"MORUPI - Pensamento e pesquisa de mulheres da cena"

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RODA DE CONVERSA EM TRANSIT FESTIVAL 2019. REALIZADO PELA ATRIZ, DIRETORA E PESQUISADORA JULIA VARLEY. ODIN TEATRET HOLSTEBRO - DINAMARCA


SUMÁRIO: EDITORIAL

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DRAMATURGIAS DO TEATRO- NEGRO Escrita e perspectiva afro-orientada

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IDENTIFICAR E ENGAJAR O OPOSTO

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Por Jéssica Nascimento

EXPEDIENTE: Editora - Daniele Santana Trabalharam nesta edição: Vanessa Oliveira - Revisão Carla Dameane - tradução espanhol/português Manoel Mesquita Jr. tradução inglês/português Thiago Basso - tradução inglês/português Diagramação: Wallace Lima Colaboradoras desta edição: Janaina Matter - Brasil/ Jéssica Nascimento Brasil/ Jill Greenhalgh - País de Gales/ Julia Varley - Dinamarca/ Laura Danna - Argentina / Mabe Bonilla - Equador/ Naná Sodré- Brasil/ Natália Sá - Brasil/ Pamella Carmo - Brasil/ Roxana Pineda - Cuba; ; Veronica Falconí- Equador ; Viviana Bovino - Espanha;

Por Jill Greeenhalgh

O TEATRO É MINHA MANEIRA DE LUTA R

O TEATRO É MINHA FORMA DE LUTAR CONTRA O MEDO

CONTATO

danielesantana10@gmail.com

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Por: Laura Danna

TRINCHEIRA

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UMA OPÇÃO DE VIDA Por Roxana Pineda

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DES-ADAPTADOS SOCIAIS

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O TEATRO É MEU TERRITÓRIO DE LUTA

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UM TEATRO DESCENTRALIZADO

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A QUEM ABRIGARÁ MEU TECIDO?

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CRAVOS VERMELHOS E UMA ROSA

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É O MOVIMENTO QUE GERA O CORPO Por Natália Sá

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Por Janaina Matter

Por Viviana Bovino

Edição número 1 Março de 2020

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Por Naná Sodré

Por Mabe Bonilla

Por Pamella Carmo

Por Verónica Falconí

Por Julia Varley


PONTO INICIAL Li em algum lugar: “tudo que tem nome existe”. Há tempos eu imaginava criar uma revista com a escrita exclusiva de mulheres da cena. Mas nunca acontecia. Quando descobri essa frase entendi, eu precisava dar um nome. Nomear algo ou alguém é uma tarefa extremamente complexa. À medida que se busca um nome as imagens daquilo que se quer nomear vai se transformando no seu cérebro. Passei muitos dias buscando um nome que expressasse o todo da minha ideia. Cheguei a um, me parecia bom, “atual”, coerente. O mastiguei por uns dias até contar a alguém. Esse alguém (é preciso nomear) foi a atriz e companheira Pamella Carmo, que também escreveu para esta edição. De imediato ela me disse: não gosto...! Problematizou e eu concordei. Outros tantos dias passaram... Fiz uma lista dos que me apeteceram mais, compartilhei com outras pessoas... Por exclusão fiquei com três, mas ainda não estava convencida. Estava nesse período fazendo pesquisas sobre minha ancestralidade negra e indígena para uma obra e descobri a palavra MORUPI, do tupi guarani arcaico, me agradou a sonoridade. Procurei muito até encontrar seu significado num dicionário muito antigo que trazia palavras indígenas já esquecidas, e lá estava Morupi = pelas outras, por nós. Me pareceu perfeita. MORUPI se propõe a ser veículo do pensamento de artistas, pesquisadoras, criadoras, provocadoras, que a partir da cena discutem a sociedade, a sua realidade, o mundo. Um espaço para a pluralidade, para a troca de conhecimento, para o fortalecimento de nós mulheres da cena. Páginas a mais na construção do legado feminino no teatro, na arte. Meses de fecundação e aqui está, um amalgamado de reflexões, provocações e instintos de mulheres de partes diferentes do mundo, com experiências e realidades distintas, separadas por fronteiras tangíveis e não tangíveis, mas que possuem o teatro como ponto em comum. Como maneira de lutar. Boa leitura! Daniele Santana Editora


DRAMATURGIAS DO TEATRO-NEGRO ESCRITA E PERSPECTIVA AFRO-ORIENTADA

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ado até a superfície do córrego e encontro um corpo parado me olhando de cima para baixo. É uma menina. O tom de pele é igual ao meu. Ela usa um vestido rosa muito sujo, está descalça e com os cabelos amarrados em duas partes. Parece que tem a mesma idade que eu, bebe o mesmo café, tem a mesma mãe, segura a mesma sacola de pão e parece estar tão cansada quanto eu. Ela me ajuda a sair do córrego e me olha por um tempo, um olhar curioso de quem nunca viu um menino molhado cheio de buracos no corpo. Ela me entrega a sacola, olha nos meus olhos e sorri. Ao redor tem uma grande quantidade de casas construídas com barro, madeiras e folhas de bananeiras. Corredores rasgam a pequena cidade de Cité Soleil que se expande nas águas sujas o afeto daqueles que caem e não voltam. As crianças correm descalças pelo barro batido feito sangue e miséria. Parece Guaianazes em época de chuva. Mas aqui não precisa de água para poder resistir, aliás, é a falta dela que faz com que as mulheres e as crianças saiam todos os dias com galões na cabeça à procura de gotas para beber, fazer comida, lavar as roupas e hidratar os peixes ligeiros que vivem nos córregos da cidade. Por aqui, o lixo é comum feito os fios emaranhados nos postes do meu bairro. Por Jèssica Nascimento (São Paulo – Brasil) Atriz, bacharel em Comunicação das Artes do Corpo pela PUC– SP, e formada pela Escola de Artes Dramàticas da Universidade de São Paulo (EAD- ECA- USP). Desde 2017 è orientadora do Programa Vocacional, projeto que integra os programas de formação artística da secretaria de cultura de São Paulo.

MULHER: Pitit, fi vini andedan! MENINA: Gade Ki moun mwen te jwenn, manman, Li samble ke li te pèdi . A menina pega minha mão e me leva para dentro de sua casa (...). Na parede da casa tem um quadro escrito: Eu amo, Haiti. A mulher observa meus furos e suspira com pesar.

Foto de Tico Dias e Binho Cidral

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O texto transcrito acima faz parte da dramaturgia Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã, texto escrito em 2016 pelo dramaturgo Jhonny Salaberg, na época com 21 anos, integrante da Cia teatral Carcaça de Poéticas Negras, morador do bairro de Guaianazes – Zona Leste de São Paulo. O texto conta a história de um menino negro, morador da periferia de São Paulo, que corre para não ser baleado em uma perseguição policial que, sem justificativa, o surpreende enquanto compra pão em uma padaria. Apesar de correr, seu corpo vai sendo invadido por inúmeras balas de arma de fogo. Mesmo atingido e com o corpo cheio de buraquinhos, o menino continua fugindo para não morrer. Na cena descrita acima o menino chega a terras haitianas, onde vê nos corpos e na arquitetura do território estrangeiro parentescos que evidenciam ligações de sua corporeidade negra além-mar. Este episódio apresenta em parte, o campo de observação deste texto: a dramaturgia do Teatro Negro em São Paulo. Nas últimas duas décadas o número de coletivos teatrais autoidentificados como Teatro Negro, tem aumentado

O Teatro Negro é uma experiência artística e política cuja singularidade está em tomar como signo de representação e projeção, a cor, fenótipo, experiência, memória e lugar do sujeito negro. Neste trabalho, e se fortalecido no território Paulista3.

a maioria dos atuadores - diretores, atores, músicos, dramaturgos, são negros. Segundo a professora Leda Maria Martins, o Teatro Negro constitui territórios culturais que descentram os modelos ficcionais do teatro convencional, fundamentalmente, decompondo o valor negativo acoplado ao signo negro pelo imaginário ideológico coletivo4. Essas afrografias atualmente demarcam e reivindicam territórios no estado de São Paulo. O texto dramatúrgico apresenta a arquitetura para ação dramática, neste é possível analisar a elaboração formal e ideológica do teatro, bem como a sua inscrição na história da cultura. Em 1944, com o surgimento do Teatro

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Experimental do Negro, passou-se a estimular a criação da literatura dramática baseada na experiência afrobrasileira. Essa experiência dramatúrgica, antes pouco verificada no teatro nacional, influenciou a maioria dos experimentos do século XIX. Segundo a pesquisadora, a análise desses registros faz refletir em que medida a dramaturgia se ocupou realmente do negro como personagem, dada sua triste condição social, uma vez que a importância que ele pareceu ter para o autor dramático da época não manteve o mesmo nível até os dias de hoje. Miriam, no livro A Personagem Negra no teatro brasileiro se ocupou de autores como: Luiz Carlos Martins Pena (1815 - 1848), Joaquim Manuel de Macedo (1820 - 1882), José Martiniano Alencar (1829 – 1877), Agrário de Meneses (1834 - 1863), Carlos Antônio Cordeiro (1812 - 1866), Francisco Pinheiro Guimarães (1832 - 1877), Paulo Eiró (1836 - 1871), Maria Ribeiro (1829 - 1880), Antônio de Castro Alves (1847 - 1871), França Junior (1838 - 1890), Arthur Azevedo (1855 - 1908). Apesar da presença da personagem negra no drama, estas dramaturgias não são consideradas textualidades do teatro negro. O negro sempre esteve presente como ator nos espetáculos teatrais durante o período colonial. Segundo a pesquisadora Christine Douxami, essa presença somente foi excluída do teatro brasileiro em meados do século XIX, quando o teatro perdeu seu aspecto marginal. Neste momento, os atores negros foram substituídos por atores brancos devidamente pintados de negro. Deste modo, a prática racista blackface permeava, inclusive, a representação das dramaturgias que se pretendiam abolicionistas. Essas produções, se não de maneira estereotipada, colocavam o sujeito negro como símbolo dentro da questão política, sem se preocupar com as suas dimensões psicológicas, emocionais e culturais. Sem espaço nos teatros e também como atuador social e político, o ator negro permaneceu trabalhando às margens das produções tidas como oficiais. A Cia Negra de Revistas, fundada em 1927, no Rio de Janeiro pelo maestro Pixinguinha e por Osvaldo Viana, por exemplo, revelou o trabalho do ator Grande Otelo, cuja experiência sempre esteve atrelada à comicidade. Mudanças dramatúrgicas passaram a ocorrer com a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) em


1944, por Abdias do Nascimento e outros intelectuais como Aguinaldo de Oliveira de Camargo, o pintor Wilson Tibério, Teodorico dos Santos, José Herbel e Claudiano Filho6. Um trabalho cujo objetivo era encenar e incitar a criação de peças dramáticas voltadas à cultura e aos temas emergentes do povo negro. Em sua antologia Dramas para Negros, prólogo para brancos, o TEN documenta essa fase pioneira da dramaturgia do Teatro Negro. Depoimentos, fragmentos dramatúrgicos, matérias de jornais e revistas também podem ser encontrados no livro Teatro Experimental do Negro: Testemunhos, e no jornal O Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro – dirigido por Abdias do Nascimento entre 1948 a 1950. Como homem de teatro, intelectual, militante e político engajado na propagação dos valores da cultura africana no Brasil e no reestabelecimento da dignidade do povo negro brasileiro, Abdias produziu uma quantidade significativa de textos que ainda hoje norteiam ações do Teatro Negro no Brasil. Apesar da distancia temporal, muitos intelectuais estudam a produção atual do Teatro Negro no Brasil em relação ao trabalho desenvolvido pelo TEN. Esse olhar tem se alterado à medida que a produção do Teatro Negro tem aumentado e desenvolvido particularidades, complexidades estéticas e apontamentos discursivos que merecem estudos aprofundados. Como exemplo, em São Paulo, a Capulanas Cia de Arte Negra - um grupo composto exclusivamente por mulheres negras, que há onze anos dedica a sua poética e estética a investigação da tríade discursiva: mulheres, raça e classe. No que se refere à produção intelectual e à organização de registros reflexivos, desde 2014 a Cia paulistana Os Crespos, tem dirigido e administrado a publicação da revista Legítima Defesa – Uma revista de Teatro Negro. Essa organização textual tem reunido reflexões sobre a atual produção do

Teatro Negro no Brasil, a publicação de peças teatrais e divulgação de novos dramaturgos negros. Em síntese, a observação do texto dramatúrgico pode colaborar para o entendimento das estratégias textuais que imaginam corpos e culturas. O teatro como ação intelectual e política pode mobilizar territórios de produção de conhecimento que traçam caminhos críticos às perspectivas hegemônicas de criação artística. A contextualização e estudo deste saber-fazer afroorientado pretende, nas palavras de Leda Maria Martins: acentuar, um outro saber também possível – possível de verdades, possível de legitimidade, possível de encanto e sedução, e, como todo saber, passível, porém, de fendas, de rasuras, de incompletudes. O Teatro – Negro em sua variedade de proposições e engajamento teórico-prático no território brasileiro tem organizado com suas afrografias registros afro-orientados de escritas de si, confrontando as histórias únicas de modo a garantir a diversidade de narrativas. ¹[Tradução: Filha vem para dentro!] ²[Tradução: Olha quem eu encontrei, mãe. Ele parece estar perdido.] ³Anotações sobre o Teatro Negro Contemporâneo, revista: Legitima defesa. p. 44-54. 1° edição – 2014. 4 Martins, Leda Maria. A cena em sombras,p.49. 6 DOUXAMI, 2001. p 317.

