os consideravam o homem da rua e os manuais da Universidade” (Moniot, 1977, p. 129).

Se até aí os africanos eram objeto dos estudos estudos etnográficos, na maioria dos casos conduzidos por missionários. (uma tradição que se enraizava mais na prática protestante do que na católica), as independências e as lutas anticoloniais chamaram a atenção para a necessidade de escrever essa história. A monumental obra de Joseph Ki-Zerbo, encomendada pela UNESCO é um bom exemplo da busca da legitimação no passado das novas nações, como de resto eram as narrativas nacionais europeias. Também a história faz emergir tomará consciência de incluir nas suas narrativas os processos que levaram à dominação das nações africana. Um caso paradigmático é consciência do fenómeno negreiro e sua influência na diáspora africana pelos outros continentes. A célebre questão do “The Black Atlantic abordada por Paul Gilroy (Gilroy, 1993) que recupera o conceito de dupla consciência. Este coinceito havia sido introduzido pelo filósofo americano W. Du Bois (1868-1963) como uma característica dos negros americanos que transportavam simultaneamente a consciência da sua nova condição de cidadania em simultâneo com a consciência da escravatura, conduz os Estudos Africanos para além do topoi continental, para se centrar nos fenómenos das influências globais. Agora o objeto de estudo dos Estudos Africanos alarga-se para os fenómenos contemporâneos da africanidade vivida, para explicar como é que os descendentes dessa diáspora leem a sua pertença ao mundo. A dupla consciência traduz uma dupla referenciação, por um lado a experiencia e a memória da escravidão e do racismo e por outro lado o seu confronto com as trocas e influencias que sofrem nas sociedades contemporâneas em que estão inseridos Esta condição africana de resto já havia sido proposta por Aimé Césaire (19132008) (Césaire, 1971) e Léopold Sédar Senghor (1906-2001) por volta de 1935 (SénghoR, 1977) que utilizam o conceito de negritude para designar a

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“personalidade africana”. Nas palavras de Senghor, “o que faz a negritude dum poema, é menos o tema do que o estilo, o calor emocional que dá vida às palavras, que transmuda a palavra em verbo” (Margarido;1964, p V). Por via da literatura emerge igualmente um campo de reflexão conhecida por Estudos Póscoloniais. Inicialmente ligada aos estudos literários4. O Pós-colonialismo procurou igualmente repensar a estrutura epistemológica das ciências sociais e humanas, colocando-se do ponto de vista das sociedades periféricas (um outro conceito introduzido por Immanuel Wallerstein (sociólogo, nasceu em 1930), (Wallerstein, 1994) e Samir Amin, que classifica as sociedades hegemónicas como Centrais e as dominadas como Periféricas (Amin, 1970). A Teoria Pós-Colonial efetua por via dos discursos e das narrativas a análise os processos da dominação (política e cultural), e de afirmação da diferença (de grupos e de culturas) que muitas das vezes são bandeiras de movimentos sociais. Sistematizando a questão que se coloca numa reflexão sobre a epistemologia destas heranças nos Estudos Africanos podemos sumariamente concluir que na sua génese concorrem não só as questões da formação de diálogo entre as disciplinas 4

Considera-se usualmente que a Teoria PósColonial se formalizou com o Livro de Edward Said, professor de literatura na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos da América. Edward Said (1900-2000) nasceu m Jerusalém e publicou em 1978, o livro Orientalismo (SAID, 2004), onde considera que a ideia de Oriente é uma construção do Ocidente para justificar a sua dominação política. Segundo Said, o discurso das ciências sociais e humanas foi moldado pelos padrões ocidentais que se tornaram hegemónicos pela dominação colonial. Embora esta questão não seja exclusiva de Edward Said porque já em Frantz Fanon (1925-1961), que no ano da sua morte pública “Os Con-denados da Terra”, (FANON, 1977) fez uma crítica aos mecanismos de dominação colonial do ocidente; o Orientalismo tornou-se uma referência para os trabalhos académicos sobre Pós-colonialismo.

científicas, como também nela concorre a evolução do ponto de vista da análise dos fenómenos, na sua relação com o ponto de observação. Ou seja para lá duma evidência de que os Estudos Africanos se constituem maioritariamente como um campo disciplinar nas universidades do norte (ou se quisermos dos centros de produção de conhecimento dominante), há também a dificuldade de delimitar o objeto de estudo apenas aos fenómenos que ocorrem no continente africanos. Assim, dados os vários processos em que os africanos estiveram envolvidos o objeto de estudo poderá situar-se numa ligação duma qualquer comunidade ao universo cosmológico africano. A questão dos Estudos africanos no caso português adiciona ainda algumas especificidades à questão. Como antigo país colonial que foi, adicionado a um regime político que alicerçou a sua ideologia identitária ao longo de cinquenta anos numa narrativa duma “nação pluriracial e pluri-continental” na base da qual manteve uma longa e desgastante guerra de quase cem anos. (em algumas leituras o processo de colonização do interior de África é retratado como tendo-se iniciado nas “campanhas de pacificação” do século XIX, considerando-se que o estado de militarização, nem a resistência africana nunca cessaram). Ora esta narrativa identitária teria tido uma certa dificuldade em ultrapassar o “trauma”, podendo identificar-se ao nível dos discursos uma transmutação sucessiva duma narrativa do “espírito de cruzada”, “missão civilizadora”, “luso-tropicalismo” e finalmente “comunidade lusíada”. É nessa “turbulência” que os Estudos africanos se instalam em Portugal. Será apenas nos anos 90 do século XX que podermos falar numa emergência dos “estudos africanos em Portugal”, instalando-se na academia por via de centros de investigação, licenciaturas, mestrados e mais recentemente em doutoramentos. (Heimer, 2001, 21).

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Neste ponto da nossa reflexão importará fundamentalmente olhar para os fenómenos africanos na sua complexidade contemporânea para procurar respostas para os problemas contemporâneos. A consolidação deste campo de estudos dependerá fundamentalmente dos contributos que outras formas de olhar a realidade podem trazer. Analisar os fenómenos africanos e os seus processos de conhecimento podem ser um deles

2ª Questão: De que forma a proposta das Epistemologias do Sul se constitui como uma problemática dos Estudos Africanos As epistemologias do Sul constituem uma proposta epistemológica alternativa à “epistemologias do norte”, feita por Boaventura Sousa Santos em Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition, publicado em Nova Iorque pela Routledge, em 1995. Nesse trabalho o autor ensaia uma visão crítica ao paradigma científico que segundo ao autor conduziu à hegemonia da produção saber sobre o mundo do ocidente. Este saber, segundo o autor encontra-se numa crise paradigmática. A esta crise ensaisa uma leitura do paradigma emergente. A leitura crítica inicia-se com “Um discurso sobre as ciências”, o seu discurso de sapiência proferido na Universidade de Coimbra na aula magistral de abertura do ano letivo de 1986. (SANTOS, 1987). O texto será sucessivamente enriquecido com “Introdução a uma ciência pósmoderna”, (1989), “Pela Mão da Alice: o social e o político na Pós-modernidade”, 1994. Em “Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition, New York: Routledge (1995) surge a sua proposta de uma “epistemologia do sul”, proposta que é retomada na “Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência”

publicado em 2000 e “Gramática do tempo: para uma nova cultura política” publicado em 2006. Finalmente em 2010, em colaboração com Maria Paula Meneses apresenta um volume “Epistemologias do Sul”onde reúne várias contribuições teóricas feitas a partir do sul. Devemos logo de início vincar a formação em direito do autor e realçar a importância das questões da regulação e da ação política. Na leitura epistemológica do autor a questão da regulação versus emancipação estarão sempre presentes, o que implica uma valorização do que se poderá considerar a “função social da ciência”. O seu discurso e a sua proposta assume deliberadamente um posicionamento crítico face á ordem do mundo e uma busca de alternativas teóricas. Isso mesmo ressalta das críticas que faz ao paradigma epistemológico que conduz à hegemonia saber do ocidente. Um paradigma que, segundo ao autor sustentou o domínio do ocidente sobre o mundo. Esse paradigma é o produtor da globalização do mercado de onde emergem trocas desiguais. As trocas desiguais criam as dependências e desregulações ambientais. Assume-se que partes dos problemas do mundo atual resultam da aplicação de resultados dessa ciência moderna, propondo-se a análise dos processos que podem favorecer um rutura. A resposta epistemológica da busca dum novo posicionamento paradigmática insere-se nestas preocupações. Ao partir do postulado de que parte desta ciência moderna deixou de dar respostas inovadoras aos problemas da sociedade atual, o autor procura, na esteira da análise sobre as revoluções científicas de Khun (Khun, 2009), antever um novo paradigma através da escuta “das vozes do mundo”. Se o saber produzido pelas ciências deixou responder aos problemas do mundo e se transformou num saber que se limita a reproduzir a si mesmo sem perspetiva crítica, há que procurar formular novas perguntas para obter novas respostas. O saber científico deixou de ser inovador e emancipador. A sua proposta é procurar saberes emergentes em locais e

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em comunidades que resistem hegemonia dessa ciência eurocêntrica.

à A emergência destas “Epistemologias do sul” opõe-se à “Epistemologia do Norte”. A epistemologia do norte é uma É por essas razão que afirma que a epistemologia de dominação que se produção do conhecimento científico está organiza em estruturas verticais. O numa fase de transição paradigmática. paradigma hegemónico foi o que permitiu Uma transição de poderá durar várias a consolidação dos projetos de poder patriarcais, de exploração décadas e que permite a abertura de coloniais, espaços de inovação crítica. Uma inovação assalariada. Constitui-se com base no crítica que ainda será tributária dos fetichismo da mercadoria, na dominação paradigmas dominante em termos identitária desigual é o fundamento da desigual. O novo paradigma metodológicos e conceptuais, mas que troca deverá permite a emergência de vozes alternativo, contra-hegemónico constituir-se como epistemologias alternativas de conhecimento não hegemónico. Boaventura Sousa Santos horizontais. Epistemologia de diálogo e de defende que para reconhecermos a relações iguais inovação é necessário partir de comunidades científicas não hegemónicas. No campo das ciências sociais o projeto de Estas comunidades científicas são dominação tinha conduzido problemáticas constituídas por investigadores teóricas estéreis da como, “por exemplo, a empenhados nas suas próprias relação entre estrutura e ação ou entre a investigações, sem coação de organizações análise macro e a análise micro e que, em hegemónicas. Ora ao propor essa meu entender, a distinção e a relação descentração das organizações de saber fundamental a fazer era entre acção hegemónicas procura processos de conformista e acção rebelde”. produção de saberes diferentes e silêncios (SANTOS, 2006). Esta distinção vai que resulta dos processos de globalização. alicerçar o trabalho científico do autor na A partir dos resultados da globalização busca da consolidação do novo paradigma hegemónica, a alternativa teoria de crítico, diversificado observado a partir do Boaventura Sousa Santos procura ancora- Sul. Este empenhamento a partir das se naquilo a que chama uma “globalização ações rebeldes permitem observar práticas alternativa (SANTOS, 2000, p 000). O de conhecimentos construídos por domínio do paradigma científico do norte processos cognitivos diferenciados, que levou ao esquecimento e ao silenciamento geram experiencias sociais alternativas de de outros saberes. A cartografia destes resistência e emancipação social. silêncios levará Boaventura Sousa Santos a reunir num conjunto de nove títulos com A proposta de conhecer a partir da o tema geral “Reinventar a emancipação perspetiva do sul implica uma posição do Social: para novos manifestos” onde conhecimento feito a partir dos grupos apresenta as propostas de globalização marginalizados, dos grupos sociais vítimas alternativa. Por exemplo o sexto volume do sofrimento e da opressão das operações dessa coleção, com o título “Vozes do de globalização. O conhecimento torna-se Mundo”, (SANTOS, 2008) é apresentado assim numa prática global que procura experiências sociais alternativas à ultrapassar o conformismo que reduz a hegemonia globalizadora. São propostos realidade a processos de conciliação. A outros modos de vida e outros saberes epistemologia do sul é uma proposta que, segundo o autor, permitem poética e utópica gerada a partir das reconhecer os conhecimentos rivais. Estes injustiças do mundo. As epistemologias do conhecimentos rivais são essenciais para sul constituem-se como uma proposta de procurar o que faz mover o mundo e o que enfrentamento e confronto com as práticas dá sentido ao mundo. hegemónicas, com o objetivo de acabar

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com o sofrimento e pensamento alternativo.

de

criar

um tema que tem estado em debate desde os anos noventa, nos debates sobre a interdisciplinaridade5.Os quatro princípios A crise do paradigma científico que fundamentam o fim das disciplinas são a complexidade, a indeterminação, a moderno incerteza e os sistemas abertos com fonte A crítica à epistemologia do norte é feita a de inovação que se opõem a sistemas partir de três contextos de crise fechados que tendem para a entropia. paradigmática. O contexto do conhecimento, o contexto sociopolítico e o Os trabalhos sobre este novo paradigma contexto cultural. O contexto da crise do emergente são objeto dos trabalhos de Sousa Santos em conhecimento tem vindo a ser tratado Boaventura por Boaventura Sousa Santos desde a “Reeinventar a emancipação social” publicação em 1987 do “Discurso sobre as (SANTOS, 2003). Nele são apresentados Ciências Sociais”, posteriormente os desenvolvimentos das epistemologias desenvolvidos na Introdução a Uma femininistas, pós-coloniais e dos estudos a paz, que confrontam os Ciência Pós-Moderna em 1989 e na “Crítica para da ciência clássica, da Razão Indolente: contra o desperdício procedimentos da Experiência”,publicado em 2000. revelando que essa ciência moderna Nesses trabalhos Santos defende que o estava comprometida com os preconceitos conhecimento dominante criado pela sociais. Sousa Santos defende uma ciência Ciência Moderna não está de acordo com o prudente para um conhecimento prudente. As novas linhas de reflexão para a ciência, que sabemos sobre as coisas do mundo. apontadas pelo autor, implicam uma Os fundamentos da crítica da relação entre relativização dos conceitos apontados para externos da ciência. O sujeito que conhece sobre objeto que é limites conhecido através do método de desenvolvimento do conhecimento passa observação, que fundamenta este pela instrumentalização dos argumentos conhecimento, tem vindo a ser do conhecimento. O conhecimento medeia questionado desde os anos 20, com os o pensamento mas não medeiam os trabalhos sobre a relatividade de Einstein, sistemas. Os limites do conhecimento entre outros. O sujeito que observa derivam das relações de poder na interfere no objeto. A partir desta sociedade. constatação, Santos defende que não há uma neutralidade axiológica. A ciência é O século XVIII transforma a ciência num comprometida e não há um conhecimento discurso de poder e com o positivismo o sobre o objeto que não envolva também o pensamento científico domina o processo do conhecimento (os conhecimentos rivais) sujeito que conhece. e subordina a filosofia. Por essas vias, o científicos, enquanto Igualmente a emergência das teorias dos conhecimento sistemas, da cibernética e as teorias do discurso de poder, limita a emergência de caos, levam a que o conhecimento seja vozes rebeldes. Este é o limite da hoje entendido como uma constelação de epistemologia do norte. É um discurso complexidade interdependente em sobre a natureza que reflete o poder na processo. Exclui-se portanto, das ciências sociedade. Como pensamento hegemónico sociais a possibilidade de determinar leis gerais. A ciência não é mais de que um 5 modo de explicar a realidade, através de A Carta da Transdisciplinaridade foi aprovada em 1994 nos Encontros da Arrábida e defende determinados procedimentos que a o fim das disciplinas e a necessidade de interferem com essa mesma realidade. O interdisciplinaridade. Entre outros participaram conhecimento é hoje mais uma Edgar Morin, Lima de Freitas e Bensarb probabilidade, o que aliás constitui um Nicolescu Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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exclui outros conhecimentos. Para a epistemologia do conhecimento científico moderno não há conhecimento fora de si. Por isso é necessário criar outras epistemologias para dar vozes a outras formas de saber. As epistemologias do sul têm como limites o seu próprio rigor. O rigor constitui a base da emergência de outros conhecimentos.

capitalismo americano, construído com base na manipulação da natureza leva a que a autonomia da ciência seja inoperante. A ciência é sustentada pelas corporações e desenvolve o que o capital exige. A longo prazo a ciência até talvez não seja necessária se não ultrapassar a sua circularidade. A circularidade da ciência é o que conduz a formulação de que apenas são problemas científicos, os problemas que essa ciência formula. Ora como a fenomenologia determina os conteúdos, a ciência hegemónica evita formular problemas que não podem ser determinados cientificamente. A ciência moderna demonstra uma grande dificuldade em lidar com problemas de sentimentos e de espontaneidade.

Em relação à crise do contexto social e político, decorre do esgotamento teórico e analítico da ciência no mundo moderno. O esgotamento do futuro é visível pela crise financeira que é um sintoma de esgotamento do modelo. A crise financeira recentra o norte as questões da resolução dos problemas do mundo. O postulado hegemónico de desenvolvimento gera não mais do que subdesenvolvimento e o A negação do outro leva a que, por modelo de conhecimento moderno não exemplo, as conceções de natureza permite vislumbrar alternativas. indígenas não sejam consideradas, porque na mairia dos casos, as comunidades Santos afirma “depois de cinco séculos a indígenas relacionam-se com a natureza ensinar o mundo o que é a civilização e o com base nos seus sistemas de saber, de que é a democracia e o que são os Direitos pensar e de sentir. Este processo, leva a Humanos, a Europa já não tem muito a que o sistema social e político da ensinar ao mundo” a partir do momento modernidade esteja impossibilitado de se em que dentro de si própria a democracia radicalizar. O mundo contemporâneo o pensamento radical, e os Direitos Humanos são suspensos. domesticou exigindo-se hoje uma antropologia da Governada por vice-reis, personagens nomeadas fora dos processos de decisão emancipação (livro em elaboração) onde democrática, para tomarem decisões sobre defende que é também necessário o mundo, a Europa e o seu sistema político descentrar as formas de pensar das revela que está incapaz de aprender com ciências sociais. A domesticação do 6 os sinais do mundo. A tradição colonial da pensamento (selvagem ) levou a que a Europa impede-a de apreender o mundo. produção do conhecimento passa a ser As epistemologias do sul são também feita fora da sociedade, criando-se espaços de reconstrução das economias da instituições (escolas e universidades). Esta solidariedade e de dar voz a outros separação entre o saber e o fazer em instituições que apenas se dedicam à processos produtivos. produção de conhecimento impede a Quais são esses pilares emergentes? emergência de ações rebeldes porque Segundo o autor há impulsos temporais produz conhecimento padrão. Ou seja, é contraditórios. Há claramente dois tempos. impossível ter uma ideia revolucionária Um marcado pela urgência do agir. A numa instituição reacionária. ecologia, o aquecimento global, o modelo energético são sinais de que são necessários novos modelos de produção e de consumo. A ciência, no fundo tem 6 O pensamento selvagem de Levi-Straousse sustentado o modo de produção de 1962, onde faz a analise dos mitos e dos hegemónico. O modo de produção do ritos da sociedades arcaicas Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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A impossibilidade de formular perguntas pertinentes e a probabilidade de obter respostas fracas é o tem central do livro “A Gramática do Tempo” (2006), onde faz a leitura do que é ser cosmopolita hoje e coloca em cena os horizontes de possibilidade emancipatória. São horizontes que se situam em torno de uma economia verde versus um capitalismo verde, buscando soluções nos mercados livres e não regulados com base em investimentos verdes. Em relação às alterações que emergem no contexto cultural, o terceiro elemento analisado por Boaventura Sousa Santos no âmbito do seu trabalho de descolonizar as ciências sociais, tem como base as evidências que se tem revelado nos últimos anos sobre a sensação de esgotamento da ciência. A ciência já não responde aos problemas do mundo. Por outro lado, desde há várias décadas que vários povos, sujeitos à colonização, indígenas e afrodescendentes tem vindo a fazer várias reflexões epistemológicas e a construir ações de emancipação social. Alguns países emergentes, como por exemplo a índia e a china, ao ascenderam como poderes no mundo transportam também novas formas de refletir epistemologicamente, refazendo as leitura das relações entre o ocidente e o oriente. Uma das ideias que está errada é a crença de que a ciência é uma criação da Europa. Por exemplo a ideia de que a matemática é feita pelos árabes, esquecendo o contributo de Al-khwazmi7, ou de que a a Revolução Industrial só aconteceu na Europa, esquecendo a destruição da indústria oriental, ou de que os europeus foram os primeiros a chegar à América. A história da sociologia começa no positivismo, esquecendo os trabalhos de Ibn Khaldun sobr o Asbyyah (o assobio, como sinal identificador da solidariedade clânica). A transfiguração é tão grande que

muitos dos “heróis” da ciência, como por exemplo Arquimedes é retratado como um homem branco. Negação da epistemologia dos outros e a sua apropriação pela ciência moderna é um exemplo de criar propostas de transição epistemológicas, centradas nas diversidades do sul. Características das Epistemologias do Sul A crítica ao pensamento e à ciência moderna, formado pelas sociedades ocidentais e que se tornou dominante no mundo global parte da constatação de que na sua formulação existe um sistema de distinções entre o visível e o invisível. É o que o autor chama de “pensamento abissal” (SANTOS. 2010, 30) uma característica ontológica que distingue o visível do invisível. O objetivo do subjetivo. Uma metáfora que acompanha a ontologia ocidental deste a metáfora platónica da alegoria da caverna. O que é iluminado e o que está na sombra. A razão é o instrumento dessa operação. Uma linha que é abissal que torna invisível tudo que acontece do lado de lá da linha. Assim, representa-se do norte imperial, colonial e neo-colonial do lado de cá da linha, correspondendo, o lado de lá da linha ao sul colonizado, silenciado e oprimido. O outro lado da linha, o subjetivo não tem realidade ou, se a tem, é em função dos interesses do norte operacionalizados na apropriação e na violência. Esta impossibilidade de operacionalizar o outro conduz à impossibilidade da copresença entre as partes. No domínio da produção conhecimento pelo pensamento ocidental a ciência e o direito constituem as formas paradigmáticas do pensamento abissal da ontologia ocidental. No pensamento científico ela define a distinção entre verdadeiro e falso. No campo jurídico define a distinção entre legal e ilegal. A distinção entre o legal e o ilegal é um instrumento normativo da ação.

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A ideia de zero, que assume valor associado a outra coisa e da unidade, o um, como ideia que A proposta de observação deste fenómeno, segundo Sousa Santos, parte da análise põem em causa a ideia de Deus Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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das tensões visíveis entre a apropriação e a resistência, no cruzamento com as tensões invisíveis presentes a regulação e a emancipação do sistema. Essa forma de pensamento dual pode expressar-se em múltiplas representações. Uma das formas propostas pelo autor é aquilo a que chama a “cartografia moderna dual”. A cartografia moderna exprime na sua componente visível pela cartografia jurídica e na componente invisível na cartografia epistemológica (SANTOS, 2010, 30). A primeira, a cartografia jurídica, regula o que é incluindo e o que é excluído, criando os termos das “legalidades” e das “ausências”, dos “não lugares” e dos “grupos humanos sacrificados”. Por seu lado a cartografia epistemológica coloca uma segunda linha de visibilidade invisíbilidade, determinando o que é conhecimento científico e exclui os nãoconhecimentos. Todo o saber do mundo constituído fora do paradigma científico. Os dados dos dos excluídos, dos ausentes são lidos e reinterpretados com as lentes da razão. As epistemologias do Sul tornam-se por essa via numa proposta de trabalho de criar uma “sociologia das ausências” e uma sociologia das emergências”. Esta proposta conduz a uma “ecologia dos saberes” como prática de regulação social. A aplicação desta proposta é operacionalizada num primeiro momento por uma diagnose dos diferentes tipos de saber. Saberes produzidos pelo conhecimento científico e pelo pensamento não científico. No diagnóstico verifica-se um primeiro diálogo entre o conhecimento ocidental e os outros conhecimentos. De seguida propõe-se um diálogo entre saberes para centrar as análises nos elementos da convergência e nos denominadores comuns. O produto final é expresso através narrativas linguísticas e ações transformadoras. Ações que se centram em processos de resolução de problemas. A resolução de problemas concretos, como desafio das comunidades permite lançar o desafio de criar

instituições adequadas as intervenções no mundo real. Que espaço, que tempos e que formas de sociabilidade e podem reconstruir para evitar a reprodução da reprodução das linhas abissais. (SANTOS, 2010, p 56). Em suma a proposta da operação das epistemologias do sul assenta da desfamialização do que nos é familiar e na abertura de uma janela para a experiencia cognitiva do mundo. Implica produzir um estranhamento a partir do qual se reconstrói outros olhares e outras experiencias. Partimos do postulado de que a experiencia e o conhecimento é diverso e infinito. As epistemologias do sul devem captar os seus limites, incluindo as sensações, os afetos e a razão. Revelar a diversidade cognitiva do mundo é questionar o mundo. Do questionamento emerge ação. As epistemologias do sul deverão permitir a emergência de pensamentos alternativos. Por exemplo é importante questionar a ideia da universalidade. A verdade duma entidade não pode depender do seu contexto. A ideia do universalismo europeu por exemplo é uma falsa ideia. “Se é europeu não pode ser universal”, afirma Sousa Santos a propósito da questão dos “Direitos Humanos como campo de tensão global (Santos, 2006, 409). Este pensamento alternativo não prossegue a ideia do universal, propondo um dialogo a partir de campos de convergância e compromissos. Uma outra característica que este pensamento alternativo deve ultrapassar é a arcaica distinção entre conhecimento natural e conhecimento sobre a humanidade, seja no indivíduo, seja nos grupos. A separação entre o homem e a natureza é uma classificação artificial. Este pensamento emergente não é um conhecimento completo. Partindo da ideia da complexidade do mundo, não aspira à construção duma totalidade. Assumindo a incerteza recusa contudo a ignorância completa. Deve-se assumir como um

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conhecimento emergente em processo que assentar na em limites do rigor e no caráter retrospetivo da coerência. A verdade é o que acontece e o que desacontece. Que há as situações de bifurcação e impasse. Que se aprende e se desaprende no processo de aprendizagem de um dado conhecimento. O real deve ser concebido como uma entidade ativa que se oferece ou que resiste a ser conhecido por um certo tipo de conhecimento. E é sobre essas dificuldades que assenta o diálogo de saberes. Quanto aos limites externos à pragmática epistémica ela quebra a relação entre o sujeito e o objeto. A ciência tradicional necessita de objetos. A questão é definir quais são os objetivos de conhecimento e a sua relevância para a sociedade. As dificuldades do conhecimento alternativo revelam-se quando admite que nem todo o conhecimento é contável, e nem todos os conhecimentos são incomensuráveis. Os critérios de validação das epistemologias do sul são dados pelas ações que desencadeiam e pela sua adequação aos problemas do mundo. A proposta metodológica epistemologias do sul

das

espiritualidade como processo de conhecimento. As epistemologias do sul apontam para três caminhos pragmáticos, o de democratizar a democracia, o de descolonizar e o de desmercantilizar. São três campos onde emerge a indignação Sociologia das Ausências e Sociologia das Emergências8 A proposta de Boaventura Sousa Santos para uma Sociologia das Ausências e para uma Sociologia das Emergências e de uma Prática de Tradução emancipatoria através duma Hermenêutica Diatópica é apresentada na sua obra “Gramática do Tempo” (Santos, 2006, 87-161). Ele transporta também a formulação da Reinvenção da emancipação social, um objetivo teórico proposto pelo autor. Para Sousa Santo é necessário entender como é que estão a ser produzidas alternativas à globalização neo-liberal e ao capitalismo global, que constitui o corolário do pensamento ocidental. Tem como objetivo criar uma comunidade internacional independente, pró via do cruzamento de diferentes tradições teóricas, metodológicas e culturais a fim de constituir uma interação entre a cultura e o conhecimento. O reconhecimento das alternativas criadas pelas diferentes experiências sociais do mundo permite conhecer saberes muito mais amplos do que aqueles que a tradição da epistemologia do norte permite reconhecer. Por isso é necessário combater o desperdício das ideias e o desperdício da experiência (que o autor descreve na “Critica à Razão Indolente” (Santos, 2000), e dar visibilidade ao conhecimento alternativo. O conhecimento alternativo constitui uma ecologia de saberes. A razão cosmopolita é uma razão plural, aberta à diferença.

Os procedimentos da epistemologia do sul são definidos pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências, propondo uma ecologia dos sabres e uma tradução intercultural.As áreas de tradução intercultural são áreas que criam legibilidades entre os saberes, que relacionam os indivíduos com as comunidades, a relação entre os indivíduos e a natureza. A epistemologia do sul deve permitir a emergência da transcendência. A epistemologia ocidental faz uma distinção entre a imanência e a transcendência. Onde o primeiro se encontra nos limites da experiencia, sendo o transcendente o que se encontra para além da humanidade. Com isso a ciência 8 Artigo publicado por Boaventura Sousa cria uma rutura com a espiritualidade que Santos na Revista Critica de Ciências Sociais, é remetida para o campo da teologia. Nas 63, outubro, 2002, pp 237-280, no âmbito do epistemologias do sul há lugar para a projeto Reinventar a Emancipação Social Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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A compreensão do mundo a partir da razão e do conhecimento produzido pela racionalidade ocidental assenta na busca do domínio e controlo do mundo. É uma racionalidade que assenta numa determinada conceção de tempo e de temporalidade. Esta distinção é fundamental para compreender esta racionalidade. O tempo é compatado no presente ampliado no futuro. A temporalidade é linear.

Esta racionalidade arrogante, produz um pensamento em que nada existe fora de si próprio (desse pensamento) e nenhuma das suas partes pode ser pensada fora do seu todo (porque cada parte é uma parcela do todo). A razão indolente opera uma redução da multiplicidade do mundo e a linearidade do tempo (como por exemplo foi formalizado por Weber em “A Ética Protestante”, em que a ação virtuosa produz resultados virtuosos, e vice-versa) fundamenta um processo próprio de A contratação do tempo no presente cria entender o progresso com um único feixe uma conceção de totalidade. O presente é pré-determinado. um instante. A sua projeção no futuro permite planear e planificar as ações, Esta conceção da totalidade, pensada no abrindo também a capacidade de projetar paradigma da racionalidade indolente no futuro o tempo presente. impede-a de conceber outras visões do mundo (outras totalidades) sejam A expansão do tempo no futuro, por seu pensadas como heterogeneidades. Desta lado é feita pela compreensão da história maneira, as tensões sociais essenciais no como uma linearidade. Sendo linear o mundo contemporâneo, as tensões entre a tempo é possível perspetivar a sua regulação e a emancipação socais, que se continuidade. O plano faz para da traduzem em diferentes experiencias sociais, não podem ser resolvidas. A teoria prospetiva. e a prática são separadas. Apresentadas A alternativa proposta por Santo a esta como discrepantes, instaurando um hiato racionalidade indolente (porque se fechou de possibilidades para o pensamento e a em si própria e perdeu a capacidade de ação. Essa impossibilidade de pensar é pensar o mundo fora de si) é a particularmente evidente nas realidades constituição duma racionalidade dos chamados áreas periféricos e semiporque procura pensar cosmopolita. Essa racionalidade, ao invés prefiféricas, deverá ampliar o presente e conter o realidades a partir da sua própria matriz futuro. É uma racionalidade que necessita constitutiva. de traduzir a experiência do mundo. A necessário, segundo Sousa racionalidade cosmopolita não busca uma Torna-se teoria geral, mas procura comprrender o Santos criar uma alternativa a este pensamento hegemónico das ciências que está fora da racionalidade indolente. sociais. É aí que surge a sua proposta de A razão indolente, caracterizada por Sousa formular uma “sociologia das ausências” e Santos (Santos, 2000), é uma razão uma “ecologia dos saberes”, organizadas a impotente, porque nada consegue ver fora partir de novas formas de racionalidade de ela própria: uma razão arrogante, que surgem precisamente nas periferias porque não sente necessidade da pratica desse mundo hegemónico. incondicional da liberdade; uma razão metonímica, porque se reivindica como a A sociologia das ausências é um de conhecimento que única forma de racionalidade; e como uma procedimento razão proléptica, porque não se procura transformar objetos improváveis compromete a julgar o futuro porque em possíveis, como forma de transformar sendo uma racionalidade total no presente, as ausências em presenças. desmonta, pela retórica, todas as objeções possíveis. Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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Trata-se também de uma forma de resistência a esse pensamento que emerge da “razão indolente e preguiçosa” – que não se exercita porque se considera única e exclusiva. A sociologia das ausências é também um procedimento metodológico rebelde e emancipatório. É necessário demonstrar que existem pensamentos alternativos, é necessário reconhecer que a ausência não é mais do que uma negação das existências, ou uma incapacidade, voluntário ou não, de reconhecer o real.

das temporalidades; a do reconhecimento; a das escalas locais e globais; e aquela das produtividades. Cada uma dessas ecologias diz respeito às monoculturas acima enumeradas, apresentando contrapontos frutíferos entre a sociologia das presenças e a sociologia das ausências.

