Oficina Escobar

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mil e uM

Um projeto de Daniel Escobar

segredos de oficinaS



Este livro é dedicado à memória de meu amado avô, Adolpho Fernandes de Escobar.

Oficina ESCOBAR @oficinaescobar



No mês de julho de 2021, Daniel reabriu as portas da Oficina Escobar para a comunidade de Entre-Ijuís. Sem acesso presencial de público para evitar aglomerações, uma fita inaugural foi cortada pela avó Helena, matriarca da fábrica de invenções da família Escobar.

Oficina

por Maria Helena Bernardes

Escobar

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A exposição é o principal resultado de um projeto produzido e realizado com recursos públicos destinados à manutenção de iniciativas culturais durante o longo período em que o país se viu assolado pela pandemia de Covid-19 e por inúmeras tensões políticas e sociais. Daniel conduziu a realização do projeto ao lado de Aderlize Martins, produtora executiva. Juntos, acolheram as colaborações da escritora e artista visual Helene Sacco (com quem tenho a alegria de partilhar a produção escrita), do fotógrafo Anderson Astor, do documentarista Guilhermo Gil e das designers Patrícia Heuser e Laura Klein, profissionais que integram a equipe encarregada de articular as várias esferas de sentido geradas pela Oficina Escobar.






Quanto ao público local, nos dias precedentes à abertura da exposição, a curiosidade girava em torno do que estaria sendo gestado por Daniel, atual ocupante do antigo galpão onde, anos antes, funcionava a oficina mecânica de seu pai, Luiz. No passado, foi ali que Luiz e Adolpho, avô de Daniel, tocaram o negócio da família. No presente, Luiz e Daniel convocam a comunidade a se reencontrar com o espaço que, agora, é anunciado por um letreiro que se ilumina ao pôr-do-sol, fazendo brilhar o nome “Oficina Escobar”. Enquanto aguardavam a reabertura da antiga oficina, talvez vizinhos e antigos clientes se perguntassem por que instalar uma sinalização que destacará o estabelecimento durante as horas em que ele não funcionará.

DANIEL ESCOBAR Mil e um segredos de oficinas, 2021

Inventário de objetos, móveis, ferramentas e documentos que ativam a memória dos diferentes ofícios empreendidos ao longo de três gerações, no espaço que atualmente sedia o atelier do artista. Dimensões variáveis.

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DANIEL ESCOBAR Oficina Escobar, 2021

Metal, acrílico e iluminação LED. Letreiro luminoso instalado sobre fachada do atelier do artista. 60 x 200 cm.


O letreiro sobre a fachada é uma das pistas que nos aproxima do trabalho artístico desenvolvido por Daniel Escobar que, entre outras coisas, investiga a linguagem visual que influencia movimentos, decisões, desejos e entendimentos que produzimos em nosso dia-a-dia na cidade.

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Daniel dedica especial atenção aos signos publicitários observando suas formas, seus materiais e disposições no contexto urbano e, também, a estratégica sintaxe que articula textos nesse tipo de peça. Naturalmente, dá especial atenção ao impacto visual de signos publicitários sobre a cidade e há muito vem explorando elementos de sedução e indução presentes nesta forma de comunicação. Em letreiros e anúncios criados por Daniel, reconhecemos estratégias usadas pela publicidade que, em um primeiro momento, sequestram nossa atenção para, a seguir, impulsionar nossos desejos em direções determinadas. Ao longo de sua trajetória artística, Daniel buscou compreender essa dinâmica de funcionamento para responder a ela com


seu trabalho: apreendeu-a, apropriouse dela e a vem devolvendo de forma crítica à coletividade sob forma de arte. Ao observar as conexões entre vida cotidiana, fluxos de informação e circulação de dinheiro na cidade, Daniel encontra no universo dos textos publicitários um elemento potente a explorar pela via de uma apropriação bem-humorada, irônica e reinserida na urbe de forma camaleônica.

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O projeto Oficina Escobar também faz soar outras notas que vêm repercutindo em trabalhos anteriores do artista. Além da linguagem publicitária, o repertório poético de Daniel também inclui as contradições que tensionam a vida das instituições culturais. Por isso, não é surpreendente que, realizado em seu atelier, o atual projeto toque na dimensão do colecionismo, dos eventos expositivos e interrogue limites entre o lugar social do labor – instaurado pelas atitudes e gestos do artista – e do evento cultural.


Retornando à eventual pergunta lançada pela vizinhança da Oficina Escobar, inaugurada neste gélido mês de julho de 2021: por que o luminoso no alto da fachada? O estabelecimento anunciado pelo letreiro não se enquadra no perfil corporativo de construtoras, instituições financeiras e, tampouco, de poderosos centros culturais que já foram objeto do trabalho de Daniel. Aqui, o empreendimento familiar se enraíza em outro mundo, em outra ordem econômica, em outra rede relacional e afetiva. Enraíza-se, como teremos oportunidade de retomar adiante, em um sentimento de comuna. Tem escala humana, o que o situa a uma distância cósmica das instituições mencionadas acima.

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Marcado pelo traço do design contemporâneo, pouco esperado na sinalização de uma oficina mecânica, mas rapidamente incorporado à identidade móvel do negócio familiar, o letreiro luminoso cria uma atenção, uma zona de intervalo e de sensibilização pela nota diferente, inesperada de sua presença brilhando inutilmente à noite.

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“Eu prefiro ser o errante da noite a ser o caminhante do dia”,

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disse um artista há quase cem anos.




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Algo dessa disposição boêmia ecoa no letreiro sobre a fachada da Oficina Escobar. Ele sinaliza o encontro do trabalho com a Festa comunal, uma celebração entre gerações de corpos que criam e laboram sem que uma ação venha a ofuscar a outra. O brilho do luminoso contempla todos os corpos e ofícios que tiveram aquele lugar como sede de projetos de vida. É pela perspectiva dessa teia familiar e comunal onde se acende o nome OFICINA ESCOBAR que vejo se iluminar um aspecto novo no uso que Daniel vem fazendo de sinais publicitários em seu trabalho.


Talvez, o letreiro de Daniel nos convide a sonhar uma oficina mecânica errante, mutável, que se estende ao porão onde o avô Adolpho se dedicou a criar estruturas para as quais não encontramos nome. Estende-se, também, pela casa da avó Helena que faz lembrar um loft nova-iorquino por incorporar parte da antiga oficina mecânica (e que reluz com uma autenticidade e energia vital que dificilmente encontraríamos em um loft nova-iorquino).

