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Uma chata de galocha
Por Pedro Costa
Quando eu nasci em Fevereiro, já chovia muito em São Paulo. Há mais de meio século vejo esta cidade ser pega de surpresa. Meus pais contavam que a cidade toda estava inundada no dia do meu rebento e que no Vale Anhangabaú havia gente circulando de canoas e botes. Que casas desabavam pelos morros do Bexiga e das encostas da Cantareira. Era água que caía sem piedade e a metrópole parecia boiar inteira. Talvez por isso eu seja do último dia de peixes e o primeiro dia de aquário, 19 de Fevereiro diria Omar Cardoso.
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A televisão ainda engatinhava e as rádios davam de lavada notícias sobre as inundações e muita gente desabrigada. Governante nenhum queria fazer obras que não apareciam. Limpeza de bueiros, construções de galerias subterrâneas ou muros de contenção pela cidade. No litoral então, os mesmos motivos. Entrava ano, saía ano e nada acontecia. Apenas a população mais pobre que crescia se estendia sobre os morros. Toda vez que chove muito, como todos os verões anunciam ou até as águas de Março fechar o verão. Taí.
Nosso litoral norte desnorteado e em luto, como nos conta o historiador Thales Veiga, que no início da colonização a região era território dos índios Tupinambás e Guaianases que misturados com os europeus formam o povo mameluco. Enquanto que esta miscigenação no planalto deu origem a uma cultura própria, a caipira, no litoral surgiu outra: a caiçara. Por sua vez, os caiçaras paulistas têm com a sua geografia local a Serra do Mar que encosta no mar, o que deixa poucas áreas planas isoladas. O meio do transporte era a canoa de voga que servia tanto para pescar e se locomover entre os povoados da região, cuja dieta era baseada em peixes e em gêneros como açúcar, banana e mandioca. Toda essa cultura manteve-se relativamente intocada até os anos 1970, quando o litoral norte, abriu estrada asfaltada pelo então governador Maluf, constrói a Rodovia Rio-Santos, uma viagem que demorava dias passou a ser feita em poucas horas. Os caiçaras perderam seu sustento, tudo passou a chegar de caminhão e muitos deles sem qualquer instrução, passaram a trabalhar na construção da estrada, dos condomínios e pousadas. A alta demanda da construção civil motivou a chegada de milhares de imigrantes, sobretudo do Nordeste, sem condições de comprarem uma casa no plano de beira-mar. Muitas áreas foram griladas e suas populações originais expulsas acabaram ocupando áreas de risco das encostas e beiras de rio.
Enquanto isso aqui em São Paulo, seguimos boiando. Seu nome Tupi Guarani originário, para quem não sabe, era PIRATININGA, que significa “peixe seco”, pois na vazante das águas morriam presos pelas margens do rio Anhangabaú, lá muito antes dos velhos carnavais de fevereiro e de minhas galochas paulistanas, sempre a tiracolo.