Intempestiva n.02

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revista de literatura e artes visuais número 02 | ano 01 | dez. 2019

[poemas inéditos] roberto piva

[poemas inéditos] jarid arraes

[poemas] kaká werá

[tradução] marianne moore



INTEMPESTIVA //////////////////////////// nĂşmero 2 revista de literatura e artes visuais


SUMÁRIO expediente

editora Urutau rúa juan bautista de andrade, 67 – 5ºA 36005 pontevedra – galiza rua adolpho arruda, 41 jardim das laranjeiras – 12910 455 bragança paulista-sp brasil

[editores] alberto lins caldas thyago marão villela pedro spigolon [conselho editorial] ana estaregui gabriel kolyniak [revisão] beatriz regina guimarães barboza

[+34] 644 951 354 [galiza] [+55] 11 948 592 426 [brasil]

[projeto gráfico] wladimir vaz

www.editoraurutau.com.br contato@editoraurutau.com.br

[diagramação e capa] pedro spigolon

dez. 2019

[ilustração e imagem da capa] mayra rojo

[issn] 2596-2272

[identidade visual] matheus perinotto

Agradecimentos especiais pela generosa e imprescindível contribuição com a Intempestiva, em ordem alfabética: Alexander Martins Viana, Bruno Baghim, Cristina Dunáeva, Carlos Kahë, Fernando Monteiro, Geovanne Otavio Ursulino, João Fernando Ceccato Antonini, Luci Collin, Luís Perdiz, Marcio Markendorf, Mariana Barbosa e Yvelise Gonçalves Lins Caldas. * nota intempestiva: todas as escritoras e escritores, assim como a ilustradora, ou seus respectivos herdeiros, receberam pelos direitos autorais de sua produção artística publicada nesta edição.


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editorial

06

mayra rojo

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jarid arraes

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ana iris

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ronald augusto

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patricia laura figueiredo (pat lau)

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daniel francoy

36

kaká werá

40

maria luiza chacon

48

mário loff

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marianne moore, por mariana basílio

60

claudio willer roberto piva

68

[apresentação por ibriela sevilla]

78

roberto bicelli

84

tarso de melo & renan nuernberger

96

mafalda sofia gomes

100

andré caramuru teixeira aubert

104

joão pedro azul


EDITORIAL Falta a nossa escrita (a “literatura brasileira”) um enfrentamento indignado, descrente, que não afunde na lama do presente. Uma literatura que lute além dos seus limites, que denuncie a destruição monstruosa do teatro, da educação, da arte, da política, da justiça, da diversidade absoluta que funda o pensamento, a vida democrática, a sociabilidade, os corpos em luta, os corpos e suas diferenças. Uma literatura que lute para chegar a outros povos, não como adorno de carnaval de grupos e poderes, sem chegar a atingir a “cultura”, a “vida”, a “língua” dos outros países. Uma literatura que consiga chegar em guerrilha, em guerra, com pensamento a outros povos e seja acolhida por seu valor de coragem e renovação, coragem de interferência no seu próprio mundo, agora numa ditadura mafiosa estranha e mortal, sem ser uma cristalização de covardia e cumplicidade. Sem ser estabelecida uma tentativa estética sólida (sempre longe da gramática do poder) para responder a questões (políticas, éticas, filosóficas: em aberto, não respondidas, escamoteadas, não vistas, impostas pelo agora etc.), a literatura inteira afunda num contar algo para nada. Isso acontece no Brasil e em quase toda a literatura mundial, principalmente na poesia, presa principal de uma “interioridade” crente, romântica, fútil, memorialística pra nada, uma vontade idiota em “ser reconhecido” e ter uma “migalha de poder ilusória”. O editor seria aquele que avaliaria se esse livro pensou,


respondeu, enfrentou, resolveu ou não: se não o faz é porque a grande maioria das editoras não são editoras, são gráficas que recebem para publicar. E você, hipócrita leitor, de que lhe adianta um verso que não o incomode, que não o desloque de seu paraíso artificial de consumo, entretenimento e tédio? De que lhe adianta sustentar o monstro delicado enquanto o mundo se devora? Assim, em que medida a multiplicação/sobreposição de vozes contemporâneas pode estar silenciando justamente o que mais deveria se destacar? Que a questão, ou o que faz a literatura é um tipo de enfrentamento que apenas a literatura/poesia podem responder. Ninguém está interessado nisso; só se pensa em vender, em mercadoria, em dinheiro, reconhecimento: não há literatura, poesia, mas questões de mercado, soterramento de mercadorias, desesperos de vendedores e distribuidores de mercadorias, de coisas, coisa nenhuma. A revista Intempestiva luta por ser um pouco da busca pelos que já compreenderam isso e não se deixam sufocar pela mesmice, pelo poder, pelo vazio de ser chamado de poeta, romancista, contista, desenhista, pintor, teatrólogo, sem por nisso tudo uma marca para a literatura, para o mundo, inter-ferindo na loucura das hienas.


[artista convidada]

MAYRA ROJO [MÉXICO] [biografia] Artista interdisciplinar. Pesquisa — em

artística e cultural. Colaboradora da

ilustrações, desenhos têxteis, instala-

Galeria LaHydra (Cidade do México).

ções e explorações do movimento cor-

Coordenadora do Seminário Perma-

poral — os discursos do corpo entre a

nente Anticolonial: Círculo de Estudos

ciência e o campo artístico. É Doutora

sobre Monstros (Projeto Autogestio-

em História da Arte, tendo realizado

nado com o Kaput-Kollectif, a Revista

um pós-doutorado em desenho têxtil,

Icônica e o Seminário Alteridade e Ex-

assim como períodos de investigação

clusões, 2019). Foi beneficiária da resi-

na Universidade de São Paulo e Neu-

dência artística Air-Montreux (2019),

brandemburg. Seus eixos de pesquisa

assim como do apoio para frequentar

são a antropofagia cultural e a figura

o seminário Fábula dos Mortos-Vivos,

do monstro, de uma perspectiva anti-

uma história alegórica da América La-

colonial. Curadora e investigadora em

tina (Galeria Kadist, Fundação TAE e

Arquivos Fotográficos, com especiali-

PAC, 2018). Curadora convidada do

dade em Cinema. Articulista, fotógrafa

projeto Traslado Artes da Visualidade

e ilustradora em revistas de divulgação

(Chile, 2017).

[sobre as obras] As obras aqui reproduzidas, seleciona-

aqui apresentadas falam de um mundo

das junto à artista, constituem princí-

de mutações, onde o corpo vira planta,

pios ativos para a reflexão sobre as es-

inseto, monstro. Estamos diante, por-

tratégias de intervenção e domesticação

tanto, de um corpo aberto, eviscerado,

do corpo, operadas pelos campos da his-

que transgride a noção evolucionista

tória natural e da medicina, estas duas

do darwinismo social, que fundou so-

grandes invenções sociopolíticas do

ciedades classificadas por raça, gênero

Ocidente. Assim, e em contraposição,

e classe.

as ilustrações “anatômico-botânicas” 8



JARID ARRAES Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora dos livros Redemoinho em dia quente, Um buraco com meu nome, As Lendas de Dandara e Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. Curadora do selo literário Ferina, atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

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uma mulher pergunta há tardes e pequenos espaços de tempo em que uma mulher pergunta de que adianta se as mãos dos homens dirigem o metrô e os ônibus os carros blindados as motos que serpenteiam entre corredores breves se as mãos dos homens assinam os papéis e carimbam autorizam o prontuário a entrada e a saída do corpo o reconhecimento dos órgãos doados se as mãos dos homens orquestram as violências balas esporros olhares e tocam seus instrumentos fálicos curtos enrugados colocados para o lado se os homens e suas mãos discam os números estabelecem os valores fazem listas de nomes de outros homens e se as mãos dos homens

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alcançam todas as coisas que quebram ou selam acordos e apertam botões que começam guerras internas por muitas e muitas gerações há um dia em que a mulher pergunta a si mesma pergunta para outra mulher e as perguntas pairam flutuam sobre a cabeça as perguntas incomodam e vazam como excremento de aves de árvores de céu nesse dia a mulher procura a resposta por que de que adianta se há mãos que fazem dançar as cordas e os pequenos membros do corpo vivem em sacolejo o ventre morre em liminares gestações que formam mãos de homens e a partir do ventre as mãos nutridas pela mulher saem na direção do mundo de tudo que é externo de tudo que é global antropológico fágico e social

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e a mulher nesse dia pergunta para outra mulher para o espelho de que isso tudo adianta

preparo escrevo cada letra como pílulas tarja-preta que não engoli uma a uma como feijões catados na bacia reproduzindo os dedos ágeis que minha avó possuía pego as palavras formadas prozac rivotril azepam oxetina e ouço o pingado agudo que minha avó também ouvia pec pec os feijões bons dos ruins numa água fria de torneira quanto tempo deve-se cozinhar um suicídio antes de comê-lo?

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falsete toda autoridade nega a liberdade arranca-lhe os dentes pendura-lhe no espeto e espera depois de algum tempo meia hora cinco vinte dias quatro meses sete anos a variação é curiosa depois de algum tempo a liberdade então canta

ciclo todas as jovens mulheres estão tendo filhos todas as jovens mulheres eram meninas no pátio da escola eram meninas vestindo breves afrontas correndo de flexões golfando imperativos

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agora todas as jovens mulheres estão tendo filhos fazendo chás comprando fraldas brancas dividindo nossa terra em cores revelando meninas que serão todas as jovens mulheres do amanhã mas nem todas estão virando o ventre do avesso e sentindo o sangue subir nem todas estão dobrando os braços nem todas as jovens mulheres estão se virando sei disso porque assisto todas as jovens mulheres estão tendo filhos mas nem todas as jovens mulheres estão se tornando mães

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caligrafia da resistência queria ter essas mãos que se estendem e curam passagens como pontes para pés hesitantes como água para barro quente e vermelho mãos puras de certeza e sangue queria ter essas mãos que escrevem a caligrafia da resistência os discursos que irão e continuarão exclamando cheios de força jorrando identificação essas mãos de quem costurou buracos de bala arrancou dentes podres encheu potes de pus transformou

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choro em vinho multiplicou pães e feixes botou fogo em tudo e pôs o corpo ardendo em círculos de dança — para amelinha teles e conceição evaristo

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ANA IRIS Já publicou na revista de criação literária Alagunas. No segundo semestre de 2018 publicou o livro Cavia Porcellus, selecionado pelo Edital de Obras Literárias da Imprensa Oficial Graciliano Ramos, em Maceió, Alagoas onde vive e prepara seu segundo livro. Escreve no blog Concha Poema (conchapoema.blogspot.com.br).

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loucura depois do choque reviram os relógios arrumam mal nosso cabelo olhamos no espelho — fiz mesmo algo terrível todos conseguem provar a loucura

fome separar as agulhas das folhas cortantes dos estiletes e pontiagudos lápis das quinas das portas e paredes do chão que pode rachar e saltar na nossa direção até que só sobram os lençóis e cortinas esses caídos juntos com meus braços e pernas porque braços socam e pernas chutam violentos mutilam o tronco e a boca essas são nossas partes constantemente sob mutilação por nossos braços nossas pernas e bocas mastigando mastigando sem parar por isso que agora os dentes são mais pontiagudos aqueles tendões passando entre os dentes puxando e rasgando puxando e rasgando afiaram lixaram nossos dentes para ser possível sempre comer mais de nós mesmos

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julia julia, me perguntaram se seu corpo está comigo ou se você carrega o meu pra cima e pra baixo como uma paranoia maluca não há como carregar um corpo morto sem que percebam estaria bem viva pra valer a pena sua tormenta sua loucura andante pra cima e pra baixo com minha voz bem viva nos seus ouvidos lhe carregaria sã — você — com braços e pernas costurados como se não precisasse de chão nem razão pra sanidade toda caminhada foi com você e isso me lembra hugles assegurando que os botões do fogão estejam arrancados a morte nunca esteve tão perto e você tão viva prendendo minha respiração dei conta do abismo quando minha pedra foi removida

* a boca enchia de lágrimas aos berros num choro aberto a paranoia me consumiu

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* lembrar e remoer as vitórias nos consomem mais que uma guerra

* agora tudo já passou e cada agora é uma ruminação das algas negras do nosso mar

toda mulher deve morrer leite corte lã uma mulher nasce paralela ao mundo nos desertos da domesticação não mais na amizade e no sacrifício não no amor das flechas e dos campos rupestres toda mulher deve morrer no ódio à vida sabendo de si gritando de si leite corte lã a sequência do dízimo aos poucos aos poucos deteriorando leite corte lã a sequência do deserto morremos de sede fome e estamos com frio 21


RONALD AUGUSTO É poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ ronald-augusto/]

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a música de moacir santos, como ela aparece para kant não podemos coisar as coisas como elas são se o alemão tivesse sido contemporâneo de moacir santos talvez a coisa não fosse bem assim o filósofo do idealismo ainda teria de sacar alguma coisa de música afinal, isso é coisa de negro: “basta colocar um piano na frente deles” (de um modernista de 22) mas quando duke se viu cara a cara com um piano, disse: “isto não é piano, é sonhar, ouça...” assim moacir santos com a boca em seus sopros já que a tormenta essencial do corpo, a música: graus de identidade em impenetrável insubsistência 23


poesia e história

onde dante no canto xix, paradiso, v. 139, não perdoa d. dinis, trovador/lavrador avaro e mercante, arrolando-o entre aqueles regentes que cometeram flagício. o porvir os há de citar por tal “arte”. ai torpes, ai torpes do verde pino, sabedes novas do meu souto? d. dinis o rei-poeta que “ordenou o plantio do pinhal de leiria, origem das futuras naves portuguesas” (murilo mendes dixit). vem desde aí o império ultramarino, o brasil e o epos negro através de maroceano e terras estrangeiras. um poeta no governo, no palácio do poder. “descendemos deste pinhal”, conclui murilo. oxalá, oxalá do pano branco, sabedes novas do meu jongo?