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Finalmente, quanto à exposição anunciada como principal resultado do projeto Oficina Escobar: depois de inaugurada com o corte simbólico da fita por Helena, ela passou a receber visitação pública regrada pelos protocolos sanitários estabelecidos para o período. No interior do atelier de Daniel, o visitante encontra um planejado e bem cuidado arranjo de objetos criados ou retrabalhados por seu Adolpho, o avô relojoeiro e ourives.

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do relojoeiro do mecânico do artista 26


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Os menos familiarizados com esse tipo de evento cultural talvez não tenham reconhecido, de imediato, que os objetos estavam dispostos pela sala como obras de arte. Não importa. Para Daniel, o que conta é a ativação de camadas de sentido que não cessarão de se multiplicar a partir da exposição dos objetos do avô no atelier do neto; é sua presença no mesmo espaço físico onde, no passado, o pai trabalhou como mecânico. A justaposição destas três formas de vida com seus respectivos ofícios – a do relojoeiro, do mecânico e do artista – desestabiliza e recria categorias e nomes que flutuam, desprendidos de convenções, no espaço da Oficina Escobar.

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Obras de arte? Escapamentos? Rebites e extensores? 29


A quem importa – saímos dali pensando –, contanto que permaneçam livres?

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Sr. Escobar: o construtor de continuidades Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo essa graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para deter e assistimos juntos. José Saramago

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por Helene Sacco


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Pode parecer natural que máquinas de lavar durem em torno de 5 anos e que então todo aquele volume de matéria vá parar em algum lugar que desconhecemos. Também não nos parece estranho que nossos celulares precisem ser substituídos a cada 2 anos por uma versão que acompanhe a tendência tecnológica ou nossas necessidades cada vez maiores de registro e conectividade. O fato é que nos acostumamos a querer mais, a querer sempre o novo. Passou a ser natural sentir a falta do novo, e essa sensação vira desejo diante da novidade. Se formos bem sinceros, assumiremos o poder atrativo do novo e o quão difícil é colocarmos alguma resistência a isso.


Não é fácil abdicar do novo com tanta obsolescência programada nos cercando. Apoiados no nosso desejo de consumo, exploram essa falta sem fim e fazem desfilar diante de nossos olhos-corpos um universo de coisas, desde as mais necessárias até as mais absurdas. Qualidade? Bem, isso nem sempre é um quesito, já que a indústria sempre garante o novo como substituto. Lembram do desejo? Sempre há alguém especializado encarregado de fazer com que não nos esqueçamos dele. E como fiéis observadores da queda, assistimos o fim e o descarte de tudo convencidos de que é o certo a se fazer. Não compreendemos ainda que a forma de convívio com as coisas reverbera na forma como lidamos com tudo e todos.

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Que o descarte de tudo vira uma prática que incide força no hábito e sobre como nos relacionamos com as pessoas.

Não entendemos que todo objeto inventado, também inventa um sujeito.

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potência do fragmento


Mas há no mundo algumas raras pessoas que recusam o fim. Há quem exista movido por um outro desejo. Quase conheci pessoalmente uma delas. Tive a sorte de conhecer de perto sua família e ouvir a sua história. Uma história passada de geração em geração como um legado, um conhecimento quase extinto, e aqui vou tentar descrever o que descobri. São pessoas que percebem a potência do fragmento. Entendem que para tudo existe um lugar à espera, um lugar de encaixe perfeito. Acreditam na mudança de utilidade como um destino, uma vocação das coisas, como uma solução que todos deveríamos saber conduzir.

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Essas pessoas possuem o quase extinto dom da duração, expansão do tempo, do prolongamento da vida das coisas. Existem por aqui quase como que poetas, mas com uma diferente forma de escrita, inscrita na forma de agir com as coisas. Percebem tudo sob outro ângulo e possuem uma intimidade tão grande com os objetos, que compreendem sua língua e sua fala. E assim negociam com cada um deles funções, encargos e novas formas de ser. Os construtores de continuidades são pessoas silenciosas, mas adoram música. Têm um grande interesse e conhecem a forma de funcionamento de todo e qualquer instrumento musical, pois compreendem a música como uma forma de sentir o tempo no espaço.

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e outras leituras, desmontando com muito critério e estudo, todo e qualquer objeto sonoro que venha parar em suas mãos.

Sabem que existe nessa experiência uma magia ou um segredo e se dedicam a descobrir, utilizando manuais

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Têm um profundo conhecimento de química, operando em alguns momentos alquimias na vida cotidiana, assim como fazem na vida das coisas. Tudo o que os cerca possui certa organicidade. As formas para eles não parecem ser tão nítidas e precisas, uma matéria vai se infiltrando na outra, criando formas de simbiose, um tipo de irmandade entre as coisas. Possuem um dom de compreender as composições possíveis de tudo. E nesse processo misturado ao viver, reconstruir e prolongar, vão surgindo dobras, frisos, alças, apoios, ajustes, polimentos, emendas, justaposições, pressões, encaixes, pesos, contrapesos, rebites, amarrações, suturas, cortes, fissuras, colagens, pinturas, cobertura, forração, ...

um ria va infi na


ma matéa ai se filtrando a outra 47


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Entre suas experiências há um certo domínio sobre o biológico e seus processos naturais de duração. A madeira, por exemplo, parece superar seu apodrecimento e a invasão de cupins se torna uma textura interessante, assim como ressecamentos ou encharcamentos. São estados da matéria dos quais é sempre possível tirar proveito. A ferrugem é revertida ou aceita com complacência, mas alto lá: desde que a coisa cumpra a sua função. É preciso funcionar junto à vida, eis a razão de tudo no mundo. Ramificações, brotações, que são da ordem dos vegetais, parecem ceder poderes para os objetos (re)fabricados, que ao primeiro olhar parecem banais, mas olhem com mais afinco, “reparem” e verão um cuidado precioso em salvar as coisas.


Conhecedores profundos do tempo, brincam e exploram as durações, memórias e registros, pois se existe algo que fazem com maestria é guardar. Sabem pela prática que há um tempo interno e um externo, sabem conduzir o tempo colocando um dentro do outro, passado, presente e futuro. Por isso, têm um apreço fora do normal por baús, caixas, estojos, malas e maletas. Para eles, estas servem como naves, cápsulas enviadas como projéteis para o futuro, pois alguém lá há de precisar.