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IDENTIFICAR E ENGAJAR O OPOSTO

foto de Carolina Vilches Monzón Por Jill Greeenhalgh – (Paìs de Gales/Reino Unido) Autora de teatro proFissional por toda sua vida. Viaja extensivamente pela Europa Asia, Austràlia e as Amèricas como produtora, diretora, artista e professora. Em 1986, fundou o projeto TheMagdalena Project Rede Internacional de Mulheres no Teatro Contemporàneo- e permanece como sua Diretora Artìstica. Também foi docente na Universidade de Aberystwyth em Estudos de Performance, de 2002 á 2017

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uando me pediram para contribuir com essa publicação, eu disse sim, apesar de escrever ser um sofrimento para mim, e porque amo a pessoa que propôs essa iniciativa. Ela é jovem, cheia de paixão e energia; ela tem talento artístico e é muito, muito consciente. Sim – eu gosto dela. E reconheço as paixões do meu próprio idealismo e juventude. Para responder seu tema “teatro é a minha maneira de lutar” e para dar a mim mesma uma chance de relembrar, recorri a seis prateleiras lotadas que mantêm minhas anotações de trabalho desde os anos 70 até hoje. Peguei uma aleatoriamente e fui transportada para 2009, no começo de um novo processo: The Quietude Project.

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Meu ponto de partida para qualquer processo é aquela “coisa” que incomoda. Podemos ter milhares de ideias em um dia – elas se esvoaçam como borboletinhas mas raramente se aquietam e, quando o fazem, é só por alguns momentos. Uma ideia que paira por mais tempo e, apesar de ignorada ou desprezada; rejeitada; enterrada; ela persiste – te encarando e se negando a sair até que receba um pouco de atenção e reconhecimento. Eu sempre penso que é mais ou menos como engravidar – aconteceu e não tem como voltar atrás! Lembro que um dos momentos mais dramáticos foi quando ia de bicicleta para o trabalho depois do primeiro Magdalena Festival em 1986, que havia durado três semanas, que levou três anos


para ser montado e que recebeu mulheres de 25 países. Foi a coisa mais cansativa, ingênua e desafiadora que já fiz. Parei em um semáforo e tive uma ideia. Quero criar uma performance com 12 mulheres de 12 nacionalidades distintas e sair em turnê com elas. Todas as partes do meu cérebro gritaram NÃO NÃO NÃO – sai daqui – é muita coisa, é muito difícil, eu não preciso disso – sai daqui – por favor, sai daqui. Mas essa borboletinha teimosa não ia de jeito nenhum. Ela ficou e ficou até que seis anos depois a performance “Midnight Level 6” com doze artistas se tornou uma realidade e ainda teve uma pequena turnê internacional coincidindo com a gravidez do meu primeiro filho. Lutei por anos com patrocinadores, espaços e ensaios até que o trabalho finalmente nasceu – e eu gostei. Estava feito – e eu podia seguir em frente. Mas voltando à 2009, como dita a minha anotação. Minha vida estava conturbada, meu marido havia ido embora e era a única cuidadora dos meus dois filhos em uma casinha na área rural, há milhas de distância de tudo, que eu fui obrigada a esvaziar e vender. Resumindo, eu estava perdida, perdendo e me perdendo. E esse lugar profundo de lamentação fez com que eu anseasse por estabilidade, quietude, silêncio e entender o significado de perder. Minha estratégia de combate foi começar um trabalho novo – The Quietude Project. Escolhi fazer essa troca com várias artistas renomadas e experientes: a cineasta norueguesa Zoe Christiansen, a escritora australiana Margaret Cameron, o violoncelista Nicola Thomas e o artista performático Eddie Ladd. Colaborar com praticantes tão disciplinados permitiu que eu alcançasse uma estética sofisticada e ao mesmo tempo me desafiasse em minhas habilidades. Foi mais uma longa viagem com as mesmas batalhas para vencer, mas ao longo dos dois anos seguintes The Threat of Silence (A Ameaça do Silêncio, em tradução livre) – a primeira parte do que esperávamos que fosse uma trilogia – foi criada e saiu em turnê. E eu gostei. Logo em seguida comecei a trabalhar na segunda performance, The Book of Space (O Livro do Espaço, em tradução livre). Margaret Cameron sugeriu que fizéssemos uma trilogia, eu aceitei e comecei a lutar para organizar essa nova etapa do processo: uma viagem para os desertos do coração da Austrália. Na noite anterior à minha viagem para a Austrália, para encontrar Margaret,

ela faleceu. Foi a perda devastadadora de uma amiga tão querida e grande colaboradora. Voei até a Austrália e iniciei o trabalho sozinha. Viver além daqueles a quem se ama É adentrar o mundo Dos humanos Humanos que Pela natureza de serem humanos Carregam a perda - Margaret Cameron A trilogia ainda é um objetivo – um desejo. The Book of Space – a segunda performance – permanece sem final, apesar de termos chegado a conseguir uma residência de um mês generosamente hospedados pelo Norisk Teaterlaboratorium mas ainda há tensões não resolvidas – as lutas – nas mesmas arenas. Não sei como ou sequer se vão se resolver – escolho observar de uma distância segura por agora e esperar, sileciosamente. Quietude permite que você receba. Talvez eu não queira mais lutar – não mais.

“Espaço é o fôlego da arte”, escreveu Frank Lloyd Wright. Nesses dias, eu tomo espaço.

Na publicação mais recente da Open Page eu refleti sobre a noção de rendição e isso ainda me assombra. Escrevi... Para mim, a palavra “rendição” não significa desistir ou entregar-se. Nem derrota. Mas ela me faz pensar em uma cedência às forças que podem ferir ou diminuir alguém. Rendição me lembra força. No meu processo teatral, fui seduzida várias vezes pelo gesto da rendição – braços levantados, palmas das mãos para frente – rosto e olhos direcionados ao antagonista – de alguma forma, é uma posição linda que representa força e ausência de medo. Eu li isso como – Não vou me defender. Não preciso. É um gesto puro de resistência. Talvez, uma luta só termina quando um dos lados se rende. Será que estou divagando e sendo desajeitada? Fui incumbida de discorrer sobre como “teatro é minha maneira de lutar” e estou falando de rendição. Estou fazendo o que a essência do meu processo teatral faz instintivamente, que é identificar e engajar o oposto – a oposição – a força que puxa na direção contrária, para que de alguma forma criemos uma tensão entre as duas forças que nos 7


mantenha retos e não seduzidos a se entregar para nenhum dos lados. No fim de semana da páscoa – também é o aniversário de 25 anos da minha filha mais jovem, em que fazemos bolo e comemos morangos, bolinhos com creme, sanduíches de pepino e tomamos um raro banho de sol. Um dia pacífico e adorável aqui no meu jardim. Hoje, 321 pessoas morreram nos ataques do Sri Lanka, violência policial extrema acontecendo em Paris, a Ponte de Waterloo em Londres bravamente ocupada por manifestantes que exigiam ações sobre as alterações climáticas, e um comediante chamado Volodymyr Zelensky tornando-se o novo presidente da Ucrânia – e hoje à noite, ele aparecerá na televisão fazendo o papel de um presidente, e também aparecerá como presidente de fato, aceitando seu novo papel de líder da nação. A gente chora ou ri disso? A gente torce por mudança? Fiquei desesperada apesar da alegria desse dia de celebrações. O desespero profundo que vem ao acompanhar as notícias tão regularmente que me dão um impulso e é nessa hora que a batalha deve ser batalhada ou então eu cairei. E a luta é......? Fazer bolo e comemorar um aniversário? Propor novas ações criativas? Postar e compartilhar as milhões de problemáticas e informações no facebook? Para enaltecer, nesse dia sagrado, uma figura que morreu para “salvar a todos nós” e então, quando ressuscitou – o maior símbolo da fé cristã – a primeira testemunha foi Maria Madalena que, por 2000 anos, foi retratada como a devota penitente, a mulher escarlate que dedica sua vida preciosa a expiar seus erros. Como a primeira testemunha da ressurreição, nunca entendi o motivo pelo qual a mídia antiga não elevou seu status e ao invés disso apenas a depreciaram – apontam como um aviso para mulheres que testemunham. Em 2016, Madalena foi santificada pelo Papa Francisco e nomeada Apóstola dos Apóstolos.

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foto de Aryella Lira Nanà Sodrè – (Pernambuco – Brasil) Atriz, Light Designer e sòcia fundadora do grupo de Teatro O Poste Soluções Luminosas grupo de produção artìstica que desde 2009 foca suas pesquisas teatrais no resgate antropològico das matrizes africanas. Formada em Educ.Artìstica-Artes Cênicas pela UFPE, onde tambèm atuou como docente

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aaaaaiiiiii...rsrsrsrs! É com muita felicidade e necessidade que volto a esse texto, volto por felicidade, pois comecei a escrevê-lo na correria e o resultado foi : um texto pequeno para cumprir um pedido... faltava algo mais (dizia minha forte e inspiradora amiga Daniele), faltava a alma, e o acordar da consciência para o exercício da escrita para as coisas que também são importantes como a minha praxi teatral, escrever sobre o meu teatro, o teatro que faço e como faço. E por NECESSIDADE, pois exercitar a escrita de uma mulher negra num pais em que a cada 23 minuntos um jovem negro é morto, e onde morre 71% mais mulheres negras do que não negras é um ato de resistência...resistir para deixar legado, resistir para encorajar outras manas (como a Dani fez comigo), resistir para deixar sementes, resistir para abrir mentes e janelas da consciência, resistir para continuar “VIVA” ( Marielle Presente!!), resistir para encorajar minha filha, resistir para manter meu quilombo urbano (O Espaço O Poste Soluções Luminosas em Recife), resistir para fortalecer o meu grupo (O Poste) e para intercambiar com outras resistências (gratidão Dani!!!), sim , somos muitos, somos muitos, somos muitas e isso é fortalecedor. Sim. Hoje o teatro é a minha maneira de lutar, resistir e existir. Aqui em Pernambuco, em todo território nacional/ internacional e onde mais couber a minha arte. Um teatro

O TEATRO EÉ´ MINHA MANEIRA DE LUTAR nomeado como físico, “Strong” e fincado na matriz africana. Mas antes não era assim, antes existia uma Naná que não acreditava na sua potência no palco, achava até que o palco não era para ela (ora, ora vejam só!!!rsrsrs) e por isso percorreu os caminhos da iluminação cênica já na universidade como possibilidade- importante salientar a formação publicitária e as incansáveis misturas de cores para realização das peças publicitárias- mas o caminho para técnica cor/luz fazia repousar/esconder um desejo de palco, lá no fundo...pois hoje sei bem, na verdade eu não me sentia representada, pois na década de noventa aqui em Recife tínhamos poucas atrizes negras com continuidade na cena e nenhum grupo voltado para as ações afirmativas para o povo preto. Por isso era quase um caminho impensável, criei o grupo o Poste, primeiro como um grupo de iluminação cênica e em 2007 a vontade adormecida veio à tona, por que não? Por que não sair de trás da mesa de controles e partir para o proscênio recebendo luz e visibilidade? Eu só queria voltar à cena, voltar as experiências que vivi nas cadeiras de interpretação, torna-las mais fortes, adquirir confiança nos meus passos, dar continuidade, fazer brotar também a semente do corpo para que dele pudesse extrair o suor dos improvisos, das marcas e das intenções, era uma NECESSIDADE, desejo de expressão e fala, talvez já estivesse fazendo parte da onda negra, essa tão temida 9


pelas pessoas que desconhecem o nosso legado. Mas preciso ressaltar que ao fazer a escolha pela visibilidade fui exposta também ao preconceito e a intolerância, pois nem todo indivíduo está sensível para as questões da negritude e muito menos para as ações que dizem respeito ao protagonismo negro, sim pois para alguns o fato de uma iluminadora negra construir uma carreira de atriz é

Eis o racismo estrutural! Vivido na pele ao decidir ser visível. A naturalização da ausência do artista negro é real, pude sentir, por isso optei por resistir. considerado um delírio, uma afronta, um acinte!

