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Os Ventos do Espírito - Brisa suave: o encontro no nosso jardim
from PNEUMA - Maio / Junho 2020
by NPFM
P. ADÉLIO TORRES NEIVA, ESPIRITANO (1932-2010)
Os Ventos do Espírito
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III. A BRISA SUAVE: O ENCONTRO NO NOSSO JARDIM
O Espírito do Senhor apresentou-se a Elias como uma brisa suave. A brisa, o vento ligeiro, signifcam a capacidade de captar a presença do Senhor nas mais simples circunstâncias do nosso quotidiano. É o Pentecostes da vida de todos os dias, sem vento forte nem línguas de fogo, mas que fará de nós o templo do Espírito Santo, como nos ensina S. Paulo. A brisa suave como imagem do Espírito Santo vem-nos descrita no livro de Reis: ‘Disse o Senhor a Elias: ‘sai e mantem-te neste monte na presença do Senhor, Ele vai passar’. Nesse momento, passou um vento impetuoso e violento, que fendia as montanhas e quebrava os rochedos diante do Senhor, mas o Senhor não se encontrava no vento. Depois do vento, tremeu a terra. Passou o tremor de terra e ateou-se um fogo; mas nem no fogo se encontrava o Senhor. Depois do fogo ouviu-se um murmúrio de uma brisa suave. Ao ouvi-lo, Elias cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da caverna. Disse-lhe então uma voz: ‘Que fazes aqui, Elias?’. Ele respondeu: ‘Ardo em zelo pelo Senhor Deus do universo, porque os flhos de Israel abandonaram a tua Aliança, derrubaram os teus altares e mataram os teus profetas. Só escapei eu, mas agora também me querem matar’. O Senhor disse-lhe: ‘Vai e volta pelo caminho
do deserto, em direcção a Damasco e, chegando lá, hás-de ungir a Hazael como rei da Síria, Jeu, flho de Nimechi, como rei de Israel e Eliseu, flho de Chafat de Abel-Meolá, como profeta em teu lugar’ (I Re 19, 11-16).
Nesta passagem do Livro dos Reis, Elias conta-nos a sua experiência do Espírito do Senhor. Ao longo da Sagrada Escritura, a manifestação de Deus está particularmente associada a quatro símbolos: o vento impetuoso, o tremor da terra, o fogo e a brisa suave. Há ainda outros, como a água, a pomba, a nuvem, mas estes são os principais. É esta uma experiência do Espírito que

exige já uma certa maturidade espiritual.
Crescer na Fé
Nestas diversas imagens há um itinerário progressivo: o vento forte vem primeiro, depois o tremor de terra, segue-se-lhe o fogo e, fnalmente, a brisa. Enquanto nos primeiros tempos da nossa vocação cristã aconteciam experiências estimulantes, sempre interpelativas, o baptismo, a opção vocacional, a consagração religiosa, o matrimónio, que fazem lembrar o vento forte, pouco a pouco o Espírito Santo faz da nossa vida a sua morada permanente e nós corremos o risco de nos habituarmos a esta presença sem grandes estímulos. É então o tempo de descobrirmos a brisa suave, é então que, como Elias, é preciso descobrir os sinais de Deus no nosso quotidiano, que não tem história. Agora, é sobretudo aí que o Pentecostes acontece e que Deus passa como uma brisa suave.
Espírito sempre presente
No Novo Testamento, a experiência primitiva do Espírito está ligada a manifestações extraordinárias: êxtase, falar em línguas (glossolália), etc. Lucas refere um certo número de passagens do Espírito Santo marcadas por estas manifestações extraordinárias (Act 4,31; 8, 15; 10, 44; 19,6). Mas, à medida que a comunidade amadurecia, e, por conseguinte, tinha consciência mais profunda daquele em quem acreditava, ia passando para o primeiro plano uma outra percepção da acção do Espírito Santo. As Cartas de S. Paulo dão testemunho desta caminhada. Os cristãos, a partir destas manifestações pontuais que muitas vezes aconteciam nas assembleias de culto, perceberam pouco a pouco que o Espírito vivia na Igreja de forma permanente e que a comunidade era, de facto, o seu tempo: ‘O Espírito Santo habita em vós’ dizia S. Paulo aos Romanos; ‘Deus permanece em vós, graças ao Espírito que Ele vos doou’ (I Jo 3,24).