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cohab pestano

onde é pelotas, afinal de contas? uns concordam que é no laranjal. ou que é ali no mercado e suas imediações a biblioteca o quindim de nozes. os doces negros dos negros de pelotas muitos juram que é onde pelotas. têm aqueles que vão convencidos de que pelotas é algo dos ramil. de que pelotas agora é outra que é outra onde angélica freitas. onde é giba giba, afinal, pelotas? é ainda pelotas ao final de tantas? pelotas até cohab pestano onde extremo o aeroporto é pelotas. esgoto a céu aberto onde o pestano a contragosto é pelotas. onde é o povo negro no pestano a poeira das ruas de terra e chão. o ir e vir do povo do pestano onde afinal é pelotas, a que eu sei.

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oriki de ogum o ogum a quem devoto um ou outro oriki não empunha espada, não nem é espadaúdo tal qual os semideuses da marvel entretenimento nem tem a musculatura de estopa dos grandalhões do cinema mudo rabo-de-lagarto, pontuda planta de mosqueado verde quando é dita de ogum grossa, com borda de ouro quando é dita de iansã é o análogo com que ogum se deixa conceber a quem exige que pose com espada premida na palma em brasa ogum não se paramenta de soldado medieval o vermelho e o verde sabem sempre a ogum elmo, guante de dragão são saliências de cristão com que ogum não se arruma bananeira de pendão rubro um galo e seu esporão de ferro uma folhagem escarlata chamejante que estala uma figueira e seus galhos

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de tenazes o ferrĂŁo da bigorna onde ogum faĂ­sca onde ogum limalha

a caminho de uruguaiana nessas viagens em que estradas se desatam num sem-fim em algum momento entre uma e outra colina desbastada vislumbro o mesmo sempre passarinho em voo ansioso lado a lado com o Ă´nibus por alguns segundos

*

a noite escapa das entranhas dos milhares de eucaliptos e vai comendo devagarinho a estrada pelas duas pontas

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PATRICIA LAURA FIGUEIREDO (PAT LAU) Entre São Paulo, onde nasceu e dedicou-se à poesia e ao teatro desde cedo, e Paris, onde mora desde 1990, amadureceu seus poemas numa vida dedicada a tornar o poema uma experiência essencial. Publicou o seu primeiro livro de poesias, Poemas sem nome pela editora Ibis Libris em 2011 e seu segundo No Ritmo das Agulhas, em março de 2015 pela editora Patuá. Participou de várias antologias, no Brasil e na Alemanha, e também em diversas revistas digitais de literatura e poesia. Seu terceiro livro de poemas foi publicado pela Editora Dash em 2016: Poemas Bebês.

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o tempo que a água leva pra me afogar crianças e reis é entre você e eu esse parque ninguém nem você saberá que passamos nossas tardes aqui nem o vento nem as folhas nem os pássaros pouco importa quem você será quando crescer se pobre miserável milionário você estava aqui comigo nessa idade onde todos os homens são reis

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lamento que algumas coisas continuem nos acompanhando em segredo que a água entre nossos dedos que o gesto desamparado que o murmúrio derradeiro que o medo o medo o medo que a recém-inaugurada livraria da cidade que a ternura do banco que o desbotado do traço que o pacto com o silêncio que a praça a praça a praça que algumas coisas continuem nos socorrendo caladas que a voz enrouquecida que a vida despreparada que o beijo que desafia a infância abandonada que a fala a fala a fala que algumas coisas continuem na coragem da viagem no encontro com si mesmo na aliança com o pequeno na certeza do improvável que algumas coisas permaneçam nos guardando em segredo nos dedos nas águas nas praças nos gestos na entrega na fala no consolo do vento na miséria que apunhala que a vida que não existia que a neblina na vidraça que o papel preto

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ardendo que o lamento o lamento o lamento que o que continua é o efêmero no anseio no quarto desarrumado

circo no circo dos animais tristes o mar é um cemitério onde esqueletos de índios guerreiros e seus cabelos amarrados em placas de concreto boiam mais e mais todo dia no burlesco na melancolia os corvos podem agora voar que a terra volte a ser a terra nas sandálias de um imigrante num punhal num penhasco jazz e surrealismo de novo aos nossos pés monk e seus 46 baseados tudo é grito dos gregos ao monólogo tudo é cadência dicção (a primeira das delicadezas) se fazer compreender e a mais bela entre elas o silêncio diabos saem das poltronas como no tempo de don juan moliére e corneille abrem-se as cortinas les filles dans le ciel cavalos como os de forman se um estrangeiro chega é preciso que ele se venda se 31


um surdo fala ele tem que calar colagens dadaístas de moisés a dalai lama topor e suas vacas negras morrer de melancolia partir porque somos loucos porque somos sós e eles são tão numerosos

criança desarmada (sinos 1) ainda existem sinos que sonam nos passos mancos dos mansos ainda os mesmos balanços de acalanto e resistência em braços de sono e sono ainda o barulho dos trens em ferrovias intensas ainda as sirenes vermelhas nas ruas urgentes e atentas ainda os pés dos pequenos antes dos cordões e dos laços ainda a pele macia na dor dos lábios apertados apertados ainda essa voz que ousa na lágrima acuada

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ainda a alegria insolente no sujo da gargalhada ainda esses marinheiros em portos de refugiados ainda o recomeรงo incansรกvel nos dedos nas pernas nos braรงos o peso que se esquece na noite que nunca acaba no tempo que nunca houve na crianรงa desarmada


DANIEL FRANCOY 1979, nascido em Ribeirão Preto. Em Portugal, publicou os livros Em Cidade Estranha (Edições Artefacto, 2010) e Calendário (Edições Artefacto, 2015). No Brasil, publicou Identidade (Editora Urutau, 2016), um dos vencedores do Prêmio Jabuti na categoria poesia, A Invenção dos Subúrbios (Edições Jabuticaba, 2018) e O Ganges Represado (Editora Urutau, 2019). Teve poemas publicados nas revistas eletrônicas Escamandro, Enfermaria 6, mallarmargens, entre outras. Participou da plaquete Vozes Versos (Martelo Editorial, 2019). Alguns de seus poemas foram traduzidos para o inglês e publicados na revista eletrônica Saccades (2019)

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em torno de ana flor

1.

2.

Eis o que habitualmente sou aos domingos: um abutre que sonhou ser um flamingo até que desperto e o ácido do dia cai sobre as retinas ainda tenras de realidade e as corrói.

Uma jabuticaba é um beija-flor um beija-flor é um beijo seu um beijo seu é uma jabuticaba.

Então me lembro de você com um vestido amarelo com bordados de flores. Dizer que é um lírio é permitir outras definições pois um lírio é um flamingo e um flamingo é um girassol de asas com franjas de sangue e de ouro. E isso é tudo o que somos no domingo — você com um vestido amarelo florido e eu o eco incendiado de todas as suas metamorfoses.

3. Às cinco horas, na praça central, o sol transita entre estações no suor dos seus cabelos sobre a curva do pescoço. Calafrio ardido, arpejo de sal. Eu tenho flores e vestidos queimando em meus olhos até que as pupilas sejam o fundo de uma urna funerária.

4. Às cinco horas na praça central eu tenho uma alegria insubordinada e elétrica e o seu beijo é uma cicatriz que em sonhos é estrela.

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poeta do semáforo Vou lançar a teoria do poeta do semáforo. Poeta do semáforo: aquele em cuja poesia há o desprezo bruto da vida. Vai um homem sórdido, sai um homem sórdido da concessionária com um novíssimo [Mercedes-Benz e no primeiro sinal vermelho vem um aleijado [vendendo panos de prato berrando em seus ouvidos. É o poeta do semáforo e o seu poema é gritar para o próprio rosto refletido no vidro escuro do carro do indiferente homem sórdido. Sei que há esquinas sem aleijados em lindas cidades do mundo mas estas ficam para os homens-bomba e para os poetas ciclistas [que envelheceram sem nunca ter atropelado um cachorro.

van gogh Para alguns homens a lucidez é branca, mas não para mim. Aqui, dentro dos olhos-fornalhas, a lucidez é uma cor por inventar e que não existe senão incendiada. Tudo agora está pleno e alucinado e me dói como se eu fosse o órfão de estrelas impossivelmente próximas.

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antiverdades Não percebe o que acontece? Estou tentando não contar uma história. Nada disso é verdade. Nenhuma destas pessoas está morta. Ainda que falem um dialeto de sangue e poeira, não percebe que conversam enquanto estamos aqui? Não percebe que se movem dentro da tarde e dentro da noite? De um jeito estranho, admito, mas se movem, e por isso estão vivas. Não percebe que é uma mentira tudo o que escrevo? No sábado passado, eu não arranquei sete dentes para melhorar a minha mordida. Não existe este país no qual agonizo como algo tombado no chão. Não é verdade que há criaturas com corações trocados como um lobo com coração de beija-flor e um beija-flor com um coração de lobo. Nunca restou provado que os urubus são tristes e que as hienas riem porque comem carniça. O céu azul rajado de nuvens brancas não é o esqueleto da baleia que engoliu um profeta e o céu cinzento ferido de vermelho não é a baleia branca com um arpão cravado na carne. É absolutamente inútil definir as coisas pelo seu avesso. Não há qualquer beleza na ausência de sentido e se minto é porque não compreendo os fatos. Se deus nos fez indivisíveis, por que a cabeça se separa tão facilmente do resto do corpo? A vida é calma, bárbara, os meus olhos doem e há muita coisa que digo ter visto mas que nunca vi, como por exemplo uma borboleta com as asas sujas de sangue, o pólen dourado disperso no ar de manhã ou a sombra de uma mulher pegando fogo. 37


KAKÁ WERÁ Educador, terapeuta e empreendedor social, escritor e ativista na área de direitos humanos e ecologia. Notório Saber em cultura e espiritualidade tupi. Entre seONDÉus livros publicados destacam-se A TERRA DOS MIL POVOS, TUPÃ TENONDÉ, e O TROVÃO E O VENTO. Tem seu foco de atuação no desenvolvimento e integração do Ser a partir de uma abordagem holística. Seu trabalho é reconhecido e premiado por instituições como Ashoka Empreendedores Sociais, UNESCO e ONU, com relação a temática dos direitos humanos e educação transformadora.

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[poemas do livro]

o trovão e o vento *

*

Yvará pypyte, apyka apu’a i, pytü yma mbyte re oguero-jera.

As sagradas plantas dos pés o pequeno assento arredondado do Vaso Inicial enraizou seu desdobrar (florescer).

*

*

Pindovy emboreja yvy mbyte rã re; amboaé omborejá Karaí amba re; Pindovy emboreja Tupã amba re; yvytu porã rapyta re amboreja Pindovy; ará yma rapyta re omboreja Pindovy; Pindovy petei ñirui omboreja: Pindovy re ojejokua yvy rupa.

Criou uma palmeira eterna no futuro centro da terra; criou outra na morada de Karaí; criou também uma palmeira eterna na morada de Tupã; e, na origem dos bons ventos, criou uma palmeira eterna; na origem do espaço-tempo primeiro, criou uma palmeira eterna. Essas cinco palmeiras asseguram a vida na Morada Terrena.

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*

*

Yvyra’i mboapy py rãge omboupa ramo, oku’e poteri yva; a’e rami ramo, omboyta irundy yvyra’i py; a’e ramo aé oi endaguãmy, ndoku’e véima.

Havendo colocado inicialmente três colunas na Morada Sagrada, esta ainda se movia. Assim, Ele colocou quatro colunas de cetros sagrados. Só depois ela ficou em seu devido lugar: já não se movia.

*

*

Ñande Ru Tenondé yvy rupa ogueroñe’e ypy i va’ekue oguerojae’o ypy i va’ekue, yrypa i, ñakyrã pytã i.

O primeiro ser que cantou nessa Morada Terrena do Grande Pai e que pela primeira vez entoou um som de cura foi yrypa, a pequena cigarra vermelha.

*

*

Yrypa yma oime ñande Ru yva rokaré: a’a i te ma ãgÿopyta va’e yvy rupáre.

A cigarra vermelha primeira, que está abaixo da Morada Sagrada de nosso Pai, na Morada Terrena é somente uma imagem vivente.

*

*

Ñuú ogueropararãrã, oguerochiri tuku parãrã i. A’ete va’e Ñande Ry yva rokáre ma oime: ãgÿ opyta va’e a’anga i te ma.

Engendrando futuras matas por meio dos chichiares encantados, os gafanhotos que aqui vemos são apenas a imagem daqueles primeiros.

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*

*

A rirr ma, Ñamandu Ru Ete, Karaí Ru Ete, Jakaira Ru Ete: “Cheé, che ra’y namondo-uka véiri ma va’erã; namboapyka véiri ma va’erã”.

Então os Seres-Trovões disseram: “Nós e nossos filhos seremos revolvidos pela Terra e, nesse revolver, proveremos palavras em pé pelo chão. Sons andantes cantarão vidas, cada qual em seu tom”.


MARIA LUIZA CHACON Nasceu em 1991, em Natal. É escritora e professora. Formada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, atualmente cursa doutorado em Literatura Comparada na mesma instituição. Integrou a antologia Granja, em 2012, e publicou contos nas revistas Cruviana e Vida secreta, em 2011, 2015 e 2016, respectivamente. Possui um livro de contos quase pronto para publicação.

