Da Filosofia Norte-americana à Mitologia Ameríndia

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NUNO NUNES

Da Filosofia Norte-americana à Mitologia Ameríndia: um estudo sobre o pensamento guarani

Ilha de Santa Catarina, Verão de 2004.


Monografia Curso

de

apresentada

ao

Filosofia

da

Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel, sob orientação da Prof. Doroti Martins, e Coorientação do Dr. Aldo Litaiff.


ÍNDICE

INTRODUÇÃO. 5 CAP. 1- O CAMINHO: SURGIMENTO DO PRAGMATISMO .8 CAP. 2 – O ATALHO: RORTY E AS METÁFORAS OCULARES .13 CAP. 3 – A CHEGADA: PENSAMENTO AMERÍNDIO .25 CONSIDERAÇÕES FINAIS .37 BIBLIOGRAFIA .40


Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro [Fernando Pessoa]


INTRODUÇÃO

Esta monografia tem o objetivo, além de possibilitar a concessão do grau de Bacharel ao autor, apresentar o pensamento dos indígenas da nação Guarani por meio de uma análise referenciada nas teorias pragmatistas. Este trabalho foi elaborado com base em pesquisas de campo e estudos realizados desde 2001, junto ao Setor de Etnologia Indígena do Museu Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina, com orientação do Antropólogo PhD. Aldo Litaiff. O interesse pelo tema surgiu ao conhecer uma aldeia Guarani em Setembro de 2000, onde me deparei com indagações a respeito do pensamento indígena. Como estudante do Curso de Filosofia da UFSC, obtive conhecimento sobre a temática relacionada à história e estrutura de pensamento nascido na Europa, conhecido como Ocidental. Porém, o pensamento nativo das Américas despertava grande curiosidade. A participação como bolsista nos projetos executados pelo Setor de Etnologia Indígena, possibilitou a aproximação tanto da realidade vivida pela população Mbya-guarani de Santa Catarina, quanto pelas etnografias elaboradas por pesquisadores ao longo dos 500 anos de contato entre as civilizações. A tese de Aldo Litaiff – Antropólogo do Setor de Etnologia Indígena –, que apresenta a primeira análise do pensamento Guarani por meio de estudos relacionados ao Pragmatismo, tem suma importância influenciando em grande parte esta pesquisa. Relevância tal que nos levou à difícil situação de estudar um filósofo da corrente pragmatista pouco apreciada na Academia.


Apresentada brevemente no primeiro capítulo, com esta corrente de pensamento iniciamos os passos da estrada que nos levou a questões que ajudaram na reflexão sobre o pensamento filosófico tradicional. Esta espécie de meta-filosofia é discutida também no segundo capítulo, porém com os atalhos e trilhas abertos por Richard Rorty. Este nos convida a caminhar em locais por vezes pouco explorados, tornando a jornada deveras instigante e exigente de muita atenção. A viagem percorrida da Europa à América, nos faz chegar ao seu final no capítulo terceiro. Como a exploradores em mata fechada, revela-se a imensidão de uma aldeia com seus impressionantes mistérios e belezas. O que, diante de nossos olhos, aparenta-se o encontro com um novo mundo, sempre esteve ali. Porém, nós nem sempre tivemos suficiente coragem de baixar as armas e entregarmo-nos a ele, buscando a maior riqueza que seus habitantes possuem: suas histórias e crenças sobre a busca da felicidade. Este segredo irrevelável é guardado há milênios pelos Guarani. Assim, diante de sorrisos fáceis e olhares carinhosos dos Guerreiros Guarani, queremos propor nada mais que a compreensão, o respeito e a consideração por sua forma de pensamento, que de modo algum deseja ser discriminada ou desacreditada, por distanciar-se dos cânones tradicionais da filosofia ocidental. Mas tem sede de seguir o caminho dos antepassados, em busca da terra sagrada, leve, pura; da alegria de acordar com a certeza de dormir novamente e continuar tendo sonhos bons.


O CAMINHO: SURGIMENTO DO PRAGMATISMO

Os caminhos de sucesso são aqueles que nos levam onde desejamos. Poderíamos começar assim a falar dos métodos utilizados em Filosofia e Ciência,

quando

pretensão

de

alcançar

resultados.

Pegando1 a

palavra método, originária do grego methodos, perceberemos se tratar da junção de meta (junto,

ao

lado

de)

com hodos (caminho),

significando

etmologicamente atalho, rodeio2. O desejo de alcançar tal conhecimento acerca de algo, se revela por demais importante na escolha do método, pois este será o caminho percorrido tanto pelo teórico mestre-criador quanto pelo teórico aprendiz. Nas vezes em que nos propusermos a manusear uma teoria, apresentar-se-á deveras dificultoso alcançarmos os mesmos resultados finais, se não seguirmos pela mesma trilha dos mestres. Então, qual atalho pegaremos para chegar onde desejamos? Admitindo que para percorrer tal caminho, tínhamos muitos a escolher, porém temos que decidir por apenas um, opção que é o limite a um caminhante. Assim escolhemos um caminho já traçado e explorado por outros, o atalho denominadoPragmatismo. Este atalho foi o de W. James (1898), ao fazer “um relatório a Califórnia Union, em que ele se referia à doutrina exposta por C. S. Peirce num ensaio do ano 1878, intitulado „Como tornar claras nossas idéias‟”3. O Dicionário Filosófico consultado divide o termo Pragmatismo em dois, a saber: Pragmatismo metodológico e Pragmatismo metafísico. O Pragmatismo metodológico é relacionado a Peirce, este afirma em seu artigo de 1878, onde trata do nascimento do Pragmatismo:


É impossível ter em mente uma idéia que se refira a outra coisa que não os efeitos sensíveis das coisas. Nossa idéia de um objeto é a idéia de seus efeitos sensíveis. (...) Assim, a regra para distinguir o último grau de clareza na apreensão das idéias é a seguinte: considerar quais são os efeitos que concebivelmente terão o alcance prático que atribuímos ao objeto da nossa compreensão. A concepção destes efeitos é a nossa concepção do objeto (Chance, Love and Logic, I, 2, § 1; trad. it. P. 39)4.

A conclusão de Peirce, um cientista da área química, física e matemática, sobre o Pragmatismo metodológico é que “„a função do pensamento é produzir hábitos de ação‟, crenças”5. A proposta dele era, portanto, “encontrar um procedimento experimental ou científico para fixar as crenças, entendendo por científico ou experimental o procedimento que não recorre ao método da autoridade nem ao método a priori”6. Peirce não se encontrava sozinho neste trajeto, pois W. James e J. Dewey caminhavam em estradas diferentes, porém indo na mesma direção. Dewey,

segundo

nosso

dicionário

consultado,

preferiu

o

termo instrumentalismo para referir-se à sua pesquisa. Segundo este autor: A essência do instrumentalismo pragmático é conceber o conhecimento e a prática como meios para tornar seguros, na experiência, os bens, que são as coisas excelentes de qualquer espécie (The Quest for Certaint, 1929, p. 37)7.

