Olhai os Lirios do Campo

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Mas nunca mais lhe sairia da memória aquela vaia, nem que ele vivesse mil anos. Ernesto calou-se, tirou do bolso uma ponta de cigarro, meteu-a na boca, acendeu-a. - Tu levou cigarro na aula, sem vergonha! Ernesto encolheu os ombros, soltou uma baforada de fumo, jogou longe o pau de fósforo. - Não é da conta de ninguém. - Se a professora te pega, tu vai vê o que é bom. - Ela não é minha mãe. - Mas o pai e a mãe não quer que tu fumes. - Eu gosto, pronto! Quando avistaram a casa, Ernesto jogou fora a ponta do cigarro e cuspiu, com ar viciado. Eugênio enxugou as lágrimas com as costas da mão. - Ernesto, venha lavar os pés antes da bucha! Eugênio já enxugava os seus com a grossa e áspera toalha feita de um saco de farinha de mandioca. Da bacia de folha, da água esbranquiçada de sabão, subia um vapor quase invisível. D. Alzira sentou o filho mais novo na cadeira e meteu-lhe os pés à força dentro da bacia. - A água do Genoca tem cascão! - protestou Ernesto. - Não seja luxento. Cascão têm os teus pés. Não sei onde é que estes meninos se sujam tanto. Nem parece que andam de sapatos. Eugênio olhava para o pai, enquanto enfiava as peúgas de lã. Lá estava ele encurvado sobre um par de calças, cosendo. Era um homem calado e murcho, velho antes dos quarenta. Tinha uma cara inexpressiva, dois olhos apagados e um ar de resignação quase bovino. Usava óculos, pois a vista já estava curta (as malditas fazendas pretas, esta luz fraca). Mais tossia do que falava. Quando falava era para se queixar da vida. Queixava-se sem amargura, sem raiva.


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