jornal OcicerO - edição #3 - especial verão

Page 6

6 – OcicerO – edição três – março 2014

victor britto

Recife quente

Premiado e reconhecido, o cinema de Pernambuco experimenta do árido ao frio, do céu azul ao preto e branco. por paulo silva jr. O senhor faz cinema pernambucano?, ouve Marcelo Gomes desde sempre, digamos que com maior difusão midiática desde que chegou a Cannes em maio de 2005 com seu primeiro longa na direção, Cinema, Aspirinas e Urubus, aquele que narra o encontro de Johann, alemão que foge do clima de guerra em 1942 para rodar o sertão vendendo o medicamento, e Ranulfo, nordestino que planeja tentar a vida no Rio de Janeiro. “E eu dizia que se você falar em cinema brasileiro, você está falando de Zé do Caixão, Meirelles, Glauber ou Padilha? É impossível delimitar isso num gênero. Imagina então levar isso ao cinema pernambucano, que está construindo uma nova tradição. Eu falei então que se eu tivesse fazendo um cinema pernambucano eu ia me sentir uma tapioca daquelas servidas em Olinda, um prato típico que você consome e tem um tempero específico”, diz o diretor recifense, direto

da Europa, ao atender OcicerO por telefone pouco antes de embarcar para Berlim, onde apresentou em fevereiro O Homem das Multidões, parceria com o mineiro Cao Guimarães. À época, Aspirinas venceu o Prêmio Educação Nacional no festival francês, onde o governo local seleciona um filme para rodar as escolas do país, e se tornou o primeiro nacional a vencer o prêmio máximo de melhor filme da Mostra Internacional de São Paulo, além de diversos outros títulos e menções em exibições dentro e fora do Brasil. E acirrava o debate em torno dessa posição de cinema com uma cara local, no caso, pernambucana. “Ranulfo é um sertanejo que tenta escapar do sertão para sobreviver. Mas não é o personagem-arquétipo dos filmes sobre o Nordeste. (…) Desde que Nelson Pereira dos Santos e Luiz Carlos Barreto, sob a influência de José Medeiros, reinterpretaram a luz brasileira em Vidas

Secas, não se via uma tradução tão orgânica do calor e da aridez do sertão no cinema. Sente-se na pele como é viver naquela geografia. Da mesma forma, os não-atores que contracenam com os dois personagens centrais adensam a trama e ajudam a torná-la específica”, escreveu o cineasta Walter Salles, de Central do Brasil e Linha de Passe, em crítica publicada no jornal Folha de S. Paulo no final de 2005. Ao mesmo tempo, Ranulfo, ou melhor, o ator João Miguel (de Cidade Baixa, Estômago, Era Uma Vez Eu, Verônica, entre outros) falou sobre o mesmo tema em reportagem do mesmo veículo. “Tenho orgulho de fazer um filme que não traz um sertão caricato, que não traz um sertão cartão-postal. É vivido no sertão, mas conta a história de dois homens”. Nesse contraste, o calor nordestino não passa despercebido. Aspirinas foi filmado entre nove da manhã e três da tarde, debaixo de um sol fortíssimo, praticamente

sem nuvens. Marcelo Gomes chegou a brincar que iria demitir o diretor de fotografia Mauro Pinheiro Jr. caso ele fizesse um filme cheio de céu azul, como lembra o diretor quase uma década depois. “Eu construí um personagem, o Ranulfo, que estava migrando do Nordeste, uma região que estava expulsando ele por questões adversas, sejam políticas, sociais ou a própria seca. E o alemão estava chegando num lugar desconhecido. Então a luz do meu filme era importante para a dramaturgia dos personagens. O cinema brasileiro está mais maduro, então não vou filmar um sertão de céu azul porque é bonito e pitoresco, mas porque há envolvimento com o fluxo dos personagens”. Afinal, cinema pernambucano? Em conversas com quase uma dezena de profissionais que trabalham com cinema em Pernambuco, a dificuldade de se firmar um conceito de cinema pernambucano se dá principalmente por dois pontos: a diversidade entre gostos e abordagens dos diretores locais; e a universalização dos temas, agora, na maioria das vezes, mais urbanos e menos ligados ao estereótipo do interior nordestino.

“Eu começo te dizendo que nenhum realizador pernambucano gosta desse carimbo que circula de modo generalizado na mídia”, diz o jornalista Luiz Joaquim, por telefone, enquanto cobria para a Folha de Pernambuco o Festival de Tiradentes na última semana de janeiro. “Cada realizador têm uma assinatura muito particular. O que acontece é que tivemos, por exemplo, no ano passado, uns cinco filmes com boa exposição na mídia: Tatuagem [Hilton Lacerda], O Som ao Redor [Kleber Mendonça], Eles Voltam [Marcelo Lordello], Doméstica [Gabriel Mascaro] e Boa Sorte, Meu Amor [Daniel Aragão]. E também acho que não dá para colocar tudo no mesmo saco, como não dá para juntar o trabalho que fazem Cláudio Assis, Gabriel Mascaro, Kleber Mendonça, Marcelo Pedroso. Cada um tem um interesse muito próprio e talvez, se há um aspecto que interligue essas produções, é a liberdade”. Essa liberdade também é assunto para Paulo Caldas. O diretor de Baile Perfumado (1996, ao lado de Lírio Ferreira) e Deserto Feliz (2007), entre outros, acredita que essa forma de atuação dos cineastas em Pernambuco – baixos orçamentos, projetos autorais e consolidação de uma rede coesa de amigos que trabalham juntos – é a grande identidade dessa turma. “Se há coisas


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.