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“A casa é sua” -

“A casa é sua”

Composição: Arnaldo Antunes

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https://www.youtube.com/watch?v=Y-xVpQ1KRWw&t=319s

As casas são muitas. Algumas nas cores da moda. Outras, sem pintura, o reboco a mostrar uma eterna e já nem nota da incompletude. Várias delas são solenes, sérias, de vidro e aço. Outras parecem saídas de contos de fadas ,com margaridas no jardim e janelas com cortinas rendadas. Há casas que não são casas, são apartamentos, mas mesmo assim alguém que ali mora nos convida: “vai lá em casa.” Certas casas parecem que saíram de novelas ou filmes, sempre tão arrumadas e impecáveis, sem nada fora do lugar. Outras, são meio caóticas, com livros por todo canto, como a minha, ou plantas espalhadas pelos cômodos, ou os objetos de trabalho de seu morador (Tintas? Martelos? Novelos de lã? Madeiras e ferramentas? Pranchetas?), que teimam em sair de seu habitat e invadir os espaços ao redor Ao que parece, o ocupante, ao contrário dos visitantes, encontra uma lógica cartesiana nesse seu caos particular. Se há crianças na casa, então, o “impecável” torna-se quase tão difícil quanto encontrar um político honesto...

Há as casas com perfumes. A dos meus avós, no Jardim Jacinto, tinha um cheiro doce de frutas misturadas. Hoje, sempre que vou à feira, volto àquela casa, puxada pelo aroma dos abacaxis, mesclado ao das bananas-maçãs e das goiabas maduras. Também há casas com perfumes de flores, madeira envelhecida, cachorro molhado, roupa sendo passada.

Há as mansões, de onde parece sempre que sairá um chofer uniformizado, a conduzir a “madame”. E também as casinhas simples, os “puxadinhos”, onde moramos que constroem de fato o país.

Existem as casas com diversos cômodos, onde se pode fazer uma biblioteca; talvez uma sala de leitura, ou de ginástica. Talvez possa ser criado um jardim de inverno, algo que sempre achei elegante e poético. Via sempre um deles, quando levava meus filhos ao consultório do Dr. Arlindo, o pediatra. E há as casas pequenas, em que muitas pessoas resolvem seu dia a dia em espaços minúsculos, sem direito a preciosos momentos de solidão e privacidade.

Em algumas casas, há barulho todo o tempo. Pessoas falam, bebê chora, cachorro late, panela de pressão apita, rádio toca rock. Em outras, há um silêncio confortável, de passos leves e sons suaves. E quanto aos que moram sozinhos, cabe lembrar, nem sempre são solitários. A solidão não se fixa na casa, mas na alma.

A casa tem momentos. Agitação no fim da tarde, quando todos voltam de seus afazeres e se reúnem. O silêncio no fechar da noite. A agitação da manhã, que é diferente, tem seu tom peculiar.

A casa vive glórias e tragédias. Fica feliz como cobertor novo que espera pela visita há muito distante. Ou com a sacola da maternidade, desfeita sobre a cama. Resplandece com a chuva que lhe bate no telha do depois de meses de seca. Torna-se escura e pesada quando algum de seus habitantes parte para sempre. A pessoa ausente parece impregnada nas paredes, nas roupas, nos lugares que ocupava antes. Entrar numa casa em luto recente é um exercício de coragem. E voltar ao quarto de quem se foi é uma das piores sensações da vida, que só o tempo ameniza. Depois ficam as fotos, as lembranças, um restinho insistente de dor, dominada pela força da vida e do sol que bate lá fora.

Há algo comum entre as casas. Todas (ou quase) têm fogão, pia, mesas, cadeiras, camas. A forma, a disposição e a quantidade desses elementos, e de outros menos básicos, permitem combinações infinitas e sempre exclusivas. Eu, por exemplo, nunca entendi a função da mesa de centro. Para que uma mesinha baixa, no meio da sala? Da mesma forma, muitos achariam absurda amaneira como “organizo” meu espaço. Que não é só meu, aliás. E chegamos aqui a outro dilema da humanidade: como conciliar na mesma casa as manias e preferências de seus moradores? Uns bagunceiros, outros organizados. Um tem alma de Humanas; a outra, de Exatas. Você guarda a cola na gaveta, mas alguém a leva para outro lugar, e por lá fica. Você sai para atender à porta e, quando volta, o copo de suco já sumiu do lugar onde havia sido deixado minutos atrás. O cachorro faz xixi na almofada, não respeita as regras estabelecidas democraticamente. Quem não gosta de ler reclamado excesso de papéis tomando os ambientes. Há os clichês: dizem que todos os maridos deixam toalhas molhadas sobre a cama e que quase todas as mães um dia já pronunciaram a fatídica frase: “se não tirar essas porcarias daqui, vou jogar no lixo”. Eu já ou vi e já falei...

A casa é o refúgio saboroso, a sopa fumegante na noite de inverno. Ou é para onde não queremos voltar, depois de uma discussão com outro ocupante, ou quando lá deixamos um problema guardado...

A casa é um direito garantido por lei, está escrito, mas, para alguns, torna-se um sonho somente, “o sonho da casa própria”. Penso que todos deveriam ter a condição de dizer a um amigo, familiar ou vizinho, a frase que dá título à canção de Arnaldo Antunes, e que inspirou essa crônica: “A casa é sua!”.

https://youtu.be/82aj1Bg8FpA

Texto: Vera Lúcia Figueiredo

Fotos: Wikipédia

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