Haja Saúde n.º 3

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Escola de Medicina Universidade do Minho

Revista Bimestral Gratuita N.˚3 · Outubro 2017

Diretor Gonçalo Cunha

Haja Saúde


“Temos de dar aos alunos a arte e a prática, mas também temos de os fazer cada vez mais humanos.” —João Cerqueira FICH A T ÉCNICA

Proprietário e Editor Alumni Medicina

Editor-Chefe João Lima

Diretor Gonçalo Cunha

Co-Editores João Dourado, Gonçalo Cunha

N.º de Registo na ERC 126906 Depósito Legal 431999/17 Periodicidade Bimestral Tiragem 500 Exemplares

Sede de Redação Escola de Medicina Universidade do Minho Campus de Gualtar, 4710–057 Braga, PT Estatuto editorial disponível no endereço www.revistahajasaude. wordpress.com

Redatores Ana Sofia Milheiro, António MateusPinheiro, Gonçalo Cunha, Inês Braga, João Barbosa Martins, João Lima, Jorge Machado, Jorge Silva, Mário Carneiro, Núria Mascarenhas, Pedro Peixoto, Rita Araújo, Sofia Leal Santos, Tiago Rosa, João Dourado, Sara Leão, Rosélia Lima Revisor Linguístico Jéremy Fontes

Design Editorial OOF Design Ilustrações Marina Mota Fotografias Rui Ochôa, Filipe Lopes, Wapa, Nuno Gonçalves Impressão Gráfica Nascente Travessa Comendador Alberto Sousa, Lote 15 4805-668 Sande, Guimarães


Í N DIC E

NOTÍCI AS

PE S S OA S

O PI N I ÃO

TEMAS

Desafios da Nova Presidência da Escola de Medicina — 13

João Cerqueira Diretor do Mestrado Integrado em Medicina defende que “tudo aquilo que nos permita ser, enquanto médicos, mais pessoas, e nos permita perceber melhor as outras pessoas, é útil para a profissão de médico”

100mg de humanidade Pilar Burrillo Simões — 56

O Médico e o Corpo Humano João Barbosa Martins

Os Domínios Verticais Germinaram e Desenvolveram José Manuel Mendes — 58

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E N T R E V I S TA

A humanização do estudante de Medicina Rosélia Lima relata os ensinamentos com Mark Mekelburg — 59

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A comunicação faz a relação clínica Pedro Morgado refere que “as competências de comunicação e relação clínicas devem ser treinadas e avaliadas em todos os momentos da formação dos médicos” — 60

Baby Driver, Edgar Wright Jorge Machado

Centro Clínico Académico prepara-se para acolher unidade de Fase I Investigadores da Escola de Medicina propõem alargar ensaios clínicos — 19 Investigadora do ICVS avança com primeiro inquérito nacional aos hemofílicos — 23 Nova Cátedra promove Humanidades em Medicina Cecília Leão conta que a Inclusão das Humanidades na Medicina “tem sido muito positiva” — 27 Experiências educativas da Escola de Medicina publicadas em artigos científicos — 31

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António Cunha Da Escola de Medicina para a Federação Portuguesa de Futebol PERFIL

— 45

Joaquim Pinto Machado Mentor e fundador da Escola de Medicina da Universidade do Minho BIOGRAFIA

— 51

S E X U A L I DA D E

Diário de um Louco, Nikolái Gógol Rosélia Lima L I T E R AT U R A

Poema Magna Rodrigues L I T E R AT U R A

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CINEMA

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O paradoxo do Rap lento Diogo Cruz introduz The Art of Slowing Down, o novo álbum de Slow J M Ú SI CA

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Infeção crónica e o papel do miR-31 Pedro Peixoto CIÊNCIA

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E DI TOR I A L

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O Mestrado Integrado em Medicina na Universidade do Minho tem na sua matriz genética uma visão humanística. Nesta escola acredita-se que um médico humano é um melhor médico. Desta forma, elevar a relevância da formação humanística dos prestadores de cuidados de saúde é não só um dever, como um imperativo ético! A Escola de Medicina da Universidade do Minho orgulha-se do seu modelo formativo bio-psico-social. Orgulha-se do valor que dá à formação holística dos futuros médicos. Orgulha-se também dos médicos que formou, e que está a formar.


EDITOR I A L

Este ano, quisemos ir mais além e ins- mais consciente da perspetiva do doente. crevemos as Humanidades em Medicina Trabalhar as humanidades em Medicina como uma prioridade crítica das políticas melhora a capacidade de comunicação, estratégicas da Escola de Medicina. O en- o nível de conforto no ambiente clínico, foque nesta área foi consubstanciado pela e mesmo de diagnosticar e tratar. Com criação de uma área científico-pedagógi- efeito, os alunos com maior empenho e ca própria e pela criação da cátedra Joa- melhor desempenho em humanidades quim Pinto Machado, ambas sob a batuta também revelam melhor desempenho da Professora Cecília Leão. académico. Estudos adicionais são cerA nossa filosofia pedagógica acredita tamente necessários para definir o papel que as humanidades em medicina cons- que as humanidades médicas têm no entituem a essência do Ser Médico – na sua sino médico; em particular, são necessádimensão mais profunda de serviço ao rios estudos quantitativos para avaliar o outro – transportando-a da mera aplica- impacto que pode ter sobre o desempeção de algoritmos de decisão clínica para nho do futuro médico. a dimensão da relação entre Homens. Daí Em suma, as escolas médicas, e as coque nos pareça essencial inscrever as no- munidades que estas servem, ficam enrivas abordagens pedagógicas e de investi- quecidas pela presença de formação e ingação como uma prioridade para a Escola vestigação em humanidades em Medicina, de Medicina, para o ICVS e para o 2CA. pelo que a nossa aposta na criação de uma Desta forma poderemos, nos próximos área científico-pedagógica e uma Cátedra anos, estar melhor preparados para en- nesta área está em absoluto alinhamento frentar os novos desafios que a prestação com a nossa Missão e Visão.  de cuidados de saúde, em contextos de permanente mudança, coloca. Mais, poderemos contribuir de forma ativa para a geração de novos conhecimentos com aplicabilidade nos domínios clínicos e pedagógicos, na mesma linha do que temos feito ao longo dos anos, nesta área. A educação médica reconheceu há muito tempo que os médicos em formação exigem mais do que apenas uma comNuno Sousa preensão dos princípios científicos para Presidente da se tornarem profissionais competentes Escola de Medicina da e proficientes. Já no início da década de Universidade do Minho 1920, Francis Peabody lamentava que “os jovens alunos receberam uma ótima formação sobre os mecanismos da doença, mas muito pouco sobre a prática da medicina”. A inclusão das humanidades na educação médica oferece benefícios significativos para os futuros médicos individualmente e para a comunidade médica como um todo. Alguns desses benefícios podem incluir a criação de uma profissão médica mais diversificada e

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Se podes olhar, vĂŞ. Se podes ver, repara. JosĂŠ Saramago

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E DI TOR I A L

EDITOR I A L

Gonçalo Cunha Aluno do 4.º ano do Curso de Medicina

A busca pelo sentido da vida começou há sabe, tal como os professores Joaquim muito tempo atrás e, embora vivamos no Pinto Machado e Abel Salazar, respetiséculo XXI, continuamos, muitas vezes, vamente, previram que seria. É, a partir sem saber quem somos, de onde vimos e daqui, que devemos, enquanto médicos para onde vamos. Vivemos assoberbados ou projeto de médicos, pensar no nosso de trabalho, chegando ao ponto de não papel na sociedade e não apenas profistermos tempo para pensar nos porquês sionalmente. do dia-a-dia, automatizados para realiA mudança e a inovação são, deste zar um determinado conjunto de ações, modo, uma constante e estamos perante o mais corretamente possível. ela mais frequentemente do que achaMuito poucos se questionam sobre o mos. A mudança chegou, uma vez mais, papel que têm na sua vida e na vida dos ao Haja Saúde, que preparou uma nova outros e, esses, os que se questionam, edição repleta de novidades em parceria nem sempre acham uma resposta correta, com a Escola de Medicina da Universiembora se destaquem pelo humanismo, dade do Minho. Celebrando o dia da Esao qual está inerente uma grande preo- cola, retomamos um tema que é uma das cupação e dedicação pelos que o rodeiam suas ‘imagens de marca’ – o humanismo e a si recorrem. É esse humanismo que a e a humanização dos cuidados de saúde. classe médica tem vindo a procurar nos últimos anos, depois de um conjunto de pessoas ter percebido, e bem, que a aproximação ao doente é um elemento fundamental para o tratamento e para a cura. Vivemos na época em que nada do que é humano é estranho ao médico, na qual quem só sabe de Medicina nem de Medicina

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O  A NO  E M  R E V ISTA


O A NO EM R EV ISTA

Presidente da República visitou Centro Clínico Académico A 25 de novembro, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa visitou o Centro Clínico Académico (2CA-Braga), uma parceira entre a Escola de Medicina da Universidade do Minho e o Hospital de Braga. Após ter assistido a uma apresentação sobre o 2CA-Braga, o Presidente visitou as instalações, tendo ouvido o testemunho de investigadores e participantes em ensaios clínicos.

Investigadora do ICVS venceu Prémio L’Oréal com Trabalho sobre Malária A investigadora do ICVS Isabel Veiga foi distinguida a 8 de fevereiro com uma Medalha de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência, numa cerimónia que contou com a presença do Presidente da República. A cientista recebeu 15 mil euros para estudar mecanismos de resistência aos fármacos que o parasita da malária adquire. Isabel Veiga licenciou-se no Instituto Politécnico de Bragança e fez o seu doutoramento no Instituto Karolinska (Suécia). É pós-doutorada pelo Instituto Karolinska e pelas universidades do Minho e Columbia (EUA).


O A NO EM R EV ISTA

Escola de Medicina tem Novo Presidente Teve lugar no dia 5 de maio a tomada de posse da nova presidência da Escola de Medicina (EM). O professor Nuno Sousa é o novo presidente da Escola de Medicina e terá como vice-presidentes para o triénio 2017/2020 os professores Jorge Pedrosa, Joana Palha e Pedro Morgado. A cerimónia, que se realizou no auditório Zulmira Simões da EM, foi presidida pelo reitor da UMinho, António Cunha. (ver destaque na página 13)

Cientistas promovem Atividades para a Comunidade

Universidade do Minho abriu o Campus à Sociedade

Foram mais de 1500 os estudantes de vários níveis de ensino, incluindo universidades seniores, envolvidos nas atividades promovidas pelo ICVS para a comunidade. Ao longo do ano os investigadores do ICVS abriram as portas dos laboratórios e promoveram atividades para o público em geral, no âmbito da Semana Internacional do Cérebro, da Semana da Epidemia da Ciência e do ABC da Cirurgia. Simultaneamente, os investigadores deslocaram-se às escolas para falarem sobre os vários domínios de investigação do ICVS.

A Universidade do Minho abriu as portas aos estudantes do ensino básico e secundário nos dias 24 e 25 de março com o objetivo de promover a oferta formativa ao nível da graduação. O Open Weekend 2017 trouxe cerca de 80 alunos à Escola de Medicina e aos laboratórios do ICVS.


