Astrologia do destino

Page 65

Os leitores que já tiveram experiência de trabalho com sonhos, imaginação ativa e imagens conduzidas, sem dúvida já perceberam aonde esta aparente digressão sobre a magia da Renascença está levando. Ficino era um homem humilde, de modo algum contaminado pelo enfatuamento de magos posteriores, como Cornélio Agrippa e Giordano Bruno, que se esqueceram de que todos os trabalhos alquímicos, minerais ou humanos, precisam ser executados Deo concedente, ou seja, de acordo com a vontade de Deus. Isso, naturalmente, é a única salvaguarda contra hubris e sua nemesis, seja para o herói grego, para o mago da Renascença ou para o moderno astrólogo ou analista. Ficino nunca achou que era ele quem realizava a magia. Achava que eram os deuses, ou as Parcas em luta, incapazes de concordar se queriam ou não ser convencidas. O que o sistema de magia de Ficino representa, do ponto de vista psicológico, interessa-nos muito agora, porque se considerarmos o horóscopo como a lei escrita dos céus ou, para dizer de outra forma, o destino da pessoa, então existem níveis diferentes onde o destino pode ser encenado. Esses níveis diferentes talvez estejam intimamente associados à atitude interna da pessoa e ao seu relacionamento, ou falta de relacionamento, com o mundo de imagens e símbolos. Em outras palavras, o destino pode ser um padrão psicológico interior, tanto quanto uma questão do corpo. Isso ficou evidente no capítulo anterior, no destino de Renée R. Para Ficino, assim como para seu mestre Platão, o mundo real não era o corpóreo, e sim o mundo das Idéias, eidolos, ou, como Jung diria, os arquétipos do inconsciente coletivo. O destino é a lei natural. Nesse sentido, é arquetípico, um padrão ou princípio ordenador. Moira representa a justiça e a mortalidade inatas do mundo dos instintos. Porém, o mundo dos instintos é um mundo cego, um reino de compulsões corporais e de necessidade evolucionária. Resiste violentamente a qualquer transgressão ou tentativa de comprimir suas fronteiras, pois parece que dessa forma a própria sobrevivência fica ameaçada e a ordem natural é quebrada. As Parcas discutem entre si, de acordo com Ficino; a prima mataria está em conflito, confusão e choque de opostos dentro de si. Mas esse mundo cego do instinto não é realmente separado do mundo de eidolos ou arquétipos. Como já vimos, Jung acreditava que os arquétipos dominantes, tais como a Grande Mãe, o Velho Sábio, a transformação, o Trapaceiro, a anima etc., são imagens de instintos, o auto-retrato de padrões de desenvolvimento inatos ao homem, possuindo tanto um determinismo comportamental orgânico como uma experiência de significado psicológico. Para Ficino, o mundo de imagens — fossem elas originárias de sonhos (os dele) ou do mito (grego e variações míticas sincretistas dos primeiros séculos a.D.) — era uma espécie de campo intermediário, um lugar entre o mundo abstrato e inacessível das Idéias sem imagens, e o mundo denso da matéria ligado a Moira. Para Jung, igualmente, os produtos simbólicos da psique ocupam a terra fronteiras entre o mundo formal dos arquétipos e o mundo diurno da consciência. Essas imagens são o "material" do meio, o anima mundi ou alma do mundo. Elas e seu campo de substância psíquica são regidas por Hermes, senhor das fronteiras, estradas e encruzilhadas, que na alquimia é chamado Mercúrio. Os planetas, na nova astrologia de Ficino, não são apenas corpos físicos no espaço, mas também imagens dentro do mundo psíquico do homem, além de metais dentro da própria terra. Em algum lugar do mundo "inteligível" estão as Idéias que corres.

pondem a essas expressões mortais. As imagens planetárias, conforme concebidas por Ficino, são a ponte entre os mundos, através da qual a pessoa é capaz de vagarosamente unir o que está abaixo com o que está acima para que, nas palavras do Corpus, possa realizar-se o milagre do Um. Isso levanta uma questão muito profunda sobre o que exatamente "acontece" quando o astrólogo interpreta um horóscopo para um cliente, pois tanto o astrólogo quanto o cliente habitam, naquele momento, o "campo intermediário" que une o acima e o abaixo. A anima mundi de Ficino tem uma forte conexão com a "psique objetiva", como diz Jung, o indefinível mundo-matéria que se estende entre as fronteiras da psique e do corpo, entre o espírito e a substância, que pertence a ambos e a nenhum, e ao qual temos acesso através das imagens de nossos sonhos e fantasias. Ficino sugere que o trabalho com esse material, de acordo com o padrão natal de cada um, constrói o elo de ligação (ou faz parte de um elo que já existe mas não foi experimentado) entre Deus e sua criação, entre as Idéias e a realidade corpórea, entre o arquétipo e o instinto, entre a liberdade e o destino. Como diz Frances Yates em seu estudo sobre a magia hermética da Renascença: Portanto, essas Imagens tornar-se-iam formas das Idéias, ou maneiras de se aproximar das Idéias num estágio intermediário entre suas formas puramente intelectuais no mens divino e seus reflexos menos nítidos no mundo do sentido ou corpo do mundo. Portanto, era através da manipulação dessas imagens nesse "lugar do meio" intermediário, que os antigos sábios tinham conhecimento de como atrair uma parte da alma do mundo para seus santuários.. . Além disso, existe, nas palavras de Ficino, a noção de que as formas materiais no mundo dos sentidos podem ser, por assim dizer, reformadas, quando se degeneram, através da manipulação das imagens superiores das quais dependem.68 Devo admitir que não consigo achar muita diferença entre a "manipulação" das imagens no "lugar do meio" intermediário para atrair parte da alma do mundo a um santuário religioso, e o mesmo processo aplicado à construção e ornamentação de nossos grandes edifícios religiosos atuais. A palavra "manipular" é problemática, pois embora o mago da Renascença (um título do qual Ficino timidamente se esquivava, embora fosse a glória para magos posteriores como Agrippa) acreditasse que tinha o direito de trabalhar com o material do cosmo de Deus, parece que, considerando o destino real de alguns deles, que o cosmo de Deus — ou o inconsciente — tinha uma tendência a revidar contra uma identificação muito grande com o papel do mago. Hubris e nemesis, evidentemente, são leis ainda em vigor, mesmo se for feita alguma ligação com o mundo das imagens e o significado do destino seja interiorizado. Pico della Mirandola, discípulo de Ficino, foi assassinado, e Giordano Bruno foi queimado na fogueira. Não obstante esses percalços da profissão, não se pode deixar de admirar o espírito com que esses homens desafiavam a cega adesão à superstição e ao dogma à sua volta. O próprio Ficino parece ter sido um homem incomumente apagado, surpreendente para um Escorpião, mas talvez seu esforço no sentido da autocompreensão e do relacionamento com o que agora chamaríamos de inconsciente possa ter-lhe proporcionado, efetivamente, maior harmonia. Teve uma vida longa, o que não


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.