A BOBA - Café

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A EDIÇÃO - SETEMB MEIR RO PRI a N OV I EM O N BR A O

A B BA PAUSA PARA O

CAFE ~

GERACAO

FRAPPUCCINO OS JOVENS QUE ESQUECERAM O ESPRESSO PURO

GASTRITE

OU ENERGIA? PRÓS E CONTRAS DO CONSUMO DE CAFÉINA

e mais...

COADO NA CALCINHA OS MITOS ACERCA DO GRÃO DE CAFÉ




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INDICE

editorial

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prólogo

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cadê o café preto?

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ouro negro tupiniquim por trás da xícara

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interlúdio

os segredos de cada grão

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café e cultura

alguém quer café?

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da cabra à calcinha epílogo

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EXPEDIENTE

EDITOR-CHEFE YAN RESENDE

EDITOR DE ARTE PEDRO CAMARGO

REPÓRTER GABRIELA MONTEIRO

DIRETORA DE REDAÇÃO NATHÁLIA AGUIAR

REPÓRTER JÚLIA MELLO

REPÓRTER GABRIELA BOCCACCIO

REPÓRTER MARINA PANIZZA

REPÓRTER VICTOR CIANCI

REPÓRTER GABRIEL ONETO

REPÓRTER JÉSSICA TABUTI

REPÓRTER VICTOR PUIA

REPÓRTER LUCAS BRÊDA

REPÓRTER LUCAS HANASHIRO

POETA JÚLIA RAMOS CLARO

A B BA

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editorial

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sonhar nao custa

nada a sala de aula tentou alimentar o nosso sonho e o discurso adotado por nós também foi aquele de que o jornalismo poderia mudar o mundo. A rua, no entanto, disse o contrário. Colocar as ideias no papel acabou se tornando uma tarefa cada vez mais difícil, já que a relação entre nosso desejo e o mercado editorial é incompatível. As linhas editorias adotadas pelos veículos de comunicação e a necessidade de lucro privaram a liberdade daqueles que, ainda com pouca experiência, sonham com uma profissão diferente do vivenciado nos dias atuais. Sendo assim, cientes do que o futuro nos reserva, resolvemos “brincar” enquanto ainda podemos. Uma revista temática, de periodicidade trimestral, feita por um grupo de estudantes do segundo ano de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. A ideia, criada entre amigos, estava concebida, mas ainda faltava a execução. O primeiro passo foi a escolha do nome, e resolvemos nos inspirar em uma obra de Anita Malfatti. A artista viveu em um período no qual seus companheiros de vanguarda também desejavam uma maior liberdade para produzir, um pensamento muito próximo do que foi desenvolvido por nós, e o famoso quadro A Boba pareceu ideal para a “brincadeira” de criar um periódico. As carteiras da faculdade serviram

de inspiração para a escolha do primeiro tema. Era uma conversa informal entre os amigos envolvidos na elaboração das pautas iniciais. Antes de fazer qualquer projeto gráfico, o café, cantado por Noel Rosa como a característica marcante de São Paulo, parecia ideal. Ora, o assunto renderia matérias das mais diversas editorias. A bebida está presente em nosso cotidiano, movimenta a nossa economia, foi fundamental e chegou a dar nome para um período de nossa política. Além disso, havia outro motivo especial: gostar de café parece ser um pré-requisito para o jornalista. A primeira edição era um desafio. A bebida era a fonte de inspiração para a publicação, mas o fato de estar tão presente na vida do brasileiro aumentava a dificuldade para fugir do senso comum ao se falar de café. Apesar de não ser rotineiro ver matérias sobre o produto nos principais veículos do país, precisávamos inovar, trazer para revista abordagens desconhecidas pelo grande público. O tema rendeu. Dos grãos de café nascia a nossa revista. O fenômeno Starbucks e sua geração Frappuccino, que deixou o tradicional cafezinho de lado e escolheu algo com ingredientes peculiares, inspiraram a matéria especial. A história do produto e sua importância para o desenvolvimento do Brasil não foi esquecida. Enquanto os reflexos

deste cultivo na atual economia se transformaram em uma de nossas pautas. O fetichismo em torno do produto, os pequenos detalhes que definem a qualidade de cada grão, as acomodações das principais cafeterias de São Paulo e o poder da cafeína no dia-a-dia também nos motivaram. A Boba estava pronta. A revista segue a linha dos modernistas. O reconhecimento de Anita Malfatti com a sua obra expressionista não foi imediato. A artista foi alvo de duras críticas dos intelectuais da época, mas a opinião pública pouco importava para aqueles que não desejavam seguir os padrões impostos. Sabemos que os julgamentos serão recorrentes neste início de projeto, mas preferimos acreditar que o reconhecimento também poderá vir no futuro. Com aroma de café, A Boba começa seguindo o que foi cantado pela Mocidade de Padre Miguel em 1992. Se “sonhar não custa nada”, embalamos neste projeto sem nos preocuparmos com o futuro, pensando apenas em vivermos o hoje e colocarmos no papel as ideias que nos inspiram. Talvez, para os objetivos traçados serem alcançados, seja preciso “viajar nos braços do infinito, onde tudo é mais bonito, nesse mundo de ilusão”, pois, um dia, podemos “transformar o sonho em realidade”. o

POR YAN RESENDE

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LetĂ­cia Duque

editorial

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Café c om brio Corre, c corre hes Não te m Mas tu mais pão d Não te o bem, m Da est mais trem ra Sem c da de ferro a on o O maq seguir seu s buracos pã u E o tre inista virou b o ar m Todos foi pro mus ista eu fo Até a m ram simbor a e Restou nina do ves tido ve o café rde Muita que an sede, d am vem d epres atando sa P

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JULIA RA

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especial

´ CADE O CAFE ^

Conheça uma geração à base de creme: a Geração Frappuccino POR NATHALIA AGUIAR E JESSICA TABUTI

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ram pouco mais de 15h quando o inconfundível cheiro de café ocupou a casa de Angela Shishito, localizada no bairro do Tatuapé, zona leste de São Paulo. A empresária, que acabara de chegar do trabalho, já havia colocado a água no recipiente e disposto o pó no filtro em cerca de dois minutos. Cafeteira ligada, enquanto a mãe cuidadosamente preparava a mesa de café com bule e xícaras de porcelana, a filha abria a geladeira e procurava pelo refrigerante. Embora o cafezinho seja presente na casa da família Shishito, Audrey confessa nunca ter tomado café no seu próprio lar. “Eu não gosto nem de bebida quente, para começar. Café não dá. O cheiro é bom, mas o gosto não”, explica a estudante de design após um gole de Coca-Cola. Todas as manhãs, Angela prepara café duas vezes, primeiro em sua casa e depois na perfumaria em que administra. Audrey, por sua vez, troca a xícara por um copo de suco ou de chá. “A última vez em que tomei café preto foi há três anos, na faculdade”, relembra. A estudante de 20 anos, apesar de não nutrir afinidades com a bebida, frequenta A B BA

regularmente a cafeteria Starbucks. O pedido de Audrey é quase sempre o mesmo: Frappuccino de baunilha ou de chocolate, “porque além de ser gelado, não é amargo que nem o café, mas, sim, doce”, defende. Os frappuccinos preferidos de Audrey não levam nem a essência de café em sua receita, pois são feitos à base de creme. Angela nunca entrou numa loja Starbucks e, embora goste do simples cafezinho, tem vontade de experimentar as misturas doces da rede. A empresária de 54 anos acredita que a nova geração não tenha tanto interesse pelo café comum devido às alternativas existentes. “Hoje são muitas as possibilidades e a facilidade é imensa. Na minha época, tinham pouquíssimas opções de ir num café e tomar algo diferente. Ou se tomava o expresso ou o pingado na padaria”, ressalta Angela, em sua segunda xícara de café.

A Febre Starbucks

Inaugurada nos Estados Unidos na década de 70, a Starbucks se expandiu e atualmente consolida-se como a maior rede de cafeterias do mundo. Contabilizando 15 mil lojas espalhadas por 62 países, a

rede conta com 59 franquias no Brasil, seis abertas este ano. Tanto o crescimento de cafeterias especializadas quanto o desenvolvimento da área de cafés especiais têm relação com o aumento do mercado consumidor no Brasil. Nos últimos anos pesquisas apontam o aumento do consumo de café por jovens brasileiros. Um estudo anual, realizado pela Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), chamado Tendências de Consumo de Café revelou que, entre 2003 e 2010, o percentual de consumidores de 15 a 19 anos subiu de 85% para 91%. Os jovens de 20 a 26 anos também estão tomando mais café; segundo a pesquisa, houve um aumento no percentual que se deslocou de 83% para 90%. Mas, afinal, o que fez a nova geração se interessar pela bebida? Audrey é apenas uma jovem entre muitas outras que frequentam a Starbucks não só pela bebida, mas também pelo clima confortável do ambiente. Com iluminação baixa, poltronas aconchegantes, uma decoração parecida com a sala de estar de uma casa comum - e o melhor: um balcão repleto de doces, salgados e bebidas exclusivas -, as unidades da Starbucks fazem seus clientes se sentirem em casa e passarem o dia jogan-


especial

PRETO?

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especial

X Embate: De um lado, a mãe recorre à cafeteira para o tradicional cafezinho. Do outro, a filha troca a xícara por um copo de refrigerante.

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do conversa fora. “O ambiente é muito gostoso, você fica aqui a tarde inteira e acaba se sentindo bem”, afirma Tatiane Minako, estudante de 18 anos. A correria empresarial da Alameda Santos é interrompida pela casinha amarela e sua simpática varanda, que já chama atenção pela sensação de tranquilidade que transmite. Lá dentro, o espaço é ocupado por mesas, cadeiras, sofás e balcões, todos preenchidos com casais namorando, conversas de amigos e pesquisas no notebook. No fundo, Tatiane e duas amigas aproveitam a folga do cursinho e da faculdade para relaxar (com direito a pés descalços) e atualizar as novidades. Os dois copos transparentes, vazios na mesa, revelam que a bebida pedida foi um Frappuccino e o terceiro, branco e opaco, nos faz pensar que, talvez, uma delas estivesse tomando café. “Eu pedi chocolate branco. Eu peço bebida quente ou cappuccino, assim, bebida mais docinha. Café, café, não. É difícil”, conta Camile Shinohara, que estuda engenharia. A B BA

