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Por alguma razão sonhou com a cozinha da mãe. Ela estava picando nabos e sorrindo docemente. No sonho Kaufman era muito pequeno e olhava para o rosto radiante enquanto ela trabalhava. Corta. Corta. Corta. Abriu os olhos bruscamente. Sua mãe desapareceu. O carro estava vazio. O jovem havia desaparecido. Durante quanto tempo tinha dormido? Não se lembrava de o trem ter parado na Rua 4. Levantou-se, sonolento ainda, e quase caiu com um balanço mais violento do carro. Parecia ter aumentado muito a velocidade. Talvez o maquinista tivesse pressa de chegar em casa, de ir para a cama abraçado à mulher. Estavam voando, na verdade. E era apavorante. Kaufman viu uma persiana baixada sobre o vidro entre os dois carros, que não tinha notado antes. Ficou um pouco preocupado. Será que havia dormido demais, e o guarda não o vira no carro? Talvez tivessem passado por Park Rockaway, e o trem corresse agora para onde quer que fosse guardado à noite. — Que se fodam! — disse em voz alta. Deveria ir até o maquinista para se informar? Que pergunta mais idiota! Onde estamos? Naquela hora da noite, certamente ia ouvir uma porção de desaforos como resposta. Então o trem começou a diminuir a marcha. Uma estação. Sim, uma estação. O trem saiu do túnel para a luz encardida na estação da Rua 4 Oeste. Não tinha perdido parada alguma. Mas então, para onde tinha ido o garoto? Teria ignorado o aviso, proibindo passar de um carro para o outro quando o trem estivesse em movimento, ou estava na cabine do maquinista, lá na frente? Provavelmente entre as pernas do maquinista ainda, pensou Kaufman com um sorriso de desprezo. Não seria a primeira vez. Aquele era o Palácio das Delícias, afinal, e todos tinham direito a um pouco de amor no escuro. Kaufman deu de ombros. Por que se importar com o paradeiro do garoto? As portas se fecharam. Ninguém tinha embarcado. Saíram da estação, as luzes diminuindo de intensidade com o aumento de energia usada pelo motor para recuperar a marcha. Kaufman sentiu outra vez vontade de dormir, mas o medo de se perder injetou-lhe adrenalina no organismo, e seus braços e pernas formigaram com energia nervosa. Seus sentidos estavam aguçados. Sobre o barulho metálico e surdo das rodas nos trilhos, ouviu o som de roupa sendo rasgada, que vinha do segundo carro. Alguém estaria tirando a camisa apressadamente? Levantou-se, segurando uma das alças de couro para se equilibrar. A janela entre os carros estava fechada pela persiana, mas Kaufman olhou para ela, franzindo a testa, como se pudesse adquirir visão raio-X de um momento para outro. O carro balançava e balançava. A toda velocidade outra vez. Outra vez o barulho de roupa rasgada. Seria algum estupro? Levado por um leve impulso de bisbilhotice caminhou no carro balouçante para a porta, esperando encontrar uma fresta na persiana. Com os olhos fixos nelas, não notou que chapinhava em sangue. Até que... ...escorregou. Olhou para baixo. Seu estômago viu o sangue antes que o cérebro registrasse alguma coisa, e o presunto com pão de centeio subiu, prendendo-se na sua garganta. Sangue. Respirou várias vezes o ar viciado e desviou a vista — de volta para a janela. Sua mente dizia: sangue. Nada podia afastar a palavra da sua cabeça. Estava a uns dois metros da porta, agora. Precisava ver. Havia sangue nos seus sapatos, e uma trilha fina que ia até o outro carro, mas Kaufman precisava olhar. Era imperativo. Mais dois passos na direção da porta e então examinou a persiana, procurando uma fresta; um fio puxado no pano seria suficiente. Achou um orifício minúsculo. Grudou o olho nele. Seu cérebro recusou-se a aceitar o que os olhos viam do outro lado da porta. Rejeitou o espetáculo como absurdo, como um sonho. A razão dizia que não podia ser real, mas seus servos sabiam que era. Ficou rígido de terror. Os olhos fixos não se podiam afastar da cena horrível no outro lado da cortina. Ficou ali parado na porta enquanto o trem continuava a viagem barulhenta, todo o seu sangue fugindo para as extremidades, e o cérebro atordoado por falta de oxigênio. Pontos brilhantes espoucaram na frente dos seus olhos, obliterando a atrocidade. Então ele desmaiou. Estava inconsciente quando o trem chegou â Rua Jay. Não ouviu o aviso do maquinista para que todos os passageiros que iam continuar viagem mudassem de trem. Se tivesse ouvido, sem dúvida questionaria o motivo. Nenhum trem desembarcava todos os passageiros na Rua Jay; a linha ia até a Avenida

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