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vovó, meu cu

A velha me chama papisa, às vezes papisinha em baforada quente no meu cangote, os pelos em pé, me pondo para dormir um dedo lá dentro da minha pepeca, o dedo tremelicando como tremelicam os braços das mães ninando bebês, me guarnece porque é forma sutil de tocar o que tenho de mais fundo e de intocável para mim, é por esse dedo que vivo e que sempre vivi, chupeta minha sempre foi a de menina criada pela avó, mamilo escuríssimo grudado na carne murcha adentrando-me a boca, meu nariz rente à pele abrindo baús esquecidos em oceanos e mausoléus, cheirando uma época remota de alfazema e melaço, aquele cheiro o cheiro pertencente a algo maior, ao código secreto dos velhos que se abre diante de meus olhos com seus cheiros de murtas flores do campo lavanda alecrim

talco leite de rosas polvilho podre, depois ao diminuto segredo daquela velha em si, daquela velha eleita que era minha em resposta a eu ser, por descuido de uma geração, filhote dela mordendo-lhe o bico de sua carne disforme e abatida da qual não desponta seiva, somente minha fome alargando-se aos jorros. Vovó ordenava todos os dias como que para eu não esquecer de jeito nenhum, para eu chamá-la sempre que largasse meu cocô no fundo da privada, depois dizia pela rua que a menina velha ainda não sabia se limpar sozinha. Aí eu chamava, vovó vinha arrastando os chinelos — sobretudo por essa ser a única maneira que ela tinha de caminhar — empurrava a porta do banheiro, me mandava levantar da privada e ficava lá, não sei quantos minutos observando o meu cocô, na 43


sua cara uma ternura de quem analisava neta recém-parida ou de quem acabava de saciar a fome com um prato que há muito despertava a sua curiosidade. Às vezes eu precisava lembrar a vovó de que eu existia ali, de pé ao seu lado, com a calcinha arriada e o cu sujo, ela acordava de supetão e me corrigia muito brava, dizia que cu não era para eu dizer, que era pra eu dizer rodela, eu dizia rodela, ela me pegava pelos braços, me sentava de volta na privada — as minhas perninhas balançando — com a rodela bem arrebitada e ficava passando o papel por ela, enfiando de leve o papel na minha rodelinha, dizendo que eu era a menina da rodela mais suja da rua, a menina mais porca e suja tão lá no fundo que era difícil de limpar, aí ela enfiava mais o dedo com o papel e eu sentia como se estivesse saindo de novo cocô pela minha rodela, mas era só sei lá quantos dedos de vovó com papel em volta. Ou então ela só socava o dedo mesmo com cuspe para ver se assim essa menina imunda de encher qualquer rato de nojo conseguia ficar limpa. Vovó ficava tão brava comigo. Aí chegou o dia. O dia do entupimento da privada, vovó disse hoje você não vai fazer cocô na casinha, me colocou com as quatro patas no chão e disse agora faça, deitada com aquela barrigona para cima entre as minhas pernas, a boca aberta, a minha rodela meio tímida, o coração dando uns saltinhos maiores que era a forma de o meu coração ser quando eu ficava feliz e assustada ao mesmo tempo, como quando passei a mão por aquele cachorro enorme da vizinha e ele fez uma cara bem bonitinha mesmo com aqueles 44

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dentões, o cocô começou a sair todo em bolotinhas, vovó com aquela cara gorda e rosada com a boca mais aberta do mundo, umas bolotinhas caíam direto na boca dela, outras acertavam o nariz ou o seu queixo, ela ficava doida mexendo o rosto com a língua de fora sem querer perder nenhuma bolotinha, mexia e mexia a cabeça, parecia eu jogando pitomba para cima e tentando pegar com a boca na descida, ela ficava assim com essa cara gorda mexendo e mastigando e dizendo que eu era uma cabrita, que eu era uma maldita, uma cabrita e também porca e também suja e que eu merecia apanhar muito e pedir e pedir perdão a Jesus por ser tão imunda e fazer aquele cocô de cabrito, meu coração aos saltinhos maiores e maiores, eu olhando a papada de vovó por baixo do meu corpo e feliz porque a papada era engraçada e assustada porque eu era suja cabrita porca imunda e porque Jesus poderia não me perdoar nunca. Chegou uma hora que o meu cocô acabou, ela ficou nervosa mastigando e pegando nas mãos e enfiando pela sua bocona as bolotinhas que haviam caído pros lados, segurou as minhas duas pernas, levantou a cabeça com esforço e deu uma lambida cheia no meu cu, deu cosquinha boa, aí eu disse rindo e sem nem pensar ai meu cu, ela colocou a língua de volta para dentro da bocona muito rápido, parecendo máquina de bilhete de estacionamento, disse rodela e não cu sua porca papisa Joana sua endemoniada sua podre sua cara de esgoto e me deu dois tapas bem grandes, uma em cada lado da bunda, que encheram os meus olhos de lágrimas.


Depois era domingo cedinho, vovó me vestiu bem bonita com vestido de cambraia bordada, enfeitou meu cabelo com laço verde, lambeu a minha cara ainda laganhosa e saiu pela rua, mãos dadas comigo, eu um acessório dela, até a igreja Sagrado Coração de Jesus. Vovó dizia no meu ouvido peça a Jesus para purificar essa sua alma língua de gato vira-lata sempre que eu ia me confessar, e apertava o meu braço com força até ele ficar vermelho escondido debaixo da manguinha do meu vestido, eu dava uns passinhos até o confessionário e, olhando para a estrutura de madeira, supunha a cara magra com o nariz enorme do padre pendurado cheio de pelos saindo. Especialmente nesse dia segurei o riso ao imaginar a cara do padre assim e a expressão boboca que ia se formando na cara dele enquanto ouvia os pecados das gentes, porque cria que desse autocontrole dependia o perdão que Jesus iria me dar. Contei ao padre que era má com vovó, que eu a fazia fazer coisas ruins que ela não queria fazer, que eu lhe dava dor nos nervos, que eu era ladra de fruta de feira, que ao meu nome Joana cabia um papisa anteposto, porque eu era malvada e parecia a papisa montada naquela besta do apocalipse, mas por dentro eu ria daquela cara besta do padre com os pelos saindo de seu nariz enorme como se quisessem, os pelos e o nariz, invadir a sua boca, e por dentro também eu pensava em como havia acordado de um jeito gostoso, sentindo o meu dedão do pé enfiado num buraco que era a rodela de vovó, em como fingi dormir pela manha boa que era estar adormecida com o

dedo lá dentro. Pensava em como vovó sentou de vez sobre o meu pé, que doía esmagado pelo seu peso, em como ela ficava dizendo ui e ai e ficava soltando uns risinhos dizendo pare menina do capeta pare papisinha sua besta-fera seu projeto ruim de miúda ui ai e ui e você não presta menina você com essa sua mania feia de enfiar as suas coisas em todos os lugares que vê pela frente, por dentro eu pensando em como gostava de me fingir de dormida ou de morta enquanto vovó tinha meu dedo do pé ou da mão dentro da sua rodela ou da sua pepeca que às vezes engasgava seca, em como eu gostava de vovó sem dentadura no meio da madrugada dando lambidinhas na minha pepeca dizendo várias vezes xota, eu vou engolir essa xota inteira, dizendo na sua idade eu tinha a xotinha assim feito a tua, tão fresquinha e cheia d’águas, eu dormida ou morta querendo ela lambendo ali para sempre, eu que nem sequer respirava porque não queria que ela suspeitasse que aquilo era um corpo e que aquele corpo era vivo e que aquele corpo era meu, corpo de menina porca, eu queria era ser qualquer coisa como uma pedra ou não sei o quê mais lá, desde que ela ficasse ali me lambendo para sempre, babando a minha pepeca com aquela boca desdentada e sem sorriso mesmo quando sorrindo, desde que não houvesse qualquer pista deixada que era eu ali, que ela dormisse comigo no sentido de esquecer comigo que eu existia, porque naquela hora eu não precisava existir, não precisava nada que não fosse sentir aquela língua velha que andou o mundo inteirinho, que andou e parou na pica de vovô 45


como param as bocas das mulheres nas picas dos homens que dormem com elas, isso eu já sabia, ria lá dentro por ter esse conhecimento, depois fazia em nome do pai do filho do espírito santo cinco vezes seguidas por saber, o padre respondia cinco ave marias e três pai nossos minha filha, não suspeitava que eu sabia sobre as picas mas que de perto só conhecia cona ou muito moça ou muito velha ou com levíssima penugem ou com a pentelhada inteira branca, eu rezava com juros eu rezava dez vinte ave marias cinco dez pai nossos para ver se o perdão vinha e se vinha depressa, para ver se o perdão caía sobre minha cabeça e me fazia, de repente, uma menina santa e recém-saída do banho, perdão-bálsamo aos borbotões, eu uma menina que não queria ter uma pepeca com uma cara engelhada dentro, menina que não desenhava no diário uma pepeca enorme, não por ela ser enorme de verdade, mas por quentura ser impossível de desenhar, com coisa escorrendo de dentro, uma coisa que era água só que mais melada, uma coisa que secretamente depois a menina passava no dedo e levava à boca imaginando que ela era a avó, que ela era então a rainha, a dona de tudo, a autoridade antiga da casa, a de quem um olhar bastava para reprovar, assentir ou fazer a menina abrir as pernas, a menina pôr as patas todas no chão, a menina estirar a língua e chegar perto, a menina estirar a perna com o dedão voltado para cima. Papisa eu me fazia a cada dia, nas palavras de hoje aos poucos eu me tornava figura de veracidade questionável, vovó

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ralhava comigo, o braço erguido com a carne frouxa balançando, eu olhando aquele braço meditando aquele braço entendendo o que era um braço — vendo a hora a carne despregar ali mesmo e cair na minha cabeça — até a voz dela ficar lá longe, impossível de eu escutar entendendo, essa era minha cura, só aquele braço mole na vida, aquele braço que só sabia balançar ao menor sinal de movimento e que, por ser essa a sua única ciência, haveria de balançar para sempre como balançam os balanços dos parques, os pêndulos dos relógios, as cadeiras de balanço e as asas dos passarinhos através dos anos. Depois as Erínias porque as Erínias chegaram naquele dia primeiro eu de cócoras no prato de sopa morna de cenoura, vovó deitada no chão da sala, o coquinho sempre arrumado começando a desmontar da sua cabeça, vovó lambendo a minha pepeca suja de sopa, eu só grunhindo fechei os olhos, depois senti o dedinho entrando na minha pepeca com sopa e tudo, abri os olhos um pouquinho só, ela disse que estava procurando qualquer coisa que não sei se não escutei o nome ou se só não sabia o que significava aquele nome, não pedi repetição porque queria mesmo que ela procurasse naquelas procuras em que não se acha a coisa tão cedo, ela dizia estou procurando com uma cara iluminada, cara de gente bem boazinha de avó que preparou sopa morna para a netinha, aquele dedo entrando com mais força na minha pepeca, abri a boca bem muito como se estivesse comendo porque eu me sentia como se


estivesse comendo, mas comendo querendo comer e gritar ao mesmo tempo, aí eu dei um gritinho, rapidíssimo surgiu um segundo e um terceiro dedo e ela me escavacava, aqueles três dedos gordinhos para frente e para trás de modo que eu queria comer e gritar e ser comida — ter a linguinha da minha pepeca dentro da boca dela, mas então doeu e eu dei um daqueles gritos que eu dava quando acordava de um pesadelo em que vovó morria com os dois olhos grelados em mim, olhei então para baixo, eu procurava a cara boazinha de vovó como consolo de que eu não precisava me preocupar porque ela cuidaria de mim enquanto eu fosse menina e eu seria continuamente menina então vovó cuidaria de mim para sempre, o prato dentro laranja com uma poçinha vermelha também dentro, o coque de vovó desmontado e partes dos seus cabelos caindo dentro da sopa, a cara dela foi se aproximando, ela enfiou a cara inteira até o fundo do prato, lambeu tudo lá de dentro como se não comesse há dois ou três dias, uma gata velha com o focinho inteiro dentro da tigela de leite que lhe deram por comiseração, lambeu e lambeu até limpar o prato, levantou a cara toda suja de sopa e de poça e se enfiou inteira entre as minhas pernas, não caí para trás porque ela passou os braços em volta da minha bunda, eu sentia as linguadas enormes na minha pepeca, ela ficou lá uns instantinhos, mas eu não sentia aquela cosquinha boa porque a dor era muito recente para que eu a tivesse esquecido. Depois vovó me pediu ajuda para levantar, entre murmúrios que falavam de Erínias de

crimes de sangue de vingança e de coisas que eu não entendia de coisas que eu alargava bem os ouvidos, depois repetia as coisas comigo mesma para guardá-las direito na cabeça, a boquinha abrindo e fechando em articulações silenciosas para pensá-las mais tarde, para pesquisá-las e entendê-las também mais tarde, porque o conhecimento era desde cedo o meu intento e a minha crucificação, vovó dizendo esta casa é o Tártaro, as Erínias nascidas daquela poça na sopa, daquela poça que eu sequei não por gula não por cobiça não por luxúria mas por querer salvar a casa, salvar a peste de sê-la, devolver a ela o seu cabaço, depois Alecto vem me perturbar o sono sob ameaça do meu fogo mesmo em tochas, depois Tisífone vem murmurar no pé do meu ouvido meio surdo que o que cometi foi também assassinato, eu não escuto, Tisífone me atormenta o íntimo a ponto de eu ser internada como velha-louca, velha sem banho mais louca da região que levanta a saia para pessoa e besta e para a lápide do finado marido, sem perceber que ninguém, nem bloco de pedra, é obrigado a ver xota de velha, nessa hora uma peninha da pedra, o calor cedendo do vulcão extinto, aquele rompante de agarrar forte a menina contra o corpo durante a paz de Cristo, de naquele lugar mesmo enfiar a língua pela boca da menina até a língua chegar na garganta de enfiar a língua pela boca da menina até que a língua saísse pelo cu da menina lambendo existências lá de dentro, seus projetos de bosta, aquele cu manso e tímido tartaruga retraindo-se para o casco, aquele cuzinho que a menina 47



mutum-do-cu-vermelho teria de chamar rodela rodelinha rodelusca para que cu cuzinho cuzusco fossem léxico-único de avó, palavras proferidas pela soberana. A minha fome crescida comigo desde menina com as quermesses só minhas e dela, fome em crescimento ainda, fome com gigantismo, a santa padroeira ela, acendo as velas, os pés rastejantes dos chinelos e também das solas sozinhas gastas por anos de nudez eu pego e eu beijo eu pego e eu coloco dentro d’água para purificação reverente, limpamento de percursos, do enxugamento eu penso chance de oferenda capilar — com meus cabelos da cabeça dos sovacos da xota e do cu, mas há alarme clandestino quando toco as rachaduras que sobem até os calcanhares, é como se as várias boquitas dali fossem sugar a água inteira e me deixar com oferta vazia ao que de mais antigo eu não sabia se conhecia, mas ao que de mais antigo eu olhava e tocava

sem que pensasse se precisava conhecer o todo, a única totalidade que eu via livre de compreensão porque me bastavam as partes isoladas, esquartejamento diário e guarnecimento sempre vieram antes, eram minha toca úmida que me permitiam dobramentos contorcionistas e natação uterina. A minha fome dilatando-se, minha fome anéis acrescentados e uns acrescentando-se, guizo edificando-se, chocalhar cada vez mais alto, o perigo o mesmo, porém o anúncio de destruição cada vez mais proporcional ao tamanho do próprio perigo, papisa e cascavel a espreita na prega-esquina, Joana quase não sou, a boca na ponta da carne massa de modelar murcha, tugúrio um improvável modelamento, mas sem esforço poderia amoldar com as mãos barraco nela se quisesse, mas o que quero é só dos bicos despontando nadas, a fome alargando-se porque sempre foi assim que vovó me alimentou. E a mim, com fome, me vejo aniquilada.

