V

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No antigo Egito Thot, Deus lunar, era filho de Geb, Deus da terra e de Nut, Deusa do céu. Thot ocupava-se em descrever os mistérios da existencialidade, debruçando-se sobre as verdades e os enigmas da vida e da morte, assim registrados no livro de Thot.

1 La cábala de predicción. Editora Kier, Buenos Aires, 1984.

Na segunda metade do século XX, em Buenos Aires, J. Iglesias Janeiro1 debruçou-se sobre os significados das letras do alfabeto relacionando-as aos 56 arcanos menores do Tarô Egípcio. A letra V simboliza uma varinha divinatória, qualidade de prenúncio, o por vir. V é o desejo inquieto de querer saber e, ao mesmo tempo, o deleitar-se quando nada se sabe, nada se controla.

V é o mistério íntimo da vida expresso para o mundo externo por meio dos afetos, por vezes, tão sutis que se tornam quase imperceptíveis. V representa o (des)conhecido que nos habita. É a vida pelo avesso das suas aflições, prisões, afinidades, inibições, sentimentos que (não) precisamos ver para viver.

A literatura cristã, na passagem de Gênesis, narra a criação do mundo a partir da desordem, mas precisamente da escuridão. Na escuridão, sob as águas, pairava o espírito de Deus. Então Deus disse: que haja luz! E a luz fez-se existir. Deus achou que a luz era boa. Deus separou a luz da escuridão. Deus então nomeou de dia a luz, e de noite a escuridão. A escuridão, por sua vez, passou a ser lida erroneamente como o contrário de boa.

Invocamos a escuridão para tocar no que há de mais obscuro em nós. Seria então ela o prenúncio da criação mais antiga? Aquilo que se concretiza no nosso desejo primevo de vir a ser, de ver, de estar, de viver?

Prova-o!?

Poderíamos, dessa forma, assumir que erramos, voltar ao início de tudo, destruir o que está feito, refazer-nos das ruínas da cidade que forjamos. Devemos refazer-nos da/na escuridão e compreender sua bondade eterna? O que seria a luz? O oposto daquilo que apreendemos!? É preciso refazer a história, escurecer nossas mentes, sulear o conhecimento!?

Prova-o!?

O filósofo afrobrasileiro Renato Nogueira (2012) retoma como gesto reparador as mitologias do Egito antigo, levando-nos de volta à escuridão:

V

Na mitologia egípcia, Nut é a deusa do céu e Geb, deus da terra. O céu é fecundado pela terra para que possa dar luz às primeiras deusas e primeiros deuses e o mundo seguir seu curso. O céu tem uma rotina importante que deve ser acompanhada pelos seres humanos. Nut engole o sol todos os dias no crepúsculo sobre as montanhas do Oeste e dá luz na aurora. A terra é negra e o sol precisa da negrura do ventre de Nut para ser revitalizado e renascer no dia que virá.

O mito conjura a repetição como gesto criador, ao que o poeta Manoel de Barros chama de dom de espírito. “Repetir, repetir, repetir até nascer algo diferente”. É preciso repetir. É preciso voltar a dizer. Retomar as perguntas, já feitas, mesmo que não encontremos repostas concretas. Não importa o resultado das repostas, mas o caminho. Reconhecer nesta ténue e longa caminhada nossas falhas enquanto sociedade esclarecida banhada de ingenuidade, inocência...

Mas é importante voltar a falhar. A falha faz parte da vida. V(iver) a vida é um ato de esperança. É preciso andar com pés para trás e cabeça para frente, recorrer ao mito do Curupira, entidade das matas, que na artimanha de sobrevivência tem os dois pés virados para trás e os calcanhares para frente, confundindo os invasores das matas. Curupira tem plena consciência das matas, dos seus passos, dos seus ancestrais, por isso, avança com pés apontados para o passado sem recuar, sem medo. Não podemos avançar sem passado. Sem olhar criticamente para a nossa história. 2

2 De Submisso a Político – O Lugar do Corpo Negro na Cultura Visual Conferência Performance, (2017 - 2021). Melissa Rodrigues.

É preciso ler as mulheres negras. É preciso ler Djamila Ribeiro. Reconfigurar o mundo por meio de outros olhares. Pode ser uma perspectiva poderosa, já que é capaz de gerar algum pertencimento que não seja a uma sociedade doente e desigual.3

3 Quem tem medo do feminismo negro? (Djamila Ribeiro, 2018, p. 93).

Precisamos de uma outra lógica de vida. É urgente reconfigurar os mitos. Apre(e)nder com os mitos para ter consciência das coisas ausentes, como aponta Mircea Eliade (1963):

4 Mito e realidade. Mircea Eliade (1963).

Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem.4

5 Frase gestada durante o processo de criação.

Como andar para trás? V(ida) (di)Vagar. 5 Há tempo para isso? Como quebrar a sincope deste ritmo desenfreado que dita o caminho para frente, de nós mesmos e dxs outrxs. V é sobre alteridade. Alteridade é o mesmo caminho que Nut faz, ao engolir, diariamente, o sol para que haja luz. O sol, por sua vez, precisa de Geb, da terra preta para sua existência. Alteridade requer coabitação, arquiteturas menos verticais. Quantxs corpxs cabiam aqui neste espaço? Quantxs corpxs cabem hoje aqui? Precisamos combater as ideologias altericídias que penetram nas microestruturas das cidades, contaminando nossas veias.