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É só procurar nas suas biografias que vocês descobrirão facilmente que eles sabem tudo sobre relógios. Atuam como ourives ou relojoeiros e seguem com fé o pedido que Francis Ponge fez aos poetas e artistas: o de consertar o mundo. Não como um mago, mas como um relojoeiro, observador atento de tudo, principalmente das pequenas coisas. Tocam o mundo com delicadezas, segurando os problemas e as soluções com longas e finas pinças, as quais, certamente, possuem um lugar exato no mundo. Talvez um estojo, como aquele ali sobre a prateleira, que fica exatamente ao alcance do braço e das mãos para que o esforço de uma eventual procura não desequilibre qualquer peça do seu lugar. Não suportam bagunça embora façam muita. Sábios como poucos, não perdem tempo procurando algo, pois lembrem: tudo tem o seu lugar no mundo.


Trabalham o tempo inteiro, até quando dormem debaixo das árvores no verão em grandes camas que existem especificamente para isso. Mas não pensem que o trabalho é fardo, pois nas mãos deles é invenção, potência de operar as continuidades de tudo na vida.

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(re)iventa a continu dade de tudo 56


ar ui-

O tempo, essa matéria estranha que escapa quando tentamos vê-la, é coisa difícil de controlar e cheguei atrasada para encontrar o Sr. Escobar – ele já havia partido para outras continuidades. Ao visitar a cidade conheci sua família e sua oficina, o lugar não poderia ser mais perfeito. Ele decidiu que ela seria assim: entre o solo e a casa, essa grande invenção humana. A oficina, ali naquele porão, era nutrida pela vida comum e aquela que ele inventava, criando um contexto que enraizava a casa a uma forma de vida mais humana e generosa com a terra e sua duração. Ali ele dava origem a invenções que subiam e ainda sobem pelas paredes, estruturas, encanamentos, rede elétrica, imantando tudo com a ideia de (re)uso, uma espécie de (re)torno, uma forma de (re) volta contra o fim. Uma prática ética, estética e política do viver e habitar ao permanentemente (re)inventar a continuidade de tudo.

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O Outro Lado

por Maria Helena Bernardes


Pequena, porém robusta com suas avenidas largas e traçado reto, Entre-Ijuís se situa sobre um altiplano ondulado na região das Missões, no Rio Grande do Sul. Circundada por um horizonte visível em todas as direções, a atmosfera é luminosa mesmo em dias nublados, como teria a oportunidade de constatar ao me reunir a Daniel Escobar, ao final de junho de 2021, com o objetivo de conhecer de perto o universo da Oficina Escobar, projeto criado por ele em sua cidade natal.

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As águas vermelhas e caudalosas do rio Ijuí Grande separam Entre-Ijuís do município de Santo Ângelo – ou Sant’Angel Custódio, como foi nomeada a redução fundada no século XVIII por jesuítas. Uma terra vigorosa, onde a história se adensa nos vestígios das reduções missioneiras e encontra raízes no território ancestral do povo Guarani que detinha aquelas terras até as invasões europeias. Hoje, a região é reconhecida pela monocultura da soja, com áreas de cultivo do milho e do trigo, esse último, dependente de invernos gelados como o de 2021, em que tomei a estrada para uma viagem que ultrapassou em mais de duas horas a duração, já extensa, do trajeto normal. Fruto do acaso, o extravio do roteiro proporcionou que eu experimentasse uma transição mais demorada entre dois mundos: aquele que Daniel e sua família deixaram para trás e onde o artista trabalhava de forma individual, em seu atelier na capital, e o outro, onde funciona a rede que sustenta a Oficina Escobar em Entre-Ijuís.


Atravessar a paisagem que costura estes universos reforça a intuição de que uma experiência da natureza da Oficina Escobar dificilmente se produziria em uma cidade de escala pós-industrial. A chave dessa percepção, contudo, não dizia respeito apenas à escala, mas à proporção e à qualidade da interação entre pontos da rede humana, espacial e temporal que sustenta o projeto inaugurado por Daniel como uma empreitada contagiante em Entre-Ijuís. Assim como a quase totalidade do território tomado por ibéricos em nosso estado, originariamente, as terras que atravessei pertenceram ao povo Guarani. É fácil pensar sobre elas como representação possível da Terra sem Mal, como os Mbyá-Guarani descrevem o estado de harmonia almejado para seu território. As condições para que se estabeleça a Terra sem Mal se apresentam em dois momentos: antes da invasão dos europeus e depois da erradicação de seus vestígios em solo guarani. Assim, é natural pensar que os antigos donos daquelas terras aspirem a retomá-las e a curá-las, tornando-as livres dos sinais do Mal. A hibridação do mito do Paraíso cristão com a narrativa da Terra sem Mal agregou a essa última o elemento da recompensa, configurando o território mítico como um lugar agraciado após a jornada, seja a da vida ou a da sujeição à sociedade branca. Contudo, desde sua origem, anterior à colonização, a Terra sem Mal se fundamenta sobre os princípios que norteiam, na prática, a organização do território Guarani, dividindo-o em três partes: a roça, a casa e o monte preservado.

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A roça asseguraria o exercício da agricultura que, mais do que prover alimentos à aldeia, possibilita um constante ajuste no aprendizado dos Guarani sobre os recursos e ciclos naturais. A casa, ou aldeia, é o espaço prioritariamente humano, onde se exercitam as interações, as posições e os papéis sociais, bem como os cuidados mútuos. Também é o lugar por excelência da Festa, já que o exercício da alegria coletiva é um dos bens mais cultivados pela comunidade. O monte preservado assegura que uma porção maior de terra mantenha sua mata e suas águas intocadas, permitindo-se apenas a pesca, a caça e a coleta pontuais. Cada uma das partes do território exerce um papel regulador sobre as outras, contribuindo para que as ações humanas se produzam em atenção aos demais elementos naturais.

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Como na maior parte dos municípios do estado, caminhando por Entre-Ijuís, não se veem sinais da herança guarani nas ruas, nem nos traços dominantes da população urbana, em sua maior parte, descendente de imigrantes europeus tardios. Para além das qualidades locais que lhe conferem graça e singularidade, é uma cidade que fala a linguagem da sociedade brasileira contemporânea. Algo, porém, articula as interações sociais e familiares, imprimindo-lhes qualidade diferente da que vemos nos grandes centros – algo que se autorregula entre as casas, os quintais e as beiras de fogo, fazendo recordar a utopia Mbyá-Guarani que um dia norteou a vida por ali.