Adélio Torres Neiva, Os Ventos do Espírito, Ed.LIAM 2010, pp. 36-38.
[Numa espécie de registo, deixo aqui uma refexão elaborada a 30 de março de 2020, num misto de receio e de expetativa, tendo em mente a pergunta: que quer Deus dizer-nos com tudo isto?]
Perdurará na minha memória a simbologia do Papa Francisco, na tarde de 27 de Março (6.ª feira, duas semanas antes da grande sexta-feira santa): um homem só percorreu a praça de São Pedro, no Vaticano, qual ‘bode expiatório’ (cf. Lv 16,1-23) desta Humanidade sofredora, diante de um Deus misericordioso e atento, embora, por muitos, ignorado, abandonado e desprezado. As suas palavras e gestos, o seu rosto macerado e triste, o seu silêncio contemplativo, creio que deixou a todos os crentes – muito para além do âmbito católico – uma mensagem, que deve ser descodifcada. * Vimos um Papa, já ancião, caminhando cambaleante sobre o lajedo gasto daquela centenária praça. Ali onde tantas vezes houve multidões, via-se, agora, um homem só. É verdade que somos parte de um grande conjunto de situações mas, na hora extrema, estaremos a sós connosco mesmos e com Deus. Cristo Jesus é o ‘cordeiro pasP. António Sílvio Couto

cal’, enquanto o Papa consubstancia a fgura do ‘bode expiatório’, muito para além do ‘servo de Iave’, que há de ressoar nas leituras da próxima semana santa. * O texto escutado e meditado colocou-nos perante a tribulação dos discípulos, na frágil barca, no contexto do lago de Tiberíades (cf. Mc 4,35-41): Jesus, o mestre, dorme e tem de ser acordado para que se evite o colapso de todos. Interpretando o fenómeno da tempestade – a da narrativa evangélica e esta que estamos ainda a viver – o Papa referiu: «A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfuas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de «empacotar» e esquecer o
que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente «salvadores», incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades. Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e fcou a descoberto, uma vez mais, aquela abençoada pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos». * Por diversas vezes o Papa Francisco repetiu – qual refrão da nossa condição terrena – ‘porque tendes medo ou estais medrosos?’ Explicando algumas das razões de tantos desses medos e apontando soluções: - Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa... Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. - Chama-nos a aproveitar este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. - Quantos pais, mães e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos! A oração e o serviço silencioso: são as nossas armas vencedoras. - Convidemos Jesus a subir para o barco da nossa vida. Confemos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio.
* O sinal profético do Papa Francisco faz- -nos olhar para o Alto – como ele fez diante da imagem de um crucifxo milagroso levado da igreja de São Marcelo al Corso e do ícone de Maria ‘Salus populi romani’, venerado na Basílica de Santa Maria Maior – numa atenção aos sinais divinos, pela leitura dos mistérios humanos. À semelhança de Jesus, diante do túmulo do seu amigo Lázaro, também nós choramos os que partem, alguns deles precocemente, mas olhamos para o testemunho dos nossos guias na fé, porque mais velhos e experimentados na vida, e confamos que Deus nos há de fazer passar desta tribulação…na paz. * Dias antes, a 25 de Março, já o bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, tinha feito a consagração de Portugal e Espanha ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria. Nesse ato emocionado foi rezado: - nesta singular hora de sofrimento, assiste a tua Igreja, inspira os governantes das nações, ouve os pobres e os afitos, exalta os humildes e os oprimidos, cura os doentes e os pecadores, levanta os abatidos e os desanimados, liberta os cativos e os prisioneiros e livra-nos da pandemia que nos atinge; - nesta singular hora de sofrimento, ampara as crianças, os anciãos e os mais vulneráveis, conforta os médicos, os enfermeiros, os profssionais de saúde e os voluntários cuidadores, fortalece as famílias e reforça- -nos na cidadania e na solidariedade, sê a luz dos moribundos, acolhe no teu reino os defuntos, afasta de nós todo o mal e livra- -nos da pandemia que nos atinge; - nesta singular hora de sofrimento, acolhe os que perecem, dá alento aos que a Ti se consagram e renova o universo e a humanidade. Queira Deus, pelo seu Espírito, guiar-nos e conduzir-nos nesta hora atribulada da nossa história comum.