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CIRCO SOMBRIO

contos, terror e psicopatia

Ariel Yoshida / @ariel.yoshida

Sumário:

ARREPENDIMENTO

TRILHA DE SANGUE

AMORES DESCARTÁVEIS

FILHA MALDITA

CHICLETE

CIRCO SOMBRIO

DARK WEB

TIROTEIO NA ESTAÇÃO DE TREM

NÚBIA KHALED

INOCÊNCIA VIOLADA

PROLE

PAIXÃO MÉDICA

PÉS DESCOBERTOS

MERCADORIA FRÁGIL

NA CADEIRA DA DENTISTA

IRRESISTÍVEL CORPO INERTE

SABOR INDIGESTO

UM PEDIDO DE SOCORRO

UM CIDADÃO PRESTES A PULAR DO VIADUTO

PARALISIA DO SONO

Arrependimento

Vinha sendo outra noite igual a qualquer noite dos últimos 8 anos da vida de Elias: catando os sacos plásticos cheios de lixos e arremessando-os no caminhão preparado para triturar tais porcarias.

Aquele automóvel deixando cheiro fétido por onde passa deixou de ser-lhe algo perturbador. Após tanto tempo no ofício, havia se acostumado.

A rotina era um odor de dejetos e macarrão azedo misturado às bazófias com as quais os colegas de trabalho se distraíam.

Competiam para ver quem fazia o mais longo arremesso, competiam para ver quem segurava mais unidades de uma vez; variavam as competições. Variavam quanto ao tema das conversas reflexivas e das piadas. “Qual dessas casas deve deixar-nos mais papel higiênico?”, “quanto resquício de fezes foi triturado essa semana?”.

Elias conhecia vários cantos da cidade; quase todos os bairros da região. Eram ruas diferenciadas, cada uma com sua peculiaridade, seu destaque. Em umas sobravam residências humildes, tão precárias; em outras a visão era mais adorável, o que se via denotava maior conforto.

Vinha sendo outra noite igual a qualquer noite dos últimos 8 anos da vida de Elias, o mesmo trajeto de tantas outras ocasiões. “Olha ali, colega”, ele zomba, rompendo um pouco do silêncio, “estamos chegando perto da casa que você ama tanto”. Os outros dois companheiros riem - o quarteto, pendurado na traseira do caminhão, se aproximava do ponto de partida. Certa vez, o tal colega pegara um saco preto de lixo daquela calçada e em seguida todo seu conteúdo caiu no chão através de um rasgo imenso. “Bastardos do inferno!”, fora um dos gritos revoltados. A turma riu bastante dele naquela ocasião. O episódio ficou marcado, mais pela reação exagerada do azarado do que pela sujeira desagradável.

“Cale a boca”, responde-lhe esse parceiro lixeiro, em tom bem humorado, saltando em direção aos alvos.

Os outros três também saltam.

Elias corre de casa em casa acumulando uma quantia significativa de volume e retorna em direção à grande cesta. Marca seus pontos imaginários. E volta às calçadas recolhendo mais lixos.

Naquela rua falta passar por cinco casas.

Em poucos segundos ele conclui a tarefa. Retornando ao caminhão, faz novo arremesso e em seguida volta a se pendurar no veículo.

Ele encosta a cabeça no ferro de apoio e fica observando o trio ainda correndo para lá e para cá.

“Tem dia que estamos tão falantes, mas tem dias que estamos um tanto quanto sem assunto. O peso de viver às vezes cai sobre nossos ombros...”, ele começaria a devanear, mas de repente um som inesperado deixa-o atento.

“Fantasiei isso?”, ele se questiona, franzindo a testa e inclinando a cabeça para frente, como se isso aguçasse sua audição.

Então ele ouve novamente.

Elias olha para os lados, sem compreender, mas então sua ficha cai frações de segundos depois e ele olha para dentro do caminhão, para os lixos que arremessou ali dentro na última rodada.

Agora àquele som estridente se junta o barulho da máquina trituradora sendo acionada.

Elias fica paralisado, tremendo. Antes que possa esboçar alguma reação, todo o lixo é sugado por aquela maquinaria mortal.

Então o choro de bebê subitamente cessa.

Trilha de sangue

Ofegante, ela corria mais rápido do que jamais imaginaria poder. Corria mancando. Sequer notava a própria respiração. Sequer notava que preenchia os pulmões e esvaziava-os bruscamente. E seus pés inchados e sangrando passavam despercebidos.

Era-lhe o pior pôr-do-sol possível.

