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O reconhecimento do caráter profético dessa missão

O reconhecimento do caráter profético dessa missão

Já contei uma conversa que tive certa vez com D. Mayer, ainda antes de mamãe morrer. Ela estava de cama, e D. Mayer e eu tomávamos refeição em minha casa da rua Alagoas. Durante a sobremesa, numa conversa muito íntima – lembro-me até do jeito dele, mexendo uma xicarazinha de café – os senhores sabem que mexer uma xícara de café é um gesto altamente pensativo – ele escorregou o seguinte: – Compreendo bem a posição do Grupo na atual situação da Igreja, mas não vejo bem como será o Grupo numa situação normalizada da Igreja. Diante de uma hierarquia que cumpra a sua missão, o Grupo não terá razão de ser. E não sei qual será a posição do Grupo nessa situação.

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Respondi a ele: – D. Mayer, entendo a posição do Grupo da maneira seguinte, numa situação normalizada da Igreja. O Grupo nunca deverá pertencer à Igreja docente, ele permanecerá sempre na Igreja discente, é discípulo e súdito. O grupo nunca terá o governo de um Estado, o papel dele é de ser súdito dos reis, dos imperadores, dos senhores que nascerem da ordem histórica criada no Reino de Maria. Mas entendo que o grupo terá a missão, a título de opinião privada, de enunciar, em matéria de Revolução, qual é a doutrina verdadeira e qual é a doutrina falsa; quais os rumos que devem ser seguidos para combater a doutrina falsa, para assim fazer triunfar a verdadeira e modelar todo o espírito da humanidade de acordo com a posição contra-revolucionária, e para atingir a luta contra a Revolução.

E ainda afirmei: – Um Papa pode não seguir o conselho, é o direito dele; um imperador pode não seguir o conselho, é o direito dele. Mas ai daquele que não siga, porque derruba o Reino de Maria e fica com as mãos maculadas com esse crime. O que é que V. Excia. acha deste modo de ver?”

Ele, sempre mexendo a xícara, e olhando-me fixamente numa posição de cabeça um pouco inclinada, me disse: – Esta era a posição dos profetas no Antigo Testamento. O profeta devia guiar o rei e os sacerdotes, mas sem jurisdição. É um guia, é alguém que exprime a vontade divina aos reis e aos sacerdotes, e os que não seguiram foram punidos. Mas ele não era rei nem sacerdote. É isso que você entende?

Depois ele acrescentou: “Prever o futuro era uma tarefa secundária do profeta, não era a tarefa principal. A principal missão do profeta era conhecer as vias de Deus e indicá-las ao povo, ao povo eleito”.

Eu então disse: “D. Mayer, essa conversa tomou uma gravidade que não permite mais que ela seja uma conversa entre Plinio e D. Mayer, ela

é uma conversa agora de um fiel com um bispo da Igreja Católica. Pelo amor de Deus, eu lhe peço que me diga se a nossa posição no Novo Testamento é heterodoxa”.

D. Mayer me respondeu: “Não, ela é inteiramente ortodoxa, isto pode existir assim no Novo Testamento”.

Eu disse: “Bem, então V. Excia. tem aqui a ideia do que o Grupo julga ser”. Ele ficou quieto e mudou-se de assunto308 . *

308 EXT 13/04/69 – A interpretação de Dom Mayer coincide inteiramente com o que ensina o Cardeal Charles Journet, um dos maiores teólogos do século XX, a respeito do profetismo no Novo Testamento, em sua obra “A Igreja do Verbo Encarnado”: “A Igreja não conhece apenas o depósito revelado, ela é também esclarecida sobre o estado do mundo e sobre o movimento dos espíritos. Os mais lúcidos de seus filhos participarão desta sua miraculosa penetração. Eles saberão discernir, à luz divina, os sentimentos profundos de sua época, eles saberão diagnosticar os verdadeiros males e prescrever os verdadeiros remédios. Enquanto a massa parecerá atingida pela cegueira, enquanto até os melhores hesitarão ou tatearão, eles, com um instinto sobrenatural e infalível, irão direto ao alvo. O recuo dos séculos manifestará a justeza de sua visão. “Santo Atanásio ou São Cirilo, Santo Agostinho ou São Bento, Gregório VII, Francisco de Assis, Domingos, viam numa espécie de clarão profético a marcha dos tempos e a orientação que era preciso dar às almas. O autor da Cidade de Deus, o contemplativo que fundou, há oitocentos anos, a regra sempre viva dos cartuxos, São Tomás, que elucidou, três séculos antes da Reforma, as verdades que iam ser mais contestadas no limiar dos tempos novos, Joana d’Arc, Teresa de Ávila, eis os verdadeiros profetas da Igreja.

