Primeiros capítulos de Mesmo se a Tempestade Chegar

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PAULO PERA

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Parte I

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Capítulo Um Soulfly acordou em um quarto branco que, a princípio, não reconheceu.

A cama em que estava deitado também não parecia com aquela na qual dormia todas as noites.

O susto repentino por estar em um lugar desconhecido fez com que sua cabeça levantasse daquele travesseiro fino para observar o entorno. Então sentiu dor.

Começou no pescoço, nos primeiros músculos que moveu, e se espalhou por toda a cabeça, atingindo o pico de intensidade bem no meio do seu cérebro, como se enfiassem uma agulha nele. A dor foi tão instantânea que nem lendo a frase anterior na maior velocidade que conseguisse, seria possível chegar perto do tempo em que toda a ação se desenrolou. Além de rápida, foi intensa. Se ainda estiver tentando ler a frase com a maior velocidade possível, só poderia terminá-la quando os olhos de Soulfly já tivessem se fechado, espremidos com força, o maxilar tivesse forçado os dentes uns contra os outros ao ponto de quase trincá-los, e ainda não teria terminado a frase antes que a cabeça dele caísse novamente sobre o travesseiro sem mais forças nos músculos do pescoço.

A dor perdeu a intensidade, mas não se desfez. Ao contrário, aquela sensação dolorida pareceu despertar o corpo e agora as dores sentidas na cabeça estavam espalhadas por toda a extensão do seu tronco e membros. Respirou, encarou a dor e tentou a entender. Não conseguiu, mas pelo menos aprendeu a conviver com ela. Voltou a abrir os olhos e devagar levantou a cabeça, tentando usar os músculos do pescoço que doíam menos para poder olhar em volta. Paredes brancas, equipamentos médicos, pranchetas... Soulfly conseguiu desviar a dor para segundo plano assim que a adrenalina entrou em circulação. Apesar de ter visto seu nome na prancheta ao pé da cama, ele reconheceu que aquele quarto realmente não era seu. A respiração 7


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ficou mais acelerada, seguindo a frequência do seu batimento cardíaco e ele se sentou num instante. Olhou para os lados e não viu ninguém, nem mesmo na cama vazia que estava ao lado da sua. Mas viu uma porta logo atrás dela, no canto do quarto. Arrancou o acesso intravenoso que estava em sua mão e correu até lá. Ao abri-la, deu de cara com sua imagem no espelho do banheiro. Se aproximou da pia, sem desviar o olhar da própria face, tentando entender o que eram aquelas marcas escuras em seu rosto e por que tinha curativos na testa, na bochecha esquerda e no pescoço. Instigado pela curiosidade, levantou a mão para tocar uma daquelas manchas perto da orelha e sentiu uma ardência que o fez repelir a ponta do dedo no mesmo instante. Aquela nova sensação de dor colocou Soulfly novamente em contato com a realidade e ele percebeu que seus braços e outras partes do seu corpo também tinham aquelas manchas escuras e que elas ardiam como um ferro em brasa. — Soulfly?

Apesar de surpreendido pela voz feminina que o chamava, Soulfly se virou devagar, ainda encarando a pele de seus braços. Só quando estava frente a frente com a mulher, ele levantou a cabeça para encará-la com os olhos esbugalhados. A enfermeira Jane esperou uma resposta do homem, mas quando percebeu que não a obteria aproximou-se dele, esticando a mão para alcançar o braço queimado. — Que bom que acordou! — pegou o pulso de Soulfly com gentileza em uma das regiões menos machucadas e começou a puxar o homem novamente para a cama. — Meu nome é Jane e hoje estou cuidando de você. Agora você precisa deitar e descansar.

Soulfly, a princípio, obedeceu a enfermeira que o guiava, mas então estacou e voltou a olhar na direção do banheiro. A mulher sorriu.

— Não se preocupe. Você vai sentir vontade de ir ao banheiro, mas por enquanto está de sonda. Não precisa urinar enquanto estiver com ela. — Há quantos dias eu tô aqui? — ele perguntou, ainda sem voltar o olhar para a enfermeira.

A pergunta brusca não pareceu a surpreender. Ela buscou rapidamente na memória e respondeu: 8


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— Três dias.

No mesmo instante, o homem virou-se para ela com os olhos ainda mais saltados, quase implorando por uma resposta. — E Sara?

A enfermeira ficou assustada com aquela expressão, mas sabia que o paciente não podia fazer nada à ela no estado em que ele se encontrava. Também sabia que a cabeça dele devia estar uma bagunça. — Ah, a Sara? Veio te visitar todo dia para ver como você estava. — Então ela tá bem?

— Aparentemente sim. Não a conheço bem, mas não vi nada errado nela…

Soulfly sorriu como se não sentisse mais nenhuma dor. Forçou seu braço para baixo, soltando-o da mão da enfermeira que o guiava, e caminhou devagar, mas com firmeza, até a cama. — Ela veio hoje?

— Sim. Faz umas duas horas. Ela geralmente vem durante o horário de almoço. Soulfly deitou-se devagar, tentando minimizar a sensação das queimaduras e arranhões pelo corpo. — E quanto tempo eu vou ficar aqui?

— Agora que acordou, ficou mais fácil fazer uma avaliação do seu estado de saúde. Você parece bem, mas tem alguns ferimentos graves… — Não fale pra Sara que eu acordei, ok?

A solicitação foi recebida com estranheza pela enfermeira, mas ela não pôde mentir:

— Desculpe, mas precisamos informar para alguém que o senhor despertou. Não encontramos nenhum parente seu, então teremos que avisar ela, a não ser que nos passe o contato de outro familiar.