Quanto ao Pragmatismo metafísico, encontramos no mesmo referencial os argumentos W. James e F. C. S. Schiller, ambos afirmando que “suas teses fundamentais consistem em reduzir verdade à utilidade, e a realidade a espírito”. Quanto à afirmação de verdade como utilidade, é acordado que tal


pressuposto

é

comum

ao

Pragmatismo

metodológico

quanto

à

“instrumentalidade do conhecer”.

Mas este pressuposto é entendido e realizado por ela de modo totalmente diferente. Em primeiro lugar, ela procura evidenciar a dependência de todos os aspectos do conhecimento (ou do pensamento) em relação a exigências da ação, portanto em relação às emoções em que tais exigências se concretizem. Também a “racionalidade”, segundo James, é uma espécie de sentimento. (“O sentimento da racionalidade” em The Will to Believe, 1897)8.

Assim, para o pragmatismo de James:

As ações e os desejos humanos condicionam a verdade: qualquer tipo de verdade, inclusive a científica. Portanto não é legítimo, deste ponto de vista, recusar-se crer em doutrinas que tenham condições de exercer ação benéfica na vida do homem só porque elas não são apoiadas por provas racionais suficientes. Em casos como este, afirma James, é preciso correr o risco de acreditar9.

Até aqui vimos o que algumas fontes nos informam sobre o termo Pragmatismo, agora buscaremos uma melhor apresentação de tais propostas pragmatistas. Segundo Paulo Ghiraldelli10, poderíamos dividir o Pragmatismo em três períodos, como fez John Murphy11:


1º- meados do séc. XIX a duas primeiras décadas do séc. XX. A fase dos “pioneiros”: Charles Peirce, William James e John Dewey. 2º- com o início das guerras na Europa, muitos intelectuais do círculo de Viena se refugiaram nos Estados Unidos da América, fundindo a filosofia analítica e o Pragmatismo: Willard Quine e Donald Davidson.

3º- década de 80 e 90, o boom do Pragmatismo: Hilary Putnam, Richard Rorty, Susan Hack, Charles Taylor, Richard Bernstein, ainda Quine e Davidson e uma série de outros, entre os quais Thomas Kuhn.

Segundo Ghiraldelli, há temas que permeiam toda a história do Pragmatismo e um deles é a preocupação sobre a verdade. Assim ele apresenta o problema:

Peirce, James e Dewey estavam descontentes com a maneira como a Filosofia Antiga, nomeadamente Platão e Aristóteles, tratavam a verdade. E também torciam o nariz para a Filosofia Moderna, em especial para com a maneira como Descartes ligou verdade e certeza. (...) Eles se colocaram em uma posição metafilosófica, e tornaram suas observações sobre a verdade menos definições e mais descrições do que até então a filosofia, a ciência e o senso comum faziam para firmar e distinguir o que era verdadeiro e o que não era verdadeiro. Se a história acabasse neles, em Peirce, James e Dewey, diríamos que eles não construíram uma “teoria da verdade”, mas sim uma metateoria da verdade12.


Levando em conta o descontentamento com a busca da verdade feita pela filosofia clássica e moderna, considerando o fato de os pragmatistas buscarem tal verdade por meio da ação humana, preocupando-se com a relação que a verdade tem com a vida humana cotidiana, poderíamos afirmar que compartilham a posição de anti-metafísicos, como afirma Ghiraldelli: “no sentido em que queriam evitar uma das características do pensamento metafísico-platônico, a dualidade”13.


O ATALHO: RORTY E AS METÁFORAS OCULARES Aqui, chegamos ao ponto da estrada em que pegaremos um atalho parecido com uma trilha. Seguiremos de agora em diante o caminho indicado por Richard Rorty em sua obra A Filosofia e o espelho da natureza. Julgamos que tal texto seria “iluminador” do trajeto que tentamos cruzar e, já levando em conta as análises de Rorty, tentaremos evitar “metáforas oculares” que, segundo este autor, permeiam a tradição filosófica ocidental. Assim ele inicia sua obra sendo que, logo na introdução, explicita os propósitos de sua análise:

Espero que o que estive dizendo tenha tornado claro por que escolhi “A Filosofia e o espelho da natureza” como título. São as imagens mais que as proposições, as metáforas mais que as afirmações que determinam a maior parte de nossas convicções filosóficas. A imagem que mantém cativa a filosofia tradicional é a mente como um grande espelho, contendo variadas representações – algumas exatas, outras não – e capaz de ser estudado por meio de métodos puros, não-empíricos. Sem a noção da mente como espelho, a noção de conhecimento como exatidão de representação não se teria sugerido14.

Quando Rorty fala em metáforas oculares, está seguindo os rastros dos filósofos pragmatistas da 1ª fase, que questionavam o conceito clássico de verdade e que buscavam um outro procedimento que não o metafísico. Assim, ele se refere ao início da atividade filosófica na Grécia clássica e sugere algumas passagens em que marcam o início da utilização de tais metáforas.


Não se teria pensado existir um problema sobre a natureza da razão, tivesse nossa raça se limitado a apontar estados de coisas particulares – avisos sobre rochedos e chuva, celebração de nascimentos e mortes individuais. Mas a poesia fala do homem, do nascimento e da morte como tais, e a matemática orgulha-se de não tomar conhecimento de detalhes individuais. Quando a poesia e a matemática chegaram à autoconsciência – quando homens como Íon e Teeteto puderam identificar-se com seus temas – havia chegado o tempo de que algo genérico fosse dito sobre o conhecimento de universais15.

Essa analogia entre poesia e matemática, como uma tentativa de “geometrizar o discurso” fazendo este atingir a universalidade que a matemática demonstrava, teria sido marcante para o surgimento do pensar filosófico ocidental. Pois a tarefa da filosofia, citando exemplos de Rorty, era “examinar a diferença entre saber que havia cadeias de montanhas paralelas a oeste e saber que linhas paralelas estendidas infinitamente nunca se encontram”, ou ainda “a diferença entre saber que Sócrates era bom e saber o que era a bondade”16. Assim, sugere o autor, teriam surgido questões como: “quais são as analogias entre conhecimento a respeito de montanhas e conhecimento a respeito de linhas”, ou ainda “entre conhecer Sócrates e conhecer o Bem?” Ao buscar respostas a tais questões, a “distinção entre olho do corpo e Olho da Mente, o – pensamento, intelecto, percepção – foi identificado como o que separa os homens das bestas”17. Deste modo resume ele como isso teria acontecido:

Não houve (...) nenhuma razão particular para que essa metáfora ocular tivesse capturado a imaginação dos fundadores do pensamento ocidental.