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MÁRIO LOFF Poeta cabo-verdiano, diretor de teatro, estudou História e Património. Atualmente partilha história contemporânea de Cabo Verde no Ex. Campo de Concentração de Tarrafal. Tem dezenas de participações em antologias nacionais e internacionais de contos e poesias. Pratica voluntariado cultural na escola secundária da sua cidade e tem recebido convites para falar da sua escrita e poemas fora do país.

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invenção da seca Chamávamos uns aos outros de ilha e as vezes de cabo-verdiano. Pela pedra bruta, arroto ou magma sem estação marcada. Fomos estigmatizados pelas mãos de um Cristo de fogo apesar de esse vício de estar sentado nessas coisas de esperança ou sonhos devastados até que se salva. No nascer dos antigos dias nos mentiram que éramos tal cor verde. Ainda me lembro que fabricávamos chuvas fora da estação, tecidos no meio da pedra com linhas gigantes, uns verdes, outras secas que traduzem pátrias cascudas, fingíamos ser o criador do firmamento. Tentamos trazer só o sorriso, e saiu tudo em língua da esperança. Éramos ilhas inseparáveis, contra esquecimento. Já há muitos dias velhos, já há anos esquecidos tornámo-nos tão assimétricos ainda que peguemos as nossas mãos. Sou terra sem berço, nação de catenas e terços tesos. Aleitamos a terra verde no espírito e mãos no céu, esquecemos a língua de traduzir, tudo em cabo-verdiano as cores verdes. O homem de foice tem cortado as trincheiras que impediam a caída das lágrimas de agosto eles que souberam aprender as linguagens que esquecemos de aprender. Eles de boina furada que trabalham com gosto. A única tradução que fizemos de jeito nesta invenção foi perseguir a neve dos outros. Mordíamos os risos da neve e aprendemos o valor das lágrimas das azáguas. Ao vertermos escuridões em chuvas.

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o peso de amor tenho dês sentimentos no bolso e uma prata em sua volta tenho dês sentimentos a brigar o peso do amor. tenho febre na ponta dos dedos que há muito não foi até o fundo dos bolsos. tenho dês sentimos e uma prata que anda a perder valor diariamente. tenho nove sentimentos mortos pela saudade, de resto tudo perdeu o seu valor no escuro e na luta, quando a prata desistiu da luz. tenho dês sentimos e uns dedos com cheiros fortes da saudade. os dias foram prisão em dois lados, mal acabou a saudade acordou o coração. 52

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acertos ao amanhecer E se limpássemos todos os caralhos. Embutidos nos homens, sobretudo nas bocas e em estado reumático e diarreias fletidas e se a eliminação tiver o poder para mandar todos os caralhos tomarem no ku-n-gu-fu? Caralhos que estragam as frases devem ser repatriados do convívio das frases com acentos. Diálogos acordados. E se limpássemos todos eles que têm sido usados para acordar o quotidiano? E no lugar de bom dia, passássemos a dizer — Olá caralho — E aí caralhos, seremos um país oficialmente de caralhos logo ao amanhecer.

combinações Todas as luzes entram em combinação na sua presença, miram-lhe a máquina e lentes, calculam a sua imagem para além de um clic. O resto da cidade tem dado chilique na presença da sua imagem. Esses iPhones jamais passarão fome. Você o alimenta. Basta o seu riso menino. Que os prédios mudos jamais passarão a chamar-te em silêncio enquanto dorme a cidade na sua foto. 53


abotoei-me Eu nunca cheguei a perder por completo, abotoei-me: ininterruptamente em ínfimos do fechamento. O meu amigo poeta, amante de minutas e do setentrional nunca cheguei a carregar toda a culpa da ave que voa barbaramente! Na minha condição, lia canção de poeta louco e piolhos de Kafka, sou citadino clandestino. Só sou completo no Tarrafal! Passa por mim, a alma gasta, a arma morta. Passam por mim planaltos de pernas ocas, distâncias e diálogos dos sacerdotes e santos boticários! Cada vez mais se acerta o acordo ao ritmo de padre — o nosso. e um terço ao término das tristes vozes da praça. Se sou completo sou do tal. Ainda que na Pasárgada de mata-galo, nenhum silêncio filosofou mais do que o próprio galo. Nunca cheguei a ser completo, embora seja um pedreiro louco com o vento preso nos olhos. Basta ver, provoco. Ler que invoco. Andar que revejo tudo. Se sou de Tarrafal sou completo. Tenho de ressalvar a monarquia do poeta, são galos soltos, princípios de transes e barafundas, e um poeta em salto alto que ri de si mesmo. As achadas passam por mim, e dentro de mim mesmo compreendo o crime e castigo, lestadas e bofetadas do vento meio morto na rocha e uma língua em desaforo. Se sou completo sou de Tarrafal. Se sou completo sou o tal.

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recado Em cada rugir das tempestades ouvem-se recados vindos do universo em cada desentendimento dos homens havia uma briga boba, e desviar de assuntos que não são assuntos tem havido até os próprios rugidos nas veias dos homens e a terra que chora as raivas dos homens o sorriso dos homens e por fim tudo o que há na mão dos homens e eles não fazem nada a não ser juras. Por isso, por este momento dispenso o sonho. Eu só juro aqui perante vós que tenho só isso. Medo do que vem de outro lado.

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MARIANNE MOORE (1887–1972) foi uma escritora, revisora e tradutora americana, sendo uma das mais célebres poetas do modernismo americano. Nascida em Kirkwood, Missouri, em 15 de novembro de 1887. A complexidade de seus poemas costumou afastá-la do público em geral, porém sua obra é admirada por gerações de autores como Wallace Stevens, Ezra Pound e T.S. Eliot. De 1925 a 1929 trabalhou como editora do jornal literário e cultural The Dial, divulgando novos e importantes poetas, como Allen Ginsberg e Elizabeth Bishop. Seu livro Collected Poems, de 1951, a consagrou na literatura americana com um Prêmio Pulitzer de Poesia, o National Book Award e o Prêmio Bollingen.

[apresentação e tradução]

MARIANA BASÍLIO é prosadora, poeta, ensaísta e tradutora. Nascida em Bauru, interior de São Paulo, em 1989. Mestra em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Autora dos livros de poesia Nepente (2015) e Sombras & Luzes (2016). Colabora em portais e revistas nacionais e internacionais, tendo traduzido nomes como May Swenson, Alejandra Pizarnik, Edna St. Vincent Millay, Sylvia Plath e William Carlos Williams. Com patrocínio do prêmio ProAC (2017) do Governo de São Paulo, publicou em 2018 seu terceiro livro, o poema longo Tríptico Vital (Patuá). O projeto também foi finalista do programa de Residência Literária do SESC (2018). Mantém o site www. marianabasilio.com.br. 56


[apresentação e tradução — Mariana Basílio]

collected poems

Atualmente traduzo algumas das principais poetas americanas do século XX. Escolhi Marianne Moore para essa colaboração por dois fatores principais: primeiro, uma intensa ligação que sinto com a poeta em meu presente, após uma leitura cronológica da obra completa de João Cabral de Melo Neto, e pelas traduções que fiz de Williams Carlos Williams e Elizabeth Bishop, uma de suas pupilas — me levando a traduzi-la, enfim. A escolha dos poemas ocorreu a partir de minha leitura de alguns materiais específicos, principalmente o livro Collected Poems (1951). São obras que trazem conceitos marcantes da poética de contenção de Moore, com imagens intensas e associações entre ser, local e natureza da vida social — que transitava do século passado para o atual — além de questões específicas da construção do modernismo na poesia americana. Em relação à tradução, busquei uma equivalência em nossa língua para a dicção e o vocabulário dela, procurando valer-me de seus recursos e reproduzir a sonoridade do verso metrificado e do verso livre em inglês, na busca de não comprometer o sentido final dos textos, com o intento de apresentar os fluxos da capacidade de Moore e o impacto de suas palavras.

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to a prize bird You suit me well, for you can make me laugh, nor are you blinded by the chaff that every wind sends spinning from the rick. You know to think, and what you think you speak with much of Samson’s pride and bleak finality, and none dare bid you stop. Pride sits you well, so strut, colossal bird. No barnyard makes you look absurd; your brazen claws are staunch against defeat.

silence My father used to say, “Superior people never make long visits, have to be shown Longfellow’s grave nor the glass flowers at Harvard. Self-reliant like the cat — that takes its prey to privacy, the mouse’s limp tail hanging like a shoelace from its mouth — they sometimes enjoy solitude, and can be robbed of speech by speech which has delighted them. The deepest feeling always shows itself in silence; not in silence, but restraint.” Nor was he insincere in saying, “Make my house your inn.” Inns are not residences. 58

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a uma ave presa Você me serve bem, pois dou risada, e nem a palha te cega, que cada vento envia, girando pela pilha. Você pensa, e o que pensa, você diz, com o orgulho e o intuito infeliz de Sansão, e ninguém ousa te pausar. O orgulho te serve, ave colossal. Não é absurda em nenhum curral; suas garras fortes resistem à queda.

silêncio Meu pai costumava dizer, “Pessoas superiores nunca fazem longas visitas, nem têm que ser apresentadas ao túmulo de Longfellow ou às flores de vidro de Harvard. Autoconfiantes como o gato — que leva a presa à privacidade, o rabo mole do rato pendurado como um cadarço em sua boca — elas às vezes gostam da solidão, e podem ser privadas de fala por uma fala que as encantou. O sentimento mais profundo sempre se manifesta no silêncio; não em silêncio, mas em contenção.” Tampouco era insincero em dizer: “Faça da minha casa sua pousada.” Pousadas não são residências.

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a grave

Man looking into the sea, taking the view from those who have as much right to it as you have to it yourself, it is human nature to stand in the middle of a thing, but you cannot stand in the middle of this; the sea has nothing to give but a well excavated grave. The firs stand in a procession, each with an emerald turkey-foot at the top, reserved as their contours, saying nothing; repression, however, is not the most obvious characteristic of the sea; the sea is a collector, quick to return a rapacious look. There are others besides you who have worn that look — whose expression is no longer a protest; the fish no longer investigate them for their bones have not lasted: men lower nets, unconscious of the fact that they are desecrating a grave, and row quickly away — the blades of the oars moving together like the feet of water-spiders as if there were no such thing as death. The wrinkles progress among themselves in a phalanx — beautiful under networks of foam, and fade breathlessly while the sea rustles in and out of the seaweed; the birds swim through the air at top speed, emitting cat-calls as heretofore — the tortoise-shell scourges about the feet of the cliffs, in motion beneath them; and the ocean, under the pulsation of lighthouses and noise of bell-buoys, advances as usual, looking as if it were not that ocean in which dropped things [are bound to sink — in which if they turn and twist, it is neither with volition nor consciousness.

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uma cova

O homem olhando o mar, tomando a visão daqueles que têm tanto direito a ela quanto você mesmo, é da natureza humana permanecer no meio de uma coisa, mas você não pode permanecer no meio disso; o mar não tem nada para oferecer a além de uma cova bem cavada. Os abetos estão em procissão, cada um com um pé-de-peru esmeralda no topo, reservados quais seus contornos, dizendo nada; a repressão, no entanto, não é a característica mais óbvia do mar; o mar é um coletor, pronto para retornar um olhar voraz. Há outros além de você que usaram este olhar — cuja expressão não é mais um protesto; os peixes não os investigam mais porque seus ossos não perduraram: os homens baixam as redes, inconscientes de que estão profanando uma cova, e remam rapidamente para longe — as pás dos remos se movem juntas, como patas de aranhas-de-água, como se não houvesse a morte. As rugas progridem entre si numa falange — belíssimas sob as redes da espuma, e desvanecem sem fôlego enquanto o mar murmura em vai e vem por entre as algas; os pássaros nadam pelo ar em alta velocidade, emitindo vaias como antes — o casco de tartaruga açoita os pés dos penhascos, movendo-se debaixo deles; e o oceano, sob a pulsação dos faróis e o ruído das boias sonoras, avança como de costume, como se não fosse o oceano no qual as coisas deixadas [estão fadadas a afundar — e se elas se virarem ou se torcerem, não é com vontade nem consciência.

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CLAUDIO WILLER São Paulo, 1940, é poeta, ensaísta e tradutor, ligado ao surrealismo e geração Beat. Publicações recentes: Dias ácidos, noites lisérgicas, relatos (Córrego, 2019), A verdadeira história do século 20, poesia (Córrego, 2016; Apenas livros — cadernos surrealistas, 2014), Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, ensaio (L&PM, 2014), Manifestos, 1964-2010, (Azougue, 2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira, 2010); Geração Beat, ensaio (L&PM, 2009), Estranhas experiências, poesia (Lamparina, 20004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Antonin Artaud. Doutor em Letras na USP, onde fez pós-doutorado. Mais em http://claudiowiller.wordpress.com/about.