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Inspirado pelo sabor marcante do café, o cardápio da Starbucks é composto por diversos tipos de cappuccinos e outras bebidas expressas, além de chocolates quentes e chás, mas é o famoso Frappuccino que garante sua exclusividade. Com vários sabores, a bebida gelada vem de duas maneiras: à base de café e à base de creme. A primeira é composta por uma mistura de leite, gelo, chantilly e, claro, café. A segunda é para quem prefere mais a semelhança com um milkshake do que o leve gosto característico do café. Além do seu sabor único, o Frappuccino encanta os amantes da bebida com o conjunto formado por um copo transparente, uma torre de chantilly, um canudo verde e o nome personalizado na lateral (embora, muitas vezes, letras sejam trocadas ou escritas de outra forma, caso seu nome seja um pouco diferente). “Já escreveram Nilma e Aldren, e eu demoro a perceber que o meu pedido está pronto”, revela Audrey, que pas-

sou a adotar outros nomes, como Jussara e Filomena, ao pedir o Frappuccino. Mesmo assim, a intimidade que a Starbucks proporciona, ao ter atendentes que chamam seus clientes pelo nome, atrai mais consumidores. É como se a bebida fosse feita especialmente para cada um, com a quantidade perfeita dos ingredientes e um sabor único, desenvolvido apenas para aquele copo. Tudo isso, porque, ali no ladinho, tem o seu nome. Além disso, quem não gosta de passear pela Paulista com um copo da Starbucks na mão? Ou olhar as vitrines das lojas no shopping, exibindo o símbolo verde da sereia? Parece que segurar o copo da Starbucks em um ambiente que não seja a própria cafeteria muda a aparência dos jovens, deixa o seu estilo mais cool e eles passam a disputar espaço com a elegância dos engravatados da Paulista. Todo esse charme só reforça a implicância com o café. Ou talvez, os jovens apenas abandonaram a tradição das gerações an-


especial

Nathália Aguiar

X teriores e deixaram de apreciar a personalidade do pretinho básico. No começo, as três amigas afirmaram que tomavam café, principalmente na faculdade, e gostavam. Depois, contaram que, na verdade, não gostavam, mas se acostumaram. “Comecei tomando café com leite, cappuccino, aí com o tempo, na faculdade, foi café puro”, afirma Camile. Ao longo da nossa conversa, elas perceberam e, com algumas hesitações, admitiram que aquela água na boca nunca aparece para tomar um café, só quando têm que ficar acordadas. Dessa vez, foi Tatiane que explicou: “Não é uma bebida que: ai, tô com vontade de tomar. Se tiver, eu tomo”. Assim como na simpatia da Alameda Santos, na intensidade da Avenida Paulista as preferências e os gostos dos jovens foram compartilhados. Pelo menos, da maioria. Muitas pessoas passam na entrada do mini shopping Top Center e, na pressa do dia a dia, não percebem que logo ali, entre duas lojas de sapatos, Frappuccinos são pre-

parados todos os dias. Próximo de alguns executivos fazendo uma pausa no trabalho e tomando, provavelmente, um café ou um cappuccino, quatro amigos conversam, descontraídos e alheios ao contraste provocado entre os seus Frappuccinos e as bebidas quentes da mesa ao lado. “Sim, eu gosto muito”. Sem pensar duas vezes, essa foi a resposta de Eric Delnero e Ricardo Baptista ao perguntarmos se eles gostavam de café. Os estudantes de 19 anos contaram que até coam o café em casa e Ricardo revelou que toma em excesso. Já Vinicius Pires e Lucas de Almeida não tiveram a mesma reação. Enquanto os dois primeiros afirmaram que costumam ir à padaria e pedir um espresso, Vinicius diz que não chega a esse ponto. “Em casa eu tomo, mas ir pra padaria tomar café, não”. Se o café preto já não é a bebida preferida da maioria dos jovens, o café preto da Starbucks, então, está fora do cardápio. Consumidores frequentes da franquia - de-

vido à proximidade com a faculdade -, os quatro amigos concordaram em uma coisa: eles nunca vão à famosa cafeteria para tomar o pretinho básico. Enquanto Lucas afirma que vai à Starbucks, “porque é exclusivo, você não consegue fazer isso [Frappuccino] em casa”, Eric conta que não acha o café de lá muito bom. “Não é que é forte demais, é... estranho. Sei lá, o gosto não é tão bom, é muito amargo, até demais”. O gosto tão característico do café faz muitos se apaixonarem e engana outros com o seu aroma deliciosamente atraente, mas não consegue mais encantar os jovens com a sua forte personalidade. “O jovem não gosta muito do gosto amargo, ele se vê atraído pelo chantilly, pelo chocolate”, afirma Tatiane. Essa opinião é reflexo de muitas outras. O estudante de jornalismo Bruno Grossi explica porque não gosta de café preto. “É amargo, deixa um gosto ruim na boca. E Frappuccino à base de creme é uma delicia, é tipo tomar milkshake”. A B BA

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Não é que é forte demais, é... estranho. Sei lá, o gosto não é tão bom, é muito amargo, até demais

Do outro lado do balcÃo

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A percepção de quem prepara as mais diversas misturas com café confirma os dados. Para a atual campeã estadual de barismo e segunda colocada na disputa do barista nota 10 do estado, Simone Bolssoni Alves, o modismo que se criou ao redor do café revela-se como um ponto a ser considerado nesse aumento de interesse por parte dos jovens. “A ditadura da moda tem um papel muito importante nesse quesito, depois vem a diferenciação. A juventude em si busca a diferença e muitas dessas cafeterias são voltadas para o público jovem, com um ambiente despojado, moderno onde as pessoas se identificam”, observa Simone, barista há sete anos. Apaixonado pela arte de preparar um bom café, Waschintom Mageski, barista no Café Meridiano, credita a perceptível presença atual do jovem nas cafeterias ao poder de atração dessas empresas. “Os jovens estão consumindo mais café, mas a questão não é moda, visivelmente os estabelecimenA B BA

tos estão investindo muito em locais onde se prepara um bom café. Hoje é possível ler um bom livro, ter acesso à internet e fazer reuniões mais reservadas num ambiente de cafeteria, o que é muito interessante”, pondera. O barista ressalta também a recente valorização dos grãos no Brasil, número um na produção de café mundial, mas 5º lugar em termos de consumo. Segundo Waschintom com o mercado interno sendo beneficiado, a inserção de bebidas à base de café na rotina do jovem tornou-se fácil. Ele complementa: “(...) em relação às bebidas elaboradas com café, o que não é exclusivo “Starbucks”, foram os melhores meios do café chegar ao público jovem”. As maneiras de saborear um cafezinho foram multiplicadas nos últimos anos. As cafeterias vêm progressivamente investindo em bebidas mais elaboradas à base de café a fim de atingir o público jovem. Cada vez mais passa-se a adicionar ao pretinho básico leite vaporizado, sorvete, calda de chocolate, chantilly e até doce de leite. Simone Bolssoni ressalta: “o café sempre foi uma bebida muito consumida,

e hoje aprendemos a consumi-lo de outras formas, o que agradou bastante os apreciadores e aqueles que não apreciavam tanto”. No entanto a barista afirma que, embora prove bebidas elaboradas, o consumidor do básico café preto sempre o terá como preferido. “Quem não era muito apreciador da bebida, começou a consumi-la mais com as novas formas de preparo. Como, por exemplo, os cafés gelados à base de sorvete, os cappuccinos, algumas essências e chocolates misturados ao café. Enfim se descobriu uma gama de ingredientes que enriquecem a bebida e agrada o paladar”, finaliza Simone. Essa procura da nova geração por bebidas geladas e doces pode ser o pontapé inicial para o mundo do café. “Quem toma café uma vez toma duas, três e por aí vai experimentando novas bebidas da mais elaborada até o pretinho básico”, considera Waschintom. Quem sabe uma bebida elaborada numa cafeteria, mesmo que não tenha nenhum grão de café em sua receita, tenha o poder de conduzir esse novo público às


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Para o atual barista do Café Meridiano Waschintom Mageski, o investimento na qualidade da produção dos grãos foi fator preponderante no maior consumo dos jovens. 16

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bebidas com algum teor de café? Fato é que os antigos hábitos estão mudando e recebem agora uma espessa e deliciosa camada de chantilly. Uma camada de chantilly e de sucesso para essas cafeterias. A Starbucks não agrada apenas por causa do Frappuccino, ou do café, ou do ambiente. São todos eles juntos que formam a atração da casa, é o conjunto, a multifuncionalidade. É a possibilidade de tomar um milkshake em uma elegante cafeteria. A mistura de um fast-food com um espaço de convivência. Comprar canecas e garrafas térmicas junto com um brownie ou um pão de queijo. Relaxar com uma bebida em uma mão e trabalhar com o notebook na outra. Depois de tudo isso, o café é só um detalhe no cardápio. Seja ele degustado numa xícara no tradicional espresso ou batido com gelo e outras misturas adocicadas num copo de plástico customizado. o

FRAPPUCCINO.COM Não importa qual seja o preferido: baunilha, chocolate, café, mo-

rango, doce de leite ou caramelo, o importante é ser Frappuccino. O site http://www.frappuccino.com/en-us/ reúne centenas de fotos de pessoas bebendo o famoso drink da rede Starbucks. Para ter sua foto exposta no site basta comprar a bebida, fotografar-se enquanto a degusta e taggear o site por meio de sua conta no Instagram. As poses com o icônico copo de plástico e canudinho verde são variadas - de expressões engraçadas a brincadeiras com cachorros e esculturas, mas a faixa etária dos fotografados se concentra entre os 15 e 25 anos. Há também a possibilidade de criar o seu próprio Frappuccino, escolher o tamanho do copo, o teor de café e os sabores da bebida perfeita. Ao final, após elaborar cada detalhe do drink, o internauta encontra a opção “compartilhar com seus amigos”, o que pode ser uma decepção para quem esperava algo como “em breve, encontre esta bebida no Starbucks mais próximo”.

Reprodução/ Waschintom Mageski

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OURO TUPINI

Como o café ajudou a moldar a história do Brasil. De uma colônia pobre e escravocrata para uma república industrial de imigrantes POR GABRIEL ONETO

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NEGRO IQUIM

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o sentar à mesa, lá pelas cinco ou seis da tarde, não nos damos conta da trajetória imensa que o café servido ali, naquele momento tão familiar aos brasileiros, teve de passar para chegar ao país. Muito menos nos lembramos de que se não fosse pelo cultivo desse grão, o Brasil que nós conhecemos hoje, seria completamente diferente. O café é uma fruta do cafeeiro, uma planta originária das montanhas da Etiópia, próxima à região do chamado chifre africano. As propriedades estimulantes do café são conhecidas pelos africanos desde a antiguidade. Eles o utilizavam como parte da ração de animais e, também, na alimentação de guerreiros. Os etíopes, na época, não conheciam a agricultura, por isso utilizavam o café que colhiam nas montanhas. Os árabes, exímios navegadores e comerciantes, foram os primeiros não africanos a terem contato com o café e seus benefícios. As primeiras plantações de que se tem notícia se localizavam ao sul da península arábica, no atual Iêmen. Os primeiros a torrar o grão do café foram os persas, até então se fazia uma emulsão do fruto. A influência é tão importante que a palavra café, para alguns especialistas, tem origem na árabe qah’wa, que significa vinho, e a principal espécie de café se chama arábica. Pelo fato de a religião muçulmana proibir o consumo de bebidas alcoólicas, o café virou um substituto para seus seguidores. Tomar café tornou-se um evento social. Com isso surgiram lugares para conversar e consumir: as cafeterias. A B BA

O grão chegou à Europa em 1595 quando a primeira cafeteria foi aberta na cidade de Constantinopla, recém-conquistada pelo Império turco otomano. Logo depois, o café chegou à Itália, através do contato entre os comerciantes árabes e venezianos, que, nesta época, monopolizavam o comércio no Mediterrâneo. A Igreja Católica, no início, fez campanha contra o café, por ser uma bebida consumida por maometanos (muçulmanos). Isto só mudou quando o papa Clemente VIII, por volta de 1600, após experimentar a bebida, declarou: “Esta bebida é tão deliciosa que seria um pecado deixá-la somente para os infiéis. Vençamos Satanás, dando-lhe nossa bênção e tornando-a verdadeiramente cristã”. Após o aval do papa, a bebida se tornou uma febre na Itália e, logo após, em toda a Europa, que deixava o feudalismo da Idade Média e entrava no mercantilismo da Idade Moderna. Nesses novos tempos os produtos vindos do oriente faziam a cabeça dos europeus, especialmente da nobreza e da recém-nascida burguesia com seu ascendente poder financeiro. A população começou a deixar os campos e se dirigir às cidades. Os cafés se tornaram ponto de encontro, contudo, até o século XIX, eram uma bebida cara, e se restringiu às elites. A Holanda foi o primeiro país a tirar o monopólio árabe-italiano do comércio, após conseguir algumas mudas na ilha de Bornéu, no sul da Ásia (região que travava intensos contatos comerciais com os árabes). A Companhia Holandesa das Índias Ocidentais começou a plantar, com sucesso, o café nas Antilhas. Os franceses – então os maiores consumidores do mundo – após terem acesso a mudas, também começaram a plantar

em suas colônias na América, principalmente na Ilha de Santo Domingo, onde se encontram os atuais Haiti e República Dominicana. O Haiti era a mais próspera colônia da França, com enormes plantações de cana de açúcar – um dos maiores concorrentes do Brasil – mas, principalmente, o café fazia a riqueza dos fazendeiros da ilha e da coroa francesa. A falta de concorrência mantinha o preço altíssimo do café, sendo que a escravidão barateava a produção. Os portugueses se interessaram pela produção de café, mas os holandeses e franceses, adotaram, nas regiões cafeeiras, a mesma postura que os próprios lusitanos sustentavam nas suas regiões auríferas: a proibição da entrada de estrangeiros para, assim, manter os seus lucros e o monopólio intacto. Em 1727, sob o pretexto de resolver uma questão fronteiriça, o Sargento-Mor Francisco de Melo Palheta, a mando do, então governador do Maranhão e Grão Pará, Manuel de Machado Lobo, foi enviado para a Guiana Francesa para conseguir uma muda de café. Na época, a colônia francesa era muito pobre, com uma população e economia diminuta. Para transformar essa situação, os franceses estavam fazendo experiências com inúmeras culturas agrícolas, dentre elas, o café. O sargento Palheta viu que era impossível chegar à região produtora, muito bem vigiada, mas conseguiu uma muda na sua última noite em território francês. O oficial português conseguiu obter a simpatia da esposa do governador da Guiana Francesa, que lhe deu como presente de despedida uma muda do café. As primeiras experiências com o café nas regiões norte e nordeste do Brasil – assim como as tentativas da Guiana Francesa –