A sociologia das emergências enfrenta o mundo procurando encontrar nele os sinais existentes no presente como possibilidades de criar futuros. Trata-se de viver no presente os sinais do futuro. Propõe a realidade a partir das O pensamento produzido pela razão pensar metonímia e proléptica traduz uma visão experiencias do presente como hegemónica do mundo ignorante, residual, emergências do futuro. inferior, local e improdutiva. A sociologia das ausências visa sobretudo criar uma Ora a sociologia das emergências é carência e transformar a falta ou o constituída por uma ecologia dos saberes, desperdício de experiência social em que tem como objetivo identificar as campos de trabalho como forma de formas de saber e outros critérios de rigor. ampliar o mundo presente. Por isso, a Parte do princípio que não há ignorância e razão cosmopolita exige uma ecologia de não há saber completo. Considera que saberes que combatam as monoculturas. todo o saber é uma superação duma Na sociologia ocidental, as ausências são ignorância. Opõe-se assim à monocultura produzidas por meio de cinco modos (ou do saber. A ecologia das temporalidades, “monoculturas”): a monocultura do saber e parte do princípio de que o tempo não é do rigor; a do tempo linear; a da linear, e que as relações de poder são naturalização das diferenças; a da escala acentuadas peloa conceção do tempo de dominante; e, finalmente, aquela do cada conjunto social. Cada conjunto social produtivismo capitalista. tem as suas próprias temporalidades. A ecologia dos reconhecimentos procura Para a razão indolente tudo que não é revelar as identidades e as diferenças. A considerado produtivo no contexto neo- colonialidade do pensamento indolente liberal e de capitalismo global é diferencia a igualdade e a diferença. A considerado “improdutivo”. Estas ecologia das trans-escalas parte do ausências que deixam de lado, como não- princípio de que o local não é uma parte do existentes, outras formas de experiências global. Cada espaço existe sociais e outras visões do mundo. É esse o independentemente das dinâmicas globais objetivo da sociologia das ausências: e não se subordina a uma única escala de subverter a ordem de produção de temporalidade. Pelo contrário, a ecologia ausências transformando-as em objetos das trans-escalas procura revelar os presentes. Tornar possível como objeto de tempos vividos. Finalmente a ecologia da conhecimento o que está escondido, produtividade procura valorizar modos ignorado ou esquecido pelo pensamento alternativos de produção e colocar em dominante. Propõe a substituição das como prioritário objetivos de produção ao monoculturas por “ecologias”. A inversão, invés de objetivos de distribuição e de segundo Boaventura Sousa Santos é consumo. possível por meio de cinco modos, que caracterizariam a prática da sociologia das A sociologia das ausências procura emergências. a ecologia dos saberes; a substituir o vazio do futuro dado pelo Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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tempo linear (vazio porque é previsível) por um tempo de possibilidades plurais. Este feixe de possibilidades é operado no presente. O presente é então uma possibilidade. Um modo de viver e ver o mundo. O movimento do mundo vistos como possibilidade resulta da perspetiva de carência (algo que falta), da perceção da tendência (algo em processo) e a perceção de latência (o que está na frente do processo, o que já existe). A sociologia da emergência opera então sobre a possibilidade de ampliação dos saberes, das práticas e dos agentes, no âmbito da identificação das possibilidades de futuro. Ora essa semântica de expectativa manuseia possibilidades e potência social. Contudo as sociologias das ausências e a das emergências terão como resultado a produção de uma grande quantidade de realidades e objetos antes não existentes. São objetos mais fragmentados, formas mais caóticas e plurais do que aquelas antes vividas. Importa portanto afinar a operação metodológica capaz de compreender e ressignificar essas outras realidades. Esse procedimento metodológico deverá constitui um “procedimento de tradução” que contemple sua heterogeneidade e aponte, sobretudo, a não-univocidade de sentidos no mundo contemporâneo. A tradução das legibilidades reciprocas das experiencias do mundo, dos saberes e das praticas exige uma hermenêutica diatópica . Uma hermenêutica diatópica é produção de uma teoria da interpretação do conhecimento por zonas de contacto das visões do mundo. (um exemplo será a conceção dos Direitos Humanos, da Umma e do Dharma). As zonas de contacto são zonas de transformação em que cada um tem que se redescobrir através do outro. O procedimento metodológico de tradução exige portanto um rigor na definição do que se quer traduzir, quando traduzir, quem é que traduz e como se traduz. Em

relação ao que traduzir, apenas se torna possível quando à convergência de sensações. A tradução é um processo holístico. Por seu lado, só é possível traduzir quando há contacto. A questão de quem traduz é provavelmente a mais complexa. A representatividade do agente no grupo pode ser um indicador de seleção. Contudo, na sociologia das ausências e das emergências é necessário dar voz aos atores. Finalmente a questão de como traduzir abre a necessidade de construção de topoi (lugares de consenso), que permitam ultrapassar as dificuldades criadas pelas diferencias de línguas e linguagens, de locais e de situações. As práticas sociais articulam as palavras e os silêncios. O gesto do silêncio e a tradução do silêncio são os elementos mais exigentes do trabalho de tradução. Em suma através da re-invenção da experiencia procura-se criar novas constelações de saberes e de praticas sociais suscetíveis de produzir alternativas credíveis. A hermenêutica Diatópica conceção multicultural dos Humanos

e uma Direitos

Trata-se de um texto publicado em 2002 e parte duma questão sobre a interpretação dos direitos humanos como tema da politica internacional É um debate que situa a questão dos DH como um duplo debate, ora como um instrumento de emancipação social na Europa, ora como um instrumento de dominação europeia sobre o mundo. No primeiro caso, no âmbito europeu, os DH tornaram-se um tema polémico, com as força emancipatórias a defenderem, sucessivamente as questões das liberdades políticas, dos direitos económicos e dos direitos culturais e qualidade de vida, naquelas que são habitualmente consideradas as três gerações dos DH. Por outro lado, na afirmação a hegemonia europeia, os DH a par com a Democracia, eram um instrumento de afirmação

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política, onde a duplicidade de aplicação era frequentemente revelada no âmbito das querelas da guerra fria. Uma duplicidade que tinha em linha de conta. “Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos, complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos em nome dos objectivos do desenvolvimento - tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório”. No entanto, face ao colapso dos vários projetos de emancipação social vários grupos recorrem aos DH como forma de reeinventar o seu discurso emancipatório.

A tensão entre o Estado e sociedade civil, revela-se na formulação contraditória entre um Estado cada vez mais minimalista, por contraponto a uma sociedade civil que é cada vez mais um mimetismo desse estado, que se organiza e se auto-reproduz através das leis desse estado que alrga a sua influencia a todos os setores e atividades da vida dos cidadãos. Ora os DH estão, na sua primeira geração, no centro desta questão, ao mesmo tempo que a aplicação dos temas da segunda e terceira geração dos DH implicam que o Estado é o agente e o garante dessa mesma aplicação.

Segundo o autor no final do milénio verificam-se três tensões. Uma tensão entre os sistemas de regulação social e o sistema de emancipação social. Uma tensão entre o sistema do Estados Moderno e a sociedade civil, e uma tensão entre os Estado-Nações e a Globalização.

Finalmente a tensão entre o Estado-Nação e a globalização revela-se na erosão acentuada no modelo de soberania política pela intrusão de cada vez maiores campos sujeitos a regulação globais por organizações supra-nacionais. O modelo político da modernidade ocidental está alicerçado no Estado-nacional como unidade fundamental de soberania. O sistema interestatal é um sistema de estados soberanos que se autorregulam através de por compromissos. Os sinais da erosão do sistema de Estados é hoje evidente por via de vastas parcelas das funções soberanas e serem deslocadas para outros atores. A questão é portanto saber se a regulação social e a emancipação social também deverão ser deslocadas para o campo da globalização, ultrapassando o quadro moderno do Estado-Nação , falando das questões da equidade global.

A tensão entre a regulação e a emancipação, a tensão entre a “ordem e o progresso” deixou de ser uma tensão criativa. Os discursos e as práticas emancipatórias deixaram de ser um outro para passaram a ser um duplo da regulação. A crise do estado providência e a crise da revolução social são sintomas dessa situação. O discurso sobre os direitos humanos é um campo particularmente evidente desta crise, mas é também uma possibilidade de a superar.

Nesta campo, os Direitos Humanos, um processo que tem vindo a ser traduzida como um processo global poderá encontrar uma campo de afirmação. A tensão, porém, repousa, por um lado, no facto de, tanto as violações dos direitos humanos, como as lutas em defesa deles continuarem a ter uma decisiva dimensão nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cruciais, as atitudes perante os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais específicos. A

A questão que o autor procura tratar neste artigo é sobre a validade do discurso como projeto emancipatório. O autor afirma que isso é possível desde que sejam entendidas “as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental. A crise que hoje afecta estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os problemas que a modernidade ocidental actualmente defronta. Em minha opinião, a política de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise”.

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política dos direitos humanos basicamente uma política cultural.”

é hegemónica. Entre os turistas que vivem esta compressão do espaço-tempo e os camponeses ou moradores agrilhoados a Mas, coloca o autor a interrogação, sendo espaços urbanos cercados vivem diferentes um campo oriundo duma cultura modos de compressão do espaço tempo. hegemónica poderá ser ampliado. Como poderão ser construídos diálogos para Para analisar as diferentes formas de além dessa hegemonia. Os Direitos globalização assimétricas há que Humanos não poderão constituir um considerar diferentes formas de produção. espaço de debate e ação em torno das O autor propõe uma análise de quatro diferenças, das particularidades e da modos de produção de globalização, que universalidade.”Como poderão os direitos dão origem a outros tantos modos de humanos ser uma política globalização. simultaneamente cultural e global?” O primeiro é o localismo globalizado. O trabalho avança de seguida para uma “Consiste no processo pelo qual proposta analítica e para uma proposta de determinado fenómeno local é globalizado prática diatópica Como proposta analítica com sucesso, seja a actividade mundial Santos defina e a globalização é o das multinacionais, a transformação da processo pelo qual determinada condição língua inglesa em língua franca, a ou entidade local estende a sua influência globalização do fast food americano ou da a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a sua música popular, ou a adopção mundial capacidade de designar como local outra das leis de propriedade intelectual ou de condição social ou entidade rival.”. E esta telecomunicações dos EUA.” é uma definição que implica entender a globalização atual como um domínio do A segunda forma de globalização é ocidente sobre um determinado localismo, globalismo localizado. “Consiste no e implica entender o que é o local. Ou impacto específico de práticas e seja, aquilo que a ciência moderna estuda imperativos transnacionais nas condições é o resultado da globalização num local. O locais”. Resultam disso a restruturações e domónio de um sobre o outro. Portanto, desestruturações variadas, subordinadas eleger o local como ponto de partida da às lógicas das transnacionais. Constituemanálise é assumir uma sociologia das se hoje no saque aos recursos naturais e a ausências. Cada local tem uma dimensão destruição maciça de recursos naturais e específica. E local aqui é o espaço através culturais, a conversão da agricultura de do qual se afirma. O inglês como língua subsistência para monoprodução agricoloa, franca implica a localização de outras ajustamentos estruturais e desvalorização línguas globais. A afirmação de um local do trabalho. reflete-se na afirmação de outros locais. Nesse processo a “divisão internacional da A compressão do espaço e do tempo que produção da globalização” estrutura-se nos se associa à globalização deve ser países centrais como centros de analisado como um processo social que especialização de “localismos combina situações diferenciadas. Como um globalizados”, onde os países periféricos processo de tensão onde se defrontam as cabem com ”globalismos localizados”. “O tensões da regulação e da emancipação. sistema-mundo é uma trama de Se por um lado as relações de poder se globalismos localizados e localismos tendem a afirmar como hegemónicas, as globalizados.” força de emancipação também procuram espaços de afirmação. Assim, por exemplo No entanto, a intensificação das interações os movimentos migratórios são espaços de globais entre estes dois processos são afirmação de de uma globalização contra- acompanhados por outros dois processos: Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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o cosmopolitismo e ao património comum da humanidade. Como cosmopolitismo entende o autor, os modos de organização e de diálogo criados pelas relações entre os atores internacionais. O cosmopolitismo constitui-se como a ampliação dos modos de organização social, que existem nos quando dos estado-nações à escala global. Em relação ao património comum, derivam da emergência de questões de consciência que apenas fazem sentido quando analisadas à escala global, tal como as alterações climáticas, a sustentabilidade ambiental e a biodiversidade, os modelos de produção energética. Trata-se de um campo de interção física e simbólica que exigem “fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras.”

integram numa globalização contrahegemónica e emancipatória, é necessário que os Direitos Humanos se afirmam de “baixo para cima”. Os Direitos Humanos devem se reconceptualizados como multiculturais. Haverá que articular a legitimidade local com a competência global. “O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contrahegemónica de direitos humanos no nosso tempo”.

A metodologia de processo proposta parte da necessidade de desuniversalizar os Direitos Humanos como forma de superar o seu cartar hegemónico para assumir um As questões do cosmopolitismo e do caráter contra-hegemónico. património comum da humanidade são campos de tensão entre a globalização Atualmente há pelo menos quatro regimes hegemónica e a contra-globalização internacionais da aplicação de direitos emancipatória. É portanto útil, em tenros humanos: o europeu, o inter-americano, o de análise distinguir a globalização de cima africano e o asiático. Como já noutros para baixo, da globalização de baixo para trabalhos salientou, cada cultura tendem a cima. considerar os seus valores fundacionais como os mais abrangentes. No entanto É neste contexto que a questão dos apenas o ocidente os formula como Direitos Humanos emerge como questão universais. Por essa razão, a pretensão da complexa. Ela tanto pode ser formulada, universalidade do cultura ocidental não é quer pela globalização hegemónica, quer mais do que uma questão da própria pela globalização emancipatória, como cultura ocidental. Os seus pressupostos localismo globalizado ou como tem vindo a ser revelados pela suposta cosmopolitismo. “possibilidade de reconhecimento racional da natureza humana, onde o individuo duma dignidade absoluta e O autor apresenta uma a proposta de dispõe analisar a complexidade dos Direitos irredutível, cuja defesa cabe ao Estado. Humanos por via das condições culturais Ora, como nota Sousa Santos, esta como forma de cosmopolitismos na formulação exige que todos os indivíduos globalização contra-hegemónica. “A minha estejam colocado no mesmo plano tese é que, enquanto forem concebidos (principio da igualdade) e que as sociedade como direitos humanos universais, os não sejam hierárquicas. A sociedade como direitos humanos tenderão a operar como resultado da soma de indivíduos livres e localismo globalizado - uma forma de iguais é um pressuposto claramente globalização de-cima-para-baixo. Serão ocidental. sempre um instrumento do «choque de civilizações» tal como o concebe Samuel O entendimento da sobreposição do Huntington (1993)”. Ora contra esta princípio sociológico aos princípios guerra do Ocidente contra o resto o Resto filosóficos deriva do desenvolvimento da do mundo onde os direitos humanos se História dos Direitos Humanos no contexto Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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da Guerra Fria, onde o liberalismo enfrentava o comunismo e que levou, a uma predominância clara dos princípios eurocêntricos na formulação da declaração de 1948 e a subordinação dos povos coloniais ao direitos cívicos, e durante muitos anos ao direito à propriedade como único direito económico.

hierárquicas que formam categorias sociais homogéneas, articuladas pelo princípio da igualdade; ao passo que o princípio das identidades opera pelo principio da disjunção (da diferença). Género, raça, orientação sexual, grupo). “Os dois princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais”.Segundo estas premissas, podese constitui uma conceção mestiça dos Direitos Humanos, que se organiza em constelação, mutuamente legíveis e em rede de referência.

Apesar disso, muitos são os agentes e as organizações, que lutam pelos direitos humanos no mundo. Nessa campo emergem muitas práticas e ações emancipatórias que devem ser mobilizadas como campo de dialogo intercultural. “A tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar a A hermenêutica Diatópica conceptualização e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num A hermenêutica diatópica é uma proposta projecto cosmopolita” teórica de construção da cultura do outro a partir da leitura a a partir do outro. Tratade colocar universos diferentes Essa tarefa exige uma transformação na se prática dos Direitos Humanos. Em primeiro (saberes, modos de estar, modos de locar é necessário superar o debate entre sentir). Os universos de sentido formam universalismo e relativismo cultural. São constelações de topoi forte. Os topoi são dois falos conceitos. O universalismo os lugares comuns retóricos mais cultural é um conceito incorreto, tal como abrangentes de determinada cultura. o relativismo cultural. É necessário Funcionam como premissas de diálogos interculturais na busca de argumentação que, por não se discutirem, preocupações isomórficas que produzam dada a sua evidência, tornam possível a “coligações transnacionais a competir por produção e a troca de argumentos. Um valores ou exigências máximas. topi forte usado noutra constelação cultural perde o sentido. A hermenêutica procura ultrapassar essa A segunda premissa é de quer todas as diatópica culturas possuem conceções de dignidade dificuldade, procurando conhecer os outros humana, mas nem todas estão traduzidas a partir do seu próprio discurso. na conceção ocidental dos direitos humanos. É portanto necessário identificar A hermenêutica diatópica tem por base “a as preocupações isomórficas em diferentes ideia de que os topoi de uma dada cultura, culturas para promover um diálogo. A por mais fortes que sejam, são tão terceira premissa é a necessidade de incompletos quanto a própria cultura a que entender que todas a s culturas estão em pertencem. No interior duma cultura essa processo, e em certa medida são incomplitude não é visível, pois o desejo à incompletas e problemáticas. totalidade leva a que a parte seja confundida com o todo. “O objectivo da A quarta premissa é de que todas as hermenêutica diatópica não é, porém, culturas têm visões diferentes da atingir a completude - um objectivo dignidade humana, sendo que algumas são inatingível - mas, pelo contrário, ampliar mais abertas do que outras. Finalmente ao máximo a consciência de incompletude em todas as culturas os indivíduos são mútua através de um diálogo que se distribuídos em grupos de pertenças desenrola, por assim dizer, com um pé identitários, que se organizam de formas Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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numa cultura e outro, noutra. Nisto reside também afetam a organização social, o seu carácter dia-tópico” criando grupos hegemónicos. A hermenêutica diatópica pode ser um Essa é a vantagem de usar a hermenêutica processo que permite ultrapassar a diatópica no âmbito dos Direitos Humanos, distribuição desigual. como metodologia de ação das possibilidades e exigências emancipatórias Conclui então o autor que o campo dos a partir do contexto local e dos atores em Direitos Humanos aplicados com cenas, evitando-se a canibalização hermenêutica diatópica poderá contribuir cultural. Os exemplos de topos podem ser com eficácia para a emancipação social e considerados o topos de Dharma na para a construção duma ecologia dos cultura hindu e o topos de umma na saberes no âmbito dum apolítica cultura islâmica. A combinação destes cosmopolita. topos com os Direitos Humanos revelam a a sua incomplitude. Dharma e em certa 3ª Questão: Qual é a relação medida a umma colocam o ndividuo numa entre Epistemologias do Sul e ordem geral do universo como elemento processual, sendo que a conceção do Estudos Africanos. Direitos Humanos est´+a organizada em Iniciamos esta reflexão colocando como epistemológica a termos de espelho de direitos e deveres, fundamentação sendo que apenas podem ser conferidos necessidade do procedimento científico delimitar com rigor o seu objeto de direitos a quem se exigem deveres. investigação como forma de assegurar a objetividade. Simultaneamente O reconhecimento das incompletudes sua mútuas é condição para o diálogo verificamos que a investigação deve incluir intercultural. A hermenêutica diatópica é um questionamento sobre a utilidade da um processo coletivo, feito a diversas investigação. que em determinadas mãos. O seu objetivo a ampliar a Verificamos circunstâncias se constituem consciência da incompletude mutua de investigação que através do diálogo. Através do processo procedimentos agregam investigadores e metodologias de diatópico, literalmente variação de lugar, diferentes disciplinas com o objetivo de evitam-se os epistemicídios de outras culturas. A hermenêutica diatópica abre produzir determinadas investigações sobre um campo de possibilidade para busca e a fenómenos complexos. Figurativamente afirmação de outras culturas e colocar em representam agregações de disciplinas, procurando responder a problemas mais cena outros atores em simultaneidade. complexos. Afirmamos que este tipo de A questão do diálogo implica contudo a campo disciplinar se afirma mais pelo partilha de canais de comunicação e de processo de formação das sínteses que posições sociais. Se as culturas partilham produz, pelo local onde se exerce, do que processos de troca desigual, que pela delimitação do objeto, ou seja pela possibilidades existem de diálogos. “O sua epistemologia. A formação de áreas de dilema cultural que se levanta é o saber transdisciplinares constitui uma das seguinte: dado que, no passado, a cultura propostas para responder aos problemas dominante tornou impronunciáveis da complexidade. (MORIN, 1994). algumas das aspirações à dignidade De seguida analisamos a proposta teoria humana por parte da cultura subordinada, das Epistemologias do Sul, desenvolvida será agora possível pronunciá-las no por Boaventura de Sousa Santos. Nesse diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, trabalho teórico, o autor apresenta uma justificar e mesmo reforçar a sua proposta de análise sobre a “Sociologia das impronunciabilidade?” Como facilmente se Ausências e a Ecologia dos Saberes” como pode deduzir, os processos partilhados um procedimento que se enquadra na Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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busca dum novo paradigma científico. O autor parte duma crítica ao paradigma atual das ciências, que considera esgotado, porque incapaz de dar respostas inovadoras aos problemas das comunidades nas suas relações com o mundo. A emergência desse novo paradigma científico nas ciências deverá olhar para o mundo como uma totalidade complexa (Santos, 2002). Uma proposta duma nova abordagem metodológica que advém do que o autor considera como “esgotamento do modelo de racionalidade” (op. cit., 88). O modelo de conhecimento da racionalidade tem sido construído pela relação entre sujeito que conhece sobre objeto que é conhecido através do método de observação. Este método implica distanciamento e não interferência, para além da verificação da sua reprodutibilidade Este procedimento tem vindo a ser questionado desde os trabalhos sobre a relatividade de Einstein, onde se infere que a observação dum objeto por um determinado sujeito cria uma interação mútua. Ou seja um objeto não pode ser reconhecido fora do sujeito que o conhece e fora do seu sistema de pensamento. O modelo da racionalidade nega uma ontologia a tudo o que se encontra fora da sua própria racionalidade. O modelo pós-moderno (o autor propõe o vocábulo cosmopolita) necessita de reconhecer que o conhecimento seja hoje entendido como uma constelação de complexidades interdependentes e em processo. A ciência deve ser entendida como um modo de explicar a realidade, através de determinados procedimentos que interferem com essa mesma realidade. Com esse reconhecimento o conhecimento é entendido como probabilidade que dever ser observado pela interdisciplinaridade . Advoga-se inclusive a reorganização dos processos de formação dos saberes, com base na inclusão da complexidade dos sistemas, da indeterminação dos processos, da incerteza dos movimentos a adoção de sistemas abertos com fonte de inovação que se opõem aos sistemas fechados que tendem para a entropia (ibidem).

A busca de novas linhas de reflexão para a ciência, apontadas por Sousa Santos implica a relativização dos conceitos usados e enfrentar as evidências que na matriz da produção do conhecimento se encontram as relações de poder estabelecidas na sociedade. Relações que são hierárquicas e horizontais e que determinam os próprios limitem desse conhecimento. O conhecimento é então uma possibilidade dada pela relação da função da sua capacidade de reprodução com a sua adequabilidade como resposta às questões colocadas. O conhecimento provável emerge da tensão processual entre conservação e inovação, ou com defende o autor um confronto entre a ação conformista e a ação com “quiddam” (Santos, 2006, 83). Como afirma o autor da “Gramética do Tempo” (Santos,2006), os contextos sociais e políticos contemporâneos exigem que o conhecimento formule problemas para os grandes questionamentos da humanidade. Esse conhecimento é hoje um procedimento que implica a criação de diálogos que partem das situações concretas dos indivíduos e das suas comunidades. Formular perguntas pertinentes é um primeiro passo para a questionar as suas relevâncias. Na formulação das pertinências, partindo da fundamentação sobre o relevante como afirmação de relações de poder, é necessário segundo o autor questionar as ausências como um primeiro passo para entender o que está a emergir. A relação entre a ausência e a emergência advém da incorporação no processo de conhecimento da experiencia cognitiva do mundo. A experiencia intersubjetivas permite identificar as emergências. Ainda segundo Sousa Santos, a experiencia e o conhecimento do mundo são diversos, infinito e os seus limites encontra-se na capacidade de captar razão, as sensações, e os afetos. Ou seja a capacidade de assumir uma forma de consciência do mundo como vontade de representação. Revelar a diversidade cognitiva do mundo é questionar o mundo, assumir a

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experiencia intersubjetiva de transformação que é emergente. Sistematizando a sociologia das ausências é um procedimento de conhecimento que procura uma fenomenologia de transformação de objetos improváveis em objetos possíveis. Trata-se de uma forma de catalisar as ausências em presenças, configurando a necessidade de incorporar um sociologia das emergências, que permite ultrapassar as razões metonímicas e prolépticas . A redução do presente e á ampliação do futuro que o com que o modelo da racionalidade moderna se implicou, contrapõe o autor com a necessidade da razão cosmopolita ampliar o presente e reduzir a possibilidade de futuro. A sociologia das ausências visa essencialmente criar uma carência e transformar a falta ou o desperdício de experiência social em campos de trabalho como forma de ampliar o mundo presente. A sociologia das ausências procura substituir o vazio do futuro dado pelo tempo linear (vazio porque é previsível) por um tempo de possibilidades plurais. Este feixe de possibilidades é operado no presente. O presente é então uma possibilidade. Um modo de viver e ver o mundo. O movimento do mundo vistos como possibilidade resulta da perspetiva de carência (algo que falta), da perceção da tendência (algo em processo) e a perceção de latência (o que está na frente do processo, o que já existe). Ainda segundo Sousa Santos o modelo de racionalidade conduziu o conhecimento para um campo de “monoculturas” de saberes. A essa monocultura que conduziu o conhecimento à sua esterilização é necessário uma “ecologia de saberes”. A ecologia dos saberes constitui-se por via da incorporação dos sabres locais. A ciência deverá encontrar soluções para explicar o mundo a partir da riqueza das experiencia e vivências locais. A sociologia da emergência opera então sobre a possibilidade de ampliação dos saberes, das práticas e dos agentes, no âmbito da identificação das possibilidades de futuro. Ora essa semântica de

expectativa manuseia possibilidades e potência social que se traduzem numa ecologia de saberes. (ibidem, 112) A questão do rigor relativo à prática da sociologia das ausências e das emergências na busca duma ecologia de saberes obriga a uma prática de diálogo entre diferentes linguagens e modos de pensamento. Para é enfrentar esses problemas, o autor propõe aquilo a que chama hermenêutica diatópica para enfrentar a produção de uma grande quantidade de realidades e objetos antes não existentes (ibidem, 113). Trata-se de objetos mais fragmentados, formas mais caóticas e plurais do que aquelas antes vividas e inteligíveis. Importa portanto afinar a operação metodológica capaz de compreender e de ressignificar essas outras realidades. Esse procedimento metodológico constitui-se como um “procedimento de tradução” que contemple a heterogeneidade do real e aponte, sobretudo, a não-univocidade de sentidos no mundo contemporâneo. A hermenêutica diatópica é produção de uma teoria da interpretação do conhecimento por zonas de contacto das visões do mundo, considerando que é nessas zonas de contacto que se encontram os processos de transformação. Do ponto de vista epistemológico a reconstrução de processos de significação a partir desses elementos comuns poderá constitui-se como uma proposta no campo doe Estudos Africano. Bibliografia ALMEIDA, Miguel Vale de, BASTOS, Cristina e FELDMAN-BIANCO, Bela (2002) Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos luso-brasileiros, Lisboa, ICS, 422 paginas ALTHUSSER, Louis (1980). Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, Lisboa, Editorial Presença, 120 pag. ALTHUSSER, Louis, (1978). Sobre o trabalho teórico, Lisboa, Editorial Presença, 85 pag. AMARO, Rogério Roque, (2003). “Desenvolvimento – um conceito ultrapassado ou em prática de renovação”, in Cadernos de Estudos Africanos, Lisboa, CEA /ISCTE, pp 3570. AMIN, Samir (1970). L‟accumulation à l‟échelle mondiale, Paris, Antropós, 2 volumes

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Museologia Informal e Investigação-ação

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A proposta da museologia informal como campo de investigação-ação9

Este artigo constitui uma reflexão sobre as metodologias investigação-ação aplicada na museologia informal.

de

Iniciamos o artigo com uma reflexão sobre os Horizontes da emancipação social, a proposta de Boaventura Sousa Santos apresentada em 2000 no seu livro “Critica da Razão Indolente”, para de seguida fazermos uma atualização da nossa reflexão sobre a Investigação-ação aplicada na museologia informal. Constitui o nosso principal objetivo fazer uma reflexão crítica sobre as metodologias que temos vindo a testar.

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Por Pedro Pereira Leite- CES.UC

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Horizontes da emancipação Social: As epistemologias do Sul, o Barroco e a Fronteira

Quanto em 2000, Boaventura de Sousa Santo Publica a Sua Crítica da Razão Indolente, o primeiro volume de uma série de quatro onde o autor se propõe a construir uma crítica ao paradigma a racionalidade ocidental e a construir uma teoria crítica assente na transição paradigmática, apresenta uma reflexão sobre os horizontes da emancipação social (Santos, A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiencia, 2000).

A análise crítica da mudança paradigmática que o autor enuncia neste livro é sustentada na tensão dialética entre regulação e emancipação que, segundo o autor, caracteriza a emergência e a hegemonia do pensamento moderno ocidental. Segundo o autor o pensamento ocidental é um pensamento dual, que se vai constituir como dominante no mundo global é um pensamento abissal que se caracteriza num sistema de distinções visíveis e invisíveis. A componente visível do sistema expressa-se através da tensão entre a apropriação e a resistência; e a sua componente invisível expressa-se através da tensão entre a regulação e a emancipação social. As tensões internas do sistema são portanto reveladas pelo confronto entre a emancipação e a regulação. Este pensamento dual expressa-se em múltiplas representações. Uma dessas formas é aquilo a que o autor chama a “cartografia moderna dual”, que se exprime, na sua componente visível pela cartografia jurídica e na componente invisível na cartografia epistemológica (Santos, Boaventura Sousa & Menezes, Maria Paula, 2009, p. 30). Se a primeira regula o que é incluindo e o que é excluído, criando os

termos das “legalidades” e da “ausências” dos não-lugares e dos grupos humanos sacrificados; a segunda linha invisível, determina o que é conhecimento e exclui os não-conhecimento dos excluídos10. É uma questão é complexa, sobre a qual já nos temos vindo a debruçar noutros trabalhos, sobretudo na sua dimensão relativa às epistemologia do Sul (Leite, Cassa Muss-am-ike: O Compromisso no Processo Museológico, 2011). As epistemologias do Sul, como já analisámos em artigo anterior, é uma proposta epistemológica que o autor propõe logo de início em “A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política” (Santos, 2006). O trabalho a que autor se propõe, a de identificar a emergência dum novo paradigma, é feito a partir duma reflexão sobre o atual paradigma. De certa maneira, o novo ainda não existe e apenas se poderá ter conhecimento dele através de sinais. Essa falta de distância e de perspetiva produzirá certamente, como o autor reconhece, sérios limites na análise. O autor reconhece a impossibilidade de evitar a contaminação do trabalho de reconhecimento do futuro por formas de pensamento construídas no paradigma atual. Mas, como o autor também refere é necessário efetuar esse esforço de reflexão para ousar traçar caminhos que a prática do trabalho científico se encarregará de validar ou infirmar. É esse ensaio de procurar os elementos que enunciam a possível transição da modernidade (a razão indolente) para uma outra razão cosmopolita (que integra as diversidades e as experiencias do mundo) que o autor vai aprofundar no seu trabalho inicial (Santos, 2000).

