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A ruptura definitiva com o mundo revolucionário

o que veio logo depois de mim tinha mais ou menos a metade dos votos que eu obtivera. Quer dizer, um triunfo, mas um triunfo inimaginável! A minha liderança junto aos jovens católicos ficou mais afirmada, ficou rotundamente afirmada. E julgava que, daí por diante, até a implantação do Reino de Maria32, seria uma galopada. Uma galopada no meio do risco, uma galopada naturalmente com algumas derrotas, mas era uma mera galopada33 .

A ruptura definitiva com o mundo revolucionário

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Naquela espécie de diálogo ou de discussão interior com o mundo mundano-burguês que me rodeava, ia analisando o mundo, analisando as opiniões, fazendo objeções. Sem perceber, ia estudando a opinião pública às jardas.

De maneira que, quando entrei para a Congregação Mariana, tinha toneladas de observações ordenadas já em linha ao estudo da opinião pública, que é um estudo fundamental para nós. Mas, de outro lado também, nasceu-me tanta aversão ao mundanismo burguês que, com a graça de Nossa Senhora, nunca tive desejo de deixar as coisas de Deus.

Ela me manteve no fundo do poço e no horror da mediocridade durante um tempo em que, para quem tem 20 anos, é muito. Também, quando saí de lá de dentro, saí de tal maneira batendo as asas, que no meu coração pulsava as palavras: “Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais!”34

32 Não se pense que a esperança da implantação em breve prazo do Reino de Maria no

Brasil – e no mundo – fosse em 1933-1934 o prognóstico otimista de um neófito acalorado. Basta dizer que essa esperança coincidia inteiramente com a oportunidade dada por

Nossa Senhora à humanidade, de se emendar sem que houvesse castigo. Com efeito, em 1929, a Virgem comunicou à Irmã Lúcia que “é chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer, em união com todos os Bispos do mundo, a consagração da

Rússia ao meu Imaculado Coração”. Nessa mesma época, começou no Brasil o enorme surto do Movimento Católico, que conquistou o que havia de melhor em nossa juventude e deitou abaixo o espírito positivista, laico e ateu que caracterizou os primeiros 40 anos da República. E o melhor da juventude brasileira afluiu entusiasmada para os ideais católicos, e através da Liga Eleitoral Católica transformou-se numa potência no país. Portanto, a possibilidade de adequar as leis e os costumes brasileiros à doutrina social católica era, naquela quadra, inteiramente viável e real. – Ainda a respeito do que Dr. Plinio entendia como Reino de Maria, ver nota 214 da página 101, do volume I. 33 Palavrinha 30/08/83 34 Chá PS 21/12/83

E aí rompi totalmente com o mundo. Também compreendi que não bastaria ausentar-me do mundo: eu precisava tornar esse mundo agressivo para comigo. Porque temia as saudades.

Então, criei uma barreira assim: nas casas onde eu frequentava, não fui mais. E não dei satisfações. Não expliquei, nem nada: tranquei. O que era uma grosseria que só podia tornar aquela gente queixosa comigo. Ademais, procedi de maneira a, por assim dizer, enterrar-me aos olhos deles como “carola”.

Para isto, fiz o seguinte.

Havia várias missas de manhã, aos domingos, que eram frequentadas pela melhor sociedade. São Paulo era muito pequena, o que acontecia numa igreja de manhã, à noite todo mundo daquele ambiente já sabia.

Então tomei a Igreja de Santa Cecília, que na missa das 11 horas era muito frequentada. E comprei na livraria do Coração de Jesus um tercinho, um rosário desses de “carola”, azul claro. E comprei também um livro de piedade que continha uma Via Sacra. E quando batia o sino e entrava o padre para a missa, eu começava a fazer a Via Sacra, todo mundo olhando.

Naquele tempo era muito feio um homem ser católico praticante. Era tido como horroroso. E um homem fazer Via Sacra, ainda mais um rapaz na minha idade, 19-20 anos, era uma coisa de cair de costas35 .