Soulfly pensou no seu amigo mais confiável, mas não sabia se lembraria do seu número de telefone ou endereço naquela situação. Decidiu barganhar:

— Só por um tempo, tá bem? Por favor. Eu preciso pensar um pouco antes de me encontrar com algum conhecido. 9


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A enfermeira aquiesceu e juntou suas mãos à frente do seu corpo em sinal de prontidão. — Tudo bem… Não está com sede? Não quer comer alguma coisa? O homem se virou sobre a cama dando-lhe as costas.

— Não, obrigado. Só quero ficar sozinho por um tempo.

— Tudo bem. Precisando, pode me chamar pela campainha.

Jane saiu do quarto despreocupada, deixando Soulfly na solitude que desejava.

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Capítulo Dois Muitos alunos foram discriminados por seus professores de Física quando demonstraram acreditar em alguns vídeos que rapidamente se espalhavam pela internet. “Isso é pura montagem!”, “Fruto de computação gráfica.”, “É fisicamente impossível!”, “Fake news!”, eram algumas das respostas dos docentes quando chamados a assistir. Não só eles, mas também cientistas, entidades públicas e governamentais, ignoraram os primeiros casos de uma suposta manipulação de energia que estava sendo feita por seres humanos.

Porém, os vídeos deixaram de ser exclusividade dos mensageiros e redes sociais e começaram a circular nos grandes portais de notícia quando pessoas passaram a perder a vida por causa desse assunto desconhecido e quase místico, forçando a polícia e os governos a abrirem investigações para que identificassem o que estava realmente acontecendo e quem seriam os responsáveis por tais mortes. Não precisaram ir muito longe, pois o grupo de pessoas que se autointitulava “Salvadores da Terra” não demonstrava intenção de se esconder. Agiam, inclusive, em plena luz do dia, tirando a vida de qualquer transeunte que cruzasse seu caminho quando eles decidiam sair às ruas com a justificativa de estarem protegendo o planeta. Os poucos integrantes que haviam sido presos pareciam tão lunáticos que nem os próprios companheiros os aguentavam, deixando que a polícia se encarregasse do assunto. Os outros fugiam, rindo da incapacidade policial. Isso porque uma das principais características dos Salvadores era a de usarem uma misteriosa energia, emanada de todos seus membros, uma espécie de campo energético que poderia funcionar como escudo. Alguns já tinham interrompido balas de calibre policial apenas com esse campo; e foi então que a polícia comum percebeu que não teria força suficiente para combater tamanha ameaça, sendo obrigada a criar uma divisão especial em conjunto com o exér11


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cito e as instituições de inteligência do país. Mesmo assim, os Salvadores ainda continuavam seu trabalho.

Muitas pessoas já haviam sido assassinadas por eles — e de quase todas as formas possíveis. Porém, nas últimas semanas, o número de mortes disparou, desesperando as autoridades locais. O aumento repentino de mortes se devia principalmente a nova habilidade que um dos Salvadores tinha desenvolvido: externalizar sua energia e dominá-la da forma que atendesse seus propósitos. Conseguir extrair a energia do corpo e lhe dar forma física custou muito trabalho e gerou um respeito tão crescente na comunidade dos Salvadores que agora a maioria dos companheiros o considerava seu líder do grupo. Assim que ele demonstrou o controle da energia condensada na palma da sua mão, ficou claro que nada mais poderia detê-lo. Tratava-se de Tadashi, um homem alto, com traços orientais, que sonhava com a paz na Terra, mas achava que para isso seria necessária uma guerra e o extermínio de grande parte da raça humana. E, graças a técnica desenvolvida, isso era o que Tadashi fazia de melhor. Sentia-se satisfeito derrubando prédios, viadutos e tudo que causasse morte em massa. Bastavam-lhe apenas alguns segundos de concentração e um pouco de energia canalizada para fora do corpo, pressionada em um ponto muito pequeno. “Apenas” seria força de expressão, já que esse trabalho era exaustivo fisicamente, e externalizar a energia do corpo deixava-o fraco, exigindo um repouso em seguida. Naquela tarde, depois de um descanso prolongado, Tadashi resolveu, arbitrariamente, que iria derrubar mais um prédio, e assim foi acompanhado, sem questionamento algum, por todos seus seguidores. Colocou-se em frente ao edifício escolhido de forma aleatória, mas que devia ter centenas de pessoas em seu interior naquela hora da tarde, e entrou em estado de concentração. A gritaria excitada de seus seguidores deu lugar a um silêncio assustador, quebrado apenas pelos sussurros de moradores conscientes de que a barulheira de segundos antes vinha de um grupo de Salvadores. Tadashi não se importava com o som do ambiente, pois conseguia se concentrar mesmo em momentos que para muitos seria impossível.

Já concentrado, em frente ao prédio, ele levantou as mãos com as palmas viradas para o céu e começou o espetáculo. Era esse o momento tão esperado por seus seguidores, que em silenciosa atenção tentavam captar cada detalhe do 12


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que estava acontecendo. Olhos bem focados e treinados conseguiam perceber a alteração da paisagem quando a energia começava a formar o campo em torno do corpo. Isso só poderia ser justificado por uma força tão poderosa que chegava a refratar os raios de luz que a atingiam. Porém, o show de verdade começava quando essa energia percorria rapidamente toda a extensão do corpo de Tadashi, se concentrando em uma pequena esfera opaca, do tamanho de uma bola de tênis, que flutuava sobre suas mãos. Alguns Salvadores gritavam de alegria, mas a maior parte deles sentia-se desrespeitosa e permanecia quieta. Era a ocasião especial, o momento sagrado em que Tadashi manifestava a energia que salvaria o planeta. A esfera translúcida, por vezes, mostrava um leve tom roxo. E parecia ser esse o ponto em que o nível ideal de energia drenada do corpo tornava-se efetiva para um ataque concentrado. Era quando Tadashi impulsionava seu braço na direção em que a esfera deveria seguir, da mesma forma como fez naquele instante, esticando seu membro na direção do prédio. A esfera não foi tão veloz quanto o movimento do braço, parecendo uma demonstração em câmera lenta para que todos pudessem ver e sentir a ansiedade aumentando. Embora lenta, assim que a esfera de energia tocou uma das colunas da base do prédio, uma grande explosão aconteceu.