Ao mesmo tempo em que Pernambuco possui uma efervescência de ritmos oriundos da matriz africana, nos deparamos com a “herança” de ter sido o último Estado a abolir a escravidão. Esse fato/ fardo gera consequências em diversos extratos sociais e não seria diferente no teatro. Pois bem, levando tudo em consideração, a montagem do primeiro espetáculo do grupo o “Cordel do Amor Sem Fim” foi uma grande escola, aprendi os desafios da produção de um espetáculo, a conviver com as diferenças dos diversos atores que passaram pela montagem ao longo desses 10 anos e a manter viva não só a disciplina de uma atriz, mas as funções sociais do fazer teatral, levando teatro para onde não existia a fruição da arte, realizando oficinas, construindo parcerias e aprendendo que o nosso país precisa da arte para identificar e conscientizar sobre pautas importantes como o racismo, o sexismo e as desigualdades. No nosso repertório temos também um Nelson, a peça “O Anjo Negro”, com ela pude entender que assumir-se preta era um caminho sem volta e de como era importante abraçar as questões relacionadas a nossa saúde mental. Falamos de racismo abertamente, mesmo quando nos disseram que racismo era algo datado (em 2014) e com a peça tivemos uma menção no livro do querido historiador Joel Rufino dos Santos. Assuntos como os privilégios dos não negros e a falsa democracia era pauta constante

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durante todo o processo. No “Ombela” falamos em duas línguas Umbundo / Português e ficamos mais próximos dos processos de cura e ancestralidade da nossa matriz, espetáculo de mulheres, empoderador e sensível, que nos levou para perto de um berço outrora roubado e distante: a África. E no espetáculo “A Receita”, um solo meu, que retrata a situação de abandono vivida por uma mulher negra em situação de violência, ocupo uma função importante, pois toco numa ferida que não cicatriza, a posição da mulher negra no nosso país. Quais lugares ela ocupa? Quais violências ela sofrem? Qual o seu grau de invisibilidade e silêncio? Essas são questões relacionadas à obra e de extrema pertinência, por isso ao final de cada espetáculo abrimos para uma grande conversa onde o público também expõe experiências sobre o universo do espetáculo. Representatividade negra no teatro pernambucano é pauta prioritária do grupo O Poste, por isso desenvolvemos ações que visibilizem positivamente o artista negro, como: mostras, palestras, mesas, cursos, cadastros e outros. E a minha resistência reside exatamente aí, nas minhas reflexões e nas ações para as políticas afirmativas para a negritude, mesmo de forma independente, pois são essas ações artísticas que mantem nosso espaço físico, O Espaço O Poste Soluções Luminosas localizado no centro da capital pernambucana. O Espaço O Poste vem da necessidade da continuidade das ações, pois um grupo necessita ter um espaço para a sua pesquisa e experimentações. E o espaço cada vez mais torna-se um lugar de encontros, reflexões e discussões das práticas de vários artistas. Uma escola foi inaugurada e a importância da ancestralidade africana é a essência da nossa pedagogia teatral. Vejo o Espaço como um útero preto parindo possibilidades, abrigando novos talentos, discussões envolvendo os movimentos negros e suas políticas e dando um pouco de abrigo e amparo para o fortalecimento dos corpos expressivos. Fico feliz que a minha resistência possa ter dado tantos frutos e tenho uma enorme gratidão pelos meus companheiros de jornada Samuel e Agrinez por todos esses anos. Saravá ! Evoé! Axé!


foto de Giulia Martins

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O TEATRO E´ MINHA FORMA DE LUTAR CONTRA O MEDO

os seis anos de idade eu já queria ser atriz. Aos dez anos montei o meu primeiro espetáculo na escola de minha cidade. Desde os oito frequentava as aulas de expressão corporal com uma tia. E começou a minha convicção de que no teatro podemos nos transformar naquilo que quisermos. Naquela época eu queria ser presidenta do país, não sabia bem o que estava acontecendo na Argentina – era a Ditadura mais sangrenta de nossa história – mas o inconsciente coletivo faziame sonhar (acordada) que estava presa e que quando me libertassem faria muitas coisas. Aos quatorze anos comecei a estudar teatro na cidade vizinha. E como continuávamos na Ditadura, as instituições democráticas eram utilizadas, entre outras coisas, para dar aulas de teatro. Estranho paradoxo. Também líamos a Oresteia. Aos dezesseis anos atuei pela primeira vez em um teatro, eu interpretava um palhaço decadente que modificava a cenografia e anunciava em uma ladainha patética: “Minta para si mesmo, a realidade não existe. Hoje não há apresentação”. Minha mãe não gostou nada dessa minha primeira atuação “profissional”. Teria medo? Esperava outra coisa? O medo e as expectativas de uma mãe costumam ser obstáculos no caminho de qualquer filha, não é verdade? Mas também nos constrói, não é? Aos dezoito anos eu fui embora para outra cidade, e como continuava com a ideia de mudar as coisas, comecei a estudar Ciências Politicas, Idiomas e Filosofia. De teatro, nada. Porém a boemia rosarina1 na primavera democrática foi reveladora. E o corpo me pedia ação. Em pouco tempo abandonei quase todos os cursos e comecei a estudar

Laura Danna (Buenos Aires/Argentina) Atriz, diretora e docente de teatro. Integrante do grupo Camino Teatro. Docente de teatro em francês em ISP Joaquìn V. Gonzàlez e docente titular na UBA Universidade de Buenos Aires. Desde de 2008 faz parte da realização do Festival MAGDALENA 2ª GENERACIÒN. teatro. Eu fugi também da minha família, e fui embora para a grande cidade, Buenos Aires. Em Buenos Aires encontraria minhas professoras e meus professores, quem escolhi pela linguagem poética (e política), por sua maneira de transmitir, por sua vulnerabilidade, por seu trabalhar incansável. O teatro é minha forma de colocar o destino em minhas mãos O teatro é minha forma de lutar contra o medo É minha forma de lutar contra a imagem que tenho de mim mesma É minha forma de lutar para fazer um mundo mais amoroso É minha forma de lutar pela paz. LUTAS E LUTAS Há lutas nas quais não quero mais entrar. Não quero mais, por exemplo, a luta contra a minha irmã por saber qual das duas vale mais, para quem das duas a mamãe olha mais. Não quero, muito menos, lutar contra mi mesma. Quero entrar em outras lutas. Partindo do teatro, nas várias formas que o pratico (ensino, escritura, direção, atuação), quero lutar para que as mulheres e os homens que estão cada vez mais perto de mim, possam encontrar a sua vez, 11


possam tirar o medo de seus corações. E possam concentrar suas forças em fazer. Livres. Lutar para fazer arte. Arte que cura. Que embeleze. Que nos torne melhores. MAGDALENA SEGUNDA GERAÇÃO Em 2008 eu me uni ao Magdalena segunda Geração, da Rede Magdalena Project. E me encontrei com mulheres que amam o que elas fazem, que lutam por fazê-lo, que conseguem viver segundo as suas próprias convicções, que querem o que desejam. Nos contagiamos de energias, umas com as outras, produzimos espetáculos, organizamos festivais, encontros, ciclos de cinema, escrevemos para uma publicação digital. Reconhecemo-nos mulheres de nosso tempo: vulneráveis, poderosas e amantes. A partir do teatro luto contra a minha complacência Luto contra a inércia Luto contra a vaidade, contra a discórdia, contra a rotina Luto pela comunhão de atrizes/atores e público Luto para que o teatro seja matéria optativa em todas as instituições educativas. TRABALHO E LIBERDADE. A VOZ PRÓPRIA Acredito que o caminho à liberdade da atriz/ator empreende-se partindo do aprendizado do código teatral e se confirma durante o treino. O bendito treino. Preparar o corpo. Despertar a imaginação. Liberar a criação. Significa voltar uma vez e outra vez, iniciar um trabalho de liberdade e autonomia. Dia a dia. Um fazer sem preocupar-se demais com o resultado, porque o fazer é o seu próprio resultado. Uma entrega ao não saber. Um nutrir-se do mistério dos momentos que são sempre novos. Cito aqui fragmentos de El caballo Ciego de Iben Nagel Rasmussen: “Descobrir a própria voz significa descobrir o próprio mundo interior, a própria alma... Não ter medo da própria força. Encontrar dentro de si algo que não é frágil, que não é elegante, mas que nem sequer é rancor ou amargura. É simplesmente sua voz, que está feita para dar calor e também para lutar. Não somente é importante vencer na luta, mas não sair dela dura, amarga, seca. Não sei se é justo dizer que a mulher deve encontrar também a sua forma de lutar. Mas se é justo, então, não é uma luta para destruir, para ferir, se não, é uma luta para abrir, como um fio de nylon que guia todas as suas forças em uma só direção para romper a resistência da terra e sair ao ar”. (Tradução: Carla Dameane Pereira de Souza) 1 Relativo à cidade de Rosario, Argenina. 12

O teatro é a minha forma de lutar contra o silêncio. É a minha forma de lutar para alcançar a própria voz. Ou para juntar todas as vozes dos outros e das outras em mim, todas as vozes que escolhi conservar e fazer soar. É a minha forma de gritar. DESEJOS Há fatos, personagens, obras de teatro, poemas, contos, temas... que te chamam, que te acompanham, que insistem, até que alguém pega esse material e faz algo com ele. São demônios, obsessões, forças da maré coletiva que te agarra, ancestrais... O teatro é a minha forma de lutar contra a loucura que é não poder falar. ESPECTADORES Escutei Eugenio Barba dizer algo mais ou menos assim, que o teatro é a continuação da política por outros meios. E penso que quando o poder político “se aviva” do imenso poder do teatro é costume de que se suspenda os subsídios, por exemplo. Este ano atuei em Pluma y la tempestade de estos tempos, de Aristides Vargas que aborda a história de uma pessoa marginalizada exposta a todo tipo de perigos, obrigada a vender-se, a comprometer-se, a resignar-se, quando as instituições que deveriam ajudar são, na verdade, grandes obstáculos. Contra toda tempestade, Pluma escolhe a sua própria afirmação e o desenvolvimento de sua própria individualidade. A obra havia estreado no ano anterior. Toda a companhia estava surpreendida em relação a vigência que havia adquirido a obra em somente um ano: a sociedade argentina havia se degradado tanto nesse ano. A companhia também estava surpreendida com o êxito do público... Na periferia da Grande Buenos Aires os teatros também fervem. Conheço pessoalmente três deles, os três dirigidos por mulheres: uma transformou a sala de sua casa em teatro, outras a garagem, outra o atelier do seu avô pintor. Amo atuar nesses teatros. Creio que uma missão que temos é procurar pelo público que anda nos procurando, que nos espera, que nos transformará. Nunca vou me esquecer de uma apresentação de nosso infantil LuiEmi en el mar de Shakespeare em um Centro de Saúde de La Matanza. No final um menino gritou: Outra! Outra! Vou fazer teatro toda a minha vida. Vou lutar toda a minha vida.


TRINCHEIRA T

enho pensado em como lutar. Mais que isso, tenho pensado em que armas escolher. Lutar é contra ou à favor? Se contra é preciso conhecer o inimigo, antecipar sua estratégia, saber de suas armas Se à favor é preciso saber por quem, pelo que, por onde. Lutar à favor de algo nos exige um posicionamento mais profundo, me parece. “As mulheres vão lutar até que a última caia no campo de batalha” – assim gritou uma guerreira Axânti, atual Gana. Essa frase faz parte da dramaturgia do meu mais recente trabalho: o solo “Mulher, como você se chama?”, criado no Projeto Habitat* com a Súbita Companhia de Teatro, de Curitiba, PR. Nos últimos 3 meses estive acompanhada de muitas mulheres, mulheres reais que fizeram história, muitas delas de outros tempos, que não caminham mais por aqui. Mulheres guerreiras, cientistas, artistas, inventoras, professoras, ativistas, feministas, sobreviventes, de todas as partes do mundo, de todas as idades, credos, classes sociais. Essas mulheres lutaram por alguma coisa, à favor de seus direitos, de seus feitos, de suas histórias. Quando evoco centenas de mulheres e as nomeio estou reconhecendo suas lutas. Falo de mim quando falo delas? Falo delas quando falo de mim? Quando iniciei o processo não sabia exatamente do que eu queria falar. Me incomodava muito a questão do silenciamento das mulheres, do apagamento histórico. Não só da história da mulher no mundo, mas das mulheres da minha família, algumas eu sei apenas o nome, outras nem isso. Onde estão essas mulheres?