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Uma primeira abordagem desta questão é feita em (Santos, 2013)

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Depois de revisitar os papeis que a ciência e o direito tiveram na constituição da modernidade (liberalismo político e marxismo) e na racionalidade (ciência), o autor ensaia na segunda parte do livro “as armadilhas da paisagem”: onde faz uma crítica à epistemologia do espaço-tempo através da análise aos sistemas de representação cartográfica e a crítica da “epistemologia da cegueira”, que é responsável pela representação dos limites do atual paradigma científico. Nesta proposta analisa a determinação da relevância, dos graus de relevância, a determinação da identificação, a impossibilidade da duração, e a determinação da interpretação e da sua avaliação. Esse será o processo que permitirá o reconhecimento dos limites da atual “epistemologia da cegueira” e a emergência duma “epistemologia da visão”. Será na busca dessa nova epistemologia que o autor fundamentará a pertinência da sociologia da ausências e das emergências, que conduzirá à proposta de inclusão das ecologias do saberes e dos procedimentos de transição, com que o autor fundamentará as suas epistemologias do sul (Santos, 2006). Mas será ainda nesse livro de 2000 que o autor aprofundará a proposta apresentada em 199411incluirá esse sul emergente como proposta duma constelação tópica onde se inclui a fronteira e o barroco como topoi da transição. Ora por razões das nossas investigações, e das leituras que temos vindo a fazer do autor, temos vindo a explorar sobretudo a riqueza teórica destas “epistemologias do sul”, tendo deixado de lado a riqueza destes outros elementos desta constelação tópica. O nosso objetivo neste momento o de integrarmos a questão da fronteira nossa reflexão. 11

Apresentado igualmente em (Santos, 2013)

Revisitemos brevemente esta terceira parte do livro. Como temos vindo a salientar o autor procura que as construções destes novos horizontes estejam ligadas às práticas sociais. Às lutas emancipatórias, também elas diversas e distintas. É uma prática que procura a reconstrução do conhecimento que recuse a objetivação do outro, que o conheça reconhecendo a sua capacidade de, autonomamente, produzir conhecimento sobre si próprio e sobre nós mesmos. Um conhecimento crítico que tenha por base a intersubjetividade (Leite, 2012) Não procuramos neste artigo dar conta da riqueza e do esforço crítico desta parte da obra, mas penas destacar os aspetos mais relevantes para o projeto de investigação que estamos e desenvolver no CES da Universidade de Coimbra12, nomeadamente a questão da reflexão crítica sobre as comunidades de fronteira. Regressando ao trabalho de Boaventura Sousa Santos Continuar, em “Os horizontes são humanos: da regulação à emancipação” (Santos, 2000, p. 239 ss) vale a pena destacar a sua crítica ao poder, sobretudo a sua reflexão à teoria de poder em Foucault13, à qual contrapõe uma cartografia Heranças Globais: A Inclusão dos Saberes das comunidades no desenvolvimento integrado dos territórios, (BPD SFRH / BPD / 76601 / 2011). No nosso trabalho temos vindo, para além da investigação nos vários espaços, a proceder à critica dos fundamentos teóricos que presidiram ao estabelecimentos dos objetivos de investigação. Como, na nossa perspetiva a Teoria Crítica não reduz a realidade ao que existe, tudo é deve ser entendido como o feixe de possibilidades. A análise crítica deverá então analisar e avaliar a natureza e o âmbito das alternativas empíricas. Essa busca da procura das alternativas ao que existe conduzi-os à crítica da teoria do desenvolvimento integrado e à crítica dos conceitos de comunidades, no qual este artigo se enquadra 13 Em Poder e Conhecimento 12

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relacional dos podres, que formam uma constelação de espaços e dimensões sociais, em torno das quais se manifestam outras tantas relações de poder. É nesse âmbito, na vontade da ação que emergem as novas possibilidades de poder social solidário. A procura dos dispositivos da ação leva Boaventura Sousa Santos, no sexto e último capítulo desse livro, a procurar os caminhos da transição paradigmática. Em "Não disparem sobre o utopista" (Santos, 2000, p. 305) o autor (retomando e reformulando alguma reflexões deita em “Pela mão de Alice”, (Santos, Modernidade, Identidade e Cultura de Fronteira, 2013) envereda pela reflexão sobre as formas da ação possível. É nesse capítulo, que apresenta as propostas utópicas com base nos sinais emergentes dos bloqueios do paradigma da modernidade. Sinais, que como acima já salientamos são detetados, nas fronteiras, no barroco e no sul. Antes de avançar para a identificação dessas propostas utópicas, ensaia uma cartografia da transição paradigmática. O seu mapa orientador, que parte das incapacidades de respostas pertinentes para as questões socialmente relevantes do paradigma modernos, propõe pontos de observação. Esses pontos de observação, que se constituem como pontos de relevância para os processos de emancipações social nas suas tensões com os poderes de regulação social, são delimitados pelos espaços - estruturais definidos no capítulo anterior, a saber (espaços doméstico, de produção, de mercado, de comunidade, de cidadania, e mundial), aos quais correspondem formas de poder (o patriarcado, a exploração, o feiticismo das mercadorias, a diferenciação identitária desigual, a dominação e a troca desigual) que como vimos se relacionam de formas e intensidades diferentes, daí

resultado unidades sociais, instituições, dinâmicas de desenvolvimento, formas de direito e propostas epistemológicas que configuram as diferentes formas de realidade fenomenológica. A importância do entendimento destas possibilidades de real constitui o filtro a partir do qual de pode observar as ações rebeldes. As ações que visam ultrapassarem os bloqueios e as opressões na sociedade. Estas ações sociais rebeldes são as formas de resistência social contra essas formas de poder e, na medida em que se organizam segundo articulações locais ou globais, constituem-se como campos de ação e investigação do paradigma emergente. As diferentes dimensões espaciais do poder relacionam-se com uma ou várias das formas que assume, tornadas visíveis pelas suas expressões simbólicas. As comunidades cooperativas domésticas, os processos de produção solidários, os consumos responsáveis e solidários, as comunidades amiba (comunidades abertas e plurais), o socialismo sem fim, as sustentabilidades democráticas e soberanias dispersas. Uma transição que segundo Sousa Santos tem que ser simultaneamente epistemológica e societal. Isto é que novos modos de conhecimentos, devem estar alicerçados em formas de estar, de fazer de ser e de organização social. É nesta experiencia, na vivência da função da experiencia que precede a determinação do objeto, que radica a pertinência da observação que desencadeia a ação. Como tudo o que é observado se relaciona com tudo, (como identificou John Locke no seu “Ensaio sobre o entendimento humano”), o conhecimento produzido pela ciência é ao mesmo tempo universal e infinito. Simultaneamente redundante e inovador. A ultrapassagem desse paradoxo é possível

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pelo diálogo processual entre o sujeito e o objeto. A subjetividade do objeto é reconstruída na ação. A construção duma inquietação. A intersubjetividade é uma destas respostas teóricas que permite reconstruir, a partir da inquietação formas de emancipação social. Os lugares de fronteira Os lugares de fronteira constituem-se como formas de sociabilidade privilegiadas para a observação. As comunidades de fronteira são espaços onde se cruzam as tradições locais e as tradições que resultam dos movimentos de confronto (Santos, 2000, p. 321). São espaço de se reconstituem com base na mestiçagem, construindo normas e hierarquias dinâmicas, estabelecem relações fluidas. São processos onde se confrontam tempos diferenciados, produzidos em espaços diferenciados. Há portanto uma certa instabilidade no ar. As relações estabelecidas são simultaneamente horizontais e verticais. A emergência do novo paradigma nestes territórios de fronteira, segundo Sousa Santos deverá ocorrer nas suas margens. A fronteira do mundo global é o espaço onde o paradigma dominante encontra as maiores resistências em se implementar, sendo dessa resistências que deverá emergir as novas formas de organização e conhecimento paradigmático. Será também nesses espaços afastados dos centros que deverão ser mais percetíveis as incoerências das formas de dominação. Pela sua natureza fluida estes espaços marginais são espaços difíceis de caracterizar. Tanto são visíveis formas estruturais dominantes, como formas de poder emergentes. São espaços de conflitos estruturais. É esse conflito que importa analisar a constituir como espaço de ação.

Uma ação que tem que ser construída a partir dos protagonistas da transição. A fronteira, ou melhor a experiencia dos limites é um local onde se torna possível a intensidade da existência. A vivência dos limites no espaço é uma experiencia possível em comunidade. Não interessa neste domínio as experiencia dos limites individuais, uma vez que essas experiências não se traduzem em interações sociais. No entanto, na fronteira há espaço para a intervenção do individual na inovação. Dada a instabilidade dos processos nos espaços de fronteiras, a inovação é um elemento que permite ultrapassar problemas. A construção desse novo paradigma é um esforço de fronteira. O Barroco O segundo elemento que Boaventura Sousa Santo explora nesse capítulo é o Barroco (Santos, 2000, p. 330). O Barroco como se sabe é uma forma de expressão artística que se constitui no sul da Europa no século XVII, como resposta à iconoclastia protestante e calvinista do norte da Europa, e que é posteriormente exportada para as colónias americanas e asiáticas. Uma excentricidade da modernidade. O termo barroco é usado nesse livro como expressão metafórica duma forma de cultura capaz de ultrapassar os limites da forma para procura processos de emancipação social. Ou seja, segundo Sousa Santos, a excentricidade desta forma cultural que surge nos países periféricos do então centro (o Barroco manifesta-se em nos espaços do catolicismo, como realºao ao movimento protestante, num momento em que a hegemonia do sistama mundo se desloca do mediterrâneo para o Norte a Centro da Europa). Como reação ao porque se reproduz em cada espaço de acordo com as especificidades de cada lugar, que se

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traduz na constituição de formas específicas desses mesmo lugares, apenas é possível devido á fragilidade dos centros de poder colonias. Ou seja é uma manifestação inversa da tendência hegemónica do centro. E é nesta asserção que o termo adquire significância no campo da análise da emancipação social no âmbito do paradigma emergente. O caráter aberto e inacabado do Barroco em cada espaço é sinónimo metafórico da criatividade das margens em relação ao centro. E é essa criatividade inovadora que Boaventura Sousa Santos procura para exemplificar, como em termos sociais, a organização social deverá criar alternativas às formas hegemónicas da globalização. É certo que o Barroco se constitui também como uma forma de afirmação do poder. Um poder fraco, diluído, mas um poder hegemónico. Mas será esse modo de afirmação que servirá de suporte às ações emancipatórias que mais tarde surgirão nesses espaços. Assim, segundo o autor, o Barroco constituirá a base das narrativas nacionalistas com que os países da América enfrentarão os poderes coloniais. Mas a metáfora tem também um outro alcance, que o autor procura salientar. Sendo uma expressão cultural que se manifesta pela exuberância da forma, sugerindo a sua incompletude, propiciando a diversidade dos olhares e dos pontos de vista, o barroco exemplifica a incompletude da forma e abre caminho a interrogação, à busca de alternativas e a novas formas de expresso. Assim, continuando pelo discurso metafórico, o paradigma sócio-político emergente deverá ser encontrado nas margens do sistema hegemónico. Estamos portanto praticamente a prenunciar a emergência das epistemologias do Sul.

Mas antes disso, interessa ainda explorar a metáfora barroca na relação da forma como representação do real. O barroco procura a ilusão e a aparência. O barroco procura a subjetividade da aparência. Captar a transcendência pela pluralidade das formas. O contrário portanto da objetividade do conhecimento científico, que procura a delimitação do objeto. A forma barroca é uma forma transitiva. Uma forma que estimula a criatividade do olhar. A dificuldade em definir os limites, uma das características da pintura barroca permite dissimular as transições. As formas misturam-se, fundem-se criando sombras passíveis de ser elas próprias outras formas que se revelam nessa mistura. Anuncia-se assim a emergência de novas formas de organização e ação social pela mistura de formas existentes. O novo paradigma emergirá das velhas formas. Ele estará já em formação nessas formas de organização atual. Importa portanto afinar os instrumentos de análise para os capturar. Uma captura de algo que está movimento, algo que ainda é fluído. Um derradeiro elemento que o autor salienta em relação ao Barroco como forma cultural, é a presença da festa como primeiro elemento das modernas culturas de massa. A festa barroca é uma festa ritualizada, ensaiada, com fortes investimentos sociais para uma vivência fulminante. A festa barroca, tais como os eventos contemporâneos são fenómenos fugazes. Há um tempo e um espaço de concentração de energia, que é rápida e intensamente consumido. Mas é essa intensidade vivenciada que constitui o catalisador para as novas manifestações. Ora esta metáfora aplicada à ação emancipatória permite facilmente entender que uma ação social que concentre uma determinada intensidade de movimento

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sociais emancipatórios criará um efeito de reprodução no tempo. A festa é de certa forma uma metáfora para a o fenómeno de catalisação da emancipação social. Ao contrário do cientista moderno, onde a investigação está separada da ação, a investigação do novo paradigma emergente não pode deixar de ser concebida na própria ação. Mais do que um comprometimento com a ação, a investigação constitui-se comum compromisso com a ação emancipatória. Mas a festa barroca transporta igualmente uma componente de proximidade com a vida real. Quer o teatro, quer as formas burlescas, quer as manifestações profanas que ocorrem em paralelo com as festas religiosas, constituem como espelhos da vida. Os problemas retratados são os problemas vividos diretamente pelas comunidades. Os seus resultado são visíveis e imediato. É possível uma apropriação dessa realidade. Os movimento sociais emancipatórios deverão também eles estar em sintonia com os problemas das comunidade. Deverão dar resultados concretos para os problemas vividos. Tomando como exemplo a ação dramática é de salientar o efeito do riso. A comédia é uma manifestação dramática que emerge nos séculos XVI e XVII como espelho burlesco da sociedade, das suas personagens e das suas preocupações. Entre outras manifestações, como noutro local veremos, o riso14 constitui um espaço de reflexão sobre o si que as sociedades indolentes procuraram condicionar e cercear. A capacidade de rir de si mesmo é uma unidade de reconhecimento duma comunidade.

14

Ver a “Oficina do Riso”, mais à frente nesta Revista

Como salienta Boaventura Sousa Santos a partir dos trabalhos de Max Weber, o riso é ostracizado pela ética capitalista. Ao desencantamento das sociedades modernas, contrapõe a festa do movimento emancipatório. Na tradição das festas operária, a transição paradigmática também emerge no riso. A última característica da festa barroca, para além da representação do real e do riso, é o efeito subversivo que se permite intuir. O carnaval barroco é uma manifestação subversiva. A transgressão e a inversão dos papéis sociais que o carnaval permite, conduzem quer ao reconhecimento de si, quer ao reconhecimento dos outros. A inversão das hierarquias, na festa e no carnaval é um passo para a experiencia da inovação (também não é por acaso que o carnaval é um fenómeno mediterrâneo). Da inversão da hierarquias à vontade da experiencia de mudança é um pequeno passo. A festa traduz-se dessa forma como um imenso potencial emancipatório a explorar pela ação social. Uma ação que é primeiramente experimentada e vivencias pela estética e pela ética do prazer. O Sul O último topos tratado por Boaventura Sousa Santo nesse livro é o Sul (Santos, 2000, p. 340). Já dele falamos mais acima nesta revista. Resta salientar que para o autor este constitui um meta-topos, ou seja um lugar que preside à “constituição dum novo senso comum ético. O sul é também ele uma metáfora cultural para uma “arqueologia da modernidade”. Como o sul é o espaço de colonização do outro, dos outros, das margens do sistema mundial, ele próprio é um mundo de fronteiras e barroco, de hierarquias e subordinações. Sendo a transformação da modernidade construída na base duma dupla dicotomia,

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entre Norte-Sul e Ocidente-Oriente, sendo que a primeira tem uma conotação fundamentalmente sócio-económica e a segunda sócio-cultural, rapidamente as relações na globalização de fundem. No século XIX deixa de ser possível esta ma delimitação geográfica, porque em todo o lado há uma dominação do outro e uma subordinação dos mercados e das formas de produção aos interesses do centro. Mas será nesse sul que durante o século XX emergirão as forma de consciência dos outros, da violência dos sistemas de dominação, será neles que emergirá a vontade de rebelião, a consciência do sofrimento humano. Segundo o autor é no sul que existe a experiencia de luta por um mundo alternativo. A vontade de emancipação social sairá segundo Sousa Santos, da conjugação destas três tipologias tópicas: dos fenómenos de fronteira, com características barrocas, nos espaços do sul. Três formas metafóricas de entender que se deverão relacionar para evitar o esvaziamento do potencial emancipatório. Esta condição defrontará o paradigma da modernidade nos seus espaços estruturais. O paradigma emergente continua uma incógnita, mas Ester trabalho é um importante contributo teórico para a investigação ação.

---------------------------------------1. A Metodologia de

investigação-ação Há uma longa tradição nas ciências sócias na utilização de metodologias qualitativas, nas quais se insere a metodologia da investigação-ação. A propósito desta questão já nos debruçamos na nossa tese de doutoramento, onde procuramos refletir a museologia a partir das práticas da teoria da conscientização, proposta por Paulo

Freira (Leite, 2011). No cerne desta questão, como então notávamos estava a relação entre o sujeito e o objeto, um dos axiomas da ciência moderna. Posteriormente desenvolvemos essa reflexão em “Objetos Biográficos” (Leite, 2012), onde procuramos apresentar a proposta da poética da intersubjetividade como metodologia na museologia. Uma metodologia qualitativa de investigaçãoação. Uma metodologia que procura, na sequência das propostas de Boaventura Sousa Santos, olhar a partir do Sul, da Fronteira e do Barroco (Santos, 2013) e (Santos, 2002). A questão da dissolução do objeto de investigação no sujeito dessa investigação onde assenta onde assenta o paradigma da ciência moderna permite intuir as possibilidades de emergência de padrões de inteligibilidade intersubjetiva. O conhecimento construído a partir do sul emerge na relação entre as dimensões subjetivas dos indivíduos que criam õu estabelecem constelações de compromissos e consensos, através dos quais se vão desenvolvendo as diferentes ações sociais. Algumas dessas constelações cristalizam-se em formas organizacionais, outras nem tanto. Em todas elas encontramos formas de estruturação, mais ou menos formais, formas simbólicas e de legitimação. Ao traçar os objetivos da investigação ação no âmbito desta postura, o investigador para além de procurar o outro15 não pode deixar de se procurar a si mesmo. O 15

Como temos vindo a trabalhar nas questões da memória e do esquecimento, a alienação do outro é uma forma de esquecimento do eu. Ou seja, a teoria crítica ao afirmar que a ciência moderna o estabelecer a distinção entre sujeito e objeto cria uma alienação do objetos (que explica o fetichismo da mercadoria), estabelece igualmente a alienação do sujeito. Uma arrogância epistemológica que é um resultado do auto-esquecimento ( (Santos, 2013, p. 293)

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conhecimento que vai produzir, os seus objetivos de conhecimento, não pode constituir-se como a validação do que já está adquirido (gerando a redundância), mas adotar uma postura dialogante, de procura de informação original acerca de situações ou de atores em processo. A produção dos conhecimentos teóricos deverá ser obtida através de um processo de diálogo (entre o investigador e os membros representativos das comunidades que vivenciam as situações ou problemas investigados. Por outro lado, a Investigação-ação não procura um conhecimento teórico sobre um determinado fenómeno. Ela procura produzir guias ou regras práticas para resolver os problemas e planear as correspondentes ações de resolução através da implicação e da participação daqueles que são afetados por esses problemas. A Investigação-ação permite analisar as possíveis generalizações a estabelecer a partir de várias pesquisas semelhantes. Cada processo em que o investigador participa é um enriquecimento pessoal, assim como o é para os membros das comunidades envolvidas. Os processos de investigação-ação aumentam o envolvimento das pessoas em causas que lhe são próximos, desenvolve o interesse das pessoas e dos grupos em processos de mudança social. Um investigador envolvido num processo de investigação-ação envolve-se com a comunidade em que trabalha. Dispoõe por isso duma distância muito reduzida em relação aos outros. Um bom pesquisador não pode deixar de ser aceite pela comum idade.

Este envolvimento com as comunidades e com as suas causas não deve impedir o investigador de publicar os resultados das sua pesquisa. Para alem de assegurar que os resultados da investigação não se restringem a um pequeno grupo de pessoas, a publicação dos resultados da investigação também deverá assegurar a filtragem entre o que é socialmente partilhado. A investigação ação gera mudança social com base em elementos concretos da vida dos grupos. Estas ações são filtros que permitem adequar as ideias e os projetos às condições sociais de intervenção e permitem ao investigador verificar ou não a utilidade do seu trabalho. O procedimento metodológico da investigação-ação, como método qualitativo implica a formalização de um conjunto de regras que permitam a recolha da informação em diferentes momentos do processo, para que a sua análise seja possível e acessível em qualquer momento da investigação. O ciclo de diagnóstico, planeamento, ação experimental e validação/descrição do conhecimento, é pois um ciclo aberto, em que a cada momento se utilizam procedimentos dos momentos anteriores. A questão que nos interessa neste momento refletir, é a adequação desses procedimentos de Investigação ação no âmbito do nosso projeto “Heranças Globais: A inclusão dos saberes das comunidades no desenvolvimento integrado dos territórios”. No estabelecimento dos objetivos de investigação deste projeto, afirmávamos que íamos procurar analisar as tensões na memória social das comunidades através dum conjunto de procedimentos que evidenciava a adesão à metodologia da investigação ação. Vamos agora refletir

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sobre a atualidade do uso desta metodologia a partir dos diferentes instrumentos de trabalho, e dos mais recentes contributos.16 O seminário realizado no CES em Coimbra, em dezembro do ano passado foi útil para reproblematizarmos a questão da Investigação-ação no contexto dos movimentos sociais. É sabido a reflexão que tem vindo a ser feita sobre esta questão a partir das experiencias sociais na Europa17, sobretudo nos campos da sociologia urbana. Como Sérgio Rodriguez Gravitto nos recorda, não menos relevantes são os legados das das décadas de 60-70 com os trabalhos de Orlando Fals Borda18 na Colômbia e Paulo Freire19 no Brasil, este último já acima referenciado. Desde essa altura, as metodologias da investigação-ação tem vindo a ser aplicadas em diferentes latitudes, em diferentes campos do saber procurando aplicar a investigação académica no campo das diferentes disciplinas. Ele tem constituído um importante instrumento de intervenção e negociação no âmbito da formação das políticas públicas, através das quais os 16

Para este trabalho baseamo-nos na utilizamos os contributos do Seminário “Investigation-ación 2.0” feito por César Rodriguez Gravitto na Cátedra Boaventura Sousa Santos em 11 de Dezembro 2012, Faculdade e Economia da Universidade de Coimbra. 17 Veja-se nomeadamente (Guerra, 2007). 18 Orlando Fals Borda (1925-2008), Colombia. Em 1959, junto con Camilo Torres Restrepo, fundou a primeira Faculdade de Sociologia da América Latina na Universidade Nacional, na qual foi o decano. Foi um dos fundadores dea Investigação-ação Participativa (IAP), método de investigación qualitativa que pretende con hecer as necessidades sociaies de uma comunidade, e juntar esforços para transformar a realidade com base nas necessidades sociais 19 Paulo Freire (1921-1997) . É o criador da Pedagogia do Oprimido e influencia a pedagogia crítica

diferentes movimentos procurando garantir participativos.

sociais vão processos

A investigação-ação tem-se vindo a tornar num saber aplicado nas lutas sociais. Busca um saber produzido com as comunidades e fundamenta-se no pensamento com os atores sociais. A IA é hoje aplicada numa escala local mas continua a ser trabalhada numa escala muito próximo das comunidades, criando compromissos na ação. A investigação-ação como instrumento de sua aplicação no local é um bom desafio para localmente pensar o global. Como tal é uma metodologia que tem vindo a ser usada nas universidades populares, nas escolas dos movimentos sociais. Localmente, na comunidade, na cidade ou nos estados a IA mostra-se hoje como um processo adequado à formação das políticas públicas. Nos novos modelos de governação democrática20, as políticas públicas são estabelecidas por negociação. A organização em grupos e cidadão revela-se como um instrumento eficaz para intervir na comunidade, para captar recursos e para disseminar modelos de intervenção. A utilização deste modelo permita ao investigador criar uma agenda de investigação no âmbito de intervenções públicas e conciliar o processo de investigação com o ativismo público. O ativismo do investigador torna-se um processo de cidadania no âmbito de construção de instituições. Tanto mais relevante é esta questão, quanto sabemos, que por tradição, as universidades, enquanto centros de saber hegemónico 20

Na formulação de políticas públicas joga-se hoje a capacidade de afirmação dos sistemas de poder democrático. (Pasquino, 2007, p. 287)

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criadas na modernidade, são estruturas hierárquicas, filtrando e reproduzindo as formas de saber hegemónicas. A participação do investigador nos processos de cidadania é ela própria uma possibilidade de inovação social na construção de instituições de saber A investigação-ação é um processo metodológico que permite transformar a a imagem social em imaginação pública. Ao desenvolver intervenções públicas com base na participação, a permite um entendimento do real mais consistente e uma abordagem construída a partir de diferentes ângulos de entendimento. Aumenta com isso o envolvimento dos atores nos movimentos sociais, e permite escolher as relevâncias nos processos. A investigação-ação, por estar mais próxima dos processos, está numa sintonia mais elevada em relação às questões relevantes para cada comunidade a cda momento. Uma das críticas feitas à investigação tradicional, feita com base no paradigma moderno, é a de quando formula os problemas, já eles estão ultrapassados. Enquanto a investigação tradicional, por norma chega tarde aos fenómenos que procura explicar, a investigação-ação constitui uma forma de ultrapassar os risco de falta relevância na ação.

há um caminho único, nem um caminho linear para a construção do presente. A Utopia é diversificada e polissémica. Sabemos que o mundo em que vivemos continua a ser contraditório, injusto e problemático. A investigação-ação não procura resolver todos os problemas das relações desiguais, do modelo energético com base no carbono, dos diferentes conflitos no mundo, do modelo económico com base na fetichizarão da mercadoria, da economia predadora dos recurso naturais. É no entanto uma metodologia que contém na sua formulação os elementos necessários para trabalhar sobre a transição paradigmática. A investigação-ação é um instrumento adequado para trabalhar na construção da transição paradigmática. Na América Latina, um continente que enfrenta hoje uma forte pressão para explorar os seus recursos naturais, gerando diferentes conflitos e alimentando uma espiral de procura de recursos, alimenta o modelo económico que deixou de se basear na indústria para se centrar na venda de matérias-primas. A América Latina centra-se na exploração das últimas fronteiras terrestres.

Finalmente uma última vantagem nos processos de investigação-ação para o investigador. A proximidade e a participação nos processos de investigação cria um efeito efeito emocional, que facilita a motivação. A ação é uma presentça constante. Há claro o risco de um envolvimento excessivo, quer com atores, quer com os processos. Uma situação em que apenas a experiencia e a maturidade dos investigador@s permite ultrapassar a calibrar.

Os processos de investigação-ação têm vindo a evidenciar a necessidade de intervir e denunciar um conjunto de ações, ao mesmo tempo que contribui para a criação de novas sociabilidades e novos sentidos de comunidade. À ocupação dos territórios indígenas da amazónia, a sua inclusão nos processos de produção extrativista da economia global, tem vindo a produzir denuncia de violação dos direitos humanos. A criação desta relação tem favorecido a criação de instituições e ações comuns nos movimentos indígenas.

Há contudo alguns dilemas que a investigação-ação continua a enfrentar. Não

Este envolvimento nas lutas sociais e nos processos de ação e na construção de

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instituições comuns constitui um dos principais desafios que a investigação-ação enfrenta na atualidade. Será a investigação-ação uma empresa quixotesca? Uma forma de solucionar os problemas do mundo. É claro que a resposta é negativa. A investigação-ação é um instrumento de trabalho. Uma forma de intervir para solucionar problemas. É necessário não esquecer que a investigaçãoação composta riscos. Não podemos estar envolvidos com o objeto de investigação durante demasiado tempo sem sermos contagiados por esse mesmo objeto. Há portanto que balizar bem o tempo de intervenção. Ultrapassar o tempo de investigação, é de certa forma deixar de ser investigador e assumir a uma condição de ator cidadão. A fronteira entre ambos é difícil de distinguir. Um outro risco da investigação-ação é o voluntarismo. A participação nos processos sociais e o ativismo social é absorvente. A implicação nos processos sociais absorve a ação do investigador. Esse envolvimento pode conduzir ao abandono dos princípios e objetivos iniciais da investigação ou a uma acomodação aos ritmos do mundo. A investigação é prática, mas não dispensa uma reflexão, individual e em grupo sobre os resultados que a cada momento vão sendo obtidos, bem como dos processos que a cada momento se devem tomar. Verifica-se também que o investigador em ação corre também o risco de criar dependências em relação aos atores com que se envolve. A criação de cumplicidades, de redes de solidariedade é normal no ser humano em processo. No entanto dificilmente resistem à quebra de laços e de compromissos criados. Quando o investigador enfrenta o dilema da escolha

entre a razão e a emoção a decisão é quase sempre problemática. Finalmente, o investigador em ação corre também o risco de esgotamento. A prática de investigação ação é esgotante. O envolvimento permanente e as exigências sociais são cansativos. O investigador, a cada momento tem que se adaptar aos contextos de investigação. Sair de sí para procurar o outro é um exercício que obriga também o reconhecimento de sí. Isso pode conduzir a conflitos individuais ou sociais que obrigam o investigador a tomar opções. Visto as condições de aplicação da metodologia, há que avaliar os processos onde a metodologia de investigação-ação pode ser usada. Temos vindo a defender o seu uso em torno dos conflitos de memória. Determinar quem fala, como fala e quando fala e de onde fala é um dos objetivos da oficina “cartografia das memórias”. Mas como temos vindo a defender, o mundo atual apresenta uma diversidade de modos de produção de conhecimento, de escritas científicas e de modos de produção de conhecimentos e saberes, que a investigação-ação não pode olvidar. Implica isso que a produção de instrumentos de investigação seja mestiços. A escrita científica, produzida na academia tem uma gramática própria, ancorada na tradição. Há outras formas de escrita, plurais. Os suportes das escritas e a formação de redes são também plurais. A investigação-ação 2.0, tal como propõe Servgio Rodriguez Gravillo, é também uma proposta de intervenção na produção de escritas mestiças. É necessário utilizar as diferentes formas de narrativa. As jornalísticas, as literárias, as académicas a partir do rigor das ciências sociais.

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Mas na atualidade é a produção de multimédia o grande espaço de oportunidade que é necessário aproveitar. O multimédia tem vindo a constituir-se como uma espaço emergente na construção de narrativas, de plataforma colaborativa para trabalho em rede, incluindo a criação de redes de investigação. É nesse sentido que temos vindo a aprimorar e a aperfeiçoar os processos de disseminação dos conhecimento e dos resultados. Criamos para isso diferentes plataformas de intervenção, procurando agtravés dos procedimentos de tradução, aplicar e refletir sobre os diversos sentidos produzidos nos diferentes espaços, nas diferentes comunidade.21 Esse espaço constituem também eles espaços de intervenção em rede22 estando ainda em processo de maturação e desenvolvimento. Em suma as metodologias de investigaçãoação que temos vindo a aplicar resultam duma necessidade de criar uma maior empenhamento na construção dum mundo sustentável. Parte da constatação de que é necessário alterar os mapas e os roteiros da investigação. Uma investigação empenhada numa cultura dos saberes produzidos a partir da proposta das epistemologias do sul e dos territórios da fronteira. Alterar o ponto de projeção. Projetar a ciência a partir do sul a partir da construção de processos participativos que favoreçam a construção de ações coletivas.

e as estratégias de mediação. Elas visas responder às perguntas de se saber o que se faz, através de quem faz, como fazem e de onde fazem. Um caminho para criar uma clínica de Direitos Humanos como projeto que a seu tempodesenvolveremos. Bibliografia: Guerra, I. (2007). Fundamentos e Processos de Uma Sociologia de Acção. Principia: Celta. Leite, P. P. (2011). Casa Muzambique: O compromisso no processo museológico. Ilha de Moçambique: Marca d'Água. Leite, P. P. (2012). Objetos Biográficos: A Poética da Intersubjectividade em Museologia. Ilha de Moçambique/Lisboa: Marca D' Água. Pasquino, G. (2007). Curso de Ciência Política. Oeiras: Principia. Santos, B. S. (2002). A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da Experiencia. Porto: Afrontamento. Santos, B. S. (2013). Modernidade, Identidade e Cultura de Fronteira. In B. S. Santos, Pela Mão de Alica: O social e o político na pós-modernidade (pp. 139-161). Coimbra: Almedina. Santos, B. S. (2013). O norte, o sul e a utopia. In B. S. Santos, Pela Mão de Alice: O Social e o Plítico na Pós-modernidade (pp. 235-305). Coimbra: Almedina.

