Uma escola com valor(es)

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Biblioteca Escolar Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro Padre Alberto Neto


Uma escola com valor(es)

Título: Uma escola com valor(es). Colectânea de poesia inspirada no Padre Alberto Neto Pesquisa e selecção: Carlos Pinheiro Edição: Biblioteca Escolar 1.ª Edição, Janeiro de 2010 Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro Padre Alberto Neto Av. Pedro Nunes, 3 2635 – 317 RIO DE MOURO Email: netescola@netcabo.pt 1


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Índice CANTARES SANTOMENSES ....................................................................... 3 Caetano da Costa Alegre TROVA DO VENTO QUE PASSA .................................................................. 5 Manuel Alegre DE MÃOS DADAS .................................................................................. 0 Carlos Drummond de Andrade URGENTEMENTE .................................................................................. 0 Eugénio de Andrade OS DIREITOS DA CRIANÇA ....................................................................... 0 Matilde Rosa Araújo BONS AMIGOS ..................................................................................... 0 Machado de Assis A INDIFERENÇA.................................................................................... 0 Bertolt Brecht PAÍS NATAL ........................................................................................ 0 António Baticã Ferreira MÃE NEGRA...................................................................................... 18 Aguinaldo Fonseca À DESCOBERTA DO AMOR ..................................................................... 19 Mahatma Gandhi LÁGRIMA DE PRETA ............................................................................ 20 António Gedeão PRELÚDIO .......................................................................................... 0 Alda Lara PROFESSOR, DIZ-ME PORQUÊ? .................................................................. 0 Cecília Meireles A COR QUE SE TEM ............................................................................. 26 Maria Cândida Mendonça O MENINO DE SUA MÃE ........................................................................ 27 Fernando Pessoa CÂNTICO NEGRO ................................................................................ 29 José Régio SONETO DOS VENCIDOS........................................................................ 31 José Régio FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA ............................................. 0 José Saramago NEGRA.............................................................................................. 0 Noémia de Sousa O MENINO NEGRO .............................................................................. 35 Geraldo Bessa Victor

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Uma escola com valor(es) CANTARES SANTOMENSES Caetano da Costa Alegre

Branca a espuma e negra a rocha, Qual mais constante há-de ser, A espuma indo e voltando, A rocha sem se mexer? Não creias que em teu jazigo Alguém parta o coração, No mundo quem morre, morre, Quem cá fica come pão. Não me dizem quanto tempo Tenho ainda que viver,

Caetano da Costa Alegre [1864-1890] Caetano da Costa Alegre (26 de Abril de 1864- 18 de Abril de 1890) foi um poeta lusófono, nascido no seio de uma família crioula de cabo-verdiana, na então colónia portuguesa de São Tomé. Em 1882 se mudou-se para Portugal, e frequentou a faculdade de Medicina em Lisboa, para se formar como médico naval, porém morreu de tuberculose antes de poder cumprir tal objectivo. A sua obra, escrita em estilo romântico, popular na época, foi um êxito imediato pela forma como celebra suas origens africanas, a expressão de nostalgia do estilo de vida de São Tomé, e a descrição do sentimento de alienação em se encontrava sua raça.

Ficava ao menos sabendo Quando finda o meu sofrer. Se eu me casasse contigo, Fazia um voto de ferro, De deixar-te unicamente No dia do meu enterro. Todos me dizem: “esquece Essa paixão, que te abrasa”. Que serve fechar a porta Ao fogo que tenho em casa?

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Não havia tanta cara De asno, de tolo e pedante, Se falasse, quem censura, Com um espelho adiante. Brotam espinhos da rosa, O incêndio brota do lume. A traição brota das juras, Brota do amor o ciúme. Numa loja conhecida O que é cem custa duzentos, Levam dinheiro em fazendas E o tempo nos cumprimentos. Macaco, chamaste tolo Ao meu pequeno sagüi. Também queria que ouvisses O que ele disse de ti. Por teu desdém não me mato, Não faço tamanha asneira, Se o meu amor tu não queres, Há muita gente que o queira. Quem pode num campo vasto O joio apartar dos trigos? Quem conhece dentre os falsos Os verdadeiros amigos?