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diário inacabado

1 Às vezes nem fui eu o fotógrafo daquele mundo que se abria em praias ao pôr do sol, oceanos à contraluz, natureza de braços abertos (eu vi todos os rostos do mar) (o que me dizia o perfil de árvores diante da água?) a verdadeira fotografia — sempre — obra do acaso quando o belo é terrível e estas imagens atraem por sua tristeza os registros do que foi — do que fomos? — nunca mais poderei olhá-las sem um nó na garganta ou, se for falar, com a voz embargada são notas da solidão, isso sim o tempo — poderia ser em 1930 no país parado no tempo (o tempo sempre é outro, sempre é um outro) sempre é assim e meu vínculo é com a palavra — só

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2 elegias de outono: contrastes o áspero poema digital impresso associações proibidas uma epopeia, um assoalho compor as sombras do acaso eu tenho o delírio por mestre mas dizer isto não é fácil (não é nada fácil)

3 nas frias tardes sem rumo de abril são grandes as chances de topar com minha glauca indiferença A VIDA VALE UM POEMA o mês de junho também é sombrio (aqui) mas como eu gostaria de saber dizer isso em grego

4 elegíaco, desmembrado o fantasma de Vicente Huidobro passa pela esquina — com a qual sempre sonho — passa com as mãos nos bolsos — reclama do frio e vai repetindo: bergantim / volantim / palaquim... mas eu conheço poucos deuses gregos anamorfoses — galáxias

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Prefácio de Roberto Piva para o livro Anotações para um Apocalipse, de Cláudio Willer. Edição Massao Ohno, 1964. Toda poesia oficial brasileira, todo este acervo pernicioso-fútil de neoparnasianos, concretistas, marxistas de salão, rilkeanos-lacrimonosos, representa um desejo insaciável de autoridade, de impotência mística, de resignação artificial & patológica diante de uma Sociedade patriarcal & opressora. A rigidez biológica causada pela mania moralizadora consiste em que os seres humanos adotem uma atitude hostil contra o que está vivo dentro deles mesmos. A formação do caráter na pauta autoritária, diz Wilhelm Reich, tem como ponto central não o amor parental, mas sim a família autoritária. Seu instrumento principal é a supressão da sexualidade na criança & no adolescente. No panorama miserável da nossa sociedade puritana & convencional surge a figura de Claudio Willer como um protesto contundente contra todo o estável, fixo, obrigatório. Sua mensagem é a mesma de Blake: o caminho do excesso leva ao palácio da Sabedoria. Isto comprova a sua fidelidade à missão freudiana do artista como o Grande Desinibidor. Para Willer, como para Breton: La poésie se fait dans un lit comme l’amour. Blake, Nietzsche, Desnos, Freud, Michaux, Bosch, Butluel, Chirico, Lovecraft, Rimbaud, Ginsberg, Artaud surgem como os doze Anjos ou Apóstolos da Desordem presidindo a elaboração do Apocalipse pessoal de Willer. Na sua visão angélica à Swedenborg, São Paulo, New York, México, Recife aparecem em tapeçarias de Mari Juana Estrelada existindo realmente em um novo Céu de nostálgica Liberdade, numa nova dimensão giratória & como Boehme vendo símbolos no prato de estanho projetado fora da mente num espasmo de alegria. “Um crânio amargo, velejando com a inconstância do sarcasmo em meio a emboscadas de insetos, um crânio azul e sulcado, à janela nos momentos de espera, um crânio negro e fixo, separado das mãos que o amparam por tubos flexíveis...” assim neste poema de Willer eu me vejo muitas vezes costurado por ausências & com a Beleza sentada em meus joelhos invocando Rimbaud num pequeno adolescente da Eternidade, profecia sem Morte como consequência, relembrando minha amizade com Willer de relatividade Egípcia através de longos anos de conquistas & comuns leituras de Apollinaire, Racker, Novalis, Jarry & passeios em seu automóvel de imaginação branca pela Estação da Lapa, transitório sagrado, falando sem parar de experiências metapsicológicas Strindberg com luvas de garoa verde, em bares da Lapa & Brás onde il pericoloso Dante costumava aparecer. É desta Clarividência que seus poemas emergem como numa fecundação obscena, encantadoramente larvar & noturna, ecoando a bossa terrível de Michaux: Les coages aiment l’obscurité. 65


Poemas do livro Anotações para um apocalipse 1 A Fera voltará com seu rosto de tranças de prata, nua sobre o mundo. A Fera voltará, metálica na convulsão das tempestades, musgosa como a noite dos vasos sanguíneos, fria como o pânico das areias menstruadas e a cegueira fixa contra um relógio antigo. Um sonho assírio, eis nossa dimensão. Um crânio amargo, velejando com a inconstância do sarcasmo em meio a emboscadas de insetos, um crânio azul e sulcado, à janela nos momentos de espera, um crânio negro e fixo, separado das mãos que o amparam por tubos e esmagando os brônquios da memória — assim se solidificarão as vertigens jogadas sobre a lama divina. O incesto é uma tempestade de luas gelatinosas e a mais bela aspiração dos membros dissociados. Em cada órbita uma avalanche de sinos férteis e de arcanjos terrificados pela sombra. O incesto é o sonho de uma matriz convulsiva e o mais profundo anseio das cigarras. Vaginas de cimento armado e urnas sangrentas, impassíveis contra um céu de veludo, guardiãs de oceanos impossíveis. Milhões de lâminas servem de ponte para os desejos obscuros — a mais afilada trará a nossa Verdade.

2 As margens do caminho desfaziam-se em filigranas semelhantes a certas glândulas de mamíferos inferiores, ou aos caules de vegetais cujas raízes se sustentam nas formações cristalinas dos pântanos da Rússia Central. Um calor envolvente desprendia-se do asfalto, de mistura ao odor de maçãs conservadas durante setenta anos em potes de barro, em um clima desértico, ou de fungos que se alimentam do cloro desprendido pelo impacto das hélices sobre as folhas de plátano. O pedregulho, entreabrindo-se, exibia outro subsolo: anátemas ainda não proferidos, nadadeiras de tubarões empalhados, um espelho côncavo, e variedades de tubos cristalinos. Conservada em sal, a alma gelatinosa das mansões belle époque desfazia-se lentamente em colares de pérola negra. Folhas em forma de brasão cobriam as várias tentativas submersas, indicando o roteiro para um ossuário improvável ou para castelos de feixes de dinamite erigidos ao amanhecer.

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3 As noites semimortas da minha adolescência, massacradas pela canalha, vieram pendurar-se nos meus ombros, arrastando-se, véu inútil, pelos complicados desníveis do Tempo Presente. Os seios de meia-lua, lacerados, dinamitados, agora farpas de gelo acumulando-se em grossas camadas sobre os sofás, tapeçarias, lustres do meu quarto. Em compensação, todos os gatos esguios da selva suburbana vieram acasalar-se à minha cabeceira, velando meu sono com seus lamentos de fagote e harpa.

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ROBERTO PIVA [Autobiografia escrita em outubro de 1979] Nasci em São Paulo na maternidade Pro Matre há quarenta e dois anos. Raramente saio de São Paulo, não por amor fati porém por absoluta falta de grana. Como não sou um intelectual de esquerda nem pertenço ao Rebanho-que-saca, estou sempre às voltas com o problema do dinheiro. As oportunidades que tive de deixar o Brasil, desperdicei-as por alguma paixão momentânea que atravessou minha vida nesta cidade. Gostaria de morar na ilha de Capri, na ilha de Marajó ou na ilha de Manhattan. Minha poesia só é possível quando estou apaixonado. Leio Dante, Artaud, Leopardi, Virgilio, Nietzsche, Rimbaud, Vico & Trakl desde os 16 anos. Prefiro ser um mendigo no reino vivo da poesia, do que um príncipe no reino morto do beletrismo & da crítica literária. Nunca levei a sério nada a não ser o instante. Minha pátria é onde não estou.

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[apresentação por Ibriela Bianca Sevilla]

Nos idos de 2012, ano do Hierofante no tarô de Crowley, segundo sua numerologia, ano próspero de intuição, regido pela Lua, me deparei (talvez por indicação do destino ou acaso, já que “um lance de dados nunca abolirá o acaso”) em pesquisas aos arquivos do poeta Roberto Piva no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, com uma preciosidade que não pude manter à sombra: trata-se de um livro inédito intitulado Corações de hot-dog. Se tivesse vindo a público teria fechado a tríade da poesia marcadamente erótica de Piva com os livros Coxas (1975) e 20 poemas com brócolis (1981), mas esse ménage à trois nunca aconteceu; ainda estamos na expectativa que a potência dessa tríade se materialize. Por ora o leitor terá o prazer (literalmente e literariamente) de ler quatro (não por acaso) poemas desse hot-dog cheio de corações, se é que me entendem. Advirto-lhes já de início, que ler esses poemas só será possível sob a ótica delirante da paixão. Não há explicação filosófica nem aproximação acadêmica capaz de dar conta dos sentidos ativados pelas composições que encerra, pelas imagens que transbordam (e toda tentativa, inclusive a minha, se resume a onanismo). São poemas que falam diretamente ao corpo, com o corpo, nas batidas aceleradas de uma paixão. O ineditíssimo “Poema de Amor Desesperado de Alegria” traz um fusão intensa do eu poético com a paisagem, com o tempo e no limite, com seu amante. Há uma impressão de tempo que transborda no presente, no agora; é um tempo parado no tempo do poema, e o sentido último do erotismo em Piva é o prazer, a fruição com a linguagem e seus limites, com os limites das suas imagens. “Antes da Tempestade, cabelos ao vento... (ópera-samba)” é um longo poema, nem tanto para uma ópera, mas na medida para um samba, que fala de uma “noite de Mormaço Crime & Ciúme” permeado por imagens insólitas que destilam conquista, prazer e dor. O poema não é composto como um gênero literário “nobre”, entretanto, um tipo de linguagem sublime permanece, ainda que impossível de ser precisamente determinada, e justamente por isso, subsiste no campo das sensações desviantes, necessariamente paradoxais, como o êxtase, neste caso. Um trecho desse poema foi lido no documentário Antes que eu me esqueça de Jairo Ferreira, filmado no lançamento do livro homônimo de Roberto Bicelli em 1977.

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“Queima Supermercado, Queima” pode ser considerado uma das pepitas de Piva; é de uma beleza singular, observada na primeira juventude dos corpos. Os garotos tornam-se a questão e toda a estética do poema gira em torno deles e é composto para eles. Os adolescentes aparecem como imagem privilegiada em todo o Corações de hot-dog, mas aqui, os garotos delinquentes da Febem tomam o lugar da musa que inspira o poeta delirante. “Queima Supermercado, Queima” já pôde ser apreciado em duas publicações, na revista Ímã em 1982 e em 2012 em livro organizado por Sergio Cohn para a coleção Ciranda da Poesia da editora da Uerj. E, como um Gran Finale, apresentamos ao leitor o “Poema elétrico do Cu”! Apareceu publicamente primeiro no blog do poeta Claudio Willer e saiu então na revista Polichinelo, n. 15 de janeiro de 2014. É um poema do êxtase corporal, da liberdade e da libertinagem, além de uma apologia ao sexo anal; pode ser lido como uma tentativa de quebra de tabus mostrando, através de suas metáforas compostas por termos baixos e elevados, o cu como fonte de prazer e não somente a zona do interdito. Através da constante exaltação, Piva compõe um ideal selvagem (violento e indomesticado) em sua imagem privilegiada, o cu. Mostra o conflito da libertação sexual com os costumes morais que a proíbem, sustentados pela noção de pecado. O sexo como voluptuosidade é colocado em questão no poema, pois privilegia o dispêndio da energia vital, cujo único objetivo é o prazer e o êxtase do corpo. Aqui não há procriação, mas a afirmação de uma vida baseada no ócio e na alegria. Na impossibilidade de uma felicidade profunda encontrada somente na voluptuosidade, desemboca a transgressão, campo de limites onde a poesia de Piva se desenvolve. Que o leitor se entregue ao gozo, e boa leitura.

[Ibriela Bianca Berlanda Sevilla] Atualmente professora de português e literatura no IFC Campus Concórdia - SC. É integrante do coletivo Abrasabarca de mulheres poetas (abrasabarca.wordpress.com). Lê mais do que escreve, aprende muito mais do que ensina. É convicta de que as palavras têm poder, e que saber ler o texto velado de um poema é (poder) desvendar os enigmas da vida cotidiana. Acabou por se (de)formar como mestre e doutora em literatura pela UFSC em 2015 quando defendeu a tese “Todos os pivetes têm meu nome”: imagens da subjetividade nos arquivos de Roberto Piva. Publicou com o coletivo o livro de poemas Abrasabarca em 2018.

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coraçþes de hot-dog


Poema de amor desesperado de alegria

Meu amor me perdoe por não estar triste mas o mar pétala pré-histórica leva meu coração gelatina ferida até você através dos sinais dos petroleiros ao largo vistos da praia de Guaiúba & seus Mosquitos vorazes ao crepúsculo você que me vê viver dançando na estrela que desponta & desaba seus gritos de peixe-espada pelos longes não me deixe morrer tão feliz sem ter visto seu corpo adolescente correndo para o mar com um girassol entre os dentes distâncias consomem o que sobra do dia findo mais um nenúfar rodopiando nas rochas onde eu estou sentado reclamando dos deuses minha fatia de oceano silencioso com minhas mãos na névoa rosa do céu repousando no imenso rosto do mundo torres de avelã entram pelos meus olhos tainhas loucas entram em seu coração & o sol escorrega na paisagem metade luz metade sombra pássaro albatroz levando no bico minha mensagem: amor, aqui começa o Tempo

Praia do Guaiúba – Outubro de 1977.