O deslocamento de ar e sedimentos eram mais potentes a cada ataque e, dessa vez, quase todos os que acompanhavam o líder tiveram que fechar os olhos para não ficarem cegos. Em questão de segundos o prédio, com sua base completamente comprometida, começou a tombar. Todos os que não eram Salvadores assistiram a cena boquiabertos, não acreditando que aquilo poderia acontecer fora de um filme de ficção. Porém, nas últimas semanas, essa mesma ação se repetia quase todo dia e o medo já havia se espalhado e se tornado tão comum que muitas pessoas já se acostumavam com a ideia de que pudessem morrer a qualquer momento em um dos ataques do grupo. Pairava uma sensação de guerra, em que várias tinham deixado, inclusive, de ir trabalhar, aterrorizadas com a ideia de serem atacadas na rua ou em seus locais de trabalho, longe da família. Mesmo sem demonstrar, Tadashi ficou incrivelmente cansado após o ataque. Sua respiração ofegante disfarçava-se no meio da gritaria de comemoração 13


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de seus seguidores e das pessoas correndo desesperadas de pavor. Um de seus homens se aproximou e disse: — Eles estão vindo!

Tadashi não tirou o olhar carregado de malícia do prédio, que agora era apenas um monte de concreto, tijolos e aço retorcido por cima de eletrodomésticos quebrados, carne, sangue e ossos. — Eles que se fodam!

O colega, conhecendo o estado do líder depois de um pico de adrenalina como aquele, colocou a mão em seu ombro de forma tão receosa quanto um cachorro pedindo desculpas e guiou Tadashi para fora dali. Sabia que se não fizesse isso, as coisas se complicariam depois. Quem estava chegando era a divisão especial contra os Salvadores. DTI era a sigla que utilizavam, mas ninguém nunca havia explicado seu significado. O mais provável era que tivesse sido adotada de algum projeto como “Divisão Temporária Interna” e acabou se tornando o nome oficial, uma vez que a urgência pedia para que todos se esforçassem ao máximo para pensar em maneiras de acabar com aquele terror nas ruas ao invés de ficar pensando em nomes bonitinhos para divulgar na imprensa. Mas, mesmo com a celeridade empregada, não chegaram a tempo de alcançar Tadashi e seus seguidores. ❖

Poucos minutos depois, a enfermeira Jane entrou apressada no quarto de Soulfly. Trazia uma grande bolsa na mão e dirigiu-se diretamente para um dos monitores de frequência cardíaca que estava desligado. A prancheta do paciente estava logo abaixo da tela apagada e a mulher a agarrou com pressa, tirando a caneta presa em seu topo e começando a marcar uma informação qualquer no papel. — Soulfly, eu vou ter que sair mais cedo — a voz da mulher era tão urgente quanto seus movimentos. — Logo vão remanejar uma nova enfermeira para te atender ou vão pedir para a Tommy vir antes. Qualquer problema que você tiver nesse tempo, pode chamar o médico de plantão. O nome dele é Max. Soulfly tinha visto Jane apenas duas vezes, e na primeira praticamente a ignorou por completo. Mas pressentia algo bom naquela mulher. Ela se impor14


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tava com ele de verdade, era algo bonito, o que alguns profissionais da saúde chamam de “amor à profissão”, mesmo que poucos na área médica sigam essa frase com verdade. Aquela mulher parecia segui-la e, talvez por isso, Soulfly tenha se importado com ela quando a viu naquele estado. — O que foi que aconteceu?

— Aconteceu alguma coisa no prédio que moro e meus filhos estavam lá. Preciso correr. Meu marido não conseguiu dizer muita coisa, mas tem algo com explosão… Não sei… Tô preocupada, mas não adianta ficar pensando e criando paranoia na minha cabeça. — A mulher largou a prancheta e já estava saindo pela porta. — Tomara que… Deus me livre! É melhor nem pensar nisso!

A porta do quarto se fechou e Soulfly percebeu por que estava se importando com a enfermeira daquela forma. Era mais do que só compaixão ou empatia. No fundo ele sabia que sua curiosidade era a principal responsável. Ele só queria confirmar que aquele sentimento de desespero que ele já tinha visto pelas ruas algumas vezes se devia ao que realmente estava pensando. — Tadashi!

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Capítulo Três Já era final da tarde quando uma mulher entrou no hospital público da cidade. Estava bem arrumada, com um sobretudo bege que quase alcançava seus pés devido a sua baixa estatura. Carregava sua bolsa em um dos ombros e nenhuma expressão no rosto tapado por óculos escuros. Caminhou com confiança até o balcão da recepção. — Vim visitar Soulfly Cavalera, quarto 31.

A mulher foi liberada após um “boa tarde” com toque de educada ironia lançado pela recepcionista do hospital. Ela subiu as escadas e no último degrau encontrou Max, o médico de plantão, caminhando pelo corredor. Ele a reconheceu. — Achei que só viesse ao meio-dia…

Ela hesitou em responder, mas reconheceu que sua intimidade com o médico era maior do que com a recepcionista e representaria uma falta de educação muito mais expressiva ignorá-lo. Mesmo assim, respondeu-lhe com secura: — Saí mais cedo hoje.