Tem sido a partir dessa premissas que temos vindo a construir as nossas oficinas de participação: A cartografia das memórias, a oficina biografia, a aula do riso 21

Veja-se em http://globalherit.hypotheses.org/ Veja-se a página de museologia informal no Face Book em www.facebook.com/groups/investigacaosociomuseologia/, ou os blogos desenvolvidos em http://globalheritages.wordpress.com/ 22

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Narrativas Biogrรกficas

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As Narrativas Biográficas e as metodologias de investigação-ação23 A integração das narrativas biográficas nos processos de investigação constitui uma proposta metodológica do empirismo crítico que desloca o centro de produção de conhecimento para os objetos de investigação, permitindo ultrapassar os bloqueios e os desvios da observação do real por parte dos atores científicos. Na sua crítica ao paradigma científico eurocêntrico, hegemónico na produção dos discursos dos atores, Boaventura Sousa Santos (2000) propõe as “epistemologias do Sul” como um processo de investigação e inclusão dos saberes dos atores. Neste artigo vamos procurar olhar para o processo de produção das narrativas biográficas a partir da leitura desta proposta epistemológica. Neste artigo fazemos uma revisão das metodologias de trabalho sobre objetos biográficos e apresentamos os estudos e investigações que temos vindo a fazer em comunidades no Sul de Moçambique com ápio do Centro Comunitário de Djabula. São resultados duma investigação em processo que deverá ser completada com outros trabalhos no terreno, e que aqui abrimos como processo de discussão na comunidade científica. O projeto será completado nos próximos meses, através da proposta de uma “Casa das Memórias” a desenvolver com a população local através de objectos, histórias, sons e danças que são escolhidos e darão suporte às narrativas escolhidas pela comunidade. Os projetos criados com os atores locais, a partir dos seus problemas permitem a aproximação e o diálogo entre os diferentes saberes. O presente artigo constitui o corpo da comunicação apresentada no 5º Congresso Europeu de Estudos Africanos, realizado em Lisboa, em Junho de 2013

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Ana Fantasia – CEA-IUL, e Pedro Pereira Leite –CES-UC -Comunicação apresentada no 5th Europeean Congress on African Studies, realizado em junho de 2013 no ISCTE-IUL Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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A integração das narrativas biográficas nos processos de investigação constitui uma proposta metodológica do empirismo crítico que desloca o centro de produção de conhecimento para os objectos de investigação, permitindo ultrapassar os bloqueios e os desvios da observação do real por parte dos atores científicos. Na sua crítica ao paradigma científico eurocêntrico Boaventura Sousa Santos (Santos, 2000) propõe as “epistemologias do Sul” como um processo de investigação que parte da inclusão dos saberes dos atores locais para a produção do processo de investigação. Neste artigo vamos procurar olhar para o processo de produção das narrativas biográficas a partir da leitura desta proposta epistemológica. As epistemologias do sul constituem-se como epistemologias horizontais, construída sobre as diversidades dos saberes, numa perspectiva de procura de diálogos construtivos, na busca da emancipação social e na construção de comunidades solidárias. Segundo o autor que tem vindo a questionar as ciências sociais sobre a natureza do conhecimento produzido, a “epistemologia do norte” depois de fortes avanços no conhecimento da natureza nas últimas centenas de anos, tem vindo a enfrentar fortes bloqueios e redundâncias, mostrando-se incapaz de responder aos grandes problemas da humanidade: Os problemas da distribuição dos recursos disponíveis, a criação e a distribuição da riqueza e os modos de organização social. Segundo o autor as narrativas científicas permitiram ao longo das últimas décadas a consolidação dos projectos de poder coloniais, patriarcais e de exploração da mão-de-obra assalariada. Entre outros mitos, estas narrativas tem produzido o fetichismo da mercadoria e tem vindo a conduzir a dominação identitária e a processos de troca desigual. O paradigma científico do norte, enquanto componente do processo de dominação conduziu as ciências sociais a problemáticas teóricas

estéreis, tais como: A análise das relações entre estrutura e acção, ou entre a análise macro e a análise micro. Ora segundo o autor a ciência deve interrogar a partir das condições de acção. De condições duma acção emancipatória e transformadora. É a partir dessa acção rebelde (por contraponto à acção conformista da ciência do norte, que almeja compreender sem transformar), que o autor procura alicerçar todo o trabalho de consolidação do novo paradigma crítico. Um trabalho observado a partir do Sul, a partir dos territórios e dos saberes esquecidos e dominados, na busca da pluralidade dos saberes. Aquilo a que chama a “ecologia dos saberes” a partir do qual procura resgatar do esquecimento praticas, modos de ser e de estar que tem sido dominados em nome dos valores da ciência e do progresse. Este empenhamento a partir das acções rebeldes permitem, segundo Boaventura Sousa Santos, observar práticas de conhecimentos construídos por processos cognitivos diferenciados, que geram experiencias sociais alternativas de resistência e emancipação social. A proposta de conhecer a partir da perspectiva do sul implica uma posição do conhecimento feito a partir dos grupos marginalizados, dos grupos sociais vítimas do sofrimento e da opressão das operações de globalização. O conhecimento torna-se assim numa prática global que procura ultrapassar o conformismo que reduz a realidade a processos de conciliação. A epistemologia do sul é uma proposta de transição paradigmática construída sobre a poética e as utopias geradas a partir da observação das injustiças do mundo. É neste sentido que a abordagem das narrativas biográficas, enquanto metodologia qualitativa, construída a partir do empirismo crítico, nos parece relevante como proposta de trabalho. Na construção das diferentes narrativas sobre o real, o investigador procura captar, através de diversos instrumentos, a realidade percepcionada. Esta colheita de

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dados é o que lhe permite, nas fase posterior, partir para o processo narrativa de produção de conhecimento, validando ou não as suas hipóteses de investigação. Uma das críticas que as epistemologia do sul fazem ao processo metodológico centrado no sujeitos cientista enquanto produtor de conhecimento, é o de que na maioria dos casos, o que o investigador social reproduz, enquanto pesquisador não é mais dos que as suas preocupações, validando, ou invalidando as construções teóricas dominantes ao seu universo de conhecimento. Ao deslocar a produção do discurso para os próprios sujeitos, as narrativas integram a diversidade dos olhares do mundo, as pluralidades das experiencias. Estas narrativas, trabalhadas pelo investigador, permitem a integração de outras vozes na produção da racionalidade. A construção do conhecimento torna-se um processo de diálogo intersubjectivo. O próprio processo de produção de conhecimento, desde a recolha dos dados, da escolha dos processos de registo, a experiencia das narrativas, os trabalhos de validação e análise dos resultados, bem como a construção dos processos de comunicação e devolução do conhecimento traduzem uma prática em que o investigador se envolve, transformando-se a si próprio. Ao interpretar os dados do mundo, ao destingir na experiência o que é individual e o que é colectivo, o olhar biográfico permite a construção duma experiencia relacional que estrutura a acção. Mas, para além da experiencia do investigador, a mobilização e o reconhecimento das experiências dos atores sociais traduz igualmente um processo de emancipação social. O reconhecimento das experiências de vida, da participação social dos actores é mais do que uma simples experiencia reflexiva. Ela pode constituir um processo de acção, um catalisador da acção. Ao solicitar a palavra aos diferentes atores, a metodologia está também a fornecer

instrumentos de reconhecimento do poder da emancipação social que cada um dispõe. Instrumentos que podem ser utilizados em processo de construção de acção e de inovação social. As narrativas biográficas partem duma problematização transitiva e reflexiva dos objectos sociais. Se as relações ente o sujeito que observa e o objecto que é observado são transitivas (a ciência como técnica de analise da probabilidade e da imprevisibilidade) a sua expressão, como processo é uma relação entre a forma de comunicação (uma linguagem) e o compromisso que se cria como resolução dos conflitos das partes (uma dialéctica). O compromisso não anula o conflito, apenas o procura superar. Por outro lado se a relação entre o sujeito que observa e o objecto que é observado é reflexiva, (ciência como processo de interacção comunicativa) a sua expressão, como processo comunicativo é dialéctica. Isto é: o que é narrado, ainda que seja reportado a outro tempo e a outro espaço e reflectido sobre outras experiências; não deixa de constituir uma acção que transporta um potencial transformador. O potencial da acção, como possibilidade advém da sua relação com a adequação e conformidade ao contexto e aos papéis dos diferentes actores sociais. Objectos Biográficos O processo de investigação sobre objectos biográficos tem vindo a incluir uma reflexão sobre o sujeito implicado nas narrativas; seja do investigador sobre o seu objecto de investigação ou seja do narrador de si mesmo como implicado na construção duma memória de si, que se constitui como um processo de formação da consciência de si e das suas acções. Esta problemática tem vindo a ganhar espaço de reflexão na academia, herda um património que tem vindo a ser trabalhado em diversas abordagens das ciências sociais e humanas. A sociologia na escola de Chicago iniciou a utilização deste objecto

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por volta da década de vinte do século passado, no entanto a emergência do quantitativo e da crença no domínio da natureza pelos modelos objectivos, veio submergir a questão das abordagens biográficas para um plano de menoridade científica. As metodologias qualitativas e os fenómenos subjectivos são alvo de pouca reflexão fora de círculos muito restritos das academias. Nos anos sessenta a historiografia inglesa influenciada pela escola dos Analles, através da História Oral, inicia nesta ciência uma abordagem metodológica a resgate de memórias e eventos do movimento operário por via de entrevistas a indivíduos que testemunharam os acontecimentos. Paralelamente, durante essa década, a emergência das independências africanas, permitirá o desenvolvimento das metodologias sobre História Oral aplicadas às comunidades “sem história”. Recorde-se que na época a base da História era sinónimo de “domínio da escrita”, pelo que a associação da ciência ao símbolo gráfico que expressa o pensamento era considerada uma das distinções entre “selvagens e civilizados”. Quem não dominava os instrumentos simbólicos da notação escrita era considerado primitivo, e através dessa operação mental legitimava-se os processos de hegemonias colonial que o conceito de civilização transportava. Em nome da civilização geraram inúmeros processos de violência e destruíram-se inúmeras formas de saberes, formas de estar e perderam-se inúmeros processos e técnicas de transformação que as comunidades em todo o mundo tinham acumulado. Ainda no âmbito das políticas culturais defendidas pela UNESCO nos anos setenta, para resgate de tradições, que se procede em vastos territórios africanos e americanos à recolha e registo de tradições orais, sejam por via dos contos tradicionais, seja por via da música, da dança ou do trabalho. Esta tradição entroncava na velha tradição europeia nacionalista que havia iniciado com o movimento romântico, durante o século XIX, a fixação da “tradição” através da

escrita24. Através do estudo das línguas, procurava-se encontrar e legitimar a natureza distintiva das nações. Um movimento que contrariava a devesa da modernidade universal que o movimento iluminista procurava. No campo da antropologia e da educação, nos anos setenta do século passado, podemos verificar igualmente uma “apropriação” desta metodologia qualitativa para abordagem da relação de subjectividade construída pela “história de vida” como processo formador. Em suma interessa-nos aqui acentuar o argumento que o uso das narrativas biográficas entronca numa tradição qualitativa das ciências do humano. Pontuamos igualmente que como metodologia de trabalho de pesquisa e recolha de informação, as narrativas biográficas nos permite trabalhar a partir de problemáticas da intersubjectividade. A problemática da intersubjectividade parte do confronto do olhar sobre o real a partir da interacção entre os sujeitos produtores de conhecimento perante a consciência do seu próprio conhecimento. Trata-se de procurar uma relação dialéctica de superação. Uma relação que ultrapassa a relação tradicional entre o sujeito-objecto que funda a ciência moderna, bem como não se satisfaz pela busca do conhecimento pelo conhecimento. O intersubjectividade ao procurar situar-se no campo relacional assume que o processo potencia a criação duma dialéctica de transformação. Na narrativa biográfica, nos diferentes interlocutores, podem emergir formas de consciência de si próprio como ser social e experiencial. É igualmente um processo que catalisa formas de consciência de si através da acção. A operação de narrar a biografia é uma forma de tomar consciência de si e dos outros, de reelaborar os olhares sobre si e sobre o mundo. Narrar o si mesmo é uma forma de experiência. 24

Um movimento que encontra nos Irmãos Grimm um exemplo paradigmático.

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Trata-se portanto duma acção comunicativa que se traduz numa narrativa de representação que contem, para além de o ser individual o ser social em contexto. Mais, esta acção transcende ainda a relação entre o individuo e o todo pela possibilidade de inclusão do sentido estético e ético na relação. É por isso, igualmente uma poética. Trata-se portanto duma meta narrativa que contém uma pluralidade de histórias individuais que se constituem como fragmentos discursivos duma narrativa comum, de sentido emancipatório porque incorpora o reconhecimento (HONNET, 2011).

É neste domínio: o da utilização das práticas biográficas nos processos de investigação, que queremos salientar a sua pertinência como um elemento catalisador de processos de prática de transformação social. O olhar biográfico transporta um ato de narração. Uma acção de relatar a experiência vivida como construção do seu sentido. Esta poética da palavra ou dos gesto emerge como um reflexo do mundo experienciado e traduz o questionamento sobre a adequação da experiência a cada situação do presente. Uma inquietação que é gerada em função das vontades de reconhecimento como vontades de futuro

Uma narrativa constitui-se como um enunciado comunicacional, onde o emissor produz um discurso em função do destinatário. Ainda que essa narrativa seja feita no foro privado, ela constitui-se como um discurso reflexivo, onde o resultado alcançado depende da consciência do social desse sentido. Uma reflexividade que é tanto mais evidente quanto sabemos que no domínio da investigação, seja por parte do investigador que utiliza a metodologia, seja por parte do objecto de investigação, que não há uma neutralidade na representação. Os discursos, como acção, implicam uma vontade. Desse modo a produção do sentido na narrativa biográfica constitui como uma epistemologia e como uma fenomenologia que se verificam no domínio da intersubjectividade.

A construção da narrativa social processa-se portanto numa dupla dimensão processual. No plano do individuo comunicante que processualiza a experiencia individual em função do receptor da mensagem; e no plano do individuo como ser social, que igualmente se concretiza através do processo comunicacional, que transporta a consciência social do mundo. É nesse ato de comunicação que se processualiza a adequação dos saberes das comunidades, enquanto herança social, para a reconstrução dos sentidos e das orientações do social. Uma luta pelo reconhecimento e pela emancipação.

Os objectos biográficos transportam a densidade de significados que compõem as diferentes experiencias dos sujeitos, as suas expectativas de acção e a natureza relacional onde a interacção se processualiza. Esta riqueza pode ser apropriada pelo olhar museológico para construir uma prática de relacionamento entre o individual e o social ou vice-versa, na medida em que para além da sua natureza reflexiva, como forma de consciência do real a interacção biográfica assume-se como uma prática de integração de dados e como uma prática transformacional.

É esse movimento de reconhecimento e reconstrução dos sentidos que se constitui como um movimento libertador, um momento que ao ser socialmente partilhado se constitui como criador de solidariedades pela emergência da consciência da alteridade. O utilização das metodologias sócio biográficas permitem recentrar a produção dos saberes nos indivíduos como produtores das suas próprias experiencias e permitir o exercício de construção dos sentidos do social solidário. Se o exercício de biografização, a produção individual de sentidos é um momento experiencial, potencialmente libertador pela verbalização ou pelo ato performativo; o desafio essencial das metodologias biográficas decorre no processo da formação da consciência do individual como parte do

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social. É nesse diálogo entre o “eu” (na sua múltipla dimensão consciente e inconsciente) e os outros (também nas suas múltiplas dimensões), entre as linguagens da alteridade, que emerge o saber mestiço. Um saber que se alicerça na partilha das experiências como vontade de futuro. Como método de conhecimento a biografia e a narrativa biográfica é simultaneamente um modo de conhecimento onde os autores se assumem como produtores conscientes dos caminhos das suas vidas. Desse modo, o processo de conhecimento obtido não é apenas referencial (construído pelos currículos predeterminados) mas é um saber que decorre da experiência pratica intercultural (do acto de narrar, do acto de pensar, do acto de partilhar, do acto de transformar, do acto de sentir, do acto de imaginar) integral. É esta capacidade transformadora que constitui a riqueza epistemológica dessa proposta na museologia e que a permite alicerçar no interior dum paradigma emergente da transição no interior duma ecologia de saberes para uma emancipação social. Ora, como afirma Elsa Lechner “Independentemente do olhar disciplinar de onde se parte, as histórias de vida e relatos de experiencia têm ainda o poder de emancipar. Desde logo porque levam a tomadas de consciência, porque depois ultrapassas a fronteira dos estereótipos e permitem ao sujeito ressituar-se face à sua história e papéis sociais. Assim conceber a pesquisa biográfica também nos seus efeitos significa reconhecer a carga política que comporta, quer como método, quer como forma de apreender as realidades humanas” (LECHNER, 2009, 9). Importa reconhecer às narrativas biográficas, quando assumidas como narrativas sócio biográficas, como temos vindo a defender, o seu valor epistemológico como processo de partilha solidária de experiencias significativas para a construção dum mudança participada onde o local se funde no global. Em suma, ao invés de uma recolecção de elementos valorizados característicos das

fenomenologias com base no empirismo lógico, que geram redundâncias que apenas comprovam e reproduzem os processos de reprodução das narrativas hegemónicas, as narrativas biográficas, como método qualitativo, busca o reconhecimento de si como processo de mudança. Com a narrativa biográfica o discurso científico transfere-se para os sujeitos, que se tornam protagonistas da acção Esta metodologia da investigação-acção tem-se mostrado adequadas à recolha de informação original acerca de situações ou de actores em processo, à concretização de conhecimentos teóricos obtidos através do diálogo entre os investigadores e os membros das comunidades analisadas, e permite criar soluções adequadas aos problemas com que a comunidade se defronta. Como resultados da investigaçãoacção verifica-se o envolvimento dos membros das comunidades e o aumento da motivação para a mudança. A investigaçãoacção torna-se um processo de transformação que dá um indicador da utilidade do trabalho de investigação As narrativas biográficas, finalmente, permitem ultrapassar as redundâncias do empirismo lógico, onde todos os fenómenos são capturados como imagens (fragmentos das experiencias vividas) que são analisados inseridos num quadro de significações, preestabelecido que se justifica a si mesmo. Como todos os fenómenos são referenciados no campo da híper categoria espaço/tempo, e como tal relacionados com os seus contextos a procura da sua lógica narrativa, construída a partir do quadro de referência de quem observa, impede a verificação da inovação em contexto. O Centro Comunitário de Djabula Djabula é hoje um Centro Comunitário situado a meia centena de quilómetros a sul de Maputo, no distrito da Bela Vista, na estrada para a Ponta do Ouro. Há vinte anos, quando o régulo de Matatuíne concessionou as terras à pequena ONG portuguesa Vida, que havia trabalhado em Matíno na construção duma escola, o local

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era um deserto. O objectivo foi criar um centro comunitário. A oferta do uso da terra foi para concretizar essa ideia. Na cerimónia oficial da cedência do espaço foi feito um compromisso falado. A ONG comprometeuse a ficar no local durante o tempo que fosse necessário para dar um uso adequado à terra. Esta cerimónia, criou relação afectiva com uma comunidade que vivia dispersa no mato em torno de tabancas. No início foi necessário construir uma estrada. Havia apenas uma picada um caminho trilhado a pé pela população local. A abertura duma estrada, com cerca de trinta quilómetros de extensão permitiu a acessibilidade ao local do centro. Com acessibilidade foi possível fazer chegar materiais de construção para criar um Centro Comunitário. A ideia inicial do centro foi de desenvolver um trabalho de apoio à comunidade para a geração de rendimentos. Os poucos habitantes de Djabula viviam da venda de carvão, obtido no desbaste da floresta, e que produzem em pequenos fornos artesanais. Alguns tinham pequenas hortas junto das habitação e criavam pequenos animais domésticos. Era uma população escassa e com várias ligações à Suazilândia, para onde os homens partiam para a criação de gado. As primeiras ideias do Centro foram de desenvolver a agricultura para abastecer o mercado em Catembe e daí chegar ao Maputo. Rapidamente ficou claro que a agricultura era uma actividade marginal. Tão marginal quanto a área. O tipo de solos e a dificuldade em captar águas eram dois dos principais problemas. A principal vocação de Matatuíne era a pecuária e não a agricultura. Uma observação mais atenta e um melhor entrosamento com as populações locais fizeram entender que fora das margens de aluvião dos rios não havia condições para a agricultura. Paralelamente aos projectos de apoios à geração de rendimentos, desenvolviam-se diversos projectos de desenvolvimento integrado. Foram feitas intervenções na

melhoria das condições de habitação e construção de poços. Foi construído um centro de saúde, e foram feitas diversas acções de educação para a saúde. Os cuidados de saúde primários, a saúde materno infantil, os cuidados com o consumo de águas salobras. Como o objectivo da intervenção era o de criar uma autonomia na comunidade, o Centro Comunitário foi concebido para ser um centro das actividades da comunidade. Por isso deveria ser desenvolvida a sua autonomia e sustentabilidade. Foi por isso estimulada a criação duma associação de desenvolvimento local, através da participação da comunidade, que tem como objectivo fazer, no futuro, a gestão do centro, ao mesmo tempo que, actualmente, com o apoio da ONG, procura assegurar a sustentabilidade do centro pela criação der renda. No centro pensam-se e são aplicados e testados os projecto. Com apoio nos programas de cooperação internacional de ajuda ao desenvolvimento, cujos maiores dadores são os Italianos e Espanhóis e portugueses, apresentam-se projectos, que normalmente têm uma duração de dois anos a partir dos quais se procura criar dinâmicas próprias. Por exemplo, um dos projectos foi a capacitar mulheres para obtenção de rendimentos alternativos ou complementares das actividades agrícolas. Desse projecto resultou a criação duma associação de artesanato com uma marca própria (a marca Djabula). A associação de artesanato produz Batiques e outros trabalhos de tecelagem e costura. Foram instaladas cinco máquinas de costura e formadas várias mulheres. Foram criados cinco grupos de trabalho, todos voltado para a actividade do artesanato, através da transformação de materiais locais. Com o projecto procura-se criar condições de financiamento para o investimento inicial, devendo, no final do projecto, a associação ganhar a sua autonomia através da venda dos produtos que fabrica. No caso do grupo dos Batique, por exemplo, era preciso panelas para fazer os tingimentos.

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Era necessário dinheiro para comprar as matérias-primas que não se encontravam no local. O projecto permitiu financiar os investimentos necessários. Através da venda dos produtos em Maputo, as receitas revertiam para a Associação, que as deve aplicar na compra de mais materiais. Actualmente no Centro existe uma sala de costura onde estão instaladas as máquinas de coser. O trabalho é remunerado em função do número de horas de trabalho de cada costureira. O artesanato tem um grande problema que é sua sustentabilidade. A associação gere o rendimento gerado por esta actividade e as costureiras só trabalham quando há encomendas. Há alguma procura mas não se consegue é vender nesses mercados sem um sistema de comercialização a funcionar. Para criar esse sistema de comercialização é necessária uma maior diversidade de produção. O sucesso do artesanato está muito ligado á sua comercialização. A ONG deu apoio à comercialização dos produtos em Maputo, através da exploração de contactos comerciais nas lojas e feiras, que acontecem duas vezes por ano na Fortaleza. Mas são ainda poucas as oportunidades de venda. O trabalho no terreno na ajuda ao desenvolvimento é um trabalho lento e com resultados demorados. A Associação do Centro Comunitário de Djabula passou, a partir de 2010 a ter uma maior responsabilidade na gestão da sua infraestrutura e na partilha dos rendimentos. A comunidade tem uma palavra a dizer na distribuição dos rendimentos. Por exemplo, no último ano houve vários casamentos e funerais em que a comunidade decidiu contribuir. Ao despender essas verbas há uma menor capacidade de comprar matérias-primas para a Feira de Artesanato em Maputo, onde se costumam fazer boas vendas e contactos. A sustentabilidade do centro é hoje assegurada através da sua manada. Através da venda das cabeças de gado excedentárias torna-se possível pagar as despesas correntes - os pastores, a

alimentação das famílias e criar ainda um pequeno fundo para investimento nas outras actividades. A compra da manada resultou também de um projecto onde foram adquiridas cinquenta cabeças. A partir das cem cabeças faz-se a venda do excedente. Actualmente discute-se se no trabalho com as comunidades em África se deve apoiar os processos associativos ou os chamados inovadores em cada comunidade. Esta é uma questão interessante que conduz a resultados diferentes. A organização VIDA tem vindo a apostar no desenvolvimento do trabalho associativo. Segundo os seus princípios, é aquele que melhor permite a participação da comunidade e uma distribuição de rendimentos mais equitativa. Os defensores do investimento nos chamados atores privilegiados, concentrando o investimento da ajuda ao desenvolvimento em novas dinâmicas, procuram potenciar o efeito multiplicador do investimento. Nestes casos há uma menor participação das comunidades e um menor distribuição dos benefícios. O trabalho com as associações como meio privilegiado de intervenção na comunidade implica que se tome em atenção o trabalho de organização interna do grupo associativo, que se treinem capacidades de comunicação e reivindicação. Na ajuda ao desenvolvimento tudo se passa pela proposta e pela execução de projectos. Tudo está referenciado a acções que se desenvolvem no tempo e implica um controlo das diferentes actividades para monitorizar os seus resultados. A ONG Vida tem vindo a vocacionar-se mais para uma intervenção no apoio às associações de agricultores. Para esse trabalho a sua experiência no Centro Comunitário de Djabula é uma importante mais-valia pelo exemplo de organização que esta Associação dispõe. É hoje possível verificar que ao longo destes anos, os seus membros dominam os mecanismos da vida associativa, de organização de reuniões, de concepção de projectos. É muito interessante olhar para os seus membros e

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verificar que dispõem de capacidade de argumentação e reivindicação em situação de negociação social. O trabalho com as diferentes associações veio ampliar os interlocutores. Actualmente estão identificadas 15 associações do Distrito. É um trabalho extenso e complexo numa região de povoamento disperso com uma densidade de 7 habitantes por Km2. Percorrer todas essas associações é um trabalho muito moroso, mas muito rico em contactos humanos e na diversidade das situações. Há associações agrícolas que produzem determinados produtos que poderão ser trocados na região, ou associados a outros na rede de comercialização. Hoje, um dos seus principais problemas é o desafio de se sustentar todo este projecto. Uma peça essencial desse processo é a criação duma Casa Agrícola, numa zona mais central, a partir da qual se possa fazer um apoio a esta diversidade associativa que encontramos. A proposta de trabalhar as narrativas biográficas na comunidade de Djabula O rosto gretado pelo sol olha-nos altivamente. Oferece-nos a mão. Aberta e receptiva ao contacto. Olha-nos nos olhos à procura do nosso olhar. Sente-nos e Vê-nos antes de soltar a palavra. A palavra tem peso. Cada som é aferido ao seu sentido. Procuram-se significados. Reunir partes do todo. Dar sentidos. Em Matutuíne, a palavra do chefe tem peso e valor. Sentimos isso quando falamos com ele. Quando o procuramos para conhecer a sua história de vida. Para conhecer os seus modos de vida. Este encontro com João Khoma, capataz da fábrica, dirigente associativo, por direito de linhagem chefe local fez-nos entender que há discursos sobre o silêncio. Há vozes

que se dizem e não se ouvem, enquanto que há outras vozes que ultrapassam as sombras para darem sentido ao momento vivido. “Porque é que as pessoas pobres são alegres”, perguntounos a certa altura. Talvez porque a

pobreza que nós vemos seja apenas uma parte da matéria. Se basearmos a medida na felicidade, os bens materiais não perderão espaço. Ao encontramos estas palavras, entendemos que o que se diz em Matutuíne. As palavras são projecções dos conflitos na mente. A mente confronta-se com o real. Procura dominar esse real. As narrativas são pontos de emergência do consciente que transporta os sentidos do mundo. O nosso desafio foi então entender de que forma essas narrativas, enquanto projecção da consciência do mundo e o do inconsciente colectivo, reflectiam modos de olhar esse mundo. Olhar como eram integradas as ordens do mundo e procurar as sombras dos discursos como espaços de

transição expressam os conflitos não resolvidos. É nestas tensões que a acção se gera, com sucesso quando se adequa ao real, com insucesso quando dele se desadequa.

As narrativas biográficas transportam toda essa carga energética no discurso. Os fenómenos biográficos concentram a energia dos modos como cada um racionaliza o mundo, como o sente. Transporta os modos como cada indivíduo integra o todo. São portanto fenómenos visíveis no espaço da narrativa, vividos no tempo da narrativa. Escutar os sons, sentir o momento do discurso é uma experiencia que transporta sentidos plurais sobre os quais importa pensar. Nesse discurso de João Khoma, sobre a questão da pobreza e da felicidade, sentia-se essa tensão. Dizia-nos, ainda de mãos dadas, balanceando à sombra dum embondeiro: “-Há um tempo atrás, foi criado um Fundo de Desenvolvimento Local, para apoiar projectos agrícolas, dotado com sete milhões de U$. A ideia era fazer as populações saírem da

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pobreza absoluta. Eram beneficiários agricultores individuais. Cada um trazia o seu projecto. Uns para comprar motores de rega, outros para comprarem ferramentas, sementes. Este projecto acabou por beneficiar sobretudo os comerciantes, pois era quem conseguia fazer o projecto. Eles recolhiam os empréstimos e subcontratavam os agricultores para cultivarem o que queriam vender. ”. E continuava: “Mas, aqueles que conseguiram fazer projectos, com apoio das associações, de acordo com os regulamentos, cada pessoa apenas se podia candidatar a um apoio máximo de 200.000 meticais para comprar o que necessitasse. No final, como o valor foi dividido por todos os candidatos, acabaram por receber apenas ¼ do que se havia solicitado”. E concluí com perspicácia. “Ora assim cada um fica com uma dívida, e como o dinheiro recebido não chega para completar o investimento, acaba por gastar noutras coisas. O comerciante, com está sempre a vender consegue desenvencilhar-se. Mas o agricultor individual fica mais pobre. Antes eram pobres e sem dívidas. Agora são pobres com dívidas. Nestas palavras nota-se amargura de quem vê com clarividência o que se vai passando, A forma como esta gente de fora chega, cheia de projectos que trazem promessas, deixando atrás de si os rastos da pobreza quando, findo os seus projectos regressam às suas terras. “O fundo acaba apenas por beneficiar uns quantos: Os fundos são para os amigos”. Os agricultores são marginalizados. Só lhes resta adaptarem-se a mundo e fazerem amigos. Mas também estes novos amigos se vão transformando. A rede de interesses vai-

se instalando. Vai irradiando da cidade para o interior. Muitas vezes, aparecem por ali dadores que pedem a apresentação de projectos. Como os projectos vaiáveis são poucos, em regra, as avaliações são negativas. Mas quem aprecia o projecto sabe o que está a fazer. Pouco tempo depois eles aparecem com outro promotor. Eles acabam por ser apropriados pela “máfia” que se instala entre os dadores e os beneficiados. Conclusão Neste artigo procedemos a uma revisão das propostas teóricas das “epistemologias do sul”, de Boaventura Sousa Santos, a partir da aplicação das metodologias de investigação-ação com base nas narrativas biográficas. A partir dos exemplos de “oficinas biográficas” desenvolvidos por Elsa Lecnher (2012) e da proposta dos “círculos de memória” de Pedro Pereira Leite (2012), procuramos analisar as suas condições de produção nas comunidades do sul de Moçambique. Nesse processo descrevemos e analisamos a metodologia de trabalho. De seguida apresentamos em linhas gerais o desenvolvimento do trabalho que levou à formação do Centro Comunitário de Djabula, no Sul de Moçambique. Durante os trabalhos de diagnóstico identificámos alguns atores locais relevantes e analisamos as condições de desenvolvimento dos trabalhos. Na sequência dos trabalhos a desenvolver vai ser proposto um projeto de “Casa das Memórias” a desenvolver com a população local no Centro de Desenvolvimento Comunitário de Djabula. A Casa das memórias será elaborado pela população local através de objectos, histórias, sons e danças

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que são escolhidos e darão suporte às narrativas escolhidas pela comunidade. A negociação deste tipo de projeto com os actores locais permite partir dos partir dos problemas locais, das pessoas. Permite uma aproximação e um diálogo entre os diferentes saberes, ao invés de fazer projectos em gabinetes. Olhar para os problemas das comunidades de múltiplas perspetivas e ganhar profundidade nas análises. Bibliografia Delory-Momberger, Christine. Formação e socialização. Os ateliês biográficos de projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, 2006 Delory-Momberger, Christine. Les Histoires de Vie: de l‟invention de soi au projet de formation. Paris: Anthropos, 2004. Ferrarotti, Franco. Sobre a Autonomia do Método Biográfico. In: NÓVOA, António; FINGER, Matthias (Org.). O Método (auto)Biográfico e a Formação. Lisboa: Ministério da Saúde, 1988. P. 17-34. Farroti, Franco, (1991). “Sobre a autonomia do método biográfico”, in Sociologia:

