REVISTA MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARIDADE 4

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Universidade de Brasília

Faculdade de Ciência da Informação

Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB

nº 4,Vol. 2, 2013 ISSN 2238-5436


Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB PPGCINF/FCI/ UnB

REITORIA DA

COMISSÃO EDITORIAL

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Ana Lúcia de Abreu Gomes

Ivan Marques de Toledo Camargo

Andrea Fernandes Considera Deborah Silva Santos

DIRETORIA DA FACULDADE DE

Elizângela Carrijo

CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Luciana Sepúlveda Köptcke

Elmira Luzia Melo Soares Simeão

Monique Batista Magaldi Silmara Küster de Paula Carvalho

COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO

EDITOR-CHEFE

Lillian Alvares

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira Lillian Maria Araújo de Rezende Alvares

CONSELHO CONSULTIVO Cecília Helena L. de Salles Oliveira

SECRETARIA

James Counts Early

Martha Silva Araújo

Lena Vânia Pinheiro Ribeiro Lillian Maria Araújo de Rezende Alvares

PROJETO GRÁFICO/

Luiz Antonio Cruz Souza

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Marcus Granato

Núcleo de Editoração e Comunicação - FCI

Maria Célia Teixeira Moura Santos

Cláudia Neves Lopes

Maria Cristina Oliveira Bruno

Mayara Feliz Pierre

Maria Margaret Lopes Mario de Souza Chagas

CAPA

Mário Moutinho

André Maya Monteiro

Myrian Sepúlveda dos Santos Renato Monteiro Athias Tereza Cristina Moletta Scheiner Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses


Universidade de Brasília

Faculdade de Ciência da Informação

Museologia & Interdisciplinaridade Publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação - UnB

nº 4,Vol. 2, 2013 ISSN 2238-5436


Correspondências e contribuições devem ser enviadas para: M u s e o l o g i a & I n t e r d i s c i p l i n a r i d a d e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCInf) Faculdade de Ciência da Informação (FCI) Universidade de Brasília Edifício da Biblioteca Central (BCE) Entrada Leste, Mezanino, Sala 211 Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte, Brasília CEP: 70910-900 E-mail: revistami@unb.br

Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei no 9.610).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Museologia e interdisciplinaridade: publicação eletrônica do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Universidade de Brasília. Faculdade de Ciência da Informação. – v.2, n.4 (2013) – Brasília: UnB/FCI, 2013v. Semestral Resumo em português e inglês. Disponível no SEER: http://seer.bce.unb.br/index.php/museologia ISSN 2238-5436 1. Museologia. Patrimônio e memória. Artes Visuais. Antropologia. História. Interdisciplinaridade em Museologia. I. Universidade de Brasília. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Faculdade de Ciência da Informação. CDU: 069.01(051)


SUMÁRIO EDITORIAL

PÁGINA 09

MUSEOLOGIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: DIÁLOGOS POSSÍVEIS Carlos Alberto Ávila Araújo

PÁGINA 10

O QUE NOS UNE E O QUE NOS SEPARA? PÁGINA 28 DEBATE EM TORNO DA PROPOSTA DE UM EIXO INTEGRADOR ENTRE OS CURSOS DE ARQUIVOLOGIA, BIBLIOTECONOMIA E MUSEOLOGIA DA FACULDADE DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Cynthia Roncaglio ARQUIVOS DE MUSEUS: CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES Maria Celina Soares de Mello e Silva

PÁGINA 35

MUSEOLOGIA, CAMPO DISCIPLINAR DA MUSEALIZAÇÃO E FUNDAMENTOS DE INFLEXÃO SIMBÓLICA: ‘TEMATIZANDO’ BOURDIEU PARA UM CONVITE À REFLEXÃO Diana Farjalla Correia Lima

PÁGINA 48

FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES NOS MUSEUS DE ARTE Durval de Lara Filho

PÁGINA 62

A ANTROPOLOGIA AINDA PRECISA DE MUSEUS? Nélia Dias

PÁGINA 81

MUSEUS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS: ENTRE O CAMPO CIENTÍFICO, O ENSINO, A PESQUISA E A EXTENSÃO Emanuela Sousa Ribeiro