O A NO EM R EV ISTA

Congresso reuniu 300 Neurocientistas em Braga Mais de 300 neurocientistas estiveram reunidos em Braga durante o XV Congresso da Sociedade Portuguesa de Neurociências, que se realizou entre os dias 25 e 26 de maio de 2017. A comissão organizadora foi composta por investigadores do domínio de Neurociências do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS), sendo presidida pelo investigador João Oliveira.

A Escola de Medicina na Primeira Pessoa Ao longo deste ano fomos divulgando diversos vídeos testemunhais sobre a Escola de Medicina. Nesta rubrica, alunos e antigos alunos, docentes, investigadores e funcionários partilham as suas experiências na Escola de Medicina. Os vídeos podem ser (re)vistos no site da Escola (www.med.uminho.pt) ou no Facebook (@med.uminho).

Professor da Escola de Medicina venceu Prémio Europeu de Cuidados Paliativos Miguel Julião, professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho, recebeu o Clinical Impact Award da Associação Europeia de Cuidados Paliativos, um dos principais prémios mundiais na área. A distinção reconheceu a eficácia da sua “Terapia da Dignidade” no combate ao sofrimento psicológico e existencial dos doentes em fim de vida. Miguel Julião nasceu há 36 anos em Lisboa. É doutorado em Cuidados Paliativos pela Universidade de Lisboa e especialista em Medicina Geral e Familiar.


NOTÍCI AS

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NO T ÍC I A S “Se nós não conseguimos ser suficientemente plásticos para nos adaptarmos a um conjunto de novas realidades, não vamos estar a ser capazes de preparar os médicos que o país precisa para o futuro.” — Nuno Sousa

Desafios da Nova Presidência da Escola de Medicina — página seguinte

Desafios da Nova Presidência da Escola de Medicina — 13 Centro Clínico Académico prepara-se para acolher unidade de Fase I Investigadores da Escola de Medicina propõem alargar ensaios clínicos — 19 Investigadora do ICVS avança com primeiro inquérito nacional aos hemofílicos — 23 Nova Cátedra promove Humanidades em Medicina Cecília Leão conta que a Inclusão das Humanidades na Medicina “tem sido muito positiva” — 27 Experiências educativas da Escola de Medicina publicadas em artigos científicos — 31


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Desafios da Nova Presidência da Escola de Medicina E S C OL A DE M E DIC I N A A M BIC ION A GE R I R U N I DA DE DE C U I DA D O S DE SAÚ DE

T EX TO R ITA A R AÚJO


NOTÍCI AS

A atual presidência da Escola de Medicina, composta por Nuno Sousa (presidente), Jorge Pedrosa, Joana Palha e Pedro Morgado (vice-presidentes), tomou posse no dia 5 de maio de 2017, numa cerimónia que encheu o auditório Zulmira Simões.

Para o mandato que teve início há cerca de blinha estes aspetos, sem esquecer a misseis meses, Nuno Sousa propõe um plano são da Escola de Medicina: “Melhorar os de ação que, por um lado, dá continuida- cuidados de saúde, através da formação e de ao trabalho que até aqui foi feito pelos da geração de conhecimento e valor”. seus antecessores e, por outro, introduz Para concretizar esta missão, a EM tem uma vertente de mudança. Isto porque uma estratégia bem definida e assente em “a renovação é o único garante para en- vários pilares, nomeadamente a integração frentar com sucesso os novos contextos científico-pedagógica; a aprendizagem e desafios”, pode ler-se no manifesto de centrada na evidência e na relevância clínicandidatura. Deste modo, a nova equipa ca, antecipando as necessidades da prática propõe-se alcançar novas metas e novos médica no futuro; a (co)responsabilidade desafios, tendo sempre presentes os va- de cada um na construção do seu currículo; lores que norteiam a missão da EM e de e a noção de que a investigação é uma comque é exemplo a cultura do escrutínio. ponente central ao projeto educativo. Nos próximos quatro anos, coadjuvado Em entrevista, Nuno Sousa afirma que por uma equipa de três vice-presidentes, “a maior parte das decisões são mais inteNuno Sousa pretende “expandir os ca- ressantes se forem tomadas coletivamente”. nais de comunicação e envolver todos na Daí surge a necessidade de envolver as definição dos planos estratégicos” da Es- pessoas nas decisões da Escola, de tornar cola. No final, o objetivo é fazer da Escola o processo de tomada de decisão mais de Medicina “uma referência internacio- participativo. “Em muitos dos casos, as nal nas suas múltiplas dimensões, assu- decisões são tomadas pelos órgãos respemindo a responsabilidade de ser a pivot tivos. Se conseguirmos criar mecanismos de um cluster de saúde”. complementares em que as pessoas posO manifesto apresentado pela equipa sam ouvir os argumentos de diferentes inaquando da candidatura à presidência su- terlocutores, [o processo] passa a ser mui-

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to mais participado, mais ponderado, e o Embora considere o currículo atual resultado final pode ser mais interessante”, “inovador”, “a verdade é que há hoje ouexplica o presidente da EM. Assim, e para tras necessidades e ferramentas que têm “todas as decisões que tenham algum peso”, de ser usadas”. Este processo deverá culos vários grupos da comunidade da EM minar com a implementação de um novo podem ser chamados a contribuir. currículo no ano letivo 2020/2021 e, Neste sentido, Nuno Sousa reconhece para Nuno Sousa, representa a “manuque a reestruturação do currículo do Mes- tenção do espírito inovador na casa, que trado Integrado em Medicina “é um exce- é muito importante”. lente exemplo” do processo participativo Nos próximos três anos, a nova equina Escola. A primeira fase desta reestru- pa da presidência terá pela frente vários turação já começou e consiste em ouvir as desafios, um dos quais passa pela reespessoas envolvidas no processo, como do- truturação do currículo do curso de centes, investigadores, alunos, ex-alunos, medicina. Nuno Sousa garante que este parceiros, associações de doentes, doentes “seguramente é o maior desafio”, porque estandardizados, empresas, entre outros. também “é o mandato mais óbvio da Isto porque “é importante estarmos aten- missão da instituição”. tos à perspetiva dos outros relativamente As mudanças no currículo deverão ao currículo e ao que eles antecipam que acompanhar a evolução do exercício da vão ser as necessidades” do futuro. “Se medicina. Assim, o presidente da EM nós não conseguimos ser suficientemente considera que o clínico do futuro “é um plásticos para nos adaptarmos a um con- médico que é competente nos saberes junto de novas realidades, não vamos es- e que é competente num conjunto de tar a ser capazes de preparar os médicos aspetos técnicos associados à medicina, que o país precisa para o futuro”, alerta o que vão desde as competências de comupresidente da Escola de Medicina. nicação até competências clínicas”.

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Nuno Sousa a discursar na tomada de posse


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“Vamos ter mais acesso a tecnologia que é disruptiva e que vai permitir que consigamos ter uma atitude diferente para com os doentes.” —Nuno Sousa


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O que é o P5-Medicine? O conceito do P5 é baseado na evidência e é dirigido a problemas reais. Será constituído por uma unidade de saúde familiar e complementado por apoio especializado, privilegiando uma abordagem multidisciplinar e o uso das tecnologias digitais de forma a promover o engagement e a centralidade do utente.

Embora estas caraterísticas não Vale a pena ter se estiverem asseguradas sejam propriamente novas, num futu- duas condições: “esses cuidados de saúro próximo “vamos ter mais acesso a de têm de ser diferenciadores” e devem tecnologia que é disruptiva e que vai estar “focados em áreas onde o sistema permitir que consigamos ter uma ati- nacional de saúde é menos forte”. Assim, tude diferente para com os doentes”. pretende-se que o P5-Medicine funcione Os doentes tornam-se mais proativos como uma interface entre os cuidados de em relação ao processo de decisão e ges- saúde primários e os cuidados hospitatão da sua própria saúde. Isto porque “a lares e que se foque na gestão da doença medicina está a mudar também no seu crónica. “É aí que achamos que podemos contexto”, explica, defendendo que “é contribuir de uma forma significativa preciso apostar nos cuidados continua- e é aí que estão centrados os esforços dos, na gestão da doença crónica, e nos desta iniciativa”, conta o presidente da cuidados preventivos”. Escola de Medicina. Conforme plasmaOutra das “grandes metas desta equi- do no manifesto de candidatura, “esta pa” passa pela constituição do P5-Me- experiência, a primeira onde a nossa Esdicine, que pretende ser uma unidade cola terá um papel partilhado de gestão, prestadora de cuidados de saúde. A este constitui um grande desafio, mas tampropósito, Nuno Sousa questiona: “Será bém uma enorme oportunidade”. que esta escola médica, que tem sido um elemento catalisador de um conjunto de coisas, pode (e deve) ter também responsabilidades na prestação de cuidados de saúde? A tradição em Portugal é não ter, nós aqui achamos que vale a pena ter”.


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Centro Clínico Académico prepara-se para acolher unidade de Fase I I N V E S T IG A D OR E S DA E S C OL A DE M E DIC I N A PROP ÕE M A L A RG A R E NSA IO S C L Í N IC O S


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participantes em múltiplas áreas de investigação

Um projeto de investigação financiado pelo Portugal 2020 e sediado na Escola de Medicina da Universidade do Minho pretende optimizar a investigação clínica e a validação de estudos, de forma a permitir a consolidação do Centro Clínico Académico-Braga (2CA-Braga) e a preparar esta unidade para receber ensaios clínicos de fase I. Liderado por Nuno Sousa, o projeto, que deve terminar em dezembro de 2018, engloba uma equipa multidisciplinar constituída por investigadores do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS) e do 2CA-Braga. O objetivo da investigação é consolidar a investigação clínica na EM, através do 2CA-Braga, pela constituição de uma unidade de fase I, o que vai contribuir para o enriquecimento do tecido científico, tecnológico e económico da região. A implementação da unidade de fase I vai acontecer em duas vertentes, uma relacionada com a adequação das infraestruturas do Centro Clínico Académico e outra focada na formação de todos os agentes envolvidos.