Problemas e Práticas, nº 9, 1991, pp 171177 Honnet, Axel (2011). Luta pelo Reconhecimento: para uma gramática moral dos conflitos sociais, Lisboa, Edições 70, 287 páginas Lechner, Elsa, (2009). “História de Vida: Olhares Interdisciplinares” Porto, Afrontamento Lechner, Elsa (2012), “Oficinas de Trabalho Biográfico: pesquisa, educação e ecologia de saberes” Revista Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 37, n. 1, p. 71-85, jan./abr Leite, Pedro Pereira (2011). Olhares Biográficos, A Poética da intersubjetividade em museologia, Lisboa/Ilha de Moçambique, Marca D‟Agua, 61 páginas Santos, Boaventura de Sousa (2000) “Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da Experiência”,Porto Edições Afrontamento. Santos, Boaventura de Sousa (2006). Gramática do Tempo. Porto, Edições Afrontamento Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula. (2009). Epistemologias do Sul. Coimbra, Almedina

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A Saúde Materno-Infantil e os Problemas do Desenvolvimento25 A saúde materno-infantil é um tema que tem vindo a preocupar técnicos de saúde, investigadores e agentes de cooperação a nível mundial, tornando-se numa estratégia internacional, desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde, com o objectivo de promover serviços de qualidade, de forma a reduzir o número de mulheres e recém nascidos afectados por doenças preveníveis e tratáveis durante a gravidez ou parto. Com os acordos de Alma Ata, promovidos em 1978 pela Organização Mundial de Saúde, iniciou-se um processo a nível mundial de difusão dos cuidados primários de saúde. Na declaração que resultou deste encontro, expressou-se a necessidade de acção urgente de todos os governos, todos os trabalhadores da saúde e do desenvolvimento bem como da comunidade mundial, para proteger e promover a saúde de todas as pessoas do mundo, sem qualquer discriminação. Na Cimeira do Milénio realizada no ano 2000, os líderes de 191 Países definiram alvos concretos para a melhoria de vida da população mundial. Na declaração resultante desta cimeira, foi definido como objectivo concreto a “redução, até 2015, da mortalidade materna em três quartos e da mortalidade de crianças com menos de 5 anos em dois terços, em relação às taxas actuais” (Nações Unidas, 2000), no que se refere aos cuidados de saúde materno-infantil. Entro os oito objectivos gerais traçados nesta declaração, este objectivo, o quarto, tem sido um dos mais difíceis de alcançar. No relatório de 2013 a mortalidade materna e das crianças continua bastante elevada em muitos países da África subsariana, onde uma em cada nove crianças morre antes dos cinco anos (Nations, 2013). Para se atingirem estes objectivos foram apontadas como acções prioritárias a vacinação dos bebés, a sua nutrição adequada, o incentivo do aleitamento materno, e a aplicação de comportamentos nutricionais adequados. Um conjunto de projectos que implicam um importante apoio às comunidades, quer na implementação dos serviços de saúde, quer de assistência à comunidade no campo da Educação para a saúde. Perante estes resultados tem vindo a ser salientada a necessidade de se efectuarem mais estudos que aportem outros olhares e novos conhecimentos que permitam inverter estes resultados. (Nations, 2013) Entre os novos modos de olhar para estes problemas, tem-se vindo a defender a necessidade de se colocar perguntas pertinentes para os problemas concretos das comunidades. Por exemplo, saber qual é a percepção das mulheres em relação à sua própria vulnerabilidade na comunidade, como é que as mulheres imaginam, compreendem e atuam face á saúde no dia-a-dia. Quais os seus modos de relação com os serviços de saúde implementados. 25

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Torna-se portanto necessário compreender a relação entre a percepção de vulnerabilidade reprodutiva das mulheres e as estratégias de saúde implementadas. É importante perceber de que modo a mulher decide e aceita participar nas propostas de melhoria da saúde que lhe são feitas, bem como é necessário entender de que forma os contributos e a participação da comunidade podem ajudar a implementar os diversos objectivos estabelecidos. Na Guiné-Bissau os dados oficiais sobre a mortalidade materno-infantil são muito escassos, contudo, segundo o relatório de desenvolvimento humano de 2013, em cada 10.000 nados vivos morrem 150 crianças com menos de 5 anos. No que se refere à taxa de mortalidade materna, esta era de 790 óbitos (dados de 2008), sendo um dos países que apresenta uma maior taxa de mortalidade materna e infantil. Nesta situação importa entender o modo como os servições e as medidas de saúde materno-infantil estão a ser implementadas e qual o grau de proximidade e adesão das mulheres a estas medidas. A relevância desta investigação encontra-se nesta proposta de procurar entender, por um lado a extensão dos serviços de saúde a uma comunidade, e por outro lado o modo como as mulheres actuam face à proposta de saúde. Neste documento faremos, num primeiro momento uma leitura crítica sobre a ideia do desenvolvimento, de seguida apresentamos as contribuições mais relevantes da análise no campo da saúde reprodutiva. No final procuraremos concluir sobre a relevância desta questão para as comunidades Felupes. A ideia de Desenvolvimento A ideia do desenvolvimento como objectivo ou como processo, tem vindo, desde o discurso de investidura em Janeiro de 1949 do segundo mandato do presidente Harry S. Truman, a impregnar o vocabulário das ciências sociais. O presidente Truman, para além do Plano Marshall, com o qual em 1947 havia iniciado o ERP (European Recovery Program), programa de assistência financeira à reconstrução europeia, concebido como ajuda às nações democráticas europeias a conter o avanço do projecto comunista, propunha, no seu segundo mandado, assegurar o funcionamento das instância de regulação mundial, com

base nas Nações Unidas e suas agências, assegurar o apoio às nações fundadas nos princípios da democracia liberal (com base na livre iniciativa e no livre-câmbio), e propôs um novo programa que permitisse o crescimento das regiões subdesenvolvidas através da aplicação dos resultados do progresso científico e industrial das nações democráticas. A proposta do desenvolvimento como caminho de resolução do subdesenvolvimento, é portanto uma proposta que vai impregnar uma história de mais de meio século de debates de políticas, programas, debates teóricos e propostas. É um tema que é recorrente nas ciências sociais: tendo na economia, na sociologia, na antropologia, nas relações internacionais e na história

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campos férteis de investigação e debate. Ele impregna igualmente o discursos e as narrativas das demais ciências, como a psicologia do desenvolvimento, o desenvolvimento urbano, o desenvolvimento cultural, através de uma análise diversificada de problemáticas, todas elas procurando reflectir os programas de acção, sobre o humano, sobre o social e sobre a cultura. Nesta abordagem da dualidade Desenvolvimento/Subdesenvolvimento, como processo, para além do determinismo processual (onde se evidencia uma relação de causa-efeito) podem-se igualmente notar, como elementos integrantes desse paradigma, a importância da centralidade do Estado, como forma organizacional da condução e concretização das diversas agendas. Uma centralidade através da qual passava toda a negociação dos programas de ajuda ao desenvolvimento, negociação que se efectua sobretudo através de programas que canalizam as “ajudas ao desenvolvimento”. Ainda que marginalmente outros parceiros como as ONG possam a emergir como atores, com diferentes capacidades de negociação, a convicção sobre o princípio de alocar recursos a determinado fins permanecia o elemento paradigmático. É certo que a crítica à ideia de Desenvolvimento, como processo de “ultrapassagem” da condição de subdesenvolvimento sempre esteve presente. Por exemplo, com a emergência das políticas neo-liberais, os estados europeus tenderam a distanciar-se duma intervenção directa e a incentivar a intervenção das empresas e a estimular a emergência de trocas nos “mercados”; enquanto, por outro lado, alguns críticos tem

vindo a chamar a atenção, não só para o desgaste semântico do conceito, como fundamentalmente para a constatação que apesar de todo o esforço aplicado, para além das retóricas discursivas e em políticas públicas, as questões da pobreza, de desigualdade, da desregulação ambiental se vinham mantendo e ampliando. Não é todavia de subestimar que nos anos iniciais, sobretudo entre os anos sessenta e setenta, em África, e para além dos diversos conflitos que periodicamente assolaram diversas regiões, após as independências importantes avanços na promoção do bem-estar das populações, na promoção da saúde, na educação, na infra-estruturação dos diversos territórios foram alcançados. Os novos estados nacionais através de políticas públicas e os diversos programas de “ajuda ao desenvolvimento”, seja por via das organizações internacionais (UNESCO, UNICEF, OMS, FAO); seja por via de políticas de cooperação entre estados ou através de ONG‟s, alcançaram num primeiro momento importantes resultados mas que rapidamente estagnaram. Esta “modernização social e seu crescimento económico” estagnou na década de oitenta: “a década perdida” nas palavras de Frederico Mayor, o que levará a busca de novas práticas e novos objectivos pelas organizações internacionais, que ficará conhecido como os “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio” (ODM), um conjunto de indicadores que procuram concentrar a acção num processo de construção de mudança social, com o objectivo a melhorar os índices de Desenvolvimento Humano. Vejamos como essa mobilização da vontade de mudança, de transformação das sociedades, medida

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por vias de indicadores do progresso, se foi ajustando ao longo destes anos. Em 1996, Gilbert Rist propôs-se construir uma “História do Desenvolvimento” (Rist, 2002). Segundo o autor, depois de apresentar a sua raiz protestante, criada por Adam Smith na “Riqueza das Nações”, o autor analisa como ele se transforma num mito “eurocêntrico”. Um mito que radica no “espírito de cruzada” dos primeiros actos de ocupação europeia do sul, que dará origem ás diversas colónias, colónias que são alimentadas por um intenso tráfico negreiros, que faz produzir uma debandada de milhões de seres humanos das áfricas para as Américas. Depois, com a sua transformação “em Missão Civilizadora”, através da partilha e ocupação da vastidão dos territórios africanos, até aí inacessíveis ao homem branco. Uma ocupação que em grande parte é devida à necessidade de procura de matérias-primas para alimentar o mercado europeu. Um programa que é bem visível no projecto da Sociedade das Nações (Rist, 2002). Rogério Roque Amaro, em 2003 propôs igualmente uma leitura crítica deste conceito através da sua releitura (Amaro, 2003). Roque Amaro percorre a formulação conceptual, desde a sua formulação inicial com Adam Smith na “Riqueza das Nações”, passando pela sua aplicação à industrialização das sociedades do centro, aos conflitos entre os defensores do desenvolvimento, versus crescimento económico. Aborda o problema dos conflitos Este-oeste versus Norte-sul que marcou os “gloriosos trinta anos” do pós-guerra, até chegar à crítica formulada a partir dos anos 70. Nos três últimos pontos do seu trabalho vai apresentar, o que na sua opinião, são

os argumentos da potencialidade do conceito. A questão do modelo de desenvolvimento como uma sucessão de técnicas aplicadas no terreno da economia é criticada sem grande sucesso por economistas no pósguerra. A emergência das independências das colónias africanas a partir da década de sessenta criara o terreno fértil para a aplicação dos planos de desenvolvimento. As avaliações feitas dos planos rapidamente revelam que, se por um lado, as campanhas de saúde pública e vacinação, tinham aumentado a esperança média de vida e diminuído a mortalidade, especialmente a mortalidade infantil, a aplicação dos planos de educação tinham aumentado a taxa de escolaridade de muitos destes países, os esperados progressos da produtividade e económica e do aumento generalizado do Bem-estar social não se tinha verificado. Alias, em muitos casos, tinha havido mesmo um retrocesso aos níveis dos indicadores de desenvolvimento. Se o “arranque” das economias do “terceiro mundo” não se tinha verificado, também é verdade que muitos outros problemas foram começando a ganhar visibilidade, nomeadamente o desregulado consumo de matérias-primas, e os impactos do crescimento económico ao nível do ambiente. Ao mesmo tempo, é necessário não esquecer, toda a intervenção é legitimada com presença da ciência e de inúmeros consultores hiper-especializados (Amaro, 2003). É também a época, em que quebrada a cortina de ferro na Europa central e de leste, a utopia colectivista do socialismo se revela como incapaz de construir uma sociedade de indivíduos sem a presença do mercado; e ao mesmo tempo as sociedades do

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progresso e do bem-estar vêem a economia de mercado transformar o indivíduo no centro do consumo, numa “sociedade de indivíduos” (Elias, 1993). E a partir da crítica destes modelos vão emergir as ideias da participação da comunidade, a mobilização das capacidades a partir da própria comunidade e a necessidade de abordar os vários problemas de forma integrada (Amaro, 2003). Esse novo modelo vai ser defendido como modelo de intervenção das Nações Unidas, onde, para além de outras questões, integra ainda a questão da Paz, como elemento estruturante das relações humanas. Como consequência dessa consciência crítica emergem novas formulações sobre o conceito de desenvolvimento. Rogério Roque Amaro salienta o surgimento de seis, por ordem cronológica: sustentável, local, participativo, humano, social e integrado. O autor organiza-os em três “fileira conceptuais, em função do paradigma dominante” (Amaro, 2003). O ambiental, centrado nas condições do sistema vital de subsistência e sobrevivência. O das pessoas e das comunidades, centrado na dimensão social e cultural do humano. E a dos Direitos Humanos, centrada nas questões da filosofia e da ética. Não vamos aqui detalhar a análise do autor sobre estes paradigmas, mas interessa salientar, entre eles, a dominância do paradigma “desenvolvimento humano”, que através do contributo do PNUD tem vindo a reformular os paradigmas de intervenção do âmbito do Desenvolvimento Social, com base na criação dum conjunto de indicadores que dão um retracto sobre o “processo de criação de condições sociais mínimas, de produção de bem-estar humano nos vários países do mundo”,

e que devem balizar a intervenção dos estados membros e organizações internacionais. Este é um conceito que emerge nas organizações internacionais, por via das contribuições das ONG de Desenvolvimento que se centravam no desenvolvimento e empoderamento das comunidades. A análise do Rogério Roque Amaro é, como aliás ele refere, um modelo de reflexão. Não podemos generaliza-lo directamente a casos concretos, tanto mais, que a noção de “Desenvolvimento Integral”, defendido pela UNESCO com um valor de fim e como processo, se cruza com todos os paradigmas, acrescentando outros valores, tais como o são os da multidimensionalidade dos processos, da interdisciplinaridade, da complexidade e da participação. Este último conceito, de desenvolvimento Integral, “pode ser concebido como um processo que conjuga as diferentes dimensões da vida, dos seus percursos de mudança de melhoria, implicando por exemplo a articulação entre o económico, o social, o cultural, o político, o ambiental; a quantidade e a qualidade, as várias gerações, a tradição e a modernidade, o endógeno e o exógeno, o local e o global, os vários parceiros e instituições envolvidas, a investigação e a acção, o estar, o fazer, o criar, o saber e o ter (as dimensões existenciais do desenvolvimento); o feminino e o masculino, as emoções e a razão, etc (Amaro, 2003), acaba por se transformar numa dimensão disjuntiva dos processos de acção sobre o social. E é nesse quadro que os objectivos de “desenvolvimento do milénio” são concebidos. Os oito compromissos que emergem desses objectivos passaram a balizar a acção e o projecto do

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futuro. Esse é todavia, como refere Roque Amaro um dos desafios que o conceito transporta, a que se junta muitos outros, nomeadamente o desafio do novo paradigma científico baseado na complexidade e na ruptura da pós-modernidade. É com base nessa reflexão que se interroga sobre a utilidade desse conceito como conceito operativo. O autor defende a ideia de desenvolvimento, enquanto conceito, como uma ideia operativa: Como algo sobre o qual se exerce a reflexão com o objectivo de criar melhores condições de vida. Algo, através da qual se podem realizar os grandes desígnios da humanidade. (Amaro, 2003) Ora aqui chegados importa então reflectir como é que a questão do desenvolvimento se tem vindo a situar no âmbito das epistemologias das ciências sociais. A arquitectura do campo semântico dos Estudos do Desenvolvimento é um campo complexo. A perspectiva do PósDesenvolvimento, tal como é apresentada por Adam Ziai (Ziai, 2007) tem sido apontada como um caminho teórico para ultrapassar os impasses na crenças das transformações sociais e económicas com base no plano da acção. A análise dos Pósdesenvolvimentistas, para além de abordar a questão da génese eurocêntrica do projecto, introduz na análise das narrativas da acção, a análise das relações de poder e o papel dos atores, nomeadamente a questão do direito da participação das comunidades na concepção, gestão e avaliação dos programas e medidas que lhe digam directamente e indirectamente respeito. A crítica do pós-desenvolvimento procura ir para além da crítica ao eurocentrismo das políticas de desenvolvimento como processo de ultrapassagem da dependência criadas

pelos sistemas coloniais e póscoloniais. Procura ultrapassar a crítica ao mecanicismo dos processos de desenvolvimento, concebidos como um conjunto de passos pre-derminados que contem moldam a realidade social, e procura a reproblematização dos fenómenos económicos a partir da sua complexidade e da diversidade de relações entre os actores em interacção. Em “Exploring Post-development Theory and Practice. Problems and Perspectives” Arama Zial, apresenta uma interessante síntese das problemáticas do pós-desenvolvimento. (Ziai, 2007; Ziai, 2007) Assumindo a natureza polémica das fundamentações teóricas dos Estudos do Desenvolvimento como um campo de problemáticas controversas e fracturantes, procura fundamentar uma crítica aos seus limites teóricos no âmbito do paradigma científico hegemónico. Procura portanto ultrapassar a ideia da sacralização Desenvolvimento, concebido quer como um fim (o objectivo a alcançar, mensurável através de determinados indicies, como por exemplo o Índice de Desenvolvimento Humano, ou os Índices de Desenvolvimento Económico), quer como um processo (concebido como um caminho de determinadas práticas e procedimentos) para atingir um objectivo. A ideia de uma pósdesenvolvimento, na esteira do que vinha sucedendo nas demais ciências sociais com a ideia do pósmodernismo. (Ziai, s.d.) A nova proposta do pósdesenvolvimento, de acordo com a proposta de Arturo Escobar parte da abordagem ao problema da criação da riqueza, através duma análise multidisciplinar. Para Escobar a criação da riqueza deve partir das condições de

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cada comunidade numa perspectiva de criar uma emancipação. A questão do que é a pobreza, torna-se aqui numa questão chaves, para a definição dos conceitos de emancipação. A pobreza, no pós-desenvolvimento, é mais do que ausência de bens-materiais. A Pobreza tem essencialmente a ver com a capacidade de cada comunidade, assegurar ou não, a sua sustentabilidade no espaço e no tempo. (Escobar, s.d.) Finalmente, esta proposta dos estudos do Pós-Desenvolvimento só é viável a partir dum conjunto vasto de estudos de base. O livro citado, na parte final procura apresentar um conjunto de casos, onde partindo da análise das realidades das comunidades, resultaram processos que conduziram à construção dos programas de desenvolvimento. É nesta dimensão que emerge a importância dos atores locais, como protagonistas dos processos, a importância da incorporação dos processos de negociação informal e das práticas reflexivas nos processos de construção dos projectos. A análise da proposta de Zial implica que de alguma forma é necessário fazer diminuir as exigência formais das agências de financiamento, abandonar a rigidez formal dos processos burocráticos e partir para a construção de projectos com base na observação das condições das comunidade, na negociação da acção com esses atores, procurando, através do seu protagonismos, alcançar processos de emancipação social. Ora a incorporação das teorias do PósDesenvolvimento implica igualmente olhar para a forma de organização dos processos da actividade. No fundo, há uma linha que atravessa o olhar sobre estas problemáticas que continua a dividir os campos de problematização. Dum lado temos as teorias do

mercado, que defendes a necessidade de reduzir a actividade económica à troca de mercadorias, que implica a continuidade dos processos de globalização. No outro lado desta linha, temos as teorias críticas, que olhando para os diversos bloqueios que a mercantilização do mundo produz, que conduz a impasses ambientais, energéticos, alimentares, obriga a pensar formas de transição. Uma transição que é emergente e deverá partir duma análise da emergência. A proposta da “Economia Solidária” (Hespanha & Santos, 2011) é uma proposta que entronca nesta perspectiva. A Economia Solidária baseia a sua proposta na investigação sobre as formas económicas de carácter associativo, cooperativo e autogestionário. A compreensão das práticas económicas marginalizadas, são na economia solidária a chave da construção dos novos projectos. Isso permite a incorporação das alternativas de desenvolvimento, o estudo e a reflexão sobre as diversidades de cenários e o pensar, a vontade de ultrapassar a escassez de recursos e pensar na realização do ser humano. Cada caso é um caso singular, que se integra numa ecologia de saberes. É essa singularidade que enriquece a pluralidade de análise dos casos e fundamenta a análise teórica e pratica. Como tal, nesta abordagem é necessário repensar o papel do Estado e das políticas públicas. O Estado, como organização matricial, é repensado como instrumento de regulação das fórmulas descentralizadas de produção. Ao invés de se concentrar na construção teleológica do mercado, os dos objectivos nacionais primordiais, o Estado fornece um conjunto de serviços que assegura a distribuição e o acesso aos recursos.

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Em suma sintetizando as actuais problemáticas dos Estudos do Desenvolvimento, à questão do mercado e da globalização neo-liberal que temos vindo a assistir como processo hegemónico, propõe-se a integração dos processos locais, das diferenças e da heterogeneidade que as características endógenas e de contexto das comunidades permitem. A ideia do crescimento económico com base num processo pre-determinado e a ideia do desenvolvimento como um “fim desejado” acabou por produzir um espaço global, sem configuração específica fora do quadro de referências hegemónico, que apenas sobrevive na manutenção de centros hegemónicos em dominação das periferias. Nesse processo, a globalização mobiliza os diferentes agentes (Estado, empresas, Organizações Internacionais), que formata e instrumentaliza em função dos seus fins, ao qual é necessário contrapor outros processos de organização, legitimação e estruturação social. Processos que devem resultar das condições concretas de cada comunidade, da produção de conhecimento emancipatório, de formas de organização solidárias com base na participação das comunidades, onde são integradas as questões da igualdade de género, da resolução de conflitos pela negociação de compromissos, assegurando a livre expressão e o debate de ideias como processo de construção da acção social. A questão do desenvolvimento não pode ser uma questão teleológica, mas tem que resultar duma vontade de desenvolvimento. Como todas a acções e processos sociais a vontade de desenvolvimento é uma narrativa. O processo de construção das narrativas

alimenta-se dos desejos e das capacidades de negociação de cada um dos actores. Na formulação dos desejos estão implícitos os modelos. Nesse sentido, não pode haver vontade de desenvolvimento sem vontade de emancipação e sem vontade de construir a acção. Essa questão levanta o problema dos limites da vontade do desenvolvimento. Saber até que ponto uma comunidade se empenha na sua própria transformação, seja por contágio de outros contextos, seja por vontade própria. Esse aspecto reforça o carácter multidisciplinar dos processos e dos agentes de desenvolvimento e reforça a necessidade de concretizar processos de investigação implicados numa acção emancipatória que permita a construção de compromissos com as comunidades. Esta aparente complexidade epistemológica conduz a investigação para a sua implicação na acção. É nesse sentido, o valor da acção da investigação nos Estudos para o Desenvolvimento, que importa igualmente equacionar. Quando abordamos a teoria da acção e a estratégia da participação dos atores, referimo-nos à sua “vontade de desenvolvimento”. Como verificamos, mais acima, esta vontade, é muitas vezes enunciada a propósito do desenvolvimento como vontade de futuro. Nos Estudos sobre o pósdesenvolvimento, em particular no campo epistemológico das Epistemologias do Sul, defende-se que há uma necessidade de recentrar a acção no presente. Formular perguntas pertinentes para obter respostas fortes. (Santos, 2006) O saber e as prática das comunidades, muitas delas alvo de processo de hegemonização e dominação, foi alvo de um processo que conduziu ao esquecimento e à dissimulação. Muitas dessas formas

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transformaram-se e misturaram-se produzindo outras formas de acção, que a sociologia das emergências procura resgatar. Ora segundo o autor é necessário descentrar as formas de pensar das ciências sociais. A domesticação do pensamento levou a que a produção do conhecimento tenha passado a ser feito fora da sociedade, criando-se instituições (escolas e universidades) que são instâncias legitimadoras das narrativas. Esta separação entre o saber e o fazer em instituições que apenas se dedicam à produção de conhecimento impede a emergência do conhecimento sobre as acções rebeldes porque produz conhecimento padrão. Ou seja, segundo o autor verifica-se uma certa impossibilidade de gerar uma ideia revolucionária numa instituição conservadora. A implicação com a acção permite transportar a produção de conhecimento para a comunidades, implicando-a nesse processo, partilhando com essa comunidade o processo de emancipação. (Santos, 2006). A saúde reprodutiva em Africa Os debates actuais no âmbito da ajuda ao desenvolvimento dos sistemas públicos de Saúde nos países menos avançados evidenciam a relevância dos processos de sustentabilidade dos sistemas de saúde públicos: A extensão e a qualidade dos cuidados de saúde fornecidos ou a fornecer dependem da capacidade de financiar e manter esses serviços. Este é um processo complexo onde se confrontam diferentes visões e formas de construção de políticas públicas. Quando em 1978 é aprovada e assinada por 134 países a “Declaração

de Alma-Ata”, um conjunto alargado de actores sociais exortam os vários governos do mundo, as organizações internacionais, nomeadamente a Organização Mundial de Saúde e a UNICEF, bem como as instituições financeiras (o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) a aplicar os princípios da Conferência Internacional de Cuidados Primários de Saúde. Nessa conferencia promovida pela Organização Mundial da Saúde, na antiga União Soviética defendia-se, entre outros aspectos, que a universalidade do acesso e das redes de cuidados primários de saúde constituíam a chave para, até ao ano 2000, alcançar “um nível aceitável de saúde para todos os povos do mundo (…) mediante o melhor e mais completo uso dos recursos mundiais, dos quais uma parte considerável é actualmente gasta em armamento e conflitos militares”. (World Health Organization;, 1978) Para além da retórica política, característica da época da Chamada Guerra Fria, nesta declaração sobressai nitidamente uma defesa da importância da Saúde e dos serviços de Pública no atingir dos fins do desenvolvimento. Realça que “a saúde - estado de completo bem- estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental” (World Health Organization;, 1978) na qual concorrem os diferentes sectores da sociedade. Através destes serviços Universais de Saúde pretendia-se corrigir “a chocante desigualdade existente no estado de saúde dos povos, particularmente entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como dentro dos países” (United Nations, 1978). Para além da importância dos serviços e acesso a serviços de Saúde na

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construção do “desenvolvimento” a declaração defendia ainda no seu itam IV o “direito e dever dos povos participar individual e colectivamente no planeamento e na execução de seus cuidados de saúde. (ibidem, IV). Ainda no ponto seguinte definia a principal responsabilidade pela implementação aos governos, essa mobilização da participação das comunidades na resolução não deixa de ser da maior relevância, pois nem sempre este princípio estará presente em todas as propostas. Realça-se ainda que nesta declaração os cuidados de saúde primários foram definidos como sendo “cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu desenvolvimento(…). Fazem parte integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e económico global da comunidade. Representam o primeiro nível de contacto dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, qual os cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde”. (World Health Organization;, 1978) Contudo, após a forte crise do petróleo de 1979, na década de oitenta o mundo assistirá ao imergir, na política económica, dos princípios do neoliberalismo. Para estimular a economia e promover o funcionamento

dos mercados, os Estados deveriam centrar-se na regulação e abster-se de intervir directamente na prestação de serviços à sociedade. Através dos programas de apoio ao desenvolvimento e ajuda humanitária, ou de ajustamentos estruturais, as grandes instituições mundiais (sobretudo o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) defendem a restruturação e renegociação das dívidas externas. Como contrapartidas das ajudas e apoio aos projectos direccionados ao crescimento económico e social exigese, que todas as trocas de bens e serviços se desenrolem no mercado. O impacto desta orientação tem vindo a repercutir-se nos ajustamentos dos serviços públicos de saúde. Um ajustamento que tem vindo a ser executado sobretudo com a exclusão dos mais pobres e dos menos aptos a participar nos processos de mercantilização da vida social. (Pfeiffer & Chapman, 2010) Vários estudos realizados, sobretudo sobre o impacto do domínio da medicina baseada no mercado, ou seja da mercantilização da saúde, especialmente nos EUA, vêm demonstrando que as políticas neoliberais aplicadas, têm posto em causa a qualidade dos serviços prestados. Na equação que resulta da aplicação na saúde do princípio da rendibilidade do produto pode existir uma contradição com a correcção dos procedimentos médicos e dos serviços de saúde. O facto de se permitir que as forças do mercado ditem os mecanismos de cuidados de saúde, favorece o aumento de uma gestão ineficiente e a desigualdade de condições de acesso: o serviço mais rentável não é, necessariamente, o mais adequado às necessidades do paciente, aqui transformado em

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cliente. Paralelamente, a mercantilização do acesso ao serviço, gera uma desigualdade de oportunidade em função da disponibilidade de renda para pagamento desses mesmos serviços. Nesta alteração de lógicas, também se verifica que tendencialmente se desvaloriza a relação paciente – médico. Ainda que no procedimento unitário se possa verificar uma economia de recursos, a tendência, a prazo, no conjunto social mostra ser um aumento de custo social e perda de eficiência do serviço e crescimento das desigualdades no acesso aos serviços de saúde (Rylko-Bauer & Farmer, 2002). Este é um processo que acentua a importância da participação dos indivíduos e das comunidades nos processos de decisão de formação de políticas públicas. No âmbito das narrativas dos profissionais de Saúde e dos serviços de Ajuda Humanitário a reflexão sobre os impactos dos mecanismos de ajustamento estrutural nas comunidades tem permanecido ausente. Os seus efeitos, no afastamento dos grupos mais vulneráveis começa actualmente a emergir como um campo de investigação, onde se procura relacionar os processos de marginalização económica com as percepções sobre os riscos na saúde pública e as diferentes estratégias de gestão da saúde dos indivíduos e das comunidades. (Chapman, 2006) Os ajustamentos nos sistemas públicos têm sido conseguidos aumentando a desigualdade no acesso aos serviços públicos de saúde. Esta problemática relaciona directamente a produção dos serviços de saúde pública com a problemática dos Direitos Humanos e com os Objectivos do Milénio (ODM), estabelecidos em 2000, no qual as

mulheres e o seu empoderamento, através da protecção à gravidez à saúde materno-infantil constituem objectivos prioritários. Segundo dados das Nações Unidas, publicados anualmente nos seus relatórios de Desenvolvimento Humano ou nos relatórios da OMS (Organização Mundial de Saúde), as metas previstas para o desenvolvimento do milénio, estão longe de ser atingidas. Em muitos países do mundo, sobretudo situados na África subsaariana, a vulnerabilidade e as desigualdades de acesso aos sistemas de saúde são extremamente marcantes. Revelandose ainda elevados índices de mortalidade materno-infantil, por causas que são, actualmente possíveis de prevenir. A saúde materno infantil (SMI) é uma estratégia internacional desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde, a qual tem por objectivo promover serviços de saúde de qualidade acessíveis a todos. Com esta estratégia, pretende-se reduzir o número de mulheres a sofrer de doenças preveníveis ou tratáveis que possam provocar danos irreparáveis ou mesmo a morte durante a gravidez ou o parto. (Chapman, 2010) Nos estudos realizados por Jónína Einarsdóttir numa comunidade da Guiné Bissau entre os anos de 1993 e 1998, foi possível observar que a mortalidade infantil era, há data, bastante comum, sendo que cerca de um terço das crianças nascidas não chegaram à idade de cinco anos. Verificava-se que a grande maioria destas mortes era provocada por causas perfeitamente preveníveis. (Einarsdóttir, 2004) Neste estudo, a autora defende que as construções culturais, valores e considerações éticas relacionadas com religiões ou outras ideologias, assim

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como as relações de género e os processos de subsistência são, todos eles, factores fundamentais na formação das práticas reprodutivas das mulheres. (Einarsdóttir, 2004) Nos trabalhos apresentados (por exemplo em Chapman, 2006) verificase uma estreita correlação entre a construção da percepção dos riscos na gravidez nas mulheres, criando uma situação de vulnerabilidade para a qual os serviços de saúde, com as suas práticas de ajustamento, não possuem mecanismos de resposta. E face a essa percepção, as mulheres grávidas, encaram a sua diferença social e encontram mecanismos alternativos nos sistemas de medicina tradicional, recorrendo à feitiçaria e curandeiros, afastando-se, para a maioria das questões relacionadas com problemas da gravidez, dos sistemas de saúde promovidos pelo Estado. Em várias investigações desenvolvidas até agora, parece evidenciar-se uma correlação entre a diferenciação dos processos cognitivos do risco das grávidas e as práticas biomédicas utilizadas. A noção antecipatória de risco influência de forma significativa o risco efectivo na saúde maternoinfantil. Dessas evidências empíricas aponta-se a necessidade de levar em linha de conta, nas práticas de intervenção médicas, a sua relação com as práticas sociais dominantes. As conclusões apontam no sentido de que, para garantir o desenvolvimento da saúde materna nos serviços públicos, é necessário levar em linha de conta os processos sociais em que as comunidades estejam envolvidas. (Chapman, 2010) A questão da participação das comunidades, e sobretudo das mulheres grávidas nos processos de planeamento e produção de serviços de saúde tem vindo a ser apontado em

vários trabalhos como um dos caminhos a trilhar. Dar voz às mulheres, construindo as suas narrativas de vida como parte integrante dos processos, é hoje um campo de investigação que necessita de ser analisado e reflectido. Conclusão Procurando agora sintetizar e sistematizar as principais questões que resultam deste trabalho. Iniciamos esse questionamento com a evidenciação de que a saúde maternoinfantil se constitui como uma das principais preocupações da comunidade técnica e científica no campo das organizações internacionais. No que se refere aos oito objectivos do milénio a atingir em 2015, é o objectivo que se mostra mais difícil de alcançar na áfrica Subsariana. Evidenciamos que esta questão se encontra por estudar na Guiné-Bissau, um dos Estados mais pobres de áfrica, onde existem grandes problemas na implementação das políticas públicas. Perante a fragilidade das políticas publicas e da dificuldade de implementação das acções propostas pelas organizações internacionais, evidencia-se a importância das acções desenvolvidas por via da participação das comunidades. De seguida passámos em revista a “teoria do desenvolvimento” onde procurámos evidenciar que a ideia de desenvolvimento procura, na actualidade, novos caminhos. Há hoje um entendimento que o fenómeno do desenvolvimento buscou implementar modelos e concepções construídas fora dos contextos e dos processos das diferentes comunidades. Verificámos que uma das vias propostas para repensar os problemas do

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desenvolvimento passava pela procura de respostas aos problemas concretos das comunidades, construindo esses processos a partir da incorporação das experiencias e dos saberes das comunidades. Dar voz ás comunidades e construir os processos a partir da sua participação tem sido considerado como uma das alternativas a prosseguir no campo das epistemologias. Trata-se portanto de repensar os conceitos de eficácia e eficiência da ajuda ao desenvolvimento, agora proposto como processos de diálogo sobre as experiências dos actores sociais na comunidade, procurando incorporar os seus saberes e as suas práticas na construção de acções socialmente significativas. A partir deste diálogo, centramos a nossa problemática na questão da saúde reprodutiva nos países da África Subsaariana onde se evidencia a sua relevância no debate sobre a eficácia e eficiência da ajuda ao desenvolvimento dos sistemas públicos de Saúde. Procuramos relevar que sustentabilidade dos sistemas de saúde públicos: A sua extensão e a sua qualidade nos cuidados de saúde fornecidos ou a fornecer dependem não só da capacidade de financiar e manter esses serviços, mas sobretudo da inclusão da participação das comunidades, dos seus saberes e das suas práticas, procurando através deles criar diálogos sobre conhecimentos rivais. Salientamos que este é um processo complexo onde se confrontam diferentes visões e formas de construção de políticas públicas. Os debates actuais no âmbito da ajuda ao desenvolvimento dos sistemas públicos de Saúde nos países menos avançados evidenciam a relevância dos processos de sustentabilidade dos sistemas de

saúde públicos: A extensão e a qualidade dos cuidados de saúde fornecidos ou a fornecer dependem da capacidade de financiar e manter esses serviços. Este é um processo complexo onde se confrontam diferentes visões e formas de construção de políticas públicas. Revelamos ainda que nos mais recentes trabalhos sobre a percepção do risco na gravidez em mulher se evidencia a estreita correlação entre a percepção da vulnerabilidade da grávida sobre a sua condição face às práticas dos serviços de saúde. A implementação de práticas estranhas às comunidades e a relativa falta de diálogo na implementação das práticas médicas levam a uma procura de alternativas nos sistemas tradicionais e alternativos. A incapacidade do ajustamento aos saberes rivais dos serviços de saúde impede diálogos construtivos. Por outro lado, a fragilidade dos sistemas públicos em estados frágeis, leva a que perante a insuficiência ou a descontinuidade do serviço de saúde público, sejam incentivados os modos alternativos nas comunidades. Realçamos que as várias investigações desenvolvidas apontam que, para garantir o desenvolvimento da saúde materna nos serviços públicos, é necessário incorporar as comunidades nos diferentes processos. Nestes processos é necessário dar voz às mulheres grávidas, incorporar a sua participação nos processos de planeamento e produção de serviços de saúde é um desses modos. Propomo-nos no desenvolvimento deste trabalho procurar analisar as formas como a construção de narrativas biográficas se podem constituir como um campo de investigação inovador neste domínio. Propomos executa-lo na Guiné-Bissau,

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na região dos Felupes, uma das regiões com menor incidência dos serviços públicos de saúde e com menor conhecimento dos processos sociais.