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Uma escola com valor(es) TROVA DO VENTO QUE PASSA

Manuel Alegre [1936-…]

Manuel Alegre

Pergunto ao vento que passa notícias do meu país e o vento cala a desgraça o vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz. Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz ao trevo de quatro folhas que morro por meu país. Pergunto à gente que passa

Manuel Alegre nasceu em Águeda em 1936. Frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde desde muito cedo se empenhou em lutas académicas e na resistência ao regime político da época. Enviado para Angola em 1961, incentivou uma revolta militar contra a guerra colonial, acabando por se exilar em Argel no verão de 1964. Durante o exílio, foi dirigente da FPLN e participou altivamente na Rádio Voz da Liberdade, tendo regressado a Portugal depois da revolução de 25 de Abril de 1974. A partir de então, dedicou-se à actividade política partidária, continuando, porém, a obra literária iniciada com o livro Praça da Canção (1965). Além da actividade literária, destacam-se, no plano político, os cargos exercidos como vice-presidente da Assembleia da República e membro do Conselho de Estado.

por que vai de olhos no chão. Silêncio – é tudo o que tem quem vive na servidão.

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Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome. Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome. E o vento não me diz nada só o silêncio persiste. Vi minha pátria parada à beira de um rio triste.

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Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo. E a noite cresce por dentro dos homens do meu país. Peço notícias ao vento e o vento nada me diz. Quatro folhas tem o trevo liberdade quatro sílabas. Não sabem ler é verdade aqueles pra quem eu escrevo. Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça há sempre alguém que semeia canções no vento que passa. Mesmo na noite mais triste em tempo de sevidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não.

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Uma escola com valor(es) DE MÃOS DADAS

Carlos Drummond de Andrade [1902-1987]

Carlos Drummond de Andrade

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos, Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens [presentes, a vida presente.

Nasceu em Minas Gerais, Brasil, numa cidade cuja memória viria a permear parte de sua obra, Itabira. Posteriormente, foi estudar em Belo Horizonte e Nova Friburgo com os Jesuítas no colégio Anchieta. Formado em farmácia, com Emílio Moura e outros companheiros, fundou "A Revista", para divulgar o modernismo no Brasil. Durante a maior parte da vida foi funcionário público, embora tenha começado a escrever cedo e prosseguido até seu falecimento, que se deu em 1987 no Rio de Janeiro, doze dias após a morte de sua única filha, a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade. Além de poesia, produziu livros infantis, contos e crónicas.

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Uma escola com valor(es) URGENTEMENTE

Eugénio de Andrade [1923-2005]

Eugénio de Andrade

É urgente o Amor, É urgente um barco no mar. É urgente destruir certas palavras ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros, e a luz impura até doer. É urgente o amor, É urgente permanecer.

Poeta português, nasceu em 19 de Janeiro de 1923 em Póvoa de Atalaia, Fundão, no seio de uma família de camponeses. A sua infância foi passada com a mãe, na sua aldeia natal. Mais tarde, prosseguindo os estudos, foi para Castelo Branco, Lisboa e Coimbra, onde residiu entre 1939 e 1945. Abandonou a ideia de um curso de Filosofia para se dedicar à poesia e à escrita, actividades pelas quais demonstrou desde cedo profundo interesse, O tema central da sua poesia é a figuração do Homem, não apenas do eu individual, integrado num colectivo, com o qual se harmoniza (terra, campo, natureza – lugar de encontro) ou luta (cidade – lugar de opressão, de conflito, de morte, contra os quais se levanta a escrita combativa). Faleceu a 13 de Junho de 2005, no Porto.