– Quando éramos crianças, esse quarteirão era uma única propriedade, com pomar, galinheiro, galpão e o riozinho que corta o terreno ao meio.

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Daniel tinha vindo me buscar para uma caminhada em direção à Oficina Escobar, começando o roteiro pelo extenso terreno que se estende dos fundos da casa de Marli, mãe de Aderlize, onde eu estava hospedada, até o ponto mais alto da rua lateral. A maior parte da área estava livre de construções e plantas, mas um grupo de árvores frutíferas se avizinhava de dois galpões de madeira próximos ao riacho. O terreno parecia ser um ponto importante na geografia de infância de Daniel e Aderlize: – A gente brincava dos dois lados desse terreno que, depois do riacho, seguia para além daquelas casas lá no topo. Elas não existiam naquela época, era tudo um só campo. Do lado de cá, era o pátio da casa da Aderlize. Depois do riacho, onde a gente gostava de se aventurar, era o Outro Lado. Há mais de dez anos, em um encontro em minha casa, Daniel e Aderlize me introduziram ao Outro Lado. Lembro de me explicarem que, para quem parte da capital, Entre-Ijuís vem logo após a cidade de Ijuí, uma das maiores da região das Missões. Na época, entendi que havia uma terceira localidade situada após Entre-Ijuís, um lugar que, justamente por essa localização, se chamaria O Outro Lado.


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Sítio Arqueológico de São João Batista. Entre-Ijuís, RS.


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Em minha fantasia, eu os via crianças, brincando em um descampado com ares de chácara, onde um pequeno pomar servia a casas ocupadas por familiares. Um galpão aqui, uma cocheira ali, um galinheiro lá e, claro, uma sanga, como localmente designamos pequenos cursos de água. Quando, em 2020, Daniel e Aderlize comunicaram sua decisão de deixar a capital e voltar para Entre-Ijuís em razão da pandemia, foi neste Outro Lado imaginário que os visualizei instalados com a pequena Anita e a gatinha Fifi, figurando a Oficina Escobar em meio ao idílio que construí em minha mente. Só agora compreendia que o Outro Lado – mundo mítico das aventuras de infância de meus amigos – era o nome dado por eles à metade “selvagem” dos fundos do quintal da casa de infância de Aderlize, e que este importante cosmos psicogeográfico se situava dentro de Entre-Ijuís, próximo à rodovia de acesso à cidade. Em um primeiro momento, senti uma pitada de desapontamento ao confrontar o lugar real com aquele da minha imaginação. Porém, conhecer essa porção de terreno – que, na infância de meus amigos assumia a proporção de um país – ampliaria minha compreensão do contexto que tornou possível a reinvenção da Oficina Escobar em Entre-Ijuís. O Outro Lado fazia vibrar uma nota da Terra sem Mal em uma esquina concreta da cidade, um ponto onde o “antes”, da infância, e o “depois”, da vida adulta, se reencontram após uma travessia que corrige distorções e recoloca a alegria no roteiro.

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Caminhamos até a parte alta da rua para lá tomar a direção da Oficina Escobar. Daniel guiava o passeio, contando sobre a distribuição de seus familiares em Entre-Ijuís e municípios vizinhos. Eu podia imaginar Daniel e Aderlize correndo por aqueles quarteirões de infância atrás de pneus rolantes ou montados em bicicletas. Paramos em uma esquina para atualizar o roteiro: – Poderíamos dar a volta na quadra e acessar a Oficina pela porta da frente, mas eu acho mais interessante que a gente atravesse por dentro e entre pelos fundos. Eu, que ainda não me orientava espacialmente, acatei de bom grado o caminho sugerido. Imaginava o que significaria “atravessar por dentro”, quando chegamos ao portão da casa dos pais de Daniel e ele acionou o controle remoto para abri-lo. O quintal da mãe de Daniel era acolhedor e iluminado mesmo naquela manhã ventosa, em que o sol resistia em aparecer. Um alpendre elevado do chão dava acesso à porta da cozinha na lateral da casa. Rosane, a mãe, veio nos receber. Embora o pai, Luiz, também vivesse na propriedade, entendi que era ela quem cuidava do quintal, fazendo mudas de hortaliças, folhagens e temperos e protegendo as flores da geada. Nos recantos do quintal, não se viam galhos secos, folhas ou flores mortas, vasos desocupados por algo que não vingou. Cada plantinha era cuidada, uma mão amorosa zelava diariamente pelo seu bem estar. O passeio entre os canteiros estava limpo de detritos, como se estivéssemos dentro de casa. – Onde foram parar as folhas caídas? – perguntei a ela, brincando sobre o horário em que provavelmente teria

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despertado para que tudo estivesse tão arrumado àquela hora. Ela riu, fazendo pouco caso do próprio capricho. Comentou que no inverno já não caem folhas. Rosane vestia um casaco com o emblema da escola onde leciona em Entre-Ijuís. Mostrando vasos e jardineiras com mudinhas de hortaliças, ela explicava que se destinavam a um projeto de horta comunitária com o qual estava envolvida em Santo Ângelo. Ouvindo-a, convenci-me de minha completa inabilidade para administrar meu tempo. Como era possível que aquela mulher desse conta de cuidar de um quintal tão grande, além de se dedicar à casa, aos alunos, a uma horta comunitária e à netinha? Como em qualquer outra cidade, em Entre-Ijuís as pessoas levam uma vida atarefada, dividindo-se entre trabalho profissional e exigências da vida familiar. Nada indica, urbanas que são, que estejam livres da pressão dos afazeres e da ansiedade de realizar suas metas. No entanto, o tempo parecia mais tolerante ou mais plástico ali do que na metrópole. A evidência estava naquele quintal com horta e alpendre impecáveis, administrado por uma professora, mãe e avó. Novamente, lembrei-me da Terra sem Mal, pensando que os Guarani não comandavam mais aquele domínio, mas talvez tenham deixado por ali um resíduo de sua tecnologia de autorregulação das porções da vida. Quem sabe?