Bibliografia Amaro, R. R., 2003. Desenvolvimento Um conceito ultrapassado ou uma renovação? Da teoria à prática e da prática à teoria. Cadernos de Estudos Africanos, Janeiro, pp. 34-70. Bond, P., 2007. Microcredit Evangelism, Health, and Social Policy. International Jpurnal Of Helth Services. Chapman, R., 2001. Endangering Safe Motherhood in Mozambique: Prenatal Care as Pregnancy Risk. Chapman, R., 2006. Chikotsa Secrets, Silence, and Hiding. Medical anthropology quarterly. Chapman, R., 2010. Family Secrets Risking Reproduction in Central Mozambique. Nashville: Vanderbilt University Press. Einarsdóttir, J., 2004. Tired of Weeping - Mother Love, Child Death, and Poverty in Guinea-Bissau. England: The University of Wisconsin Press. Elias, N., 1993. A Sociedade dos Individuos. Lisboa: D. Quixote. Escobar, A., s.d. Post-development as concept and social practice. In: A. Ziai, ed. Exploring Post-development Theory and practice, problems and perspectives. s.l.:s.n., pp. 18-33. Hespanha, P. & Santos, A., 2011. Economia Solidária: questões Teóricas e Epistemológicas. Porto: Afrontamento. Nações Unidas, 2000. Declaração do Milénio, Nova York: s.n. Nations, U., 2013. The Millennium Development Goals Report 2013, New York: Unites Nations. Pfeiffer, J. & Chapman, R., 2010. Antropological Perspectives on Structural Adjustment and Public

Health. Annu. Rev. Anthropol. 39, pp. 149-165. Pool, R. & Geissler, W., 2005. Medical Antropology - understanding Public Health. England: s.n. Rist, G., 2002. El Desarrollo: historia de una creencia occidental. Madrid: Los Libros de Catarata. Rylko-Bauer, B. & Farmer, P., 2002. Managed Care or Managed Inequality? A call for Critiquess of Market-Based Medicine. Medical Antropology Quarterly, Vol.16, Nº 4, December, pp. 476-502. Santos, B. d. S., 2006. A Gramática do Tempo: por uma nova cultura política. Porto: Edições Afrontamento. United Nations Development Programme, 2013. Human Development - The Rise of the South: Human Progress in a Diverse World, s.l.: s.n. United Nations, 1978. Declaration of Alma-Ata. World Health Organization;, 1978. Declaração de Alma-Ata, s.l.: s.n. Ziai, A., 2007. Exploring Postdevelopment - Theory and Practice. Problems and Perspectives. London: Routledge. Ziai, A., s.d. Development discourse and critics: an introdution to postdevelopment. In: A. Ziai, ed. Exploring Post-development - Theory and practice, problems and perspectives. s.l.:s.n., pp. 3-17.

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Poética das viagens museológicas

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Diário de Bordo26 Damos início neste número à publicação dos Diários de Investigação. Inicialmente publicados no nosso blog “Cadernos de Investigação” na plataforma Hypotheses. . São notas tomadas na espuma dos dias, sobre os quais mais tarde construímos reflexões de pesquisa. Tratam-se portanto de textos em bruto, com uma edição mínima. Em relação ao projeto publicado na plataforma, trata-se duma iniciativa recente, que corresponde a componente de divulgação do nosso projeto de Investigação “Heranlas Globais. Ele pode ser consultado em

http://globalherit.hypotheses.org/diario-de-bordo. Neste número apresentamos dois Cadernos. O de Moçambique (parte 1) e o da Raia Transfronteiriça (parte 1).

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Pedro Pereira Leite- CES-UC

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Moçambique

r No Caderno de Investigação Moçambique (parte 1) apresentamos os resultados dos nossos trabalhos de investigação realizados em Moçambique. Neles contamos com o apoio da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, com particular destaque do nosso amigo José Teixira; da ONG Vida, através da Patrícia Maridalho e da Filipa Zacarias; e como sempro da Isa e do Sérgio, quer criaram as condições logísticas no terreno. No texto, para respeito com a privacidade dos protagonistas os nomes são alterados. É tempo de olhar par o que vou fazer. Os Fly TAP 281 From Lis-Mpt objetivos da viagem estão estabelecidos. Recolher A 31 mil pés de altitude em rota de cruzeiro de informações, fazer contactos, organizar ações de 789 Km/h. Estamos mais ou menos em cima do investigação. Levo na bagagem Paul Ricoeur. A Atlas sobre o continente africano. Esperam-me memória, o silêncio e o esquecimento. Vai-me dez horas de viagem. São 11 horas e tenho acompanhar nesta viagem. chegada prevista para as 21:00. Em Maputo serão Reencontro com José Forjaz- O homem, 10 da noite. No aeroporto ficaram os sorrisos de despedida da Ana, do Gabriel e do Santiago. A apreensão de mais uma viagem a Moçambique. Talvez mesmo algum ciúme de ficar. São sempre as mesmas queixas de ser mal-amada. Deixei para trás a cidade de Lisboa mergulhada na Crise. O avião está cheio. Alguns passageiros com crianças de colo ajeitam-se como podem. Pobres coitados. São horas de tormento para quem está fechado num espaço minúsculo. Eu estou nas cadeiras do meio. Aqueles bancos de quatro lugares. Mas sobre a coxia o que dá jeito para de vez em quando me levantar para esticar as pernas.

o arquiteto e o professor.

Saio de manhã cedo e sinto de novo o cheiro da cidade das acácia vermelhas. Dormi apenas algumas horas. Após a chegada a I e C estavam à espera no aeroporto e fomos comer qualquer coisa rápida. Depois pusemos as conversas em dia. S está a descer da Ilha e Y de regresso a Maputo para repensar os objetivos. Saio para comprar um cartão de telemóvel. A Ana trocoume o meu velho cartão de Moçambique com o de São Tomé. Um dos meus trabalhos será sentir a poética da cidade. Vaguear pelas ruas. Sentir os seus movimentos. Os seus cheiros.

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Logo à saída do Centro Comercial Polana, passo pelo atelier do Arquiteto JF e marco uma reunião com a secretária. Levo de Coimbra o pedido de recolher alguma informação sobre a obra do arquiteto. Prossigo pela cidade. No palácio dos casamentos a música invade o ar. É sexta-feira e é sempre um dia de muitos casamentos. Foi uma ideia importada dos antigos países de leste após a independência. Funciona como um registo. Em Maputo é uma ocasião para ver ao vivo a cor e o som. Continuo pela Julius Nyerere. Entro no Centro Cultural Português, no piso térreo da embaixada de Portugal. Apresenta uma exposição de fotografias sobre o lixo de Maputo. A lixeira de Maputo é um ponto de atracão para crianças à procura de alimentos. É um olhar sobre a miséria que nos é proposto. Par uns é um modo de vida, para os europeus é uma mostra do atraso. Uma narrativa que nos remete para a passividade da contemplação. É uma exaltação do lixo. Sigo a minha busca do sabor da terra. Procuro o perfume das acácias rubras. Sigo para o Jardim dos namorados. Toca o novo telefone. É uma chamada o atelier do Arquiteto Forjaz a marcar a reunião para o meio-dia. Regresso a casa apresado para apanhar o gravador. Ao meio-dia entro na vivenda ao lado do Polana. José Frojaz recebe-me de camisa branca. É a segunda vez que o visito, depois de em 2009 ter trabalhado nos seus arquivos. Tem um Mac em cima da mesa. Conversamos sobre a exposição. Exlico-lhe que pertendia uma entrevista para construir um guião. Ele mostra-me o livro “José Forjaz” que foi feito pela Escola Portuguesa. Tem uma compilação da sua obra. Oferece-me o livro. Diz.me que tem uma exposição organizada por um amigo. O arquiteto Keil do Amaral (o Pitum de Canas de Senhorim). Tenho os contatos. Logo no primeiro dia tenho matéria para trabalhar. A exposição, marcada para dezembro em Coimbra. O livro que me oferece chama-se a “Poética do Espaço”. Curioso não é. A arquitecto contina a rabiscar nos esquiços que tem em cima da mesa. É um mestre da arquitetura.

Será que as palavras mudam o mundo? O dia amanheceu ventoso. Sento-me a trabalhar na varanda sobre a baía de Maputo. Tenho a cidade e os seus sons a meus pés.

Tomo o pequeno-almoço. Um croisant tostado e um sumo de laranka servido por A a cozinheira de mão leve da tia I.. Trago na bagagem um texto para finalizar sobre a poética da intersubjectividade. Escrevo toda a manhã. O texto fica vançado. Por volta da hora de almoço chega I. Temos um caril de amendoim. Conversamos longamente no terraço. Por volta das três horas I regressa ao trabalho e eu volto ao texto. Há que finalizar as memórias de São Brás. Anoitece rápido sobre a cidade. Tia I regressa com a proposta de jantar de Salada de Marisco no porto. Saímos os três. Eu I e C. Conversas sobre os destinos cruzados da vida. Os filhos crescido, os que estão a crescer. Depois do jantar uma visita à noite de Maputo. Passamos pelo bar Shima na MaoTse-Tung. Estranho nome este para uma avenida. Afinal era o nome que existia em 1975, que depois mudou para MaoTse-Dong. Enfim afinal ninguém liga aos nomes das ruas na noite de Maputo. A avenida está na fronteira com o Caniço. Os frequentadores dos dois lados da avenida misturam-se aqui no bar. Une-os a cerveja e o gosto pela música. Ao fim de algumas horas regressamos a casa de C. Mais umas horas de conversa. Olhamos paras os cruzamentos da vida sobre vários pontos de vista. Por vezes parece que estamos em circuito fechado tal é a redundância. Parece que queremos mudar o mundo com as palavras. Será que as palavras mudam o mundo? Há que procurar os traços da mudança.

Palavras ditas e não ditas Amanheceu cinzento e chuvoso. Acordo à nove horas e leio um bocado na cama. Sinto o silêncio da cidade domingueira. A cabeça pesa um bocado das Laurentinas e sabe bem este descanso. Temos marcado o mata-bicho para a Baixa. A Cristal. Damos uma volta pela cidade. Vamos ao Shopright fazer compras para C que mudou de casa. Vive agora numa vivenda ao pé da residencial Palmeiras. Vamos almoçar um esplêndido cozido à portuguesa na Matola. Estamos em território do pai de I O avô C é uma personagem curiosa que foi para Moçambique nos anos cinquenta. Por lá ficou com muitas histórias para contar. Passou pela independência. Lá ficou. Sempre na Matola.

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Chegamos ao restaurante. O ambiente está tenso e cheio de tugas. Não deixa de ser curioso comer o cozido, na matola, num sítio cheio de Tugas. Aliás isto está cheio de tugas. Vamos ver o que aí vem. As tensões são razões familiares. Caminhos cruzados que pouco interessam à investigação. Mas a suas histórias de vida são um aspeto importante para a compreensão destas cartografias urbanas que vou construindo. Voltemos ao cozido. A refeição estava boa. Mas é curioso como as tensões rapidamente tomaram conta do ambiente. A conversa azeda nos detalhes e acusações mútuas. Há palavras que ditas magoam. Há palavras que não são ditas e que também magoam. Cada um faz um juízo do que deve ser ou não dito. Mas cada um também acha que há coisas que não devem ser ditas. Num tempo de inflação da palavra e da imagem a realidade multiplica-se aos nossos olhos. Os reais e os irreais misturam-se. Torna-se difícil marcar uma linha de rumo. E a propósito…Onde está o meu passaporte. Não me digam que perdi o passaporte?

O Caminho de Djavula Saída às 7 da madrugada para Djavula. Regresso às 19:30, já noite dentro. Debaixo de trovoada tropical sob Maputo acabei por gastar 200 paus em táxi mas valeu a pena. O dia foi espectacular. Atravessado o rio Maputo no batelão logo pela manhã pudemos observar a azáfama no cais. Do Catembe chegam rios de gente para a grande cidade. Um dia de pequenos negócios. Produtos da horta, carvão em sacas. Todos se dirigem apressadamente para as ruas perdendo-se no cinzento da chuva. No Catembe a lama forma lagoas. No cais as vendedeiras de pescado oferecem os seus produtos. Espero pelo jeep debaixo do telheiro duma cantina. Espero pela boleira de F á saída do cais. Encontro dois espanhóis que vão visitar o projeto de Djabula. Arrancamos pela picada. A estrada nacional 201 em direcção a Bela Vista. Atravessamos a ponte sobre o rio Tembe e passamos por Salamanga. O grande templo Hindu do Sul de Moçambique. Pelo caminho fomos conversando sobre o projeto. Os seus vários problemas e as oportunidades de futuro. Chegados ao de Formação descemos do Todo o Terreno. Debaixo dum embondeiro a Filipa fez um briefing. Depois visitamos a oficina, o velho galinheiro onde foi ensaiada uma criação de

galinhas e ovos para venda em Maputo, um projeto que não resultou devido à distância ao mercado. Uma oficina de mel. Olhamos a horta. Foquei com a sensação de que o projeto está num impasse. Regressamos por Bela Vista. No caminho o jipe tem um furo. Macaco com pouco balanço. O suporte a entrar-se na lama. Falta altura. Demorará duas horas até mudar o peneu. Persistência e desenrascanço. Finalmente com roda seguimos. Em Bela Vista um almoço já pela tarde dentro de frango assado. Encanto partilhamos uma 2M anoitece. Cheira a chuva. O céu escurece e rebenta a chuva. Fazemos o resto do caminho na lama, debaixo de intensa chuva. Apanho o último batelão por uma unha negra. Nem compro o bilhete. Vai cheio de gente. Encontro um lugar no convés. Atravesso debaixo duma grande agitação. Três travestis seguem no convés para a noite da Bagamoio. Loiraças vistosas que agitam o barco.

Discursos Cruzados Começo o dia com uma reunião na Eduardo Mondlane na Karl Marx, por cima da Livraria Universitária. No edifício parece existir uma residência universitária e uma cantina. É muito o movimento de jovens. Pelo contrário, a livraria parece estar em processo de dissolução. Poucos livros nas prateleiras. Subo ao 2º andar, onde está o escritório de AC. Enquanto espero olho para o espaço de exposição de arte. Entretenho-me a folhear o jornal comemorativo dos 50 anos da UEM. Olhos os discurso do Prof. Manuel Garrido Araújo. Professor de Geografia e docente da UEM. Representa a geração do 8 de Março, a geração que em 1977 toma conta da Universidade na sequência do discurso de Samora Machel afirma que a Universidade tem que estar ao serviço da construção do socialismo. A questão que o jornal levanta é procurar como é que essa geração macrou os destinos da universidade. Um discurso que contrasta com o discurso atual da busca de Excelência. De procurar ligar a investigação ao trabalho. Como é se se liga o m undo do trabalho à universidade. A conversa decorre com afabilidade. Falamos dos projetos. Da questão da Rota dos Escravos da UNESCO. A propósito de exposições conversamos sobre a exposição “os filhos da Lua” que levou milhares de pessoas à fortaleza de Maputo. Mais tarde encontrarei o catálogo. Foi uma exposição interessante que levou milhares de pessoas à

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fortaleza e que ilustra as novas dinâmicas da zona portuária. Com a instalação do novo museu das pescas e a criação de uma zona de animação turística o centro vai ter uma nova centralidade. Será curioso saber o que vai acontecer à urna do Gugunhanha, o herói nacional moçambicano no interior do museu. Ficará ou será remetido para o cemitério.

reunião no Indico. A banja, era o momento em que os chefes locais e os comerciantes portugueses que desciam de Quelimane fazia negócios. Era entre 1727 e 17989. Ver o número da revista do Arquivo Histórico de Moçambique sobre Inhambane.

Olhares exteriores O passaporte desapareceu. Depois da declaração à polícia local, ala para o consulado na busca de solução. O Consulado de Portugal em Maputo é um edifício na Mao-Tse-Tung. É interessante entrar no espaço e observar os funcionários. Todos eles matem o ar de cansados como estivessem em Portugal, o que contrasta com a alegria de viver em Maputo que todos mostram. Visita ao espaço de CES Aquino de Bragança. Situado numa rua paralela á 24 de Julho, numa vivenda ao estio colonial, é um edifício sóbrio, limpo com guardas afáveis. Parece que se procura uma legitimidade perdida. Uma busca às origens. O problema da cooperação entre países é o da aplicação dos modelos. A aplicação de modelos exteriores sem levar em consideração as dinâmicas instaladas leva à construção de novas realidades. Realidade diferente das projetadas, altaraçoes das tradições. Ligar capacidades das pessoas é afinal isso mesmo. Ao fim da tarde mais uma reunião sobre Roteiro da Escravatura em Moçambique. C é um indivíduo afável. Cortez e simpático que rapidamente se prestou a manter uma conversa sobre a actualização da investigação. O relatório sobre Moçambique data de 1981 ou 91. Entretanto na Ilha foi feito o projeto de Sidel Fumá “o Jardim da Memória. Uma exposição que está também presente no Museu de Arte de Maputo. No Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, no nº 8 encontra-se bastante trabalho sobre a escravatura na Ilha. Quase tudo o que existe foi feito por Gerad Lizang e Luís Filipe Pereira. No entanto os estudos sobre a escravatura em Moçambique têm um problema de base. O silêncio sobre os traficantes. Quase todos os que têm possibilidade de se dedicar ao estudo da escravatura são descendentes de traficantes. Em Inhambane encontram-se ligações entre os libré-engagés e o envio de negros para as ilha Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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As culturas na Cidade Ontem, em casa da I. Jantamos como o Z e a I O jantar foi esmerado. Entradas de geleia com atum e prato principal de camarão no forno. Saio de manhã para a cidade. Inicio a busca da Poética. Andar pela cidade. Fazer a sua cartografia. As ruas da cidade de Maputo são coloridas. É curioso como as capulanas estão a desaparecer da cidade. Em vez das roupas coloridas, das longas peças de tecido enroladas ao corpo da mulher e das camisas tropicais dos homens, surgem agora os fatos cinzentos dos executivos. As mulheres, é certo, ainda ostentam a sua africanidade nos penteados elaborados. Aproximam-se da imagem sul-africana. Mas a concentração urbana e o delírio do excesso e do consumo passaram a ser um sinal característico da cidade. Há uma grande carga energética no ar. Os fenómenos concentram energia. São mais visíveis do espaço e menos duradouros no tempo. Tudo passa rapidamente. Procuramos na cidade olhar para alem dos olhos. Escutar o som da cidade. Olhar para o movimento. Sentir os cheiros da cidade. Á porta da pastelaria Surf sou quase atropelado por um todo o terreno vermelho. Para em cima do passeio. Sai uma negrinha formosa. Voluptuosa nas formas. Roupas finas ondulando ao vento. Transporta a arrogância de quem sabe que concentra os olhares. Será a amante do ministro? Mas para além da ostentação da riqueza há ainda a ostentação da pobreza. Não será bem ostentação. Será mais um novo tipo de pobreza. No Norte do País foi criado num Fundo de Desenvolvimento Local com sete milhões de U$ para fazer as populações de Cabo Delgado saírem da pobreza absoluta. Os pescadores e os comerciantes de peixe são os beneficiários. O objetivo é ajudar na compra de motores e novas artes de pesca.Mas quem acaba por beneficiar são os comerciantes, porque acabam por ter condições para aceder aos projetos. De acordo com os regulamentos, um pescador pode candidatar-se a um apoio até 200.000 meticais para comprar o novo motor ou arte. No entanto, como o valor é dividido por todos os candidatos, acaba por receber apenas ¼ do que solicita. Fica com uma dívida. Como o dinheiro não chega para investir, acaba por gastar noutras coisas e fica mais pobre. Antes eram pobres e sem dívidas. Agora são pobres com dívidas.

O fundo acaba apenas por beneficiar uns quanto. “O fundo é para os amigos”. Os pescadores são marginalizados. Pouco são os projetos viáveis, e quando eles surgem, são apropriados pela “máfia” que se instala entre os dadores e os beneficiados. Por exemplo, o caso da bomba de gasolina apresentado em Q. foi regeitado, para um ano mais tarde ser apresentado pelo governador de C. que assim se apoderou dum projeto feito e pago por outro. Há discursos sobre o silêncio. Vozes que não ouvem. Ouvimos estas palavras a caminho complexo industrial de Salamanga. Falara A e Ambos são dirigentes associativos e sentem problemas.

se do K. os

Porque é que as pessoas pobres são alegres. Perguntou F à entrada do barco quando regressamos de Catembe. Fiquei com a pergunta no ar enquanto olhava ao longe os prédios de Maputo e sentia a brisa do mar a bater-me no rosto.A minha volta sentia a concentração de gente. Olhei os seus rostos sorridente. F tinha razão, eles mostram-se felizes. Vinham de muitos lados, juntavam-se ali, naquele momento e naquele barco, para logo que chegarem a terra partirem lestos à procura do seu destino. Eis um pergunta a que tenho que tentar responder. Nessa noite fomos ao bar da estação. Estava cheio de tugas à procura dos corpos das miúdas. Encontros com álcool e tabaco. Fumo e ritmo. A emergência do corpo. Realça-se o contraste com os que vinham no barco. Há aqui uma opção de investigação que é necessário seguir.

Participação Trabalho em casa. Finalizo os textos sobre a “Memória de São Brás” e o texto sobre as “Estratégias de mediação”27. Preparo as propostas para apresentar em Moçambique sobre os trânsitos dos africanos pelas suas memórias. Heranças e História. Ouço ecos de Portugal. O encontro de Setúbal e das vontades da L. de colocar as suas vontades sobre todas as outras. Parece que fica demonstrado a incapacidade de entender o que é participar. Vamos jantar a casa de C frango assado com Piri-piri.

Marracuene Domingo de manhã vamos ao Marracuene. Vamos mata bichar numa nova padaria duns tugas. Em Maputo abrem-se novas padaria. Os tugas quando 27

Publicados no nº1 desta Revista, Dezembro 2012

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chegam gostam de instalar padarias. Há uma padaria no novo Centro Comercial ao pé do Tribunal Administrativo que tem um pão bem tuga. Nas padarias estabelecem-se diálogos. A reprodução dum país através dos seus gestos como estratégia de sobrevivência. Conversas sobre os negócios. O patrão sempre de olho atento no balcão. Saímos pela EN 1 em direção ao Xai-Xai. Mais ou menos a 25 de distância surge a FACIL. Na estrada, de início, a habitual confusão de domingo. A história dos Moçambicanos é igual a tantas outras. Famílias desestruturadas. Estamos perante 3 gerações. Uma que aqui chega, na época colonial, para procurar sobreviver. Outra, nacional, nasce em Moçambique e faz toda a sua vida em Moçambique. Está hoje bem na vida e sabe mexer-se no território, aproveitar as oportunidades e evitar as dificuldades. A terceira geração vive os tempos da globalização. Nasceu em Moçambique mas tem os olhos postos no mundo. Tem acesso ao mundo, mas não sabe muito bem distinguir o real do virtual. São sinais dos tempos. Uns assistiram e fizeram construir uma nação. Criaram afilhados. Viram chegar e partir muita gente. Uns chagavam cheios de esperança. De vontade de fazer. Outros chegavam com vontade de ganhar. Partiam. Uns com saudades, outros sem vontade de voltar. A emergência duma nação foi feita numa aliança entre os combatentes do norte e os aculturados do sul. A influência sul-africana vai emergindo como contágio. O lodge sul-africano marca a paisagem no Marracuene. Piscina, e bungalaws no meio do mato. O mato é ainda um espaço selvagem. Estávamos sentados. De repente a I. levanta-se e exclama: - Uma cobra! Uma Mamba. Rápido, dois rapazes saltam para a estrada. Com dois paus esmigalham a cabeça do pobre bixo que se aventurara nos domínios dos veraneantes. Estava à hora errada no locar errado. Não tinha estabelecido alianças duradouras. Descansado, mergulho no Indico. – Olha lá tem cuidado com os Tubarões! Gritam-me. Este é sem dúvida um mundo perigoso Regresso. Sento-me numa cadeira à conversa com C Olhamos para o mar. Ele diz-me: “sou capaz de estar uma tarde a olhar para as ondas.“ No bar há um emregado que não fala. Ele passa silencioso por entre as pessoas, diligente. Tem

uma estratégia de sobrevivência que passa por não se fazer notado. Acabamos a almoçar pizza. Regressamos atravessando o Nikomati numa lancha. Na saída vendedores de camarões e amendoins enxameiam o espaço. No caís uma rapariga no bar. Um bar vazio. O que é que há de estranho no bar vazio. Será uma estratégia de sobrevivência. Cai a noite em Maputo. Nesta altura do ano cai rápida. Vamos jantar ao alentejano. J. e a sua mulher macua vão apresentar o filho da Ilha. O problema é sempre o visto. Aparentemente um alemão não pode ter um filho moçambicano. Um filho moçambicano não pode ter um visto moçambicano para visitar a Alemanha num passaporte alemão. A Alemanha não pevê a dupla nacionalidade. A mulhar macua ostenta o seu orgulho swahili.

Memorando Mais uma reunião na UNESCO. Sou bem recebido. Sinto o calor e o afeto dos participantes. Termino a reunião e regresso a pé. Passo pela cooperação holandesa. Tem como lema “Ligar as capacidades das pessoas”. Como se ligam fragmentos de vida perdidos. No passado domingo, quando fomos a Marracuene assitimos a um acidente na EN1. A dada altura, na passagem dum cruzamento, um carro vermelho destravado atravessa-se na estrada levando vários indivíduos pela frente e passando por cima de outros. No carro vejo o barulho. Corpos projetados no ar. Corpos a controcer-se no chão. O carro perde-se no meio da multidão. Um bramido de gente acompanha o louco. Nós seguimo em frente. A imagem do acidente fica. Lamentos que ecoam. Durante a reunião caio-me a haste dos óculos. Aproveito para procurar um oculista. Paaso pela embaixada para saber do passaporte e ao lado encontro um É uma loja moderna na avenida Mao-Tsé-Tung onde fui arranjar as hastes dos óculos. Tipo simpático. Não levou nada. Deixo ficar quinhentos paus à mulatinhas. Frescas na manhã abafada de Maputo. Atenderam-se com um sorriso franco. A amante do patrão, roliça, de pequena estatura torce o nariz à rapariga macua de nariz largo. Presente que tem que dominar a rapariga. Evitar que a sua frescura contagio o entusiasmo que o patrão lhe dirigir. A vida é uma competição. A loja está vazia. Fresca. Mas lá fora a cidade move-se. O movimento da rua pressente-se. O ruído entre por entre as frestas das portas. A

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frescura ordenada da loja contrasta com o bulício da cidade. Este é um mundo isolado. Artificializado pelo ar condicionado. O telefone toca. A patroa atende. A rapariga macua mete conversa comigo. Mexe em diversos objetos. Rise. Levanta-se da mesa e passa à frente. Olhar guloso por se mostrar. Hoje janta-se em casa. De regresso passo pelo museu de de Arte. Esqueço-me que está fechado à segunda-feira. Tenho que lá voltar noutro dia para ver a exposição sobre a ilha de Moçambique. Vou visitar o Muzarte e ver se encontro alguma coisa. Está encerrado para obras. Azar. Volto para casa trabalhar.

O jardim da Memória Trabalho sobre o memorando de entendimento. Escrevo as suas linhas principais e envio por email e saio para dar uma volta. Passo pelo museu de geologia à procura do seu diretor. Prece que tem um museu em mãos lá para os lados de Tete. Não tenho sucesso. Sigo para o museu de Arte para visitar a exposição sobre a Ilha de Moçambique. O Jardim da memória. Olha para a exposição, tiro umas fotos e trago os folhetos de Informação. Sigo para a Bagamoio na baixa. Procuro a Escola de Artes. Deixo o telefone. Regresso a casa para trabalhar. Procura estratégias alternativas. A noite cai depressa. Troveja e relampeja. Falta a energia durante um bom pedaço de tempo. Passamos o serão a jogar às cartas.

Os círculos da memória Ainda não recebi notícias do protocolo. Vou ao CES Aquino de Bragança, e passo pelo consulado. De caminho encontro o Centro de Estudos Estratégicos da CPLP. Converso com o diplomata. Trata-se dum espaço, duma vivenda à procura de um uso mais intenso. Não havia luz e net. O diplomata escritor estava com os nervos em franja. Estava com ar de quem não queria estar por ali. Regresso pela Nekrumah, onde está instalado o quartel ao pé das construções de Pancho Guedes e regresso pela 24 de Julho. Volto a trabalhar em casa.Tento alguns contactos e não encontro niguem. É o fim do mês será por causa disso que não encontro ninguém. Há noite fui jantar a casa do L e I Estava lá dois colegas. Falamos da exposição da ilha, dos

círculos da memória. O W, o chato do W sempre a brincar. Porque é que os manequins são brancos? O Jardim da memória está construído em círculos. O círculo íntimo, da família, o círculo do grupo, e o círculo do mundo. A escravatura é uma experiencia limite de ultrapassagem dos círculos de sobrevivência.