Mas isso aconteceu, e os filósofos contemporâneos ainda estão trabalhando nas conseqüências desse fato, analisando os problemas que o mesmo criou e perguntando se não haverá nisso algo importante, afinal18.

E não são poucas as metáforas ligadas à visão, entre elas Rorty cita “a noção de „contemplação‟, de conhecimento de conceitos ou verdades universais como  [teoria], torna o Olho da Mente o modelo inescapável para o melhor tipo de conhecimento”19. A partir desta análise sobre o Olho da Mente, Rorty passa a se questionar o que deve ser a mente. Algo tão diferente do corpo e capaz de ter vida própria? Questionando Descartes, para quem a mente é separada do corpo, pois seriam substâncias diferentes. Fazendo uma analogia com as linhas paralelas que nunca se encontram e o paralelismo que a cadeia de montanhas apresenta, seria como insistir na permanência das sombras das montanhas mesmo que essas não existam mais. Sobre isto afirma Rorty que, “quanto mais etérea a mente, tanto mais capacidade a apreender a visão de entidades invisíveis, como o paralelismo”20. Seguindo em sua busca por outras metáforas oculares utilizadas na tradição filosófica, Rorty passa a elencar o que encontra, e reafirmando sua perspectiva de “mente como espelho da natureza”, como metáfora encoberta na tradição: Nossa Essência Especular não era uma doutrina filosófica, mas uma imagem que os homens letrados encontravam pressuposta por cada página que liam. É especular – semelhante a um espelho – por duas razões. Primeiro, assume novas formas sem ser mudada – porém formas intelectuais em vez de sensíveis como fazem os espelhos materiais. Segundo, os espelhos são feitos de uma substância que é mais pura, de grão mais fino, mais sutil, mais delicada que a maioria delas. Diferentemente de nosso baço, que, em combinação com outros órgãos igualmente densos e visíveis, respondia pelo


grosso de nosso comportamento, nossa Essência Especular é algo que partilhamos com os anjos, mesmo se eles choram nossa ignorância de sua natureza21.

Reportando a Platão e a sua influência na afirmação da imagem como melhor forma de “visualizar” argumentos, afirma Rorty que:

O mundo sobrenatural, para os intelectuais do século XVI, era modelado a partir do mundo das Idéias, de Platão, assim como nosso contato com ele era modelado a partir de sua metáfora da visão. Há poucos que acreditam nas Idéias platônicas hoje e, mesmo, não muitos que fazem uma distinção entre alma sensitiva e intelectual. Mas a imagem de nossa Essência Especular permanece conosco (...)22.

A influência das metáforas oculares de um suposto “mundo das Idéias” é tal que constituiu a noção de um indivíduo capaz de alcançá-lo, visualizá-lo e retornar ao “mundo das sombras”23, relatando o que havia presenciado, como se tais idéias fossem a própria “realidade pura”. Como Rorty afirma em outro texto, “Platão desenvolve a idéia de um tal intelectual através de distinções entre conhecimento e opinião, e entre aparência e realidade”24. Neste sentido, o indivíduo que alcançasse tal realidade ideal, diferenciaria-se dos demais por não proferir em discursos algo que concluiu por si, por opinião própria; mas algo que estaria ao nível de universais. Esta pessoa, no entanto, estaria mais próxima do sonho ocidental de alcançar a verdade, em detrimento de outras que estariam em sua busca. Assim, afirma Rorty:


A tradição da cultura ocidental, centrada na noção de busca pela verdade, a tradição que corre desde os filósofos gregos e atravessa o Iluminismo, é o exemplo mais claro da tentativa de encontrar um sentido para a existência a partir do abandono da solidariedade em direção à objetividade.

Solidariedade, para Rorty, diferencia-se de Objetividade no sentido de: quando não questionamos pela relação entre as práticas de uma comunidade estabelecidas por seus indivíduos, aí estaremos buscando asolidariedade; e quando nos distanciamos das pessoas que atualmente nos rodeiam, não através da compreensão de nós mesmos enquanto membros de algum grupo real ou imaginário, mas por meio de nossa vinculação a algo que pode ser descrito sem referência a nenhum ser humano peculiar, aí estaremos buscando a objetividade. A verdade buscada, portanto, como afirma Rorty, seria:

A idéia de verdade como algo que persuade por sua própria causa, não por ser boa para nós, ou para uma comunidade real ou imaginária25.

Para este autor, a necessidade de formulação desta estratégia de pensamento teria surgido entre os gregos devido o fato de “estarem cada vez mais dispersos para a diversidade total das comunidades humanas, (...) a necessidade de ver com os olhos do estrangeiro, (...) de transcender o ceticismo e vislumbrar a meta comum da humanidade, (...) uma meta instaurada antes pela natureza humana do que pela cultura grega”26. Assim, reforça o autor, isto daria “o ensejo à idéia do intelectual como alguém que está em contato com a natureza das coisas; e isto não por intermédio das opiniões de sua comunidade, mas por uma via mais imediata”27.


Para tanto, reitera ele que:

Tais distinções conspiram para produzir a idéia de que a investigação racional deve tornar visível a dimensão à qual os não-intelectuais têm pouco acesso e de cuja existência efetiva eles sempre duvidam. No Iluminismo, essa noção tornou-se concreta a partir da adoção do cientista físico newtoniano como o modelo do intelectual. Para a maioria dos pensadores do século XVIII, parecia claro que o acesso à natureza, que a ciência física havia propiciado, deveria agora ser seguido para a instauração de instituições sociais, políticas e econômicas que estariam em acordo com a natureza28.

Apresentaremos aqui as distinções elaboradas pelo próprio autor estudado,

sobre

as

correntes

que

se

encaixariam

no

conceito

de objetividade e solidariedade. 1º - Objetividade: tem de construir a verdade como correspondência à realidade, precisando de construir uma metafísica que tenha espaço para uma relação especial entre crenças e objetos, uma relação que diferenciará as crenças verdadeiras das falsas; precisam argumentar que há procedimentos de justificação das crenças que são naturais, e não meramente locais; precisam construir uma epistemologia que tenha espaço para um tipo de justificação que não é meramente social, mas natural, e que aflora da própria natureza humana; uma justificação que vem a ser possível através de uma ligação entre esta parte e o resto da natureza. A estes filósofos Rorty chama de “realistas”29. 2º - Solidariedade: não precisam nem de uma metafísica, nem de uma epistemologia; visualizam a verdade como, na frase de William James, o que é bom para nós acreditarmos; não carecem de uma avaliação da relação entre