Por Janaina Matter (Paranà – Brasil) Atriz e diretora artística da Sùbita Companhia de Teatro desde 2007, em Curitiba, PR. Dedica-se ao estudo da fisicalidade em cena, com ènfase no Método Suzuki para Atores. Gestora cultural e idealizadora do espaço Alfaiataria, com a artista visual Luana Navarro, um espaço físico e simbòlico de resistência, diàlogos e investigações artìsticas foto de Elenize Dezgeniski 13


Seus registros? Como suas histórias reverberam em quem conferir objetos de cena eu sou hoje, ainda que eu não saiba nada sobre elas? Me passar marcas e textos parecia urgente trazê-las para perto, de alguma forma. . . minha forma é teatro . corpo Aquecer o público. palavra nos foram dados apenas alguns livros, Reunir pessoas numa sala ampla com pé direito alto nos ensinaram sobre maçãs e elas não são suficientes** Ter algo à dizer/fazer Ser O que sabemos da história tem ponto de vista, tem Estar posicionamento, não são os fatos propriamente ditos, se Pensar em formatos, em recepção, em troca assim o fosse saberíamos mais e teríamos mais dúvidas, Ter uma equipe em harmonia temos dívidas ao invés, temos imensos abismos mal Confiar explicados que nos fizeram engolir com farinha desde o Compartilhar início das histórias que nos contam pra dormir, entorpecer juntar pedaços de uma história mal contada e contar uma Ao final da função desmontar nova história poderia ser suficiente, mas há tanto que não Tirar maquiagem se sabe então lutar seria sobre o quê para quê e de que Lavar a roupa forma se há tanto campo para dar conta Guardar objetos de cena Varrer o palco há tantas formas de lutar No outro dia se todas estiverem na linha de frente não haverá o que Começar de novo comer Repetir o processo se todas estiverem com armas em punho não haverá quem limpe os ferimentos E de novo se todas usarem as mesmas armas não haverá elemento E de novo surpresa E de novo é preciso que se reconheça particularidades, habilidades A luta no teatro só se faz com outra, outro A luta no teatro é uma permanência efêmera precisamos da destreza tanto quanto da força Teatro é a luta à favor do humano, das relações, dos precisamos da sensibilidade tanto quanto da razão encontros precisamos da história tanto quanto do presente E ela é mágica precisamos da intuição tanto quanto da inteligência Procedimento básico de preparação para a luta: alongar aquecer o corpo aquecer a voz aquecer o espaço

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*Projeto Habitat – 5 solos do estudo do corpo como casa estreou em fevereiro de 2019 no Teatro José Maria Santos em Curitiba, PR. Direção de Maíra Lour, dramaturgia autoral Janaina Matter – www.subitacompanhia.com.br **Trecho do solo Mulher, como você se chama?


foto de Carlos Magno

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UMA OPÇCAO DE VIDA Por Roxana Pineda (Santa Clara – Cuba) Atriz, diretora, pesquisadora, professora e crìtica de teatro. Fundadora do grupo Teatro de La Rosa. Licenciada em Teatrologìa/Dramaturgia pelo Instituto Superior de Arte de Cuba. Realizadora do Encontro Magdalena Sin Fronteras.

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asci em uma década na qual o mundo se transformava para construir uma esperança de vida diferente. Os anos 60 foram confusos, tratava-se da feroz batalha entre uma forma de pensar e ser que agonizava, alardeava contra o nascimento de uma consciência revolucionária que alterava tudo. Os movimentos revolucionários, os cabelos compridos e as minissaias, o direito da mulher ao voto e ao aborto, a guerra do Vietnã e a onda de protestos que aconteciam no mundo inteiro, a música com suas novas sonoridades, a liberdade e a abertura sexual, os protestos civis e uma inconformidade visceral contra a injustiça e o comportamento pacato da classe média. No centro desse contexto, a revolução cubana como um processo ardente e profundo da América Latina. A revolução cubana, que com somente dois anos de seu triunfo teve que enfrentar a intervenção militar organizada pela CIA e paga pelo governo dos EUA.

Com apenas 72 horas, as forças revolucionárias cubanas, apesar de seu escasso armamento, infringem o que se conhece como a primeira derrota do imperialismo na América. Nascia assim em Cuba um futuro que se levantava sobre a dissolução de um regime sangrento e se abria a uma utópica construção de um mundo novo. Sou filha desse contexto. Cheguei ao teatro por uma

corrente misteriosa que me aproximava, desde criança, à necessidade de experiências intensas onde minha paixão 15


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por este fazer estivesse estreitamente ligada a essa outra paixão pelo pensar. Imaginar outro mundo onde eu mesma pudesse escolher as regras e um comportamento elevado onde os homens pudessem sonhar e ser boas pessoas apesar de todas as batalhas por aguentar. Venho de uma família humilde, pobre e honrada. Em minha família não há profissionais antes de mim. Porém, há sonhadores: meus bisavós paternos, ela, professora e ele, músico e poeta sem escola; minha avó paterna, leitora incansável e quase analfabeta, que cantava como os pássaros, e lavava roupa para fora, ela que me ensinou a cantar para refugiar-me dos maus pensamentos, e meu pai, um sonhador idealista que sonhava com a música e se deleitava examinando o mundo sem poder safar-se da impotência cotidiana. E minha mãe, sempre calada, trabalhando como mula doméstica para levar a vida agônica que ela tinha. Cresci na década de 1960 em um país convulso, repleto de esperanças. Herdei pelo sangue e pelo ar uma condição guerreira que o tempo foi forjando e colorindo. Forma parte de minha identidade uma atitude de rebeldia diante da injustiça, não importa de onde venha nem contra quem se exerça. Protesto pelo ato injusto, ainda que de uma criança que jogue pedras em um gato. ou um funcionário indolente que apenas trabalha para manter o seu cargo. Não gosto da injustiça e sou intolerante à mediocridade. Essas duas coisas têm me garantido uma vida cheia de problemas e o desejo intacto de continuar assim até o fim dos meus dias. Talvez por isso amo tanto o teatro. Nunca concebi o teatro como um espaço para receber aplausos, para sustentar o meu ego pessoal ou fazer valer o que chamam de talento enquanto se constrói personagens. Entendo os atores quando falam dos personagens que gostariam de representar ou os que eles deixaram de fazer; eu os entendo quando querem fazer televisão ou cinema e viver da experiência da popularidade. Eu os entendo e me parecem coerentes. Eu não tenho essas angústias. Minha paixão pelo teatro, que é imensa e não acaba, vai para outra direção. O teatro é a minha “casa”. Durante muito tempo foi literalmente “minha casa”, porque fui ter uma casa de verdade há apenas cinco anos. Foi no teatro onde tramitei muitas das minhas carências familiares, e formando-me como atriz, com disciplina e rigor absolutos, pude crescer e me tornar autônoma, com uma linguagem pessoal sólida e uma identidade que me permite reconhecer-me entre tanta gente fútil. Eu me envolvo na experiência de cada

processo como se se tratasse da “Vida”, uma vida intensa e ordenada, onde o caos do desconhecido permite ordenar a forma de reagir e responder diante dos obstáculos. Sendo exigente na procura de uma linguagem artística que explore a espiritualidade do nosso mundo ferido, sou exigente com a minha forma de pensar e de atuar, e imponho para mim mesma y para meus companheiros de caminhada, um exame sistemático sobre nossa ética, de frente para a construção de nossa obra. O mais duro é ser, efetivamente, coerentes. O mais duro é não se perder em posturas banais que por trás de palavras bonitas escondam as misérias humanas. É uma batalha constante para impedir que os tentáculos da banalidade e da estupidez cheguem até nós, e chegam; mas é preciso estarmos preparados para enfrentá-las. O espaço do meu teatro sempre foi e segue sendo até hoje (antes no Studio Teatral junto com Joel Sáez, e hoje como diretora do Teatro La Rosa) a possibilidade de ser melhores seres humanos e a exigência por tornar-se melhores artistas. No meu caso, partindo de um compromisso profundo com meu país, com um país que soube fazer justiça social e que hoje transita por momentos muito complexos em sua composição e em suas estruturas sociais. Meu teatro é o meu país. Todos os meus protestos, todo meu pensamento e meu diálogo mais crítico, nasce de meu compromisso com esta ilha, Cuba, e de minha fidelidade ao ofício do teatro como lugar a partir do qual eu enfrento todas as lutas. Não admito um teatro cômodo para passar o tempo livre, e não admito um ator encerrado com os seus personagens para satisfazer seu ego pessoal. A arte contemporânea está obrigada a olhar com olhos muito abertos à realidade de um mundo cada vez mais horroroso e brutal. Assim, posso dizer que nestes trinta anos de vida artística, o teatro tem sido para mim essa trincheira de resistência para salvaguardar aquilo que eu acredito que é um patrimônio intangível: a dignidade de ser, o direito de construir uma linguagem poderosa e vulnerável ao mesmo tempo. Poderosa em sua visão humanista e em seu compromisso com uma ética que pondera a obrigação de olhar para o outro, a solidariedade e a horizontalidade na escolha e tomada de decisões. Poderosa na defesa de uma atitude cultural de rechaço à banalidade, ao descuido, e à indolência, ao egoísmo e ao oportunismo como normas de garantia social, à chatice intelectual e à covardia para defender o que se pensa em todos os âmbitos. Vulnerável para saber-se pequenas partículas de um universo muito maior onde cada coisa tem uma pequena importância


relativa. Vulnerável para expor as debilidades e fazer delas um instrumento de conhecimento e entrega. Ao mesmo tempo, o teatro é uma aventura apaixonante e bonita. O privilégio da criação e o nascimento que em outras esferas da vida não pode alcançar. Momentos excepcionais de coletividade para aprender a construir, partindo dos cantos de cada indivíduo, um pensamento coletivo, uma rede de cultura que te harmoniza através das diferenças com tantos e tantas outras e outros que no mundo padecem e gozam as mesmas vicissitudes, os mesmos problemas e alegrias parecidas. Eu me sinto plena, com um sentimento de amor intenso, apenas comparável às primeiras alegrias incontroláveis quando se está apaixonada, quando consigo modelar com minhas mãos uma cena, que por sua eloquência artesanal e sua profundidade intelectual, comove o meu universo ideológico. Sentada humildemente em meu insignificante espaço de trabalho, sinto-me rainha dessa trama de imagens que hoje percebo originais e íntimas, ainda que não seja certo. É a partir desse pedaço silencioso e isolado de meu âmbito profissional, onde encontro o equilíbrio e a lucidez para avaliar o mundo e parar-me frente a ele com valentia. O orgulho, a força e a energia vêm da entrega total ao meu ofício, do amor que eu lhe professo, do respeito que sinto cada vez que chego à minha “sala de trabalho” e penso como convencer meus atores para que consigamos fazer melhor as coisas, o que significa simplesmente fugir da estupidez e do transtorno com o teatro. Não quero que flertem, usando o ofício, para ganhar espaços econômicos ou falsas aprovações públicas. Não permito que cruzem

esse limite porque sentiria como se sujassem a minha casa. Desse modo não poderia olhar de frente e de forma limpa para ninguém nem poderia levantar minha voz nem meu corpo de mulher para protestar por alguma injustiça. Minha batalha começa no teatro mesmo, começa por limpar bem “a casa”, para que as imagens possam nascer cristalinas e não haja paisagens turvas nem aguas estancadas. Como fazemos teatro com seres humanos e vivos trata-se de uma batalha constante e forte para não se deixar domesticar. E assim, sem perder a esperança, sem deixar de acreditar na beleza, sobrepondo-se a todas as decepções e aprendendo com cada batalha perdida, eu me levanto todos os dias disposta a lutar contra mim mesma, disposta a dizer-me Não, você não pode parar, porque cada dia que começa com o trabalho, é um dia ganho, um dia de luz. Com os anos e um acúmulo de ingratidões, chega a maturidade e a experiência. Também a alegria de seguir, a teimosia, a obstinação por manter-se em forma e estudar e pensar o seu oficio. E chega certa paz que se distancia um pouco da impaciência daquela divina juventude onde tudo parecia ser possível. Tudo não será possível já, mas o que for possível nós o conseguiremos à custa do trabalho e da fé naquilo que fazemos. E ninguém poderá dizer que nós ficamos quietos esperando milagres, porque os milagres só acontecem quando há pessoas que atuam e cantam com tanta fé que conseguem estremecer os céus.... Nisso acredito. (Tradução: Carla Dameane Pereira de Souza)