Os senhores podem imaginar todo o mundo que eu conhecia assistindo à missa, ainda mais naquele meio social, em que todo mundo era meio parente de todo mundo, e um pouco companheiro de infância de todo mundo, de repente um rapaz de 19-20 anos que começa a ajoelhar aqui, ajoelhar lá, fazendo as 14 estações da Via Sacra! Nunca aconteceu, nem beata de igreja fazia esta Via Sacra durante a missa36 .

Começava a Via Sacra na frente, no lado do Evangelho, ia até o fundo e depois, a Crucifixão e o Sepultamento de Nosso Senhor, que era o fim da Via Sacra, ficavam perto do outro lado, já na capela do Santíssimo, portanto do lado da Epístola.

Quando cheguei no fim da Via Sacra, terminei-a junto a um grã-fino – desses que dão opinião e ditam a moda – colega meu, amigo desde menino. Havia um lugar vazio. Ajoelhei-me ao lado dele, puxei o tercinho azul claro, e comecei a rezar sem olhar para ele.

Ele percebeu que era um desafio do outro mundo, porque equivalia a pegar no tercinho e sacudir diante dele. Ele estava ajoelhado também – porque era uma hora em que todo mundo ajoelhava e ficava mal para ele não se ajoelhar – mas não estava prestando atenção em nada. Ele viu aquilo

35 Almoço EANS 18/03/87 36 Sefac 20/04/73

e deu um risinho malicioso, sem olhar para mim. Um risinho assim no ar, como quem diz: “Eu percebo isso e percebo o que é que você quer, mas eu não vou ligar. Eu vou passar por cima disso”.

Levantei-me, e quando terminou tudo, saí. Tenho certeza de que, naquela tarde, ele contou para todo o mundo: “Vocês sabem, o Plinio hoje fez assim”. Isso trazia repercussões do outro mundo37 .

Eu tive uma tal dificuldade em fazer isto – perdoem-me o prosaico da coisa – que me sentia transpirando38 de respeito humano39; eu, que por natureza não sou dado a transpirar. Isto porque eu sabia que em tal banco tinha essa pessoa, tinha aquela, e aquela outra. E sabia qual seria o comentário de cada um.

Eram pessoas educadas, de maneira que nem moviam a cabeça quando eu passava, mas estavam vendo aquela coisa do outro mundo! E já previa o desconcerto de todo mundo em minha casa, quando recebesse as repercussões, os telefonemas... “O que é isso! O que é que o Plinio inventou?” Exceto mamãe, perfeitamente feliz, todos os outros acharam uma coisa do outro mundo! Mas não ousavam perguntar, porque sabiam que sairia de quatro pedras na mão40 .

Lembro-me que, uma vez, num ato indispensável da vida de família no qual estava presente, uma senhora casada com um primo meu – senhora alta, com voz muito possante – com boa intenção me gritou do outro lado da sala, e todo mundo percebeu: “Ó Plinio, eu vi outro dia você comungando na Igreja do Coração de Maria. Você não faz ideia como eu fiquei contente, porque muita gente acha feio um homem comungar, eu acho bonito”. Todo mundo em volta achou horrendo. Sustentei a nota, dando uma resposta desse gênero: “Não vi você, que Missa era, que horas eram?” Quer dizer, sustentando a conversa nesse tema41 . *

37 Almoço EANS 18/03/87 38 Êremo JG 27/10/75 39 Sefac 20/04/73 40 Êremo JG 27/10/75 41 Almoço EANS 18/03/87

Nessa época em que comecei a me apresentar como católico praticante – mais ou menos 1921 – São Paulo era uma cidadezinha de 400 mil habitantes. Uma cidadezinha onde, por assim dizer, não havia homens católicos praticantes. Praticavam a religião apenas mulheres. Homem que praticasse a religião era tido como maricas, como efeminado, como sub-homem, como cretino42 .