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Esta bebida é tão deliciosa que seria um pecado deixá-la somente para os infiéis. Vençamos Satanás, dando-lhe nossa bênção e tornando-a verdadeiramente cristã

papa clemente VIiI

Casa de Café na Palestina, 1900B. L. Singley

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Escravos em uma fazenda de café, 1885- Marc Ferrez

não deram certo. O cafeeiro não se adaptou ao solo e ao clima da região, e, apenas no final do século XVIII, que os portugueses acharam uma localidade propícia para a sua produção. A região do Vale do Paraíba, que engloba regiões das, então províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, tinham as condições climáticas e o solo apropriados para o cultivo do café. As margens das estradas que ligavam a cidade do Rio de Janeiro ao estado de Minas Gerais foram às primeiras zonas cafeicultoras do Brasil.

PRIMAVERA CAFEEIRA

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Em 1789, a Europa vivia o auge do absolutismo. No dia 14 de julho deste ano a prisão da Bastilha, em Paris, é derrubada dando origem à Revolução Francesa, que levou a queda do Antigo Regime na França, dando início à Idade Contemporânea, levando ao surgimento de Napoleão Bonaparte e a independência do Haiti. Em 1791, no Haiti, escravos se revoltaram contra os seus senhores, declarando a independência do país caribenho. O massacre dos donos de terra, a queimada das plantações e de toda infraestrutura agrícola – além da reação francesa a mando de Napoleão Bonaparte – destruiram a economia do maior produtor mundial de café e transformaram o Haiti em um dos países mais pobres do mundo. Com a destruição da principal colônia A B BA

produtora, a guerra na Europa e o bloqueio continental, a Inglaterra – um dos maiores consumidores de café – não conseguia adquirir o produto das fontes tradicionais, visto que a Holanda também estava sobre controle francês. Assim, Portugal – em guerra com o país de Napoleão e antigo aliado inglês – começou a fornecer o café do Brasil para os ingleses e, também, para os americanos, cuja demanda por café só crescia. Em 1796, a província do Rio de Janeiro produziu 8495 arrobas de café, em 1818 ela havia se expandido para 300 mil arrobas. Em São Paulo, a produção escoada pelo porto de Santos foi multiplicada dez vezes em apenas quatro anos. A maioria do que se produzia era exportado para a Inglaterra ou os Estados Unidos. Antes do Ciclo do Café – o Vale do Paraíba – era uma região de ligação entre as áreas de mineração e os portos, com população pequena, algumas fazendas de cana e muitas propriedades de subsistência, mas a maior área era de mata virgem. O uso da mão de obra escrava, na época barata e abundante, possibilitou a derrubada das matas e a expulsão dos pequenos fazendeiros, formando enormes latifúndios para a plantação do café. Antes do Ciclo do Café, a escravidão africana não era muito comum em São Paulo, segundo Emilia Viotti, em seu livro Da Senzala à Colônia. Porém, graças ao grão, o estado se tornou o ultimo rincão escravista do país, tendo mais de 50% dos cativos do Brasil em 1889.

Com a Independência, em 1822, o café – e não a cana de açúcar, que era ainda maior cultura agrícola dos pais – foi escolhido, junto com o tabaco, para servir como suporte do brasão do Império, pois era o cultivo que mais crescia no Brasil. Após a Proclamação da República em 1889, um dos únicos elementos mantidos no novo brasão foi o ramo de café. Em 1850, após sofrer grande pressão externa, o governo imperial proibiu o tráfico de escravos para o Brasil. Os fazendeiros de café protestaram, alegando um possível bloqueio do crescimento do país que pudesse destruir a economia cafeeira pela falta de mão de obra. O Senador Vergueiro, um grande cafeicultor, foi pioneiro em substituir o trabalho escravo por imigrantes, através do “Sistema de Parceria”. Neste projeto, os imigrantes – principalmente alemães, suíços e portugueses – eram recrutados e tinham as passagens pagas pelo patrão, sem intermediação do governo. As fazendas eram divididas em lotes que deveriam ser cultivados pelos colonos. Os imigrantes e os fazendeiros assinavam contratos com os deveres de cada, além das divisões do lucro. Este sistema não funcionou. Os imigrantes acusavam os donos das terras de não dar as condições prometidas em contrato, não pagar o prometido e cobrar juros muito altos dos empréstimos. Os fazendeiros acusavam seus empregados de trabalhar pouco e almejar muito dinheiro. Estas desavenças causaram problemas diplomáticos para o


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Estrada de ferro em Petrópolis, 1855- Marc Ferrez

Brasil. O governo suíço, pediu explicações sobre o fato, a Prússia proibiu a emigração. Muitos fazendeiros voltaram à mão de obra escrava, trazendo cativos do Nordeste, o que demonstrava o declínio econômico da região. Outra reclamação recorrente era do transporte e a falta de infraestrutura do país. As viagens da região do Vale do Paraíba para os portos eram feitas no lombo de mulas através de estradas velhas (trilhas muito antigas de índios e bandeirantes ampliadas). As perdas de produtos eram muito altas e muitos animais morriam em acidentes, o que elevava os custos e, como consequência, diminuía os lucros dos cafeicultores.

A CULTURA DO OURO NEGRO

Em 1855, com o uso de capital privado, começam a ser construídas as primeiras ferrovias do Brasil. A “Estrada de Ferro Dom Pedro II” ligava o Porto do Rio de Janeiro a regiões produtoras na Província do estado. Em São Paulo, em 1867, a empresa inglesa “São Paulo Railway”, ligou, através de uma estrada de ferro, o Porto de Santos com às cidades produtoras do Vale do Paraíba. Foram se abrindo ramificações e expansões que possibilitaram a chegada da produção do café ao oeste paulista. A produção no Vale do Paraíba era altamente rentável para os produtores e levou ao surgimento de uma “aristocracia do café”.

A sociedade agrária, escravocrata e patriarcal tem muitas semelhanças com o que foi feito no sul dos Estados Unidos, antes da guerra civil, retratada no filme clássico de Victor Fleming, “E o vento levou”. Os ricos proprietários, quase sempre metidos na política e na organização da Guarda Nacional, recebiam patentes, como Coronel - que originou o termo Coronelismo - ou títulos de nobreza. O que ficou de forma particular ligado aos cafeeiros e virou definição de uma época e de um estilo de vida: os Barões do café. Grandes senhores de terra e escravos, membros influentes nas cidades e, muitas vezes, acima das leis, os barões do café, faziam questão de mostrar seu poder exibindo seus títulos, construindo sedes de fazenda com todos os luxos que se encontravam na Europa e enviando seus filhos para estudar na capital ou no Velho Mundo. Os fazendeiros e o governo imperial tinham uma relação tensa devido ao centralismo deste e à falta de apoio oficial para a produção cafeeira. As estradas de ferro possibilitaram que a economia cafeeira chegasse ao oeste paulista, que, a partir de 1872, se tornou maior que a do Vale do Paraíba. Com a falta de mão de obra escrava e a promulgação de leis abolicionistas, os produtores do oeste paulista decidiram investir na mão de obra imigrante, especialmente italiana. Dessa vez, não no sistema de parceria, mas contratando os imigrantes como assalariados. O governo – ao contrário do que estava

acostumado a fazer – ajudou essa imigração, pagando a passagem e dando auxílio e transporte até as fazendas. Os fazendeiros – para atrair mais trabalhadores – tiveram que oferecer salários dignos. Este sistema funcionou, embora os custos fossem maiores do que os da escravidão, regime cujo fim era próximo. Em 1873 na cidade de Itu, no oeste paulista, ocorreu uma convenção com 133, participantes dos quais 78 eram produtores de café. Nela surgiu o Partido Republicano Paulista (PRP). O manifesto do evento, dentre outras coisas, defendia a República e o federalismo. Os fazendeiros do Vale do Paraíba, ao contrário daqueles do oeste paulista, só foram apoiar o republicanismo após o fim da escravidão. No dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a lei que lhe custou o trono: a lei áurea. Com isso, a monarquia perdeu o apoio dos barões do café, que ficaram conhecidos como “Republicanos de 14 de Maio” e foram primordiais para dar cara ao Brasil pós-monárquico. Após 67 anos de monarquia, um golpe de estado liderado pelo Marechal, e monarquista convicto, Deodoro da Fonseca, no dia 15 de novembro de 1889, proclamou a república e expulsou a família imperial do Brasil. Com o novo regime foi elaborada uma nova constituição, com todos os pontos do Manifesto de Itu, dando aos cafeicultores, finalmente, o apoio e o poder que eles tanto ambicionavam. Em 1894, o terceiro presidente do Brasil, A B BA

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Uma família e duas escravasRevert Henry Klumb

Fazenda Santa Genebra, Campinas, 1880 - anônima 24

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O Brasão republicano (1889-) é utilizado com poucas diferenças até hoje. Desenhado por Luís Gruder, só os suportes, o ramo de café e de fumo, foram mantidos iguais aos do antigo brasão imperial

O brasão do império (1822-1889), supostamente criado pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret, utilizava como um de seus suportes, o ramo de café. já o brasão provisório da república (1889) tinha como diferença a substituição da coroa imperial pelo barrete frígio, um símbolo republicano.

e o primeiro civil, foi o advogado paulista e ligado à elite cafeicultora Prudente de Morais. Sua eleição inaugurou a chamada “República do Café com Leite” em que a presidência era comandada, através de revezamento, entre políticos dos dois maiores estados produtores, São Paulo e Minas Gerais. Com o federalismo, os fazendeiros tinham o governo mais próximo de si, e, muitas vezes, faziam parte dele utilizando os investimentos públicos para os seus próprios interesses. As obras de infraestrutura, construção de ferrovias, estradas e utilização de dinheiro público para manter o preço alto do café eram manobras comuns. Em 1906, os presidentes dos estados produtores de café, Jorge Tibiriçá (São Paulo), Francisco Sales (Minas Gerais) e, o futuro presidente, Nilo Peçanha (Rio de Janeiro), se reuniram no Vale do Paraíba, no interior de São Paulo, e firmaram o chamado “Convênio de Taubaté”. Os três governadores decidiram que o país, compraria o excedente de café por um preço mínimo, o que garantia para os cafeicultores a certeza de sempre ter o lucro, pois o governo manteria, artificialmente, os preços altos.