crenças e objetos chamada “correspondência”, nem de uma avaliação das faculdades cognitivas humanas que asseguram a capacidade de nossa espécie de adentrar essa relação; não vêem a cisão entre verdade e justificação como algo a ser recuperado a partir do isolamento de um tipo natural e transcultural de racionalidade que pode ser usada para criticar certas culturas e elogiar outras, mas simplesmente, como a cisão entre o bem atual e o melhor possível. A estes filósofos Rorty chama de “pragmáticos”30. Neste sentido, reafirma ele que, para os “realistas”, “para serem verdadeiramente racionais, os procedimentos de justificação precisam conduzir à verdade, à correspondência com a realidade, à natureza intrínseca das coisas”31. Enquanto que para os “pragmáticos”, “dizer que a crença que se apresenta agora para nós como racional não precisa ser verdadeira é simplesmente dizer que alguém pode surgir com uma idéia melhor”32. Esta análise rortyana reforça-se com a citação de Nietzsche, quanto ao desejo deste do que nós deveríamos pensar sobre a verdade. [Pensar a verdade como] um exército de metáforas, metonímias e antropomorfismos – em resumo, a soma de relações humanas que tinham sido acentuadas, transpostas e aprimoradas poética e retoricamente; e que, depois de longo uso, parecem firmes, canônicas e obrigatórias para um povo33.

Rorty conclui esta análise considerando que: Nietzsche esperava que eventualmente pudesse haver seres humanos que tivessem a possibilidade e pensassem a verdade desse modo, mas que ainda estimassem a si mesmos como boas pessoas, como seres humanos para os quais a solidariedade era suficiente34.


Contudo, ao longo de sua obra, Rorty faz o esforço em rebuscar e criticar, na história da filosofia tradicional, os autores e as manobras teóricas utilizadas por eles na tentativa de resolver os problemas surgidos pelo uso da linguagem filosófica permeada de metáforas oculares. Assim, ele faz uma separação entre duas correntes de filósofos: “os filósofos da corrente principal são os filósofos que chamarei „sistemáticos‟, e os periféricos são aqueles que chamarei „edificantes35‟”36. Tentando exemplificar esta diferença estabelecida, Rorty afirma:

Os grandes filósofos sistemáticos são construtivos e oferecem argumentos. Os grandes filósofos edificantes são reativos e oferecem sátiras, paródias, aforismos. Sabem que seu trabalho perde o propósito quando o período contra o qual estão reagindo já terminou. São intencionalmente periféricos. Os grandes filósofos sistemáticos, como os grandes cientistas, constroem para a eternidade. Os grandes filósofos edificantes destroem em beneficio de sua própria geração. Os filósofos sistemáticos desejam colocar seu tema na trilha segura de uma ciência. Os filósofos edificantes desejam manter o espaço aberto para o sentido de admiração que os poetas podem causar às vezes – admiração de que haja algo de novo sob o sol, algo que não é uma representação acurada do que já se encontrava ali, algo que (ao menos pelo momento) não pode ser explicado e mal pode ser descrito37.

Com esta noção de filósofos edificantes, Rorty não quer comparar aos filósofos

sistemáticos

revolucionários,

no

sentido

de

“cientistas

revolucionários” de Thomas Kunh (As Estruturas das Revoluções Científicas, 1980), que aparecem para demonstrar um novo paradigma. Mas, os filósofos


edificantes “são aqueles que são anormais (...), recusam-se se apresentar como tendo descoberto qualquer verdade objetiva”38. Contudo, Rorty interpreta a distinção tradicional entre a busca por conhecimento objetivo e outras áreas menos privilegiadas da atividade humana, meramente como a distinção entre “discurso normal” e “discurso anormal”. O discurso normal (uma generalização da noção de „ciência normal‟, de Kuhn) é qualquer discurso (científico, político, teológico ou seja qual for) que incorpora critérios consensuais para alcançar a concordância; discurso anormal é qualquer um a que faltem tais critérios39.

Assim, filósofos que partilhariam de um discurso anormal, e que seriam filósofos periféricos e edificantes em nossa época, segundo Rorty, são Wittgenstein40, Heidegger41 e Dewey, que tinham como objetivo de “ajudar seus leitores ou a sociedade como um todo a se livrar de vocabulários e atitudes gastos antes que proporcionar „sustentação‟ para as instituições e costumes do presente”42. Os filósofos edificantes precisam desacreditar a própria noção de ter pontos de vista. Essa é uma posição desajeitada, mas não impossível. Wittgenstein e Heidegger administram-na bastante bem. Uma razão pela qual a administram tão bem é que eles não pensam que quando dizemos alguma coisa precisamos necessariamente estar exprimindo uma opinião sobre um assunto. Poderíamos simplesmente estar dizendo algo – antes participando de uma conversação do que contribuindo para uma inquirição43.

Com isso, Rorty afirma que “ver filósofos como parceiros de conversação é uma alternativa a vê-los como mantendo pontos de vista sobre assuntos de preocupação comum” (p. 365, FEN). Neste sentido, retomando a


raiz etimológica de filó-sofos (-) como os que não eramsábios, mas os amigos, ou amantes ( - filos) da sabedoria ( - sofia), temos a seguinte citação de Rorty:

Um modo de pensar em sabedoria como algo pelo que o amor não é o mesmo que o da argumentação, e cuja realização não consiste em encontrar o vocabulário correto para representar a essência, é pensar nela como a sabedoria prática necessária para participar numa conversação.

Assim, conclui Rorty,

Um modo de ver a filosofia edificante como o amor da sabedoria é vê-la como a tentativa de prevenir a conversação de degenerar em inquirição, em um programa de pesquisa. Os filósofos edificantes nunca podem terminar a filosofia, mas podem ajudar a preveni-la de alcançar a trilha segura da ciência44.

Todavia, para o autor de A Filosofia e o espelho da natureza, é importantíssimo “abandonar a noção do filósofo como conhecendo algo sobre o conhecer que ninguém mais conhece”45. A atitude deste filósofo deveria ser, assim, “abandonar a noção de que sua voz sempre tem pretensão dominante à atenção dos outros participantes da conversação”46. Então à filosofia edificante, restaria continuar uma conversação do que descobrir a verdade e, ao filósofo, restaria a preocupação moral de antes continuar a


conversação do ocidente do que insistir sobre um lugar para os problemas tradicionais da filosofia moderna dentro dessa conversação.