PÁGINA 88

TRÊS COLEÇÕES DO ESPAÇO CULTURAL CASA DAS PÁGINA 103 ONZE JANELAS: DOAÇÃO E EDITAIS NO FORTALECIMENTO DE UM ACERVO Marisa Mokarzel DISCURSOS EMOLDURADOS: APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA DO MUSEU DE ARTE DE SANTA CATARINA Lucésia Pereira

PÁGINA 113

O MEMORIAL DO FRIGORÍFICO ANGLO DE PELOTAS: UM LUGAR DE MEMÓRIA NO FRIO ESPAÇO DO ESQUECIMENTO Francisca Ferreira Michelon

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A ERA DA CURADORIA Cinara Barbosa

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RESENHA MUSEUS E MUSEOLOGIA EM PANORAMA Rachel Vallego Rodrigues

PÁGINA 148

CAPA Helen Faganello

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EDITORIAL Museologia e Ciência da Informação Emerson Dionisio Gomes de Oliveira Lillian Maria Araújo de Rezende Alvares Editores O primeiro artigo do primeiro número da Revista Museologia e Interdisciplinaridade, lançada no primeiro semestre de 2012, coube à renomada pesquisadora Lena Vania Ribeiro Pinheiro, que escolheu debater as “Confluências Interdisciplinares entre Ciência da Informação e Museologia”. Pinheiro dedicou-se a explicitar as proximidades entre a Ciência da Informação e a Museologia no Brasil, numa perspectiva interdisciplinar, que agrupou convergências teóricas entre as áreas em distintas formas, abordagens, aplicações, aspectos técnicos e operacionais tanto no âmbito da pesquisa quanto na do ensino. Sensível a tarefa de abrir uma nova publicação acadêmica engenhada pelo grupo de pesquisa “Museologia, Patrimônio e Memória”, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília, Pinheiro deu ao tema uma perspectiva teórica ressaltando o caráter interdisciplinar da Ciência da Informação e da Museologia, como, também, destacou a militância comum de fortalecimento das duas áreas na criação de cursos, publicações, eventos científicos e projetos técnicos. Desde então o tema não abandonou as páginas de nossa jovem publicação. As pesquisas de Denise Studart, Gabrielle Tanus, Júlio César Bittencourt Francisco, Lillian Maria Araújo de Rezende Alvares e Valdir José Morigi retomaram a questão por distintos caminhos epistemológicos e institucionais, apontando não apenas as convergências, mas também algumas tensões que explicitam o movimento interdisciplinar que distancia e aproxima a Ciência da Informação da Museologia no Brasil. Na intenção de ampliar o diálogo entre a Museologia e todo um escopo teórico da Ciência da Informação, Museologia e Interdisciplinaridade convidou Carlos Alberto Ávila Araújo, renomado pesquisador, docente da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais, para organizar o primeiro Dossiê Temático de nossa revista, intitulado Museologia e Ciência da Informação. Num trabalho preciso, Araújo nos oferece distintas visões sobre o tema, que, evidentemente não se esgota nos artigos dos pesquisadores selecionados: Cynthia Roncaglio, Maria Celina Soares de Mello e Silva, Diana Farjalla Correia Lima, Durval de Lara Filho e do próprio organizador. Pesquisadores dedicados a compreender a dimensão informacional dos museus, como bem lembra Araújo, mas atentos às características de cada uma das áreas. Acompanhando o Dossiê, a quarta edição da revista novamente volta seu diálogo para outras áreas como dispositivo essencial para o fortalecimento da Museologia na comunidade ibero-americana. Temos aqui trabalhos de pesquisadoras oriundas da História, da Administração, das Artes Visuais e, com destaque especial, das Ciências Sociais. Neste aspecto, Museologia e Interdisciplinaridade continua aberta ao diálogo entre a Museologia, a Ciência da Informação e toda uma miríade de campos de conhecimento dedicados à compreensão do lugar dos museus em nossa contemporaneidade, em toda complexidade de sua práxis e de sua dimensão epistemológica.