Eram ao mesmo tempo santos, e é verdade que a profecia é distinta e mesmo separável da santidade. Mas quando é autêntica, ela se encaixa sempre no sulco da revelação apostólica; e como o poder do mestre sustenta e guia o esforço dos discípulos, as profecias autênticas são sustentadas e guiadas pela revelação de Cristo e dos apóstolos. ‘Em nenhuma época - diz São Tomás - faltaram homens dotados do espírito de profecia, não certamente para trazer qualquer nova doutrina da fé, ad novam doctrinam fidei depromendam, mas para dirigir os atos humanos, ad humanorum actuum directionem’ (II-II, 174, 6 ad 3). Os profetas que se afastam desta linha são falsos profetas” (“L’Église du

Verbe Incarné”, Desclée de Brouwer, Paris, 1962, 3ª ed., vol. I, pp. 173 a 175). E, em nota, o Cardeal Journet cita mais duas vezes São Tomás: “Os antigos profetas - diz São Tomás - eram enviados para estabelecer a fé e restaurar os costumes. (...) Hoje, a fé já está fundada, porque as promessas foram cumpridas por

Cristo. Mas a profecia que tem por fim restaurar os costumes não cessa nem cessará” (Comm. in Math., cap. XI). “Ele (São Tomás) explica, aliás, que as profecias que nos revelaram o depósito da fé divina se diversificam à medida que se tornam mais explícitas com o progresso do tempo; mas as profecias que têm por fim dirigir a conduta dos homens deverão se diversificar segundo as circunstâncias, porque o povo se dissipa quando cessa a profecia: ‘Por isto, em cada época, os homens foram instruídos divinamente a respeito do que convinha fazer, segundo exigia a salvação dos eleitos’ (II-II, 174, 6)” (Op. cit., pp. 174-175).

Então, pergunta-se: no que consiste este profetismo?

Não consiste em ter revelação. Nunca tive uma revelação como os profetas do Antigo Testamento, do gênero abre este teto e aparece Jeová na sua glória. Isto nunca aconteceu, nunca, nunca, nunca. Nunca tive nada que fosse uma revelação, que fosse uma visão, nem nada.

O que é então esse profetismo? Não me farto de dizer: é uma preocupação contínua em ser filho obediente da Igreja Católica, em ser inteiramente ortodoxo; em seguir a doutrina verdadeira – sem tapeação; falsificação, não! – da Igreja tradicional, a Igreja verdadeira; em ter uma disciplina e uma obediência amorosa, entusiasta, incondicional, ilimitada a Ela.

Depois, uma preocupação em ser fiel na aplicação dos princípios da Igreja ao curso da História, em um estudo da História feito com espírito católico, quer dizer, tomando em consideração o que a Igreja nos ensina sobre a História e em ver tudo o mais que os senhores sabem: a luta entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro, os anjos bons e os anjos ruins, a estirpe de Nossa Senhora e a estirpe da serpente, a conjuração anticristã.

Aplicados todos estes princípios, decorrem daí normas de ação, estilos de ação, sistemas de previsão racional do futuro, desde que se entenda como racional um racional baseado na fé. Não é um racional que faz abstração da fé, um racional racionalista, portanto, mas um racional baseado na fé.

É por esta forma que, com auxílio de Nossa Senhora, temos podido, graças a Deus, conduzir as coisas tal como as temos conduzido até o momento. O profetismo é isto.

Os senhores dirão: mas não entra um auxílio especial de Nossa Senhora?

Acredito que sim. Não julgo possível ter previsto tanto309, ter acertado tanto com simples recursos de um só homem, ainda que esse homem fosse notável. Não acho que isto fosse possível.

Mas este auxílio de Nossa Senhora, que reconheço reverente e agradecido, esse auxílio nunca me foi dado de um modo extraordinário, de um modo que não fosse apenas o auxílio d’Ela para ajudar a firmeza do meu raciocínio com base na fé, para me ajudar a ter a disciplina para com a Igreja Católica que quero ter e desejo ter310 .

Tenho certeza de que eu faria um papel de presunçoso, e mentiria diante de Nossa Senhora, se dissesse que a ortodoxia do Grupo é o resultado da força de inteligência que temos, e não se deve a um auxílio sobrena-

309 A respeito das previsões feitas por Dr Plinio e posteriormente confirmadas pelos fatos, ver Gonzalo Larrain Campbell, “Plinio Corrêa de Oliveira – Previsões e denúncias em defesa da civilização cristã”, Artpress, 2001, São Paulo, e Roberto de Mattei, “Plinio

Corrêa de Oliveira, profeta do Reino de Maria” (Ed. Petrus, 2015). 310 EXT 30/12/71.

tural especial da graça. Eu mentiria. Acho que isto não só tem uma causa sobrenatural, mas é uma graça assinalada, uma graça especial. Essa graça evidentemente existe em função da desolação em que a Igreja caiu, existe para servir de guia nesta situação de desolação, e é uma graça que tem uma ligação com o profetismo, com o carisma profético.

Creio que apenas Nossa Senhora me deu, de modo eminente, uma certa graça de sabedoria pela qual, de um modo intelectivo, sempre tive uma concepção arquitetônica do universo, e pelo favor d’Ela, de um quilate muito límpido, muito radical, muito bom. Mas as coisas me vêm na mente à maneira de uma aplicação da inteligência, e não me vêm à maneira de uma revelação.

Volto a insistir com os senhores, por lealdade: não imaginem que eu tenha revelações. Nunca tive uma revelação, nunca na minha pobre cabeça se deu algo parecido com o estralo de Vieira, ou seja, uma interferência da graça pela qual, de repente, a minha inteligência obtusa viu aquilo que não via. Não pensem, portanto, que isto se dá. Se os senhores ficarem desapontados, tanto pior, mas não posso mentir: isto não se dá comigo, e não tenham a menor ilusão a esse respeito. *

Onde noto uma ação desse carisma mais clara é no discernimento dos espíritos. Não é normal que uma pessoa leve o discernimento dos espíritos, ao conhecimento das psicologias, ao conhecimento do bom espírito e do mau espírito das pessoas, e do que está se passando com o interlocutor quando falo com ele, ao ponto em que me é dado levar311 .

311 RE 13/04/69.

130 MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL

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