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Uma escola com valor(es) OS DIREITOS DA CRIANÇA Matilde Rosa Araújo

Matilde Rosa Araújo [1921-…]

A criança Toda a criança. Seja de que raça for Seja negra, branca, vermelha ou amarela, Seja rapariga ou rapaz. Fale a língua que falar, Acredite no que acreditar, Pense o que pensar, Tenha nascido seja onde for, Ela tem direito… …A ser para o homem a Razão primeira da sua luta. O homem vai proteger a criança Com leis, ternura, cuidados Que a tornem livre, feliz, Pois só é livre, feliz Quem pode deixar crescer Um corpo são, Quem pode deixar descobrir Livremente

Matilde Rosa Araújo nasceu em Lisboa em 1921. Licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letra da Universidade Clássica de Lisboa. Foi professora do Ensino Técnico Profissional em Lisboa e noutras cidades do País, assim como professora do primeiro Curso de Literatura para a Infância, que teve lugar na Escola do Magistério Primário de Lisboa. Autora de livros de contos e poesia para o mundo adulto e de mais de duas dezenas de livros de contos e poesia para crianças, a sua temática centra-se em torno de três grandes eixos de orientação: a infância dourada, a infância agredida e a infância como projecto. Tem-se dedicado, ao longo da sua vida, aos problemas da criança e à defesa dos seus direitos.

O coração E o pensamento. Este nascer e crescer e viver assim Chama-se dignidade. E em dignidade vamos Querer que a criança Nasça 10


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Cresça, Viva… E a criança nasce E deve ter um nome Que seja o sinal dessa dignidade. Ao sol chamamos Sol E à vida chamamos Vida Uma criança terá o seu nome também. E ela nasce numa terra determinada Que a deve proteger. Chamemos-lhe Pátria a essa aterra, Mas chamemos-lhe antes Mundo… …E nesse mundo ela vai crescer: Já a sua mãe teve o direito A toda a assistência que assegura um nascer perfeito. E, depois, a criança nascida, Depois da hora radial do parto, A criança deverá receber Amor, Alimentação Casa, Cuidados médicos, O amor sereno de mãe e pai. Rir, Brincar, Crescer, Aprender a ser feliz…

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…Mas há crianças que nascem diferentes E tudo devemos fazer para que isto não aconteça. Vamos dar a essas crianças um amor maior ainda. E a criança nasceu E a desabrochar como Uma flor Uma árvore, Um pássaro, E Uma flor, Uma árvore, Um pássaro Precisam de amor – a seiva da terra, a luz do sol. De quanto amor a criança não precisará? De quanto amor a criança não precisara? De quanta segurança? Os pais e todo o mundo que rodeia a criança Vão participar na aventura De uma vida que nasceu. Maravilhosa aventura! Mas se a criança não tem família? Ela tê-la-á sempre: numa sociedade justa Todos serão sua família. Nunca mais haverá uma criança só Infância nunca será solidão. E a criança vai aprender a crescer. Todos temos de ajudar! Todos! Os pais, a escola, todos nós! 12


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E vamos ajudá-la a descobrir-se a si própria E aos outros. Descobrir o seu mundo, A sua força, O seu amor, Ela vai aprender a viver Com ela própria E com os outros: Vai aprender a fraternidade, A fazer fraternidade Isto chama-se educar: Saber isto é aprender a ensinar. Em situação de perigo A criança, mais do que nunca, Está sempre em primeiro lugar… Será o sol que não se apaga Com o nosso medo, Com a nossa indiferença: A criança apaga, por si só, Medo e indiferença das nossas frontes… A criança é um mundo Precioso Raro Que ninguém a roube, A negoceie, A explore Sob qualquer pretexto. Que ninguém se aproveite Do trabalho da criança 13