Tem havido um aumento significativo de investigação biomédica em Portugal nas últimas décadas, embora esse aumento não seja acompanhado de investigação clínica. Assiste-se também ao desenvolvimento, particularmente no Norte de Portugal, de start-ups e spin-offs na área da saúde e cuidados de saúde. No entanto, estas empresas não têm capacidade para desenvolver estudos de validação em contexto clínico, o que também acontece com a maioria dos investigadores – que não têm o apoio de centros clínicos académicos. Os centros clínicos académicos estão no centro dos sistemas de saúde, uma vez que acolhem os pacientes e doenças mais desafiantes e contribuem para o treino de clínicos e investigadores. Fundamentalmente, promovem o desenvolvimento e validação de novos tratamentos e produtos. Assim, do reconhecimento desta necessidade foi criado, em 2013, o 2CA-Braga, resultando de uma parceria entre a EM e o Hospital de Braga e constituindo-se como uma estrutura que faz a ponte entre


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estudos clínicos

73 de iniciativa comercial 51 de iniciativa de investigadores

a investigação académica e a investigação tico e farmacodinâmico. A fase II tem clínica. Desde a sua criação, o número de objetivos terapêuticos e pretende avaensaios clínicos aumentou significativa- liar a eficácia terapêutica de uma droga, mente na região, sendo que atualmente para além de questões relacionadas com mais de um terço dos ensaios clínicos a dosagem e o regime terapêutico. Os realizados em Portugal está também em estudos de fase III pretendem demonscurso no 2CA-Braga. Neste momento, o trar, ou confirmar, o benefício terapêu2CA-Braga acolhe ensaios clínicos nas tico e a eficácia e segurança do fármaco, fases II, III e IV. Uma vez que os labora- de forma a obterem Autorização de Intórios da UMinho e as spin-offs da região trodução no Mercado (AIM) por parte já realizam estudos pré-clínicos, a capa- do Infarmed – Autoridade Nacional do citação do 2CA-Braga numa unidade de Medicamento. Por fim, a fase IV aconfase I vai completar a oferta deste tipo de tece após a AIM e tem como propósito estudos no Norte do país. otimizar o uso do medicamento e avaliar Os ensaios clínicos são estudos feitos potenciais interações medicamentosas no ser humano, pelo que devem ser cui- ou efeitos adversos. Mais informações dadosamente desenhados, conduzidos e em www.ccabraga.org. controlados segundo protocolos que assegurem o cumprimento de elevados padrões de segurança, tratamento dos doen- Este projeto inscreve-se no Programa Operacional tes, qualidade e interpretação dos dados. Regional do Norte, Os ensaios clínicos de fase I não têm Portugal 2020, do Eixo objetivos terapêuticos e pretendem fa- Prioritário Investigação, desenvolvimento zer uma avaliação inicial de segurança e tecnológico e inovação Norte 46-2015-03), tolerabilidade a um fármaco através da (Aviso com a referência NORTE-01caracterização dos perfis farmacociné- -0246-FEDER-000012.

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Investigadora do ICVS avança com primeiro inquérito nacional aos hemofílicos PAT R ÍC I A PI N TO DE DIC A-S E AO E S T U D O DA D OR

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Patrícia Pinto é investigadora de pós-doutoramento no Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS) com uma bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Licenciada em Psicologia pela Universidade do Porto e doutorada em Psicologia da Saúde, a sua investigação foca-se na área da dor cirúrgica. O projeto de investigação no qual é investigadora principal teve início, com financiamento da indústria farmacêutica, em abril de 2016 e tem final previsto para dezembro de 2018. Este projeto estuda a eficácia de duas intervenções psicológicas na prevenção e gestão da dor, na regulação emocional e promoção da qualidade de vida das pessoas com hemofilia. A investigação em curso tem como objetivo fazer o primeiro inquérito nacional junto dos hemofílicos portugueses e estabelece, para isso, uma parceria com o serviço de Imuno-Hemoterapia do Hospital de São João, no Porto, e a Associação Portuguesa de Hemofílicos (APH). Não há registo de hemofílicos em Portugal, pelo que a investigadora pretende fazer o mapeamento da doença no nosso país e construir uma base de dados que nos permita saber onde estão e quem são estes doentes. O registo na Associação Portuguesa de Hemofílicos é voluntário e estima-se que existam entre 700 e 800 hemofílicos em Portugal. Através da base de dados existente na APH, foram enviados inquéritos a 500 doentes, sendo que o número de respondentes se ficou pelos 146.

O inquérito centra-se na dor e gestão da dor, contemplando também uma vertente psicossocial em que se aborda a sintomatologia mais frequente, a qualidade de vida, e os fatores preditivos de dor, como a ansiedade. Este documento pretende fazer uma caracterização sociodemográfica da população com hemofilia, para além de uma descrição clínica que se foca na caracterização da dor e articulações mais afetadas. Os doentes são também questionados sobre comorbilidades, uma vez que a hepatite C e o VIH são as doenças mais frequentemente associadas à hemofilia. Foram distribuídas três versões deste inquérito nacional: uma dirigida a adultos; outra para jovens entre os 10 e os 17 anos; e outra para crianças com idade inferior a 10 anos de idade (a ser respondido pelos pais). A fase seguinte nesta investigação, que tem início previsto para o final do ano de 2017, envolve um estudo clínico randomizado com intervenção, a ser realizado em três grupos de doentes: um grupo de controlo; um grupo que será submetido a hipnose; e outro grupo que terá uma intervenção psicológica com recurso a terapia cognitivo-comportamental. Estas intervenções pretendem promover a melhoria do estado emocional e da qualidade de vida dos hemofílicos, melhorando também a gestão da dor. Serão também realizadas ecografias e radiografias, de forma a perceber se as intervenções tiveram impacto na dor.


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A hemofilia é uma doença rara, crónica, que consiste numa deficiência congénita no processo de coagulação do sangue, que se torna mais demorado ou inexistente. É uma doença de transmissão genética associada ao cromossoma X, estando mais presente em indivíduos do sexo masculino. Um dos maiores problemas da hemofilia prende-se com a possibilidade de provocar dores nas articulações resultantes de hemorragias espontâneas, chamadas hemartroses.


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Nova Cátedra promove Humanidades em Medicina C E C Í L I A L E ÃO C ON TA QU E A I NC LUSÃO DA S H U M A N I DA DE S N A M E DIC I N A “ T E M SI D O M U I TO P O SI T I VA”

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A criação da Cátedra Alumni Medicina – Professor Pinto Machado constitui-se como “mais um dos marcos históricos na consolidação do projeto da Escola de Medicina, numa demanda permanente de inovar e melhorar”.

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A Escola de Medicina (EM) da Universidade do Minho (UM) demonstra, desde a sua criação, uma preocupação notória com as Humanidades aplicadas à Medicina. As unidades curriculares de Domínios Verticais, que são transversais a todo o Mestrado Integrado em Medicina, comprovam a forte componente dedicada às Humanidades. A partir do ano letivo que agora se inicia, a Escola de Medicina conta com uma nova área científico-pedagógica, liderada pela Professora Cecília Leão. A par da criação deste domínio, a fundação da Cátedra Alumni Medicina-Professor Pinto Machado vem também reforçar a presença das Humanidades na Escola de Medicina, nomeadamente através de uma dotação orçamental própria. Este foi o mote para uma conversa com Cecília Leão, impulsionadora das Humanidades na Escola de Medicina da Universidade do Minho. A docente considera que a inclusão das humanidades no curso “tem sido muito positiva, face à adesão dos estudantes e às opiniões dos convidados para as sessões”. Cecília Leão recorda as palavras do professor Joaquim Pinto Machado, um dos fundadores do curso de Medicina da UMinho, para justificar a importância da vertente humanística associada à Medicina: “Nada do que é humano é estranho ao médico”. Pinto Machado defendia a importância de “introduzir na formação dos estudantes aquele humano que escapa e escapará à lupa da ciência, pois não é do seu domínio”. Tendo presente esta ideia, a Escola de Medicina “integrou formalmente esta vertente das humanidades no plano de estudos do seu curso de Medicina, através dos Domínios Verticais”.

Estas unidades curriculares (UC) estão presentes ao longo de todo o curso, do 1º ao 5º anos, e a coordenadora das UC explica que incluem “uma diversidade de temas, passando pela ética e bioética, arte, literatura, religião, solidariedade e história da medicina”. Tudo isto acontece a partir de uma “abordagem integrada e articulada com a formação médica, compensando o paradigma científico dominante”. A criação da Cátedra Alumni Medicina-Professor Pinto Machado constitui-se como “mais um dos marcos históricos na consolidação do projeto da EM, numa demanda permanente de inovar e melhorar”. A ex-presidente da EM destaca a parceria com a Alumni Medicina, que considera um “parceiro imprescindível da construção do projeto da Escola” e sublinha a “homenagem à figura ímpar do académico e humanista professor Pinto Machado”. Cecília Leão antevê que, no âmbito da Cátedra, seja possível viabilizar projetos de ensino e de investigação no domínio das Humanidades em Medicina, o que por sua vez vai contribuir para “aprofundar uma área central na missão da EM”. A formalização desta área tem ainda como objetivo a consolidação do domínio científico-pedagógico das Humanidades na EM ao nível de subunidade orgânica. Pretende-se, com isso, contribuir para a transmissão de conhecimentos nesta área, “assegurando formação não só ao nível da graduação, mas também da pós-graduação e da formação contínua dos médicos e profissionais de saúde, bem como investigação na área das humanidades”, explica Cecília Leão.


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Experiências educativas da Escola de Medicina publicadas em artigos científicos T EX TO R ITA A R AÚJO

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A abordagem da educação médica defendida pela EM foca-se na aquisição de competências através da aprendizagem ativa e da prática, seguindo a premissa de que o médico não deve apenas “saber fazer” mas também “mostrar que sabe fazer”. Durante o ano de 2017 foram publicados três artigos científicos sobre as experiências educativas da Escola de Medicina. Um dos artigos foi publicado na Acta Médica Portuguesa e descreve os 15 anos de experiência do Laboratório de Aptidões Clínicas (LAC), estrutura que funciona em vários domínios da formação, nomeadamente pré e pós-graduada. A abordagem da educação médica defendida pela EM foca-se na aquisição de competências através da aprendizagem ativa e da prática, seguindo a premissa de que o médico não deve apenas “saber fazer” mas também “mostrar que sabe fazer”. A estrutura do LAC é apoiada por um programa de pacientes estandardizados, que conta já com mais de 50 pacientes e 100 histórias clínicas com checklists validadas. Outro artigo, publicado na Fundación Educación Médica, revê a implementação do projeto da Escola de Medicina, que tem como missão a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde através da educação e da investigação e se constitui como inovador no panorama nacional. A avaliação destes últimos 15 anos demonstra que os estudantes da EM ficam mais bem classificados no exame nacional de acesso à especialidade do que os estudantes de outras universidades.

Também ao nível da avaliação de competências clínicas, os alunos de medicina do Minho ocupam posições cimeiras. Outro aspeto decisivo na constituição do projeto da EM foi a decisão de integrar, no mesmo edifício, um instituto de investigação, o ICVS, o que contribui para a prossecução da missão da EM. O terceiro artigo, publicado na Acta Médica Portuguesa, foca-se nos exames de avaliação de competências clínicas usados no curso de Medicina e que constituem um procedimento pioneiro em Portugal. O domínio das aptidões de colheita de história e do exame físico é uma competência chave para os estudantes de medicina. Embora os Exames Clínicos Estruturados por Objectivos (OSCE) sejam o instrumento indicado para avaliar estas competências, há poucos relatos sobre a sua implementação em Portugal. Este vem colmatar esta falha, descrevendo a experiência de sete anos de aplicação destes exames. Os resultados apontam para uma boa distribuição das notas de exame, que permitem a diferenciação entre os estudantes. As notas da colheita da história clínica têm permanecido estáveis ao longo do tempo, embora sejam inferiores às do exame físico – que têm vindo a aumentar.