Este sistema funcionou até a revolução de 30, pois o Brasil controlava mais de ¾ da produção mundial de café e a demanda era muito alta, tanto a europeia quanto a americana. Mesmo com a 1ª Guerra Mundial reduzindo a demanda, o mercado americano e a importação de outros produtos agrícolas deixou o governo com condições para ajudar os cafeicultores. Os lucros do café, a imigração e a 1ª Guerra mundial, além da insatisfação de outras elites locais, porém, começaram a minar a política do Café com Leite. A sociedade brasileira começou a se tornar mais urbana. Neste contexto, nasce uma classe média urbana de ideias liberais, que era contra os benefícios aos produtores de café, e um proletariado identificado por ideias anarquistas e marxistas. A Crise de 1929 minou a economia cafeeira e deixou o governo sem condições de ajudar os produtores. As eleições de 1930 – pela primeira vez desde a Proclamação da Republica – foram muito disputadas, tendo o candidato de São Paulo, Júlio Prestes, como vencedor. Neste mesmo ano, oligarquias desconten-

tes, junto com classes urbanas liberais e os tenentes, derrubaram o presidente Washington Luís e não deixaram o presidente eleito, Júlio Prestes, tomar posse. Quem assumiu foi o gaúcho, e candidato derrotado, Getúlio Vargas. Com a chegada de Vargas – embora este tenha feito tentativas de manter alto o preço do café –, o poder dos produtores enfraqueceu e o café perdeu espaço na economia nacional. Apesar de hoje em dia o Brasil ainda ser o maior produtor mundial de café, o poder e o domínio do café na nossa economia nunca voltaram ao mesmo patamar. Ao transferir do Nordeste para o Sudeste o posto de região mais rica do Brasil, o café ajudou a configurar o relevo social do país. Estradas foram construídas e cidades surgiram graças ao grão. As primeiras indústrias e uma elite de profissionais surgiram graças ao dinheiro do produto, isto sem contar a contribuição para a cultura e a formação do povo brasileiro. O café do Brasil conseguiu abraçar e alavancar não só a economia do país por muitos anos, mas também conquistou o paladar do brasileiro, que continua pedindo uma fatia de bolo e uma xícara de café. o A B BA

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POR TR ´

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RAS DA

ARA Um dia visto como ouro negro brasileiro, o café, atualmente, representa uma luta diária de sobrevivência do trabalhador rural

POR YAN RESENDE

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estrada de chão batido, margeada pelo capim, na qual a terra vermelha indica o caminho estreito entre as pastagens, é um cenário comum entre as pequenas propriedades do sul de Minas Gerais, que travam uma luta diária com a economia brasileira e sobrevivem da agricultura e pecuária. Entre fisiocratas e liberais, a “terra” se mistura com o “trabalho”, o cultivo acaba se tornando a instável fonte de renda, enquanto a criação de vacas, porcos e galinhas garante a subsistência. Em meados de maio, uma cena é característica em cada propriedade. Os terreiros, hoje ‘acimentados’, mas que, em outros tempos, eram de terra e por isso ganharam tal nome, são cobertos pelos grãos de café. Os mais secos já recebem a tonalidade escura enquanto os tons vermelhos, amarelos e verdes parecem compor uma obra de arte, diante de perfeita combinação das ‘peças’ jogadas ao chão. A reportagem de A Boba não deixou de conhecer o cotidiano de quem sobrevive na produção do café. Sim, sobrevive. Esta é a realidade da grande maioria dos proprietários entre as montanhas do sul das Gerais. Se antes o produto já foi visto como o ‘ouro negro brasileiro’, a atual realidade destoa bastante dos tempos antigos. Assim como a maioria das atividades do setor primário da economia – aquele de matérias-primas, que envolve a agricultura –, o preço não encanta e oscila dentro de um mercado que mais se especula e releva o resultado final.

O Matão de Ouro Fino

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Na voz de Sérgio Reis, a música que fala sobre o Menino da Porteira conta a história de um viajante que andava pela estrada de Ouro Fino. Infelizmente, a cidade retratada fica no estado de Goiás, longe da propriedade visitada no bairro do Matão, no município homônimo ao goiano, mas localizado no Sul de Minas Gerais. Para não dizer que não há relação com a canção, os mineiros A B BA

até se aproveitaram da singularidade para fazer um monumento no trevo da MG-290. O cartão-postal, no entanto, pouco nos interessa neste momento. Na zona rural da cidade, talvez por aí seja fácil de explicar o nome do bairro, Antônio Vicente vive com sua família, hoje menor, já que apenas um de seus quatro filhos ainda continua em casa. Os outros buscaram novos rumos, provando que o trabalho na terra é mais complicado do que muitos imaginam, deixando a história do ‘ouro negro’ para as décadas passadas. A visita à propriedade do agricultor foi em um domingo, o que seria um dia de descanso. Seria. Sem ponto para registrar o horário de trabalho, carteira para assinar ou horário para cumprir, todo dia de sol acaba se tornando, consequentemente, dia de labuta. Com a colheita acontecendo desde maio e os terreiros cada vez mais cheios de café, a missão é ‘secar’ o produto para conseguir ensacá-lo e vendê-lo para as cooperativas responsáveis pela distribuição. Desta forma, o tempo seco se torna o maior aliado, enquanto a chuva pode estragar o esforço de dias espalhando a colheita pelo chão até o ponto ideal. Para diminuir o serviço, que é dividido com mais um ‘camarada’ contratado para a colheita, Toninho, assim também conhecido, fez um investimento na safra do ano passado: comprou uma secadora, máquina responsável por, obviamente, ‘secar’ o produto. Quando colhido, o café, ainda em ‘coco’ e vermelho, precisa passar por um processo que facilite a retirada dos grãos, que se transformam, ficam mais rígidos e ganham a tonalidade mais escura, já mais familiarizada com as pessoas que nunca pisaram em uma lavoura. O maquinário realiza em dois dias o trabalho que a combinação entre a força braçal, o terreiro cheio e o tempo seco levaria cerca de duas semanas para finalizar. Desta forma, não demorou para que os investimentos na tecnologia fossem feitos mesmo em uma propriedade de menor escala. A consequência é a falta de oportunidade de emprego e o aumento da mão de obra livre. E o problema ampliado para as maiores lavouras nos leva a uma perspectiva cruel para os próximos anos do trabalho na roça.

A Planificação da Lavoura “A produção do café, hoje, está voltando para o lugar plano, pois a máquina precisa passar pela lavoura”, constata Noé Rodrigues. Aos 66 anos, o atual prefeito de Jacutinga tenta conciliar a administração de sua fazenda e as atribuições do Poder Executivo da cidade do Sul de Minas Gerais, a cerca de 30 km de Ouro Fino. Em uma propriedade com dimensões bem maiores do que a visitada pela reportagem no munícipio vizinho, o agricultor enfrenta uma realidade muito parecida com a de Antônio Vicente. Distante da Revolução Industrial que transformou o mundo há séculos, Noé precisa seguir o mesmo mote, substituindo o trabalho braçal por máquinas. Colheitadeiras, secadores e outros aparatos mais tecnológicos passam a ditar o ritmo da agricultura, e as consequências são evidentes, chegando a um próximo passo. A mão de obra livre acaba desistindo da roça e passa a buscar novos meios de ganhar dinheiro. É contraditório, mas a baixa oportunidade de emprego acaba espantando a mão de obra e obriga Noé Rodrigues a trazer trabalhadores de outras regiões do país para a colheita do café. Em 2013, o prefeito de Jacutinga tem 170 pessoas na lavoura, sendo que 90 vieram do norte de Minas ou da Bahia. Talvez não seja com o mesmo volume daqueles retirantes que inspiravam filmes, novelas e livros sobre a migração no Brasil, mas a busca por um novo estilo de vida, fugindo da realidade de sua origem, ainda é presente no país. Entre os pés de café, Fabianos e Severinos espalhados pelo país ganham por produção. Alguns proprietários firmam o acordo que o pagamento será feito por dia trabalho, outros preferem fechar por saco colhido. Na fazenda de Noé, na qual a diária tem preferência, seus funcionários tiram entre R$ 800 e R$ 1200. Em Ouro Fino, onde o trabalhador recebe por quantidade, a jornada rende até 40 sacos colhidos com a ajuda da ‘mãozinha’, ferramenta que auxilia a ‘panha’.


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O café de qualidade está sendo vendido no mesmo preço do normal, pois está sobrando café de qualidade

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Nas montanhas do sul das Gerais, as lavouras, que devem fugir dos pontos mais altos e voltar aos lugares planos, cultivam o café Arábica. Apesar de ser considerado o grão de melhor qualidade, a variedade de grãos faz com que o café Arábica venha enfrentando problemas no mercado e perdendo espaço. A altitude, as curvas de nível e o trabalho manual são elementos comuns na produção do Arábica, mas o alto custo leva a uma máxima comum nos tempos modernos: a qualidade é deixada de lado e um novo modo de se produzir, mais barato, se torna a solução mais viável. E assim o café Conilon passou a ser misturado com o Arábica. A variedade mais barata, cultivada em regiões planas, como o Cerrado, apresenta, porém, um sério problema: não produz bebida. A solução encontrada entre os produtores foi misturar os dois tipos de grãos, o que ficou conhecido como ‘blend’. Há alguns anos, a amálgama não era problema, já que apenas 15 ou 20% da varieA B BA

CafÉ do bom?

dade com menos qualidade era utilizada. Nos dias atuais, a situação é bem diferente. De acordo com Noé Rodrigues, as cooperativas, que recebem o produto das mais variadas propriedades, perceberam que o custo elevado começara a dar prejuízo e passaram a usar cerca de 30% do café Conilon. A medida não foi o bastante para conter o déficit e, atualmente, é comum encontrar sacos de pó de café nas prateleiras dos supermercados com até 60% do grão cultivado no Cerrado. “O café de qualidade está sendo vendido no mesmo preço do normal, pois está sobrando café de qualidade”, destaca o prefeito de Jacutinga. A cotação do mercado evidencia o problema e coloca as duas variações, que apresentam uma enorme diferença de custo na produção, em patamares parecidos no preço da saca. Enquanto o Arábica luta para ultrapassar os R$ 300 e não vê o feito com grande expectativa, o Conilon consegue ser vendido por cerca de R$ 240. Os olhos atentos às cotações do mercado parecem transmitir a descrença de um futuro mais confortável na lavoura.

Subiu ou desceu? A rotina na roça começa cedo. Não tem horário fixo, já que o responsável por ditar o ritmo é o sol. No despertar, antes de enfrentar a lavoura, no entanto, o agricultor precisa saber como o seu produto está sendo vendido no mercado. Sendo assim, um programa matinal que falasse sobre a roça seria ideal, certo? Pois bem, já tiveram esta ideia e a emissora deu o próprio nome, combinado com a palavra “rural”, e criou um informativo responsável por sanar as dúvidas do trabalhador do campo. As notícias para aquele que vive do cultivo do café, no entanto, não vêm sendo agradáveis. O produto vem sofrendo uma agravante desvalorização nos últimos dois anos e se tornou motivo de preocupação para os agricultores. Em 2012, a saca do café arábica – tipo de grão cultivado nas montanhas do sul de Minas Gerais – era vendida por cerca de R$ 500, mas, em 2013, o preço se tornou utópico. A luta diária é para um mercado otimista que consuma o antigo ‘ouro negro’ por R$ 300.