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Para seu próprio proveito. São livres e frágeis as suas mãos, Hoje: Se as não magoarmos Elas poderão continuar Livres E ser a força do mundo Mesmo que frágeis continuem… A criança deve ser respeitada Em suma, Na dignidade do seu nascer, Do seu crescer, Sado seu viver. Quem amar verdadeiramente a criança Não poder Á deixar de ser fraterno: Uma criança não conhece fronteiras, Nem raças Nem classes sociais: Ela é o sinal mais vivo do amor, Embora, por vezes, nos possa parecer cruel. Frágil e forte, ao mesmo tempo, Ela é sempre a mão da própria vida Que se nos estende, nos segura E nos diz: Sê digno de viver! Olha em frente!

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Uma escola com valor(es) BONS AMIGOS

Machado de Assis [1839-1908]

Machado de Assis

Abençoados os que possuem amigos, os que os têm [sem pedir. Porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende. Amigo a gente sente! Benditos os que sofrem por amigos, os que falam com [o olhar. Porque amigo não se cala, não questiona, nem se rende. Amigo a gente entende! Benditos os que guardam amigos, os que entregam o [ombro pra chorar. Porque amigo sofre e chora. Amigo não tem hora pra consolar! Benditos sejam os amigos que acreditam na tua verdade

Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de Junho de 1839 — Rio de Janeiro, 29 de Setembro de 1908) foi um poeta, romancista, dramaturgo, contista, jornalista, cronista e teatrólogo brasileiro, considerado como o maior nome da literatura brasileira pela maior parte dos estudiosos da área. A sua extensa obra é constituída por nove romances e nove peças teatrais, 200 contos, cinco colectâneas de poemas e sonetos, e mais de 600 crónicas.

[ou te apontam a realidade. Porque amigo é a direcção. Amigo é a base quando falta o chão! Benditos sejam todos os amigos de raízes, verdadeiros. Porque amigos são herdeiros da real sagacidade. Ter amigos é a melhor cumplicidade! Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinhos, Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!

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Uma escola com valor(es) A INDIFERENÇA Bertolt Brecht

Bertolt Brecht [1898-1956]

Primeiro levaram os comunistas, Mas eu não me importei Porque não era nada comigo. Em seguida levaram alguns operários, Mas a mim não me afectou Porque eu não sou operário. Depois prenderam os sindicalistas, Mas eu não me incomodei Porque nunca fui sindicalista. Logo a seguir chegou a vez De alguns padres, mas como Nunca fui religioso, também não liguei. Agora levaram-me a mim E quando percebi, Já era tarde.

Eugen Berthold Friedrich Brecht (Augsburg, 10 de Fevereiro de 1898 — Berlim, 14 de Agosto de 1956) foi um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Os seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemble realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955.

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Uma escola com valor(es) PAÍS NATAL António Baticã Ferreira

António Baticã Ferreira [1939- _]

Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração, Em espírito demando o meu país natal, E lembro aquela floresta africana, Cheia de caça e de verdura; Lembro as suas imensas árvores gigantes, A folhagem verde ou amarela Que nos perfuma. Revejo a minha infância, Toda cheia de alegrias: Eu corria pelo mato, Espiava os animais selvagens, Sem medo; E olhava os lavradores nos campos, E, no mar, os pescadores, Que lutavam contra o vento, para agarrar o peixe,

António Baticã Ferreira nasceu em Canchungo, Guiné-Bissau, em 1939. Frequentou o liceu em Paris e formou-se em Medicina, na Suíça. Exerceu a profissão de médico no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Colaborou com poemas seus em diversas publicações francesas: La Tribune Internacional des Poètes, L\'Afrique Nouvelle e La Croix e portuguesas: Poesia & Ficção, Diário Popular e Debate.

E que eu, atento, seguia com o olhar: Como gostava de os ver no oceano Domar as vagas, que lhes queriam virar as barcas! (Ah!, bem me lembro, bem me lembro do meu pais natal!)