A conversa com Rosane e o aconchego de sua casa convidavam a um cafezinho junto ao fogão à lenha, mas saciar esse desejo ficaria para outro momento, pois Daniel e eu tínhamos um roteiro intenso naquela manhã. Despedimo-nos da mãe e ele me convidou a dar sequência à expedição pelo quintal, que logo compreendi ser um símbolo importante na teia de vida de meu amigo. O quintal participava de uma lógica que, começava a perceber, também se inscrevia no núcleo do trabalho que ele desenvolvia em Entre-Ijuís.

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Passamos a um prolongamento lateral do terreno já não mais cultivado em canteiros, mas onde antigas árvores frutíferas se distribuíam dignamente sobre a grama rarefeita pelo inverno. Uma sanga corria próxima ao limite com o pátio vizinho. Pensei que um curso de água limpa, fluindo livremente pelo quintal das casas seria algo inimaginável na capital. Daniel me mostrou os fundos de outras duas residências que compartilhavam a mesma área verde que se prolongava do quintal de seus pais. As casas tinham orientações opostas, voltando suas frentes para ruas paralelas. O terreno que abrigava as três casas era enorme, ia de fora a fora no quarteirão do qual tomava generosa porção. Os quintais reunidos, sem cerca, compunham um labirinto verde para quem começava a desbravá-lo. Ao lado de um poço de vertente – mais água! – Daniel apontava os primeiros sinais da presença de seu avô no terreno. Havia algo de estranho em um poste junto ao poço, algum tipo de gambiarra, mas bem retificada e


aprumada. O quintal sem cerca, provavelmente utilizado segundo uma divisão que não necessitava ser visível, organizava as casas como uma pequena aldeia. “É isso que tem aqui, de especial”, pensei mais tarde, “um resíduo forte de comuna”. A vida em comuna traz a benesse de conservação e transmissão das experiências individuais – disso, pode-se dizer, depende a comuna. Nessas condições, a experiência assume um papel regulador das ações e interações. Onde se perde a fé ou o acesso à experiência, formaliza-se a vida por convenções e normas que transbordam a escala dos indivíduos. Contudo, uma comuna só se sustenta com um número controlado de integrantes e, talvez por isso, as tentativas de transformar sociedades de massa em comunas estiveram condenadas ao fracasso. Novamente, lembrei dos Mbyá-Guarani e de seu cuidado em manter reduzida a população de seu território. A visão do quintal sem cercas, atravessado por uma sanga, traz novamente a memória da Terra sem Mal com seu monte preservado, onde todos podem ir para observar, fruir e aprende Daniel agora comentava que a segunda casa, da qual víamos os fundos, pertencia a uma tia e que a terceira, na parte alta do terreno, era a casa da avó. Foi para essa última que nos dirigimos, subindo uma leve inclinação em direção à rua. Eu ouvia Daniel contar sobre uma sucessão de crianças e adultos que, durante décadas, interagiram entre as folhagens e árvores daquele pequeno oásis comunitário. Armazenava informações sem saber, ao certo, se quem as trazia era o amigo, feliz por compartilhar seu

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lugar de infância, ou o artista que, em alguns minutos, abriria a porta da peça que era a razão de nosso encontro em Entre-Ijuís. Porém, essa divisão de papéis se dissolveria ao longo do dia e, para que isso se produzisse, seria necessário cruzar a porta que dava acesso ao mundo de Adolpho, avô de Daniel. – Este é o porão de meu avô. A parte superior da casa avançava da rua para o quintal, superpondo-se parcialmente à pequena área onde acabávamos de entrar.

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Não havia sinal da umidade que se poderia esperar em um ambiente próximo ao chão. O lugar era seco, estreito, tomado por objetos, móveis, ferramentas e guardados. A despeito da profusão de elementos, o porão do avô não era caótico, nem opressivo. Uma ordem quase renascentista organizava a distribuição dos objetos no espaço sob uma luminosidade particular. Ali dentro, a penumbra e a claridade pareciam concorrer na mesma medida e ocupar, ao mesmo tempo, os mesmos espaços, percepção que eu não saberia explicar. A primeira peça era particularmente estreita e pensei que talvez servisse como recepção aos clientes de seu Adolpho no tempo em que trabalhava profissionalmente como relojoeiro e ourives. Uma janela e uma porta comunicavam o vestíbulo a uma peça adjacente consideravelmente mais ampla. Talvez a janela tivesse a função de facilitar a passagem de peças maiores. Era uma abertura com o mesmo ar de improviso organizado que tocava tudo


ali dentro. A configuração do espaço, com uma pecinha menor na entrada seguida de uma peça ampla adjacente, me fez lembrar da antiga oficina de meu sogro que consertava televisões e que deveria regular em idade com o avô de Daniel. Supondo que fossem artífices de uma mesma geração e segmento social, pensei que estava diante de testemunhos materiais de uma forma de vida em extinção no país. Ambos eram artesãos ou técnicos que mantinham suas famílias com o produto do trabalho solitário de suas mãos, consertando objetos que hoje seriam considerados descartáveis.

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Segundo Daniel, seu Adolpho foi um artesão de precisão no reparo de relógios e joias. No entanto, essas não eram suas únicas habilidades. Em um canto, como a dar testemunho dos talentos múltiplos do mestre, objetos bem diferentes de relógios e adereços se enfileiravam sobre uma prateleira. Deixadas para conserto e jamais resgatadas da oficina, antigas máquinas de costura robustas, negras, desenhadas para toda a vida, hoje seriam consideradas itens de coleção legados pelo avô. A inteligência de seu Adolpho para os mecanismos o habilitava a fazer de tudo um pouco, o que o levava a ser requisitado a atender as mais variadas demandas, desde reparos em motores e engenhocas, até a criação de aparelhos inexistentes no comércio local. O avô era um inventor, um criador de soluções para quaisquer necessidades mecânicas que se apresentassem à sua oficina. A segunda peça do porão tinha personalidade de um espaço dedicado à imersão no trabalho. Tendia ao quadrado, mas parecia ter recuos ou quebras – ou seriam os móveis e a penumbra que davam essa sensação? Não se percebiam limites na obscuridade iluminada que só vi ali, no porão do avô de Daniel. Uma pequena porta dava acesso a um nicho arranjado como banheiro. Em seu local de trabalho, o ourives levava uma rotina espartana. Mais tarde, ao lado do fogo, na acolhedora casa que dona Marli cedeu para receber os colaboradores do projeto, perguntei-me se, acaso eu tivesse entrado sozinha na oficina de seu Adolpho, sem nenhum conhecimento provido por

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Daniel, teria sido eu capaz de identificar o mundo fabuloso de objetos que habitavam o porão do avô? Acredito que não, a menos que me permitisse dar tempo a meus olhos para que se adaptassem a uma realidade paralela à que acreditei ver à chegada. Quando entramos no porão, imaginei que o objetivo da visita deveria estar na peça ao lado, pois nada identificava ali de importante. Passada meia hora no espaço minúsculo, não tínhamos esgotado as peças que Daniel não cessava de apontar e que estiveram à vista desde sempre, presentes por todos os lados!...