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O agricultor Antônio Vicente trabalha na roça do café em uma fazenda pequena no sul de minas gerais

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ainda vermelho no pĂŠ, o grĂŁo precisa ser secado para ganhar a tonalidade mais comum ao nosso cotidiano 32

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realidade Yan Resende

É por isso que está acabando. A gente não tem mais visão do que vai acontecer

Com o café sendo a principal atividade de sua fazenda, Noé Rodrigues aprendeu a lidar com o produto ao longo de sua vida. De acordo com o agricultor, os grãos apresentam uma melhora de preço a cada quatro anos, mas as circunstâncias não são animadoras. “Na nossa região, o café sempre foi o produto do ano que vem: no ano que vem, vai melhorar... Eu escuto isso desde quando eu era pequeno. Hoje, eu estou velho, e ainda não melhorou. Mesmo assim, a gente segue na luta. Vivi assim, não é?”. Em 2013, o atual prefeito de Jacutinga acredita que deve perder quase R$ 100 por saca. O custo para a produção

do Arábica chega a R$ 350, sendo que a realidade do mercado é a venda por R$ 270. A desvalorização, no entanto, não é a garantia de um preço ainda mais baixo no ano seguinte. Cada colheita também é sinal de esperança, mas a falta de visão do futuro incomoda e aumenta a insegurança de quem depende daquilo para sobreviver. No ano anterior, quando havia uma valorização melhor, Antônio Vicente investiu em sua lavoura, mas os resultados em 2013, evidentemente, não foram os mais animadores. “É por isso que está acabando. A gente não tem mais visão do que vai acontecer. No ano passado, quando estava R$ 500 (a

saca de café), a gente comprou o secador, mas isso compromete a nossa renda no restante do ano. A gente pensava que o preço ia se manter e caiu pela metade. Quem corta não quer mais cuidar disso não”. A dura realidade espanta novos produtores e a visão sobre o futuro converge as opiniões de Noé Rodrigues e Antônio Vicente: aqueles que continuam com a lavoura herdaram de seus familiares e seguem porque gostam daquilo que fazem. Não será fácil, no entanto, um novo proprietário entrar no ramo e dar sequência ao cultivo. Pelo contrário, aqueles que preferem cortar a lavoura, não replantam e encerram a atividade daquilo que já foi chamado de ‘ouro negro’. o A B BA

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JULIA RAMOS CLARO


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Entrei no ônibus em meio àqueles cheiros inconfundíveis de bocas não escovadas e cabeças cansadas. Dessa vez eu estava de bom humor, havia dormido 10 minutos a mais e a vida parecia mais doce, embora o açúcar tivesse acabado e o café que eu tomei não compartilhasse desta característica. O motorista dava uns solavancos eu era empurrado de um lado para o outro como de costume. Com alguns xingamentos que o motorista direcionava aos pedestres desatentos, afinal nada havia mudado tanto. Alguns velhinhos miravam os olhos sedentos de atenção na primeira vítima que acertassem. Eu já me mantinha calado, olhava para o chão e não emitia nenhuma opinião sobre o trânsito, o tempo, ou o jogo de ontem. Muitos trajetos de aprendizado e conversa mole sobre tritezas e artrite. A parte da frente do ônibus costuma cheirar a hospital, nenhuma lembrança boa pode vir disso, mas eu adoro a tortura doce que isso traz. Então, eu continuo lá observando. Além dos meus velhos companheiros, que nem da catraca passam mais, as mães que sem terem tido tempo de aprender, embalam desajeitadas seus bebês com o carinho de quem carrega pedras. Afinal, ao contrário do que o poema faz parecer, o pior das pedras é quando elas saem do meio do caminho e vão parar nas suas costas. Eu pensava na minha sorte de o dia não estar frio, pois essa era a desculpa favorita dos outros passageiros para fechar as janelas e me contaminarem com suas superbactérias cultivadas com mingau de aveia. Então, fui invadido por um cheiro de arranhão na nuca, um aroma de marcas de uma noite muito bem mal dormida. Era o esmalte vermelho da moça que acabara de entrar, um soco direto na mente fez saltar do esquecimento todas as unhas e bocas que haviam passado pela minha nuca. Foi brutal, me deu saudades do tempo em que eu enxergava bocas, pernas e unhas e não cheiros, cansaços e pedras. A doçura não passava de uma ilusão, o café estava certo afinal. Desci do ônibus ainda zonzo com a onda de pensamentos negativos. Dez minutos não foram suficientes, na próxima eu coloco treze.

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os segredos

de cada

grao ~

A degustadora Gabriela Pariz conta como definir a qualidade do café através de detalhes pouco perceptíveis no cotidiano POR GABRIELA MONTEIRO E VICTOR CIANCI

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entrevista Gabri

ela Monteir o

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ra um dos dias mais frios do ano quando fomos conhecer o Centro de Preparação de Café, o CPC, localizado no centro velho de São Paulo. Estávamos diante de um dos principais nomes da degustação de café no Brasil que ofereceu seu tempo livre para um bate papo. O nome? Gabriela Pariz. Com apenas 31 anos, já cursou farmácia e química na Universidade Católica de Santos. Hoje, ela é responsável pelo laboratório do CPC, além de, claro, degustar cafés pelo Brasil afora. Em uma conversa descontraída em frente ao laboratório, adentramos neste universo de aroma apaixonante. A rotina atribulada, talvez, não nos permite uma aguçada percepção para os detalhes do cotidiano, como aquele tradicional cafezinho paulistano após o almoço. Gabriela Pariz, no entanto, vê a bebida de uma forma diferente. A degustadora define seus companheiros de profissão como “máquinas que vão trabalhar com pistas sensoriais” e, com uma paixão transbordante, mostrou cada artefato usado em seu laboratório para definir a qualidade daquilo que está diante de seu olfato. Na despedida, não tivemos dúvida, uma xícara de café, com todo o ritual que a cerca. Gabriela, você poderia nos dar uma breve introdução do local onde estamos? Aqui é um centro de café, então a gente faz uma série de serviços voltados pra essa área. Nós temos os serviços de laudos, que é feito por um grupo de provadores com experiência de mercado, em classificação e degustação. (A experiência é necessária) Porque é um serviço de degustação sen-

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sorial específico, focado em café, então a pessoa tem que entender desde a parte da plantação e da colheita até beneficiamento, já que todos esses fatores vão influenciar na hora da degustação. Então, por exemplo, o degustador está ali, sentado, provando um café, e ele percebe um sabor que é característico de um grão imaturo, que foi colhido antes do tempo. Ele só vai conseguir isso com muito tempo de prática. Existe alguma faculdade ou curso sobre isso? Não. Você tem que fazer cursos em instituições como a nossa, por exemplo. Existem vários locais espalhados pelo Brasil onde ele é possível; por exemplo, em Santos, que é uma área onde se valoriza muito o café por causa do porto, você tem a Associação Comercial, que tem um curso muito forte sobre degustação e classificação, tanto que eles recebem gente de fora... Aqui mesmo é um centro de referência, fomos o primeiro centro de estudos de café, o primeiro a dar esses cursos, seja na formação do barista, seja do degustador.

Esses cursos variam em duração e preço? Em duração sim, mas em preço não costuma fugir de uns R$ 1000,00 pra tirar um certificado de conclusão de curso. Isso quer dizer que ‘ah, tirei um certificado, agora eu posso sair provando café e diferenciando as sementes’? Não necessariamente, porque você tem que praticar muito. Você vai ter uma base no curso pra que você possa prosperar na área. No curso de Santos, que não é intensivo, você tem que fazer um mês inteiro, mas só por uma parte do ano. O nosso, por outro lado, é um curso intensivo, você

fica o dia todo praticando e aprendendo e em uma semana tira o certificado.

E o mercado de trabalho? Como ele está para degustadores? Está em falta. O café teve um “boom” antigamente, então quase todos os profissionais são dessa época. A gente precisa de funcionários novos. Então é interessante as pessoas buscarem esse ofício porque é um mercado que cresce cada vez mais no Brasil - e não só aqui - a gente tem um aumento muito grande do consumo da bebida, buscando cada vez mais qualidade. Eu coordeno uma turma e tenho muita dificuldade pra conseguir provadores, porque eles precisam de um tempo de preparo. Você vem, faz o curso, tira o diploma, mas ainda precisa de mais um tempo praticando. Para o provador sentar comigo, ele tem que ter, pelo menos, dois anos de prática. A gente tem uma série de torrefações (lotes de prova), que são as empresas que torram o grão e vendem. E pra isso, elas precisam saber quais grãos que são bons e quais não são, como devem ser torrados ou “blendados”, avaliar custo... Quem faz tudo isso é um classificador ou degustador de café. Pra vender o café pra fora, exportar, você tem que ter alguém que saiba classificar o café. Qual seria, em média, o piso salarial? Varia de acordo com o profissional. O degustador não tem uma classe, nem um piso salarial definido; vai depender da experiência que ele tem, da função que ele desempenha, da empresa para a qual ele trabalha... Existem degustadores que ganham R$ 2 mil e outros que ganham R$ 6 mil.

Você acha que as pessoas fazem o cur-


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so mais por lazer, ou para se especializar mesmo? Olha, tem de tudo. Tem pessoas que vem porque amam café e querem aprender um pouco mais. Agora, tem pessoas que querem mesmo entrar no mercado, que vêem oportunidade, normalmente elas já sabem se querem ser degustadoras ou baristas. E mesmo assim você acha que faltam profissionais no mercado? Falta, falta. A gente tem muitos baristas que operam máquinas de expresso, abrem cafeterias... Os degustadores, que trabalham com exportação, estão em número bem menor. Em Santos, que trabalha mais com exportação, você dificilmente vê profissionais jovens; justamente por isso é um mercado promissor, quase não tem competição. Quanto mais a gente divulgar, mais as pessoas vão ficar sabendo que existe isso. Há um tempo, a média era de 6, 8 provadores. Agora, hoje, trabalhamos com o mínimo possível de provadores, que são três.

Como você encara a responsabilidade dessa profissão? Então, na verdade, a pessoa que trabalha nessa área tem que ser muito focada. O degustador é uma máquina que vai trabalhar com pistas sensoriais, e como toda máquina, deve ser mantida, calibrada... Por exemplo, quando eu venho fazer uma degustação, não posso me maquiar, passar perfume, não posso fazer nada que vá afetar a minha percepção sensorial. Precisa de algum exame médico para isso? Porque existem pessoas com olfato reduzido ou coisa do tipo... Sim. Tem que fazer exames e passar por

dentistas e clínicos. Não pode ter nenhum vício, cigarro ou bebida - pra fazer degustação tem que ter ficado 48 horas sem ingerir álcool - e nada que possa interferir com o olfato e o paladar, que são os sentidos importantes pra uma degustação. Não existe conversa durante o ato, pra não afetar a avaliação final e a concentração no durante. E a rotina, como é? Tem degustação todos os dias? Não, não todos os dias. Eu, quando não estou participando como degustadora, tenho todos os assuntos burocráticos de laboratório para cuidar, controle de laudos, calibro meus provadores e acompanho os resultados deles, levanto clientes. Tem toda uma parte burocrática que eu tenho que tomar conta quando não estou degustando. Alguns degustadores dão aulas e palestras, nem sempre você vai estar provando café, mas sempre vai estar fazendo algo relacionado a isso. Esses “cafés novos” (como o Starbucks) prejudicam o café? Pelo contrário, o café é uma bebida em evidência que deve, cada vez mais, ser divulgada. Acho muito interessante, hoje em dia, os jovens apreciarem o café, traz um público novo e maior para o consumo do café. Algumas cafeterias simplificam e colocam, por exemplo, três cafés diferentes com características diferentes, e isso não tinha antes; era o expresso e o cappuccino, e só.

Financeiramente falando, você acha que o café ainda movimenta a economia como no tempo dos barões? Olha, eu acho que o mercado do café, hoje em dia, tende a crescer muito mais.

Estamos focando num mercado de pessoas que apreciam a bebida, e não só bebem por beber. E o apreciador está disposto a pagar por aquilo que atenda as suas necessidades. Dez anos atrás não tínhamos pessoas dispostas a pagar 50 reais num quilo de café de qualidade maior, porque a mentalidade era outra. Então a tendência é o mercado crescer muito mais e gerar valor, agregar valor à bebida. Acho que hoje o café pode até significar mais hoje do que no tempo dos barões.

E você acha que esses cafés mais “simples” têm essa preocupação ou são feitos mais na base da rapidez? Hoje em dia, temos cursos de baristas aqui e muitas dessas cafeterias trazem os seus funcionários para aprender a tirar um expresso perfeito. Como o consumidor está ficando mais exigente, mesmo os lugares que menos tem a ver com o café estão tomando esse tipo de cuidado. O restaurante que serve cafezinho no final da refeição já possui essa preocupação, com medo de que o cafezinho, no final, prejudique toda a experiência tida com a comida, treinando então seus profissionais. Você consegue tomar um café simples desses sem pensar na degustação? Ah, impossível (risos). Todo mundo que trabalha com café acaba o avaliando sem pensar. Quando eu saio com o meu marido, eu faço uma análise pra mim, pelo olfato mesmo, para ver se está bom. As pessoas olham meio estranho pra mim, tipo ‘por que ela tá cheirando o café?’ (risos). É difícil você separar as coisas, mas eu faço isso meio por lazer também. o A B BA

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luxo

Surge uma nova revista e (talvez) uma nova apreciadora da cafeĂ­na POR GABRIELA BOCCACCIO

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O café Suplicy tem um aspecto um pouco peculiar: apesar de trabalhar com cafés de alta qualidade, o ambiente não parece elitizado.