MUSEOLOGIA E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Carlos Alberto Ávila Araújo1 Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO: Apresentam-se alguns exemplos de fatos institucionais, profissionais e formativos que anunciam oportunidades de cooperação entre a Museologia e a Ciência da Informação. A seguir, analisa-se a evolução teórica da Museologia: de um modelo centrado nas técnicas e nas instituições para as perspectivas contemporâneas em torno do museal e da complexidade. Paralelamente, analise-se a evolução teórica da Ciência da Informação, a partir de suas diferentes subáreas, em torno de três grandes conceitos de informação: o físico, o cognitivo e o pragmático/social. Conclui-se que o cenário epistemológico é amplamente favorável ao diálogo entre as duas áreas, em sintonia com as iniciativas práticas já em curso, no Brasil e no contexto internacional.

ABSTRACT: In this article we present some examples of institutional, professional and teaching facts that demonstrate the cooperation between Museology and Information Science. Next, we analyze the theoretical evolution of Museology, from a model based on techniques and institutions for contemporary perspectives around the museological and complexity. In parallel, we analyze the theoretical evolution of Information Science, from their different subareas, around three major concepts of information: the physical, cognitive and pragmatic/social. We conclude that the epistemological framework is largely favorable to dialogue between the two areas, according with the practical initiatives already underway in Brazil and in the international context.

PALAVRAS-CHAVES: Museologia. Ciência da Informação. Epistemologia.

KEY-WORDS: Museology. Information Science. Epistemology.

1 Professor do curso de Museologia da Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (ECI/UFMG). Doutor em Ciência da Informação pela UFMG e pós-doutor pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. E-mail: casalavila@yahoo.com.br.


Carlos Alberto Ávila Araújo

Introdução Diversas iniciativas profissionais e institucionais recentes, no Brasil e no exterior, têm sinalizado a presença de interlocuções entre as áreas da Museologia e aquelas dedicadas ao estudo da informação - a Ciência da Informação, a Arquivologia e a Biblioteconomia.Ao mesmo tempo, o contexto formativo brasileiro contemporâneo também tem apresentado sinais claros de parceria entre essas áreas. Esse cenário tem estimulado a produção de reflexões epistemológicas voltadas para o estabelecimento de pontos comuns, interfaces e possibilidades de cooperação entre essas áreas. Nesse sentido, a produção científica em Museologia, que sempre se deu em forte diálogo com diversos campos (como a História, as Artes, a Antropologia, entre outros), tem tido atualmente também a Ciência da Informação como interlocutora na formação de teorias, conceitos e métodos. Ao mesmo tempo, o campo da Ciência da Informação, constituído historicamente por meio de parcerias entre a Biblioteconomia, a Computação, a Comunicação e as Ciências Cognitivas, vem gradualmente se voltando, primeiro para a Arquivologia e, mais recentemente, para a Museologia, incorporando temáticas e problemas voltados para a memória, o patrimônio e a cultura. Mas essa aproximação não é apenas reflexo do cenário profissional, institucional e formativo contemporâneo. Também é resultado da própria evolução teórica e conceitual destes campos. Na Museologia, o modelo custodial e patrimonialista consolidado no início do século XX foi sendo cada vez mais ampliado por meio de perspectivas funcionalistas, críticas, construtivistas e aquelas voltadas para o estudo das representações. O resultado dessa evolução, como se pretende demonstrar neste texto, define para o campo não uma perspectiva de “ciência do museu”, mas sim do museal ou dos processos de musealização – o que permite pôr em destaque a importância do conceito de “informação”, ou de uma dimensão informacional, como elemento-chave desse processo. Ao mesmo tempo, a Ciência da Informação nasceu, na década de 1960, a partir de uma perspectiva fisicista de estudo da informação. Nas décadas seguintes, contudo, por meio da evolução teórica em diferentes subáreas (comunicação científica, gestão da informação, economia política da informação, representação da informação, estudos de usuários e estudos métricos), consolidou-se um modelo cognitivista de estudos e, mais recentemente, um modelo pragmático, que prevê o estudo da informação articulada às ações humanas e aos contextos socioculturais. E é justamente esse modelo, como também se pretende demonstrar neste texto, que possibilita o estudo dos fenômenos museais a partir da dimensão informacional destes. Assim, neste texto, busca-se explorar especificamente a evolução teórica e conceitual da Museologia e da Ciência da Informação, para se evidenciar como as perspectivas de estudo contemporâneas, nas duas áreas, sugerem um interessante campo de problematizações comuns e questões transversais. Alguns fatos recentes Em fevereiro de 2013 foi realizada a primeira reunião de trabalho prevista no acordo de cooperação assinado entre o Arquivo Nacional, a Fundação Biblioteca Nacional e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) em dezembro de 2011. Tal acordo é uma iniciativa para a preservação e democratização do conteúdo informacional de 105 mil instituições brasileiras que estão sob o “guarda-chuva” destas três instituições. A existência desse acordo é um claro sinal de que os desafios colocados pela preservação e pelo acesso aos acervos, nos tempos