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Todas as superfícies expunham itens guardados e todos eles – fosse um tampo de mesa; um banquinho; uma ferramenta ou suporte de utilitário; um bico de luz ou batente de abertura; uma braçadeira ou cabo de instrumento – evidenciavam sinais da mão do avô. Mais do que isso: tudo carregava o seu desenho. A oficina era um cosmos gerativo de corpos inéditos, ainda que similares aos objetos que conhecemos. A semelhança, contudo, parava nesta identificação dos objetos restaurados pelo avô com os que lhes deram origem. A ação de seu Adolpho era principalmente reparadora, da ordem da reciclagem e da reabilitação de coisas inutilizadas – talvez por isso, o grau de invenção impresso nelas não se revelasse imediatamente a um visitante ingênuo. A sofisticada intervenção do avô se infiltrava na matéria distribuída pelo porão, parecendo mais visível em alguns elementos, como caixas de vários formatos, materiais e finalidades – as de ferramenta pareciam ocupar um lugar especial em sua atenção – mas, também, cadeiras que perderam assentos ou pernas; vidraças que-


bradas de uma basculante; partes carcomidas de uma porta ou tampo de mesa. As soluções iam se mostrando mais e mais autorais à medida que Daniel as trazia de forma quase tipológica, destacando o uso de rebites quase como ornamentação e a substituição de conexões entre partes por dobradiças confeccionadas com o material que reveste pilhas. Daniel chamava a atenção para o fato de que essas conexões, por vezes, ligavam partes que não necessariamente nasceram unidas. Daniel avançava na apresentação do inesgotável inventário de objetos recriados pelo avô como quem conduz um número de mágica. Era nítido seu encantamento por enxertos de materiais estranhos à peça original, compensando faltas e restaurando rupturas; e, também, sua admiração orgulhosa pela engenhosidade geométrica e elegante com que o avô inseria dobradiças e rebites que Daniel aproximava de nossos olhos como quem oferece à apreciação uma joia minúscula. Era perceptível a coerência e a consciência de seu Adolpho quanto ao tratamento e ao design das peças armazenadas no porão. Havia claras escolhas estéticas e – por que não? – uma prática poética amadurecida durante anos de invenção e transfiguração da matéria. Não haveria outro nome, senão poética, que pudesse abraçar os cuidados resultantes do trabalho de um ourives transfigurador de detritos. Nesse processo, os objetos não foram expulsos de si mesmos, não se transformaram em outra categoria de coisas; não foram arrancados do domínio da vida comum, embora pudessem e merecessem ser exibidos fora da

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Oficina Escobar. Contudo, certamente é no porão que eles produzem seu mais belo sentido, ali, mergulhados no ambiente que envolveu um corpo em ação durante um tempo que já se encerrou. Ali, eles se mantêm em contato com sua origem de resto, dando um sentido ainda mais potente à operação estética que os brindou com uma sobrevida. O trabalho de seu Adolpho ficou incógnito, mesmo para a família, durante seus últimos anos de vida. Segundo Daniel, foi nesse período que ele trabalhou na maior parte das peças guardadas no porão. Será que isso se deveria à mesma cegueira que me acometeu à chegada, manifestada por um “não há nada aqui, passemos à próxima peça”? Fico curiosa por saber como outros recém chegados se encontraram com estes achados.

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Uma vez revelada a natureza da intervenção operante ali, o visitante é tomado por uma compulsão de buscá-la em tudo o que o cerca. O porão, que inicialmente parecia resumir-se a um depósito de coisas desgastadas e sem maior interesse, é revelado como um mundo sem correspondência. O que existe ali, existe somente ali. Nada se repete, o método industrial é revertido pela manualidade e pelo inesgotável amor do avô pela invenção. O uso de descartes e resíduos para restauração pontual, reconstrução ou combinação de objetos diferentes em uma nova criatura nos impactam como um processo alquímico de cura e mutação, um fractal de invenção cósmica.


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À noite, à beira do fogo, na casa de dona Marli, tentava passar o dia em revista: “E se Daniel não tivesse retornado para descobrir o porão do avô?”, perguntei-me. Será que as peças ficariam guardadas até que alguém manifestasse a necessidade de utilizar o espaço, removendo-as dali? Que fim teriam tido? Será que conservariam uma meia dúzia delas como lembrança? Uma reforma no espaço certamente não preservaria janelas e portas recriadas pelo avô e é provável, também, que o novo usuário se desfizesse das divisórias e remodelasse o banheiro. E o pequeno cosmos no porão teria desaparecido sem nunca ter existido para outra pessoa além do ourives.

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Daniel conta que seu reencontro com o mundo do avô começou devido à sua necessidade de ter um espaço de trabalho em Entre-Ijuís. Seu pai ofereceu-lhe, então, a antiga instalação que abrigou, no passado, a oficina mecânica que levava o nome da família: Oficina Escobar. Luiz, pai de Daniel, filho de Adolpho, tinha o mesmo gosto do avô por mecanismos e máquinas. Aprendeu o ofício de relojoeiro com seu Adolpho e, depois, migrou para uma especialização em mecânica de veículos de grande porte. Incentivado por seu Adolpho, com o tempo, abriu o próprio negócio num puxado construído na parte frontal da casa dos avós de Daniel. Luiz conta que, inaugurada a oficina, Adolpho abandonou o trabalho de relojoeiro e ourives para aprender com o filho, Luiz, o ofício de mecânico, e que, desde então, passaram a trabalhar juntos no empreendimento.