Estudantes de Medicina na aula de Anatomia e no Laboratório de Aptidões Clínicas


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PE S S OA S “Temos, desde o princípio até ao fim do curso, uma grande componente que podemos chamar de Humanidades, e isso é claramente algo muito positivo. É uma marca distintiva tão grande que estamos em processo de criar uma nova área científico-pedagógica precisamente com esse foco das Humanidades.” — João Cerqueira

Entrevista ao diretor do Mestrado Integrado em Medicina — página seguinte

João Cerqueira Diretor do Mestrado Integrado em Medicina defende que “tudo aquilo que nos permita ser, enquanto médicos, mais pessoas, e nos permita perceber melhor as outras pessoas, é útil para a profissão de médico” E N T R E V I S TA

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António Cunha Da Escola de Medicina para a Federação Portuguesa de Futebol PERFIL

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Joaquim Pinto Machado Mentor e fundador da Escola de Medicina da Universidade do Minho BIOGRAFIA

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João Cerqueira E N T R E V I S TA AO DI R E TOR D O M E S T R A D O I N T E GR A D O E M M E DIC I N A

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Docente na Escola de Medicina há 16 anos, João Cerqueira tomou posse recentemente como diretor do Mestrado Integrado em Medicina. Nesta entrevista, enumera algumas características distintivas deste projeto educativo, do qual faz parte desde o início, nomeadamente o contacto com as Humanidades e a preocupação com o bem-estar dos doentes. João Cerqueira revela que a Escola de Medicina quer começar a formar os médicos do futuro. Assim, durante os próximos anos, os desafios da nova direção do Mestrado irão passar pela reestruturação do currículo do curso e a adaptação às novas realidades da medicina.


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HAJA SAÚDE De que forma é que o Mestrado Integrado em Medicina (MIM) da Universidade do Minho se distingue dos restantes cursos médicos? JOÃO CERQUEIRA Este curso de medicina distingue-se dos outros por algumas características do próprio curso e pela maneira como os nossos graduados chegam aos hospitais ou aos centros de saúde. Do ponto de vista da organização do curso, o que nos distingue é uma grande capacidade de fazer coisas. Os nossos alunos têm um contacto muito grande com a prática, fazem muito durante o curso e têm uma grande autonomia, do ponto de vista das competências. Outra característica importante é a maneira como o nosso currículo está organizado de forma integrada. A aquisição de competências e de conhecimentos dos nossos alunos é feita de maneira muito integrada, o que facilita a aquisição, mas sobretudo facilita a organização da estrutura mental dos alunos e a prática. Outra característica muito distintiva, e que acreditamos

que tem um impacto muito grande na prática, embora provavelmente seja mais difícil de demonstrar, é a forte presença das Humanidades no curso. Isso é talvez a nossa maior diferença em relação às outras universidades e aos outros cursos de medicina. Temos, desde o princípio até ao fim do curso, uma grande componente que podemos chamar de Humanidades, e isso é claramente algo muito positivo. É uma marca distintiva tão grande que estamos em processo de criar uma nova área científico-pedagógica precisamente com esse foco das Humanidades. Em que sentido é que as Ciências Sociais e as Humanidades são importantes na formação do médico? O professor Pinto Machado tinha uma frase que toda a gente cita muitas vezes: “Nada do que é humano é estranho ao médico”. E isto é de facto uma verdade. Se é verdade que a medicina é uma ciência e uma arte, é feita por pessoas e para pessoas. E isso nunca se pode esquecer.

João Cerqueira e alunos durante a aula de Anatomia


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“Uma das coisas que nos distingue, pelo menos no panorama nacional, é que o nosso Laboratório de Aptidões Clínicas tem um programa de pacientes estandardizados.” —João Cerqueira


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Tudo aquilo que nos permita ser, enquanto médicos, mais pessoas, e nos permita perceber melhor as outras pessoas, é útil para a profissão de médico. E daí este lugar que queremos dar às Humanidades na medicina, porque são as Ciências Sociais e as Humanidades que nos dão esse lado mais humano. Temos de dar aos alunos a arte e a prática, mas também temos de os fazer cada vez mais humanos. É por isso que colocamos as Humanidades no centro, porque achamos que sendo nós mais humanos podemos tratar melhor os nossos doentes e percebê-los melhor. Sentimos agora que havia necessidade de lhe dar mais dignidade, e daí a criação de uma área científico-pedagógica própria. Ao mesmo tempo, criámos a Cátedra Alumni Medicina – Professor Pinto Machado, cujo objetivo é exatamente o mesmo, o de dar maior dignidade e visibilidade às Humanidades no curso. Esta cátedra vai permitir duas coisas muito importantes. Por um lado, que o detentor da cátedra possa ter um mandato mais claro para prosseguir estes objetivos e ser o embaixador das Humanidades e, por outro, permitir, através da dotação orçamental que lhe está associada, desenvolver ainda mais determinadas iniciativas.

Queremos que o médico tenha o serviço ao doente no cerne da sua atuação. Nós, de facto, achamos que os nossos médicos têm de ser assim, porque queremos que eles sejam bons e só assim se pode ser um bom médico. E por isso é que toda a filosofia do curso está orientada para isto. Esta introdução das Humanidades no curso de medicina, a maneira como os nossos alunos logo desde o princípio contactam com a realidade clínica, com os doentes, a maneira como contactam com o ambiente do doente, todo o contacto que têm nos Laboratórios de Aptidões Clínicas (LAC) com os pacientes estandardizados, tudo está pensado para que os nossos alunos vão mergulhando nesta realidade e aquilo seja já parte deles. Não queremos que haja uma distinção demasiado óbvia entre o que é conhecimento técnico e o que é esta centralidade do doente. Queremos fazer tudo ao mesmo tempo, e queremos que para o aluno seja natural que quando pensa do ponto de vista técnico e científico também tenha sempre com ele a centralidade do doente. Talvez isto seja uma das características que se nota mais. Os nossos alunos pensam bastante no doente, no sentido em que têm noção de que o doente é que é a razão de ser da sua profissão.

Uma das preocupações do MIM é transmitir aos alunos a centralidade do doente. O doente não deveria estar sempre no centro do processo médico? A nossa preocupação é, acima de tudo, formar os melhores médicos possíveis. Não queremos formar médicos melhores que os outros, queremos formar médicos bons. Obviamente que, para isso, é preciso ter médicos muito competentes do ponto de vista do conhecimento e do ponto de vista prático – saber como fazer e fazê-lo bem. Mas para que tudo isto funcione é preciso que os médicos percebam claramente que a razão de ser deles é o doente. E isto é verdade em qualquer parte do mundo.

Qual é o papel do Laboratório de Aptidões Clínicas na formação destas competências? Na maior parte das vezes, quando pensamos num LAC pensamos num sítio onde há simuladores, manequins, bonecos… e isso muitas vezes permite treinar muito bem competências técnicas, mas num ambiente quase asséptico. Uma das coisas que nos distingue, pelo menos no panorama nacional, é que o nosso LAC tem um programa de pacientes estandardizados. Inicialmente foi criado com o intuito de permitir o treino da colheita de história clínica de uma forma padronizada, mas evoluiu para uma poderosa ferramenta de treino de comunicação e relação com o doente, num ambiente mais


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controlado do que aquele que existe nas instituições prestadoras de cuidados de saúde. Neste momento, é uma ferramenta poderosíssima porque os nossos alunos, quando estão a aprender a fazer manobras de exame físico, fazem-no não em modelos de plástico, mas sim em pessoas. E, por isso, ao mesmo tempo que treinam os gestos, também treinam a relação e a sensibilidade para com o doente. É uma experiência muito curiosa ver a primeira aula dos alunos com um paciente estandardizado, porque os alunos parece que têm pudor em chegar-se perto do doente e de lhe tocar. A relação com os doentes e os limites dessa relação são treinados com os atores, no exame físico, na entrevista clínica, e também num modelo de treino que estamos a implementar e que consiste em ter um manequim de plástico para procedimentos mais invasivos, mas também ter a presença do ator para que o aluno converse e estabeleça uma relação, ainda que o gesto invasivo seja feito num modelo. Este tipo de possibilidade de ter os pacientes estandardizados no LAC a ajudar numa série de domínios é crítico para este humanismo que nós queremos para os nossos alunos. A investigação está muito presente ao longo do curso. Um médico que faz investigação é um médico melhor? Nós acreditamos que sim. De facto, essa também é uma das nossas marcas distintivas, a investigação. Achamos que é muito importante que os nossos alunos tenham oportunidade de contactar com investigação científica, seja ela básica ou clínica, logo desde o início do curso. O que é crítico é participar, para experimentar o método científico na primeira pessoa. Achamos que só assim é que os alunos aprendem a fazer investigação e ganham o gosto pela investigação, ainda que possam depois não querer continuar a fazê-lo. Para nós é importante que os nossos alunos tenham esta experiência

porque achamos que os médicos que fazem investigação, ou que pelo menos aplicam o método científico ao pensamento sobre os doentes, são melhores médicos e tratam melhor os doentes. Eu não tenho dúvida nenhuma disto. Quem faz investigação trata melhor os doentes. Mas também porque, ainda que eu possa não fazer investigação, o facto de ter tido contacto com o método científico permite-me perceber melhor o que é publicado. A medicina não vive sem investigação científica. Por que é que quem faz investigação trata melhor os doentes? Porque fazer investigação clínica obriga a estar ao corrente da literatura. Porque mantém o espírito inquisitivo, que é crítico para poder melhorar. Esse questionamento é potenciado quando faço investigação, porque é a génese de toda a investigação. As ideias para a investigação nascem das questões que colocamos, das dúvidas que nos surgem. Também porque fazer investigação obriga a sistematizar o conhecimento e a recolha da informação. A pessoa pensa nas coisas de forma mais organizada e sistematizada, e isso leva inevitavelmente à melhoria de cuidados. Porque identifica problemas mais facilmente, porque torna mais evidente os desvios à norma e favorece o processo de melhoria contínua. E, finalmente, porque fazer investigação permite produzir conhecimento que melhora os cuidados de saúde. No limite, no final da investigação os resultados também deverão conduzir à melhoria dos cuidados. Quando digo fazer investigação, não digo que toda a gente precise de publicar em revistas de referência. O que acho é que é preciso pensar sobre as coisas e recolher informação de forma sistemática, colocar questões. As questões nascem da prática clínica, para mim as melhores questões são as que nascem dos problemas que encontro no dia-a-dia.