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cheiro do café sempre impregnava a cozinha durante a primeira refeição do dia. Meus pais tomavam aos domingos, na casa de minha avó, na sala gelada de Boulogne, em Paris. Uma bebida de gente grande que deseja se manter acordada. Enquanto o bule de café repousava sobre a mesa, eu tentava roubar os pequenos cubos de açúcar que acompanhariam as xícaras dos mais velhos, para deixá-los derretendo na minha boca. Fazia isso porque, naquele momento, provar o amargor do café estava completamente fora de cogitação e muito distante da minha pacata e, ainda, inocente rotina. Minhas indagações acerca da obsessão em torno daquele líquido negro eram múltiplas: como alguém poderia gostar de algo tão amargo? Apreciar e ser capaz de afirmar “não consigo viver sem meu cafezinho”? Os pequenos goles que tomei durante minha vida vinham acompanhados de caretas e expressões estranhas. Por ironia do destino, entrei para a faculdade de Jornalismo em São Paulo, onde praticamente todos os alunos compartilham uma fixação por café. É como se a bebida fosse o melhor amigo do repórter. O cheiro do café me perseguia: no estágio era um tal de “quem quer café?”. Na hora de fazer entrevista, a mesma insistência: “aceita um cafezinho?”. Ser uma aspirante à jornalista completamente avessa à cafeína é algo inexplicável para os integrantes desse meio.

A Boba nasceu e, para minha surpresa, o nosso primeiro tema é café, assunto que, em minha cabeça, nunca poderia ser pauta para toda uma revista. Foi assim que consegui entrar em um mundo onde o café é, sim, importante: um dos protagonistas da história desse país. Vi, nesse momento, a oportunidade de transformar minha desconfiança e meu medo em pauta jornalística. Em um domingo frio e chuvoso, entrei em uma cafeteria na Alameda Lorena, no bairro dos Jardins em São Paulo, tentando procurar algum reconforto nos grãos de café. Os detalhes da decoração em rosa-choque e as camisetas de aficionados pela bebida foram elementos que contribuíram para que tudo me parecesse divertido. Fui aconselhada a começar por um mocha lá no Café Suplicy. O cardápio, bastante didático, mostrava a porcentagem de café, leite e chocolate contido na bebida. Turistas chineses barulhentos e agitados, homens vestidos com confortáveis moletons lendo jornal, cadeirantes e até crianças: todos estavam com suas xícaras espiando as telas que exibiam algum jogo da Copa das Confederações. O cheiro de café invadia as narinas e aumentava minha ansiedade para fazer minhas típicas caretas. O café Suplicy tem um aspecto um pouco peculiar: apesar de trabalhar com cafés de alta qualidade, o ambiente não parece elitizado. Pelo contrário, lembra um pouco da praticidade e agilidade dos famosos fast-food, apesar de estar muito acima disso em termos gastronômicos. É uma franquia com

ares norte-americanos, que está presente em vários estados do Brasil, tendo cinco lojas somente na cidade de São Paulo – quatro em diferentes shoppings e uma nos Jardins. O mocha chegou e o chantilly dava um ar apetitoso. Aquela nuvem de creme despertou minha curiosidade e com apenas algumas colheradas ela desapareceu para dar lugar ao que parecia o café com leite gelado que minha avó beberica o dia todo. No primeiro gole, uma surpresa agradável, um sabor doce somado a um leve toque de café. No segundo, nem tanto: minha testa franziu, meus olhos fecharam-se quase por completo e toda minha face contraiu-se. Lá estava o amargor do café. Prossegui a aventura em golinhos tímidos, com o calor da bebida evaporando, ainda presa à minha relutância em tentar apreciar o que estava degustando. Cansada, peguei a colher e misturei aquele líquido insosso. Que milagre! A cor da bebida transformou-se: uma onda negra escureceu o marrom do que, até então, parecia apenas um café com leite. Sem entender muito bem, experimentei o resultado da metamorfose: da água para o vinho, ou melhor, do café com leite para o verdadeiro mocha. O chocolate se escondeu para dar as caras quando pensava que minha luta por gostar de café estava perdida. A careta foi logo substituída por um sorriso satisfeito. O sentimento de derrota cedeu lugar à esperança. A segunda tentativa foi mais intensa, dessa vez uma degustação de dois cafés no Santo Grão. Entre pequenas árvores e tochas, a rua Jeronimo da Veiga abriga uma unidade


luxo

Gabriela Boccaccio

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luxo da cafeteria. Os tons quentes dominavam o ambiente, cuja iluminação enfraquecia-se conforme a noite avançava. Pé direito altíssimo e tudo de madeira. As mesas eram cercadas por poltronas de couro muito confortáveis e não pelas frias cadeiras de restaurante. O ambiente era tudo. A clientela do Santo Grão é formada por adultos. Não somente adultos: eles tem bons empregos, vestem boas roupas, moram em bons bairros e bons apartamentos, vestem bons sapatos, dirigem bons carros e tomam um excelente café. Contudo, os ares de sofisticação foram amenizados quando percebi que as janelas se mantinham abertas graças aos hashis. Em um lugar em que tudo parecia meticulosamente calculado e pensado, aquela imperfeição aparecia como um improviso agradável e engraçado que entrava em choque com toda a lógica do lugar. Chega a primeira metade da degustação contendo um blend de grãos selecionados. Entre saquinhos de açúcar e pequenos chocolates, degustei o café. Meu sentimento era o de estar na pele daqueles adultos que com seus dedos largos seguram uma xícara tão

pequena. Consegui visualizar mentalmente minha mãe tomando seu café sempre puro, ouvi o barulho da máquina de Nespresso que temos em casa e senti aquele vapor subindo e invadindo toda a cozinha. Então era essa a sensação que juntava toda a minha família aos domingos? Em seguida um café tradicional ou “pilão” aterrissou na mesa, acompanhado de uma madeleine de baunilha. Talvez o peso da palavra “tradicional” me desse a impressão de que aquilo que eu estava tomando era o autêntico café. Em minha cabeça, todos os cafés deveriam ter esse gosto e eles tinham. Meu paladar desacostumado não soube identificar imediatamente as diferenças da degustação, por isso me faltam adjetivos para descrever o que estava tomando. Era apenas café. O açúcar amenizou a amargura e continuei a apreciar a bebida. Sua textura cremosa e seu sabor marcante me fizeram entender as razões daquilo poder ser uma ótima pedida depois de um almoço. Assim como os pequenos golinhos de água com gás que limpam o paladar para a degustação, o café gourmet veio para de-

SANTO GRÃO - RUA OSCAR FREIRE, 413 - JARDINS, SÃO PAULO - SP 44

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purar o gostinho do café comum, aquele “carioca”. Os inúmeros cuidados na seleção de grãos, na procura de um sabor sofisticado, revelam preocupações que parecem não caber apenas dentro de uma simplória xícara. Li diversas descrições sobre as peculiaridades do café gourmet e tudo pareceu muito justo. As nuances sobre a coloração, a acidez, a amargura, e todas as características do processo de fabricação aparecem como a construção de uma obra de arte. Minhas papilas gustativas, ainda amadoras nesse quesito, me deram a impressão de que estava experimentando o mesmo café diversas vezes. Refinamento demais para uma primeira experiência. Mesmo assim, estou longe de desistir. Vou continuar provando cafés, podem ser gourmet, tradicionais ou cariocas. Ainda quero sentir e entender a razão desse vício nacional, que faz grãos de Minas Gerais e de São Paulo reunirem-se em uma mesma xícara. Vou entender, um dia, o que faz de cada gole de café uma experiência única. o


luxo Lucas Hanashiro

SUPLICY CAFÉS - ALAMEDA LORENA, 1430 - JARDINS, SÃO PAULO - SP

TRADICIONAL X GOURMET

POR PEDRO CAMARGO

Lucas Hanashiro

O café tradicional pode ter uma blendagem com outra espécie de café que é a Robusta, sendo que o café gourmet é composto 100% pela espécie arábica” conta o barista e professor Renato de Melo, na escola de barismo e cafeteria gourmet, CoffeeLab na Vila Madalena, em São Paulo. É isso que explica a diferença gritante – segundo baristas e degustadores – entre o amargor “intragável” do café comum e o amargor suportável do produto refinado. “Se o café é tradicional, ele tem um amargor que faz com que eu, por exemplo, já tenha que colocar açúcar para dar aquela disfarçada” confessa Robinho, um dos principais baristas no café Santo Grão do bairro dos Jardins. Contudo, a diferença nas técnicas e métodos de seleção, secagem, torra e moagem trazem resultados para o café gourmet que vão muito além do tipo de amargor. A planta da espécie arábica, que gera o café gourmet, é cultivada em três regiões diferentes do Brasil: Sul de Minas, Cerrado Mineiro e a região Alta Mogiana de São Paulo. A apreciação dessa bebida depende de cinco fatores. O primeiro deles é o corpo que pode ser viscoso e pesado ou leve e delicado, dependendo da persistência da sensação no paladar. Já os aromas são múltiplos: florados, cítricos, achocolatados e frutados. Essa variação se dá conforme a acidez do café, que também é um fator a ser avaliado. Ela deve ser fresca e cítrica e pode ser percebida pela região lateral da língua. Na ponta desse mesmo músculo é que sentimos a doçura natural do café – o gourmet deve ser degustado sem açúcar. Por fim, temos o, já citado, amargor que depende do tipo da torra e pode ser sentido no fundo da língua/começo da garganta. “Eu estou no mercado há dois anos e sinto que a procura por esse tipo de produto diferente já é bem alto. As cafeterias também estão oferecendo esse serviço com maior frequência” avalia Renato de Melo. “Antigamente as pessoas pediam um café, colocavam açúcar e fim, ficava só nisso. Hoje em dia, tem um pessoal que vem aqui e já pede um ‘Sul de Minas’ mais levinho ou um ‘Cerrado’ mais encorpado”, disserta Robinho – sempre com um sorriso no rosto – sobre o crescente interesse da clientela acerca da apreciação do café gourmet. A B BA

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alguem quer

cafe? ´

Prós e contras da cafeína que sustenta a rotina frenética de Helen Braun POR LUCAS BREDA E MARINA PANIZZA

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astava o relógio apontar 22h30 para que aquele sotaque gaúcho, que tanto gostávamos de imitar, anunciasse: hora de ir para casa. “Alguém quer café?” era a pergunta que marcava a chegada de Helen Braun à redação da Rádio Band News FM. Marcava também o fim do meu expediente – e o início do dela. Ali mesmo, logo menos, ela começaria a ancorar seguidos jornais até quando o sol apontasse e outros viessem ocupar o seu lugar. “Mais de seis copinhos por madrugada”. É como Helen, com certo esforço, tenta quantificar seu consumo, consideravelmente incrementado depois da sua mudança para a noite. Cômica, ela culpa seu editor, Ricardo Valota, por abastecê-la constantemente. Mas com um sorriso na boca, confessa: “ele gosta. Mas eu gosto mais do que ele”. É ele quem leva a garrafa térmica, preenchida até o talo, com o combustível para toda a jornada, da troca de dia até o alvorecer. Legítima “filha do padeiro”, como se auto-intitulou, a gaúcha teve de forçar a troca do “nescauzinho” pelo café para conseguir estudar para o vestibular. O gosto podia não agradar tanto, mas a tática era simples: “eu dormia cedo, umas oito, nove da noite, acordava pelas duas da manhã, e estudava até as sete”, ela relembra, fazendo um link com o A B BA

fato de que, atualmente, trabalha de madrugada. “Eu tomava café pra ficar acordada. Mas não gostava não. Colocava açúcar, adoçante, era até meio melado”. E por mais que o famoso cappuccino do campus da PUC-RS agradasse, foi como jornalista estagiária que ela criou gosto pelo pretinho. Assim como Helen Braun, diversos brasileiros se sentem atraídos pelo efeito estimulante do café. Até o final de 2012, o consumo per capita da bebida era de quase 83 litros para cada brasileiro, segundo dados da ABIC – Associação Brasileira da Indústria de Café. Na Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2008-2009, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi constatado que o brasileiro toma de quatro a cinco xícaras de café todos os dias. O café é composto por diversas substâncias tais como sais minerais (ferro, sódio, zinco, cobre e magnésio, entre outros), vitaminas do complexo B, aminoácidos, lipídios e açúcares. A principal substância, no entanto, é a cafeína, responsável pela característica especial da bebida. A cafeína estimula a vigília e a atenção, diminuindo a sonolência e a fadiga. Aumenta a capacidade intelectual e a concentração e melhora o desempenho em algumas tarefas. Isso acontece porque ela atua sobre o sistema nervoso central e sobre o sistema de vigília do cérebro, inibindo os efeitos da adenosina, uma substância química do cérebro (neurotransmissor) que

causa o sono. Impede que ele aja como redutor da pressão sanguínea, da frequência cardíaca e da temperatura corporal, fatores responsáveis pela sensação de sono. O tempo de meia-vida da cafeína no organismo é de quatro a seis horas. Ela também estimula a produção de alguns neurotransmissores relacionados ao bem-estar, o que explica o aumento da disposição física após alguns goles de café.