A porta do quarto 31 era uma das mais próximas da escada, assim que dobrava o corredor para o lado esquerdo. A mulher caminhou em sua direção e a abriu, já lançando seu corpo para dentro antes que o médico decidisse lhe falar mais alguma coisa. Porém, ainda antes de fechar a porta, ela paralisou. Soulfly não estava na cama. Imaginando que o homem estivesse em alguma parte do quarto ou até no banheiro, ela repetiu o chamado que a enfermeira Jane havia feito mais cedo: — Soulfly?

Não houve nenhuma resposta e isso a fez mergulhar de vez no quarto. O medo e a dúvida com a possibilidade de encontrar o homem acordado a fez 16


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esquecer de fechar a porta. Encaminhou-se para o banheiro, a única área que ela não tinha entrado, abriu a porta e… Vazio.

— Mas que caralho!

Virou-se bruscamente em direção à entrada aberta e viu Max passando pelo corredor, observando-a como se procurasse seu olhar. — Tudo bem aí? — perguntou o médico, com um leve sorriso no rosto quando percebeu o olhar da mulher no seu. — Onde está o Soulfly?

O sorriso do médico se fechou com a surpresa. — Ué, ele não está na cama?

— Ele não tá em parte alguma…

Max entrou no quarto, olhando para todos os lados. Deu uma rápida espiada para a porta do banheiro que se mantinha aberta, mesmo sabendo que a mulher tinha saído de lá segundos antes. Só havia uma forma de explicar o que tinha acontecido ali. E ele já tinha visto o que estava errado. — Ele não foi levado para outro quarto? — disse Sara.

— Na verdade, não. Pelo menos não aqui… — Max apontou para a janela. — Essa janela nunca é aberta, justamente pelo que há embaixo dela. Se aproximaram e olharam para baixo. Puderam ver que havia parte de uma laje que se conectava ao muro vizinho. A distância para uma pessoa percorrer da janela até a rua dos fundos do hospital era de cerca de trinta metros e não demoraria um minuto para que alguém saísse do hospital por ali. — Se soubessem que ele poderia fugir, não teriam deixado ele nesse quarto — o médico afirmou. — Ele tem algum problema com hospitais? — Não sei.

— Achei que o conhecesse bem… — Não mesmo!

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Capítulo Quatro A destruição tinha tomado conta de parte do quarteirão atacado por Tadashi. O edifício desabou, atingindo prédios vizinhos, casas do entorno, comércios e os carros na rua. Ainda não era possível saber ao certo quantas pessoas haviam sido mortas ou que estivessem feridas, mas era perceptível que o número era grande somente observando o estrago e a quantidade de pessoas que se acumulavam em torno da área cercada, em busca de informações sobre parentes ou conhecidos. As pessoas choravam desesperadas por terem perdido suas moradias e possivelmente alguém importante que estivesse dentro delas. Soulfly já sabia quem era o responsável pelo fato assim que Jane contou sobre o acontecido, ainda no hospital, mas queria ter a confirmação. Por isso foi até o local mesmo com seu avental de paciente. Não se importava com isso naquele momento. A confirmação que procurava veio assim que ouviu os primeiros comentários: — … um japonês…

— … bola de energia… — … Explodiu tudo… — … Salvadores…

Salvadores… Esse nome perturbava Soulfly. Um adjetivo bonito que tinha se tornado um substantivo próprio para terror, destruição e, nos últimos tempos, também a morte.

Cada vez que ele ouvia essa palavra tinha vontade de gritar, na tentativa de expulsar a agonia que sentia. Uma mistura de várias emoções, entre elas a raiva, que só fez aumentar quando viu a enfermeira Jane ao lado de um carro do corpo de bombeiros, ainda vestindo o uniforme do hospital e com a bolsa que saiu carregando do quarto minutos antes. Não estava sozinha, o carro dos bombeiros estava cercado de vários outros moradores da região. Ela tentava sair 18


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do meio da multidão, mas não tinha forças para enfrentar a grossa parede humana que a empurrava novamente para o centro daquela confusão. Na verdade, ela nem parecia se esforçar para sair daquele lugar. Aparentemente já tinha recebido toda a informação que estava disponível no momento: “Por enquanto não sabemos sobre mortos e feridos. Logo avisaremos sobre os locais de divulgação dos nomes encontrados. Tenham calma e aguardem” ou qualquer merda assim. Só podia esperar. E chorar. Assim como ela fazia, sem nem pensar em se mover, deixando que a turba a carregasse até o momento que estivesse livre novamente. Soulfly pensou em ir até ela, mas para quê? Para lembrar que os filhos dela estavam nos escombros? Claro que era uma coisa que ela não conseguiria deixar de pensar no momento, mas precisava ele ir lá reacender isso? Sentiu-se insensível depois que viu um homem, que deveria ser o companheiro de Jane, aparecendo e abraçando-a, ajudando-a sair do meio daquela multidão. Talvez ele não precisasse falar nada, só ter ajudado ela a se livrar daquela confusão e lhe dar um abraço já teria sido o suficiente para diminuir o desespero. Lembrou-se de Sara e seu jeito frio de lidar com as outras pessoas. Lembrou-se também de Tadashi e a forma maldita que ele tinha de não se importar com vidas e sentimentos alheios. Não se sentiu mais tão frio quando se comparou a ele. Agora, já tendo a confirmação do responsável por aquilo, Soulfly foi embora. A confusão em sua cabeça era enorme. Ele seguiu caminhando, remoendo todo o ódio que carregava no peito. Queria ter encontrado Tadashi ainda no ponto de destruição, mas havia chegado tarde demais. Até mesmo o pessoal da DTI já não estava mais lá. “Por que eles são tão inúteis a ponto de não conseguirem parar uma coisa dessas?” ele se perguntava. A confusão de sentimentos era o que impulsionava seus passos por um caminho automático e, quando percebeu, estava na rua de sua casa. Não era aonde queria ir, mas ainda assim era parte do caminho para o seu objetivo. Quando conseguiu se desligar um pouco dos infinitos pensamentos que preenchiam sua mente, percebeu que estava frio. Não se importava com isso, mas uma pessoa andando em trajes de hospital pela rua, perdido em pensamentos, no meio de um fim de tarde gelada, poderia levar os outros a pensarem que era um maluco. Ele não era maluco. Só estava maluco, uma condição momentânea. Melhor evitar que os outros soubessem.