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DES-ADAPTADOS SOCIAIS

e penso no meu primeiro encontro com o teatro, há uma imagem que chega à minha mente. Estou eu, com a cara contra o vento, cantando, em cima de uma moto emprestada e a toda a velocidade para uma aldeia que ficava a meia hora da minha casa. Era aí onde nos encontrávamos, com o nome ‘ La corte dei miracoli’, o grupo de jovens. Eu tinha 17 anos. Era o ano 1996, já era explícito em Puglia (a região de Itália em que vivia) o que anos depois o estado decidiu ver e enfrentar com a ação que recebeu o nome de ‘Operação Primavera’. Quantidades de cigarros contrabandeados, drogas e armas transitavam o litoral de Puglia e os maravilhosos rochedos da aldeia onde nasci. Foram anos muito intensos. Do outro lado do mar Adriático estava a preparar-se a ‘Revolta das Pirâmides’, nome que se deu à crise de 1997 na Albânia; a Guerra dos Balcãs tinha começado em 1991 e a máfia italiana mantinha vivos os seus interesses no leste da Europa; a ‘entrada em campo’ de Silvio Berlusconi no início dos anos 90 e a operação ‘Mãos Limpas’, evidenciaram a conexão entre a máfia e o estado; era a época dos atentados e em 1992 tínhamos vivido as ‘matanças’ dos juízes Falcone e Bursellino; este foi o húmus que alimentou a nossa juventude. O nosso contexto social não era vulnerável, estava doente. Tudo isto teve um impacto determinante nas franjas sociais mais jovens. A diversão mais popular na aldeia era o consumo de ‘Albanaccia’, uma marijuana tratada com químicos e de péssima qualidade, e a ocupação mais imediata era fazer de ‘sentinela’ aos contrabandistas que traficavam. De forma muito simples hoje posso ler como a rebeldia e as almas mais agitadas dos jovens estavam domadas, silenciadas, contidas e domesticadas. Este era o estado, o estado das coisas. Quando cheguei aquele que foi o meu primeiro grupo de teatro, senti que éramos uma minoria de des-adaptados sociais que procuravam um espaço-tempo para poder criar um novo partilhar. Para dar voz a uma inquietude que não encontrava possibilidade de expressão noutros lugares da sociedade em que estávamos a viver. Lembro-me de um verão inteiro na sala de ensaio, debaixo de um calor tórrido típico do sul da Itália, com os meus colegas (todos entre 16 e 25 anos) e guiados pelos coordenadores do projeto. Naquela época treinávamos os nossos corpos e as nossas vozes, na realidade, hoje dou-me conta que estávamos a treinar as nossas mentes e a nossa vontade de dar voz a outras palavras, a empoderar-nos, a decidir e a expressar a nossa vontade. Em 1997, quando me mudei para Roma para estudar, procurei

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Por Viviana Bovino (Madrid/ Espanha) (Atriz, bailarina, pedagoga; Ela è a fundadora da Residui Teatro International Company) outros jovens e somente em 1998 encontrei o grupo que, em 2000, se constituiu com o nome Residui Teatro, a companhia que fundei, juntamente com os meus colegas, quando tinha 22 anos e que continua a ser o projeto da minha vida. O nome Residui Teatro surge do conto de Julio Cortázar ‘Texto en una libreta’ da recompilação ‘Queremos tanto a Glenda’, e é a nossa dedicatória viva às minorias como parte necessária da sociedade, como uma voz contracorrente, como expressão de necessidades que seguem um caminho complementar ao totalitarismo, à mercificação e massificação. É a nossa forma de dar voz às minorias de ‘des-adaptados sociais’ que estão por aí e que, com os seus dias, transformam e mudam a sociedade. Os ‘resíduos’ não morrem, transforma-se gerando outra vida. As criações da companhia nascem sempre da inquietude, de um grupo ou de uma comunidade, em relação a temáticas de interesse social. Enfrentámos o tema dos direitos das crianças, das matanças da máfia, dos desaparecidos, da emigração, da militarização e uso de armas, entre outros. Desde 2000 transitámos entre muitos lugares e realizámos oficinas, espetáculos e projetos na Europa, Ásia, África e na América Latina para pessoas de todas as idades, estados de saúde e em diferentes contextos sociais em risco. No entanto hoje, apesar do Residui Teatro continuar com o trabalho de ação ‘de campo’ usando o teatro e a dança como ferramentas de transformação pessoal e comunitária, encontrome a refletir sobre alguns aspetos da nossa atividade pedagógica e a focar o meu trabalho no cuidado do corpo holístico do


fazedor teatral, na memória do corpo e na reconstrução-criação. Com a raiz das vivências em lugares de conflito armado, dos encontros com comunidades despojadas dos seus direitos, das reflexões com mulheres criadoras e propiciadoras da mudança nas artes, olho-me e imagino chegando à porta do nosso Centro de Artesanía de las Artes Escénicas de Madrid, uma moça de 17 anos, com uma moto emprestada, com ilusão nos seus olhos e vontade de cantar outros cantares.

O que eu lhe diria hoje? Graças às ferramentas que nestes anos o teatro e a dança me transmitiram, graças ao legado dos meus e das minhas mestras, que lhe poderia oferecer? Dir-lhe-ia que o teatro é uma chamada, que nos torna testemunhas de outra humanidade, trâmites da consciência humana, da conexão com divindades, de autodeterminação, liberdade e respeito, e que não nos podemos calar. Se é verdade que o nosso ofício nos permite gritar contra a violência, relembrar a crueldade dos contextos, perpetuando a sua raiz numa outra metáfora, é certo que isto não acrescenta harmonia e bem-estar mas sim, cumpre a tarefa de não esquecer, de ressoar, de informar, de sensibilizar. Provavelmente serão etapas diferentes nos processos criativos com que nós, os fazedores, temos de enfrentar na nossa suposição de participação ativa: ‘Artivistas’, como às vezes nos chamam. Todavia me pergunto a partir de que abordagem se descobre a sabedoria da arte transformadora, para que não seja somente uma representação da realidade, ou uma metáfora da nossa? Até que ponto chegamos, como agentes curandeiros, à conciliação com os nossos próprios corpos holísticos, a uma nova plantação, a uma nova fertilidade? Penso nos muitos ‘contextos vulneráveis’ que conheci ao longo dos anos e em especial nas mulheres. Que memória guardamos? Que marcas temos no corpo? Que vida na vida? O teatro volta e retorna. O teatro volta a semear. O teatro volta a tecer. O teatro volta a parir. O teatro volta a educar. O teatro volta a canta. A esta jovenzinha de 17 anos diria para começar do lugar onde está o seu corpo. A partir desse corpo de mulher, um corpo que reflete e irradia muitas dimensões. Dir-lhe-ia para fazer dialogar esse corpo com o ambiente, com o contexto.

O teatro cura, constrói harmonia. Como fazedores, pomos em ordem. Olhamos tempo. Pomo-nos de acordo. Limpamos, escrevemos, desenhamos, dançamos limites, conflitos, fracturas, cicatrizes. Que flores nascem lá nas sepulturas comuns? Como se consola a terra? Como se cura? Por onde passam as catástrofes? a terra mesma se auto-cura, fazendo com que, de forma espontânea, cresçam flores que a cuidam e harmonizam, que a pacificam. Flores curandeiras da terra que cura e cria. A arte, esta beleza pura e liberta, essa busca pelo infinito, pela liberdade, pela honestidade e pela verdade, semeia sementes de um futuro de beleza, de cura, de harmonia. Nesta luta, nesta voz de minorias, entre estes gritos de exigências, a dança e o teatro são ferramentas de mudança, de reivindicação, de busca, de encontro, de criação de um ser holístico que abre os seus braços aos outros num banquete em que oferecemos o que de melhor que temos, feito com o maior esforço que podemos. Como quando tinha 17 anos, sinto que somos uma minoria de gente que não se adapta a alguns absurdos da sociedade e procura uma alternativa, construindo-a através do teatro. Somos muitas minorias de des-adaptados sociais que construímos ilhas possíveis e pontes, para ligá-las umas às outras. Somos minorias, mas estas minorias vão-se fazendo cada vez mais.

companhia internacional RESIDUI TEATRO tradução Marlene Aldeia, EVS EL SALTO. www.residuiteatro.com

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O TEATRO]] E MEU TERRITOÓ´ÓRIO DE LUTA ´

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ensar o teatro como um território tem sido um exercício pontente para mim e meus companheiros do grupo Contraelviento Teatro. Durante os 16 anos que caminho junto a eles, fui mudando esta noção de território. Quando era pequena, com apenas 15 anos, havia algo de “libertar” nos atores e atrizes que não podia explicar. De fato, quando eu era pequena a vida cotidiana se apresentava a mim como uma dramatização em que se tinha que usar uma série de características segundo o contexto. Carrega um severo conflito com quem acredita ser com esta idade. Como parte de minha nessidade de encontrar algo – que em essência era eu mesma, mas que naquele momento não sabia – enchia meu dia de tarefas. Aos 15 anos o teatro para mim se configurava uma atividade, não um território. Era algo que fazia e deixava de fazer conforme a circunstância, o momento do dia, porém era a única atividade em que não usava um dos meus “eus”. Pouco a pouco essa atividade tomou outro sentido: o da permanência. Se rompeu em meu corpo a necessidade de me fixar e formar parte de um grupo. Fixar-me. Este pensamento começou a questionar-me sobre o que significava o teatro para mim. Meu mestre me falou de um ethos, um modo de ser para fazer, que deveria cultivar para meu ofício. Então, deixou de ser uma tarefa, se configurou um comportamento. comecei a perguntar o que significa ser Contraelviento? como um grupo de pessoas que realizavam uma atividade com muito rígor podía ser uma “Pátria secreta de rebelião e dignidade”? Foi aí que meus mestres e mestras, me recordaram que para realizar – tornar real – a existencia é necessário construir um espaço, em que a vida seja mais vida, em que as normas da cultura não funcionem da mesma maneira: o teatro começou a ser para mim um aqui e o restante das coisas e atividades do cotidiano um lá.

Creci fazendo teatro. Cresci descobrindo um modo de ser, para fazer teatro. Crescer no ofício foi como fazer uma viagem. Foi quando o teatro começou a deixar de ser uma tarefa, e tão pouco foi únicamente um modo ser, fui me 20

foto de Sol Baltazar Por Mabe Bonilla (La Merced – Equador) Atriz e pesquisadora do grupo Contraelviento Teatro - Equador. Formada pela Escuela del Arte del Actor de Contraelviento Teatro, ingressa ao grupo em 2006. Pesquisadora da mùsica em cena, da atriz cantante, e dramaturgia musical.

tornando parte de uma comunidade. A comunidade tem regras que não estão escritas, mas que se cumprem para poder seguir existindo. Regras à margem das regras da cultura , com um código de funcionamento próprio. Sentir a existencia de um aquí e um lá. Encontrar-me. Além de portar um ethos, iniciei um precesso de aprendizagem de uma técnica que coloquei em meu corpo num lugar de pertencimento. Me encontrei em meu corpo, treinei meu ser para habitar o paradoxo, para entender o mundo a partir da tensão, me mostraram


meus companheirxs e mestrxs que em cena devo estar em Meu lar, minha ilha flutuante, meu território de liberdade uma e em todas as partes para estar presente. Saía de cena é a Utopia… o Não-lugar. com a sensação de que sou aqui, porém habito lá. O meu Não-lugar me ensina que resistir não é suficiente, a Tudo aponta então para o entendimento vagar pelo Dharma, a viajar pelo sentido.

factual (daquele que faz) de que o teatro era um lugar que existía em sua qualidade de não-lugar. Descobri em um

momento que era um lugar que estava dentro de mim e que tomava diferentes formas de acordo com o que ao ofício fosse demandado. Isto demandava um compromisso e um profundo desejo de conhecer o humano. Não importa em que espaço me encontre, a cena está dentro e o teatro é um lugar onde crio irmandade com outros habitantes que possuem também um território dentro de si.