Com o passar do tempo, Luiz decidiu voltar a prestar serviços a empresas da região. A oficina foi desativada e seu Adolpho retornou ao porão para dar início a uma nova fase. Por anos, a Oficina Escobar manteve suas portas fechadas. O retorno do avô a seu antigo espaço de trabalho marca seus últimos anos de vida. Daniel conta que os familiares comentavam sobre o fato de ele passar dias inteiros no porão, divertindo-se com sabe-se lá o quê. Com a reabertura da Oficina Escobar, a casa dos avós reúne, pela primeira vez, as três gerações de ofícios desenvolvidos ali, em um ciclo iniciado pelo avô, Adolpho, o relojoeiro, abraçado pelo filho Luiz, o mecânico e, agora, representado pelo neto, Daniel, o artista. Como espaço físico, a Oficina Escobar tem o formato clássico das oficinas mecânicas da nossa terra: uma só peça, ampla o suficiente para abrigar um automóvel e possibilitar a circulação do mecânico com seus equipamentos. Hoje, a oficina mantém a configuração de sala única, tendo sido reformada e adaptada à função de atelier de Daniel e, eventualmente, de espaço de exposição pública de seus trabalhos e projetos. A palavra “oficina” foi escolhida por Daniel como um eixo que costura o convívio dos ofícios das três gerações sucessivas e os reúne em exposição em um só lugar. Ao que parece, até a inauguração da exposição da Oficina Escobar, os trabalhos de avô, pai e filho ainda não tinham vivido tal proximidade física, nem sido conectados com tanta clareza por um mesmo termo: “oficina”.

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Creio que a escolha de Daniel por dar a seu projeto o nome do negócio inaugurado pelo pai, Luiz, “Oficina Escobar”, rende homenagem ao trabalho que diferentes corpos, em diferentes tempos, desenvolveram sob o impulso da grande fábrica de empreendimentos que é a casa dos avós.

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A casa dos avós abrigou as atividades de Daniel e de seu pai em um setor diferente daquele em que laborou o avô. Luiz e Daniel ocuparam o galpão puxado na parte dianteira da casa. Já o avô se instalou no porão, abaixo e aos fundos da construção principal. Assim, ainda que o luminoso “Oficina Escobar” esteja fixado no estabelecimento da frente, o espírito da oficina desce ao porão, onde tudo começou. Depois, ascende à atual casa da avó, dona Helena, que adaptou parte da antiga oficina mecânica à função de sala de estar, um simpático espaço multiuso que ainda guarda a vitalidade do trabalho produzido ali. Com suas personalidades diferentes, o porão e o galpão dianteiro constituem as partes físicas da Oficina Escobar. O porão do relojoeiro foi modelado por movimentos restritos e uma atmosfera silenciosa. Se pessoas de fora o acessavam, isso provavelmente se dava pontualmente, em entregas ou retiradas de peças. Assim como ocorre em estabelecimentos de outros artesãos solitários – como sapateiros, técnicos em eletrônicos e estofadores – também o porão do avô se configura como uma cápsula ajustada às ações de um único corpo.


A personalidade do galpão construído para abrigar a antiga oficina mecânica é totalmente diferente. Junto à calçada, ela tem vocação para a visibilidade. Oficinas mecânicas e ateliês de artistas são espaços que acolhem gestos expansivos e podem ser frequentados por eventuais colaboradores. As oficinas mecânicas não têm paredes frontais, nelas, muitas vezes se trabalha à vista de quem passa. Com esse aspecto, o espaço de trabalho de um artista não se identifica, sendo o atelier um mundo reservado que recebe visitantes em momentos específicos. A hospedagem de três distintas atividades sob a mesma designação de “oficina” nos provoca a rever o lugar social dos trabalhos produzidos por corpos que operam sobre materialidades e códigos tão diferentes. Segundo o arranjo hierárquico das distinções sociais, o avô e o pai se dedicaram a ofícios, enquanto Daniel se dedica a uma das artes. A exposição Oficina Escobar tensiona isso, ao evidenciar, para quem se dispuser a ver, que os objetos trabalhados pelo avô, por exemplo, resultam de escolhas estéticas e invenções poéticas tão pessoais, refinadas e conscientes que, facilmente concluímos, nada lhes faltaria para sua inscrição no campo da criação artística. A sobreposição do mundo do avô, em exposição no atual ateliê de Daniel, mesmo espaço onde o pai trabalhou, produz uma volta interessantíssima na espiral de encontros entre três gerações. No passado, foi o avô que veio se unir ao pai para incentivá-lo à abertura de sua oficina mecâni-

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ca. Adolpho deixou o ofício de relojoeiro e veio aprender a arte da mecânica de automóveis com o filho. Hoje, segundo Daniel, o pai é o principal incentivador e divulgador da reabertura da Oficina Escobar. A participação de Luiz no projeto do filho abre espaço, inclusive, para uma bem-vinda dúvida sobre quem estaria por trás da mais recente criação da fábrica alquímica que é a casa dos avós: o ourives, o mecânico ou o artista?

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Tendo revisado a rota com Aderlize, o caminho de volta ficou desembaraçado de extravios e demoras. Eu ansiava por chegar em Porto Alegre a tempo de atender compromissos de trabalho programados para aquele dia. Contudo, deixar para trás o mundo escolhido por Daniel e Aderlize para criar Anita e a gatinha Fifi sob o olhar amoroso e brincalhão da tia Queila, os mimos dos avós Rosane, Luiz e Marli, da bisavó Helena e da amorosa rede de parentes, vizinhos e amigos, trazia a sensação de lançar-me a uma viagem espacial rumo ao vazio interestelar onde os corpos existem isolados. A imagem um tanto desoladora que eu fazia do retorno à capital era, naturalmente, produto de uma experiência rápida em um lugar onde ainda se pode sentir a segurança e o sabor da vida produzida em comuna.

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Ao avançar pela estrada correta, eu pensava se estaria ao alcance de qualquer sociedade a possibilidade de se libertar da presença do Mal, como aspiram os Mbyá-Guarani. Pensava se a expulsão do outro – mesmo daquele outro investido da cruel missão de colonizar, matar e expropriar – asseguraria a erradicação do Mal nos domínios conhecidos de nossa casa. Será possível a existência em abstenção do Mal? Desfrutar de uma experiência coletiva exclusivamente vivida sob os auspícios do Bem, sem deslizar nas gradações que desmancham limites e confundem quaisquer valores em uma só tigela?