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atuais, transcendem as fronteiras da atuação isolada de arquivistas, bibliotecários e museólogos, convocando-os a necessariamente atuar em parceria – e também em conjunto com profissionais de outras áreas, como da informação, da gestão, da computação, entre outras. Em março de 2013, a Biblioteca Brasiliana da Universidade de São Paulo sediou o “Seminário internacional sobre sistemas de informação e acervos digitais de cultura”. Promovido pela Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, tal seminário teve por objetivo apresentar os resultados de uma parceria feita entre o Ministério da Cultura brasileiro e a União Europeia para realização de missões técnicas a instituições que trabalham com sistemas de informações de acervos digitais de arquivos, bibliotecas e museus. Tal parceria se insere no Projeto de cooperação internacional “Diálogos Setoriais UE-Brasil” e tem um duplo objetivo: possibilitar a implementação de sistemas públicos de informação; e disponibilizar o acesso a acervos digitais de bibliotecas, arquivos e museus. É mais uma ação que evidencia, no cenário atual, uma tendência de aproximação e colaboração entre essas áreas. Tais eventos, brasileiros, estão em sintonia com um movimento que é mundial. Em abril de 2013, promoveu-se uma nova convocatória para o programa Memória do Mundo, por parte do Comitê Regional para a América Latina e Caribe da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O objetivo do programa é integrar acervos documentais de arquivos, bibliotecas e museus, a partir de ações de salvaguarda e promoção de acesso por meio de políticas de informação e digitalização. Ainda na América Latina, esse tipo de tendência provocou, entre outras ações, o surgimento do Encuentro Latinoamericano de Bibliotecarios,Archivistas y Museólogos (EBAM), que ocorreu pela primeira vez em 2009, tendo sua última edição acontecido na Argentina, em 2012 - com previsão de que o próximo aconteça no Brasil. A Argentina, particularmente, mostra-se preocupada com essa questão, tendo sediado, em 2010, o I Congreso Nacional de Archivos, Bibliotecas y Museos. Na Europa, muitos são os exemplos nesse sentido, entre os quais se destaca a criação da Europeana, um amplo sistema digital informacional que constitui ao mesmo tempo um arquivo, uma biblioteca e um museu de acervos da cultura europeia. Na França, diversos programas de política cultural promovem ações integradas entre arquivos, bibliotecas, museus e centros de documentação - o Centre Pompidou, em Paris, é um exemplo de uma eficaz integração de arquivo, biblioteca, midiateca, teatro, centro de inclusão digital e museu, todos funcionando num único edifício. Na Inglaterra, o relatório Sustaining our digital future: institutional strategies for digital content, publicado em 2012 e organizado por Nancy Maron, Jason Yun e Sarah Pickle, aponta uma série de questões transversais a arquivos, bibliotecas e museus relacionados aos acervos digitais (e em processo de digitalização) destas instituições; enquanto o Projeto Discovery vem desde maio de 2011 trabalhando para a criação de uma “ecologia de metadados”, para garantir maior acesso às coleções de arquivos, bibliotecas e museus, por meio de arranjos open linked data para disponibilização integrada de catálogos de arquivos, bibliotecas e museus. No Brasil, a sensibilidade para essa questão concretizou-se em 2002, quando ocorreu o I Integrar – Congresso Internacional de Arquivos, Bibliotecas, Centros de Documentação e Museus, em São Paulo. A ideia original era a de que o evento deveria acontecer a cada quatro anos. De fato, em 2006 aconteceu a segunda edição, mas a terceira, que deveria ser realizada em 2010, ainda não se efetivou. Contudo, em 2011, Salvador sediou o “Encontro de Arquivos,