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Quais os desafios que se colocam a duzir para formar os médicos do futuro. esta nova direção do MIM? Temos uma Comissão de AcompanhaOs desafios são grandes, porque que- mento do Processo de Reforma Curriremos sempre melhorar e a nossa vonta- cular, que entrou em funções em junho de é, obviamente, continuar o bom tra- e que é constituída por mim enquanto balho que tem sido feito. O que, só por si, diretor do MIM, pelo professor José Mijá é um desafio. Mas também há algum guel Pêgo enquanto diretor da Comissão grau de inovação, e há desafios que se de Avaliação da Avaliação, e pelos procolocam a todos enquanto escola. Em fessores Peter e Paul Scoles, que fizeram primeiro lugar, é preciso procurar perce- um processo semelhante no currículo de ber até que ponto o exercício da medici- Thomas Jefferson [em Filadélfia, Estados na vai mudar no futuro. Nós não temos Unidos]. Estão cá para nos ajudar a fazer dúvidas de que vai mudar muito, os mé- as coisas, para nos aconselhar. A ideia é, dicos em 2030 não vão precisar de meta- num processo de três fases – cada uma de das ferramentas de que precisam os com a duração de um ano – começar por médicos atuais, mas vão precisar de mui- pensar o tipo de conteúdos e metodolotas outras que os médicos atuais não têm. gias que queremos manter, num segunNão queremos continuar a formar médi- do ano começar a desenhar as grandes cos para 2017, queremos formar médicos linhas de força do currículo e no terceiro para 2030. Portanto, um dos desafios vai ano ter o currículo já com os conteúdos. ser repensar a nossa formação no sentido de a adequar ao que o futuro precisa. EsQuando prevê que o novo currículo tamos a falar das novas tecnologias; do esteja implementado? acompanhamento das doenças crónicas É expectável que no ano letivo – o foco deixou de ser a doença aguda e 2020/2021 a Escola de Medicina tenha nós ainda continuamos a formar médi- um novo currículo e uma nova maneicos de agudos, quando provavelmente a ra de formar médicos, que queremos maior parte dos doentes vai passar a ser que sejam os médicos do século XXI. crónico; o acompanhamento dos doen- Este é provavelmente o maior desafio. tes em contextos diferentes das institui- A maneira como vamos estruturar o ções de cuidados de saúde (em casa, em nosso currículo só depende de nós, e ambulatório…); a entrada do big data e aqui se incluem os docentes, os alunos da análise massiva de dados e dos siste- e os investigadores do ICVS, mas tammas de apoio à decisão; a questão dos bém os nossos ex-alunos e os nossos médicos que vão ter de ser cada vez mais parceiros da comunidade (associações gestores; estamos também a falar de mé- de doentes, hospitais, diretores de dicos que vão ter de saber gerir a sua car- serviço, administrações, ARS-Norte, reira, como qualquer profissional, e não os outros profissionais de saúde que achar que vão fazer um contrato para trabalham connosco…). A ideia é que o resto da vida. Vamos ter de dar estas o processo seja o mais participativo capacidades aos nossos alunos, portanto possível, sendo que já houve em junho vamos ter de começar a pensar como va- uma primeira ronda de conversas com mos incluir isto no currículo. todos estes grupos. Uma das coisas que gostávamos de Na prática, como é que estão a pen- fazer, e lançamos aqui o desafio, é que sar operacionalizar esse processo? os nossos alunos dessem um nome a Iniciámos um processo de revisão do este novo currículo. Vamos desafiar os currículo em que vamos voltar a olhar alunos, provavelmente através de um para ele e pensar como o queremos ter concurso de ideias, a dar um nome ao e que tipo de alterações temos de intro- novo currículo.

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António Cunha DA E S C OL A DE M E DIC I N A PA R A A F E DE R AÇ ÃO P ORT UG U E SA DE F U T E B OL

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António Cunha, 34 anos, fez parte do primeiro grupo de médicos formados na Universidade do Minho. Natural de Fafe, ingressou na Escola de Medicina em 2001 e graduou-se em 2007. Passados 10 anos, António Cunha é especialista em Medicina Física e de Reabilitação e especialista em Medicina Desportiva. A atividade física sempre fez parte da sua vida, e foi o gosto pelo desporto que o fez enveredar por estes caminhos. Enquanto clínico, passou pela Federação Portuguesa de Atletismo e pelo Moreirense Futebol Clube. Atualmente é o responsável pela Seleção Sub-18 de Futebol Masculino da Federação Portuguesa de Futebol.


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António Cunha formou-se em medicina na Universidade do Minho e, quando teve de escolher a especialidade médica, optou “por aquela que estava mais ligada à área da patologia músculo-esquelética” e que “poderia futuramente abrir mais oportunidades de trabalhar no desporto”. Assim, em 2009 iniciou o Internato de Formação Específica em Medicina Física e Reabilitação, uma vez que naquela altura ainda não existia o internato de Medicina Desportiva, como acontece atualmente. António conta que praticou natação durante 10 anos e sempre gostou de seguir com atenção várias modalidades desportivas. “Sempre fui um apaixonado pelo desporto”, diz, reconhecendo o fascínio pelo “alto rendimento e a otimização do desempenho”. O gosto pelo desporto levou-o, então, até Lisboa, onde começou o internato no Hospital de São José e teve oportunidade de acompanhar o departamento médico da Federação Portuguesa de Atletismo.

“Foi onde tudo começou e nunca mais deixei de trabalhar diretamente com desportistas”, recorda. O restante período de internato foi feito a Norte, no Hospital de Braga. “Quando vim de Lisboa para Braga começou a aventura no futebol com o meu mestre e primo, Dr. André Castro, que era o responsável do departamento médico do Moreirense Futebol Clube. Infelizmente, uma doença oncológica fatal afastou-o do nosso trajeto juntos e coube-me a mim continuar o seu trabalho. Estive no Moreirense FC durante seis fantásticas épocas”, conta o médico. De facto, acompanhou de perto o Moreirense durante duas subidas, uma descida, e três manutenções na 1.ª Liga, tendo estado lá quando o clube venceu a taça da Liga, em janeiro deste ano. Atualmente está a iniciar um novo desafio ao integrar a Unidade de Saúde e Performance da Federação Portuguesa de Futebol, o que o coloca como responsável pela Seleção de Sub-18 de Futebol Masculino.


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Nome completo António Manuel Castro e Cunha Idade 34 anos Curso de Medicina 2001–2007

Formação académica e profissional 2007 Mestre em Medicina Universidade do Minho 2008 Internato de Ano Comum Hospital de São Marcos 2013 Médico especilista em Medicina Física e de Reabilitação Hospital de Braga 2011 Pós-Graduação em Medicina Desportiva Faculdade de Medicina da Universidade do Porto 2014 Pós-Graduação em Acupunctura Médica Contemporânea Escola de Medicina da Universidade do Minho 2016 Médico especialista em Medicina Desportiva Ordem dos Médicos


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Curso da EM promove “espírito muito positivo de entreajuda” Em relação à escolha do curso de Medicina na Universidade do Minho, recorda com satisfação os anos aqui passados. “Apesar das óbvias dificuldades de se iniciar algo de novo, isso criou dentro do grupo de alunos um espírito muito positivo de entreajuda”, conta António Cunha. E prossegue: “Notava-se também um sentimento de pertença nos docentes por estarem a construir algo novo e à sua medida, e isso levava a que tivéssemos bastante proximidade com os professores e posteriormente com os tutores hospitalares, algo que a novidade e a necessidade de cooperação proporcionavam”. A formação na Escola de Medicina, com uma componente forte de prática clínica, ajudou a que se preparasse para o desafio de acompanhar em permanência atletas de alta competição. “Na área da Medicina Desportiva o exame físico continua a ser arma fulcral. É importante o seu domínio e sobretudo a experiência na sua execução para

perceber diferenças subtis”, afirma. O curso ajudou neste aspecto, uma vez que “sempre houve a preocupação da integração clínica dos conhecimentos”, o que é muito importante “tanto para a decisão diagnóstica como para as opções terapêuticas”. É também por este motivo que continua a recomendar o Mestrado Integrado em Medicina da Universidade do Minho a quem o questiona. Mas alerta: “É necessário vir preparado para aceitar que no conhecimento médico há muitas áreas cinzentas, muito ainda para perceber e integrar. E que é impossível saber-se sempre tudo. É um desafio para muitos alunos compreender isto”. Aproveita ainda para deixar um conselho aos futuros alunos, para que aproveitem a vida universitária e as experiências sociais, culturais e de lazer que esta proporciona: “Permite-nos crescer muito como pessoas, e com bom senso é sempre possível compatibilizar essas oportunidades com a formação académica”.


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Joaquim Pinto Machado U M A V I DA DE DIC A DA À C AUSA PÚ BL IC A

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Nascido no Porto a 15 de junho de 1930, Joaquim Pinto Machado licenciou-se em Medicina pela Universidade do Porto. Foi Professor CatedrĂĄtico nessa universidade entre 1969 e 2000, ano em que se reformou, e doutor honoris causa pela Universidade da Ă sia Oriental (1987), em Macau, e pela Universidade do Minho (2002).

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Joaquim Pinto Machado dedicou grande parte da sua vida à causa pública, tendo exercido vários cargos de relevo. Foi deputado à Assembleia Nacional entre 1969 e 1973, Secretário de Estado do Ensino Superior entre 1984 e 1985, Conselheiro de Estado e Governador de Macau, cargos estes que exerceu entre 1986 e 1987. Foi ainda membro do Conselho Geral da Comissão Nacional da UNESCO (1985-1988), da Comissão Nacional de Língua Portuguesa (1990-1991) e do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (1991-2000). Na Universidade do Minho, foi membro da Comissão Instaladora (1974-1981), membro do Senado (designado pelo Reitor entre 1990 e 2001 e por inerência desde 2001), da Assembleia da Universidade e do Conselho Académico. Esteve na origem do curso de Medicina na Universidade do Minho, tendo sido vice-presidente da Comissão Instaladora da Escola de Ciências da Saúde e Presidente do Conselho Científico. Foi diretor do Curso de Medicina e presidente da Comissão de Curso, sendo muitas vezes apelidado de “mentor” desta casa.

Fez parte da Comissão Nacional das Faculdades de Medicina (1985-1987), do Comité Consultivo para a Formação dos Médicos (Comissão Europeia, 19941998), do Conselho Consultivo da Sociedade Portuguesa da Educação Médica, da Comissão Interministerial de Educação Médica (1998-2000), e da Comissão Interministerial de Articulação entre as Escolas Médicas e o Serviço Nacional de Saúde (1998-2000). Fundador e editor principal da revista “Educação Médica” (1990-1999), Pinto Machado foi ainda académico emérito da Academia Portuguesa de Medicina e académico correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Tem cerca de 50 publicações científicas nos domínios da Anatomia e da Teratologia Experimental e fez inúmeras intervenções e publicações sobre saúde, medicina, ética, política, antropologia, universidade, educação, entre outras.


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OPI N I ÃO “Acreditamos que as competências de comunicação e relação clínicas devem ser treinadas e avaliadas em todos os momentos da formação dos médicos, de forma integrada e longitudinal, garantindo a sua centralidade na educação médica.” — Pedro Morgado

A comunicação faz a relação clínica — 60

100mg de humanidade Pilar Burrillo Simões — 56 Os Domínios Verticais Germinaram e Desenvolveram José Manuel Mendes — 58 A humanização do estudante de Medicina Rosélia Lima relata os ensinamentos com Mark Mekelburg — 59 A comunicação faz a relação clínica Pedro Morgado refere que “as competências de comunicação e relação clínicas devem ser treinadas e avaliadas em todos os momentos da formação dos médicos” — 60


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100mg de Humanidade Pilar Burrillo Simões

Há gestos que são sempre difíceis, independentemente do número de vezes que sejam repetidos. Mesmo antes de assumir o cargo que agora ocupo na direção da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), já escrevera, vezes sem conta, sobre a humanização dos cuidados de saúde e devo confessar que a repetição nem por isso o torna mais simples. Para começar, as diligências institucionais exigem-me que assegure que o que aqui jaz é apenas e somente a minha opinião, a minha vivência enquanto estudante de medicina presente, futura médica (rezemos), às vezes doente e sempre – espero eu – humana; e não da ANEM em circunstância alguma. E a minha opinião, a minha vivência em todas as vertentes, é que cuidar conta-se entre os gestos mais difíceis que a humanidade pode executar, onde a dificuldade tende a ser, por inerência, inversamente proporcional à margem de erro. Nem por isso menos bonito. Cadeira atrás de cadeira, a minha visão concetual da medicina sempre identificou os meandros da mesma com as vicissitudes do desporto de alta competição: horas de trabalho incógnito nos bastidores convergem naquele momento, naquela pista, naquele solo. Naquele doente. Naquele plano terapêutico. Preparação, planeamento e execução. Observada ao milímetro, por um público cujo conhecimento desportivo tende a ser, na generalidade, francamente inferior ao do atleta, a sequência de movimentos de uma precisão assombrosa (cirúrgica?), pousada sobre eles (sobre nós) a aura da transcendência e, com igual frequência, por vezes em simultâneo, a sombra do fracasso. Face à evidente desproporção da nossa tarefa, teremos nós disponibilidade técnica e interesse utilitário para pensar em cuidados de saúde humanos? Paradoxalmente, optei por não debater com tanto afinco a vertente “humana” da temática. A afetividade de cada profissional de saúde corresponde na íntegra à do ser humano que lhe está subjacente, à pessoa que é, à pessoa em que se foi transformando a cada ano de carreira e aos mecanismos de defesa que criou face a uma profissão que pode ser profundamente desgastante do ponto de vista emocional. Esta evidência determina aceitar que existem colegas cuja relação médico-doente que estabelecem assume uma forte componente afetiva e pessoal e colegas cujo envolvimento emocional em tudo se assemelha ao da voz que anuncia as informações em estações dos Comboios de Portugal.