Mas o sangue de Cristo e as lágrimas de Maria me ajudaram, e eu passei. Riam de mim como quiserem, escarneçam como entenderem, eu vou proclamar a minha fé! Vou dizer quem eu sou! E vou fazer isto de cabeça alta, de olhar duro e enfrentando seja quem for! Não vou permitir que ninguém ria diante de mim porque sofrerá consequências amargas! E Nossa Senhora me ajudou43 .

Comprei nessa época uma imagenzinha de Nossa Senhora muito popular. Comprei um rosário, pus a imagem no meu criado mudo e comecei a levar uma vida diferente.

Na mesma semana em que se dava isto, ou um pouco depois, apareceu o Reizinho em casa. Era tardinha, faltava pouco para jantar. E com a liberdade que ele tinha comigo, ele foi metendo a mão na porta do meu quarto e, sem bater, entrou e me disse: – Você, como vai?

Eu estava lendo um livro de Maurice Paleologue, “La Russie de Tzars”. Um muito bom livro anticomunista que estava fazendo sensação. Ele disse: – Você lendo a esta hora? O que é que você está fazendo que você não vai ao corso da Av. Paulista? – Não vou porque não quero.

Não parei de ler, continuei a ler, afetando desdém para com ele. Ele sentou-se perto de mim, depois olhou para meu criado-mudo e me disse: – Hiii! O que é isso? Você arranjou esses negócios, é?

Eu parei de ler, olhei para ele, e respondi: – Sim, eu entrei para a Congregação Mariana de Santa Cecília.

Ele me disse: “Você precisa deixar disso”, qualquer coisa assim.

Eu estava deitado de sapatos, com os sapatos em cima de um pano para proteger a cama.

Voltei-me para ele e dei um pontapé com toda força no peito dele, porque ele, sentado, estava à mesma altura de mim, deitado. Ele estava

42 Sefac 20/04/73 43 Sefac 20/04/73

sentado numa cadeira giratória que até hoje está no meu escritório. Ele bateu com a cadeira na escrivaninha atrás, e com tanta força que rachou o encosto da cadeira. Ele se levantou fungando e disse: “Você me paga”.

Eu disse: “Se for pagar, você vai ver o que é que você me paga”.

Vi que ele não entrou para se queixar com Dona Lucilia. Ele tomou o caminho da rua. Ouvi a porta da rua bater e continuei a ler o livro44 . *

Pouco depois, a contraofensiva se definiu com a minha entrada na Congregação Mariana de Santa Cecília. Aí foi a contraofensiva de fato, com brigas com os meus tios, mas brigas colossais, como não se tem numa casa educada, aos berros.

Só faltou eles me ameaçarem agredir. Se me agredissem, eu responderia no mesmo diapasão45 .

Então, em casa começaram as queixas. Bem entendido, nunca Dona Lucilia, sempre conforme com todas as mudanças que eu estava fazendo.

Os primos, minha irmã e outros, desolados, diziam que eu estava fanatizado, com mania religiosa, e atribuindo isto, imaginem, à grande influência pessoal de Monsenhor Pedrosa sobre mim.

Tinha certa consideração por Monsenhor Pedrosa como sacerdote, e o imaginava bom padre. Mas ele não tinha nenhuma influência sobre o curso de minhas ideias. Ele nem tinha ideias. Ele era tido como muito bom vigário, mas de figurino comum. Mais nada. Não tinha nada de ideológico.

Lembro-me de uma noite em que – todo mundo já dormindo, e na sala de jantar de minha avó andando de um lado para outro – de repente apareceu no escuro o meu cunhado e disse: – Quero falar um pouco com você. – O que é que há?

Sentamo-nos e ele disse: – Sua irmã, a esta hora, está no quarto chorando. E o culpado é você. Ela não conhece mais você. A sua alegria de outrora, o seu entusiasmo de outrora, o seu lado brincalhão, toda a afinidade de todos nós com você está desaparecendo, não existe mais. Você é outro. Você não podia mudar um pouco, pelo menos por condescendência por sua irmã, para não a fazer sofrer isto: vê-la perder o irmão?

44 Jantar EANS 22/11/90 45 Chá SRM 18/1/93

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