A CHEGADA: PENSAMENTO AMERÍNDIO

Apresentando brevemente as propostas pragmatistas e aprofundado um pouco nos conceitos de Richard Rorty, passemos agora a considerar algumas formas de discursos anormais comumente mais pesquisados pelas áreas da Antropologia e Sociologia do que em Filosofia. Lembremos aqui que Rorty reconhece como discurso normal qualquer discurso que incorpora critérios consensuais para alcançar a concordância; teremos então como discurso anormal qualquer um a que faltem tais critérios47. Deste modo, nos permitimos encaixar neste conceito os discursos que não seguem a tradição ocidental de pensamento. O exemplo apresentado aqui será o pensamento dos índios Mbya Guarani, estudados por nós, desde 2000, junto ao Setor de Etnologia Indígena, Museu Universitário – UFSC, onde, coordenados pelo Antropólogo PhD. Aldo Litaiff, participamos de projetos nas comunidades guarani do litoral sul do Estado de Santa Catarina. Para termos uma noção geral sobre esta nação indígena, veremos o que algumas etnografias afirmam sobre “quem são os Guarani”. Vejamos como nos apresenta Pierre Clastres:

Quem são os guarani? Da grande nação cujas tribos, na aurora do século XVI, contavam seus membros às centenas de milhares, só subsistem ruínas hoje em dia: talvez cinco ou seis mil índios, dispersos em minúsculas comunidades que tentam sobreviver à margem do mundo branco. Estranha existência a deles. Agricultores de queimada, a mandioca e o milho de suas plantações asseguram-lhes, bem ou mal, sua subsistência. E, quando


precisam de dinheiro, alugam seus braços aos ricos exploradores madeireiros da região. Uma vez decorrido o tempo necessário à aquisição da soma desejada, voltam silenciosamente às estreitas trilhas que se perdem no fundo da floresta. Pois a verdadeira vida dos índios guarani desenrola-se não às margens do mundo branco mas muito mais longe, onde continuam a reinar os antigos deuses, onde nenhum olhar profanador do estrangeiro de boca grande corre o risco de alterar a majestade dos ritos48.

Com esta breve introdução sobre quem são os Guarani, Clastres inicia seu livro intitulado A Fala Sagrada, mitos e cantos sagrados dos índios guarani, em que descreve vários mitos desta etnia que são mantidos até hoje na memória silenciosa e atenta dos representantes deste grupo. Pessoas estas que habitam dezenas de pequenas aldeias, que variam em média de 50 a 200 habitantes cada, espalhadas por um vasto território tradicional que se prolonga continuamente desde o Paraguai, à oeste, até o litoral brasileiro à leste. Sendo ocupado em áreas de Mata Atlântica ao norte, nos estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo; e ao sul nos estados do Rio Grande do Sul, atravessando as fronteiras do Uruguai e da Argentina. De acordo com Egon Schaden, grande antropólogo catarinense, em seus Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani nos ajuda a compreender quem são os Guarani. A maioria das populações indígenas encontradas pelos desbravadores quinhentistas em terra da bacia platina falava dialetos do idioma Guarani, estreitamente afim ao linguajar das chamadas tribos Tupi, que dominavam quase todo o território brasileiro e grandes extensões do interior. À unidade lingüística daquelas tribos meridionais corresponde relativa unidade cultural49.


Neste sentido, na tentativa de definir quem são os Guarani encontramos certas dificuldades, pois trata-se de uma aparente unidade lingüística e cultural50. Porém, a aproximação de pesquisadores com este grupo de pessoas demonstram que esta tarefa, a de denominar o outro, é mais difícil do que pensavam os primeiros conquistadores que chamaram os nativos de “índios”. Assim continua o texto de Schaden:

Todavia, a existência de diferentes denominações para subgrupos regionais e, talvez, a grande mobilidade espacial, produzindo notável dispersão, são os principais fatores responsáveis pela opinião, bastante comum, de que se trata de outras tantas tribos distintas51.

Assim Schaden contribui com sua análise para os dias atuais:

Entre os Guarani contemporâneos a consciência de unidade tribal não chegou a prevalecer. Cada um dos subgrupos procura acentuar e exagerar as diferenças existentes. (...) A diversidade dos dialetos, das crenças e práticas religiosas, de constituição psíquica e mesmo da aparência física serve de motivo para cada bando afirmar a todo momento a sua pretensa superioridade sobre os demais52.

Entretanto, na busca de definir (que poderíamos também escrever como busca de “colocar os fins”, “encontrar os limites”, “tornar finito” para que


possamos falar sem dispersão) mesmo que generalizando muitas vezes, usaremos para tal esforço a definição do próprio Schaden. Este afirma que:

Os Guarani do Brasil Meridional podem ser divididos em três grandes grupos: os Ñandeva (...), os Mbüa e os Kayová (...). Quanto às designações correntes para as inúmeras hordas encontradas na bibliografia, a confusão é tal que toda tentativa de estabelecer ordem é condenada, desde logo, a resultados insatisfatórios (p. 2, Aspectos...).

Tendo isto em vista, conclui o próprio autor que:

Apesar de tudo, porém, a tentativa de estudar a cultura Guarani como unidade talvez pareça ousada. Com igual direito poder-se-ia falar em três, quatro ou mais culturas Guarani. As populações que falam algum dialeto Guarani distinguem-se uma das outras, como já foi assinalado, em muitos aspectos da vida econômica, da organização social, do sistema religioso e dos demais setores da cultura. Mas, acima dessas diferenças indiscutíveis, há um fundo comum de elementos idênticos ou semelhantes, em virtude do qual todos os bandos se apresentam como unidade em oposição a outras tribos, inclusive da família Tupi-Guarani53.

Interromperemos com Schaden a aparente necessidade ocidental de definição, que por vezes são ridicularizadas por indivíduos Mbya, pois o que poderia ser pega como mais próxima da realidade seria a própria definição que os pertencentes à cultura que chamamos de Guarani dão a si mesmos; porém isso deve respeitar uma “metafísica” que só a eles cabe saber. Complementando


com palavras de Bartomeu Meliá, guaraniólogo espanhol, missionário jesuíta que atualmente vive no Paraguai, que afirma: Nesta selva de papel que são as publicações relativas aos Guarani, as trilhas se entrecruzam, sem levar, aparentemente, a lugar nenhum. Os mil e tantos títulos levantados mais esconderiam do que revelariam o verdadeiro rosto desses homens e mulheres54.

Buscando uma possível apresentação do pensamento mbya-guarani, basearemo-nos em estudos elaborados por Litaiff em sua tese Les Fils du Solei55,em que descreve os mitos e narrativas históricas, repassados oralmente pelas gerações, através dos mais velhos, mantendo assim as explicações sobre o surgimento do universo e dos seres humanos, como também as regras de conduta do povo mbya-guarani. O Pragmatismo nos ajuda nesta reflexão levando em conta suas críticas ao pensamento filosófico tradicional. Neste sentido, Litaiff afirma que, “segundo o Pragmatismo, a divisão entre pensamento e comportamento é conceitual”56, de modo que “a dicotomia „pensamento/mundo‟ é uma herança da tradição platônico-aristotélica, trazida ao centro do pensamento moderno por Descartes e Kant posteriormente”57. Neste sentido, temos a contribuição do neo-pragmatismo de Rorty afirmando que “a concepção de conhecimento da filosofia tradicional (cartesiana e kantiana), (...) seria a atividade de representação dos objetos exteriores à razão”58. Assim, continua Litaiff, Rorty “segue a concepção de Dewey de conhecimento como crença, e de Wittgenstein de linguagem como instrumento e não como espelho da natureza, ou seja, uma tentativa de refletir de forma adequada, os objetos do mundo”59.


