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Kaufman não resistiu mais. Cuidadosamente desvirou o corpo e olhou por sobre o ombro para a porta do carro. Só podia ver as pernas do Açougueiro e a parte de baixo da porta da cabine aberta. Diabo! Queria ver outra vez o rosto do monstro. Ouvia risadas agora. Kaufman calculou os riscos da sua situação; a matemática do pânico. Se ficasse onde estava, mais cedo ou mais tarde o Açougueiro o veria, e ele seria transformado em picadinho. Por outro lado, se saísse do esconderijo, arriscava-se a ser visto e perseguido. O que seria pior, a imobilidade e depois a morte, encurralado num buraco, ou tentar a fuga e enfrentar o Juízo Final no meio do carro? Kaufman surpreendeu-se com a própria coragem: escolheu sair dali. Com lentidão infinita arrastou-se de sob o banco, os olhos pregados nas costas do Açougueiro. Uma vez fora, começou a se arrastar para a porta. Cada palmo era um tormento, mas o Açougueiro parecia muito entretido com a conversa. Kaufman chegou a porta. Começou a se levantar, tentando se preparar para o que ia ver no Carro Dois. Segurou a maçaneta, e a porta se abriu mansamente. O barulho das rodas aumentou, e uma onda de ar viciado e úmido, um fedor que não existia na terra o envolveu. Será que o Açougueiro iria ouvir algum ruído, ou sentir o cheiro? Será que se voltaria...? Mas não. Kaufman passou pela pequena abertura da porta para a câmara ensangüentada. O alívio fez com que se descuidasse. Não fechou a porta ao passar, e ela começou a se abrir com os movimentos do trem. Mahogany enfiou a cabeça para fora da cabine e olhou para a porta. — Que diabo é isso? — disse o maquinista. — Não fechei bem a porta. Nada mais. Kaufman ouviu os passos do Açougueiro na direção da porta. Agachou-se, uma bola de pânico, contra a parede entre os dois carros, percebendo de repente que seus intestinos estavam cheios. A porta foi puxada do outro lado, e os passos se afastaram. Salvo, pelo menos por mais alguns minutos. Kaufman abriu os olhos, preparando-se para a carnificina que ia ver. Não podia evitá-lo. Apossou-se de todos os seus sentidos: o cheiro das entranhas abertas, a visão dos corpos, a sensação do líquido no chão sob seus dedos, o som das alças de couro estalando ao peso dos corpos, até o ar com o gosto salgado de sangue. Estava naquele cubículo diante da morte absoluta, correndo velozmente, cortando as trevas. Mas não sentiu náusea agora. Nenhuma sensação sobrou a não ser uma leve repugnância. Chegou a examinar os corpos com curiosidade. A carcaça mais próxima era o que restava do jovem espinhento do Carro Um. O corpo estava de cabeça para baixo, balançando para a frente e para trás ao ritmo do trem, em uníssono com os três companheiros; uma obscena dança macabra. Os braços pendiam molemente dos ombros, onde dois cortes com dois centímetros mais ou menos de profundidade tinham sido feitos, para que os corpos ficassem mais em ordem assim dependurados. Cada parte da anatomia do garoto ondulava, acompanhando o ritmo do trem. A língua pendia da boca aberta. A cabeça balançava no pescoço cortado. Até o pênis sacudia de um lado para o outro na virilha pelada. Do ferimento na cabeça e do corte da jugular o sangue pingava ainda no balde preto. Havia uma certa elegância em tudo aquilo, a marca de um trabalho bem-feito. Ao lado do primeiro estavam os corpos de duas mulheres brancas e outro de um rapaz de pele morena. Kaufman inclinou a cabeça para olhar os rostos deles. Não tinham qualquer expressão. Uma das jovens era muito bonita. Achou que o homem devia ser porto-riquenho. Todos sem cabelo e sem pêlos. Na verdade, o ar estava repleto do cheiro pungente da tosa. Kaufman ergueu-se, encostado na parede do carro, e o corpo de uma das mulheres girou, mostrando as costas para ele. Não estava preparado para aquele horror final. A carne das costas estava aberta do pescoço até as nádegas, e o músculo fora retirado para expor as vértebras brilhantes. O triunfo final da arte do Açougueiro. Ali estavam dependurados aqueles pedaços retalhados, tosados, sangrados de humanidade, abertos como peixes, prontos para serem devorados... Kaufman quase sorriu ante a perfeição daquele horror. Sentiu a sugestão de insanidade fazendo cócegas na base do seu crânio, tentando-o para o vazio, prometendo uma indiferença total para com o mundo. Começou a tremer incontrolavelmente. Suas cordas vocais tentavam formar um grito. Era intolerável; porém, gritar seria ver-se transformado numa das criaturas ali dependuradas. — Foda-se — ele disse, em voz mais alta do que pretendia; depois, desencostando-se da parede começou a andar pelo carro entre os corpos balouçantes, observando as pilhas de roupas cuidadosamente

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