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Aceitar o caráter pessoal da afetividade dos profissionais de saúde não significa dizer, naturalmente, que a humanização em medicina é um dom divino conferido a um conjunto seleto de médicos. Ao longo destas linhas, espero ser capaz de demonstrar que não existem cuidados de saúde de qualidade que não assentem na solidez da relação médico-doente e que dela dependem, inclusivamente, os outcomes do plano terapêutico. Há quase 20 anos que a noção de qualidade em saúde é um conceito relativamente bem definido compreendendo seis componentes bastante mais bem digeríveis em inglês: safe, timely, effective, efficient, equitable and patient-centered. Depreendemos, pois, que cuidados de saúde de qualidade implicam o abandono do modelo paternalista, segundo o qual cabia ao médico a elaboração do plano terapêutico e ao doente o seu estrito cumprimento, e a adoção de um modelo interpretativo, através do qual o médico coloca a informação, devidamente “digerida”, nas mãos do doente, sendo a decisão estratégica tomada em conjunto. Mais recentemente, o conceito dos ganhos em saúde imiscuiu-se nos vários Planos Nacionais de Saúde, associando-se ao conceito dos valores (value) de saúde que relaciona a melhor qualidade possível ao menor custo correspondente. Também aqui a humanização dos cuidados demonstrou exercer uma ação profundamente sinérgica. A melhoria do patient-centered care traduz-se em maior compliance e melhores outcomes terapêuticos influenciando positivamente eficiência, eficácia, segurança e, de um modo global, satisfação dos utentes. Estes efeitos começam a notar-se de forma cada vez mais premente no que diz respeito aos cuidados em fim de vida. A evolução demográfica e epidemiológica tornou a otimização dos cuidados paliativos numa urgência onde a qualidade é por demais importante. Especialmente porque é sentida com particular violência a disparidade de posições entre médico e utente, podendo ser mais difícil ainda para o médico compreender o que é mais importante para o doente e familiares, quando colocados nesta posição. Face ao conhecimento deste problema, as abordagens investigativas são uma idiossincrasia das profissões afiliadas ao método científico, como o são as da saúde. Se a humanidade é um fármaco, então exigimos ensaios clínicos. Neste sentido, o shadowing é um procedimento que começa a ser utilizado nas instituições de saúde.

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Esta técnica consiste em seguir o doente e a sua família, observando-os em tempo real enquanto se movem através de cada etapa (ou touchpoint) da sua visita à instituição de saúde (anglosaxonicamente designada por care experience) registando as opiniões e reações dos mesmos a cada interação, bem como as eventuais falhas e sugestões de melhorias que sejam por estes apontadas ou intuídas pelo observador. Para tal, é obtido dos intervenientes o devido consentimento informado, devendo a observação ser realizada por alguém relativamente externo à cadeia de trabalho da instituição (nos centros-piloto tendem a ser utilizados estudantes de medicina). Esta ferramenta tem permitido a captação da experiência de cuidados do ponto de vista do doente, identificando falhas e lacunas que de outro modo não seriam percetíveis e incluindo os doentes na própria remodelação processual do funcionamento institucional. A empatia tornada exercício intelectual, objetivado e rigoroso. E, portanto, produzindo tendencialmente resultados mais fiáveis. Numa altura em que as condições de trabalho e o desgaste inerente levam a um maior distanciamento dos profissionais, resta-nos indagar acerca das estratégias educativas que irão ser seguidas pelos nossos treinadores (pelas nossas escolas médicas) nos próximos anos para tornar a execução técnica das nossas provas (dos nossos cuidados) cada vez mais perfeita. Também no aspeto humano.


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A humanização do estudante de Medicina Rosélia Lima

Ensinou-me Mark Mekelburg, um dos fundadores da Operação Nariz Vermelho, que podemos amar os outros sem sentir amor por eles. É fácil entender esta lição quando desdobramos o verbo amar nos tantos outros que o constituem. Amar é cuidar, amar é dedicarmo-nos ao outro, amar é entendermos a felicidade do outro como a nossa felicidade, amar é partilhar e dignificar a dor do outro e validá-la como fazemos com a nossa própria dor. Quem ama pode não sentir amor, mas quem sente amor ama sempre. Mark também me ensinou que o antónimo do amor não é o ódio nem a indiferença, mas sim o medo. Ocupa este lugar porque nos retém a coragem necessária para nos expormos ao mundo e lutarmos pelo nosso propósito. É um sentimento tão nefasto que quando cultivado não dá quaisquer frutos que nos sejam nutritivos, para além de que nos estagna no percorrer da vida. Quando privilegiamos o medo em detrimento do amor, tornamo-nos parasitas vazios devaneando pelo mundo. Decidi partilhar esta lição porque, para mim, a medicina só pode ser medicina se incorporar este amor. O nosso génio forma-nos no conhecimento do corpo humano, mas é amando o que fazemos que humanizamos o que sabemos e nos tornamos verdadeiros médicos. É o amor que condiciona a diferença entre ver e observar, ouvir e escutar, falar e partilhar. Mas não é fácil renovar este amor a cada dia. O amor é a maldição da medicina porque não nos é admissível ter medo. Nós juramos amar todos os nossos doentes sem distinção. E isso inclui amar o doente criminoso, o doente que não cumpre os nossos conselhos, o doente apelativo, o doente manipulador, o doente aborrecido, o doente descortês, o doente que não está doente. E isto é um desafio enorme porque caímos na arrogância de pensar que os doentes não correspondem às nossas expetativas, quando somos nós quem se deve esforçar para corresponder às expetativas do doente. O facto de nos depararmos com tanto sofrimento e injustiça na nossa profissão falacia-nos na tentação de determinar quem merece mais ou menos dignidade, mais ou menos dedicação. A humanização na medicina é algo maravilhoso, mas também incrivelmente aterrador porque apesar de ser um conceito intuitivo e evidente exige uma força de vontade feroz para atingir. Como estudantes de Medicina, comprometer-nos-emos a assumir esta responsabilidade e enfrentar com coragem todos os desafios ao nosso trabalho. Reavivaremos o nosso juramento tantas vezes quantas forem necessárias. Seremos dignos de ser médicos.


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Os Domínios Verticais germinaram e desenvolveram-se José Manuel Mendes

Os Domínios Verticais germinaram e desenvolveram-se à luz de uma lição (ideia, incremento, exequibilidade) do Professor Pinto Machado cuja estirpe remonta a Abel Salazar ou Gregorio Marañón, para não ir no tempo mais atrás e a outras latitudes, a Ribeiro Sanches e Hipócrates por exemplo: os estudos e as práticas da Medicina não podem confinar-se num perímetro técnico (elevados que sejam os seus méritos) sem interlocução com as Humanidades e o horizonte aberto das disciplinas em volta, científicas ou artísticas. O conhecimento do Homem, de quanto nele é radical subjectividade e contexto, presente, memória e caminho, meditação e emergência, acribia, inércia e inconformismo, matéria do identificado e contingente e enigmático, verbo e silêncio, realiza-se no convívio profissional com as experiências, individuais e/ou gregárias, através do quotidiano. A Literatura, o Cinema, a Música, o Teatro, a Pintura, as artes e os desportos, não enquanto ementa coactiva mas livre desfrute, constituem domínios que solidamente estruturam quem cuida de cada ser, na doença que se enfrenta, nos procedimentos para a saúde e o bem-estar. Hoje com inscrição no currículo académico, por iniciativa e sob os auspícios da Professora Cecília Leão, os Domínios Verticais efectivam-se tanto na análise de contos, novelas, romances (Gogol, Miguel Torga, Tolstoi, Fernando Namora), filmes (Chaplin, Almodovar e não só), em que avultam situações do enlace – também e sempre ético – médico/paciente e os temas da dignidade humana, como nas oficinas de poesia e noutros espaços de iniciação estética e criativa. O empreendimento prossegue, assim, renovando-se quando necessário, a linhagem do que foi concebido, fundado, posto em acção pelo Professor Pinto Machado, patrono da Escola e sua referência inapagável.


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A Comunicação faz a Relação Clínica Pedro Morgado


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Ser médico é hoje, tal como foi na origem da Medicina, estar disponível para cuidar daqueles que precisam de ajuda de acordo com as leges artis. As tarefas do médico incluem, por isso, a compreensão da pessoa doente, o diagnóstico do(s) seu(s) problema(s), a tranquilização do seu sofrimento, a proposta de soluções terapêuticas que sejam razoáveis e entendíveis, o esclarecimento das suas dúvidas, a aquietação dos seus medos, a preparação do acompanhamento subsequente e a garantia da adesão às ações negociadas. A comunicação com o doente e com os outros profissionais de saúde é um elemento nuclear no exercício da medicina. Sem comunicação eficiente não existe relação terapêutica, ou seja, deixa de ser possível maximizar os efeitos dos tratamentos prescritos e prevenir o surgimento de novas formas de doença. A relação entre médicos e doentes encontra-se em permanente transformação, tracionada por pressões que resultam do progresso da própria medicina científica e também da reconfiguração da sociedade. O deslumbramento com os sucessos do progresso científico e tecnológico que oferecem ao doente (e ao médico) soluções cada vez mais eficazes para os problemas de saúde faz perigar o investimento na relação clínica, minimizar o impacto das emoções na evolução da doença e negligenciar o tratamento integral da pessoa e do seu sofrimento. É por isso que à medida que a medicina se torna mais tecnológica e as suas ações preventivas e terapêuticas mais precisas e individualizadas, aumenta a relevância do bom uso das competências de comunicação em contexto clínico. Em simultâneo, a massificação (e, por vezes, desregulação) do acesso à informação criou novos e importantes desafios. Com acesso fácil a informação relevante, os doentes passaram a ser mais participativos na consulta e a questionar de forma mais contundente e sistemática as opções terapêuticas que os médicos lhes apresentam. Se é verdade que as más fontes de informação (das notícias falsas às manchetes irrealistas e alarmistas) constituem um problema relevante dos nossos dias, o facto de termos doentes melhor informados constitui-se como uma oportunidade altamente positiva já que permite envolve-los no processo de tomada de decisão e assim coresponsabilizá-los pela adoção das medidas preventivas e terapêuticas acordadas. Mesmo sendo assimétrica, a relação em contexto clínico deve organizar-se em torno da pessoa doente, garantindo-lhe centralidade em todas as fases da consulta.