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Antes da tempestade, cabelos ao vento... (ópera-samba) “Seja o teu amor o mais profano delator bendigo porque vem do amor” — Pixinguinha “Nós apreciamos isto melhor na agonia dos outros” — T.S. Eliot Trombadinha de bom coração apenas incendiou a alma do camelô deitando suas raízes amorosas neste vendedor de miçangas o azul conta como suas vidas marginais corrompidas lumpem puderam ser atrapalhadas pelo pobre marinheiro canadense cheio de estrelas nos olhos & corpo de cometas risonhos no seu nascimento de cartilagens sonoras & como as bocas se fecham uma sobre a outra noite & dia atravessadas pela ferida elétrica do amor no quarto de pensão à beira do cais de Santos terracinho de samambaias cheirosas prateadas pela Lua de Verão quando o trombadinha de 15 anos abria a margarida erótica do cu & oferecia essa flor vencida ao marinheiro canadense quando o camelô estava fora profetizando suas miçangas nas portas dos cinemas depois de ter sido boxeur lavador de pratos motorista de caminhão bombeiro & agora um infeliz franchona traído pela aura da mitologia marítima do marinheiro as tapeçarias do céu enrolam a tempestade que irá desabar nesta noite de Mormaço Crime & Ciúme os esqualos os infanticidas as chapas gigantescas dos navios ancorados ao largo os albatrozes devoradores de serpentes as focas amestradas & hidrófobas as carmelitas descalças o navegador de musgo os rebanhos de zebras do apocalipse os ciganos os pardais de cânfora as fuinhas de algodão os roucos de tanto peidar os hemorroidários de tanto falar as bichas paradas nos mictórios dos jardins públicos os cavalos de corrida eletrocutados os planetas de magnésio as uvas de Berlim as constelações dos amores novos paralisaram seu Curso prenderam a Respiração & aguardaram hipnotizadas o destino seguir sua lógica de ouro

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oh baobás frenéticos na invisível floresta das horas sinfonia clássica cidade portuária coberta pelas asas do ANJO MENTIROSO bêbado do maná do Limbo das Áfricas do céu investidas no destino humano com lanças & tambores danças de dardos de Kansas City comida goiana apimentada entre 200 batidas de tamarindo o mundo gargalhado no meio das taças de sangue o trombadinha cruzou as pernas coxas douradas gostosas na cintura do marinheiro canadense & começou a dar de frango-assado a piroca do marinheiro hélice de torpedeiros dos pampas de Quebec entrando & saindo daquele túnel de veludo uma asa de alegria na garganta vaselina Sidepal siderando a foda mais gostosa foda de despedida adeus marinheiro sailor tomorrow Quebec me triste triste oh dear enfant mon pauvre enfant blond serei feliz fora das gesticulações da ostra serei feliz contra a essência da morte serei feliz contra os esgotos da Polícia mãos & pés bocas & lindos tornozelos que se cruzam na sombra gemidos entre o renascer & a correnteza próxima da pequena morte orgasmo oh orgasmo linha de convulsões dos olhos até as nuvens que passam ligeiras feito um tiro BUMMM que atira a carcaça convexa do outro lado BUMMM fatal oh fatalidade lágrima na pupila doce caindo num BUMMM mais caricato que uma foda num quarto pobre de verão loiro no país moreno noites absolutamente negras estreladas com Melaço & Gemidos o trombadinha se torceu na cama com um filete de sangue no olho esquerdo o camelô apontou seu segundo BUMMM na cabeça louca orgasmada do quebequeano rugido BUMMM a folha morta do crânio tombando no assoalho lambuzado com parquetina (pobre quarto ninho provisório daquele tráfico de pétalas) chorando lágrimas de veneno chorando vísceras de búfalo chorando duas almas de aço & canções tristes o camelô se entrou soluçando quebrado o coração rangendo rangendo rangendo torcido de dor coração lençol machucado respingando dor dor dor até a derradeira SOLIDÃO

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Queima supermercado, queima para os garotos da FEBEM

eles estavam estirados na grama recobertos de samambaias eles estavam lá no meio do tambor do dia com exus adolescentes cantando em suas orelhas & sexos em semi-ereção confundidos com caules tenros eles se abriam ao sol com olhos semi-cerrados & sangue acorrentado eles repartiam as facas da luz lascas de tesão fios de náilon do orvalho & ninhos de andorinha corações em tumulto estrelas futuristas do cometa da anarquia

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Poema elétrico do cu músculo de veludo na boca de todos os feirantes torpedeiros meninas de internato negociantes padeiros farofeiros torcidas exércitos de humanocultura onde você habita alucinante como promessa derradeira cu boquiaberta entrada franca dos demônios pesadelo dos adolescentes fogueira da solteirona em férias árvore genealógica da Cloaca Mater onde foi chocado o ovo humano numa temperatura de 300 sóis cu fonte de energia kundalini hóstia dos grandes libertinos fornalha dos cocainômanos boca azulada da verdade corpórea diagramada no infinito do desejo cu grande iniciador de tempestades amorosas vertigem verdadeira onde os amantes deslizam cu vaporizador da Idade Média do corpo onda bioenergética de metais coloridos omoplatas carregadas de hidrogênio leopardos alucinados de tanto veludo cu de cabelos negros loiros ruivos castanhos cipoal de intrigas onde o caralho se perde se desnorteia desmaia de gozo na contração do espasmo da alegria erótica cu selvagem assaltante noturno diurno trombadinha espadachim das estradas que levam ao Grande Precipício anunciador de Paixões cu das penugens suaves & sumarentas flor carnívora labareda policiada pela civilização ave louca solitária perdida bêbada amorosa cu proletário do corpo grande escorpião revoltado teu vôo de liberdade começa acontecer

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ROBERTO BICELLI Formado em Letras, com especialização em Literatura Brasileira e Gestão Cultural. Publicou: Antes que eu me esqueça, poesia, SP: Feira de Poesia, 1977, reeditado e muito aumentado pela Córrego em 2017; O colecionador de Palavras, romance juvenil, São Paulo: Contexto, 1987 e Ego Trip, diário de viagem, SP: Virgiliae, 2011. Pretende ter em si três séculos bem vividos de poesia: o 19, quando estava no ginásio e colégio e era Clássico, Romântico, Barroco e quase nada Parnasiano; o 20, quando ficou Modernista no último mês do colegial e depois Futurista, Surrealista, Pop; e o século 21, em que surfa na Geleia Geral.

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bandeira>cummings>dalí atento ao olhar oriente-ocidente pedras de Pompeia — mais fontes que gritos — folhas leaves livres de outono e. e. e. e. fragmentos) volvi a mim: diga 33 tosse tosse tosse tosse tosse o senhor tem um Salvador Dalí no olho direito e voyeurismo no esquerdo pode-se tentar tornar a Sorrento? não, a única solução é viver a vida a sangue-frio

*

burocracia aristocracia do bureau onde os atores fazem papéis em câmera lenta

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* STRIP TEARS

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Trocadilho & Trocatrilho marcaram uma partida de dominó. Chegaram pontualmente. Domingo. Às dez horas. No Bar Primavera. Um na Vila das Merces; Outro na Vila das Mercês.

macucaymmico manda-me teus poemas que eu os direi meus

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Que reações? Quantas reações: suspeitos, assaltos Ruínas/síspides, mochípedes Rotativas, massivas, passivas coisitivas. Sempre, marquesa Du Barral. Ok. Juifs und Coca-Colas mosquetões, mildreds Rospopags, mell Koureir só você, mister um, só você. que conforto, Gipsy whyspy olha aí onda gris, masquequer ó Love, mil loves coxas morosas. Ó, rosas.

ready-made

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prefiro despercebido a desapercebido. gostava muito de clítores (cume), que virou clitóris (adjacência): na boca, acentos criam rotas... gosto de advogados detesto adevogados vale para psicólogos... se-ca-men-te: bons. aceito boins se a repórter for bela. nada contra floripes fico com florisbela. puta! please; não digam meretriz. ai, que preguiça! se é fogo que seja fogão gosto de murcego belos caninos em U...! fora! morcegos, cujo O não morde ninguém. se quero beber, vou abastecer se já bebi, bastici. bêbado e bêbedo ficam trêbados juntos... iiiiii!!!! ou xiiii!!!!??? rompam a patela

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meu menisco permanecerá. ânus e cu são sinônimos. amorosos/libidinosos dizem: cu-zi-nho! amour vache o lado animal além do bem e do mal. xupar e chupar igualmente permitidos: nessas horas tudo faz sentido. este poema é aberto quem quiser continuar, fale com roberto ele mesmo: um cê e dois elles: bicelli.



TARSO DE MELO Nasceu em Santo André (SP), em 1976. Lançou, entre outros, os seguintes livros de poesia: Íntimo desabrigo (2017), Dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui (com Carlos Augusto Lima, 2018) e Alguns rastros (2018). Lançará, em breve, a antologia Rastros. Advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Com Paulo Ferraz e Renan Nuernberger, edita o microjornal de poesia Fluxos. É curador de “Vozes Versos” na Tapera Taperá (com Heitor Ferraz Mello), de “Passaporte: Literatura” no Goethe-Institut SP (com Marcelo Lotufo) e de “Algaravia!”, na Biblioteca Mário de Andrade.

RENAN NUERNBERGER Nasceu em São Paulo, em 1986. Autor de Mesmo poemas (Selo Sebastião Grifo, 2010) e de Luto (Patuá, 2017). Organizou o volume Armando Freitas Filho na coleção Ciranda da Poesia (EdUERJ, 2011) e Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970 (com Viviana Bosi, Humanitas, 2018). É mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP.

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exuberância e soterramento

ensaio-diálogo sobre a circulação de poesia no Brasil hoje

Sobre o ensaio-diálogo (Tarso) Quando recebi o convite da Intempestiva para colaborar com um ensaio sobre poesia contemporânea, propus falar sobre uma questão que já me chamava a atenção e sobre a qual vinha conversando informalmente com amigos: a relação entre quantidade e qualidade na produção atual, em que eu apontava um soterramento. Comecei, então, a formular essa ideia. Quando já tinha algumas páginas cercando a questão (parte 1), enviei — como sempre faço — para dois amigos com quem sempre converso sobre este e outros temas: Paulo Ferraz e Renan Nuernberger. Paulo apontou aspectos importantes a considerar e Renan enviou um comentário ao meu texto que, a meu ver, não poderia simplesmente ser incorporado com minhas próprias palavras. As palavras eram/são dele e assim devem entrar no debate — pensei. Seu comentário ampliava o espectro do texto e, como disse ao convidá-lo para este ensaio-diálogo, não podia se perder nos cafundós do whatsapp. Ele topou, a revista topou. Aqui está. Desde os gregos, sabemos: não há nada melhor que uma conversa para afiar as ideias. 87


1. Exuberância e soterramento: a questão (Tarso) O anúncio recente de uma pequena editora ilustra bem — e fornece os elementos para pensar — a complexa relação entre quantidade e qualidade na poesia contemporânea brasileira: “contrate serviços profissionais para que seu livro salte aos olhos do júri do prêmio...”. O contexto atual aparece bem aí: todo mundo tem um livro para chamar de seu, mas, por si só, esses livros não “saltam aos olhos” de júris, leitores e críticos, nem mesmo dos pares. Por isso, “serviços profissionais” — começando pelos cursos de escrita criativa, passando pelos mais diversos serviços editorais e chegando à divulgação e agenciamento — cada vez mais fazem parte das conversas do “setor”. Os números são um tanto quanto assustadores: seguramente, somando os livros lançados por grandes, médias e pequenas editores, bem como a auto-edição (que sempre foi forte entre os poetas, mas agora pode ter qualidade profissional e ser comercializada em canais parecidos com o do mercado das editoras e livrarias), podemos falar de 1000 livros de poesia lançados por ano no Brasil. Para dar alguma consistência à minha estimativa, lembro que o prêmio Oceanos, que neste ano dará R$ 120 mil àquele que for considerado o melhor livro publicado em língua portuguesa no mundo, anunciou que, entre as 1467 obras inscritas, 47% são de poesia, ou seja, 690 livros, bem mais do que romances (466), contos (225), crônicas (82) e dramaturgia (24).

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Na verdade, se chegaram ao Oceanos 690 livros de poesia lançados em 2018 (não apenas no Brasil, claro, mas a esmagadora maioria é de brasileiros: 1300 dos 1467 inscritos), não seria arriscado dizer que foi lançado, por diversos canais, o dobro desse número de livros, que se somaram, no universo do leitor de poesia, a outros 1000 livros lançados em 2017, e outros 1000 em 2016, e por aí vai, porque esse não é um fenômeno que se restrinja a 2018 ou 2019. Essa aceleração na edição de livros de poesia vem de alguns anos, então podemos dizer que a geração atual, nos últimos 10 anos, já somou alguns milhares de livros ao catálogo da poesia feita neste país desde sempre. Repare que excluo, neste texto, a poesia de outros países de língua portuguesa já publicada aqui e, mais ainda, os livros de tradução de poesia, de todos os tempos e línguas, que também têm saído em ritmo acelerado. Excluo também, no recorte em que baseio minhas impressões, as manifestações da poesia que não passam necessariamente pelo livro (a canção, o slam, o rap, o cordel). E também as outras formas de publicação de poesia (sites, blogs e outros meios virtuais). Por fim, excluo os outros livros todos que podem interessar ao leitor de poesia, como ensaios, entrevistas, biografias, memórias... e, claro, todos os outros livros que qualquer leitor quer ler na vida. Isolando assim o objeto, ainda falamos de uma quantidade colossal de livros. É óbvio que nenhum leitor ou crítico precisa conhecer todos esses livros para poder ler o que bem entender e escrever


o que bem entender (só não é honesto que opine sobre o todo quando conhece apenas uma pequena parte...). Ninguém tem obrigação de ler nada, muito menos de ler tudo. A reflexão que proponho aqui é voltada a quem se incomoda, por qualquer razão, com o fato de que a própria exuberância da poesia entre nós tenha gerado rapidamente o seu contrário — o soterramento.

refere-se [...] não exatamente à leitura, mas à venda de livros” (“Desconstruindo o mito de que poesia não vende”, O Estado de S. Paulo, 4.3.2017). Não me ocupo, aqui, do ramerrão “poesia não vende”, nem de outro tão ouvido por aí: “ninguém lê poesia”. Antes de tudo, penso como o leitor que, em alguma medida, quer acompanhar o que é escrito pelos poetas em nossa época, porque reconhece na poesia — de sempre — uma importância que vai muito além da sua expressão comercial e do seu reconhecimento público.

A reflexão que proponho aqui é voltada a quem se incomoda, por qualquer razão, com o fato de que a própria exuberância da poesia entre nós tenha gerado rapidamente o seu contrário — o soterramento.

É dessa dialética entre exuberância e soterramento que pretendo tratar, porque leva a um impasse que me parece cada vez mais evidente e, devo dizer, triste, porque acompanho de perto os variados esforços que poetas, editores e poetas-editores (figura bastante comum) têm feito para não serem engolidos por essa forma de indistinção que é ser apenas um entre os milhares de livros lançados em tão pouco tempo.