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Subiu os degraus até seu apartamento e descobriu que a porta de entrada estava aberta. Arrombada, para ser mais exato. Em dias normais aquilo ligaria um sinal de alerta na cabeça de Soulfly, mas depois que começou a subida daquela escada, sua mente voltou a ficar abarrotada de informações, fazendo seu eu automático apenas seguir o objetivo programado ainda na rua em seu pequeno momento de lucidez: colocar uma roupa mais adequada. Passou pelos móveis e objetos espalhados pela casa revirada sem se dar conta deles, direto para o guarda-roupa. Vestiu-se. Pegou uma pequena manta que estava jogada em cima da cama e colocou sobre os ombros. Então, voltou para a rua. ❖

Algumas horas se passaram e o dia, que se tornava cada vez mais frio, transformou-se em uma noite gelada. Soulfly estava agachado e escorado no muro em frente a uma casa, ao lado do pequeno portão de entrada. Valeu-se da manta para cobrir o corpo todo. O cansaço quase o desmaiava, mas ele resistia. A moça que foi visitá-lo no hospital passou à sua frente sem dar atenção, abriu o portão enferrujado e seguiu em direção à porta da casa. O pequeno ranger do portão se fechando despertou Soulfly dos pensamentos que começavam a se encaixar. — Sara? — ele perguntou.

A pergunta a fez parar. Pareceu a ela que o mendigo ao lado do portão a havia chamado. Mas como ele poderia saber seu nome? Ele a conhecia? Poderia ser o morador de rua que ela ajudava esporadicamente, embora não se lembrasse de ter dito seu nome a ele. Pelo menos não enquanto estava sóbria. Talvez fosse legal ter alguém com quem desabafar naquele dia caótico. O homem se levantou detrás do pequeno muro e ela percebeu, pelos seus movimentos e na forma de andar entrando pelo portão, que não se tratava daquele morador de rua. — Ah, é você…

— Vim te dar a oportunidade de agradecer.

Sara tremia. Apesar de sentir alguma raiva, o tremor ainda era pelo nervoso que tinha passado, imaginando encontrar outra pessoa. Era mais aceitável conversar com qualquer outra pessoa do que com Soulfly. 20


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— Deveria agradecer também se eu desejasse ter morrido naquele momento? — Você nunca desejaria morrer. Sara sorriu com desdém.

— Como você pode ter tanta certeza?

Soulfly olhava para aquela mulher e quase ficava sem reação. A forma grossa com que ela falava, tentando afastar as pessoas, davam um tom sexy as suas palavras. Talvez ela não percebesse isso, mas era algo que acontecia com frequência. Ou talvez ela soubesse e gostasse de passar essa dupla impressão para causar confusão em seu interlocutor. Se concentrou no que realmente precisava e finalmente respondeu: — Me convide para entrar que eu te conto…

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Capítulo Cinco Dr. Max caminhava pelo corredor do hospital quando encontrou Igor saindo de um dos quartos. Igor era um rapaz magro de cabelos cacheados, compridos e lambuzados com gel, que trabalhava em uma das recepções do hospital, mas que, com o sumiço do médico, foi obrigado a sair à sua procura. — Aí está você, doutor. Estava te procurando…

— Ninguém morreu na minha ausência, né? — disse o médico despreocupado em tom irônico

— Não senhor, mas estão procurando o senhor. E como nenhum dos enfermeiros sabia onde estava e não atendia o ramal em sua sala, ficamos preocupados, sem saber onde o doutor estava. — Não se preocupem. Estou bem. E se todos estão bem, está tudo bem também. — Levava um sorriso contido no rosto, como quem guarda um segredo e tem vontade de contar. — Sabe, eu estava um pouco ocupado… com aquela garota baixinha que vem visitar o cara do 31. — A Sara?

Max ficou surpreso por Igor saber o nome dela. Tudo bem que faz sentido, afinal ele trabalha na recepção e, se ela foi atendida por ele em algum momento, natural que ele visse seu nome. Mas são tantas pessoas que passam ali por dia… Enquanto Igor continuava falando sobre a moça, Max descobriu porque o nome ficara gravado na mente do colega: — Ele é muito gata!

Max sorriu com orgulho, estufou levemente o peito e continuou andando. Igor estava confuso. — Eu não acredito! Ela vem ver o namorado e você pega ela? — Eles não são namorados.

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Mesmo com a voz baixa enquanto caminhavam pelo corredor, Igor demonstrava pelo tom de voz a empolgação com aquela história. — Nossa, eu jurava que eram. O jeito que ela se importava com ele… Irmãos não eram, não tem o mesmo sobrenome até onde eu lembre… Amigos? Ele é amigo gay dela?

— Sei lá o que eles são. Ele salvou ela de um ataque daqueles Salvadores. Se jogou na frente e tudo… O que importa é que ela quis dar para mim. O cara, o amigo gay dela ou sei lá o que, foi embora e ela quis aliviar a tensão. — Caralho, e como ele não morreu com o ataque?