Estava descalça, correndo em solo rochoso. Repetidas vezes havia pisado em uma pedra pontiaguda, rasgando milímetros de sua sola. Por mais de meio quilômetro deixara marcas de sangue. E a

fuga parecia não ter fim. Estava em prantos, com a visão embaçada pelas lágrimas. Gritava já sem perceber, automatizada. Estava em estado primitivo de sobrevivência. A tênue linha de esperança que restava obrigava seu cérebro a ignorar as pernas cansadas, os rasgos nos braços e barriga – causados pelas facadas -, para continuar o percurso. A desorientação advinda do desespero faziase cada vez maior. Batimentos cardíacos desenfreados deixando o coração prestes a explodir. Em uma situação cotidiana, sabia bem, não teria tanta resistência física assim.

A noção de tempo e espaço estavam perdidas, mas imaginava seu agressor cada vez mais perto - aquele homem de ombros largos, altíssimo, pesado. O medo crescia. A angústia lhe fazia lembrar as agressões sofridas há pouco. A bruta mão áspera contra seu rosto.

O punho fechado quebrando-lhe os dentes; a bota masculina de couro golpeando seu estômago. A lâmina rasgando sua carne.

Mariana tentara se defender. “Podia ter feito mais?”, questionava-se inconscientemente, cobrando-se por não ter dado um contragolpe certeiro e salvador. Flashs da violência sofrida passavam em sua mente.

Sentia ele se aproximando e o imaginava violentamente segurando-lhe pelo braço outra vez. Então gritava, gritava, rasgando a garganta. Clamava por socorro mesmo sabendo que ninguém ouviria; estavam afastados da cidade. O horizonte era desenhado por árvores, montanhas e mais árvores. A trilha aparentemente perfeita para aventureiros.

Ela estava desesperada. E, em meio ao desespero, tropeçou, caindo de cara e sujando o rosto de terra úmida.

Após a queda todas as dores até então ignoradas vieram à tona. Percebeu-se fragilizada. Restava-lhe rastejar. Seus antebraços viraram meio de locomoção.

A cada movimento que fazia para frente, sentia-se sufocada, mergulhada num pesadelo. Como pudera a vida mudar assim tão bruscamente o roteiro? Há poucas horas estava feliz, vivendo

empolgada, realizando um antigo sonho de rodar país a fora apenas com as vestes do corpo, itens de acampamento e poucos utensílios na mochila. Em seu cronograma de mochileira ainda havia tanto destino a se experimentar. Tinha ainda três semanas de férias. Pensava nisso tudo e em todo resto ao mesmo tempo, sem refletir profundamente. Arrependia-se de ter selecionado justamente aquele lugar para acampar. A previsão era apenas de banhar-se no belíssimo lago, apreciar a vista, armar uma barraca, nutrir-se com um dos suprimentos trazidos, descansar para o próximo dia. Como poderia prever que daquelas calmas águas emergiria alguém? Um lunático? Um serial killer? Não sabia a melhor forma de definir aquele ser. Ela estivera se preparando para entrar na piscina natural, mal tinha terminado de tirar tênis e meias quando o susto ocorrera: O tapete cristalino de repente estourando e de dentro saindo a figura masculina hábil em mergulhos furtivos. Ela ficou petrificada de medo com aquela situação. “Perdão, senhor, não tinha notado a presença de outra pessoa por aqui”, ela dissera, dando passos para trás, no intento de se mandar daquele cenário. Ele nada respondeu, apenas sorriu e continuou emergindo. Angustiada com a revelada nudez do indesejado desconhecido que agora caminhava em sua direção, alcançou os calçados e ligeiramente agachou, pegou-os com as mãos, sem parar. Acelerou os passos. Numa olhada que deu para

trás, viu o indivíduo se vestindo, desapressado, mas sem tirar os olhos dela – esse detalhe a perturbou. Mais adiante constataria que estava sendo seguida. Sofreria o primeiro ataque logo depois. Deveria ter feito o quê? Poderia ter escapado desse pesadelo? Para tê-la alcançado, ele deve conhecer bem as redondezas. Eram pensamentos avulsos, um filme rodando em velocidade triplicada, lamentações e arrependimentos.

Ali seria seu fim? De vestes imundas, largada numa floresta, sendo opção no cardápio dos animais? Como alguém encontraria seu corpo posteriormente? Negava-se a aceitar tal morte.

Os ombros não demoraram a ficar roxos; folhas caídas grudavam em seus membros e deslizavam sobre o sangue que jorrava das feridas abertas. A força que fazia para continuar fugindo, feito um desajustado réptil sem patas, provocava maior distensão dos músculos outrora cortados pelo seu carrasco e eles iam rasgando cada vez mais.