Não penso aqui sobre as dificuldades comerciais que resultam daí; são várias, certamente, as conexões com o discurso de que “poesia não vende”. Como já notou Marcos Siscar, a propósito, “a ideia do desinteresse em relação à poesia

Preocupa-me, aqui, como sei que preocupa a muitos poetas, leitores, críticos e editores que não têm a perspectiva mercadológica acima de tudo, investigar como esse impasse entre qualidade (exuberância) e quantidade (soterramento) nos livros de poesia se resolve — ou não — do ponto de vista da leitura, do leitor. É muito claro, para todos, que a vida do “livro” de poesia pode ser separada em dois momentos: num primeiro momento, temos o original em busca de edição; noutro momento, o que temos, aí sim, é o livro tentando circular, chegar aos leitores, às livrarias, aos raros 89


espaços de crítica, debate, premiação etc. Tentando, em uma palavra, existir — e é justamente aqui, a meu ver, que se coloca o impasse. Considerando essa divisão, parece-me que, no geral, os poetas — com editores ou como editores — resolveram o problema de chegar até o livro, fazer o original virar livro, mas o encurtamento desse caminho gerou um outro problema: o soterramento da maior parte do que é editado. De fato, nenhum leitor tem tempo e dinheiro para acompanhar, comprar, ler e, à sua maneira, distinguir tudo o que tem saído em livro. A importância dessas questões, é claro, resulta da qualidade que reconheço em muitos livros lançados nesse período, desde livros de estreia a novos livros de poetas em atividade há mais tempo. É porque há livros muitos bons, entre aquela fração que tenho conseguido ler, que me inquieta perguntar se não há outros, ainda melhores, que não li porque estão soterrados, até mesmo dentro da minha biblioteca... Não é raro, ao menos para mim, algum colega lançar luz e salvar do soterramento algum livro de que eu sequer havia ouvido falar ou, pior, que estava ao alcance da mão e não li. Quando falo em exuberância da poesia hoje, portanto, quero deixar claro que não faço eco aos críticos que lamentam que haja tantos livros e, ainda menos, aos que concluem, depreciativamente, que haja um “rebaixamento” da poesia. Tenho em mente dois exemplos recentes: um do poeta Eduardo Milán (1952), uruguaio radicado no México, e outro de 90

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Alfonso Berardinelli (1943), professor e crítico italiano. Milán esteve no Uruguai no ano passado para apresentar uma conferência intitulada “La nueva situación de la poesía latinoamericana”. Na ocasião, disse a um entrevistador qual era o núcleo de sua reflexão atual sobre poesia: [...] la paradoja de un escenario en el que cada vez se produce más poesía (se escribe más, pero también se publica más) y, al mismo tiempo, cada vez se piensa menos. La hiperproducción [...] llegó de la mano de una ausencia radical, absoluta, de pensamiento y reflexión sobre poesía. O mejor: de reflexión colectiva sobre poesía. Porque claro que hay poetas que piensan lo que hacen. Y hay también académicos que dedican sus vidas al análisis y la teorización sobre tal o cual poeta, sobre tal o cual período, sobre tal o cual obra. Pero lo que no hay, lo que ya no hay, dice Milán, es un ambiente de reflexión, un ámbito de preocupación común por la cosa poética, por la poesía en sí, por la esencial cuestión de lo que la poesía puede o no puede decir. Porque la poesía no es lo dicho, necesariamente. La poesía puede ocurrir (y ocurre) allí donde se escamotea el sentido.

Berardinelli, num vídeo de divulgação do seu livro Direita e esquerda na literatura (lançado aqui em 2016), aponta a dificuldade que essa quantidade de livros cria para o estudo de literatura, nos moldes a que estava acostumado: A literatura hoje parece ter se transformado em uma atividade à qual não se reconhece um estatuto de excelência técnica e de valor particular. A impressão hoje é que a literatura seja praticada como um direito de todos. Qualquer um pode escrever poesia, por que


não? Qualquer um pode escrever o próprio romance, todos querem. Então existe um problema que efetivamente se tornou quantitativo. Nenhum crítico literário, que trabalhe com a literatura contemporânea, hoje, será capaz, a não ser que forme uma equipe numerosa de estudiosos que o ajudem, não conseguirá ler a inumerável quantidade de livros e de romance que são publicados.

Em ambos os casos, são críticos que têm em mente outros contextos (a poesia de língua espanhola e a literatura europeia), mas transparece um mal-estar muitas vezes revelado por críticos sobre a cena atual de poesia no Brasil. Lá como cá, a meu ver, é muito difícil sustentar essas afirmações generalizantes na leitura de uma amostragem — digamos — “responsável” do que tem sido publicado. Pelo contrário, é fácil identificar a que parcela da poesia a afirmação generalizante se refere e, mais ainda, apontar no amplo espectro da produção atual livros e autores que não se encaixam no escaninho do crítico. As afirmações de que “a crítica morreu” ou se tornou impossível escondem, muitas vezes, a rejeição a admitir que as formas da crítica devem se renovar, relativizar, repensar diante das novas formas que a poesia assume. Há, sim, uma reflexão coletiva sobre poesia neste momento no Brasil e, sim, qualquer um pode escrever poesia, mas parece que tanto a mudança da forma (ou multiplicação de formas) como aquela reflexão se dá e as diferentes tensões absorvidas seja poesia, seja pelo pensamento que a acompanha, bem como a relativa e tímida democratização do lugar do “posto de poeta” incomodam demais

aos críticos e leitores que tentam lidar com a poesia de hoje com instrumentos de ontem. A preocupação que se coloca vai bem além dessa visão que vem do passado (quase nostálgicas com relação a um pouco provável momento em que poesia e pensamento andavam juntos e a crítica dava conta do ritmo da produção literária) para se indispor com a poesia do presente (e talvez do futuro). O que se deve perguntar é: em que medida esse soterramento, gerado pela própria exuberância da produção poética (associada a facilidades técnicas para edição), compromete essa mesma exuberância, reverte-se contra a força que a poesia atual tem demonstrado para colocar novas e diversas vozes para circular, renovando, no geral, o que chamamos de poesia? Em outras palavras: em que medida a multiplicação/sobreposição de vozes contemporâneas pode estar silenciando justamente o que mais deveria se destacar? É claro que não busco, para essa pergunta, as respostas que apostam no “menos”: deveria haver menos poesia, menos poetas, menos editoras, menos livros. Não é esse o caminho, porque vejo aí o evidente risco para a diversidade de vozes que marca — e deve marcar — a produção poética hoje. Ao defender o “menos”, defende-se, na verdade, a exclusividade do “mesmo” de décadas, séculos passados. Sei que é difícil pensar numa equação em que haja apenas “mais”: mais poesia, mais poetas, mais editoras, mais livros. Mas temos que buscar, conjuntamente (e acho que este talvez seja um dos pontos 91


centrais da nossa “reflexão coletiva sobre poesia”), ideias e medidas que — para insistir nesses termos — contornem o soterramento sem comprometer a exuberância. Será lamentável se deixarmos esse momento, em que se produz tanta poesia de tão boa qualidade, além de traduções etc., ser atropelado pela nossa incompetência para achar formas de circulação mais eficazes. Não temos fórmula para fazer o livro “saltar aos olhos”, nem mesmo em termos de publicidade. Se tivéssemos, os esforços de divulgação das grandes editoras teriam sempre o mesmo resultado, mas não é bem assim: poucos livros, mesmo das editoras maiores e mais barulhentas, conseguem escapar ao soterramento...

2. Crítica e soterramento (Renan) Tarso, camarada, como eu disse antes, seu texto me instigou bastante. Finalmente alguém (e justo você!) resolveu pôr mãos à obra e propor uma leitura crítica mais ampla, com empenho de tornar-se coletiva, sobre a produção de poesia contemporânea no Brasil. Eu teria muito o que comentar, mas tentarei ser breve, indo direto aos pontos que por ora me interessam. O início de seu ensaio esboça um problema que depois é lateralizado: esses “serviços profissionais”, em diferentes graus (desde as ótimas iniciativas de formação de escritores até aquelas propostas claramente caça-níqueis), são uma rea-

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lidade que interfere muito na dinâmica exuberância/soterramento. Qual o peso da profissionalização ou, mais especificamente, da inserção do poeta nos espaços culturais mais visados (eventos, antologias, sites etc.) para que sua poesia, de fato, seja lida? Aponto isso porque, no último parágrafo, você questiona a força das “grandes editoras” afirmando que poucos são os livros delas que escapam ao soterramento. Acho que essa é uma meia verdade: o circuito é um pouco mais complexo, interligando não apenas as editoras, mas outros lugares prestigiados de divulgação, como a imprensa especializada (o Suplemento Pernambuco, o caderno Ilustríssima, a revista Quatro Cinco Um), as premiações (o prêmio da Biblioteca Nacional, o Jabuti, o Oceanos) e os eventos literários (a FLIP, a Flipoços). O caso de Guilherme Gontijo Flores, um poeta que acompanho há tempos com interesse, me parece exemplar: sua participação na FLIP 2017 foi uma verdadeira vitrine e ele soube aproveitar muito bem essa projeção, encontrando um público mais amplo para o seu trabalho. Outro exemplo que destaco é de Mailson Furtado, cujo livro À cidade — que ainda não li — ganhou visibilidade nacional com a premiação do Jabuti em 2018. Isso me faz lembrar certas observações de Heloisa Buarque de Hollanda e Cacaso em “Nosso verso de pé quebrado”. Ali, em meados dos anos 1970, os ensaístas já percebiam uma “intensificação da nossa produção poética”, com “manifestações as mais heterogêneas, e que permanecem


praticamente desconhecidas”. Diante disso, ambos valorizam os planos de produção independente, que tentavam furar o bloqueio então vigente no mercado editorial. Ocorre que, agora, as grandes editoras (Companhia das Letras, Todavia, Editora 34, a extinta Cosac Naify) têm demonstrado genuíno interesse pela produção de poesia contemporânea — o que não significa, por outro lado, que o trabalho do poeta como divulgador de sua obra não conte, e muito, para livrá-la do soterramento.

ignorados. Os dois pontos em conjunto (o trabalho de divulgação individual do poeta e o apoio de uma editora prestigiada) ajudam a explicar a boa recepção de alguns livros, mas não encerram uma “fórmula de sucesso” — e certamente haverá poetas que, por outros caminhos, também terão sua obra acolhida. Mudando um pouco a chave, sinalizo que desconfio da divisão estanque entre “poesia” e “crítica”. Em primeiro lugar, porque não são atividades apartadas: você e eu, por exemplo, estamos nas duas trincheiras. Mais que isso: parte considerável da crítica literária dos séculos XIX e XX foi escrita por poetas. Mais ainda: parte considerável da crítica de poesia se fez entre poemas. O que, para mim, está em falta é essa noção de acúmulo. Muita gente publica, é verdade, mas — até onde vejo — poucos são os que dialogam para valer: qual poeta hoje incorpora formalmente em sua obra contribuições de seus pares? Essa prática, que é evidente em períodos férteis para a poesia (Rimbaud/ Verlaine/Corbière/Laforgue/Mallarmé/ Valéry; Pound/Eliot/cummings/Stein/ Williams/ Moore; Mário/Oswald/Bandeira/Pagu/Murilo/Drummond; etc.), me parece, hoje entre nós, pouco aprofundada, gerando uma exuberância que

em que medida a multiplicação/ sobreposição de vozes contemporâneas pode estar silenciando justamente o que mais deveria se destacar?

No fim, esse trabalho externo ao poema é importantíssimo. E com o apoio de uma editora e/ou a participação em eventos de grande porte, a obra de um poeta terá, provavelmente, maior circulação. Percebo, entre meus colegas que não estão diretamente ligados a esse debate, uma tendência de acesso à produção contemporânea a partir dos livros publicados pelas grandes editoras — e me anima saber que obras como Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas, encontram um expressivo número de leitores. Friso, portanto, que não há nessa percepção nenhum juízo negativo: a ideia é tentar esboçar alguns traços específicos do atual contexto de produção e circulação da poesia que não podem ser

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não cria vínculos, como fogos de artifícios que entusiasmam, mas se apagam em seguida. O mesmo vale para a crítica propriamente dita: salvo exceções (ora viva!), a maior parte dos ensaios que leio ignora sumariamente tudo o que já foi escrito sobre um determinado poeta, forjando sua perspectiva “do zero”. Com essa prática, sem a retomada do que já foi pensado anteriormente, é impossível estabelecer um espaço de diálogo, com confluências e discordâncias. Nesse sentido, me aproximo em termos das considerações de Eduardo Milán. É claro que há hoje muita reflexão sobre poesia no Brasil, na exposição das concepções particulares de cada poeta ou crítico (vide o livro que você mesmo organizou, Sobre poesia, ainda), mas há pouca retomada efetiva dessa reflexão no plano coletivo. Mais que isso e já me repetindo: sinto falta da reflexão entre poemas, entendidos não como objetos isolados, mas como organismos vivos que se afetam mutuamente. É claro que a crítica precisa forjar novas formas para abordar o contemporâneo — e isso é verdade, inclusive, para os críticos mais entusiastas, que celebram a cada novo texto um ou dois poetas isoladamente (i.e., sem estabelecer vínculos com outros poetas, sem apontar tendências, retomadas, rupturas, etc.). É possível comparar a poesia da Lilian Aquino com a de Ana Estaregui? Em quais aspectos? Há algo em comum entre os poemas de Ricardo Aleixo e os de André Valias? O que os diferencia? 94

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Algo se revelaria na comparação entre André Luiz Pinto e Claudia Roquette-Pinto? Entre Casé Lontra Marques e Edimilson de Almeida Pereira? Entre Érica Zíngano e Dirceu Villa? Tenho a impressão — e posso estar errado — que o “soterramento da crítica” é, em partes, efeito de um silencioso acordo tácito entre nós, poetas. Há, evidentemente, afinidades eletivas em jogo, mas elas são escamoteadas em favor de uma circulação supostamente livre e democrática de todas as poéticas possíveis. O problema é que essas afinidades continuam atuando veladamente, o que impede o debate arejado. Para mim, o democrático seria justamente o contrário: a capacidade de dialogar com o dissenso, no espaço público, sem ofensas de ordem pessoal (será que conseguiremos isso um dia?). No fundo, tudo o que escrevi aponta para aquela “atomização”1 que o Paulo Ferraz mencionou. Há um sistema complexo de legitimação funcionando, mas como ele não se coloca abertamente como programa estético (como ocorria nas décadas anteriores), é quase impossível se posicionar criticamente diante dele. O resultado é, por um lado, a celebração sem laços e, por outro, a negação em bloco. Isso se resolveria, na crítica, pela explicitação de um ponto de vista a partir do 1 Referência ao seguinte comentário do poeta Paulo Ferraz ao ler a primeira parte deste texto: “Penso se, ao lado dos dois movimentos [soterramento e exuberância], não haveria outro, uma certa atomização, não sei ao certo, mas uma busca pela legitimação dentro de certos nichos (afinidades, temas, origens), o que dificulta ainda mais a visão minimamente panorâmica”.


qual se estabeleceria um recorte franco que, como recorte, certamente seria incompleto e, em alguns momentos, até mesmo equivocado. Mas é somente assim — arriscando juízos, cometendo erros —, que instauraríamos uma reflexão poética propriamente coletiva.

