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O combate ao orgulho

“A alma de todo apostolado” foi para mim o tiro de misericórdia. Porque Dom Chautard punha em expressos termos o princípio de que o apostolado só será fecundo na medida em que eu seja santo. São Paulo diz: “É como um sino de bronze que toca”. Tocou, tocou, aquilo passou, não é como uma alma que converte o outro. E eu queria converter os outros.

Eu disse: “Agora a coisa está no forno e não quero dedicar a minha vida senão ao apostolado; primeiro ponto. Segundo ponto: para isto, ou resolvo ser santo ou meu apostolado é inútil. Terceiro ponto: Logo, ou eu sou um palhaço, ou fico santo, não tem por onde escapar”.

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Vocês veem que não tinha por onde escapar119 .

O combate ao orgulho

Evidentemente tive, como todo o mundo, muita luta contra o amorpróprio. Eu não tenho vergonha de dizer isto, porque é manifesto que fui concebido no pecado original e se não tiver vigilância contra o amor-próprio até o último instante de minha vida, eu caio nele. É como a lei da gravidade, não tem conversa. Se alguém disser que não precisa vigiar contra o amor-próprio, o senhor diga: “Esse já caiu”. Porque já é por amor-próprio que ele diz que não é preciso vigiar contra o amor-próprio120 . *

A batalha do orgulho se apresentou da seguinte maneira.

Percebia que Nossa Senhora me tinha dado determinados dotes naturais, por exemplo, de inteligência. Percebia que esses dotes me colocavam bem acima daqueles com quem eu tratava, e que no ambiente não haveria, praticamente, limitações para minha ambição.

O orgulho se apresentava de um modo coleante, porque percebia que, a esses dotes naturais, a inocência acrescentava muita coisa, e que minha condição de católico acrescentava muita outra coisa que multiplicava minha inteligência pela inteligência. E eu prezava o enobrecimento que isto trazia121 .

Lembro-me de que sentia em mim pano para manga para coisas muito grandes, e tinha aspiração dessas coisas grandes. E a Fraülein Mathilde, no modo de tocar as coisas, e de falar, e a literatura alemã que ela punha

119 Chá SRM 24/04/88 120 RE 1/5/72 121 CSN 22/1/83

na minha mão, me levava a pensar que algum dia eu poderia ser um Held, um herói.

A palavra held se reveste de um lumen e de uma tônica, de uma coisa que me encanta! E a ideia de que – eu não sabia bem por que – eu seria um dia um Held na força do termo, fez-me muito bem. E essa esperança ajudou a me tirar da moleza, que era em mim supina. Foi a esperança disso, da beleza, do fascínio disso, do desdém que sentia da minha própria moleza, que me ajudou. E tenho certeza de que era uma ação da graça. Mas em determinado momento vi que era preciso, tanto quanto possível, ser Held, mas sem pensar demais na batalha122 . *

Prezava muito também a condição social a que eu pertencia. E sabia muito bem de que famílias eu era, sentia quanto isso me dignificava e quanto isto representava um valor que morava em mim e fazia um só comigo. Prezava muito isto.

Em si, prezar essas coisas não é orgulho. Mas fica a um milímetro do orgulho, porque desperta um apego exagerado que já não é por amor de Deus, mas é por amor de si mesmo. Além do mais, desperta com facilidade uma vontade de desprezar os outros, de tirar partido dos outros, de abusar porque eles são menos. E uma vontade de fazer da vida apenas um corre-corre atrás das primeiras posições. E aqui está o orgulho.

O comprazimento que a pessoa tem em si por sentir essas coisas é um comprazimento egoístico e que, como disse, já não toca ao amor de Deus.

E eu emergia completamente dentro disso, sem saber bem fazer a distinção.

Depois, como estava posto na batalha contra a sensualidade, tinha a ideia de que, vencida essa batalha, todo o resto nem era pecado, não tinha importância. Foi só depois de ter vencido a batalha da sensualidade que se apresentou para mim a batalha do orgulho.

E comecei a ficar orgulhoso, sobretudo com uma vontade enorme de sucesso enquanto orador. Ser orador era tido como uma coisa extraordinária, muito mais do que um speaker de rádio hoje, não tem comparação. E uma coisa correlata da oratória era o indivíduo ser beau causeur, saber ter uma prosa brilhante.

E daí o apego e a fácil tendência a colocar isto no centro de tudo.

Por isso repito que lucrei muito com a leitura do livro de Dom Chautard “A alma de todo apostolado”, ao qual já me referi.

122 CSN 8/7/89

Lembro-me de ler aquilo e refletir: “É isso: ou renuncio a qualquer resquício de orgulho, ou serei um palhaço, porque, se quero fazer apostolado, estou vendo que com orgulho não conseguirei nada. Eu, portanto, rasparei esse orgulho completamente”.

E então empreendi uma luta contra o orgulho, e numa época bem oportuna, porque pouco depois de eu ter conseguido arvorar a bandeira da humildade, fui eleito deputado. Aí a batalha contra o orgulho se multiplicou por si mesma, porque a tendência a orgulhar-se teria sido debandada123 . *

Justamente por querer levar a sério a minha vida espiritual, eu me sentia proibido de aproveitar qualquer realce. Por exemplo, quando a Constituição foi promulgada, no próprio dia da promulgação recebi telegramas de todos os bispos paulistas, naturalmente de Dom Duarte também, felicitando-me pela minha atuação.

Quando chegou a segunda campanha eleitoral, pensei em imprimir essas felicitações para distribuir. Mas disse não, pensando: “Isso é pouco virtuoso; se quero ser humilde, não devo procurar publicar elogios a mim. O que devo fazer é realçar as minhas ideias para que os homens idealistas verdadeiros me sigam. Vou aqui aplicar Dom Chautard, ‘A alma de todo apostolado’ e fazer um ato de virtude” 124 .

Neste sentido, a tentação maior de orgulho que tive foi no momento de assinar a Constituição. A tropa apresentava armas aos deputados que chegavam de automóvel. E o passar por uma tropa apresentando armas, tive uma tentação de me inebriar com aquilo. Parecia-me a última palavra da glória um rapaz de 24 anos passar pela rua da Assembleia, de longa extensão, e quando entra meu automóvel, ouço um coronel que grita: “Apresentar armas!” Plam, plam.

Eu ia de táxi – porque eu não tinha automóvel particular –, ia de fraque, cartola, distintivo de congregado mariano no fraque. E meu chauffeur rolando devagarzinho – ele estava inebriado com aquilo – rolando devagarzinho por aquela tropa toda em continência. E eu: “Ahhh!”, tenho que fazer um esforço enorme para me conter. Graças a Nossa Senhora me contive e não dei nenhum consentimento.

123 CSN 22/1/83 124 Almoço 10/5/93

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