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Bibliotecas e Museus à luz da era pós-custodial- um diálogo Brasil-Portugal” e, em 2012, a mesa redonda “Aproximações entre Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia: ideias e propostas” teve lugar no Enecin, o Encontro Nacional de Ensino em Ciência da Informação. Esse amplo campo de atuação encontra ressonância na conformação institucional destas áreas. No Brasil, existem hoje 16 cursos de graduação em Arquivologia, 37 cursos de Biblioteconomia e 14 de Museologia. Tanto na Universidade de Brasília, quanto na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estes três cursos estão sediados em escolas/departamentos de Ciência da Informação. Além da convivência institucional, a realidade nestas universidades tem sido a de realização de atividades comuns (disciplinas, pesquisas, ações de extensão) aos três cursos e deles com os programas de pós-graduação em Ciência da Informação. Esse conjunto de atividades tanto é sintoma da realidade institucional apontada acima, no Brasil e no exterior, como também funciona como elemento fertilizador para inovações teóricas e formativas em cada uma das áreas envolvidas. O que se destaca, nesse amplo quadro institucional, é a existência de vários espaços de interlocução e cooperação entre as áreas. Contudo, é no plano epistemológico que se verificam as condições mais frutíferas para a promoção de parcerias e diálogos – como se pretende evidenciar a seguir. A evolução teórica da Museologia De acordo com Duarte (2007, p. 27-28), “a conscientização de um sentido museológico estará inerente ao próprio ser humano na medida em que, desde tempos ancestrais, o homem pratica uma recolha de materiais diversos pelas mais diversas razões”. Assim, a ideia de musealidade, antes até do que a de museu, mistura-se à ação humana de intervir na realidade (natural e humana), reconhecendo nela objetos e elementos a serem guardados, colecionados, exibidos, atribuindo significados a estes objetos. O termo “museu”, originário do contexto grego, ressurgiu com o Renascimento, para descrever as coleções de arte como a de Lorenzo de Médici, em Florença (WOODHEAD; STANSFIELD, 1994), e foi com ele, a partir do século XV, que apareceram os primeiros traços efetivos daquilo que se poderia chamar de um conhecimento teórico específico em Museologia, com a publicação dos primeiros tratados relativos aos museus, como os de Quiccheberg, Comenius e Camilo (MAIRESSE; DESVALLÉS, 2005). Renasceu, nessa época, o interesse pela produção humana, pelas obras artísticas, filosóficas e científicas – tanto as da Antiguidade Greco-Romana como aquelas que se desenvolviam no próprio momento. Salientou-se assim o interesse pelo culto das obras, pela sua guarda, sua preservação. Proliferaram, entre os séculos XV e XVII, tratados e manuais voltados para as regras de procedimentos nas instituições responsáveis pela guarda das obras, para as regras de preservação e conservação física dos materiais, para as estratégias de descrição formal das peças e documentos, incluindo aspectos sobre sua legitimidade, procedência e características. A produção simbólica humana, compreendida como um “tesouro” que precisaria ser devidamente preservado, tornou-se objeto de uma visão patrimonialista (o conjunto da produção intelectual e estética humana, a ser guardado e repassado para as gerações futuras). Contudo, o foco do interesse fixou-se no conteúdo dos acervos, constituindo os museus apenas em instituições a serviço dos campos de estudo da Literatura, das Artes, da História e das ciências. Não