Levo 12 princípios éticos e estéticos, levo 2 pilares que controem meu universo do sentido, que me constrói como indivíduo enquanto sou um coletivo. Meu coletivo é minha patria secreta, Contraelviento Teatro. Meu caminho, então, minha utopia, é caminhar em espiral para construir nossa Pátria Secreta… nosso território de liberdade.

Meu mestre é meu guía, minha mestra me tutela de onde quer que vá, e meus companheiros e companheiras, A maior luta que empreendo desde aí é uma rebelião ética habitantes desta maravilhosa ilha são minha fortaleza… contra aquelas partes da cultura que se mostram como Contraelviento, meu eterno retorno… agentes ameaçadores à precária liberdade que a existência adquire neste ofício, porém estas partes estão em mim Contraelviento segue a marcha para encontrar a montanha mesma. É um território em que meu corpo e sagrado são detrás da neve. um elemento para encontrar-me. Ser soberana do meu corpo e de meus próprios questionamentos éticos resultou- Habitamos a tensão, transitamos o salto, caminhamos pela se numa luta que se insere nas grandes quimeras. neblina. Propomos de dentro deste território, desta pátria que é meu grupo, um profundo questionamento às regras da cultura. Brincamos de mudar o tempo, o ritmo, a energía. Fazemos mais viva a vida e isso nos permite existir. Travamos nossas grandes batalhas ao expor a intimidade do humano, ao seguir criando… ao criar. Não há outro lugar que esteja comigo, aonde eu vá, somente Contraelviento, o teatro me faz livre, por precários instantes. Podemos mostrar a quem atende ao chamado, em alguns segundos de uma profunda intimidade, nossa vida exposta e sair da convenção por um momento.

Convertemos em ritual o profano. Daqui olhamos e falamos com nossos corpos e vozes sobre os feminicídios, sobre a dor, sobre a ternura, sobre a xenofobia, sobre a violência, sobre o despojado. Não encontrei um lugar que caminhe comigo porque ele já está dentro de mim. O teatro.

No pequeno povoado onde trabalhamos, agora somos artesãos – como a agricultora ou o carpinteiro – guardamos e forjamos aquilo que não se consome e que não se dissolve com o tempo, propomos uma desordem das coisas, propomos dar-lhes sentido e logo viajar por ele. Não caímos ainda nas respostas que reduzem a existencia e por isso é um território de luta. 21


Pamella Carmo (São Paulo – Brasil)

UM TEATRO DESCENTRALIZADO Peço licença as mais velhas.. As ancestrais que já se foram.. As ancestrais que estão .. AGÔ.. Sou atriz antes de qualquer coisa Sou atriz de teatro de grupo Sou uma atriz, que através das cenas foi mergulhando num mar cheio de portas e horizontes Sou uma atriz que se torna cantora, brincante sou uma atriz, educadora, Abayomi. Ser atriz nos tempos atuais e mulher negra, requer uma força e olhar pro horizonte, a cabeça sempre erguida pés seguros no chão, pra superar o racismo de cada dia. Nasci na zona leste de são Paulo, em uma família que o matriarcado era a base, que o samba e música alta invadia meus ouvidos e meu corpo de criança, não pensava em ser uma atriz e nem imagina qual seria meu destino, estar dentro de um corpo negro na periferia e ser criança e depois adolescente, não te da oportunidades pra sonhar em 22

Atriz no grupo Contadores de Mentira, pesquisadora e militante da cultura negra

ser alguma coisa, eu tinha vergonha de ser como eu era, mesmo ouvindo minha vó dizendo que eu era linda, minha mãe penteando meus cabelos e falando que ele era bonito, não adianta porque a sociedade não perdoa um corpo negro, ela é cruel. Como toda adolescente negra eu fui me escondendo até não ser vista. Hoje meu corpo negro quer e vai estar em todos os lugares que eu quiser e foi o fazer teatral que fez enxergar esse caminho, descobri o teatro em Poá no de 2008 foi meu primeiro contato, o melhor dia da minha vida, como se eu estivesse liberta de qualquer amarra de qualquer olhar duvidoso me senti pertencente naquele espaço. Associação Cultural Opereta, espaço cultural a mais de 25 anos existindo na cidade de Poá que fica no extremo leste da capital paulista. Foi na opereta que me entendi como mulher negra e me descobri brincante, cantante, entendi a importância das políticas públicas em nossa vida, entendi a militância de ser grupo de teatro. O redemoinho que é cuidar de um espaço cultural, e todo o amor que gera em você, e a vontade de permanecer nessa luta, resistir todos os dias contra o mundo la fora que


torce pelo contrário. O teatro é um senhor ou uma senhora depende do dia e da vez que te da o mundo e que pode arranca-lo caso não saiba degustar cada momento vivido, pois são instantes que passam muito rápido. Eu acredito num teatro decentralizado de onde eu vim, um teatro que está nas periferias, nas margens, nas mulheres negras. Ver uma mulher preta em cena, me faz ter coragem e acreditar que o teatro é minha base a minha existência de estar em cena, me sinto representada como se fosse um prêmio uma vitória conquistada.

Eu quero que as pessoas vão ao teatro, nas pequenas cidades nos teatros de grupos que acreditam e resistem no oficio de cada dia, e sim existem grandes grupos nas margens nos fundos, nos extremos.

Equilíbrio na mente e respiradas bem fundo mais um dia de treino. Muitas vezes me vejo lutando contra o fluxo cotidiano da vida para estar na sala de treinamento é uma tarefa difícil mas não impossível, a sala é o momento de respiro de encontro com meu eu atriz de agradecer por mais um momento com meu corpo criador, a condução da direção o mantra indiano e a busca do equilíbrio interno e externo é uma espécie de rito pra mim. Me sinto resistindo nas artes da cena na escolha do estar de corpo e mente. Sobre o corpo ancestral, corpo que baila tambores. Me encontrei com pessoas que pensam esse teatro que as culturas populares são base para a criação, encontreime com esse universo de corpos ritualísticos, corpos

“quebrados” ao som de maracas, tambores pandeiros e o êxtase de brincar e viver o rito de girar no terreiro de bailar os encantados, de teatralizar. Ser uma atriz nos contadores de mentira me faz respirar em outro tempo, me sinto desafiada todos os dias a me surpreender com meu corpo e oficio me sinto resistência e permanecia como se a cada dia eu ficasse um pouquinho mais forte como uma reza que se intensifica. Ser uma das mulheres no grupo, ver o feminino ganhar mais força e grandiosidade são conquistas que o corpo feminino vem tomando a cena no teatro, a mulheres sendo mestras, diretoras e tendo mais visibilidades na arte da cena. O despertar feminino no teatro o despertar feminino da mulher negra e seus espaços, participar de uma obra que existe a dez anos que grita uma medeia negra, é uma forma de despertar um olhar político e atento no público nas mulheres que vão assistir “Curra Tempero sobre Medéia”. Obra do grupo contadores de mentira. É representatividade algo que a 10 anos atrás não era tão visto e nem falado, representatividade negra no teatro era uma coisa que existia só que não tão exposto como hoje. O racismo existe corta nossos corpos com olhares e palavras. Acredito nesse teatro que saúda os tambores e as ancestrais negras e indígenas. É difícil escrever essas dores, e libertador ao mesmo tempo. receber um convite de uma mulher negra para falar da sua resistência no teatro, é política é luta e permanência. Os avanços são lentos, não me sinto comtemplada ainda mas me sinto preparada para os embates, o corpo negro e os estereótipos infelizmente ainda existe com frequência, os lugares de fala precisam ganhar mais espaços é uma luta diária e que está sendo conquistada.

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S

ou um piscar de olhos, um suspiro. Sou soluço, espuma, uma mariposa. Existo como atriz enquanto realizo a ação teatral. Logo, na escuridão repouso. Me construo como atriz em ações teatrais. Em cada ação me transformo. O teatro se converte em um território onde exerço meu ofício e me desenho como atriz. Um território como todos os outros, em tensão, cheio de forças contrárias, como céu e terra, com suas próprias cores e texturas. Com erupções e terremotos. Um território sempre em movimento. Habitado pelo presente, pelo passado e às vezes pelo futuro. Estoy dentro da minha ação do meu território e posso ver as distintas correntes de seus rios. A direção de seus ventos. Todos os meus tempos. Todos os meus momentos. O que guarda minha memória e o que ela tem esquecido. Vejo os meus vivos e os meus mortos. As imagens que tenho guardado em meu corpo que ao longo da minha vida seguem em velocidades diferentes. E todas as emoções estão lutando para dançar. Estou dentro e só há caos, nada se parece com nada, tudo está fora de lugar. Nada compreendo, não interessa compreender. E sem embargo, tudo sinto e vejo ao mesmo tempo. É um “não lugar” que muda cada vez que chego em busca de materiais para tecer a capa visível do meu trabalho, aquele que oferecerei ao espectador.

Por dentro, caos, impulso contra impulso. Todo meu mundo interior em movimento, transformando-me enquanto crio.

A QUEM ABRIGARA´ MEU TECIDO? Verònica Falconí (La Merced – Equador) (Verònica è atriz e pesquisadora, integrante do grupo Contraelviento Teatro de 25 anos de trajetòria em Teatro)

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Meu corpo se inflama, cresce, como atraído pelas distintas forças que envolvem meu território. Quiçá seja a única forma de deter-me por um instante, de suspender-me para eleger com certa calma o quero levar, os materiais indescritíveis e incontáveis com que vou modelar minha ação teatral. Os elejo ou eles me elegem? Já há alguns anos, exploro uma ação ancestral: tecer. As mulheres teciam desde a pré-história e tecem até hoje. Exploro como se o corpo tecesse com agulhas de osso, de pedra. Ao tecer com cascas de árvore, com fibras vegetais, com lã ou pelo. Tecer com bambu ou com fibras metálicas. Que tensões se ativam ao tecer com fibras pesadas em um grande tear? Ao tecer grandes chapéus, ou ao tecer pequenas prendas para um bebê? É uma ação que se aprende com sua avó, que por sua vez também aprendeu com sua avó... Quanto informação em uma só ação. Me permite materiais concretos e simbólicos.


O principal problema que encontro quando me questiono sobre a participação da Mulher no teatro, é a sua ausência nas fontes escritas. Não é fácil rastrear sua história na cena, seus posicionamentos e seus pensamentos sobre este ofício. E o pouco que sabemos é por meio de escritas masculinas. Os grandes mestres da arte teatral nos apresentam uma história do Teatro em que a Mulher quase não existe, essa á a informação que suas vozes masculinas têm nos contado. Sabemos que muitas mulheres fizeram parte desta história, porém por múltiplas razões suas vozes não chegaram até nossos dias. Sem embargo, creio que, tendo suas vozes ocultadas em seu ser profundo, essas mulheres foram tecendo de maneira literal e simbólica um legado (um sussurro, quiçá) que nos permite hoje, atrizes, diretoras, dramaturgas e todas que optamos pelo Teatro, a formar e colocar nossos pensamentos numa folha em branco. A escrever sobre nós e sobre elas. A deixar nossas pegadas firmes nos livros, nas cenas, nos aprendizes, nos espectadores e em outras mulheres que nos seguem. Talvez elas tenham descoberto que tecendo deixariam infinitas linhas coloridas, que mais tarde, outras mulheres de outras épocas, as encontrariam, e seguiriam tecendo, trançando-nos umas às outras. Talvez tenham descoberto que iríamos necessitar do abrigo de seus tecidos. Desde sempre nós mulheres tecemos em círculos para sarar, para rezar, para conjurar; ao redor do fogo, da lua, sentindo o fluxo do nosso sangue, sentindo o ventre crescer ou simplesmente cantando para a boa colheita. Atendendo a este chamado vejo como na atualidade também nós buscamos tecer, criar redes, estabelecer

novas relações para compartilhar aprendizados. Para potencializar o criativa, para fazer florescer uma obra de teatro. Para impulsionarmos, para dar-nos força e ânimo. Nos ajudamos a crer em nós mesmas. E isso tem permitido que sejamos visíveis diante de nós mesmas, e que nos vejamos como pilares fundamentais dentro de grupos, dentro das criações, da pedagogia teatral e do pensamento. Que cada coisa que fazemos com cuidado, qualidade, atenção, é um legado para nós mesmas. Temos sabido também descobrir montanhas e subi-las, marcar o caminho e convidar homens e mulheres para ver a paisagem de um ponto antes nunca visto. Temos criado outros lugares de onde se pode olhar o mundo, a nós e à Mulher. Me animo a dizer que o teatro atual é feminino, porque há uma necessidade de artistas e grupos em ver a partir desses outros lugares, com outros olhares, por trás de outras texturas.. E, sobretudo, por ver a força e a vitalidade da mulher em criar esses outros lugares. Existe também a necessidade de homens e mulheres compreenderem “o feminimo” como um poder gerador de vida em sua dimensão simbólica. Por relacionar-se com sutileza, por converter fragilidade em fortaleza, por não ocultar o choro nem a carícia. E principalmente porque tanto homens quanto mulheres do teatro, começamos a escutar a essas vozes femininas que permaneceram ocultas durante tantos anos. ´ Me animo a dizer que o teatro atual é feminino, porque nós mulheres e também os homens, que partilhamos da mesma paixão e força, estamos tecendo um território para os sonhos, para um sonho de um mundo mais belo.

