Para Olinda

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Chegamos ontem a Aveiro. Há pássaros de toda natureza: há aqueles pequeninos que voam em bandos no final da tarde para

Fosse em meu país, seríamos inspiração digna de tangos argentinos. Mas estamos em Portugal, onde o mar é a cabeleira do vento e todo amor se torna um fado porque termina em dó. Ou em euros.

Fora isso, a cidade está em paz.

- e você não quer morrer, não é? – Tu perguntarás sem muita responsabilidade.

Fosse em meu país, já teríamos sido todos presos e condenados. O Estado já teria nos carregado, por cordas e cadarços amarrados, para os muros de fuzilamento. Fosse em meu país, estaríamos danados para o resto da vida, posto que em meu país não há pássaros e todo mínimo e simples exemplar da espécie dos voadores deve ser preservada como se preserva, por exemplo, a língua pátria.

- Me perdoe pela tristeza.

anunciar a morte de mais um dia como faziam todos os pássaros de minha infância. Há as gaivotas de barriga branca que refletem as luzes da cidade e brilham odiosamente bonitas durante cinco segundos até escaparem do nosso estarrecido campo de visão. Há andorinhas negras que os portugueses costumam colocar sobre os batentes das portas para atrair boa fortuna. Há galos coloridos vendidos nas feiras a preço de turismo. Há pássaros mortos na tua varanda que provavelmente agonizaram de frio e de vento até o derradeiro sonzinho murcho de suas gargantas congeladas. Fora esses três pássaros que, ausentes da própria vida, fazem da tua varanda a paisagem de um cemitério.

Mas é impossível discorrer sobre isso assim, além do mar, longe de casa. O Oceano Atlântico me impede de tecer e inflamar certas considerações culturais produzidas a partir de tanta areia nos olhos.

Mañana, quando regressarmos da visitação a Coimbra, conversaremos desse jeito:

- Se esse comboio descarrilhar e cair no rio e tiver suas partes metálicas e mecânicas eficientes afogadas na água salgada e nós não conseguirmos escapar, eu vou morrer triste.

- Não triste nesses termos em que me encontro.

(A questão é diplomática, não pessoal, meu grande amor. Fosse em meu país, o parlamento em comunhão tomaria a iniciativa de conclamar uma organizada massa nacional para torcer pelo não descarrilhamento desse comboio. ) - Sim. Estás perdoada.

Aqui em Aveiro gosto ainda mais das tuas cores. Ainda tens aqueles tons vermelhos do começo do nosso amor. Ainda te enredas pelas estampas floridas, pelos vestidinhos de dona baratinha. Ainda tens um jeito de menina que continua a me provocar tragédias. Ainda praticas aquela rara modalidade de sorrisos cansados nos quais arqueias tuas sobrancelhas para gerar desconfiança em quem te observa: estará essa mulher sorrindo ou chorando?

Aqui em Aveiro me dedico somente à beleza das coisas de modo que de nada importa tu afirmares não me querer mais. Eu sou o osso roído da civilização, eu sou o vapor latino-americano que faz o barco andar, eu sou a população negra que não trafega por essas vielas bem educadas. Eu sou o pobre que não existe aqui. Fosse em meu país, eu seria o que costumamos chamar ali de velho diabo, miserável, elemento sem identificação. Coração vagabundo, de segunda mão, peça para desmonte, revenda e só.

Aveiro - julho de 2013


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