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Uma escola com valor(es) MÃE NEGRA

Aguinaldo Fonseca

Aguinaldo Fonseca

A mãe negra embala o filho. Canta a remota canção Que seus avós já cantavam Em noites sem madrugada. Canta, canta para o céu Tão estrelado e festivo. É para o céu que ela canta, Que o céu Às vezes também é negro.

Aguinaldo Fonseca é um poeta cabo-verdiano nascido em 1922. A novidade de Aguinaldo Fonseca está em ter sido ele o primeiro a utilizar a «África» como substância poética cabo-verdiana. Um dos seus poemas mais conhecidos e divulgados é «Mãe Negra».

No céu Tão estrelado e festivo Não há branco, não há preto, Não há vermelho e amarelo. - Todos são anjos e santos Guardados por mãos divinas. A mãe negra não tem casa Nem carinhos de ninguém... A mãe negra é triste, triste, E tem um filho nos braços... Mas olha o céu estrelado E de repente sorri. Parece-lhe que cada estrela É uma mão acenando Com simpatia e saudade... 18


Uma escola com valor(es) À DESCOBERTA DO AMOR Mahatma Gandhi

Mahatma Gandhi [1869-1948]

Ensaia um sorriso e oferece-o a quem não teve nenhum. Agarra um raio de sol e desprende-o onde houver noite. Descobre uma nascente e nela limpa quem vive na lama. Toma uma lágrima e pousa-a em quem nunca chorou. Ganha coragem e dá-a a quem não sabe lutar. Inventa a vida e conta-a a quem nada compreende. Enche-te de esperança e vive á sua luz. Enriquece-te de bondade e oferece-a a quem não sabe dar. Vive com amor e fá-lo conhecer ao Mundo.

Mohandas Karamchand Gandhi (Devanagari mais conhecido popularmente por Mahatma Gandhi ("Mahatma", do sânscrito "A Grande Alma") (Porbandar, 2 de Outubro de 1869 — Nova Deli, 30 de Janeiro de 1948) foi um dos idealizadores e fundadores do moderno estado indiano e um influente defensor do Satyagraha (princípio da nãoagressão, forma não-violenta de protesto) como um meio de revolução. O seu exemplo e as suas teses pacifistas têm um enorme sucesso em todo o mundo.

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Uma escola com valor(es) LÁGRIMA DE PRETA António Gedeão

António Gedeão [1906-1997]

Lágrima de preta Encontrei uma preta que estava a chorar, pedi-lhe uma lágrima para a analisar. Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado. Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente. Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais. Ensaiei a frio, experimentei ao lume,

António Gedeão, pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, nasceu e faleceu em Lisboa. Além de poeta, foi professor de Ciências FísicoQuímicas, poeta, investigador, historiador, escritor, fotógrafo, pintor e ilustrador, aliando a ciência à literatura. Obras poéticas: Movimento Perpétuo (1956), Teatro do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Poema para Galileu (1964), Linhas de Força (1967), Poesias Completas (1975), Poemas Póstumos (1983), Novos Poemas Póstumos (1990). Ficção: A Poltrona e Outras Novelas (1973). Teatro: RTX 78/24 (1963). Estudos: História da Fundação do Colégio Real dos Nobres (1959).

de todas as vezes deu-me o que é costume:

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nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.

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Uma escola com valor(es) PRELÚDIO Alda Lara

Alda Lara [1930-1962]

Pela estrada desce a noite Mãe-Negra, desce com ela... Nem buganvílias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guisos, nas suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas. Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro... Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada... Que é feito desses meninos

Alda Lara, seu nome completo, Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque, nasceu em Benguela, Angola, a 9 de Junho de 1930 e faleceu em Cambambe a 30 de Janeiro de 1962. Era casada com o escritor Orlando Albuquerque. Ainda muito nova vai para Lisboa onde concluiu o 7.º ano do Liceu. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, licenciando-se por esta última. Em Lisboa esteve ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes do Império. Declamadora, chamou a atenção para os poetas africanos. Depois da sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira, actual Lubango, instituiu o Prémio Alda Lara para poesia. Orlando Albuquerque propôs-se editar-lhe postumamente toda a obra, tendo reunido e publicado um volume de poesias e um caderno de contos.

que gostava de embalar?... Que é feito desses meninos que ela ajudou a criar?... Quem ouve agora as histórias que costumava contar?... Mãe-Negra não sabe nada...

