Legítima Defesa - 01

Page 51

O horizonte de um teatro negro profissional também foi pensado e colocado em prática naquela época. Impossível não mencionar os esforços e o trabalho do dramaturgo, diretor e ator maranhense Ubirajara Fidalgo (1949-1986). O artista se iniciou no teatro ainda em São Luís no ano explosivo de 1968 junto ao grupo de Jesus Chediak, mas radicou-se no Rio de Janeiro em 1970 onde funda o Teatro Profissional do Negro (TEPRON). O artista desenvolveu também ativa militância juntos aos Centros de Cultura Popular da UNE (CPC), consta entre os fundadores do Instituto Pesquisa e Cultura Negra (IPCN) e da Associação Cultural de Apoio as Artes Negras. Note-se o trânsito característico entre organizações e entidades negras que irá moldar o modo como a questão do racismo aparecerá nos palcos. Fidalgo recrutava seu elenco entre os jovens negros e pobres do Rio de Janeiro, mas com a meta de ocupar lugares de destaque na cena artística da cidade, padrão que persiste em organizações culturais cariocas como Nós do Morro e Afro-reggae. Outro aspecto a ser considerado diz respeito ao próprio conceito de teatro negro. Os especialistas asseveram que “a denominação de teatro negro pode tanto ser aplicada a um teatro que tenha a presença de atores negros, quanto aquele caracterizado pela participação de um diretor negro, ou, ainda de uma produção negra”² . Uma definição interessante, mas deveras abrangente para ter em conta a especificidade do fenômeno aqui abordado. No caso da cena que emerge nos anos 1970, a denominação teatro negro define o enraizamento desses grupos nas novas organizações e\ou redes políticas de atuação do movimento negro e o comprometimento com a especificidade de sua agenda política: a luta contra a discriminação e as desigualdades raciais. O teatro molda a cena da emergência do igualitarismo negro, que constitui a gramática da ação coletiva negra dos nossos dias (RIOS, 2012). Contexto muito diferente dos anos que deram luz ao TEN no qual a luta contra o preconceito de cor e a utopia de uma democracia racial eram dominantes nos meios políticos negros. É importante frisar que em mais de uma ocasião aquilo que começou como um grupo de teatro

acaba se tornando uma organização política negra. Fato que nos leva a considerar que o teatro foi uma forma de recrutamento de militantes para as lides do ativismo negro. O próprio caráter coletivo e grupal dessa arte era um suporte a esse intercurso particular entre “cultura” e “política”. Mas sem dúvida, a característica que mais chama atenção quando observamos a emergência do teatro negro contemporâneo é o quanto essa forma artística enquanto tal funda e elabora todo um imaginário político e cultural que lastreia a crítica às desigualdades raciais até nossos dias. A peça E Agora Falamos Nós... (1971) de autoria de Thereza Santos e Eduardo de Oliveira e Oliveira é um documento precioso e raro desse período. Tanto pela sua elaboração como por sua execução reúne quase todas as características assinaladas acima. A atriz carioca, então perseguida pela polícia política no Rio de Janeiro, procurava abrigo em espaços clandestinos em São Paulo. O sociólogo e músico – também carioca, mas há tempos residente em São Paulo - procurava uma parceira que pudesse torna o Coral Crioulo, seu empreendimento artístico, composto por jovens negros, uma experiência mais duradoura e impactante esfera cultural paulista. O resultado da parceria foi a peça encenada no MASP (Museu de arte de São Paulo) em novembro de 1971 .³ A trajetória de Thereza Santos é um percurso que nos permite observar as articulações entre cultura e política na formação dos militantes e artistas negros que fundaram o movimento negro contemporâneo. Ela ingressou na Juventude Comunista aos 15 anos de idade; já tinha, portanto, desde sua formação secundarista vínculos fortes com a militância política e com os meios artísticos do PCB. Mas foi quando ingressou no ensino superior, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, contrariando sua mãe que desejava ver a filha médica, que Thereza se envolveria mais profundamente com o teatro. No núcleo artístico do CPC, Thereza envolveu-se com o teatro engajado, de rua, que atingia grande concentração de trabalhadores: “os palcos eram os terminais de ônibus ou a central do Brasil na hora do Rush.

² DOUXAMI, Christine Teatro Negro: a realidade de um sonho sem sono. Afro-Ásia, 25-26 (2001), p. 313. ³ A peça “E Agora... Falamos nós” foi escrita entre 1970 e 1971 por Eduardo Oliveira e Thereza Santos, mas em 1982 foi reescrita somente por Thereza Santos, uma vez que Eduardo encerrou a própria vida em 1980. Agradecemos imensamente a Vera Benedito por partilhar a peça em sua forma integral

49


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.