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se construíram, neste momento, conhecimentos propriamente museológicos (para além de algumas regras operativas muito próximas do senso comum), mas apenas conhecimentos artísticos, literários, filosóficos ou históricos sobre os conteúdos guardados nestas instituições. O passo seguinte na evolução da área se deu com a Revolução Francesa e as demais revoluções burguesas na Europa, que marcam a transição do Antigo Regime para a Modernidade. Operou-se uma profunda transformação em todas as dimensões da vida humana (na política, na economia, no direito) e, dessa forma, também os museus foram drasticamente transformados. Surge o conceito moderno de “Museu Nacional”, que tem no caráter público (no sentido de “nacional”, relativo ao coletivo dos nascentes Estados modernos) sua marca distintiva, e no Musée du Louvre sua instituição paradigmática (POULOT, 2002). São formadas as grandes coleções, operam-se amplos processos de aquisição e acumulação de acervos – o que reforçou a natureza custodial destas instituições. A necessidade de se ter pessoal qualificado para os nascentes museus modernos levou à formação dos primeiros cursos profissionalizantes, voltados essencialmente para regras de administração das rotinas dos museus e, seguindo a tradição anterior, para conhecimentos gerais em Artes e Humanidades (ou seja, os assuntos dos acervos guardados). Por fim, com a consolidação da ciência moderna como forma legítima de produção de conhecimento e de intervenção na natureza e na sociedade, também o campo das humanidades se viu convocado a constituir-se como ciência. Surgiram então, ao longo de todo o século XIX, diversos manuais, como os de Rathgeber, Graesse e Reinach, que buscaram estabelecer o projeto de constituição científica do campo dedicado aos museus, mas ainda na vertente de uma “Museografia”, isto é, de um trabalho técnico de descrição nos museus, na linha inaugurada por Neickel em 1727 (MAIRESSE; DESVALLÉS, 2005). O modelo de ciência então dominante, oriundo das ciências naturais, voltado para a busca de regularidades e desenvolvimento de instrumentos técnicos para intervenção na natureza, se expandiu para as ciências sociais e humanas através do Positivismo. Esse modelo inspirou as pioneiras conformações científicas da área, que privilegiou os procedimentos técnicos de intervenção: as estratégias de inventariação, descrição, ordenação e exposição dos acervos museológicos. É nesse sentido que a primeira conformação científica do campo aproxima-se mais da noção de museografia: um conjunto de práticas, de técnicas, a serem aplicadas junto aos acervos guardados nas instituições museais. Foi por meio desse movimento de consolidação positivista que se promoveu, contudo, a “libertação” da Museologia das outras disciplinas das quais ela era apenas um campo auxiliar (as Artes e a História, sobretudo). Houve uma relativa autonomização, abrindo caminho para a construção de um campo científico específico dedicado aos museus. Esse movimento foi reforçado nos anos seguintes com a criação das primeiras associações profissionais (a primeira foi a Museum Association criada em Londres, em 1889) e a atuação dos movimentos associativos - que levaram à criação do Office International des Museés (OIM), em Paris, em 1926 (MAIRESSE; DESVALLÉS, 2005). Mais do que oposições, os três movimentos acima destacados se somam. A perspectiva custodial renascentista voltou-se para os “tesouros” que deveriam ser preservados, ressaltando a importância da produção simbólica humana. A entrada na Modernidade enfatizou as especificidades da instituição museu, que deveria ter estruturas organizadas e rotinas estabelecidas para o exercício da custódia. E a fundamentação positivista deu mais ênfase às técnicas museo-