***

Já passava das nove da noite de uma quarta-feira em São Paulo. Além do café grande, Helen havia pedido uma água com gás e uma tortinha de frango. Era seu jantar. Depois da nossa conversa, ela iria ao Morumbi, onde fica o prédio da Rede Bandeirantes. Sua simpatia e bom humor ficavam claros quando ela mostrava a branquidão dos dentes a cada sorriso que, a qualquer momento, poderia virar uma gargalhada. As bochechas rosadas apoiavam um óculos de moldura dourada, revelando um olhar seguro, direto, que dificilmente se dispersava. “É que nem aquela história de trocar o refrigerante comum pelo light, que você troca um pelo o outro e não consegue voltar”, assim ela tenta explicar a preferência pelo café sem açúcar ou adoçante. O desafio de encontrar o verdadeiro gosto da bebida – que, segundo um amigo, era “maquiado” pelos adoçantes – ganhou força com uma outra vontade, a de emagrecer. Somou-se o


Lucas BrĂŞda

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Vou pegar mais um café senão eu tenho crise de abstinência

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útil ao agradável, e o vício inspirou inclusive uma declaração de amor de um dos seus relacionamentos. Segundo ela, antes de coar o café, seu ex-namorado oferecia a bebida só para ouvi-la dizer que queria sem açúcar. E valia a pena: ela ganhava mais uma xícara. Ganhava porque, ironicamente, sua mão não é lá das melhores para preparar o próprio pretinho: “eu sei cozinhar, eu sou boa nas aptidões domésticas, mas se eu vou passar café, sempre dá errado, fica muito ruim”. Indignada, ela dá risada do próprio infortúnio, e conta que chega a oferecer café para suas visitas com uma condição: a de que eles mesmos preparem. E depende dos outros para se satisfazer. Mas, afinal, o café faz bem ou mal para o corpo? Essa questão sempre foi motivo de discussão ao longo dos anos. A opinião, quase unânime, era a de que o café fazia mal, que acarretava problemas no coração, gastrite, insônia, enfim, estava sempre relacionado com sintomas negativos. Atualmente, diversas pesquisas médicas indicam cada vez mais benefícios de se tomar café regularmente. Pouco a pouco, o tabu ao redor da bebida está diminuindo e sua imagem se tornando mais positiva. Em quantidades moderadas, a cafeína não é prejudicial à saúde e também não afeta o sono. Apesar de não ser um remédio, os médicos vêm considerando a bebida como funcional - prevenindo doenças -, e até mes-

mo nutricional, devido à presença de minerais importantes para o corpo humano. A nutricionista Telma Faraldo explica que o café é um alimento com inúmeros compostos bioativos, como os antioxidantes, que podem exercer efeitos benéficos no organismo. Ao contrário do que se dizia antigamente, o café pode trazer benefícios para o coração, e não aumenta a pressão sanguínea ou os riscos de doenças cardiovasculares. Uma pesquisa norte-americana, apresentada na 50ª Conferência Anual da Associação Americana do Coração, em 2010, aponta um risco 18% menor de problemas cardíacos em quem ingere quatro ou mais xícaras de café por dia. Além disso, “o café também pode reduzir o risco de aterosclerose - doença na qual há o acúmulo de material gorduroso nas paredes das artérias -, pois contém compostos antioxidantes. Como diabetes e aterosclerose são fatores de risco para doenças cardiovasculares (DCV), o café está associado à redução do risco também de DCV”, explica a nutricionista Telma Faraldo, doutora em nutrição em saúde pública pela Universidade de São Paulo. Um estudo que vem sendo realizado pelo Instituto do Coração, o Incor, mostra como o café não parece aumentar os riscos de doenças cardiovasculares. O grupo de estudo realizou uma experiência com 27 voluntários. O consumo de três a quatro xícaras de café por esse grupo não mostrou aumento

da pressão arterial. Uma pesquisa similar, realizada pelo periódico científico Circulation, da Associação Americana do Coração, mostrou ainda que, além de não causar doenças cardíacas, o consumo regular de café produz ainda um discreto efeito protetor contra o derrame. Em uma pessoa que nunca tomou café na vida, no entanto, o consumo pode provocar elevação de pressão e taquicardia. Além de não ser ruim para o coração, o café pode ajudar na prática de exercícios físicos. Além de dar uma energia extra ao atleta, o café diminui a dor causada pelo esforço físico. Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Illinois, nos EUA, a cafeína age diretamente sobre as partes do cérebro e da medula espinhal envolvidas no processamento da dor. A substância ainda aumenta a mobilização de gordura durante a atividade física, preservando, assim, os estoques de glicogênio muscular. Possui, portanto, um efeito ergogênico, ou seja, ela pode melhorar o desempenho físico. A cafeína pode ainda estar relacionada com a prevenção de diabetes tipo 2, visto que contém substâncias que reduzem o teor de açúcar no sangue. A ingestão saudável da bebida interfere positivamente na absorção da glicose, que passa a ser feita de maneira gradual. A produção de insulina, portanto, ocorre de forma harmoniosa. “O consumo diário de café relaciona-se à redução do risco de síndrome metabólica e de


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Lucas Brêda

diabetes tipo 2. Entretanto, a quantidade de café a ser consumida para se observar estes efeitos ainda não é conclusiva. Alguns estudos indicam que a redução do risco de diabetes é observada apenas com a ingestão superior a sete xícaras (150 ml cada) por dia”, explica a nutricionista Telma Faraldo. Outro benefício que pode surgir com o consumo regular de café é a prevenção do Mal de Parkinson. Pesquisa realizada no Instituto de Pesquisa da Universidade McGill, no Canadá, mostrou que a cafeína consegue reduzir os sintomas da doença, proporcionando uma melhoria motora aos afetados. A cafeína contribui para o funcionamento da dopamina, neurotransmissor que, quando em falta, é um dos causadores do Parkinson. Portanto, ao contrário do que muitos imaginam, o café não causa “tremedeiras” em quem está acostumado a ele. Um trabalho realizado por pesquisadores da Universidade do Sul da Flórida, nos Estados Unidos, mostrou que a cafeína reduz os níveis de uma proteína chamada betaamilóde, que, em concentrações elevadas, seria um dos causadores do Alzheimer. Mais um ponto positivo para o cafezinho. Por fim, o café pode fazer bem para o fígado, reduzindo doenças hepáticas e protegendo contra o desenvolvimento de tumores. Um recente estudo realizado pelo Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos avaliou 766 pacientes que tiveram hepatite

C. Entre aqueles que bebiam mais de três xícaras de cafezinho por dia houve uma desaceleração no desenvolvimento da doença. O consumo regular de café pode, portanto, trazer diversos benefícios para o corpo humano. Mas qual a medida ideal para se tomar café? Os especialistas sugerem, em média, até 600 mililitros, ou seja, entre três e quatro xicaras por dia, mas isso depende da sensibilidade de cada pessoa: aquelas com problemas de estômago, insônia ou palpitações devem tomar menos. Crianças e idosos também devem ingerir cerca de metade da dose ideal (duas xícaras por dia). O fator determinante para ser prejudicial ou benéfico à saúde, não estaria no seu consumo isoladamente, mas, sim, na quantidade ingerida. Quando é consumido em excesso, o café pode se tornar prejudicial ao organismo. “O consumo excessivo de café pode aumentar o risco de DCV (doença coronariana, arritmia cardíaca e derrame), de anemia e de osteoporose, além de aumentar a pressão arterial”, alerta Telma Faraldo. A nutricionista adverte ainda que o excesso de café pode reduzir o efeito de medicamentos, agravar quadros insônia e de ansiedade. “Gestantes que consomem mais de 6 xícaras de café por dia apresentam maior risco de aborto e de terem filhos com baixo peso”, completa. Locais que disponibilizam café o tempo todo, como bancos ou hospitais, aumentam o consumo da bebida, o que pode ser ruim

para o indivíduo. O café em excesso pode prejudicar a absorção de alguns minerais (ferro, cálcio e zinco), aumentar os níveis de colesterol e LDL e a pressão arterial. “O café dá taquicardia, aumenta a frequência do coração, pode dar extra-sístole (uma arritmia cardíaca) em quem toma muito. Quem já tem qualquer quadro de cardiopatia sente muito mais. Mas só acontece em quem toma muito. Fora isso não tem muita contraindicação”, explica o cardiologista Antônio César Nogueira. Altas doses de cafeína na dieta (mais de 200 mg), aumentam também os níveis de ansiedade e podem induzir ataques de pânico. O consumo deve ser controlado para evitar problemas de ansiedade e de sono. Além disso, o consumo de café por indivíduos que apresentam problemas gástricos, úlcera e refluxo deve ser desencorajado. “Café dá gastrite, sim. Porém, em quem toma todo dia e possui outros fatores conjunto, como, por exemplo, a genética”, explica a nutricionista Paula Cantagallo. “Ele (o café) acaba agredindo a camada de proteção do estômago. Quem é muito estressado, muitas vezes acaba tomando muito café, o que é uma junção perigosa pra dar gastrite. E se não cuidar pode levar a uma úlcera”, alerta. Portanto, apesar de irritar a mucosa gástrica e levar a um aumento da secreção, o café não causa gastrite isoladamente, mas, sim, quando consumido em excesso e em pessoas que apresentam outros fatores A B BA