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É por isso necessário assegurar que os médicos no ativo e os médicos em formação estejam dotados do conhecimento e das competências necessárias ao estabelecimento de uma relação clínica efetiva e terapêutica com os seus doentes e com os outros profissionais de saúde. Depois de um longo período em que foram abordadas de modo informal e assistemático nos cursos de Medicina, as escolas médicas passaram a incluir nos seus currículos momentos formais de aprendizagem e avaliação deste tipo de competências. A fase da formação em que devem ser incluídas e as modalidades de ensino-aprendizagem e avaliação utilizadas têm suscitado um intenso debate. Acreditamos que as competências de comunicação e relação clínicas devem ser treinadas e avaliadas em todos os momentos da formação dos médicos, de forma integrada e longitudinal, garantindo a sua centralidade na educação médica. É o que acontece no curso de Mestrado Integrado em Medicina da Universidade do Minho, com atividades de desenvolvimento de competências de comunicação e relação clínica distribuídas ao longo dos seis anos do curso, integradas em diferentes Unidades Curriculares, e englobando diversas estratégias de ensino-aprendizagem tais como o TBL (team-based learning), seminários interativos, treino com recurso a mesas interativas, treino prático com pacientes estandardizados e treino em contexto profissional. A avaliação é efetuada através de exames práticos de tipo OSCE (objective structured clinical examination) e de exames integrados com Perguntas de Resposta Aberta e Perguntas de Escolha Múltipla. Estamos convictos de que o desenho longitudinal e a abordagem integrada das competências de comunicação e relação clínica favorecem o treino em contexto e o desenvolvimento de aptidões mais duradouras do que a formação incidental ou em unidades curriculares especificamente dedicadas às competências de comunicação clínica. Num tempo em que o conhecimento médico de base científica se produz e se aplica com uma voracidade inédita, as competências tradicionalmente designadas por “soft skills”, entre as quais se inclui a comunicação clínica, assumiram uma relevância ainda mais decisiva no exercício profissional em Medicina. É por isso que esta área pode e deve ser ainda mais aprofundada tanto na formação graduada como pós-graduada em cuidados de saúde.


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TEM AS “Na nossa escola, tem sido evidente a importante aposta na melhoria do programa curricular para aperfeiçoar o processo comunicativo, através de treinos com pacientes estandardizados nos Laboratórios de Aptidões Clínicas”

O Médico e o Corpo Humano João Barbosa Martins

— João Barbosa Martins

O paradoxo do Rap lento Diogo Cruz introduz The Art of Slowing Down, o novo álbum de Slow J

S E X U A L I DA D E

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Diário de um Louco, Nikolái Gógol Rosélia Lima L I T E R AT U R A

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Poema Magna Rodrigues L I T E R AT U R A

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Baby Driver, Edgar Wright Jorge Machado CINEMA

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M Ú SI CA

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O Médico e o Corpo Humano — 64

Infeção crónica e o papel do miR-31 Pedro Peixoto CIÊNCIA

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TEMAS

O Médico e o Corpo Humano João Barbosa Martins Excederam-se as palavras. E tantas que são… lustradas pelo vaivém de nistágmicas pupilas, deixadas a rodopiar no ensoado bafo dum escritório iluminado por uma solitária luz. De facto, muitas são as horas de devoção de um estudante de medicina ao longo do curso, nas diversas disciplinas por que vai passando. Em todas elas se mantém o mote comum – o Corpo Humano. Assim, o estudante de medicina aprende a observar, entender e decorar cada milímetro, para que, posteriormente, lhe possa percutir as silenciosas lamúrias viscerais ou auscultar os desabafos valvulares, a que só o Médico sabe atender aos caprichos. Será que no limite, onde todas as linhas se tocam, passará o corpo humano a ser para nós, futuros médicos, um conjunto de linhas desconsoladas e desprovidas de sexualidade? A sexualidade é algo pessoal, experienciada de forma tão diferente entre nós, como os traços de cada qual. Engloba parâmetros biológicos, sociais, culturais, emocionais e espirituais, não se limitando a comportamentos ou atitudes reprodutivas, mas também a desejos, crenças, valores e costumes. Não é objetivo do aluno de medicina renunciar aos seus instintos de ser Humano, de ser sexual em harmonia consigo e com o seu corpo, mas sim moldá-los e amolá-los para que perante a nudez e o pudor, vislumbre antes aquilo que outros olhos não veem: a doença e o sofrimento. Como médicos, estaremos preparados para atender a queixas dos diversos aparelhos tais como geniturinário, digestivo ou mamário que, por vezes, tanto pudor desperta em quem nos procura. Estaremos preparados para abordar temas delicados e sensíveis

SEXUALIDADE

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como a menstruação, as doenças evolução da biologia experimental sexualmente transmissíveis ou as na clínica médica. Factualmenrelações sexuais dos nossos doen- te, hoje devoramos livros e artigos, tes, com toda a elegância e respeito pois a informação atualizada mea que a profissão obriga, até porque lhor faz pender a balança presente para muitos são temas desconfortá- na ponta da caneta de cada médico veis, tabus ou pouco abordados. De para o lado certo. Porém, o papel facto, e como em tudo na vida, a co- não lamenta, não questiona, nem municação é fundamental, e saber tão pouco nos retribui um olhar como fazê-lo torna-se, por vezes, de incerteza ou de receio. O papel tão cirúrgico como ressecar um ab- é alheio, não se compadece ou tem cesso de constrangimento e receio, compaixão, aliás, é somente tinta que teima em não querer sair. Aliás, esbatida insípida, que nem tão pouestudos indicam que a boa comuni- co lhe interessa que a ciência médica cação entre prestadores de cuidados tem como base o ser Humano. Hoje, de saúde e pacientes pode melhorar estudam-se factos fascinantes que, a saúde sexual e a evicção de práticas até há umas décadas atrás, se julgaerróneas e prejudiciais, como o não va serem reservados ao divino ou ao uso do preservativo. Aliás, qual de imaginário, como a pílula anticonnós nunca sentiu, na colheita da pri- cecional, o genoma, os bebés provemeira história clínica, a dificuldade ta, a doação de gâmetas ou a barriga cabal em escolher as palavras certas de aluguer. Apesar de alguns autopara questionar alguém sobre a sua res, inteligentemente, o abordarem, história sexual. É uma espécie de no papel não vêm descritas as reintrusão num dos aposentos mais percussões éticas, políticas e jurídisingulares de cada ser humano, um cas que os nossos doentes terão que remexer em gavetas empoeiradas e enfrentar, nem tão pouco as suas perras, ou mesmo em esconderijos questões e receios. A nossa Escola, secretos que interessam ao médi- através da disciplina de Domínios co, não pela coscuvilhice, mas pela Verticais, possibilita interessantes orientação diagnóstica e terapêutica debates sobre estas e outras temáque daí pode advir. Por isso mesmo, ticas para que os alunos entendam é uma tarefa que exige delicadeza e a complexidade destes assuntos e uma educada escolha das palavras a possam formar uma opinião crítica serem colocadas, já que as barreiras e construtiva que certamente será culturais, etárias ou religiosas po- fundamental para melhor explicar dem colocar melindrosos entraves e gerir as relações humanas que visa uma eficaz comunicação, também lumbrarão, do outro lado da mesa, ela influenciada pelas vivências de num consultório. quem pergunta e de quem responde. Despeço-me, relatando um Na nossa escola, tem sido evidente episódio que poderia resumir toda a importante aposta na melhoria esta rubrica, personificando as do programa curricular para aper- palavras do Professor Pinto Mafeiçoar o processo comunicativo, chado. Um doente diz, ao entrar através de treinos com pacientes es- no consultório: “Não pensei que ia tandardizados nos Laboratórios de ter que me despir”, ao que o MéAptidões Clínicas, o que certamente dico carinhosamente lhe responmelhorará estes e outros desafios de: “Não se preocupe, se quiser os comunicacionais que os futuros mé- meus colegas saem para ficar mais dicos enfrentarão. à vontade, mas deixe-me dizer-lhe Outra questão, que envolve in- que nada do que nos vai mostrar é variavelmente a sexualidade, é a estranho para o médico”.


TEMAS

SEXUALIDADE

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“Será que no limite, onde todas as linhas se tocam, passará o corpo humano a ser para nós, futuros médicos, um conjunto de linhas desconsoladas e desprovidas de sexualidade?”


TEMAS

Diário de um Louco, Nikolái Gógol Rosélia Lima Axenty Ivanovich Poprishchin é um funcionário público ucraniano de 40 anos, que escreve um diário. Através dos seus relatos apercebemo-nos das ideias e pensamentos irrisórios que atormentam o seu quotidiano. Alucinações e delírios de várias categorias invadem a sua vida até transformarem esta personagem num indivíduo totalmente disfuncional a nível social. É aí que o livro passa de bizarro a aterrador, sendo Axenty levado para uma instituição onde são depositados os indivíduos com comportamentos desviantes à normalidade da sociedade da época. Durante a restante narrativa, a personagem mantém ausência de contacto com a realidade, mas descreve com uma objetividade medonha os métodos violentos de submissão e restrição a que ele, e outros tantos, eram sujeitos diariamente. Esta história tem como cenário temporal o século XIX, num contexto prévio à integração das perturbações psiquiátricas no ramo da Medicina. Portanto, indivíduos como Axenty não eram vistos como doentes, mas sim como aberrações que não tinham quaisquer direitos civis. A solução era segregá-los da restante sociedade, sujeitos a um degredo quotidiano cruel e injusto, onde eram despojados de toda a sua humanidade.

LITERATURA

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TEMAS

LITERATURA

Poema Magna Rodrigues (dedicado a todos os doentes oncológicos)

São passos. Diante de mim, as ruas vazias, O tempo entristecido, os projetos adiados, a solidão. O meu corpo, a minha cabeça desfeita e revoltosa, Caiu no chão. Tropeço desajeitada nas pessoas. Fico indiferente às vozes. Continuo a vaguear, até sentir-me Cansada. Sento-me num banco velho de jardim. O frio gela-me a face. Uma lágrima Cai mergulhada num oceano infinito. Quase no silêncio, grito: a minha vida É breve. Porquê eu? Somos o medo, uma fonte sem água. Conhecemos tantas histórias. Sinto-me em negação. De olhar fixo no pensamento Na inconsciência íntima do meu desejo, Sei que vou vencer. Um passo. Uma sombra. Um recomeço.