De acordo com esta concepção pragmática, o conhecimento é uma questão de conversação e de prática social. Compreendemos o conhecimento quando compreendemos

a

justificação

social

da

crença.

Como

principal

conseqüência, o conhecimento não poderá ser visto como uma cópia da realidade, e, assim, o espelho da natureza poderá ser destruído. Se o conhecimento, assim como as crenças, é considerado como hábito de ação, não teremos necessidade de verdades a priori60.

Deste modo, entendemos que o pensamento filosófico tradicional possui uma forma de ser executado que lhe é própria, e isso faz com que o ocidente seja a única cultura a desenvolver a Filosofia, no sentido de busca de um conhecimento genuíno e verdadeiro. Sem ter o intuito de afirmar que há, por parte dos indígenas, uma atividade filosófica como a ocidental em seu pensamento, ressaltamos que pode ser encontrado algo que tem equivalente funcionamento e utilidade. Assim como a Filosofia para o ocidente, para os Mbya-guarani, há uma forma de pensamento que lhes permite analisar e explicar sua realidade. Algumas características que podemos citar de que o pensamento Guarani diferencia-se do pensamento ocidental são:

- o não-dualismo, primeiramente no sentido de continuidade entre corpo e alma e, comparativamente ao Pragmatismo, a continuidade entre pensamento e prática, pois os “bons pensamentos” do indivíduo são influenciados por sua prática cotidiana, e esta depende da situação mental-emocional-espiritual do indivíduo;


- como também a não-dicotomização, no que se refere à diferenciação do mundo entre dois modos de percepção (bem/mal, bom/ruim, etc), pois afigura-se que para os Guarani a vida possui um caminho a ser trilhado, e a desatenção ao destino almejado acarretaria complicações, que devem ser saradas com o reencontro do caminho; esta característica dicotômica do pensamento ocidental já havia sido denunciada por Nietzsche61 e é abordada com severa análise pelos pragmatistas; - do mesmo modo encontramos na “metafísica” guarani, no que diz respeito aos discursos explicativos, alta ligação às práticas cotidianas dos indivíduos, pois procuram “seguir o caminho dos antigos”62 , sendo que esta metáfora do “caminho” é bastante presente nos mitos guarani, de modo que aparenta mais uma característica que contrapõe ao ocidente com suas metáforas oculares.

Observamos, então, que os pragmatistas nos auxiliam a compreender o pensamento Guarani, assim como a perceber características do próprio pensamento ocidental que, por vezes, tornam-se imperceptíveis, pelo fato de termos nascido e sido educados nesta cultura. Deste modo, passemos a uma breve apresentação dos mitos Guarani, que, segundo Litaiff, podem ser divididos em dois gêneros: “os „sagrados‟, que tratam da criação de uma primeira terra; e os „não-sagrados‟, que se dividem em duas categorias: os mitos que tratam da criação da terra atual, e as narrativas históricas, que tratam, por exemplo, da conquista da América (...)”. Dentre as variadas versões desses mitos não-sagrados, especificamente o chamado “Ciclo dos Irmãos”, Litaiff afirma poder-se encontrar pontos comuns que formam partes principais dos mitos, os quais chama de “unidades mínimas”. Assim, ele define dez unidades:


1.

Após ter criado a segunda terra, Ñanderu Tenondegua (Nosso pai primeiro) faz um filho numa mulher e parte

2.

Kuaray, filho de Ñanderu, fala do ventre de sua mãe e a guia em busca de seu pai e da Yvy Mara ey (Terra sem mal), onde ele mora

3.

Após que sua mãe parte, Kuaray para de guiá-la, e ela segue outro caminho que dá na morada dos jaguares que a devoram

4.

Kuaray, que sobrevive, é levado para a avó jaguar

5.

Kuaray cria Jacy, seu irmão caçula

6.

Os irmãos descobrem que os jaguares mataram sua mãe,

7.

Kuaray tenta ressuscita-la, mas não consegue

8.

Kuaray cria os animais e os vegetais

9.

Os irmãos encontram Anham, o representante do mal

10. Enfim, eles conseguem reencontram seu pai e a Yvy Mara ey63.

De acordo com Litaiff, “mesmo que os índios mais jovens não sejam capazes de reproduzir os mitos, eles conhecem bem suas „unidades mínimas‟, ou as „praticam‟ em suas atividades diárias”. Assim, continua ele:

As “unidades mínimas” do mito são noções que não são necessariamente verbalizadas e que os jovens guaranis não tem necessidade de falar, pois eles já as praticam. Integradas em suas ações, essas noções organizam de maneira hierárquica o conhecimento e o comportamento64.

Neste sentido, Litaiff tenta “inferir alguns conceitos fundamentais do pensamento guarani, a partir da análise de sua realidade concreta. Esta


abordagem nos permitiu”, afirma ele, “sobretudo, compreender que estas noções, que supomos a existência, se encontram no quadro elaborado por homens e mulheres, principalmente a partir das narrativas míticas, visando uma atitude efetiva da coletividade”65. Entretanto, não necessitando saber narrar os detalhes dos mitos para viverem de acordo com o teko(que é traduzido como hábito, costume, cultura) e onde se dá a aplicação do que é repassado pela tradição, demonstrando uma continuidade entre pensamento e prática, seria “através da sua própria atividade corporal que a criança mbya descobre e integra os conceitos66 transmitidos”67. Um exemplo dado no próprio texto de Litaiff é a observação, em uma aldeia mbya, das atitudes de duas crianças:

Em um determinado momento, a mais velha colheu um fruto, mostrando à menor a maneira correta de descascá-lo e comê-lo. Fazendo uma analogia com um episódio do mito dos irmãos, onde Kuaray, o sol, mostra alguns frutos a seu irmão, Jacy, a lua. Leonardo Vera Tupã, Mbya que nos acompanhava na ocasião, confirma que “mesmo não sabendo narrar o mito, as crianças se comportam de acordo com suas premissas”68.

Nas palavras de Leonardo citadas por Litaiff temos:

Antigamente, as crianças não tinham tanta necessidade da orientação dos mais velhos, pois viver nossa cultura, nossas rezas e o contato com a natureza, tudo isto, era misturado. Então, praticando nhande reko[nossos hábitos], não têm necessidade de conhecer estas histórias na teoria porque sem se darem conta, elas já as seguem69.