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Mas ai de quem sabe tudo, como eu sei tudo Mãe-Negra!... Os teus meninos cresceram, e esqueceram as histórias que costumavas contar... Muitos partiram p'ra longe, quem sabe se hão-de voltar!... Só tu ficaste esperando, mãos cruzadas no regaço, bem quieta bem calada. É a tua a voz deste vento, desta saudade descendo, de mansinho pela estrada.

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Uma escola com valor(es) PROFESSOR, DIZ­ME PORQUÊ? Cecília Meireles

Cecília Meireles [1901-1964]

Professor diz-me porquê? Por que roda o meu pião? Ele não tem roda e roda, gira, rodopia e cai morto no chão... Tenho nove anos, professor e há tanto mistério à minha roda que eu queria desvendar Por que é que o carro é azul? Por que é que marulha o mar? Porquê? Tantos porquês que eu... eu queria saber! E tu que não me queres responder! Tu falas, falas professor daquilo que te interessa. Tu obrigas-me a ouvir quando eu quero falar, se eu vou descobrir

Cecília Benevides de Carvalho Meireles, poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira, nasceu no Rio de Janeiro no 7 de Novembro de 1901, descendente de portugueses. Casou-se, em 1922, com o pintor português Fernando Correia Dias, com quem tem três filhas. Faleceu no Rio de Janeiro no dia 9 de Novembro de 1964, sendo-lhe prestadas grandes homenagens públicas. Na opinião do crítico Paulo Rónai poesia de Cecília Meireles «é uma das mais puras, belas e válidas manifestações da literatura contemporânea».

faz-me decorar! É a luta professor a luta em vez do amor.... mas, enquanto tua voz zangada ralha tu sabes, professor, eu fecho-me por dentro, 24


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faço uma cara resignada e finjo que não penso em nada, mas penso... Penso em como era engraçada aquela rã que esta manhã ouvi coaxar... Que graça que tinha aquela andorinha que ontem à tarde vi passar. E quando tu podei vens definir o que são conjuntos e preposições, quando me fazes repetir que os corações tem duas aurículas e dois ventrículos e tantas tantas mais definições... Meu coração, o meu coração Que não sei como é feito E nem quero saber... Cresce dentro do peito A querer saltar pra fora, professor E ver se tu assim compreenderias E me farias mais belos os dias!

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Uma escola com valor(es) A COR QUE SE TEM Maria Cândida Mendonça

Quando for crescida hei-de inventar um perfume de encantar. Quem o cheirar há-de ficar com cor de pele que mais gostar. Branco ou amarelo se preferir preto ou vermelho é só decidir. Para alegrar até estou a pensar outras cores acrescentar. Cor de rosa verde ou lilás são cores bonitas e tanto faz. E assim há-de chegar o dia de acreditar que o valor de alguém não se pode avaliar pela cor que tem e então tudo estará bem.