Max soltou o ar com decepção. Esperava que o colega perguntasse mais sobre os detalhes de sua vida sexual, mas ao invés disso ele lhe perguntava sobre um homem que ninguém queria saber. — Não sei. Sorte, talvez…

Andaram mais alguns passos em silêncio, mas Igor não queria perder a oportunidade de continuar conversando com uma das pessoas mais importantes do hospital e esforçou-se para manter essa chama acesa:

— Cara, que foda. O homem vai lá, praticamente se sacrifica pela mulher e você vai e come ela. Hahahahaha. — Deu uma leve cotovelada no braço do médico. — Não sabia que você era desses, doutor. Onde foi? Satisfeito e com o sorriso de volta no rosto, Max respondeu:

— Na farmácia. Lá nos fundos do depósito. Fiquei até agora arrumando as coisas que ela derrubou lá. Achei que fosse derrubar o hospital inteiro! Igor deu mais uma cotovelada de leve no médico e uma risada contida. — Hahahaha. Boa, doutor!

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Capítulo Seis A chaleira no fogão começou a apitar com o vapor da água fervendo. Sara a pegou e despejou o líquido no coador de café, posicionado sobre a garrafa térmica. Ela se considerava viciada nessa bebida e, mesmo tendo acabado de voltar para casa tomando o café que tinha comprado na máquina do hospital, não conseguiria fazer outra coisa antes de tomar pelo menos mais um gole.

Sentado no banco alto em frente ao balcão onde havia comido dias antes, Soulfly acompanhou atentamente o ritual da mulher. Ela realizava cada etapa do processo em completo silêncio, e ele já sabia que era assim que as coisas funcionavam. Respeitando essa quietude desconcertante, ele apenas a observava, enquanto captava os sons do líquido, do fogo crepitante, da água fluindo para dentro da garrafa térmica e dos grilos lá fora. Sentiu-se feliz e satisfeito vivendo aquele momento. Pronto o café, Sara serviu-se de uma grande xícara e deu um primeiro gole no líquido preto. A expressão que fez foi a de que a bebida não estava tão satisfatória quanto esperava. Pegou uma xícara menor sobre o escorredor de louças e colocou-a na frente de Soulfly. Depois levou a garrafa térmica até ele. — Você tá bem?

A pergunta foi feita sem que olhasse nos seus olhos. Ele sabia que seria assim, ela não gostava de expressar sentimentos. Ela havia, propositalmente, evitado mostrar a satisfação de tomar seu próprio café, e agia da mesma forma com qualquer coisa, seja qual fosse a ocasião. Quando demonstrava algo, geralmente era raiva e desprezo, mas ele sabia que, lá no fundo, isso tudo era uma máscara que ela usava para ocultar outras emoções.

— Estou bem dolorido ainda — torceu o pescoço para o lado e o movimento fez o som de um grande estalo se espalhar pela casa. Sara reagiu desta vez,

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mas em desaprovação ao barulho agoniante. — Mas estou bem. Caminhando normalmente, com voz, com todos os ossos inteiros. Eu acho… — Por que fugiu do hospital?

Soulfly não sabia responder àquilo. Ele não tinha a menor noção do porquê tinha tomado essa decisão. Seu interior estava bagunçado e sua sanidade comprometida. Tudo que queria era abraçar Sara assim que acordou, mas, ao mesmo tempo, tinha medo do que aconteceria quando a encontrasse. Não sabia qual seria o sentimento que se sobressairia enquanto ainda rolava na cama do hospital. Ira, vingança, amor, paixão, vergonha, desprezo… E o quarto. O quarto não ajudava. Era pequeno, paredes limpas, móveis e equipamentos intimidadores. Apenas uma janela por onde entrariam mais algumas horas de luz natural e por onde poderia observar a paisagem dos fundos de casas e prédios, tão parada quanto a de um quadro. Sara só viria no dia seguinte, Tadashi estava à solta, fazendo seus ataques e provavelmente não lhe dariam alta tão pouco tempo depois de ter despertado de um coma ou algo assim. Não chegou a uma conclusão definitiva sobre o motivo de fugir do hospital, mas tinha certeza de que foi a melhor decisão que tomou. — Eu estava preocupado com você.

Sara o encarou, com parte do rosto oculto atrás da xícara, enquanto se servia de mais um grande gole de café sem açúcar. A expressão carregava incredulidade e seu normal desprezo. Seguindo a xícara, seu olhar se abaixou e ela se sentou na banqueta alta ao lado de Soulfly. — Eu tô bem. Não precisa se preocupar. Você que foi atacado…

Ela tocou na mão de Soulfly com gentileza. Foi a maior manifestação aberta de carinho que ele a viu fazer. Quando ele tentou segurar a mão dela sobre a sua, ela retirou com certa aspereza.

Era esse o momento que ele temia. O momento que iriam começar as perguntas, um interrogatório no qual ele não se sentiria à vontade dando todas as respostas. Mas era necessário. Apesar da inteligência da mulher, ela ainda não percebia que corria perigo. — O ataque não foi para mim, Sara. Ele era para você!

Ela desmontou a expressão de desinteresse. Soulfly sabia que seria assim. Quando algo era realmente interessante e dizia respeito somente sobre a 25


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própria vida, ela não tinha vergonha de demonstrar que aquilo chamava sua atenção. — Como assim?

— Você não vai me odiar se eu contar?

Ela se levantou bruscamente, pegou a xícara de café e começou a andar pela casa. — Ah, vai tomar no cu! Vai ficar fazendo esse suspense de merda? Se você fez uma grande merda, é claro que eu vou te odiar! Vou te tirar daqui de dentro a chutes! Então se for uma grande bosta, não precisa nem falar nada e só vai embora antes que eu tenha que fazer isso! Ela colocou a xícara na boca mais uma vez. Soulfly percebeu que ela estava tremendo e tentou controlar a situação:

— É que é algo que envolve você. Sua vida. Acho necessário que eu te conte.