Assim, conclui Litaiff: (...)Teko, enquanto modelo de comportamento, vai servir como medida, organizando as ações sociais e individuais. Todavia, segundo o contexto, algumas partes do discurso podem ser vistas pela comunidade como sendo verdadeiras ou questionáveis. Com o objetivo de adaptar certas crenças ao contexto histórico, estas poderão ser questionadas até se atingir um certo consenso, enquanto outras não70.

Ainda segundo Litaiff, o mito estando ligado direta ou indiretamente à realidade empírica, seria “um modelo algoritmo que fornece os instrumentos conceituais necessários para vislumbrar o real, porém de maneira provisória”. Neste sentido, o mito seria “uma fonte de crenças individuais e coletivas, que ao mesmo tempo, busca fixar hábitos de ações”71. Assim, compreendendo que os Mbya-guarani têm suas respectivas explicações para os acontecimentos dos tempos imemoriais, os fatos recentes e, ainda, previsões para os que acontecerão, sendo que cada mito, lenda, estória ou história tem suas metáforas devidamente de acordo com o contexto ao qual se encontram, poderíamos afirmar que estas explicações são válidas partindo da própria lógica nativa. Tallógica não deve ser comparada a uma lógica matemática, possibilitando cálculos exatos, mas compreendida talvez como uma escala de sucessão de fatos, em que, por vezes, pode ser conhecida apenas por quem nasceu naquela cultura e absorveu seus princípios. Uma vez que a palavra conheceradvém de co-gnesis, do grego, “nascer junto”. Nesta análise do pensamento guarani, poderíamos reconhecer semelhanças com os pragmatistas quanto à forma de elaboração das verdades, sendo que esta nação indígena encaixaria-se no conceito dos que buscam não a objetividade, mas a solidariedade. Pois, numa comparação grotesca, os Guarani visualizariam a verdade como, na frase de William James, o que é bom para nós acreditarmos. Portanto, afirmamos humildemente que eles,


como os pragmatistas, não carecem de uma avaliação da relação entre crenças e objetos chamada “correspondência”, nem de uma avaliação das faculdades cognitivas humanas que asseguram a capacidade de nossa espécie de adentrar essa relação; assim como não vêem a cisão entre verdade e justificação como algo a ser recuperado a partir do isolamento de um tipo natural e transcultural de racionalidade que pode ser usada para criticar certas culturas e elogiar outras, mas simplesmente, como a cisão entre o bem atual e o melhor possível.72. Contudo, aquilo que Nietzsche sonhava para os seres humanos, que tivessem a possibilidade de pensar a verdade como um exército de metáforas, mas que ainda estimassem a si mesmos como boaspessoas, como seres humanos para os quais a solidariedade era suficiente, parecemos encontrar entre os nativos da América. Não como um ideal dos pragmatistas norteamericanos, mas como existência real, há milênios, entre os indivíduos que formam as comunidades indígenas, no caso estudado, a nação Guarani.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendendo, então, algumas análises pragmatistas sobre o pensamento tradicional do ocidente, aprofundadas aqui com Richard Rorty, seguindo a trajetória de apontamento da existência de metáforas oculares, e as influências destas na formação do pensamento ocidental. Assim como as conseqüências de tais metáforas na construção do conceito de verdade para a filosofia tradicional, acarretando a elaboração de uma problematização metafísica. Sendo depois apresentadas as propostas de Rorty na apreciação de correntes filosóficas diferenciadas dos cânones, reconhecidas aqui como Filosofias edificantes, tendo alguns correspondentes filósofos responsáveis pela própria formação do pensamento pragmatista. Como também apresentadas brevemente a sociedade Guarani, diferenciada da ocidental não apenas pela história de formação, mas pela construção de seu pensamento e prática cultural. No que diz respeito ao conceito guarani deteko, traduzido como “hábitos” ou “costumes”, demonstrando uma continuidade entre o pensamento e a prática dos Guarani, influenciando tanto em sua organização social, como na educação passada às crianças que seguem conceitos básicos desenvolvidos por séculos e que, ainda hoje, vão sendo reelaborados e adaptados ao passo que surgem necessidades devido a convivência com os não-indígenas. Sendo que a realidade vivida pelos povos indígenas atualmente requer constante adaptação às novidades do mundo ocidental, introduzidas nas aldeias e comunidades por meio de métodos impositivos. Pois o desconhecimento da lógica nativa por membros da comunidade envolvente, por vezes acarreta a incompreensão dos hábitos, do ritmo de vida e interesses individuais que os componentes do grupo sustentam.


Diante desta situação, reconhecemos algumas pessoas da comunidade Guarani como responsáveis pela realização das conversações para elaborar as verdades e adaptações dos conhecimentos antigos às novas circunstâncias. Assim, as nações ameríndias, diferentes entre si por inúmeros aspectos, possuiriam entre seus indivíduos, aqueles responsáveis pela manutenção e elaboração de conhecimentos próprios à cultura, encarregados pela permanência da sabedoria nativa. Contudo, as formas de pensamento não-ocidentais, são reconhecidas na categoria rortyana de “discursos anormais” acerca do que esses povos desejam edificar. Consideramos aqui, deste modo, tais figuras das comunidades indígenas como os detentores nativos do discurso-anormal ou edificante. E, no entanto, consideraremos estas pessoas, exímias aproximações do que foram conceituadas de filósofos edificantes. Segundo os conceitos de Richard Rorty, as atitudes dos filósofos deveriam consistir em abandonar a noção na qual sua voz sempre tem pretensão dominante à atenção dos outros participantes da conversação. Restando à filosofia edificante continuar uma conversação ao invés de preocupar-se em descobrir a verdade e, ao filósofo edificante, restaria a preocupação moral de antes continuar a conversação do que insistir sobre um lugar para os problemas tradicionais da filosofia moderna dentro dessa conversação. Sem interesse de encaixar o pensamento nativo das Américas num conceito ocidental, caracterizando colonialismo e depreciação do pensamento indígena, mas reconhecendo este como legítima forma de pensamento, com suas bases e fundamentações, respeitando as devidas caracterizações de cada nação indígena. Talvez aqui fosse interessante chamar a poesia de Fernando Pessoa e sua profunda reflexão sobre a Filosofia, aquela que foi sustentáculo, a partir da qual os ocidentais conseguiram construir um mundo. Mas das janelas


destas construções corremos o risco de deixar outros mundos imperceptíveis, entre eles as aldeias indígenas, à sombra das árvores. E para enxergá-los novamente, talvez seja preciso cuidar-se com qual tipo de filosofia estaremos buscando apoio. O próprio Pessoa, em sua época, já alertava sobre as necessidades de análise do conceito de Filosofia, afirmando que: “Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada e todo o mundo lá fora; e um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, que nunca é o que se vê quando se abre a janela”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CLASTRES, Pierre - A fala sagrada - Mitos e cantos sagrados dos índios Guarani 1990.

FLORES, A. Vivar, Antropologia da Libertação Latino Americana, Ed. Paulinas, São Paulo, 1991.