Os mitos apaziguam a dor. Para Mircea Eliade, os mitos ajudam-nos a decifrar à nossa própria realidade. A realidade que (não) queremos ver. A realidade que (não) queremos fugir. Podemos mudar o ritmo das coisas. Os mitos são a (des)ordem necessária. Quantos andaram por aqui nesta escuridão? Quantos mitos habitam os sonhos que não lembramos? Renato Nogueira propõe pensar o mito como quem entrega-se aos sonhos. Para ele, num direto espelhamento da ação contínua de Nut, ao engolir e parir o sol, o hábito humano de sonhar e dormir tem o sentido de enegrecer, de acolher o sol ou simplesmente viver no mundo dos sonhos. Será isto tudo um sonho? É preciso sonhar para resistir, resistir para sonhar! Será isto tudo uma alucinação? Como dizia o poeta António Carlos Belchior: será nossa alucinação suportar o dia-a-dia e o nosso delírio são as coisas reais?

É importante falarmos de coisas concretas, da realidade nua e crua que (não) Vemos. Por exemplo, você conseguiu perceber as coisas ausentes no caminho que percorreu da sua casa até aqui? Conseguiu, pelo menos, perceber as coisas ausentes na sua casa? Ver é uma escolha. A escolha parte de um gosto, de um gesto, seja ele político ou estético. Porque as coisas têm de viver neste tédio? Porque vivemos num constante binarismo do isto ou aquilo? Que tédio!

Porque vivemos escolhendo isto ou aquilo o tempo inteiro, sem saber se é melhor isto ou aquilo?6

6 Ou isto ou aquilo (1964). Cecília Meireles.

7 Frase gestada durante o processo de criação.

Há um remédio tão simples como água para curar o tédio. Remédios do sistema para as doenças do sistema.7

Talvez seja preciso mais doses de poesia para suportar o dia-a-dia. Talvez precisemos mesmo parar. Ver. Não é necessariamente sobre visão, porque, um dia perguntaram a um menino o que ele faria se ficasse abdicado da visão. Ele respondeu sem pestanejar: morreria! Desde a mais tenra infância ele fora educado a olhar as coisas do mundo pela frente, esqueceu de olhar para trás. Por isso, vivia distraído com as coisas do mundo. Só conseguia ver como um animal encurralado, domesticado, engatinhando em busca de sua sobrevivência. O menino podia passar cem vezes pela mesma rua sem notar que no passado-presente havia ali uma árvore. A árvore que ele colhera seus frutos. Ver requer cuidado. É necessário percorrer cada célula da tez como quem cura x corpx vulnerável. Às vezes, é necessário confiar nas coisas (in)visíveis.

V é vestir-se dx outrx. V é banhar-se dx outrx. V é comer x outrx para transformar-se em outrx.

O poeta Oswald de Andrade, em 1928, escreveu o manifesto antropofágico em critica à opressão de uma cultura dominante em detrimento de outra. Reatualizando este mito-manifesto, podemos pensar nas ações que repetimos de maneira (in)consciente ao negarmos x outrx como parte de nós. Enquanto houver um só caminho, uma história e formas únicas de ver, não conseguiremos compreender as árvores.

Só me interessa o que não é meu.8

8 Manifesto antropófago (1928). Oswaldo de Andrade

Não é possível escapar as fronteiras O manifesto antropofágico convoca à libertação. Libertar-se é um acto de coragem. É preciso comer x outrx para transformar-se nx outrx. Quem vive na fronteira aprende a transgredir a fronteira. Sorria, você está sendo filmadx!

Precisamos aprender com nossas ancestralidades. Não, não nos curvemos diante da opressão. Comamos x outrx! Estraçalhemos cada órgão, mastiguemos casa víscera. Adubemos com nossas merdas as terras pretas para fazerem crescer as árvores. Mas cuidado! Há oprimidos que não conseguem digerir, defecar, adubar, e passam a repetir a lógica opressora.

manifesto antropofágico fala deste espaço entre. Viver entre fronteiras permite uma abertura constante para o diálogo. Estar entre é ao mesmo tempo ocupar-se de si e dx outrx. Estar entre é dilatar o processo de criação, dxs corpxs. Estar entre é embaralhar aquilo a que se tem como seguro, duvidar daquilo a que compreendemos como centro. É neste espaço dinâmico entre que emerge o processo de criação, dum corpo que sai, dum corpo que entra, dum corpo que anda, para. Respira. Vê. V expõe as síncopes deste processo, daquilo que se dá e recebe em simultâneo.

V constrói-se neste lugar de complexidades entre o ser e o vir a ser, num jogo de dependência e saída da zona segura do que há de mais confortável. V são histórias atravessadas, pelo avesso. Memórias singulares que se tocam, se retroalimentam e se modificam em outras memórias que já não são mais possíveis de nomear, controlar.

16 corpxs ficcionalizam verdades, afrontam medos. O tempo é circular. Os espaços não são neutros, assim como os corpos que os atravessam e por eles são atravessados. Os espaços trazem suas histórias desde uma fábrica que anuncia a presença/ausente de outros corpos, a rua como metáfora concreta da vida, laboratório a céu aberto desta criação.

Aqui habitamos esta antiga fábrica, hoje abandonada, erguida na mesma década que do outro lado do mar Oswaldo de Andrade escreveu o manifesto antropofágico. Retomar aqui este mito-manifesto é também comer este espaço com todas as suas marcas, desenhadas por outras mãos como uma sinergia coletiva e pulsante que transforma a nós e os espaços.

É preciso falar mais sobre os espaços. É preciso voltar a ver a cidade. Há lugares que (não) é suposto estar. Talvez seja este um mito-manifesto sobre as ausências das/nas cidades. É preciso uma cidade mais gentificada feita por gentes e para gentes.

9 Paulo Freire.

A gentificação torna-se um acto ético. Gentificar-se é uma escolha política.9

Dori Nigro, com agradecimento a Paulo Pinto pelas sugestões e leitura atenta

O
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