A xícara ainda cobria seu rosto, impedindo que Soulfly conseguisse avaliar qualquer expressão que denunciasse o que passava pela cabeça de Sara naquele instante. Seguiram alguns segundos de silêncio antes que ela abaixasse a xícara e quase gritasse com ele: — Fala logo de uma vez então, porra!

Soulfly sorriu. Tinha se assustado com aquela frase repentina, mesmo prevendo que ela viria a qualquer momento. Olhou sobre o tampo do balcão enquanto pensava por onde iniciaria. Não queria começar pelo pior ponto, ou em poucos segundos ele realmente estaria fora daquela casa, expulso a pontapés, ou até por coisas piores. — Eu tenho te seguido. Não por onde tem andado. Pelo menos não sempre… — serviu sua xícara de café, achando que aquilo talvez pudesse mostrar que ele iria se manter ali até que a conversa terminasse. — Fiz umas buscas sobre você na internet — sorriu com vergonha e deixou de olhar nos olhos dela. A expressão vazia dela o assustava. — Sim, fui um stalker, mas não só nas redes sociais. Fui mais a fundo. Você é muito fechada e eu queria saber mais sobre você. Eu precisava saber se você poderia se encaixar nos meus planos de futuro e eu não tinha muito tempo para isso…

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MESMO SE A TEMPESTADE CHEGAR

Sara continuava encarando Soulfly. Ele só pôde ver a expressão fechada e raivosa da mulher quando voltou a erguer o olhar. — E o que foi que você andou pesquisando sobre mim?

— O complicado — ele engoliu em seco — não foi bem o que eu pesquisei, mas o que eu descobri. E acho que isso é algo que pode te trazer problemas em breve. Claro que depois dos problemas que eu já trouxe pra você.

— Como assim? Fala de uma vez, porra! Tá pensando que falando devagar assim vai se safar? Se você não contar o que fez de pior do que me stalkear, e não me contar exatamente o que você acha que descobriu sobre mim no próximo minuto, eu vou te colocar para fora e chamar a polícia! Ele a encarava embasbacado. Ela esbanjava beleza quando ficava brava daquele jeito. Ainda mais linda do que nas raras vezes em que sorria. Ele não queria estragar aquele momento com as próximas coisas que precisaria dizer. Ficou apenas em silêncio observando-a com cara de bobo. — Vai embora! — ela pegou a xícara que tinha largado sobre a mesa e virou de costas para Soulfly, seguindo em direção ao quarto. — Eu não quero mais falar com você hoje! — ela desapareceu pelo corredor e pouco depois gritou lá do fundo da casa, provavelmente já dentro do quarto. — Não quero ouvir a sua voz! Mas quero seu corpo!

“Filha de uma puta!” era o único pensamento que passava na cabeça de Soulfly sobre aquela mulher. Ela sabia que aquele convite seria irrecusável, mas ele precisava contar tudo ainda naquela noite. Era urgente. Porém, se contasse, nunca mais ele iria receber aquele convite. Nunca mais ele ouviria a voz dela, a não ser em gravações. Ficou nesse dilema interno por alguns segundos e então se decidiu. A segurança dela em primeiro lugar. Levantou-se da banqueta e foi em direção ao corredor falando alto, tentando amansar a fera antes que ela o atacasse assim que ele entrasse no quarto. — Escute, Sara. Acho que isso é mais important--

Então tudo explodiu. O teto e as paredes foram literalmente para os ares. Em meio ao apito agudo que tocava no ouvido de Soulfly, ele conseguiu ouvir que algumas coisas tornavam a cair do céu sobre os escombros, junto à estrutura base da casa, acumulando-se entre os móveis mais resistentes, que começavam a ser consumidos pelo fogo. 27


PAULO PERA

— Sara?

Estava preso embaixo de uma parede e uma viga da estrutura do telhado. Tentou agarrar aquilo para tirar de cima de si, mas suas mãos não alcançavam nenhuma ranhura em que pudesse apoiar os dedos. Seu corpo já estava fraco demais desde que tinha acordado no hospital e aquele novo acidente drenou ainda mais suas energias, fazendo com que elas se deslocassem até as partes do seu corpo mais necessárias para protegê-lo de qualquer grande ferimento ou até mesmo da sua morte. “Acidente”, sua mente riu daquela palavra. Era outro ataque, tinha certeza. Aquela explosão, que vinha concentrada em um ponto específico e espalhava grande quantidade de energia para todos os lados de uma só vez, tinha uma origem. A mesma origem que derrubou o prédio onde morava a enfermeira Jane. O problema era que ali Tadashi não estava atacando aleatoriamente. Ele sabia exatamente o que queria destruir. — Saraaaa!!!

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Capítulo Sete Era desesperador. Tão desesperador que Soulfly não conseguia se concentrar e raciocinar na tentativa de sair debaixo dos destroços. Seu ouvido zunia e em alguns momentos ele podia ouvir vozes ao fundo. Bem ao fundo. Mais próximo percebia um barulho específico, que ele não conseguia lembrar o que era. Usava a força bruta, sem pensar em qual seria a melhor maneira, ou a maneira mais fácil de se livrar daqueles escombros. Tentou se virar, empurrar, chutar. Só gastava energia à toa e se machucava ainda mais, sem perceber as dores infligidas, a adrenalina nunca esteve em um nível tão alto dentro do seu corpo. Era apenas essa adrenalina que o mantinha acordado e com o corpo em funcionamento. Ouviu outro som no meio do zumbido. Um som bem característico, mas não conseguiu relacionar com qualquer coisa que se recordasse. Só pensava em Sara, se ela estava bem, se Tadashi estava segurando-a pelos cabelos. Mas, então, uma sinapse cerebral ligou som a imagem: fogo. Era o som de labaredas crepitando. Algo pegava fogo à sua volta e ele não conseguia fazer nada. — Saraaaa!