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CRAVOS VERMELHOS E UMA ROSA

Por Julia Varley (Holstebro - Dinamarca) Nasceu em Londres em 1954. Realizou seus estudos na Itàlia, onde trabalhou com o Teatro del Drago, Centro Sociale Santa Marta e Circolo La Comune. Em 1976, muda-se para a Dinamarca, juntando-se ao Odin Teatret. . Julia também conduz atividades de formação de atrizes e atores em escolas e universidades. è uma das fundadoras da rede internacional de mulheres do teatro The Magdalena Project. è diretora astística do Festival Internacional Transit. foto de Matheus Borges

Q

uando eu tinha cerca de dez anos, “política”; era uma maneira de ficar acordada um pouco mais tarde depois de “Carrossel”, o programa de TV depois do qual todas as crianças da Itália deviam ir para a cama. Eu sabia que os nomes de todos os ministros e líderes de partido apareceriam no noticiário logo a seguir. Aos treze anos, comecei a estudar numa escola de ensino médio. Eu costumava ir para a aula de bicicleta. Só às vezes minha mãe me levava em seu pequeno Fiat 500 vermelho, comprador de segunda mão. Era o ano de 1968. Um dia, chegando na escola com minha mãe, vi faixas penduradas nas janelas e portas bloqueadas, enquanto uma pessoa discursava usando um megafone explicando que a escola estava ocupada. Foi aí que ouvi, pela primeira vez, as palavras “Mao” e “filocinese’ (próChina). Minha mãe tentou me explicar sobre o que se tratava aquilo tudo, mas eu realmente não consegui entender. Eu só entendi que tinha mais um dia de folga das aulas porque não era possível ir à escola. Alguns meses depois, a escola foi ocupada novamente. Dessa vez, alguns banners e bandeiras eram vermelhos, e outros vermelhos e pretos. Na ocasião havia muito mais estudantes discursando nos

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megafones. A maioria deles tinha cabelos compridos e barbas. Ouvi palavras como liberdade e anarquia, e expressões como poder para conscientizar, não para alienar e libertação sexual... Uma garota da minha classe fazia parte do movimento. Ela me disse que eles estavam precisando de comida. Eu pensei que ela falava de doces e chicletes e foi isso que eu acabei comprando. Enquanto eu continuava curiosa, imaginando o que estava acontecendo ali e tentando reconhecer os diferentes alunos que estavam dentro e fora do movimento, o pai de outro colega de classe começou a gritar e agitar os punhos: “Putas... é isso que vocês são... um bando de putas... Venham aqui que eu mostro pra vocês... putas!” Foi então que percebi. Eu já sabia de que lado eu estava. Pulei o portão, entrei na escola e me juntei aos manifestantes. Os alunos conversavam em grupos grandes ou pequenos, sentados no chão da sala de aula, escrevendo e pintando enormes cartazes. Um amigo me perguntou se eu também poderia passar a noite ali. Liguei para casa, como eu sempre fazia quando queria que meus pais soubessem que eu passaria a noite bna casa de um amigo. Fiquei muito surpreso quando ouvi a voz do meu pai dizer com veemência: “Não! Você não pode passar a noite na escola! Venha para casa agora mesmo,


imediatamente! Eu estava começando a entender que “política” tinha a ver com poder e desobediência e que havia algum perigo envolvido. Também percebi que, como estrangeira morando na Itália, tinha que ser particularmente cuidadosa. Ainda assim, naqueles anos eu tinha a impressão de que tudo parecia possível. Simpatizei com a ideia de que as pessoas deveriam ser iguais; não igualmente pobres, tristes, frustradas e alienadas, mas igualmente ricas, criativas e vivas. Em casa,, por exemplo, tentei fazer com que meu pai e meus irmãos também lavassem a louça. Aos dezesseis anos, tendo saído da escola por um ano em busca de novos desafios, comecei a “fazer teatro”. Desisti do vôlei e de competições de esqui para me dedicar aos ensaios. Três vezes por semana eu me reunia, em uma garagem emprestada nos arredores de Milão, para trabalhar com um grupo de pessoas que diziam fazer teatro alternativo (underground). Com uma máscara no rosto e uma cruz de enfermeira no braço, vestindo jeans e camiseta azul, eu declamava o Poema do Soldado Morto, de Bertolt Brecht, pelo espaço cênico. Na época o grupo se inspirava no American Bread and Puppet*. Usamos bonecos e máscaras para apresentar uma história de guerra. De volta à escola, me tornei politicamente ativa novamente, desta vez de maneira mais séria. Alguns jovens usavam drogas, outros falavam de guerrilha armada, outros gostavam de comprar sapatos pontiagudos e motos. Já eu gostava da idéia de associações populares, de estruturas anti-burocráticas e anti-hierárquicas. Eu estava me apaixonando por Marco, que era loiro, de olhos azuis, oriundo de uma família de classe trabalhadora, era musical, e tinha fundado o grupo de teatro com o qual eu trabalhava. Marco também pertencia à mesma organização radical escolar de esquerda de que eu fazia parte. O grupo de teatro se dividiu após uma discussão interna: não fazíamos mais teatro alternativo/underground, e sim teatro político. Sentíamos que o teatro deveria contribuir para a luta de classes e deveria trabalhar na contrainformação. Eu não tinha intenção de me tornar atriz – na minha cabeça alguém mentirosa e impostora – mas, ainda assim, gostava de fazer teatro. Nosso teatro não pertencia aos edifícios oficiais com cadeiras de veludo vermelho, nem aos edifícios alternativos com cadeiras de madeira; nosso teatro pertencia às ruas, aos mercados, às escolas e fábricas ocupadas, aos centros comunitários. A performance sobre a guerra evoluiu para incluir um protesto contra o serviço

militar obrigatório. A montagem seguinte denunciava o golpe de estado de Pinochet no Chile. Eu interpretei a Morte com uma máscara de borracha coberta de cera verde e um fuzileiro norte-americano gordo mascando chiclete. Marchei nas ruas embaixo de um enorme tigre de papel para criticar o imperialismo e também na frente de um grande elefante vermelho para apoiar os direitos dos trabalhadores. Usei meu vestido de dama de honra para fazer um fantoche do democrata-cristão Fanfani, e uma sacola de lixo para simbolizar um casaco do fascista Almirante. Nessa performance os dois eram representados como um casal casado para fazermos propaganda a favor do divórcio num plebiscito. Minha responsabilidade política crescia à medida em que me envolvia cada vez mais com o teatro. Lentamente, as duas atividades se fundiram para se tornar apenas uma. Aos dezenove anos eu era militante de uma “célula cultural” dentro da organização política da qual eu participava. Estava junto de algumas pessoas cujos nomes são bem conhecidos por outras crianças hoje em dia. Participei de intermináveis reuniões discutindo o significado da arte e da cultura, entre camaradas que consideravam principalmente a música e o teatro como um meio de obter fundos para a atividade política mais importante, que era com os trabalhadores. Fundamos uma escola de música e teatro em uma casa no centro de Milão. Centenas de jovens vieram participar. Organizei cursos e aulas, entrei em contato com profissionais, ensinei, escrevi documentos, organizei festivais, construí máscaras, me apresentava onde quer que nos chamassem, dirigia a velha van azul, contactava a imprensa, discutia, convocava e presidia reuniões, participava da sessões de treinamento, reciclei o barro, pintei a casa... Trabalhava de manhã, ia para a universidade à tarde e fazia todo o resto a noite e madrugada adentro. Entusiasmo, paixão, crença política, convicções profundas, sem dormir, sem dinheiro, reuniões, reuniões e mais reuniões, assembléias, manifestações, festivais na comunidade ... tudo isso era o pão nosso de cada dia. O grupo dinamarquês Odin Teatret estava chegando a Milão. Nós os convidamos a conhecer nosso espaço e ministrar uma oficina. Organizamos uma troca com eles. Aos 21 anos, pouco antes de ir morar com Marco e outros amigos, fui para a Dinamarca por um período de três meses. Eu pensava que poderia voltar para compartilhar com meus companheiros tudo o que havia aprendido por lá. De repente, eu não existia mais: não sabia falar o idioma - e, de qualquer maneira, eles 27


não falavam muito por lá, eu não fazia parte de nenhuma performance ou atividade pública, não conhecia nenhuma das regras da profissão, não estava sendo útil, e como atriz ou artista eu estava totalmente sem esperança. Na verdade, foram necessários apenas três meses para eu ver destruída totalmente minha identidade e ficar completamente sem chão. Eu só sabia uma coisa: não podia voltar para Milão e continuar sendo responsável por centenas de jovens como eu, apenas na base do entusiasmo e palavras. Eu havia escolhido o teatro como um caminho para dizer não, de ser rebelde na prática, de não ficar sentada em uma mesa de escola ou em um escritório. No Odin Teatret, descobri que não sabia o que era uma ação real. Então percebi que tudo o que eu podia fazer era ficar na Dinamarca. Minha mãe gostou. A Itália estava entrando na década de terrorismo duro, os “anos de liderança”. Muitos ativistas seriam presos ou mortos. Eu poderia facilmente ter sido um deles. A política poderia ter sido meu único horizonte. Uma rosa tenho trabalhado com Odin Teatret há mais de vinte anos. Demorou um tempo para juntar as peças e reconhecer a continuidade no que parecia ser um intervalo entre minha vida na Itália e na Dinamarca. Durante anos não falei sobre conteúdo e nem sobre responsabilidade, enquanto lentamente o significado de política e de teatro mudava para mim. Tomar posição política não tinha mais nada a ver com direções partidárias ou com ideologias, mas com uma realidade que eu via continuamente sob diferentes formas e com diferentes nomes. Não éramos um grupo de teatro “político”, mas em cada escolha que fazíamos havia uma política e uma conscientização comunitária, da polis. Os anos setenta terminaram e na Itália os movimentos de estudantes e trabalhadores começaram a se dissolver, os jovens não se encontravam mais em manifestações e assembleias. Até meus amigos pareciam estar confinados em seus empregos e casas, enquanto eu começava a viajar pelo mundo como atriz. Em 1986 eu estava na Argentina. O exército fez uma tentativa de insurreição para interromper os julgamentos que condenavam os crimes cometidos durante a ditadura militar. Isso provocou uma enorme manifestação popular de protesto na Plaza de Mayo, em Buenos Aires. Pela primeira vez, ao mesmo tempo que participava da manifestação, vi do alto aquele mar de pessoas marchando. Eu estava com pernas de pau, fantasiada de Mr. Peanut, “Death”, carregando um cartaz preto com a inscrição “Olvido?”' (Esqueceu?). Eu 28

estava de volta às ruas e pude ver melhor. Viajando pela Argentina novamente há apenas alguns meses antes, fui convidada para ver o trabalho de um grupo de teatro em Rosário, uma cidade menor. Na ocasião duas meninas, com cerca de doze anos cada, vestidas com inocentes vestidos brancos, apresentaram uma cena na qual falavam sobre o episódio da morte de Allende ao resistir aos ataques das forças militares. As duas meninas escolheram elas mesmas o texto pela necessidade de saber a verdade sobre tudo o que ouviram de seus pais: assassinatos, pessoas desaparecidas, valas comuns ... Eles precisavam de informações, ou melhor, de contrainformações, e estavam fazendo teatro para obtê-las. Em 1976 e 1983 eu estava na Itália. Em 1978 e 1988 eu estava no Peru. Em 1980 e 1986, eu estava no País de Gales ... Grupos de teatro se reuniram para trocar experiências profissionais, compartilhar visões, sonhos e problemas. Eles estavam criando redes, colaborações, festivais ... Uma noite, todos caminharam juntos em uma longa fila no deserto para mostrar seu trabalho a alguém que não estava lá, a alguém que havia aberto um caminho. O sol desapareceu e tudo ficou escuro. O teatro continuou. As sombras dos apoiadores da Segunda Guerra Mundial e dos trabalhadores do campo de arroz com as costas curvadas reapareceram para me lembrar da solidariedade, generosidade, obstinação e esperança que nos fazem resistir aos tempos sombrios. Não há necessidade de representar resistência quando o modo de viver e trabalhar no teatro já é uma forma de resistência. Em 1988 eu estava no Chile. Visitei o túmulo de Allende, que não tinha o nome dele, e depois, novamente como Mr. Peanut, fui ao palácio de La Moneda, onde Pinochet estava morando. Eu tinha um pedaço de pão no formato de um coração que eu partia para alimentar os pássaros. Eu comecei a fazer teatro para contar ao mundo sobre a morte de Allende e agora eu estava lá a relembrá-lo. Em 1993, estávamos organizando uma semana festiva em Holstebro. Ouvi expoentes de diferentes religiões cantarem sob o mesmo teto. Vi árabes e judeus cantando e dançando juntos, enquanto me lembrava do que suas duas bandeiras tinham significado para mim. Eu não tinha visto pessoas atrás das bandeiras. Naquela época, eu não podia imaginar falar com alguém que não pensasse como eu. Em 1995 eu estava em Cuba. No café da manhã, eu tinha que roubar ovos, pão e queijo do hotel para levar aos técnicos do teatro onde nos apresentávamos. Por causa dos “apagones” (black outs), os espectadores