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Há evidências da ocorrência de vários sintomas por abstinência de consumo de cafeína, tais como dores de cabeça, fatiga, sonolência, irritabilidade, (...) depressão de humor e náuseas

relacionados. Além disso, o café também é contraindicado para os hipertensos visto que existe a probabilidade de a pressão sanguínea aumentar, juntamente com a vasodilatação, e também pode ocorrer o aumento do fluxo sanguíneo para os tecidos em geral, incluindo as artérias coronárias. Pessoas que não estão acostumadas ao consumo de café também podem apresentar sintomas como palpitações e aumento da frequência cardíaca. O uso regular pode desenvolver tolerância à substância, alterando esses efeitos cardiovasculares. “Há evidências de que a maioria dos consumidores habituais de café desenvolve tolerância aos efeitos da cafeína com o consumo diário por cerca de cinco dias. Entretanto, indivíduos sensíveis à cafeína podem apresentar efeitos indesejáveis como taquicardia, palpitações, insônia, ansiedade, tremores, dores de cabeça e náuseas mesmo com o consumo habitual de café”, adverte a doutora Telma Faraldo. Apaixonada por cultura, Helen Braun costuma incluir a arte no ritual de tomar café. No centro de Porto Alegre, ela cita a Casa de Cultura Mário Quintana – onde morou o po-

eta -, de vista para o Rio Guaíba, como um de seus lugares favoritos para passar o tempo. E lembra com olhar saudoso e água na boca do leite vaporizado sobre o café forte do local: “ah, aquilo é uma perdição. Muito bom, muito bom”. Em São Paulo, ela fala da Reserva Cultural – onde há também um cinema e uma livraria -, na Avenida Paulista, curiosamente, o local da nossa conversa. No local, ela tomou toda a bebida com uma golada só, e, logo após, interrompeu a conversa: “vou pegar mais um café senão eu tenho crise de abstinência”. Realmente, café consumido em excesso pode causar dependência. “Há evidências da ocorrência de vários sintomas por abstinência de consumo de cafeína, tais como dores de cabeça, fatiga, sonolência, irritabilidade, dificuldade de concentração, depressão de humor e náuseas.”, relata Telma Faraldo. Algumas pessoas tomam tanto café que já dizem “não funcionar” sem a bebida e precisam tomá-la para realizar todas suas atividades. Quando isso acontece, diminui os efeitos que o café produz. O efeito estimulante passa a ser mais placebo do que real. Na cabeça do indivíduo, o café está

produzindo certo efeito, mas seu organismo já apresenta uma tolerância muito grande à cafeína. “Com o consumo habitual de café, a maioria dos indivíduos desenvolvem tolerância aos efeitos da cafeína, passando a não os sentir mais.”, conclui a doutora Telma. Apesar de muitos estudos serem realizados explicando os efeitos positivos e negativos do café, o efeito vai sempre depender da sensibilidade que cada pessoa apresenta para com a substância. Inquieta por natureza, Helen ainda briga com um refluxo estomacal para manter o vício não só no café, mas também no chimarrão. Por mais que tenha recebido contra indicações do seu médico, ela segue tranquila, amparada por doses de omeoprazol (medicamento antiulceroso). Nada parece abalar o bom humor da jornalista, que busca voos altos para a carreira em São Paulo. Entre o chimarrão e o café, o jornalismo e a arte, ela sabe bem o caminho para manter o sorriso na boca: “você sabe, eu não dou bom dia pra ninguém se não tiver tomado a primeira xícara do dia”. o A B BA

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calcinha Conheça o mundo místico da bebida, que, de lendas de cabras saltitantes à leitura de sua borra, seduz todos os tipos de cultura

POR julia mello E victor puia

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cultura

Há um universo único em cada xícara de café

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ão é de se espantar que, em algumas culturas, todas as formas de visualizar ou prever o futuro são bem vindas. De origem árabe, uma tradição se destaca em países como a Turquia e o Irã: a cafeomancia. Tainah, cafeomancista e fundadora da “Kumpania Romaí”, empresa especialista em vidência e bem estar, explica: “A cafeomancia é a associação das marcas deixadas pela borra do café no fundo da xícara com uma lista de elementos, como o cavalo, a lua ou uma âncora. A partir dessas associações, fazemos a interpretação de seus significados.” A leitura da borra de café já foi praticada por Czares russos e grandes sultões do Oriente Médio. Nas famílias árabes mais tradicionais, essa cultura ainda permanece, e as mães leem as xícaras dos filhos e maridos depois do almoço. “Para os árabes, mais do que prever o futuro, a borra de café revela segredos da vida e indica caminhos do futuro”, diz Tainah.

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Encanto do passado

chamado Kaldi, que vivia na Abissínia, notou que algumas de suas cabras ficavam muito agitadas após o pastoreio. Ele percebeu que elas se alimentavam de um fruto vermelho, o café, que logo seria considerado demoníaco entre católicos e árabes por ser estimulante. Como perceberam que a bebida poderia prolongar o tempo de oração, e que, por ser deliciosa, sua proibição não duraria muito tempo, novas lendas surgiram para justificar o consumo. Uma delas diz que a bebida foi criada pelo arcanjo Gabriel como uma forma de ajudar Maomé, que estava fraco e perdendo uma de suas batalhas. Após ingeri-la, ele teria sido capaz de derrotar quarenta cavaleiros e encantar quarenta damas. Com a expansão desse mito, foi decretado o uso da bebida para fins de preces e orações. O inegável é que o café sempre foi relacionado a uma energia sobrenatural: seu nome vem de “Cahouet”, palavra árabe que significa “força”. Outra lenda atribui a descoberta a tribos africanas, que faziam uma pasta com os grãos para dar aos animais e fortalecer os guerreiros em suas batalhas.

O futuro não é o único mistério do café. Desde seus primórdios, o pequeno grão, que passou a ser uma das bebidas mais consumidas por diversas culturas, é rodeado de misticismo, como provam as lendas que rodeiam seu surgimento. Por volta de 800 d.C., um pastor árabe

“Há um universo único em cada xícara de café”, declarou Mirta Camerini, entusiasmada com o convite para conversar sobre a bebida. Foi na época em que cursava Medicina que a avó de uma amiga a ensinou como ler borra de café. Desde então, Mirta

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Interpretação

passou a se dedicar ao aprendizado de técnicas de adivinhação. Há oito anos ela vive em São Paulo com o marido e já não exerce sua profissão inicial, de radiologista. Abdicou do trabalho antigo por sua paixão: hoje, é professora de tarô egípcio, tarô mitológico, runas e leitura de borra de café. É comum que a cafeomancia se misture ou exclua a atuação em outras profissões também fora do Brasil, como na Argentina. Dalia Waler era uma produtora de Cinema e TV que lia borra de café, runas e tarô egípcio nos bares próximos à sua faculdade, mas parou por causa do preconceito existente em relação ao esoterismo. “Estava lendo a borra de café para amigos, quando pediram que a gente se retirasse porque as pessoas poderiam ter impressões erradas sobre a faculdade”. Depois desse episódio, ela criou um projeto com sua amiga Isabel, cantora e bailarina, com o intuito de renovar a percepção em relação às práticas. Assim nasceu a FE, em abril de 2012: “um lugar para realizar os rituais com uma boa atmosfera”. Atmosfera essa que é essencial para a cafeomancia. Normalmente confundida com adivinhação, é uma prática, na verdade, interpretativa. “A leitura consiste em uma interpretação de desenhos, formados pela borra”, diz Mirta. O café utilizado nos rituais é, de acordo com a tradição turca, bem fino. Coloca-se em uma jarra de cobre a quantidade necessária de água, duas xícaras de café e açúcar a gosto. Depois, o cliente bebe o café e espera, com a xícara de boca para baixo, que a temperatura amenize e que a


cultura

JĂşl i a M ell o

Na FE, em Buenos Aires, a cafeomancia ĂŠ embasada em livros. Dalia Waller dedica grande parte do seu tempo a esses estudos

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cultura

Dalia waller, cafeomancista e tarotista da FE, em Buenos Aires na argentina

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borra escorra por suas paredes. Então, vira-se a xícara para a leitura. “Não há um padrão simbólico para os desenhos, como no tarô, por exemplo. O que existe é uma constante simbólica: animais, letras, números, figuras humanas. A interpretação vai de acordo com o conhecimento de quem está lendo”, explica Mirta. “Se você conhece a simbologia celta, por exemplo, a leitura será de acordo com ela”. A professora ainda destacou que, para a interpretação, dois aspectos devem ser levados em conta: conhecimento e intuição. “Qualquer um pode ler xícara. Todo ser humano tem intuição. O que difere é o conhecimento. Por exemplo, o desenho de um macaco pode variar no Ocidente e no Oriente”. Para Mirta, ainda, a cultura e o momento histórico influenciam na interpretação. “Imagine, por exemplo, que alguém fizesse uma leitura de xícara no século passado, aqui no Brasil, quando não existiam linhas ferroviárias, e um desenho de um trem aparecesse. A interpretação seria, na época, algo como uma ‘mudança excepcional’. Hoje, não”. Mirta relatou um caso real que aconteceu em 2001. Quando houve o ataque às Torres Gêmeas, nos EUA, um homem a visitou para que fizesse a leitura de sua borra de café. Ao virar a xícara, seguindo os pontos de orientação para a leitura, ela reconheceu um semblante familiar na área relacionada a finanças. “Eu fiquei olhando aquele rosto por um tempo. Era um homem barbudo com algo que parecia ser um turbante. Pensei na hora: parece o Bin Laden! Me dei conta de como certas figuras permanecem no inconsciente das pessoas refletindo o momento em que estão vivendo”.

Oráculo do interior

O café já foi motivo de citações por Napoleão, líderes da igreja católica e grandes escritores, como Honoré de Balzac, que desde cedo identificaram sua influência mental e

espiritual nos seres humanos. Descendo desses patamares em direção ao interior, a bebida é foco de diversas lendas de sorte ou azar. Em seu livro “História do Café”, Ana Luiza Martins destaca como ele interfere em nossas vidas, ultrapassando as barreiras do convívio diário e entrando no imaginário social, através de simpatias e lendas. “Desde sua descoberta, a Coffea arábica, nome botânico de um dos principais tipos de café, traçou novas rotas comerciais, aproximou países distantes, criou espaços de sociabilidades até então inexistentes, estimulou movimentos revolucionários, inspirou a literatura e a música, desafiou monopólios consagrados, mobilizou trabalhadores a serviço da Revolução Industrial, tornou-se o elixir do mundo moderno, consolidando as cafeterias como referências internacionais de convívio, debate e lazer”. Lendas como “beber café na xícara do marido dá sorte” e “se o café for torrado por uma pessoa com coração ruim, ele não rende e fica ruim”, são, então, explicadas: “Pouco se fala sobre estas crendices aqui na cidade grande, mas elas foram e ainda são muito fortes na zona rural e entre pessoas mais simples. Mesmo morando na cidade durante a vida toda, escutava muito e até acreditava nos rituais de sorte e azar. ‘Para ficar rica, tem que tomar café, sentada’, falava minha avó com voz de profetiza. Agora, aqui entre nós, sei que ela só queria minha companhia”. “Quando tu for na casa dela, lhe buscar, ela vai preparar café coado na calcinha, só pra lhe enfeitiçar”. Esse é o coro da música Xirley, de Gaby Amarantos, que carrega uma das mais conhecidas lendas relacionadas ao café conhecidas no Brasil. Ela já foi testada em programas ao vivo, como “Casos de família”, onde Christina Rocha coou café em uma calcinha e ofereceu ao operador de câmera, que bebeu a infusão. A lenda também já foi comentada nos bastidores de “Encontro com Fátima Bernardes”, da Rede Globo: “Sempre ensino para as minhas amigas. É colocar o café para coar em um calcinha e

depois dar para ele beber. Mas sempre digo para elas pensarem bem se é isso mesmo que querem, porque isso prende mesmo”, disse Gaby.

Onde tudo começou e onde também terminará

Na tradição judaica, como nas primeiras lendas, o café fortifica o corpo e o espírito. “Na vida espiritual e religiosa também é possível ficar cansado e desgastado por realizar sempre os mesmos deveres. Durante as preces diárias e o cumprimento de nossas obrigações, podemos nos tornar mecânicos, sem vitalidade e entusiasmo. Uma ‘pausa para o café’ espiritual, portanto, é necessária. Quais são os estimulantes espirituais que podem renovar a alma como o café renova o corpo?” O parágrafo, escrito por judeus adeptos à filosofia chabad-lubavicht para o site chabad.org, demonstra como os misticismos em relação ao café adaptaram-se a nossa realidade por necessidade. As primeiras cafeterias eram conhecidas como “Kaveh Kanes”, e apareceram pela necessidade de se tomar café de forma clandestina, já que a religião muçulmana proibia o consumo de bebidas estimulantes. Os Kaveh Kanes, com o passar do tempo, se transformaram em casas onde era possível passar o dia conversando, ouvindo música e bebendo café. Antes de conquistar o mundo, as cafeterias tornaram-se famosas no Oriente Médio por sua suntuosidade e por promover encontros informais de negócios e reuniões de lazer. A forte tradição ainda persiste de outra forma: as cafeterias são locais onde as pessoas se reúnem para discutir assuntos importantes ou jogar conversa fora. Mas o principal ingrediente continua sendo o café: o ato de bebê-lo e os misticismos em torno dessa ação transformaram-se em um ritual que sobrevive às transformações do tempo. o

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