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Uma escola com valor(es) O MENINO DE SUA MÃE Fernando Pessoa

Fernando Pessoa [1888-1935]

No plaino abandonado Que a morna brisa aquece, De balas trespassado Duas, de lado a lado, Jaz morto, e arrefece Raia-lhe a farda o sangue De braços estendidos, Alvo, louro, exangue, Fita com olhar langue E cego os céus perdidos Tão jovem! Que jovem era! (agora que idade tem?) Filho único, a mãe lhe dera Um nome e o mantivera: “O menino de sua mãe”. Caiu-lhe da algibeira A cigarreira breve Dera-lha a mãe. Está inteira a cigarreira. Ele é que já não serve. De outra algibeira, alada Ponta a roçar o solo,

E um considerado um dos maiores poetas portugueses de sempre e autor de intensa actividade literária. Em 1915, com Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e outros, esforçouse por renovar a literatura portuguesa através da criação da revista Orpheu, veículo de novas ideias e novas estéticas. Devido à sua capacidade de criar novos «eus» desdobrou-se por vários heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares, etc.), assinando as suas obras de acordo com a personalidade de cada heterónimo. Colaborou em várias revistas, publicou em livro os seus poemas escritos em inglês e, em 1934, ganhou o concurso literário promovido pelo SPN, com a obra Mensagem.

A brancura embainhada De um lenço … deu-lho a criada Velha que o trouxe ao colo. 27


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Lá longe, em casa, há a prece: “Que volte cedo, e bem!” (Malhas que o Império tece”) Jaz morto, e apodrece, O menino de sua mãe.

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Uma escola com valor(es) CÂNTICO NEGRO José Régio

José Régio [1901-1969]

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões fundou, em 1927, a revista Presença (cujo primeiro número saiu a 10 de Março, vindo a publicar-se, embora sem regularidade, durante treze anos), que marcou o segundo modernismo português e de que Régio foi o principal impulsionador e ideólogo. Como escritor, José Régio dedicou-se ao romance, ao teatro, à poesia e ao ensaio. Centrais, na sua obra, são as problemáticas do conflito entre Deus e o Homem, o indivíduo e a sociedade, numa análise crítica das relações humanas e da solidão, do dilaceramento interior perante a relação entre o espírito e a carne e a ânsia humana do absoluto. É considerado, por alguns, como um dos vultos mais significativos da moderna literatura portuguesa. Recebeu, postumamente, em 1970, o Prémio Nacional de Poesia, pelo conjunto da sua obra poética. As suas casas de Vila do Conde e de Portalegre são hoje museus.

Para eu derrubar os meus obstáculos?... 29


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Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Sei que não vou por aí!

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Uma escola com valor(es) SONETO DOS VENCIDOS José Régio

Quando subi a serra, alguns troçaram, Enquanto a multidão, em volta, ria... E troças e risadas arranharam Tudo o que em mim sentia e se doía. Todos os mais, depois, me detestaram, Por eu não ser igual à maioria. E, fortes, contra um, cem abusaram, Enquanto a multidão, em volta, ria. Fartar, vilões, que estou cansado! Eis-me – Ecce-Homo! – Nu, prostrado e atado. Podeis lançar-me à cara os vossos lodos! Mas eu, quanto mais sofro mais me prezo: Só o meu orgulho iguala o meu desprezo... E vingo-me em ter pena de vós todos

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Uma escola com valor(es) FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA José Saramago

José Saramago [1922- ]

Aqui, na terra, a fome continua, A miséria, o luto, e outra vez a fome. Acendemos cigarros em fogos de napalme E dizemos amor sem saber o que seja. Mas fizemos de ti a prova da riqueza Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez, E pusemos em ti nem eu sei que desejo De mais alto que nós, e melhor, e mais puro. No jornal soletramos, de olhos tensos, Maravilhas de espaço e de vertigem: Salgados oceanos que circundam Ilhas mortas de sede, onde não chove. Mas o mundo, astronauta, é boa mesa (E as bombas de napalme são brinquedos), Onde come, brincando, só a fome,

José Saramago nasceu na Azinhaga, concelho da Golegã. Trabalhou como jornalista em vários jornais, entre eles o Diário de Notícias, de que foi director. Actualmente vive na ilha de Lanzarote, arquipélago das Canárias. É um dos escritores portugueses mais lidos e traduzidos no estrangeiro. Em 1991 ganhou o Grande Prémio APE, com o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, e o Prémio Camões em 1996 por toda a obra. Em 1998 ganhou o Prémio Nobel da Literatura.