esperavam horas para ver as apresentações. Um dia, um técnico nos trouxe algumas mangas em troca e nos disse como estava orgulhoso de seu país. Mesmo com o sofrimento que tinham que aguentar, ele ainda acreditava na Revolução Cubana. Nos seus olhos brilhantes, eu podia ver que o imperialismo era realmente o tigre de papel embaixo do qual eu havia marchado muitos anos antes.Em 1996 eu estava de volta a Milão. Organizamos uma troca na prisão. Eu me apresentei atrás das grades e em um pátio fechado enquanto nevava. Em troca os prisioneiros do sexo masculino apresentaram partes de suas performances. As prisioneiras mulheres dançavam ao som da música dos homens que foram autorizadas a visitar pela primeira vez. O teatro pode ser uma ilha de liberdade.Depois que o muro de Berlim caiu, e a ilusão de mudar o mundo caiu com ele, senti a necessidade de realizar algo absolutamente político novamente. Eu escolhi vestir roupas masculinas e segurar uma flor. A flor deve ser vermelha, mas eu não poderia usar um cravo, porque o significado seria muito direto. Eu decidi usar uma rosa. Então, no final, seguindo a lógica determinada pelos textos e materiais em que eu estava trabalhando, eu me transformei em uma mulher novamente, afrouxando meus cabelos e cantando para um irmão morto ajoelhada diante da rosa vermelha esmagada. A frieza do discurso político foi abrandada para mostrar que a força real está oculta na vulnerabilidade. A rosa vermelha parece ser a

flor certa para representar o que é política para mim hoje: não é mais a determinação ideal e ideológica da minha juventude, mas a posição questionadora, preocupada e contraditória de algo que vive e se move, exatamente como o teatro, que eu continuo fazendo para lembrar tudo em que eu acreditava quando era jovem e continuar lutando pelos mesmos valores. O que costumava ser contra-informação, agit-prop, teatro político, o que costumava ser teatro a serviço da sociedade tornouse teatro que é comunicação, relação, rede e uma ilha de liberdade, teatro que torna o impossível possível. Seguindo a verdadeira natureza do teatro, troquei revolução por rebelião, político por subversivo, homem por mulher e cravos vermelhos por uma rosa. * O Bread and Puppet Theatre (também conhecido como Bread & Puppet) é um grupo de teatro de marionetes politicamente radical, ativo desde os anos 1960, atualmente baseado em Glover, Vermont (EUA). Seu fundador e diretor é Peter Schumann. O nome Bread & Puppet é derivado da prática de compartilhar seu próprio pão fresco com o público de cada apresentação, para criar sentimento de comunhão; e de seu princípio central: a arte deve ser tão básica quanto o pão para a vida. O Bread and Puppet Theatre ainda participa de eventos, incluindo as celebrações do Dia da Independência, principalmente em Cabot, Vermont, com muitos bonecões, incluindo um satírico Tio Sam.

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O MOVIMENTO QUE GERA O CORPO

Natàlia Sà è paraibana, atriz, performer e arquiteta urbanista. È especialista em “Artes da Cena: Direção e Atuação” e em “Corpo: Dança, Teatro e Performance” pela Escola Superior de Artes Cèia Helena, em São Paulo. Doutoranda na FAU/USP, pesquisa as relações entre corpo e cidade. Circula atualmente com os espetáculos “Parahyba Rio Mulher” e “Fevereiro ou Fica, vai ter bolo”.

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Escute só, isto é muito sério. Anda, escuta que isso é sério! O mundo está tremendamente esquisito. (...) Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor. João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações. (Matilde Campilho, em Fevereiro) Quando eu cursava a especialização em Corpo: dança, teatro e performance, na Escola Superior de Artes Célia Helena, em São Paulo, ouvi uma afirmação que impulsionou o meu mais recente trabalho, o solo Fevereiro ou Fica, vai ter bolo. Em uma das aulas do primeiro módulo da Pós, em setembro de 2018, o professor e dançarino Ricardo Iazzetta (Zetta) , que conduzia o curso Corpo sensível e a potência de mover, proferiu as seguintes palavras: não é o corpo que gera o movimento, mas é o movimento que gera o corpo. Não acredito que queria dizer ali ser inverdade o primeiro trecho da frase, mas que, provocando um tensionamento nos caminhos da compreensão, propunha que coexistem o movimento e a potência de mover: algo que leva ao movimento, ao mover, redefine o corpo. Poucos meses após aquela aula, algo surpreendente me aconteceu: minha mãe adoeceu e eu passei a me dedicar a uma rotina de cuidados e acompanhamento no hospital. Eu vi minha mãe perder a força e, assim, os movimentos. Aquela frase me inquietava. Questionei: se ela não move mais, o corpo dela (ela) vai deixando de existir? Pois, se é o movimento que gera o corpo, quando ele para de mover, ele deixa de existir e foi o que ocorreu. Minha mãe faleceu e foi impossível evitar que este acontecimento impactasse todas as instâncias do meu ser. Com o decorrer do tempo e do curso e, em vias de encaminhar um trabalho de conclusão, propus uma prática espetacular como síntese das elaborações entre o ciclo de fechamento da especialização e aquele que posso definir, hoje, como o episódio mais difícil que me atravessa a vida. Aproximei-me, assim, do caminho de pesquisa que resultou na proposta cênica Fevereiro ou Fica, vai ter bolo, um solo que leva à cena os cinco estágios do luto e expande a relação com as perdas para os contextos políticos e sociais. A relação com as perdas que nos atravessam durante a vida tem consequências que definem as pessoas que nos tornamos. E não importa aqui julgar nossos comportamentos diante delas, senão que,


talvez e apenas, levantar uma percepção sobre os afetos e uma reflexão sobre nossas relações com as escolhas que fazemos diante dos acontecimentos. É no caldeirão arte-vida que encontro ambiente para relacionar os elementos que pulsam em constelação. Pergunto-me: Como abordar meus materiais (vida) para trabalhar processos? De que é feito materialmente o que quero dizer? Qual a materialidade da ideia que me possibilite fazer a forma acontecer sem metaforizá-la? Como encontrar o sentido de estar em um lugar de presença que me permita dizer, sentir e compartilhar algo através da cena? No livro Autoescrituras perfomativas (2017), a atriz, diretora e dramaturgista Janaína Leite propõe uma reflexão sobre o teatro performativo, o uso de material autobiográfico na cena contemporânea e o depoimento pessoal como chave do processo “para se atingir a expressão de uma espécie de inconsciente coletivo no qual a história de cada um passa a ser a história de todos” (LEITE, 2017, p. 31). Na minha trajetória, o terreno do teatro performativo, que venho investigando há alguns anos, ganhou força de afirmação com o espetáculo Parahyba Rio Mulher (2018) , uma proposta cênica de rua (espaço público, político e democrático que queremos ocupar porque precisamos estar em todos os lugares enquanto artistas-cidadãs), que atualmente circula o Brasil e revela um histórico de silenciamento e violência contra a mulher, evocando a ancestralidade para resistir e continuar a jornada. A partir dos fatos que levaram a capital da Paraíba, na Revolução de 1930, a se chamar João Pessoa, histórias de mulheres se conectam à trajetória da protagonista do episódio: Anayde Beiriz. Parahyba Rio Mulher me afirma enquanto artista e divide as águas de minha trajetória: PARAHYBA RIO MULHER é água que lava a alma. É força que move. É coração. É grito. É corpo e voz na cidade. É mulher nas ruas, ocupando espaços, ecoando o ser. Esse trabalho me fortalece enquanto atriz, me reconecta à minha terra, me traduz e alimenta enquanto mulher. (...) A história do espetáculo se conecta à minha própria. Trata-se de uma busca por mim que se (des)enrola no enredo contado, o qual, por sua vez, revela-me na sua (minha) essência. O processo é contínuo, em gerúndio, como um caminho que se apresenta diante de mim à medida que avanço em sua direção. O movimento é, portanto, fundamental neste curso. Desloco-me rumo a mim mesma, na companhia e através de outras mulheres também errantes em suas trajetórias sociais. (SÁ, 2018. p.09) Parahyba Rio Mulher e Fevereiro ou Fica, vai ter bolo são propostas cênicas que surgem da necessidade característica do fazer artístico e dialogam com o desejo de encontro potente no teatro. Encontro da minha faísca mais íntima com os elementos políticos e sociais presentes na coletividade. Não pretendo

com elas alcançar algum tipo de cura. Realizá-las é, para mim, a possibilidade de enfrentamento. Um caminho através da arte, pois é ela que me atualiza a vida, e vice-versa. Janaína Leite (2017) comenta o processo de elaboração nas obras de representação autobiográfica, que podem passar pelo caráter terapêutico, mas que ganham força ao revelar as subjetividades da existência na contemporaneidade: (...) o que nos parece é que nessas obras e nas demais tentativas de representação autobiográfica, as figurações e escolhas estéticas não são simplesmente uma forma de expressar o vivido, mas, o próprio espaço de sua elaboração. Daí seu caráter ‘terapêutico’, se entendermos o terapêutico como o terreno de uma ação sobre si mesmo, sobre o vivido, em que o indivíduo, ao dar forma à experiência, pode entrar em confronto com as figuras de si mesmo, do passado e do presente, e dar-lhes mobilidade, movimento. Por outro lado, essa associação com o terapêutico, que se justifica na própria ideia de gestalt compreendida no ato de dar forma ao vivido, não parece de modo algum dar conta do salto representacional que podemos assinalar, sobretudo a partir dos anos de 1970, e que marca a arte contemporânea. (...) Já sem nenhuma ilusão de unidade e nenhuma ambição de exemplaridade, o que vemos são obras que não procuram expressar a ‘expansão’ ou ‘desenvolvimento’ do ser em direção à sua harmonia (ou sua cura?). Ao contrário, elas se fazem nos centros nevrálgicos de nossas representações multifacetadas e instáveis, assim como enfrentam os traumas, não para extrair dali exemplos que possam ser passados adiante, mas, para encontrar núcleos da experiência humana que se convertam em imagens potentes de nossa existência política e subjetiva na contemporaneidade (LEITE, 2017, p.81, grifos da autora). Entender o caráter performativo dos processos em arte na contemporaneidade foi fundamental para organizar em mim o uso do material autobiográfico como saída possível. Compartilhar as minhas inquietações na possibilidade de encontrar no coletivo ambiente fértil para as potencialidades da existência é o que me interessa em primeiro lugar. Parto de mim para alcançar o mundo. Um mundo que pode estar “tremendamente esquisito”, como diz a poeta Matilde Campilho em Fevereiro – meu poema preferido –, mas o mundo que o teatro me permite realizar através do encontro, encontro que gera o movimento que gera o corpo, que é político; o corpo que é fluxo, o corpo força de mudança, o corpo que luta, resiste, sonha, vive. O corpo que sabe, que pulsa, que comunica. O corpo amor, afeto, teatro. Referências:

KUBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. Tradução por Paulo Menezes. São Paulo: Martins Fontes, 1969. LEITE, Janaina Fontes. Autoescrituras Performativas: Do Diário à Cena. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2017 SÁ, Natália A. de. Parahyba Rio Mulher: discurso e montagem. Orientação: Daves Otani. Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Artes da Cena: Direção e Atuação Escola Superior de Artes Célia Helena. São Paulo, 2018.

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