Seus neurotransmissores estavam desistindo da luta, a adrenalina baixava, o corpo cedia. A movimentação ficava cada vez mais lenta e dolorosa. O sangue escorria pelos braços, lágrimas escorriam pela face, numa mesma grande proporção, em torturante sincronia.

Assim como seu sistema nervoso central, ela também desistiu.

Liberou os braços da penosa tarefa, deixou-os abertos e afundou o corpo. Permaneceu deitada de barriga no solo.

Não fossem sua respiração pesada, seu pranto, e a intermitente cantoria de pássaros aleatórios, tudo estaria em absoluto silêncio.

“Será que se eu incansavelmente implorar por ajuda terei o socorro de alguma criatura divina?”, ela se questiona, sentindo-se abandonada.

Ela fecha os olhos e implora a Deus para que este a ajude.

Balbucia umas frases aprendidas na juventude e acrescenta uma súplica autoral. Junto à oração há sangria.

A dor e o silêncio.

Constata um absoluto silêncio ao redor.

A oração funcionou?

“Será que ele ainda está me perseguindo? Não ouço passos”, alimenta-se de esperança. “Talvez ele esteja longe o bastante para eu conseguir me esconder, mas não consigo me mexer, não tenho mais forças”.

Aceitaria mesmo a morte?

“Não”, ela exclama a sentença em meio a mais lágrimas, “não quero morrer, não, não...”. Ela repete mil vezes a negação. “Não irei morrer neste lugar”.

“Há ainda tanto a se viver”.

“Irei sair desse inferno completamente diferente. Valorizarei cada riso, cada instante, cada sopro”.

Com os olhos semicerrados, aproxima os braços do corpo, dobra-os a fim de rastejar outra vez usando os cotovelos.

Cada movimento amplia a sensação dolorosa, mas ela persiste. Locomove-se por metros. E mais metros. Quer se aproximar de uma enorme rocha. “Encolhida ali atrás não serei encontrada”.

Rasteja mais um pouco, cada vez com menos sangue dentro de si. Mal suporta manter as pálpebras abertas.

A pressão baixa, os sentidos indo embora...

Os sentidos indo embora...

Indo embora...

Antes que sua mente se desligue por completo e para sempre, ela desperta, sob a luz do dia.

Até seus olhos se acostumarem com a mudança na iluminação ambiente, várias piscadas são dadas. Então ela consegue fixá-los abertos e vê a própria mão coberta por formigas. No intento de chacoalhá-la para afastar os insetos, uma dor aguda se faz presente. “Os cortes...”. Então a mente relembra-a de tudo. Aquele pavor não foi um pesadelo. “Ao menos estou viva”, comemora e seus lábios desenham um sorriso.

Ela consegue juntar forças para girar o corpo. Ao fazê-lo, vê-se frente a frente com um par de botas masculinas de couro.

- Bom dia, minha bela caça.

Nesse instante ela se arrependeu das orações feitas para que não morresse.

- Parabéns, viu? – a voz rouca diz, rindo - Você tem sido a presa mais resistente que já vi.

Ela permanece imóvel, com uma das faces sob o solo, e vê o homem levantando um dos pés. Segundos depois sente uma pressão na mandíbula. Ele pisando nela.

O peso é insuportável. Resta-lhe estrebuchar, tentando se livrar daquilo que a esmaga. Mas é em vão. Os dois braços se agitam

convulsivamente. As pernas se sacodem e chutam o vazio. O som do osso maxilar quebrando é tão insuportável quanto a dor.

O corpo dela começa a tremer enquanto baba sangue.

Ele levanta o pé e inclina o calcanhar para baixo. Dá uma pisada com toda a força que possui. Isso faz o queixo dela se deslocar.

Ela chora feito neném à mercê da violência; frágil, impotente.

Ele repete o movimento e a esmaga com outro golpe direto na bochecha. Repetição. Dentes despencam.

Uma quarta pisada acontece. Mais fraturas.

Com o rosto já completamente destruído, ela ainda chora.

Ele se agacha, tira um canivete do bolso e abre um buraco na papada dela. Enfia os dedos na cavidade criada, fazendo da mandíbula de Mariana uma espécie de alça. Ergue-se e começa a caminhar, arrastando a bagagem ensanguentada.

Mariana, neste momento arrependida de um dia ter nascido, já não se importa com o que acontecerá a seu cadáver posteriormente. Já não se importa com nada. A cada passo que seu carrasco dá,

sente as articulações maxilares quebrando mais e mais. A cada passo ouve um novo estalo. Crac. A mandíbula mole. Tormento insuportável.

Dessa vez ela implora para que Deus a faça morrer logo.

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