Sua voz quase não saiu no meio do sangue que escorria de dentro da sua boca. Não era um bom sinal. Quando inspirou o ar novamente, engoliu fumaça e deu tossidas involuntárias que tiraram todas as energias que lhe restavam para que continuasse a sobreviver naquela situação. Porém, seu chamado por Sara, por mais baixo que tenha sido, despertou a atenção dos vizinhos e transeuntes que se aglomeravam em frente à casa destruída, e assim alguns se aproximaram. Em três, conseguiram livrar os escombros que esmagavam Soulfly contra o chão. — Você tá bem? — disse uma das mulheres que havia ajudado no resgate, ajoelhando-se ao seu lado e olhando nos olhos. 29


PAULO PERA

Soulfly sentiu-se livre, conseguiu inspirar mais profundamente enquanto o vento levava a fumaça para outro lado. Sentou-se e, mesmo com o corpo fraco, se levantou , sussurrando o nome de Sara. A mulher que tinha o ajudado censurou, mas ele não deu atenção a mais nada. Estava obstinado. — Senhor, fique aqui. Você vai acabar se machucando ainda mais se continuar se mexendo.

Soulfly pensou em soltar um profundo “foda-se”, mas não tinha tempo a perder com aquilo. Da sua boca só saía o nome de Sara, em intervalos de uma respiração completa a cada chamada. Arrastava uma de suas pernas que parecia quebrada e estava coberto por sujeira, suor e sangue que se misturavam em uma massa cimentícia, dando a ele a impressão de um zumbi atrás de cérebros que se chamavam “Sara”. Os três que o salvaram ficaram parados, olhando impressionados como aquele homem ainda conseguia andar.

Soulfly tropeçou algumas vezes enquanto seguia até o lugar onde achava que, minutos antes, existia o quarto de Sara. Caminhava em direção à cortina de fogo sem se importar em se queimar. Seu único desejo era atravessá-la, não interessando de onde deveria ter surgido aquele incêndio… um botijão de gás, um produto inflamável, qualquer coisa que poderia reagir e incendiar quando exposta à explosão de energia do Tadashi deveria ser a responsável por aquilo. Porém, caminhando a esmo e com o foco em outra questão, ele não pensou nem se aquele fogo poderia alcançar algum outro produto inflamável que aumentasse o incêndio, e piorasse ainda mais as coisas. Lançou-se trôpego sobre a cortina de fogo e não sentiu nada. Nenhuma dor, nenhuma queimadura. Não sentiu nem suas roupas chamuscarem. O grito baixo vindo de sua garganta não era de dor, era apenas de fixação com o seu objetivo, que parecia estar alguns metros à frente. Nunca soube dizer se aquele momento passou rápido demais ou extremamente devagar. Foi como se estivesse em um mundo à parte enquanto atravessava o fogaréu. Assim que começou a ver as imagens do que havia do outro lado, distorcidas pelo fogo, seu desespero ficou ainda maior. Não tinha reparado em quão destruída estava a área frontal da casa, de onde ele havia partido, mas os fundos, onde deveria existir um quarto com uma mulher linda, lembrava a imagem de um prédio que acabara de ser demolido. 30


MESMO SE A TEMPESTADE CHEGAR

— Sara!

Saiu das chamas sem dor, sem fogo nas roupas ou no cabelo. A crepitação se afastava à medida que ele se enfiava no meio dos novos escombros à procura de algum sinal de Sara. Desesperado, chutava pequenas pedras, levantava pequenos pedaços de concreto e grunhia. Ao longe começou a ouvir sirenes. Não sabia dizer se a luz bruxuleante era apenas do fogo ou se agora se misturava com o giroflex dos carros de serviços públicos que pareciam ter chegado. Ouviu vozes se aproximando, mas não parou. Continuou revolvendo os destroços até que foi interrompido por um policial: — Senhor, você precisa ir até a ambulância. Eu te levo. Nós continuamos a procura para você. Tinha mais alguém na casa?

— Sara — disse Soulfly, não respondendo ao policial, mas ainda continuando a balbuciar aquele nome. — Venha, nós vamos procurá-la. Mais alguém?

— Sara — ele ainda não dava atenção ao policial, remexendo em coisas que encontrava empilhadas sobre o chão. — Venha, senhor. Aqui é perigoso. Você precisa de atendimento urgente!

Com um puxão em seu braço, Soulfly se libertou da mão do policial e continuou sua busca débil e lenta enquanto os outros policiais remexiam com pressa todo aquele entulho e pediam pelo rádio reforços com cães farejadores.

O vento se intensificou e quase apagou a cortina de fogo que havia bem no centro da antiga casa de Sara. O barulho e o canhão de luz potente denunciaram que aquele vento não era natural, mas que vinha de um grande helicóptero. O helicóptero da DTI. A divisão especial que caçava os Salvadores. Já deviam saber que aquilo se tratava de um ataque daquele a quem procuravam, e chegaram ao local o mais rápido possível.

Soulfly continuava não dando importância ao que acontecia à sua volta. Apenas queria encontrar Sara. Já não tinha mais energias e o corpo parecia se movimentar por si só quando foi abordado por um dos policiais da DTI vestido inteiramente de preto. — O senhor está preso!

E tudo ficou escuro para Soulfly. 31


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