GHIRALDELLI Jr., P., Pragmatismo e Neo-Pragmatismo, Universidade Estadual Paulista

Marília,

em

Enciclopédia

de

Filosofia

da

Educação

(www.filosofia.pro.br)

LITAIFF, A., Antropologia e linguagem: uma abordagem neo-pragmatista, em Linguagem e (Dis)curso, Tubarão, v. 3, n. 1, jul./dez., 2002,

___________Lês Fils du Solei, Mithes et pratiques des indiens mbya-guarani du littoral du Brésil, 1999.


MELIÁ, B.; ALMEIDA, M.; MURARO, V., O Guarani, uma bibliografia etnológica, Santo Angelo, Fundação Missionária de Ensino, 1987.

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Aspectos

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São Paulo. EDUSP, 1974

RORTY, R., Filosofia e o espelho da natureza, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994,

_________, Objetivismo, relativismo e verdade, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1997 (Escritos Filosóficos, v. I)

_________, Ensaio sobre Heidegger e outros, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1999 (Escritos Filosóficos, v. II) 1 Nos esforçamos para não utilizarmos metáforas visuais nesta monografia, por isso talvez possa parecer estranho a escolha de metáforas táteis ou auditivas. 2 FLORES, A. Vivar, Antropologia da Libertação Latino Americana, Ed. Paulinas, São Paulo, 1991 (p. 49). 3 ABBAGNANO, N., Dicionário de Filosofia, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2000 (p. 748). 4 Ibid, p. 748.


5 Ibidem, p. 784. 6 Ibidem, p. 784. 7 Ibidem, p. 784. 8 Ibidem, p. 795. 9 Ibidem, p. 785. 10 GHIRALDELLI Jr., P., Pragmatismo e Neo-Pragmatismo, Universidade Estadual Paulista – Marília, em Enciclopédia de Filosofia da Educação (www.filosofia.pro.br). 11 Cf. MURPHY, J., O Pragmatismo – De Peirce a Davidson. Trad. Jorge Costa Porto: ASA, 1993 (1ª ed. em inglês de 1990). 12 GHIRALDELLI, P., ibid. 13 GHIRALDELLI, P., ibid. 14 RORTY, R., Filosofia e o espelho da natureza, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994, p. 27. 15 Idem, p. 51. 16 Ibidem, p. 51. 17 Ibidem, p. 51. 18 Ibidem, p. 51. 19 Ibidem, p. 51. 20 Ibid, p. 52.


21 Ibid, p. 55. 22 Ibid, p. 56. 23 Referência ao Mito da Caverna de Platão, A República, Livro VII. 24 RORTY, R., Solidariedade ou objetividade?, em Objetivismo, relativismo e verdade, Escritos filosóficos vol. I, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1997, p. 38. 25 Ibidem, p. 37. 26 Ibidem, p. 38. 27 Ibidem, p. 38. 28 Ibidem, p. 38. 29 Ibidem, p. 39. 30 Ibidem, p. 39. 31 Ibidem, p. 39. 32 Ibidem, p. 39. 33 NIETZSCHE, F., Da verdade e mentira no sentido extra-moral, retirado de RORTY, ibidem, p. 49. 34 Ibidem, p. 49. 35 Rorty recorre ao termo “edificante” pela seguinte razão: “Do ponto de vista educacional, enquanto oposto ao epistemológico ou tecnológico, o modo como as coisas são ditas é mais importante do que a posse de verdades”. Assim, “como „educação‟ soa um tanto prosaico demais, e Bilding um tanto estrangeiro demais, irei usar „edificação‟ para representar esse projeto de


encontrar modos novos, melhores, mais interessantes, mais fecundos de falar” (A Filosofia e o espelho da natureza, p. 353-354). 36 Ibid, p. 361. 37 Ibidem, p. 363. 38 Ibidem, p. 364. 39 Ibidem, p. 26. 40 Ludwig Wittgentein (1889 - 1951), austríaco, obras exemplares: Tractatus Logico-Philosophicus (1921), Investigações Filosóficas (1953). 41 Martin Heidegger (1889-1976), alemão, obras exemplares: Ser e Tempo (1927), Conceitos Fundamentais em Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão (1983). 42 RORTY, R. , Filosofia e o espelho da natureza, Rio de Janeiro, RelumeDumará, 1994, p. 27. 43 Ibid, p. 364. 44 Ibidem, p. 366. 45 Ibidem, p. 348. 46 Ibidem, p. 386. 47 Ibidem, p. 26. 48 CLASTRES, P. A fala sagrada, Mitos e cantos sagrados dos índios Guarani, 1990, p. 9.


49 SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo. EDUSP, 1974, p. 1. 50 Como afirma R. Da Matta, em Exploração de Sociologia Interpretativa, (Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1986): “Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. 51 SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo. EDUSP, 1974, p. 1. 52 Ibid., p. 1. 53 Ibidem., p. 13-14. 54 MELIÁ, B. O Guarani, uma bibliografia etnológica, Santo Angelo, Fundação Missionária de Ensino, 1987, p. 71. 55 Apresentada a Universidade de Quebec em 1999, que foi classificada entre as 15 melhores teses e apontada a um prêmio nacional canadense. 56 Antropologia e linguagem: uma abordagem neo-pragmatista, em Linguagem e (Dis)curso, Tubarão, v. 3, n. 1, jul./dez., 2002, p. 233. 57 Ibid., p. 231. 58 Ibidem., p. 237. 59 Ibidem., p. 237. 60 Ibidem., p. 237. 61 Ver Friedrich Nietzssche, em Para além de bem e mal (1886), Genealogia da Moral (1887).


62 Frase bastante ouvida entre conversas de Mbya-guarani sobre a conduta humana (Litaiff, 1999). 63 Retirado de Litaiff, Les Fils du Solei, 1999. 64 Antropologia e linguagem: uma abordagem neo-pragmatista, Litaiff, 2002, p. 256. 65 Idem, p. 257. 66 Por conceito Litaiff (ibidem., p. 255) compreende: “De acordo com as idéias de Bloch [Maurice Bloch, Le cognitif et l´ethnographic. In Études et notes, 17, Paris, Gradhiva, 1995], existe uma grande diferença entre os conceitos e as palavras, pois segundo ele, pode haver conceitos que não são verbalizados. Para este autor, os conceitos são „protótipos‟ ou „ocorrências ideais típicas‟, aos quais os fenômenos empíricos correspondem mais ou menos”. 67 Ibidem., p. 256. 68 Ibidem, p. 255. 69 Ibidem, p. 255. 70 Ibidem, p. 257. 71 Ibidem, p. 258. 72 RORTY, R., Solidariedade ou objetividade?, em Objetivismo, relativismo e verdade, Escritos fiolosóficos vol. I, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1997, p. 39.


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