Eu havia visto um Bem, em Entre-Ijuís, sustentando a forma de vida escolhida por meus amigos em seu retorno à terra natal. Mesmo que esse Bem seja um elemento momentaneamente em realce, avizinhado pelas pontinhas cinzentas que dão graça às nossas lutas; ainda que se trate de um Bem que não livra a comuna de sofrimentos, das más escolhas, das perdas, injustiças e conflitos, ainda assim, estou convencida de ter visto um Bem que teve direito a alçar-se e a dar bonitos frutos. Creio que a Oficina Escobar é fruto de um Bem comunal, de uma rede de pessoas que se mantém em pequena escala. A gênese do projeto emergiu em terrenos não cercados, atravessados por cursos de água limpa; onde se passa de uma rua a outra pelos fundos das casas e se desbrava o Outro Lado do mundo ao pular um riacho. Onde artesãos não se intimidam diante de nomes ocos como “arte” e onde artistas não se intimidam diante de nomes ocos como “artesanato”. Que nomes não parecerão ocos quando reduzidos a cercados?

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para quem ver, é comov


Desembaraçada de contenções vazias, a Oficina Escobar nasceu de um modo comunal que ainda resiste em Entre-Ijuís: uma forma de vida em que todos os indivíduos brilham como rebites aplicados sobre o revestimento de antigas pilhas.

souber Para quem souber ver, é comovente.

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vente Maria Helena Bernardes (crônica dedicada a Adolpho, Luiz e Daniel)


Artista Daniel Escobar Acompanhamento crítico Maria Helena Bernardes Produção executiva Aderlize Martins Identidade visual Patrícia Heuser Redes sociais Laura Klein Produção audiovisual Guilhermo Gil Organização editorial Daniel Escobar

Textos Helene Sacco Maria Helena Bernardes Revisão Tuane Eggers Fotografia Anderson Astor Projeto gráfico Patrícia Heuser Impressão Rotaplan Pesquisa local Eloise Oliveira de Escobar Helena Oliveira Escobar Luiz Carlos de Escobar Rosane Scherer de Escobar

Agradecimentos Ana Carolina Sacco Freitag, Anita Martins Escobar, Carine Betker, Casa Albuquerque Galeria de Arte, Celeste Fontana, Celma Albuquerque Galeria de Arte, Daniela Schneider, Débora Scherer de Escobar, Flávia Albuquerque, Gael Gil Kipper, Hélio Freitag Júnior, Jornal Catedral, José Paulo Meneghine, Lúcio Albuquerque, Marli Maria Baron, Marino Massalai, Michele Kipper, Paloma Sacco Freitag, Queila Scherer de Escobar, Rádio Assocei, Rute Assis. MARIA HELENA BERNARDES é artista visual, escritora e professora. Coautora do projeto Areal e criadora do Observatório de Sensibilidades Morro da Borússia. Seus livros, ensaios e crônicas giram em torno de experiências artísticas, narrativas orais, reflexões sobre a arte e aventuras compartilhadas com outros artistas. Entre as publicações constam “Vaga em campo de rejeito”, “Histórias de península e praia grande / Arranco”, “Dilúvio”, “Ensaio”, “A estrada que não sabe de nada”, “Pequenas crônicas à distância e daqui mesmo” e “A dança do corpo seco”. HELENE SACCO é artista visual, escritora e professora. Doutora em Artes Visuais pela UFRGS. Sua produção artística é composta por trabalhos que articulam objetos, desenho, escrita e fotografia, e que buscam, através de um tom ficcional, pensar sobre a produção de objetos e suas implicações na casa e nos modos de vida. É líder do Grupo de Pesquisa Lugares-livro: dimensões materiais e poéticas, CNPq/CA - UFPEL. Coordena o Projeto de Pesquisa OBJETOCOISA: reflexões sobre a criação e produção de materialidade na arte. Atua no PPGAVI, Mestrado em Artes Visuais do Centro de Artes da UFPEL, onde também é professora na graduação.


DANIEL ESCOBAR Mestre em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS e graduado em Artes Visuais pela mesma instituição. Sua obra aborda as paisagens do desejo criadas pelo consumo e pelo entretenimento, a partir da apropriação de materiais ou símbolos ordinários próprios ao mundo urbano. Participou de residências como CASCO: programa de integração arte e comunidade, Litoral Norte-RS (2021), Bolsa Iberê Camargo/Casa de Velázquez, Madrid (2014), e Bolsa Pampulha, Belo Horizonte (2008-2009). Entre as premiações, destaque para o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea, com o qual o artista foi contemplado em três edições: São Paulo (2010), Belo Horizonte (2011) e Recife (2019). Recebeu indicações ao Prêmio PIPA nos anos de 2014 e 2018, e ao Prêmio CNI/SESI Marcantonio Vilaça em 2009. Em Porto Alegre, foi premiado com o Açorianos de Artes Plásticas nos anos de 2006, 2013 e 2019, sendo em 2020 convidado a integrar o júri deste mesmo Prêmio. Possui obras em coleções institucionais, incluindo Museu de Arte Moderna de São Paulo [MAM-SP], Museu de Arte do Rio [MAR], Coleção de Arte da Cidade de São Paulo, Museu de Arte da Pampulha, Museu de Arte do Rio Grande do Sul [MARGS], Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul [MAC-RS], Museu de Arte Contemporânea do Paraná [MAC-PR], Casa de Velázquez de Madrid, entre outros. danielescobar.com.br


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) _________________________________________________________________________________ E74 Escobar, Daniel Mil e um segredos de oficinas / Daniel Escobar [Textos: Maria Helena Bernardes e Helene Sacco]. – Entre-Ijuís: Daniel Scherer de Escobar, 2021. 96 p. Il. ISBN: 978-65-995935-0-5  1. Arte contemporânea brasileira. 2. Cidade. 3. Memória. 4. Livro de artista. I. Bernardes, Maria Helena. II. Sacco, Helene. III. Astor, Anderson. IV. Heuser, Patrícia. V. Título CDD: 709.81 _________________________________________________________________________________ Índice para catálogo sistemático: 1. Arte contemporânea: Brasil: livro de Artista Bibliotecária – Celeste Fontana CRB 6-1907



E como fiéis observadores da queda, assistimos o fim e o descarte de tudo convencidos de que é o certo a fazer. Não compreendemos ainda que a forma de convívio com as coisas, reverbera na forma como lidamos com tudo e todos.

apoio

Projeto executado através do Edital Criação e Formação Diversidade das Culturas realizado com recursos da lei n° 17.017/20


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