Só a fome, astronauta, só a fome.

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Uma escola com valor(es) NEGRA Noémia de Sousa

Noémia de Sousa [1926-2002]

Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos quiseram cantar teus encantos para elas só de mistérios profundos, de delírios e feitiçarias... Teus encantos profundos de Africa. Mas não puderam. Em seus formais e rendilhados cantos, ausentes de emoção e sinceridade, quedas-te longínqua, inatingível, virgem de contactos mais fundos. E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual, jarra etrusca, exotismo tropical, demência, atracção, crueldade, animalidade, magia... e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias. Em seus formais cantos rendilhados foste tudo, negra...

Escritora moçambicana, Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares nasceu a 20 de Setembro de 1926, em Lourenço Marques (hoje Maputo), Moçambique, e faleceu a 4 de Dezembro de 2002, em Cascais, Portugal. Poetiza que, numa espécie de postura predestinada, desembaraçando-se das normas tradicionais europeias, de 1949 a 1952 escreve dezenas de poemas, estando muitos deles dispersos pela imprensa moçambicana e estrangeira. A sua poesia desde muito cedo se mostrou "cheia" da "certeza radiosa" de uma esperança, a esperança dos humilhados, que é sempre a da sua libertação. Toda a sua produção é marcada pela presença constante das raízes profundamente africanas, abrindo os caminhos da exaltação da Mãe-África, da glorificação dos valores africanos, do protesto e da denúncia.

menos tu. E ainda bem. Ainda bem que nos deixaram a nós, do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma, sofrimento, a glória única e sentida de te cantar com emoção verdadeira e radical, 33


Uma escola com valor(es)

a glテウria comovida de te cantar, toda amassada, moldada, vazada nesta sテュlaba imensa e luminosa: Mテウ

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Uma escola com valor(es) O MENINO NEGRO Geraldo Bessa Victor

Geraldo Bessa Victor [1917-1990]

O menino negro não entrou na roda das crianças brancas - as crianças brancas que brincavam todas numa roda viva de canções festivas, gargalhadas francas... O menino negro não entrou na roda. E chegou o vento junto das crianças - e bailou com elas e cantou com elas as canções e danças das suaves brisas, as canções e danças das brutais procelas. O menino negro não entrou na roda. Pássaros, em bando, voaram chilreando sobre as cabecinhas lindas dos meninos e pousaram todos em redor. Por fim, bailaram seus voos, cantando seus hinos ...

Geraldo Bessa Victor, poeta e contista, nasceu em 1917 em Luanda e faleceu no ano de 1990, Lisboa, sua segunda Pátria. É autor dos livros “Ecos dispersos”, 1941; “Ao som das marimbas”, 1943; “Debaixo do céu”, 1949, “A restauração de Angola”, 1951; “Cubata abandonada”, 1958, “Mucanda”, 1964; “Monandengue”, 1973. Para Manuel Bandeira que prefaciou o livro “Cubata abandonada” (1958), sem qualquer dúvida, considera que: “Geraldo Bessa Victor recolheu o melhor das mais autênticas vozes de África. Vozes que ele terá ouvido junto às Pedras Negras de Pungo Andongo, conversando com os ventos, os montes, os rios, as velhas mulembas, que lhe falavam de histórias do Quinjango e da Rainha Ginga.”.

O menino negro não entrou na roda. "Venha cá, pretinho, venha cá brincar" - disse um dos meninos com seu ar feliz. A mamã, zelosa, logo fez reparo; o menino branco já não quis, não quis ... o menino negro não entrou na roda. O menino negro não entrou na roda das crianças brancas. Desolado, absorto, ficou só, parado com olhar cego, ficou só, calado com voz de morto. 35


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