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TEMAS

CINEMA

No centro de toda a trama temos Ansel Elgort, que interpreta Baby. O ator, que ficou conhecido pelo seu papel em A Culpa é das Estrelas, traz uma interpretação nunO novo filme de Edgar Wright, ca antes vista da sua parte, ao conBaby Driver, chegou às salas de ferir uma enorme complexidade à cinema portuguesas no dia 3 de sua personagem e a toda a história agosto e promete entregar muita que a envolve, recorrendo, sobreação, comédia e divertimento a tudo, ao seu corpo como principal todos os que se atreverem a entrar instrumento de trabalho, já que o nesta alucinante viagem. O enredo, diálogo que protagoniza é curto. escrito pelo próprio realizador, fo- Para o apoiar neste seu segundo ca-se na vida de um jovem de nome grande filme temos outros grandes Baby que trabalha como motorista nomes de Hollywood, como Lily para um poderoso criminoso. Ape- James, Eiza Gonzales, Jon Hamm, sar de, à primeira vista, parecer Jamie Foxx e, sobretudo, o majestouma história simples e bastante so Kevin Spacey, que já possui um cliché, o filme é uma verdadeira currículo extenso de grandes inobra de arte, já que nos mostra a terpretações, não ficando esta nem realidade pura e crua por detrás do um pouco atrás de todas aquelas mundo do crime, ao mesmo tempo que já vimos da sua parte. que nos transmite uma imagem de Mas o que realmente torna este esperança e amor, provando que os filme diferente de todos os outros filmes de ação não têm que ser va- do mesmo género não é só o enredo zios de dimensão e moral. nem os atores, mas sim a música. Baby Driver, Edgar Wright Jorge Machado

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A música interpreta o papel principal do filme, já que faz com que sintamos tudo o que o realizador quer, seja felicidade, tristeza, nervosismo ou raiva. As personagens movem-se com a música, não só fisicamente, mas também emocionalmente. É a acompanhante invisível, mas sempre presente, ao longo de toda a história, é instigante e a solução para todos os problemas que nos são apresentados. A banda sonora foi produzida antes das filmagens, algo que raramente acontece, e toda a ideia do filme veio de um videoclipe que foi produzido por Wright. São estes dois ingredientes que, juntos, fazem com que Baby Driver não seja um filme com uma banda sonora, como todos os outros, mas sim um filme feito para e sobre uma banda sonora. Outra coisa que ajuda a tornar este filme único são os efeitos práticos, ou seja, tudo o que vemos no


TEMAS

CINEMA

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“o filme ganha na cinematografia: genial e magistral, orquestrada com a banda sonora e com uma fotografia captada de forma a prender o espetador”

filme não são efeitos computorizados, mas sim efeitos reais, sejam as perseguições, os acidentes, as acrobacias ou as explosões, algo que é difícil de encontrar num mundo de cinema dominado pelas novas tecnologias de edição. O que perde em edição de computador, o filme ganha na cinematografia: genial e magistral, orquestrada com a ban-

da sonora e com uma fotografia o sempre ao misturar duas grancaptada de forma a prender o espe- des artes: a música e o cinema. tador sem tornar as cenas com mais Com uma classificação de 94% no ação em algo confuso e aborrecido. rottentomatoes e de 8,2 no imdb, Edgar Wright chegou numa Baby Driver irá dar que falar e altura em que os filmes de ação já certamente ganhará alguns prénão eram valorizados pelos críti- mios no fim do ano. Para já, rescos nem pela indústria e mostrou ta-nos ir ao cinema mais próximo, que era possível fazer uma obra apertar os cintos e preparar-nos que se tornará imortal para todo para esta viagem arrebatadora.


TEMAS

MÚSICA

O paradoxo do Rap lento Diogo Cruz Em tempos em que o Hip-Hop tuga é contaminado por materialismo e superficialidade, João Batista aka Slow J orgulha-se de transcender a essa tendência. Com o seu segundo álbum, The Art of Slowing Down, sentimos uma lufada de ar fresco que há muito não estávamos habituados a sentir no panorama do Rap português. É quase palpável a genuinidade que vai desde a sonoridade à lírica e, assim, torna-se fácil entender a projeção que o artista adquiriu nesta primeira metade de 2017. Com influências africanas, caraterísticas da margem Sul, presentes tanto no ritmo como no próprio sotaque, Slow J não se limita a apresentar um álbum.

Apresenta-nos um conceito que, à primeira audição, pode soar paradoxal. A “Arte de abrandar” e o Rap não deveriam combinar, visto a essência da primeira ser oposta à da segunda. No entanto, somos belamente provados do contrário. De forma soberba, João transmite-nos uma mensagem sobre como não tem mal viver vagarosamente por intermédio da clássica aceleração fonética do Rap. Desde críticas incisivas a letras vazias como no tema “Arte”, a exemplificações de líricas carregadas de sentimento como em “Serenata” e “Às vezes”, Slow J pinta um fresco musical de uma forma de estar na vida, em que a base é muito simples: seguirmos o nosso próprio ritmo. Sentir cada batimento como algo de único e transmissível é uma das máximas para a plenitude de caráter que tanto ambicionamos atingir.

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Tudo isto chega-nos aos ouvidos, por meio de palavras que, isoladas, poderiam ser consideradas vulgares, mas que articuladas formam deleitosos versos ricos em vocabulário intrínseco à realidade dos jovens citadinos. Adquire assim, João Batista, o estatuto de poeta urbano, que através de batidas e sinfonias contagiantes nos transmite uma inspiradora doutrina. Doutrina essa que conforta os mais lentos e alerta os mais apressados. Porque afinal “devagar se vai ao longe”, e com “The Art of Slowing Down”, restam, então, poucas dúvidas acerca da permanência por longas temporadas de Slow J e respetiva obra na música lusitana contemporânea.


TEMAS

Infeção crónica e o papel do miR-31 Pedro Peixoto Alguma vez se questionaram como é que é possível uma infeção tornar-se crónica, no sentido de que nem é debelada num curto espaço de tempo nem leva o hospedeiro a morrer por causa da ineficácia do seu sistema imunitário face à infeção em curso? As infeções crónicas são uma espécie de limbo no qual o agente patogénico consegue sobreviver, proliferar-se, e propagar-se, tirando partido da estrutura que o hospedeiro lhe proporciona. São vários os agentes infeciosos capazes de se colocarem nesta categoria, sendo que entre os mais prevalentes estão as micobactérias, o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH), vários vírus herpesviridae, entre outros. Para além disso,

CIÊNCIA

também há vírus que se pensava poderem ser debelados num curto espaço de tempo, como é o caso do vírus zika, e que poderão muito em breve entrar na categoria das infeções crónicas. O zika, por exemplo, pode ser detetável ao nível dos testículos por pelo menos seis meses após a infeção. As infeções crónicas parecem, portanto, muito mais ubíquas do que a priori poderíamos pensar. Por este motivo, muitos esforços têm sido dedicados ao estudo dos mecanismos que explicam a forma como as doenças se tornam crónicas. Um facto parece cada vez mais óbvio: a cronicidade surge com agentes que evoluíram proximamente com o seu hospedeiro. Invariavelmente, uma multitude de mecanismos parece ser modelada em proveito do agente patogénico, com várias vias de defesa por parte do hospedeiro, redundantes entre si, a serem afetadas.

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Em ratinho, um dos modelos mais utilizados para o estudo do funcionamento do sistema imunitário é o vírus da coriomeningite linfocitária (LCMV). Este vírus infeta principalmente roedores, nomeadamente o ratinho, que, no entanto, sobrevive à infeção, geralmente com um fenótipo patológico relativamente benigno. Pode também infetar humanos através do contacto com aerossóis, muito provavelmente com origem na urina de ratinhos em convivência com ambientes humanos. Existem inúmeras estirpes genéticas diferentes deste vírus, sendo que do ponto de vista das infeções crónicas se salienta a estirpe Armstrong, por detrás de uma infeção aguda que se pensa ser totalmente debelada num espaço de 15 dias, e uma outra estirpe, a clone-13. Esta é muito semelhante à anterior, com a exceção de apresentar uma mutação


TEMAS

na polimerase 13, o que aumenta a capacidade proliferativa deste vírus nas células infetadas e que se pensa estar por detrás de uma menor suscetibilidade à resposta citotóxica de células T CD8+. Esta estirpe LCMV-clone 13, ao contrário da Armstrong, permanece no hospedeiro por grandes períodos de tempo, tornando-se crónica, sendo detetável por períodos superiores a 100 dias, em ratinho. Um estudo recente publicado na revista Nature Immunology (Moffett et al., 2017) vem trazer uma hipótese bastante interessante sobre este facto. Será que a modulação translacional, isto é, a tradução de um vasto conjunto de proteínas modulatórias do sistema imunitário explica, pelo menos, parte do estabelecimento de uma infeção crónica? Considerando esta hipótese, a equipa de Wucherpfenning considerou um dos mais recentemente descobertos atores de modulação de tradução proteica, as moléculas de micro-RNA. Estas são pequenas moléculas de RNA que se enquadram num mecanismo mais abrangente de interferência por RNA, que, entre outros, são capazes de impedir a leitura de moléculas de RNA mensageiro, portanto impedindo a tradução proteica. Considerando este sistema, o grupo do Professor Wucherpfenning utilizou o modelo de infeção crónica com LCMV Armstrong para ver se existia uma sobre-expressão de alguma destas moléculas de micro-RNA, salientando-se o micro-RNA 31 (miR-31). Esta molécula encontra-se sobre-expressa em várias células do sistema imunitário, nomeadamente células Natural Killer e células T, de uma forma cumulativa ao longo do tempo, sob estreito controlo de estimulação por via da libertação de cálcio.

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CIÊNCIA

Entre os alvos de ação do miR-31 encontram-se vários RNA mensageiros com ação efetora por parte das células T CD8+, nomeadamente diversos traduzindo granzimas e perforinas, cuja presença aumenta aquando da ablação da ação do miR-31. Mais, os ratinhos que não apresentam expressão de miR-31, apresentam uma maior produção de interferão gama, uma das principais moléculas da resposta efetora das células T CD8+ contra a infeção viral. Comprovando a importância deste sistema de regulação por miR-31, para o estabelecimento de infeção crónica, a equipa de Wucherpfenning infetou um grupo de ratinhos que não expressavam miR-31 com LCMV-clone 13 e verificou que os mesmos não apresentavam o fenótipo típico de uma infeção crónica com esta estirpe viral, não apresentando nem a perda de peso nem os sinais de doença típicos. Por outro lado, estes mesmos ratinhos apresentavam uma melhor resposta efetora contra a infeção, com um maior número de células T CD8+ específicas para o vírus LCMV, apresentando um fenótipo efetor com maior expressão de KLRG1 e menor expressão das moléculas inibitórias PD-1. Portanto, este trabalho mostrou a existência de um sistema de regulação translacional, onde emerge uma menor função das células T, que apresentam assim um fenótipo de imunossupressão, com aumento da expressão de moléculas como a PD-1, e diminuição da expressão de um vasto leque de moléculas efetoras, com várias vias de ação a serem simultaneamente afetadas.

Bibliografia Moffett, H. F., Cartwright, A. N. R., Kim, H.-J., Godec, J., Pyrdol, J., Äijö, T., … Wucherpfennig, K. W. (2017). The microRNA miR-31 inhibits CD8+ T cell function in chronic viral infection. Nature Immunology, 18(7), 791–799. https://doi.org/10.1038/ni.3755


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