A dualidade Acordo cedo e leio um pouco a saborear o tempo da manhã. Tomo banho e desço ao Natilus para comer o croissant prensado e um sumo de laranja. Encontro Z. Conversamos sobre Maputo. O Z é uma personagem atenta da vida de Maputo. Olhar arguto observa o que se está a passar. Tenho que me despachar porque fiquei de ir à fortaleza falar com M. Z dá-me boleia até à baixa. Entramos na estação para beber uma Manica. É cedo e nunca bebo antes do meio-dia, mas o bar da estação tem aquele encanto. Aproveito par ver a exposição sobre o Museu dos Caminhos de Ferro que se anuncia e olhar para a galeria Kulungwana. Tem uma exposição sobre viagens. Trânsitos e inquietações. Conversamos amenamente. O telemóvel toca. Era M a perguntar se podemos alterar o encontra para a tarde. Continuamos na conversa. Uma conversa agradável que corro sobre o que é Moçambique, como são os Moçambicanos. Às duas horas despeço-me de Z e atravesso a Bagamoio Falamos dos públicos. Dos problemas, dos recursos disponíveis. Da motivação para fazer coisas. Como gerir um espaço museológico de natureza militar, que concentra heranças coloniais, objetos de memória da libertação. A estratégia passa por se assumir como um centro de arte contemporânea. A fortaleza como uma porta de entrada para a cidade. Não há galerias em Maputo. Saio e regresso a casa. Passo pelo CES Aquino de Bragança. Encontro-me como J. Falamos sobre as questões das estratégias para o Indico. Uma conversa amena que poderá ser recuperada mais tarde. Passo pela livraria Conhecimento na 24 de Julho. A velha livraria Europa-America desapareceu. Transformou-se numa loja de decorações. Compro um livro do José Luís Cabaço sobre a Luta de Independência. A dualidade de Simmel A dualidade resulta das energias que se confrontam. Uma dialéctica interpretativa do real. Penso na questão da dualidade. Partindo duma determinada posição, no espaço e no tempo cada

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um depende do outro para observar. A observação individual está em contexto (depende do social). Logo os olhares são transcalares e transtemporais. –A relação de subordinação, que emerge da relação social potencia ou a ordem ou a subversão da ordem. A transtemporalidade como subversão da ordem. A tatuagem e os piecingos como marcas do tempo. Donde que resulta que ordem e poder é uma oraganização do espaço e do tempo.

O silêncio das palavras escritas Olhar para o tempo que passa. Andar por aí a olhar o tempo. As coisas estão aqui mesmo à nossa frente. Nós é que não as vemos. Nós não vemos o que não perguntamos. Olhar para o silêncio das palavras escritas. Está na altura de criar a poética do café. Quem faz o quê e como faz?

As personagens do Nautilus A pastelaria Nautilus, nas esquina da 24 de Julho com a Julius Nyerere é uma pastelaria de monhés. Durante o dia são várias as personagens que por aí passam. Ensaio um retrato social da cidade. A matrona de calças largas, longos cabelos negros, caídos em caracóis sobre as costas, entra apressada no café e corra para o banheiro. Está certamente apertada com alguma inconveniência. A cooperante, que não copera mas dá lições de inglês e uma mulatinha de cara espantada. Ao lado, um casal misto. Ela moreninha. Esguia. De linhas direitas. Elástica como uma gazela. De bunda redondinha e cheia. Ele com ares de tuga. Com aquele ar mal-encarado, com uma espécie de buço sobre o lábio. De camisa aos quadrados por fora das calças, à moda dos trópicos, testa enrrugada, franja sebenta a cair para o lado.. A qualquer momento parece que vai cantar o fado. A barriga já sobressai. Toma o pequeno almoço tardio. Nos olhos pressente-se a noite escaldante entre lençóis. Mais ao lado, uma consultora financeira. Branca e loura, de fato de executivo entre apressada. Que diabo quem se lembra de andar de fato de executivo com este calor. Tem, é certo, uma camisa branca. Mas uma saia travada e uma casaquinha cinzenta retiram-lhe o sal. Usa colar de metal e tem um olhar sem brilho. Triste!. De quem passa horas e horas a olhar para números. Sente-se uma ausência de vida. Está a viver angustiada em África. Não entende a sua poética.

Será que trabalha para o FMI ou para o Banco MUndial Entra um casal com uma criança. Sentam-se numa mesa e pedem sumo para a criança, bolo e cafés para eles. Tem ar de quem vem de viagem. Devem viver longe, no mato e parecem incomodados com o movimento da cidade. Sentem prazer no ar condicionado do café. A criança faz uma birra. A birra é um sinal do seu incómodo. Não está habitada ao frio do ar condicionado. Reparo que lá na montra está uma mulatinha. Ponto estratégico para observar. Dedilha freneticamente mensagens no telemóvel. Entra um militar e encontra-se com ela. São dois jovens. Ele é militar graduado com ar de que foi tratar de qualquer assunto ao ministério enquanto ela esperava. Têem o mundo e o tempo pela frente. É curioso como dentro do espaço do Nautilus os fregueses de organizam no espçao. Os africanos ficam à janela. No balcão. Os indianos preferem juntar-se do lado direito de quem entra. Lá fora, na esplanada, juntam-se da tarde as senhoras da terra. Com o decorrer da tarde vão sendo substituídas pelos homens. Com eles o fumo toma conta do espaço. Os estrangeiros flutuam como borboletas, sem saber onde cair. Em regra caiem na primeira mesa vaga. Em Maputo os modos de vestir mostram quem são. Na pastelaria Nautilus, no cruzamento da 24 de Julho com a Julius Nyerere o espaço é um ponto de encontro. Os empregados são todos negros. Atrás do balcão, estão os donos. Indianos. Cada um assume a sua posição no espaço com um ar distinto. Assumir o papel diria eu.

Os pilares da museologia informal O Puto S faz hoje 4 anos. Estas doem.Estou de novo à mesa do Nautilus. Hoje não tenho nada marcado e vou perder-me pela cidade. Percorrer as ruas de Maputo. Procurar fazer um retrato das suas gentes e dos seus movimentos. Vou até ao mercado do pau. A cor das gentes. O movimento. Entro outra vez na fortaleza. O que fazer da fortaleza. A fortaleza é um ponto de encontro e um ponto de memórias. De tarde sento-me no terraço a escrever. Revejo os sete pilares do saber do Eduardo Morin. Conhecer para além da paralaxe; Conhecimento pertinente; Responder à condição humana;

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Reconhecer a identidade de terceiros; Enfrentar as incertezas; Compreender por meio do diálogo; Exercitar a ética. Cruzo isso com um texto sobre os “tempos do presente” do Miguel. Um tempo social, de ostracismo; um tempo público que é cada vez mais reduzido; um tempo científico que procura relevância; um tempo de intervenção, que procura novos caminhos; um tempo de memória que procura a criatividade; um tempo de parceria que procura novos parceiros.

Bem-vindo ao nosso mundo Cruzamos Maputo em direção à Matola á procura dum restaurante no campo de tiro. No caminho fala-se da esperteza moçambicana. Um polícia manda parar o carro e pede pela inspeção. O carro novo, com menos dum ano, não precisa. Resultado. Um estrangeiro incauto paga uma multa sem saber. O restaurante estava fechado para obras. Regressamos para Maputo em direção ao mercado do peixe, com as suas cores garridas, à procura de caranguejo. Decidimos almoçar em casa. No caminho olho para o movimento do espaço. Olho para as esquinas de Maputo. Trata-se dum modelo de venda. O monhé, com supermercado aberto, distribui uma determinada quantidade de mercadoria a pequenos vendedores para venderam nas ruas da cidade. Multiplicam-se os pontos de venda No espaço e não há faturação. Ao invés de se concentrar numa superfície, distribui-se. Porque é que o museu não se constitui como uma rede de pontos de memória ao invés de procurar concentrar. O que é que está a desaparecer. São as donas que vendiam gasosa na marginal A marginal, a rota do domingo está a desaparecer. S fez um caranguejo à moda dos Capelas. Partese caranguejo em pedaços. Pica-se cebola e cebolinho e frita-se juntamente com os pedaços do caranguejo. Coloca-se um copo de uísque, um piripiri. O segredo está em escolher os caranguejos com ovas. As fêmeas não estão secas. Almoçamos do Terraço, com vista para a cidade. Foi um bom repasto e um fim de tarde fantástico. Lá mias para o fim, as tensões do clã saltaram. Não há bom sem mau. Hoje consome-se o imaterial. Na parede do prédio, lá longe em letras garrafais a Vodacom escreveu “bem-vindo ao nosso mundo”. Reflexos da construção do mundo como um momento.

A borboleta da Nelson Mandela No final da tarde viajamos à Matola para visitar a casa-museu da A onde está uma belíssima coleção de pinturas de Malagatana e Noémia de Sousa. Retenho uma homenagem a Nelson Mandela. Uma belíssima borboleta.

A senhora da fortaleza A questão da cooperação portuguesa, neste mundo de interesse parece que tem andado a apanhar bonés. É certo que tem havido vários projetos. Mas tenho a sensação de que em vez de olhar para a realidade, deixa-se levar pela teoria. Se é que tem teoria. Trabalhar com as associações de camponeses é um desafio interessante. Ouvir as histórias contadas pelos mais velhos. Vozes de experiencia de vidas, contadas na primeira pessoa, através das quais ressoam os dramas coletivos. Histórias à volta da fogueira são sons que falam dos tempos. Da experiencia do passado. Dos olhos do presente. Dos desejos de futuro. Em Maputo ando a circular entre a Urbanidade, a Sub-urbanidade e a agricultura. Há que pensar se a questão da dualidade social não é uma ilusão se não incluirmos a uma terceira dimensão A poética como gramática do tempo e do espaço Entre histórias de vida, regresso à fortaleza para conversar com M a senhora da fortaleza. Formada em gestão de eventos culturais, dedica-se à medicina tradicional. De cabelos vermelhos, cara jovem e arguta. Procura modernidade no trabalho. Formada em História na Eduardo Mondlane, tem formação em Conservação e gestão do Património da Unesco. Dualidade entre a tradição e a modernidade. Mostra uma boa capacidade de fazer uma leitura do que é a realidade em Moçambique. Tem algumas ideias para desenvolver na Fortaleza. Uma liga de amigos. Olha para o monumento como um monumento património moçambicano, Assume a sua herança. Defende que os museus podem ser mediadores entre as universidades e os públicos. Os monumentos devem alargar a sua intervenção aos estudantes. A construção da identidade moçambicana como representação social. Procura resolver a questão de como os maputenses se podem apropriar da fortaleza. Interroga-se sobre o que fazer para programar. Defende que a fortaleza deve deixar de ser um espaço cultural aleatório. Faria falta um curso de curta duração sobre gestão de monumentos e

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conservação de objetos. Fiquei de fazer um seminário. Depois, da fortaleza, vamos falar com J da escola de Artes. J tem colaborado com o Museu de Arte à mais de 10 anos. Tem feito um trabalho com escolas. Foi o trabalho com as escolas que levou aos museus públicos diferentes. O problema é fazer trabalho em dois espaços diferentes. Há que pensar em questões com interesse para os alunos se puderem motivar. Agora está com um projeto para as comemorações dos 35 anos da independência. Procura utilizar estudantes em estágio. Vão procurar levar objetos, replicas, para os visitantes tocarem. Algumas Histórias de vida que vão sendo registadas.

As narrativas de Maputo O dia amanheceu claro. O ruído da cidade invade lentamente o quarto e insinua-se pelas cortinas. Estou quase a terminar o livro do José Luís Cabaço sobre os contextos da independência de Moçambique e sobre os seus primeiros anos. O dia anterior correu bem. Ontem à noite apareceu lá em casa L uma massagista Reiki. Ia fazer umas massagens, de modo informal. Ficamos horas na conversa. A ideia do Reiki é a busca das energias do corpo. Fazer fluir as energias, criar equilíbrios. Procurar os pontos de tensão, para os libertar. Uma busca de soluções que andamos todos a procurar Estou novamente no Nautilus a olhar o mundo que aqui circula. A negra pestanuda, de ancas largas com o branco sebento. Vermelhinho como um tomate. Esta é um mundo interessante. A globalização de Maputo traz uma aculturação. Na outra mesa o grupo discute as questões da chuva e de desentendimento que houve no dia anterior. São fragmentos de vida que circulam no ar. Os olhares de Maputo é um texto a construir. Uma narrativa sobre as oralidades. As narrativas mudam com as pessoas. Os homens com as camisas de fora das calças estão a ser substituídos pelos fardamentos da globalização. Direitinhos, de fato e casaco, com mala de executivo, de andar apressado, sem ligar a ninguém. São seres que vivem no seu mundo. Imunes aos outros. Os homens de cinzento. Eles e elas. A conquistarem o planeta. Elas de saltos altos. Bem cheirosas. Com cuequinha de tanga cor de laranja a sair da calça baixa. A perna bem torneada. Cultivada em ginásios. Ao fim da tarde, depois dos relatórios bem elaborados ao chefe. As suas boquinhas debochadas. Sempre prontas a

chupar e o corpinho oleado pelo óleo de coco. Assim à distância são intocáveis. Sentam-se e cruzam a anca. Seduzem a todo o momento, com todo o arsenal. Mas é só para ver. Não se pode tocar. São intocáveis. Chega o perito em agricultura para conversarmos sobre projetos. Por exemplo o gado nguni: “Nguni Catle Breed, é um boi sul africano. Era um gado guardado pelos pastores, resultante da mistura de zebus com os bois (Bos Indicus, com Bos Taurus). Foi criado em África, mas preterido para criação. Falamos dos problemas da agricultura em África. Das queimadas como processo de fertilização das terras. Do controlo das espécies. Projetos. Histórias e sonhos constantemente revividos. Por vezes tenho a sensação que estes fragmentos da realidade trazem sons. Vozes do mundo em movimento. É por isso que gosto de os escutar Maputo tem as suas horas. A cidade tem cor e movimento. A melhor hora do dia é as três da tarde. Hora em que se sai do trabalho. As moças arranjam-se e aperaltam-se. Nas sextas-feiras pressente-se a festa no ar. Os perfumes tomam conta das esquinas. Os vendedores agitam-se nos preparativos para vendar os últimos produtos. Estas tardes no Piri-piri, com uma imperial e uma chamuça dão para observar a rua. Os aceleras de Maputo. Os Honda Civic que aceleram à procura do último rasto da luz verde tomada pelo vermelho.

Olhares Índicos Encontro-me ao princípio da manhã com JP no CES Aquino de Bragança. A conversa corre solta. O CES procura centrar o seu discurso na região a sul. Falara do sul a partir do sul. Na região há um comércio de bazar. É preciso entender as lógica do comércio de bazar. É um “mercado” com as suas características próprias. Diferente do comércio “global” embora conviva e se aproveite dele. Sem compreender isso é difícl atuar no mundo indico. Os tugas ainda andam a sonhar com o império perdido e não vêm claramente isso. A segurança do Indico está nas mãos da África do Sul. A AS posiciona-se como guardiã do Índico e da rota do cabo. Tem três submarinos e 4 fragatas. Tem feito exercícios com a marinha da nato. A conceção de defesa da AS centra-se no indico e estabelece alianças com a Europa e com a Índia. Assumir a segurança do continente, assegurar as rotas marítimas e os bancos de pesca.

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O Norte ainda olha o sul como espelho da culpa. Hoje é preciso multiplicar os saberes alternativos. O homem é como como retábulo do tempo. Umas vezes abem-se algumas portas, noutras alturas fecham-se. Nestes tempos vivem-se os tempos do sul

sobre África. A História trata do particular. A poética trata do Universal.

No CES procura-se o Homem do Indico. Faz-se uma antropologia das comunidade índicas Seguindo algumas ideias de Omar Ribeiro Thomaz. Os olhares Indicos de hoje são um caminho de investigação. Se olharmos para Maputo, que é uma cidade em mudança, podemos escutar o eco dos sons da construção. Mas essa construção vai dar aonde. O que é que a história e a memória nos dizem. A consciência duma narrativa desloca o olhar – serve para passar a voz do outro. Saio com estas palavras a ecoar. Os dias estão curtos em Maputo. Escuta-se o vento do Indico. A monção.

Dias curtos em Maputo Passo pela Eduardo Mondlane. Ontem jantei chez L com I e L uma rapriga maconde, nascida em Moçambique, expatriada e dedicada à animação teatral, retornada à busca das raízes. Falou-se da moçambicanidade, dos retornos a Moçambique. Aprender a reinventar a moçambicanidade Aprender a cozinhar a cozinha do Índico. Vinda dum colégio de freiras em Santarém, parte com os pais para Tete. Retornada com saudades da terra. Regesso numa noite de chuva. Amanhã parto. Os dias da partida são curtos.

Aeroporto Entro no aeroporto com antecedência para evitar as confusões. Os objetivos traçados para a viagem foram alcançados. Na bagagem mais alguns livros, e material de investigação para os próximos meses. Passei a tarde a comer tapas com Z no Cantinho dos Sabores. Pão e queijo acompanhados de tinto. Depois um passeio pela baixa, passagem pelo Vida para dizer adeus. Almoçamos na cantina dos professores em Maputo. Sopa de cozido com piri-piri. Duas Manicas para fechar. Conversa com S, uma arquiteta que esteve a trabalhar na Ilha. Passeio pela cidade antes da última chamada para o voo para Lisboa. Na bagagem levo a Poética de Aristóteles e a História, Memória e Esquecimento de Ricoeur, para acabar de ler sobre na passagem

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Viagens na fronteira (parte 1)

r No Caderno de Investigação Viagens nas Fronteiras (parte 1) apresentamos os resultados dos nossos trabalhos de investigação realizados na fronteira lusoestremenha. Neles contamos com o apoio da Rede Transfronteiriça Museion. Devemos uma palavra de agradecimento às nossas colegas Mercedes Stofel, Ana Carro, Aida Rechena e Juan Valdés que possibilitaram as condições no terreno. No texto, para respeito com a privacidade dos protagonistas os nomes são alterados. Estas viagens tiveram o grande mérito de permitir interrogar o real de descobria caminhos de diálogos sobre as memórias e os esquecimentos.

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Viagem pelos museus da Raia.

trabalham no espaço do museu resgatando o bordado tradicional de castelo Branco. Saímos de Lisboa ao raiar da manhã em Bordados a seda, com cores garridas e direção a Norte. Passada a lezíria ribatejana, motivos orientais, refletem heranças de infletimos para leste, ao longo do curso do outras viagens Tejo. A medida que as suas margens se estreitavam e as arribas aumentavam, o No final um almoço de cozido à portuguesa pinhal tomava conta da paisagem. Á direito o num restaurante local. O vinho do Fundão, Tejo encaixado nos vales de xisto. Terras tinto carregado a regar as carnes generosas. enxutas onde medram eucaliptos e Conversas soltas sobre museologia. Os trabalhos com as comunidades ciganas foram escasseiam as gentes. pontuais com algumas reclusas do Primeira paragem em Castelo Branco. A praça estabelecimento prisional Um museu que tem da cidade, reabilitada pelos programas Polis. vindo a procurar incluir a comunidade e o Percorremos o centro a pé. Olhamos para os território na planície albicastrense. novos equipamentos que surgem. O Caminho da Serra da Gardunha A biblioteca, um Centro de Informática, Cafés e esplanadas. Uma casa da música em Partida para o Fundão em direção à Serra da construção. Seguimos pela antiga via de Gardunha. Paragem no Fundão em busca do de Arqueologia e do grupo contorno do recinto medieval em direção á Museu igreja matriz. Panos de muralha encontram- Arquofundão de Pedro Mendes Rosa Em se a descoberto. No final da rua surge a terras do Fundão procuramos pelo edifício dos residência episcopal onde está instado o museus, bem encaixado no tecido urbano da velha vila. Ruas estreitas e pedonalizadas. museu Manuel Gonçalves Proença Júnior. Nas ruas da aldeia miúdos ciganos a O palácio setecentista, amplo no janelame, brincarem A presença da comunidade cigana com jardins ao gosto da época. Nas antigas é evidente nas ruas. Nas casas ouvem vozes. hortas estão agora instalados equipamentos Como estão as narrativas desta comunidade para jovens e crianças. Parque infantil em vez nos museus. de rosas. Já dentro do museu fomos recebidos pela Diretora AR. Um percurso de Encontramos as portas do museu de luxo onde passamos pelas suas várias Arqueologia do Fundão encerradas. Estava-se secções. Começamos pela arqueológica. A em tempo de trabalho de campo nas aldeias coleção recolhida pelo jovem arqueólogo que da serra. J. Abriu-nos a porta e deu-nos deu o nome ao museu, recolhida no princípio entrada. Uma visita guiada pelo neolítico, do século e reabilitada nos projetos do IPPAR, pelas primeiras comunidades dos metais. Instalado no piso térreo olhamos para dentro Pelos povos que ergueram as estelas de vitrinas onde víamos pontas de seta e graníticas. A abundância de referências às facas do paleolítico, pedaços de ferro e meimoas na toponímia. Resgates de tempos bronze da idade dos metais, conjuntamente esquecidos nas pedras. com estelas e colunas. Tudo O museu reconstrói cenários. Encena harmoniosamente distribuído pelo espaço. situações e técnicas. De seguida subimos ao primeiro piso. No consulado de Catarina Vaz Pinto o museu O Castelo Novo passou a ter um novo conceito dedicado à Dormida em Castelo Novo. Na Casa de Petrus tapeçaria. Depois duma galeria dedicada aos Gutierrez encontamos uma antigo Hotel, bispos de Castelo Branco, uma diocese criada reformado por um casal de reformados. O no século XVIII aquando da elevação da vila a Filho arquiteto fez o projeto. De remodelação cidade e extinta cento e dez anos (1771e de vários apartamentos na serra da 1881), surgem as tapeçarias encaixadas em Gardunha. Uma decoração moderna. Nas grandes módulos que convidam à descrição. paredes sobressaem os quadros do Pintor Enquanto de preparava uma exposição de Barata Moura arte sacra para o período da Páscoa, com A povoação acastelada protege a fonte das base num conjunto de obras locais. De saída águas do Alardo. Numa terra de verões ainda apanhamos o grupo de bordadeiras que soalheiros a presença de água é fonte de Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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riqueza. Terá sido assim na idade da pedra. No núcleo urbano surge-nos com alguns Terá sido assim na época de reconquista. Al- trabalhos de requalificação. Não é um pleno adro são fontes de riqueza. geral de requalificação, mas o espaço encontra-se cuidado. O Castelo da Castelo Novo foi algo de intervenção do IPPAR. A aldeia faz parte do Na antiga Tulha dos Cabrais encontra-se o Roteiro das Aldeias Históricas de Portugal e Eco-museu do Zêzere. Trata-se dum beneficiou de vários projetos de apoio ao equipamento voltado para a História Natural turismo cultural. São visíveis os processos de do Rio, para os elementos sobre a sua requalificação. Hotelaria, Restauração. Aposta biodiversidade. Uma reconstrução dos vários nas atividades tradicionais. níveis do seu percurso, tipos de geologia, espécies que o habitam. As questões da A Grande Serra. produção de energia. É um equipamento sobretudo didáctico. O equipamento é Subida à Serra da Estrela pelo lado da revelador da estratégia museológica Covilhã. De passagem pelo museu dos adoptada. Fazer de Belmonte um ponto de lanifícios, até ao alto da Torre. Não restam partida para diferentes roteiros. A maioria memórias do primeiro eco-museu de Hugues deles no seu interior, sem esquecer o de Varine nos anos setenta. A Serra está território envolvente. voltada para o Turismo. O parque de campismo. As antigas termas, das Caldas da A viagem passa a Histórica no Museu das Saúde transformadas em Hotel, as pistas se Descobertas. Em frente, no paço dos Cabrais ski, a venda ambulante na torra. Descida uma instalação multimédia propõe uma para Manteigas. Os trilhos da serra vão dar à viagem ao Novo Mundo com partida de sede do parque Natural. Belmonte. Iniciando pela sua geologia, pela sua história, chegando aos Cabrais. Relata a Visita às Fábrica de lanifícios de Manteigas. A grande aventura de Pedro Alvares Cabral, a tradição moderniza-se pelo Design e pelos ciência e a náutica necessária para atravessar mercados externos. Exportação e mercados o grande oceano ignoto. Uma grande sala externos na vanguarda da produção da multimédia mostra e procuras dar a riqueza. Produz-se lã na serra para vende no experimentar o tempo do mar. No novo Japão e nos Estados Unidos. mundo relata-se a exuberância e a diversidade da natureza. Os primeiros O Rio Zêzere. Nasce na Serra. Desce em contatos. Um jogo permite negociar com um direção a Manteigas. Passa por Belmonte, índio através da troca de produtos. A floresta Fundão. Embrenha-se a norte da Gardunha e é representada por fitas que caem do teto. desagua no Tejo em Vila Nova da Barquinha. Uma parte sobre a escravatura. Uma Barragem de Castelo de Bode. narrativa sobre o novo país e até algum atrevimento na fala sobre a construção da Belmonte identidade brasileira, não faltando a música, a Belmonte é terra de judeus. Conhecia nos comida e os seus autres de referencia. idos de oitenta quando tentava a agricultura. Na época havia o castelo, a torre Centum Ainda no campo da História pode-se subir ao Cellase conhecia-se a presença dos marranos. castelo. De entrada gratuita, dotado dum Hoje têm cinco museus. O Eco-museu do anfiteatro ao ar livre, dotado de janelas Zêzere. O Museu dos Descobrimentos. O manuelinas, tem um grande vista sobre o Museu do Azeita. A Igreja de São Francisco e Zêzere e o vale da Ribeira de Caria. o museu Judaico. Para não falar do Castelo, Descendo para a vila, passando pela alvo duma intervenção do IPPAR. A Pousada Sinagoga e pela Judiaria encontramos o de Belmonte, um equipamento turístico é Museu Judaico. Um museu de consciência também ela própria num edifício histórico sobre a herança judaica dos marranos. Uma Começemos pela recuperação da Pousada O comunidade resgatada do esquecimento nos Convento de Belmonte, instalado no alto dum anos 20 (1924). No seu interior peças de morro com vista para o vale do Zêzere. O culto, memória dos habitantes. Grelha de claustro e a nave foram reconvertidos em leitura das marcas das famílias judaicas e um espaços de Lazer. Os quartos instalado em pequeno memorial às vítimas da Inquisição. novas células monásticas. Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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O Último Equipamento é o Museu do Azeite. Um antigo lagar de Azeite transformado em Lugar de Memória. Tem um ponto de venda de produtos derivados do Azeite.

captação e transporte das águas são a primeira proposta de interpretação. Nas diferentes casas as águas são armazenadas em cisternas. Vários filtros são apresentados. O uso da água nas lavagens é um outro Sortelha elemento. As aguadeiras e as lavadeiras são as personagens que surgem como as Sortelha é uma das outras Aldeia Históricas. principais profissões ligadas à água. Com a Em terra exaurida. Provavelmente numa chegada da água, os tanques passam a ser antiga via Romana entre Emérita Augusta e a espaços municipais. Guarda. Almoçamos um arroz de lebre num restaurante instalado num antigo solar. O asseio e a higiene pessoal são uma outra forma de uso da água documentada na Olivenza exposição. Os lavatórios, os banheiros, as silas e até os bacios são objetos de outro Olivenza é uma terra raiana. Chegados ao fim tempo. Na vila as necessidades dos seus da tarde, passado o Guadiana em Badajoz, habitantes eram recolhidas de manhã por dirigimo-nos para Sul até à Ribeira de carros de muares que passavam. A partir da Olivenza. Entramos em direção ao centro da exposição documentam-se os vários ofícios cidade. Percorremos a cerca medieval, relacionados com a água. vigiada pela torre de Menagem do velho castelo português. A exposição dispõe ainda dum guia educativo Dentro do velho castelo, na antiga cadeia encontra-se instalado o Museu Etnográfico Gonzalez Santana. Trata-se dum museu municipal criado com as colecções desse filantropo local. Em 1980 a partir dum pequeno núcleo expositivo foi fomentada a ideia de criação do museu. O projeto de museu desenvolve-se então para ser instalado na “panaderia do rei”. É inaugurado em 1991. Instalado no interior dum conjunto de edifícios históricos, o museu de agradável visita apresenta um conjunto variado de coleção etnográfica estremenha. O motivo a visita é a exposição “El água en el hogar antes da la década de los 60”, produzida por Miguel Ángel Vellecillo Teodoro e Maria Teresa Plaza Nuñes. Trata-se duma exposição temporária, criada a partir das colecções dos museus sob o tem da água. Através de objetos e de fotografias é feita uma proposta de revisitação aos modos de uso da água na cidade. A década de 60 é o momento em que a cidade passa a ser abastecida pela rede pública. A proposta é olhar para os modos de uso da água antes desse tempo. Olivença está situada numa região freática rica. Ali perto, as antigas termas de São Francisco são conhecidas desde o tempo dos romanos, são um exemplo dessa riqueza freática.

que permite desenvolver diversas actividades pedagógicas com público escolar. O museu editou O Guia do Visitante e seis monografias sobre outras tantas salas do museu: Arte Sacra, Arqueologia, Música, Jogos e Brinquedos, Artefactos agrícolas e meteoritos. Situada na raia Olivenza foi no passado um território disputado entre a monarquia castelhana e portuguesa. Com o tratado de Alcanizes em 1217. Doada à ordem dos Templários, e vila crescerá como terra de fronteira. Um castelo altaneio, rodeado de fosso fará a defesa duma cidade murada. No seu interior cruzam-se duas ruas. Dom João II e Dom Manuel farão importantes obras, onde sobressai a imponente igreja de Maria Madalena. Ampliadas as muralhas medievais, a cidade será palco de disputa nas guerras peninsulares. A muralha medieval dará lugar à muralha de nove baluartes. Conjuntamente será construída a imponente ponte da ajuda, para permitir o abastecimento de tropas a partir de Elvas. Em 1801 nas disputas das guerras peninsulares passará para o domínio espanhol.

A identidade portuguesa surge marcada na tipologia de construção e nos materiais urbanos. A calçada portuguesa marca as ruas pedonalizadas. O oliventino, o português da raia terá sido falado pelas gentes de Olivença até aos inícios do século XX. Com o franquismo acentua-se a centralização castelhana. Os últimos anos permitem uma A identificação dos pontos de captação de maior liberdade de busca de referências. água: As antigas fontes e os modos de Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013

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Olivenza surge-nos como um pequeno burgo 875 mantém uma disputa com o califado de aristocrático. Com várias casas senhoriais Córdova. A herança muçulmana é alvo de terá feito da Oliveira a sua principal riqueza. especial relevância., Considera-se que é um período de particular progresso, onde se Os Silêncios de Olivenza? Onde está a cultivam as artes e as ciências e que a tornou identidade oliventina. Qual a relação de um importante espaço cultural peninsular. O Olivença com Badajoz. odor de Batalayaws é uma interessante mostra dos cheiros da cidade islâmica. Saídos da cidade vamos em direção ao Guadiana. A ponte da Ajuda, uma ponte Com a entrada da cidade no mundo moderno fortificada sobre o Guadiana, destruída para a exposição, que continua a acentuar a linha impedir o acesso de margem direita acentua cronológica aborda a questão do a dependência do território de Badajoz. repovoamento, das batalhas por Portugal, das Passados os anos bélicos, uma nova ponte guerras da sucessão, das laranjas e da facilita agora a comunicação entre as duas independência (peninsulares). Mostra o margens. turbulento século XIX e os primeiros anos do século XX. Os exércitos de Badajoz eram Badajoz vistos como resistentes e ferozes. Saídos do território de Olivenza regressamos a Badajoz. Cidade grande da Estremadura, rivaliza com Cáceres e Mérida em tamanho. Situada entre a meseta e o Atlântico, sobre as margens do Rio Guadiana é uma porta de defesa fácil. No centro da cidade velha, o seu alcazar, mostra uma construção nova onde se instalou o museu da cidade de Badajoz “Luís Morales”. Um museu onde se propõe uma viagem à história da cidade. Como elemento de relevância sobressai a importância do período moçárabe onde Badajoz é centro dum importante Taifa. De Badajoz passaram AlMansur (Ibn-al-Aftas) Muhamed al-Muzaffar e Umar al-Mutawakikil, expoentes da época de ouro dos Almóadas e Almorávidas. Até ao século XVII Badajoz é uma terra de mouriscos. Nessa data são expulsos e escravizados. Badajoz será palco de guerras importantes. No século XVIII durante a guerra da sucessão (1705), na guerra peninsular (entre 1808 e 1812) e na Guerra Civil Espanhola (1934) onde Badajoz foi terra republicana.

