História de Portugal

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SABERES E PRÁTICAS DE CIÊNCIA NO PORTUGAL DOS DESCOBRIMENTOS

nho ódio senão aos errores; nem tenho amor senão à verdade" — proclama Orta que, em outro passo dos Colóquios afirma: "Eu trabalhei de o saber e soube-o. Errar é dizer o que não é". Noutra passagem: "Não me contradigam textos de autores aquilo que eu vi com os meus olhos". Nesta atitude radica-se uma nova visão do mundo, e por ela, que antes de mais nada traduz uma mudança de mentalidade, passa a inovação, se não toda, pelo menos apreciável parte dela. É tempo de regressarmos ao Mar, e ao convívio de Veiga Simões e de Luís de Albuquerque. Ao Mar que foi, segundo suas vozes, o espaço de onde tudo partiu e a fonte primeva do nosso conhecimento e da nossa agregação comunitária. Este tipo de conhecimento, que conduziu do conhecimento empírico, desenvolveu-se na prática das navegações. No dealbar dos descobrimentos o conhecimento tradicional é formado por uma confluência de saberes, muitas vezes antagônicos, contraditórios sempre, mas que formam uma história intelectual, feita de idéias e de sensibilidades coletivas que definem uma visão do mundo. Visão essa que ganha sentido enquanto estrutura mental socialmente aceita, no seio da qual se formam as representações do mundo natural e do mundo das relações dos homens. Mais do que a visão, a consciência dessa mesma visão que, sendo indelevelmente marcada pelo tempo, dá historicidade à consciência, pois a noção de historicidade implica a consciência histórica da história. E é à volta da consciência histórica que se organizam os conjuntos múltiplos da visão do mundo. E foi no âmbito deste Lebenwelt que se criaram as formas de pensar e de imaginar o Mundo, tão características da cultura portuguesa na aurora dos tempos modernos. E este estar no Mundo e pensar nele foi o receptáculo de idéias, de livros, de escritas, de textos que vieram de fora e que foram lidos, refletidos, acima de tudo experienciados por esta cultura única do Mar e dos longes vistos dos cestos das gáveas. Uma última palavra para a formação da linguagem científica é uma outra questão interessante, e nela tiveram papel de relevo os textos de autores estrangeiros que entre nós circularam. Estes textos estiveram na origem do léxico científico da língua portuguesa. Difícil começo pois, como se sabe, estes discursos não primavam pela objetividade semântica. Em primeiro lugar uma exigência deste tipo era nula, e depois a conceptualização dos termos ainda não se tinha imposto como utensilagem necessária à estruturação da discursividade científica. E todavia estamos num momento de viragem em que as línguas vernáculas, ajudadas pela imprensa tipográfica, começam a veicular a informação dos saberes e, por toda a parte, vão rasgando o casulo do latim. Mas, como todos os elementos de resistência inerentes ao processo de transformação, também ele se acantona e persiste como forma privilegiada de transmissão dos saberes nas esfe-

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