3. O mais, o menos, o mesmo (Tarso) Renan, muito obrigado, porque suas colocações me levaram a repensar aspectos importantes do que escrevi e, mais ainda, a investigar conexões entre esse soterramento da poesia e a forma como a crítica tem sido exercida. Tentando transformar em perguntas: a exuberância da poesia e seu consequente soterramento resultam da ausência de debate crítico mais incisivo sobre a produção contemporânea? Há um certo déficit de discernimento que cria um ambiente em que se pode produzir tudo e, portanto, se produz muito, levando ao soterramento (inevitável?) da maior parte dessa mesma produção? São questões complicadas... Fiz a defesa, no texto inicial, do “mais” contra o “menos”, pensando no risco que a defesa do “menos” tem de ser, no fundo, a defesa do “mesmo de sempre”. Parece retórico demais, até mesmo ingênuo, mas parte de uma preocupação que me parece bem séria: sem o estímulo a que mais poetas surjam (tantos quantos surgirem!) e sem canais que facilitem a circulação desses poetas, é provável que

se calem vozes interessantes, a exemplo de tantas que, nos últimos anos, têm surgido de lugares marginalizados (pelas editoras, pela crítica, pelos diversos mecanismos de legitimação etc.) e conseguiram deslocar em sua direção a atenção dessas mesmas instituições. Acho que vem daí o mal-estar com a ideia de um “recorte”, mesmo que ele seja construído pelo diálogo entre os poetas (coisa que me parece bem pouco provável). A meu ver, é imenso o risco de que as grandes editoras conseguissem impor seu próprio recorte — como, ademais, ocorre em parte — como parâmetro de legitimação. Não tenho dúvida da importância de um ambiente mais crítico para que surjam poetas e poemas mais agudos, mas entendo que esse ambiente se constitui de forma menos programática (e esquemática) hoje do que em outros tempos, inclusive pela influência de fatores que transcendem bastante o debate tradicional sobre poesia, como questões sociais, raciais, de gênero, entre outras, que já predominam na recepção de poesia. Outro déficit que você aponta — no diálogo entre poetas e poemas — também resulta, em parte, do soterramento a que me referi. É bastante comum ouvir os poetas falarem da dificuldade que têm para acompanhar a produção ao seu redor, mesmo no seu círculo mais próximo. É muito preocupante, claro, que a circulação de poesia e de tudo que a cerca não chegue aos próprios poetas! Está aí um grande empecilho para pensar num ambiente em que poetas e poemas 95


“troquem” mais entre si (em termos poéticos), porque, hoje, os autores acabam armando redes que, muitas vezes, não se orientam — nem se tensionam, o que é pior — pelo debate estético, mas sim pela unidade em torno das causas políticas que mobilizam suas ideias e vozes. Enfim, espero que essa nossa conversa aqui — com toda a carga de equívoco e hesitação que não sou capaz de contornar —, ao abrir-se para outros diálogos, seja o ponto de partida para uma reflexão mais ampla e coletiva sobre essas dinâmicas e impasses. Em suma, minha posição é que, por mais relevante que seja a preocupação (crítica) de entender o que há por dentro dessa exuberância, ela não se confunde nem pode se sobrepor à preocupação (poético-política, eu diria) de manter e expandir canais para a circulação da produção de nossa época, atacando o seu soterramento.

4. O salto da onça (Renan) O ponto que, para mim, instigaria mais reflexão é a internalização desses novos fatores que você apontou no debate propriamente poético. Acho ótimo que certas formulações antes canonizadas fiquem hoje estremecidas: essa perda de rumo, que dificulta a reflexão pela outra ponta, fica evidente em manifestações de poetas que se revelam — política e/ou esteticamente — conservadores e que, em geral, tendem a se agarrar em ideais abstratizados de qualidade (“rigor de construção”, “consciência de linguagem” etc.) para justificar, sem discutir de fato, seu 96

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posicionamento. De todo modo, devo admitir que eu também estou na corda bamba entre a defesa do menos (com o risco dele ser o “mesmo de sempre”) e a aceitação do todo sem distinção (o que levaria de novo ao soterramento). Como se trata de uma questão delicada, que exigiria mais meditação e conhecimento, prefiro parar aqui, por enquanto, deixando o texto aberto a mais diálogos, agora com os possíveis leitores. Mais do que as respostas, o importante é formular bem as perguntas — e isso o seu ensaio já começou a fazer. Acho que o “salto da onça” acontecerá quando essa ampliação positiva do “lugar do poeta”, ocupado cada vez mais por pessoas diferentes, se desdobrar numa ampliação consciente da reflexão sobre as formas (e tudo o que elas carregam, em si mesmas, de emancipação e/ou reposição da barbárie). Quero crer que isso já esteja, aos poucos, acontecendo.



MAFALDA SOFIA GOMES 1992, Matosinhos. Estudou Línguas, Literaturas e Culturas (Português/Alemão) na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Encontra-se a escrever a tese de doutoramento sobre construções de maternidade na literatura alemã da Idade Média. Publicou poemas em diferentes antologias (Curupira, A Sul de Nenhum Norte, Guetto, Tlön, Liberoamericanas: 80 poetas contemporâneas, Lluvia Oblicua: Poesía Portuguesa Actual, Flanzine). Coeditou o nº5 do zine MAIS PORNÔ, PFVR, especial poesia de Portugal. É vencedora da categoria de escrita no concurso Novos Talentos Fnac 2019 com o conto “Milho Rei”. O seu primeiro livro está a ser preparado para o próximo verão com editora Do Lado Esquerdo. Participará na Coleção elemeNtário da editora Flan de Tal com “Mercúrio”.

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I – Bandeja O amor é o olho do exilado estrábico que de espingarda apontada me ensinou a identificar os orbes pela forma precisa como cintilam nas lucernas as cabeças. O amor é um telescópio de que avisto as madeixas que gravitam nas orlas onde aportam os barcos para o fim do mundo. Penso os colonos que me habitam como um parasita e estou certa; eu sou hospedeira do que me aconteceu. Se as coisas germinam em nós, de nós eu serei um planeta habitado. O amor é um olho que cerramos para morrer e outro para vos matar.

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II – Viagem Quantas coisas deixamos ficar aos revisores? Quantas coisas me deixarão levar quando eu for?

III – Desenlace O aquecimento global é mais universal que qualquer calcanhar camuflado pela tília. Concordam que um ponto fraco é como um corpo mutilado? (A morte é universal, na poesia e na vida.) O aquecimento global é um assunto poético porque é escatológico como o olho de João nos céus de Patmos. Mas em que praia plantarão as nossas cabeças? E que olhos me sobram para cegar? 100

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ANDRÉ CARAMURU TEIXEIRA AUBERT Bacharel e mestre em História pela USP, é colaborador do jornal Rascunho, para o qual seleciona e traduz, todos os meses, os poemas de algum poeta estrangeiro. Publicou três livros de poemas: Outubro / Dezembro, As cores refletidas nas lentes dos seus óculos escuros e Se / o que eu vi, todos pela Editora Patuá; e cinco romances, entre os quais A cultura dos Sambaquis, pela Descaminhos, e Poesia Chinesa, pela SESI-SP editora. Traduziu diversas obras, das quais a que mais gostou foi o livro de contos Areias Movediças, de Octavio Paz. Atualmente trabalha em seu novo romance, Estevão, além de coordenar as edições brasileiras do inventor dos quadrinhos, seu tio-tataravô Rodolphe Töpffer, dos quais os cinco primeiros, Monsieur Jabot (1833), História de Monsieur Cryptogame (1845), Monsieur Trictrac (1830), Monsieur Vieux Bois (1837) e Monsieur Crépin (1837) já saíram pela SESI-SP editora.


bahia a ruy espinheira filho, depois de a chuva, uma história

a bahia, todo mundo sabe, é tanta coisa, tanta, que para mim podia bem ser a sossegada navegação do benjamin guimarães batendo plac plac plac as pás nas águas barrentas do são francisco (e eu ali, olhando as margens, entre a rede e a amurada). a bahia podia ser as paredes, repletas de gravuras, da casa de hansen bahia, em cachoeira, do lado de lá do paraguaçu, ah, o recôncavo. a bahia podia ser o sul cacaueiro sensual dos livros de jorge amado, e também aquela grande canoa chamada onça, que adernada quase virou, e nos matou, meu amor e eu, na barra de caraíva. podia ainda a bahia ser, para mim, a mui heroica vila de itaparica de mar verde e céu azul de joão ubaldo, podia ser aquele dia, há tantos anos, perdido na estrada, com fome, numa vila da qual não me lembro o nome, no sertão, no caminho, só que longe ainda, de feira de santana. e a bahia podia ser também, é claro, as fotografias do fatumbi verger, além das jangadas de traço fino daquele genial caribé argentino. tudo bahia por mim vista, lida ou vivida. mas a bahia, mesmo, para mim, será sempre aquele poema, aquele da chuva, dos pingos caindo, molhando, contando uma história, nas telhas, no chão de ardósia.

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paisagem

eu já te mostrei a vista que tem daquela curva da estrada lá no alto? fica bem no lugar onde um rapaz foi atropelado. quer dizer, eu acho que foi atropelado, porque fincada no barranco junto à estrada tem uma cruz de madeira, e sempre que eu paro para olhar a vista, tem flores novas depositadas ali, de modo que concluí — por minha conta, claro, posso estar errado — que o rapaz morava aqui por perto e morreu atropelado. chegando lá, te mostro. o nome dele eu já sei de cor, é joão antônio, nascido em 1977 e morto em 1998. vinte e um anos. não sei se era alto ou baixo, a cor da pele, do cabelo, dos olhos, nada. não sei se namorava, se estudava. só sei que alguém o amava, e que segue deixando flores e cuidando da cruz — a pintura, azul, está sempre nova. quando chegarmos lá eu te mostro, você vai ver. e é ao lado, junto da cruz, que começa a picada que vai até o barranco. a vista de lá do alto é linda, você vai ver.

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JOÃO PEDRO AZUL Vila do Conde, 1972. Criador e editor da revista Flanzine e coeditor da editora Flan de Tal, responsável pela obra conjunta: POEMANIFESTO — a partir de Cesariny; formado em Teatro — Interpretação (ESMAE), começou por se dedicar à escrita de cena, como complemento das suas encenações; em 2018, assinou a dramaturgia do espectáculo (IN)CERTAIDADE dirigido por Carlota Lagido e Dolores de Matos, para o FIAR; é um dos responsáveis pela dramaturgia da Queima do Judas de Vila do Conde. No âmbito da Flanzine, foi criador das performances MURO e 4EUROPE, com Telma João Santos, e ÓDIO, criada a solo para o REALIZAR:poesia 2017; publicou, em conjunto com o ilustrador João Concha, o Livro do Amo, em 2015 (Plano Nacional de Leitura); autor do projecto literário, em curso: Trabalho de Casa; pós-graduado em Gestão de Actividades Artísticas, Culturais e Educativas e frequentou o Mestrado Multimédia da UP, onde desenvolveu trabalhos de fotografia, cinema e documentário; escreveu com Alexandre Sá, em 2016, o argumento do filme VAZA; é membro fundador da Cabe Cave — Associação Cultural.

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I jamais poderia ser um patinho feio não tenho habilidade para flutuar é um número demasiado pesado para mim falta-me escola e alguma presunção para a queda da pena por outro lado poderia ser lago sou tanta água que me afogo na saliva do meu pensar esse onde me vejo luz irreflectida e mordo o quotidiano como quem finge o amor não há dor senão a última a de setembro ou dezembro que lá vem às quartas limpar a casa onde morro

II todas as terças trazias contigo aquele terço de plástico que a tua avó te trouxe de Fátima tu que nunca tiveste fé (afeição talvez) e gostavas de foder em silêncio: a vida é demasiado ruidosa — dizias — há que morrer respeitosamente a cada orgasmo sofrido nunca te perguntei o porquê do terço estranhei foi não o reencontrar 107


quando te fui visitar ao hospital já o teu silêncio era-me demasiado familiar não não morreste a uma terça foste apenas a enterrar

III gosto de lamber a dor que se acumula nas articulações como um gato viciado em creme de corpo hidratante sei que acabarei por vomitar todo este pêlo que não pára de me crescer na boca mas enfim é a natureza mordida pela escuridão

IV vem soldado levanta-me o cadáver eu não sou capaz perdi os joelhos numa outra história onde era aprendiz de talhante e noivo recente o sangue esse nunca me assustou vi meus dentes partir em menino era meu pai comunista minha mãe puta — diziam dava carne à fome 108

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nesse tempo que crescia em dor já era eu fraco das articulações a noiva chamava-se Júlia os joelhos morreram-me na espera levaram-ma da vida que lhe sonhara no fio dos dias sem luz era judia — diziam antes puta como a mulher que me pariu sempre me confortaram suas sopas fartei-me da espera Júlia vem soldado acaba com esta história inacabada

V plantar a palavra na ponta da língua à espera de ver florescer uma casa e uma mesa e um copo sobre a mesa e o teu braço a estender-me uma ilha vou tirar os sapatos entre nadar e dançar avisto um mar de possibilidades é bom estar pronto para o primeiro passo e deixar que os seguintes aconteçam não há qualquer fatalidade na esperança os crocodilos moram todos no meu peito

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URUTAU editoraurutau.com.br


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