No exterior, na Praça do Alcazar, junto às casas mudéjar uma feira anima a cidade. Bancas de artesanato, música, organizações sociais mostram um pouco da vida urbana. Elvas Saídos de Badajoz atravessamos o Caia em direção ao recinto amuralhado de Elvas. Classificada como Património da Humanidade em junho de 2012, Elvas foi uma cidade de fronteira que agora se quer recolocar no centro da modernidade através do turismo e da cultura. O seu museu, o Museu de Arte Contemporânea de Elvas é apontado como um exemplo da intervenção modernizante do antigo Ministério da Cultura. Instalado numa casa senhorial, o museu alberga a colecção dum benemérito local “António Cachola”. Na visita, destaca-se a exposição “Traços, Pontos e Linhas” onde se apresentam o conjunto de desenhos dessa coleção. Instalado num espaço generoso dispõe das diversas condições dum museu moderno.

O museu, instalada na Casa de Luís Morales, terá sido construída no século XVI, é ao longo do tempo alvo de importantes benefícios, até à instalação do espaço museológico. O espaço propõe uma viagem de cinco mil anos, contada através de objetos, de cartazes, reconstituições, maquetas, audiovisuais, reproduções, meios interativos.

Este museu contrasta todavia com o espaço urbano envolvente. Ainda que sejam visíveis importantes obras de intervenção e requalificação urbana, a cidade, nesse sábado soalheiro, parece adormecida. São visíveis a não resolução dos conflitos entre carros e peões. Entre desníveis. O turismo é aqui levado à letra como elemento estruturante. O guia urbano propõe um percurso pelos fortes Destaca-se neste museu a importância da e fortins da cidade, pelos diferentes pontos de criação do Reino de Badajoz, (Batalyaws) e relevância identificados. Um percurso da dinastia aftasi por Ibn Marwan, que em alucinante que termina no castelo. Uma

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espaço intervencionado pelo IPPAR, onde se paga entrada. No exterior uma soberba vista sobre a planície. Mais uma vez não se falam dos ciganos. Não existem nos discursos, embora estejam presentes nos rotos que passam nas ruas.

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Oficinas

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Tertúlias na Baixa Por. Pedro Pereira Leite28, Luísa Costa29, Rita Machado30, Claire Hognisbaum31, Isabel Vitor32 As “Tertúlias na Baixa” foram um conjunto de propostas de oficinas de mediação com o objetivo de mostrar modos inovadores na exploração do espaço sociomuseológico e de procurar a integração com as comunidades. Foram realizadas no âmbito da “Exposição Baixa em Tempo Real”, uma organização do Departamento de Museologia da ULHT, apresentada na Galeria Milennium/BCP, na Rua Augusta em Lisboa de 1 de março a 30 de Maio de 2013. Em novembro foi proposto que cada um desenvolvesse um conceito inovador e experimental de intervenção no campo da mediação cultural. Entre março e abril de 2013 foram concretizadas no âmbito do progrmas de ação cultural da exposição. De seguida apresentamos um resumo de cada uma das ações desenvolvidas.

28

Investigador CES- Universidade de Coimbra Designer- Universidade de Lisboa 30 Psicóloga Mediadora Cultural 31 Musicóloga, professora 32 Museóloga- Museu de Setúbal 29

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Namorar na Baixa

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A partir do mote “Em fevereiro as lojas da Baixa enchem-se de corações vermelhos. O frio da pedra é aquecido pelo calor das paixões. A paixão é um dos territórios poéticos. A proposta deste sábado é explorar a baixa como espaço poético e dos poetas”. Luísa Costa apresenta uma proposta de explorar os espaços a partir das múltiplas dimensões poéticas.

percepcioanadas por cada participante a partir dos sons do espaço urbano. A sessão inicia-se com a apresentação dos participantes, através de exercícios de sociometria. Subtilmente, são introduzidas formas ritmas, através das quais cada um se apresenta, sendo que o grupo reproduz as sonoridades dos outros, procurando criar uma ideia de conjunto.

Luísa Costa apresenta uma proposta de exploração do espaço através da palavra do poeta. Procura captar as emoções sentidas ou pressentidas em casa espaço da cidade, De seguida é proposto construir um roteiro musical, construído a partir da imitação de propondo reconstruir os roteiros da cidade. sons da natureza. É apresentado numa folha No final da sessão, a partir dum conjunto de papel A4 um desenho com diversos sons selecionado de poemas, cada interveniente é básicos. Vento, Chuva, Trovão, Passo, convidado a colocar um poema em cada Pedras que caem, vozes humanas e sons espaço de baixa com o qual sinta animais. Cada elemento do grupo escolhe identificação. duma caixa de instrumentos disponível no espaço, instrumentos que improvisa como Músicas da Baixa34 instrumentos musicais para reprodução do A partir do desafio “Em Março inicia-se a conjunto dos sons de naturais. A partir da reunião desses elementos é proposta a primavera. A Sinfonia criação dum ritmo uniforme. Construir uma da natureza toma conta narrativa sonora da história apresentada. dos jardins da cidade. O território da Baixa não tem jardins floridos, mas tem no seu coração os ritmos do mundo. A proposta deste sábado é explorar os ritmos do mundo na baixa”. Claire Hognhisbaum apresentou uma proposta de mediação musical construída com base nos m ritmos do mundo.

No passo seguinte é proposto ao grupo explorar a sonoridade do espaço urbano. Cada elemento aplicará uma venda nos olhos e explora o espaço urbano durante um curto período de tempo. Por razões de segurança e para estimular a confiança no outro, o Clair Hognisbhaum apresenta uma proposta elemento com os olhos vendados é “guiado” de construção das sonoridades por outro membro do grupo sem olhos vendados. Cada elemento deverá ter em atenção as sonoridades envolventes 33 Proposta mediada por Luísa Costa, realizada no sábado 23 de fevereiro 34 Proposta mediada por Claire Hognhisbaum, realizada no sábado 9 de março

De regresso ao espaço museológico, cada participante verbaliza as sonoridades,

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procurando nos instrumentos disponíveis, a reprodução mais adequada. No processo de seleção o grupo pode sugerir formas de construção dos sons. Finalmente o grupo procura criar uma sonoridade coletivas. A construção duma opera. A cartografia das memórias e poética do espaço’ & 'Subjectivamente falando com gente da Baixa’35 A tertúlia foi construída a partir da proposta “Cartografia das memórias e poética do espaço‟36, que explora a expedição como proposta de construção de processos museológicos onde ensaiamos a inserção das metodologias das Histórias de Vida, num trabalho desenvolvido com os comerciantes da baixa. A proposta da metodologia da viagem, que tem por base a metodologia da Cristina Bruno, tendo sido explorada em diferentes contextos, e apresenta como suporte a publicação „Saraswati Lisbon: as experiências da viagem sobre as heranças de Lisboa‟. A proposta de utilização das Histórias de Vida tem vindo a ser explorada por nós em diferentes contexos37, neste trabalho em colaboração com Isabel Vitor, com o trabalho “Subjectivamente falando com gente da Baixa”: O trabalho parte das entrevistas a três lojistas da Baixa, com o objetivo de selecionar um objeto cuja memória seja representativo da história do espaço. Esta é 35

Proposta Mediada por Pedro Pereira Leite e Isabel Vitor, realizada no sábado 23 de março 36 Ver Heranças Globais, nº 1 , 2012, pp 16-19 37 Veja-se artigo supra “As Narrativas Biográficas e as metodologias de Investigação-ação sobre a memória e o esquecimento.

um metodologia usada pelo Museu de Trabalho de Setúbal38. Para esta tertúlia foram apresenados as histórias de Horácio Zagalo (cambistas na Baixa antiga); Manuela Cutileiro (artes de curar bonecas e a saudade); João Nunes (ofício de cravar pedras preciosas e as antigas oficinas de

ourives); Vasco Melo (A Casa Campião, sorte e Lotaria em jogo). O objetivo foi o de explorar a Baixa como edifício humano, espaço de múltiplas confluências e identidades, lugar antigo apresentado na primeira pessoa do singular. Sai-se à rua e seguem-se as passadas de quem conhece a Baixa como a palma da mão. A Baixa, sobre certos pontos de vista quatro pessoas, quatro percursos, quatro modos de contar e simbolizar, mapas mentais bem guardados por quem viveu e vive este espaço único da grande cidade. Revelar a História da Baixa ou da Baixa Esquecida. Danças da Baixa Rita Machado – Psicóloga. Tem trabalhado a música e a dança como proposta de construção de bem-estar na comunidade. Rita Machado apresentou uma proposta de trabalho que foi aplicada pela autora num centro comunitário em Barcelona. Muitas dos utentes do centro de dia estavam afastadas dos seus espaços domésticos, dos seus 38

Ver encontros sobre Memória e Oralidade realizado em outubro de 2012 em Setúbal.

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objetos de memórias. Verificava-se que tinham dificuldades em explorar os espaços onde viviam e criar objetos identitários para preencher os seus espaços de memória. O trabalho desenvolvido à época baseou-se em exercícios de construção de identidades, através da apropriação do espaço e a da recolha e partilha de objetos de memória. A partir dos grupos de trabalho e das especialidades funcionais de cada membro do grupo foram reconstruídos objetos de memória (por exemplo, através da aplicação de botões, criar rostos de bonecas O trabalho desenvolvido foi posteriormente apresentado em exposição pública A proposta de mediação para a tertúlia procurou desenvolver o conceito da adequação do espaço através das cores. A atribuição de cores ao espaço vivido. Distribuir cores pelos espaços da casa Amarelo (alegria, leveza, criatividade, energia), Azul (serenidade, contemplação), Verde (serenidade, calma) e Laranja (movimento, espontaneidade). A partir da simbologia das cores, ao espaço doméstico, cada protagonista foi convidade e atribuir cor ao espaço da baixa. Espaço de recolhimento, de moviumento, de contemplação de convívio.

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Oficina do Riso A proposta da Oficina do Riso tem por base os trabalhos desenvolvidos por Pierre Mayland e Luísa Rogado no Museu do Homem e do Mar na Carrapateira em Aljezur. Numa das viagens que efetuamos ao museu do Mar no ano passado encontramos esta atividade e recolhemos os seus principais elementos. Depois de refletir sobre a proposta, a após a inclusão da algumas das atividades que temos andado a desenvolver no âmbito da psicodança, apresentamos uma primeira proposta de desenvolvimento ao Museu da Ruralidade em Entradas, a integrar no programa de atividades do Entrudanças. O Museu da Ruralidade é o espaço sede do grupo sobre Oralidade, Memória e Esquecimento que temos vindo a acompanhar. Por diversas razões não se concretizou nessa altura, tendo sido feita uma primeira experiencia no Liceu Camões em Lisboa, em maio de 2013. Trata-se duma proposta que se encontra em desenvolvimento, e que procura desenvolver de formar experimental um processo de experiencia de reconhecimento de si, dos outros e dos objetos menemónicos através do riso. Procura-se explorar a dimensão libertadora do Riso como instrumento de reconhecimento de si e dos outros. Parte do reconhecimento de que o riso é uma das mais poderosas formas de expressão dos sentimentos. A sua função na construção do bem-estar pessoal e coletivo é reconhecida e incorporada na organização e processo social. No caso concreto da proposta apresentada ao musue de Entradas, procurava-se explorar a questão do Entrudo como expressão do burlesco e da caricatura representa. Nas sociedades que viveram o processo do Barroco, o processo de libertação das tensões individuais e coletivas foi e continua sendo marcado pelas expressões do burlesco. Todas as comunidades vivenciam estas tensões da inversão dos papeis.. A oficina do Riso procura construir a partir do riso, um conhecimento de si e um reconhecimento do outro como forma de construção de ação libertadora. Enquadra-se numa procura de metodologias de trabalho sobre o Barroco, que mais acima desenvolvemos39.

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Veja-se A Proposta da Museologia Informal como metodologia de Investigação-ação, na págiam 55

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A proposta de metodologia tem por base a aplicação da Poética da Intersubjetividade, constituída por quatro momentos: A Formação do cenário e a constituição do círculo fenomenológico, o aquecimento, o desenvolvimento e a conscientização. A proposta parte da utilização do sentir do corpo e do movimento. São pretextos para a catalisação do riso. A partir do riso procura-se criar uma predisposição para a construção de ação social em associação. Procura-se através dos um acesso ao eu. Sentir a liberdade do eu e deixar o eu fluir. Há que aprender a a escolher o riso e procurar equilibrar a mente e sentir o mundo. Todo o trabalho é feito com o objetivo do reconhecimento de si através da prática do riso individual. A procura da alegria permite influenciar o ambiente de forma positiva. A utilização do riso como sensação natural explora expressões de sentimentos, deixa fluir as tensões e expressa a nossa liberdade . “A essência do eu em sociedade”. É um processo que procura ultrapassa a dor e o sofrimento que são uma ilusão criada pelos pensamentos. No Aquecimento procura-se falar dos benefícios do riso, procura-se que cada um recorde quando e como se ri. Em regra, o riso é um processo contagiante, desencadeando rapidamente

situações vivenciadas membros do grupo.

pelos

Segue-se a ação. Através de exercícios de relaxação e de respiração vão ser simuladas gargalhadas. Pode ser solicitado para se imitar animais e tipos de riso. Podem ser usados jogos, dança, percussão, adereços. O Objetivo é sentir o riso do grupo e procurar a catarse40 coletiva através do riso. A ultima fase do processo implica a reflexão. É um processo para tomar consciência do que se sentiu. É um tempo de relaxar e de sentir no corpo o efeito transformador do método. Pricurase entender o que aconteceu com o grupo Cada atividade deverá ter uma duração de cerca de duas horas e pode ser concretizado num espaço museológico, com alguma privacidade para que as ações sejam pertença do círculo. Há vários tipos de riso que revelam estado emocionais e as caratrísitcas de quem ri. O Riso aberto expressa-se através de gargalhadas sonoras é característica de pessoas extrovertidas, amigas do outro e sinceras.

40

Catarse de integração. Um conceito desenvolvido por Moreno, parcialmente abordado em (Leite, Objetos Biográficos: A Poética da Intersubjectividade em Museologia, 2012). No próximo numero será desenvolvida esta questão

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O Riso verdadeiro: é um riso que vem de dentro. Uma força incontrolável que muda o rosto de quem ri. É característico de pessoas amigas e confiantes em si. O Riso largo: é próprio pessoas abertas e generosas.

de

O Riso permanente é característico de alguém satisfeito e otimista. É um riso que se mantém durante o tempo de comunicação. O Riso contagiante: É próprio de pessoas emotivas e otimistas, é um riço que contagia. O Sorriso de boca fechada: é característico dos que controlam o que dizem. O sorriso de esguelha: é próprio daquelas pessoas que disfarçam o sorriso para que o outro não o percebam. O falso Riso: é rápido. Não altera o rosto e não desencadeia emoções. O Riso rápido: É característico de egoístas, pessimistas ou introvertidas. Existe uma vasta bibliografia sobre o riso. Noutra altura darémos contas destas leituras criticas e do desenvolvimentos desta oficina.

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O Ciclo de Cinema Escravatura e Tráfico de Seres Humanos Entre os dias 6 e 9 de Maio de 201, realizou-se na delegação de Lisboa co CES, promovido pelo Comité português do projeto da UNESCO “A Rota do Escravo”, em colaboração com o CES de Coimbr e o CEsA do ISEG, um ciclo de cinema “Escravatura e Tráfico de Seres Humanos: Ontem e Hoje. Uma dúzia de filmes e dois debates constituíram o programa deste ciclo, que contou com a participação de várias dezenas de pessoas.

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Qual o sentido deste ciclo de cinema, próximo das comemorações do dia de África a 25 de Maio. Tráfico de pessoas humanas é um fenómeno presente. Todos sabemos. O Esquecimento é outro fenómeno que afecta as sociedades do norte, aquelas que mais se envolveram no fenómeno histórico do tráfico negreiro. Um tráfico que favoreceu uma determinada acumulação de capital num sistema précapitalista. Uma alavancagem para a acumulação do norte. E qual o efeito do fenómeno da escravatura nas sociedades do sul. Das novas sociedades constituídas com o contributo e integração destes escravos. Terá o fenómeno da dupla consciência de Paul Jilroy um oposto no fenómeno do esquecimento analisado por Jung, Lacan e Riceur? Vale a pena acentuar algumas questões que este ciclo levantou. Em primeiro lugar a pertinência dum ciclo de cinema para discutir fenómenos históricos. Sabemos que muitas das reconstituições do passado são meras reinvenções. Conhecemos descrições sobre as condições de captura e transporte dos cativos. Sabemos e imaginamos o que pode ser o ser humano considerado como mercadoria. Como valor de uso e de troca, ultrapassando a sua dimensão ontológica. Mas mais recentemente podemos olhar para o cinema, quer na sua dimensão estética, quer na sua dimensão de documentário como um processo narrativo de denúncia. Deixem-me subir à palmeira, filmado em Moçambique nos anos finais do colonialismo mostra, através duma narrativa poética essa tensão entre o mundo

tradicional, o filha da terra que parte para a cidade e regressa para o funeral. Já por seu lado, o Amistad, do realizador Steven Spliberg, reconstrói através da gramática de Hollywood a violência e o sofrimento do tráfico. Ensaia mesmo uma releitura sobre a fundação da nação americana, com base nesse combate pela liberdade do ser escravo. Por seu lado, o documentário “Not my live” mostra a dimensão atual do fenómeno. Uma visão mais moralista, mês nem por isso menos violenta do que é o fenómeno do tráfico de seres humanos na atualidade. Em suma. O filme como documento e o debate como processo de consciência. Uma segunda questão que mercê ser acentuada, esta de natureza mais histórica, relaciona-se com a análise do fenómeno da escravatura. Em regra este fenómeno inclui três dimensões do problema: A questão da escravatura como sistema; o tráfico de escravos; e o abolicionismo. No primeiro caso temos uma análise dum fenómeno que acompanha a história dos grupos e das comunidades de forma mais ou menos persistente. Seja como cativo de guerra, seja por nascimento, milhões de seres humanos foram escravizados ao serviço de grandes estados ou pequenas comunidades. Trata-se da análise dum sistema complexo e durável que leva um ser humano a reduzir outro ser a um objeto. No segundo caso, falamos dum fenómeno que alicerça um processo de concentração de capital. O tráfico organizado,

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transatlântico de milhões de seres humanos, destinado a serrem usados como mão-de-obra em numa economia de plantação nas terras americanas e caribeanas. Um trafico que é organizado pelos europeus, que se alicerça numa pratica antiga, mas que ganha formas próprias no âmbito da formação do sistema económico capitalista.

marcado pela barbaridade e pela violência.

Com efeito o “Tráfico” é uma forma de comércio que está intimamente ligada às políticas mercantilistas europeias. É um fenómeno que deve ser analisado no âmbito das responsabilidades (europeia e das chefatura africanas), no quadro duma organização económica que forma um sistema mundo (comércio triangular), com um objetivo de acumular capital na lógica dos interesses europeus.

Finalmente no terceiro caso, o fenómeno do abolicionismo, que é não poucas vezes tratado como que um processo de branqueamento do fenómeno. Uma forma de expiação da culpa. Depois do reconhecimento do mal, valoriza-se o processo de abolição, como que através do reconhecimento da “nobreza do ato concedido” se procura o perdão. Um perdão moral que confere dignidade a quem o reconhece, ao mesmo tempo que apela a quem foi vítima para se erguer a partir do ponto em que está. Um processo que por vezes procura apaziguar a memória dos fenómenos.

Trata-se da formação dum sistema internacional e intercontinental que se tornou progressivamente autónomo, que criou os seus atores próprios produzindo um enriquecimento dos intermediários e das instituições de suporte. É um processo que paralelamente ao enriquecimento de uns se produz uma desumanização do outro. O escravo torna-se um objeto: Despersonalizado, dessacralizado, descivilizado, e desterritorializado. O escravo africano é retirado dos seus quadros de referência africanos e obrigado a recriar outras sociabilidades, noutros territórios, com outras comunidades. Quando não morre no processo de transporte, ou no processo de trabalho, torna-se ator de outras sociabilidades mestiças41. Um processo que é 41

Ver Claude Meillassoux (1986) Anthropologie de l'esclavage: le ventre de fer et d'argent

Trata-se, para a fenomenologia da história duma questão que analisa o processo do tráfico negreiro como um processo que assegura a desumanização do ser. O ser humano passa a objeto. “A coisificação do se humano” como base dum processo social

Estes três modos de abordagem conduzem-nos a um terceiro ponto que gostaríamos de acentuar: O fenómeno da transformação do ser humano em mercadoria. Trata-se duma questão da actualidade, sobretudo na análise das questões do trabalho. Sem procurar, nesta reflexão, abordar as questões do trabalho, interessa revelar os processo como, ao longo dos séculos, e ao longo dos diferentes processos a desvalorização do ser se confronta com a dignidade da afirmação do ser e das suas formas de

( 1991) trad. The Anthropology of Slavery: The Womb of Iron and Gold)

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organização. O processo do tráfico negreiro é um exemplo do modo como se constituem ideias tipo (preconceitos) que perduram transformando o preto em escravo e em africano. No século XV, o preto que qualifica um ser pela sua forma (adjetivo) transformase num substantivo (confere-lhe substância pelo conteúdo). Tratase dum processo estruturante que mostra como a linguagem produziu a desubstancialização dos africanos. Um processo violento que retira valor e memória aos africanos, que está na génese de criação de preconceitos em relação aos outros, na recusa da aceitação da diferença, neste caso através da cor da pele. Um processo que nos conduz à questão da análise da memória. A análise da memória social revelanos mais as crenças do que as verdades. Ou por outra, a crenças na verdade. A Memória da escravatura remeto-nos para a análise dum fenómeno terrível, de visões divergentes de diferentes comunidades, de memórias de diferentes atores Situar os Estudos Africanos na análise do fenómeno da escravatura. A análise do discurso africano, da oralidade é situar a análise da palavra. O movimento da palavra que é ritualizada. A palavra é o exercício de símbolos. Os simbolos expressam a ligação com o mundo. A vida e a morte. A ligação à organização social, o poder da comunidade, mediado pela sua sacralização. A importância do parentesco. A família e os seus membros tem um lugar social. O estatuto dum

indivíduo liga-se ao da sua família, e a sua família liga-se ao seu passado. A dimensão coletiva do poder africano está ligada ao processo da sua relalção com os antepassados. Os objetos do poder conferem prestígio e mostram a sua riqueza. (Tecidos, armas, conchs, espelhos) Apresentação de "La Route de l’escalavage dans l´océnan Indien42 Resumo : Uma viagem por lugares da memória para resgatar do esquecimento o tráfico negreiro no Oceano Índico. Este documentário mostra os resultados do projecto da UNESCO, entre 2004 e 2010, que levou á criação de jardins de memória em seis locais ligados entre si pelos laços do trato humano. Madagáscar, Reunião, Moçambique, Maurícias, Mayotte e Pondcherry na India. O oceano Índico é hoje um espaço de culturas mestiças. Espaço híbrido que resultou dos intensos movimentos de pessoas e mercadorias que deixaram marcas nos rostos e nos modos de ser e estar das gentes. Uma história feita de sofrimento no passado que este projeto mostra hoje como um grito de liberdade em defesa dos direitos humanos.

42

Documentário de 65 „:realização: Sudel Fuma e Vitor Randrianazary, produzido por : Cátedra da UNESCO da Ilha de Reunião, 2011

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Notas de Blog Pan-africanismo e negritude Sob o signo de tornar a África visível com objeto de conhecimento, proferiu hoje (Junho 2013) Elísio Macamo uma intervenção no painel de reflexão “Pan-africanismo no processo de produção de Ciência Social em África. Defendeu a necessidade de olhar para as raízes do pan-africanismo, anteriores à emergência da ideia negritude com Leopold Shengor nos anos quarente do século passado. O Tema pan-africanismo é discutido na passagem do século XIX para o XX em três congressos Pan-africanisas (Paris, Londres e São Francisco). Nessa época, onde a construção dos Estados de Homens Livres na Libéria e Costa do Marfim, o Pan-africanismo emerge como uma proposta política. Desta relevância do Político sairá a linha do Pan-africanismo que influenciará a produção da Ciência Social em África, que terá sempre em linha de conta a ideia de ação política como projeto. Que levará entre outras questões à constituição da OUA, em 1963, em simultâneo com outras ideias de aglutinação regional (como por exemplo o pan-arabismo). Por essa razão, o Pan-africanismo, enquanto projeto, acabará por ficar ancorado na ideia do Estado como ator. Um segunda dimensão do Panafricanismo hoje discute-se no domínio da Filosofia. A discussão da filosofia africana, da maneira específica de pensar e produzir

conhecimento a partir de África. Há quem defenda a existência duma filosofia Bantu. O que é neste domínio relevante é que o debate sobe a africanidade é um raíz constitutiva. Numa terceira dimensão, também política situam-se as dimensões das experiências africanas ensaiadas nos anos sessenta. a Ujumma na Tanzânia, o Socialismo africano, as experiências do Kenya e do Gana, a maioria delas falhadas como projetos, mas que assumiram África como entidade política. Essa experiências criaram uma agenda de investigação que marca a emergência das ciências sociais e que acabaram por ser constituitivas dos Estudos Africanos. Nesse sentido a relação entre o Pan-africanismo e as Ciências Sociais pode ser entendido como um processo histórico.

Museologia Informal e Pensamento Contemporâneo Para um novo senso-comum é uma proposta epistemológica de Boaventura Sousa Santos. Desde a publicação em 1987 do “Discurso sobre as Ciências Sociais”, posteriormente desenvolvidos na Introdução a Uma Ciência PósModerna em 1989 e na “Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da Experiência”,publicado em 2000. Sousa Santos defende que o conhecimento dominante criado pela Ciência Moderna não está de acordo com o que sabemos A crítica à epistemologia do norte é feita a partir de três contextos

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de crise paradigmática. O contexto do conhecimento, o contexto sociopolítico e o contexto cultural.: O contexto da crise do conhecimento tem vindo a ser tratado por Boaventura Sousa Santos a partir da análise crítica da relação entre sujeito que conhece sobre objeto que é conhecido através do método de observação. O autor defende que não há uma neutralidade axiológica nesta relação, uma vez que quem questiona (ou observa) determina a resposta (a observação) A ciência é comprometida e não há um conhecimento sobre o objeto que não envolva também o sujeito que conhece. A ciência não é mais de que um modo de explicar a realidade, através de determinados procedimentos que interferem com essa mesma realidade. O conhecimento é hoje mais uma probabilidade. Uma busca dum novo senso comum com base em pergunta pertinentes. Este novo senso-comum permite conceber a existência duma realidade objetiva prévia ao sujeito. Uma realidade que é anterior ao sujeito cognostente e que o estrutura. Uma realidade que não é necessariamente conhecida por esse sujeito. Ora todos nós, como sujeitos ou como cientistas criamos modelos sobre essa realidade. Modelos que procuram estar em correspondência e em conformidade prever essa realidade. A validade do modelo, a sua verdade, advém desta verificação.

Isto implica que não exista uma verdade absoluta, nem tão pouco uma verdade incorporada no sujeito. O que se verifica é apenas a adequação do modelo à extensão da realidade analisada. Entre a realidade e o modelo verifica-se uma diferença de extensão e de qualidade. É pois possível e muito natural que se verifique uma realidade para além da que é analisada no modelo conceptual do sujeito. Um mundo transcendente. Uma vez que a realidade é modelada por uma ação, é essa ação que, enquanto percurso, liga o conhecimento ao mundo objetivo. Uma ação que é ela própria transcendente ao ligar o sujeito ao mundo objetivo, produzindo um conhecimento da realidade que é apenas aquele que conseguimos entender. Ora se extensão da interrogação determina a extensão da resposta a qualidade dessa interrogação determina a qualidade do conhecimento obtido. O conhecimento é apenas uma parte do real. O que se conseguiu extrair. Esta interrogação sobre o sujeito que conhece, o objeto que se conhece e o conhecimento em si mesmo modula o pensamento contemporâneo. As interrogações sobre a unidade e a totalidade, o contínuo e o descontínuo continuam a polarizar as categorias do conhecimento. O Tudo é parte de outro todo, o somatório dos descontínuos é um contínuo, os recetores são também emissores e o objeto é também um sujeito deixaram de se constituir como paradoxos e incorporaram a fenomenologia do

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conhecimento através dos sisgtemas abertos. Sistemas de níveis em que cada elemento pode ocupar diferentes posições nem diferentes sistemas. Se a mente dum ser humano opera num destes níveis, nada impede que se a mente social seja um outro nível. Uma mente em que o conhecimento emerge como uma natureza relacional intersubjetiva. A proposta da intersubjetividade na museologia permite articular as relações entre a unidade da mente com as interações sociais que fundamentam a partilha social de objetos qualificados.

ações museológicas desloca-se do discurso das narrativas hegemónicas e centram-na nas narrativas inclusivas. Prevenir, proteger e participar são as palavras de orientação desta museologia informal.

Museologia e Mimetismo Quando as exposições são estéreis. Vazias de perceções. Sem inovação.

Museologia Informal Planeamento Estratégico

e

O planeamento estratégico tem sido orientado pela lógica das necessidades. O desafio da terceira geração de planeamento é fazer o planeamento a partir dos direitos. Assim, em vez de projetar em função do futuro. Priojeta-se na lógica do presente. Os equipamentos museológicos e as

Quando o mimetismo é uma estrutura. Isto é quando se assume como uma conceção do real, à qual se contrapõe uma estratégia. Um sistema de ação. A Museologia Informal assume-se como uma reflexão sobre a ação para criar processos inovadores Um sistema estruturado implica um discurso legitimador através da presença de narrativas. Os discursos simbólicos como narrativas de legitimação.

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O ponto da Bauhütte Em época de centenário de Almada celebremos celebremos a busca de almada. No circulo, há um ponto interseccional com o quadrado e com o triângulo. É um ponto interior do triângulo equilátero. A perfeição do ponto de Bahütte permite a construção do Pentagrama . No pentagrama estão presentes os quatro elementos (ar, terra, água, fogo) mais o quinto elemento. A quinta essência. O Espírito. Depois de Almada Negreiros, foi Lima de Freitas quem se dedicou ao estudo deste fascinante traçado geométrico: o Ponto da Bauhütte. No seu livro Almada e o Número, Lima de Freitas desvenda-nos todo o mistério deste ponto secreto, bem como a sua origem e simbolismo: A Bauhütte foi uma federação ou associação autónoma e secreta que uniu as lojas de pedreiros e construtores do Santo Império Germânico, incluindo as da Suiça e dos países limítrofes de língua germânica"(Lima de Freitas, 1990, p.45) Como os pedreiros viajavam de obra para obra, o ponto da Bauhütte servia de senha para identificar e creditar a competência do obreiro. No entanto, a que enunciado deveria responder este traçado misterioso? "o «Ponto daBauhütte» é aquele a que se refere uma quadra transmitida tradicionalmente pelos entalhadores de pedra da época gótica e que fala de: «um ponto que está no círculo e se coloca no quadrado e no triângulo: conheces este ponto? Tudo irá bem. Não o conheces? Tudo será em vão» (Lima de Freitas, 1985, p.174) Foi o próprio Almada Negreiros que traduziu esta quadra popular que Mössel encontrou no folclore germânico. Em suma, o Ponto da Bauhütte era um ponto interior ao círculo que determinava o quadrado e o triângulo equilátero inscritos. Eis o traçado de Almada Negreiros: Segundo Lima de Freitas, o ponto encontrado por Almada Negreiros e que representou no painel Começar no átrio da Gulbenkian, não responde totalmente à quadra dos entalhadores da Bauhütte: "o traçado achado por Almada para determinar o ponto da Bauhütte constitui, quanto a mim, uma meritória aproximação, mas não responde inteiramente às exigências postuladas pela célebre quadra (...) O ponto de

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Almada comanda, de facto, a construção do quadrado e do triângulo no círculo, contudo não está no círculo; por outro lado, o triângulo obtido não é equilátero e não corresponde, portanto à perfeição do Três." (Lima de Freitas, 1990, p.55) Muitos anos depois da morte de Almada Negreiros, Lima de Freitas descobriu o ponto que correspondia às exigências da quadra:

No próximo número

 

Rota do Escravo

Memória e Esquecimento 

O Museu Afro-digital

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Heranças Globais Memórias Locais é uma revista semestral que apresenta os resultados do projeto de investigação ação em curso no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra financiando pela FCT com o nome “Heranças Globais: a inclusão dos saberes das comunidades no desenvolvimento integrado do território” (SHRH/BPD/76601/2011).

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Apoios: Muss-amb-iki –

espaço de memória e saber

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