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gráficas a serem utilizadas para o correto tratamento e exposição do material custodiado. Constituíram-se assim, no século XIX, os elementos que marcaram a consolidação de um modelo que representa, ao mesmo tempo, a ideia de uma “ciência do museu” (voltada para o funcionamento e as rotinas desta instituição); de uma área dedicada ao “patrimônio” (à preservação de seu acervo e sua salvaguarda para as gerações futuras); e de uma “museografia” (das técnicas empregadas para o tratamento do acervo acondicionado na instituição museu). Contudo, nas décadas seguintes, os estudos museológicos desenvolveram-se em diferentes frentes que foram apontando para uma progressiva superação deste primeiro modelo. Tais pesquisas são apresentadas a seguir, organizadas em quatro eixos: os estudos funcionalistas, a perspectiva crítica, os estudos de público e as pesquisas sobre representação. Ainda nos finais do século XIX, começam a surgir ensaios, manifestos e iniciativas que evocam mudanças no modo de se conceberem os museus. Adjetivos como “vivo”, “dinâmico”, “atuante” e “ativo” começaram a ser usados para apontar a direção de uma necessária mudança a ser operada nestas instituições de modo a se combater sua inércia e seu fechamento sobre si mesmas, seu isolamento do conjunto geral da sociedade. O ideal iluminista da universalidade, isto é, do acesso a todos os cidadãos, é um dos motes dessa abordagem. De outro lado, o discurso da eficácia, o imperativo do retorno, para a sociedade, dos investimentos feitos, também convoca a que se pense e problematize as funções dos museus. No ambiente anglo-saxão, a área da Museum Education buscou desenvolver uma museologia “verbal”, voltada para a ação, em oposição à tradição voltada para a posse e a descrição dos objetos (GÓMEZ MARTÍNEZ, 2006). Zeller (1989) aponta que tal tendência se voltava para a eficácia dos museus, para uma efetiva difusão de certos valores junto à população, e para oferecer à sociedade um “retorno” dos investimentos feitos. Autores como Flower, Goode, Dana, Rea e Coleman marcavam a especificidade dos novos museus como instituições que teriam como valor não a contemplação mas o uso, e que não esperariam pelos visitantes, mas iriam “buscá-los”, atraindo-os para os museus por meio da eliminação de barreiras e da busca por acessibilidade. Essa perspectiva manifestou-se em diversos outros contextos, como na França, sob inspiração do “museu imaginário” de André Malraux, e no Canadá, a partir do conceito de “comunicação” presente nos trabalhos de Cameron (1968). A partir da década de 1980, com as tecnologias digitais, houve uma revitalização da corrente funcionalista, com as possibilidades de acesso remoto, interatividade e design de exposições, desenvolvida por autores como Merriman, Pearce, Arnold, Hooper-Greenhill e Vergo. Logo na virada do século XIX para o século XX, o impacto do pensamento crítico sobre o positivismo, a sociedade e o ser humano começou a se manifestar no espaço reflexivo sobre os museus. Também tendo como centro de preocupação as relações entre essas instituições e a sociedade, desenhou-se uma perspectiva calcada sobretudo na denúncia de processos de dominação, de ações ideológicas ocultas por detrás de práticas tidas como pretensamente neutras, no questionamento sobre as reais necessidades a serem atendidas e sobre os enquadramentos culturais promovidos. As manifestações pioneiras de pensamento crítico na Museologia se encontram na obra de artistas e ensaístas como Zola, Valéry e Marinetti (BOLAÑOS, 2002), que viam o museu como “mausoléu”, instituição que degradava a arte, instrumento de poder de alguns povos sobre outros. Na década de 1960, uma

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nova onda de críticas provocou o aparecimento de formas de “antimuseu” (BOLAÑOS, 2002). Porém, foi na aproximação com a sociologia da cultura que se deram as manifestações mais consolidadas da perspectiva crítica, com Bourdieu (2007) inspirando uma geração de pesquisadores para ver como diferentes grupos sociais tinham relações distintas com a cultura (e inclusive com os museus). Outros estudos buscam correlacionar o papel que os museus tiveram (e ainda têm) na construção ideológica da idéia de nação, a partir do trabalho pioneiro de Anderson (2008). Há ainda uma área recente, a “Museologia Crítica”, voltada para a crítica das estratégias museológicas intervenientes nos patrimônios naturais e humanos (SANTACANA MESTRE; HERNÁNDEZ CARDONA, 2006). Nascidos como uma extensão da perspectiva funcionalista que buscava obter indicadores de satisfação, os estudos de público eram primeiramente ferramentas de diagnóstico para o planejamento e a otimização dos serviços. Aos poucos, foram se convertendo em subárea com relativa autonomia. Neste processo, se afirmaram a partir da crítica tanto aos estudos funcionalistas como aos críticos, na medida em que ambos tendiam a ver apenas a ação dos museus sobre os indivíduos, estes tomados apenas como seres passivos, meros receptáculos de informação. Foi no resgate ao papel de sujeitos ativos e no estudo de suas apropriações, suas diferentes necessidades e usos que se construiu toda uma tradição de estudos. Os primeiros estudos empíricos de visitantes foram realizados no começo do século XX por Galton, que seguia os visitantes pelos corredores dos museus, e por Gilman, que estudou a fadiga e os problemas de ordem física na concepção de exposições (HOOPER-GREENHILL, 1998). Na década de 1940, proliferaram estudos sobre os impactos nas exposições junto aos visitantes, realizados por autores como Cummings, Derryberry e Melton. Outros estudos, conduzidos por autores como Rea e Powell na mesma época, tiveram como objetivo traçar perfis sociodemográficos dos visitantes e mapear seus hábitos culturais (PÉREZ SANTOS, 2000). Na década de 1960, Shettel e Screven inauguraram uma nova perspectiva com as medidas de aprendizagem. Nas décadas seguintes, desenvolveram-se abordagens de base cognitivista (Eason, Friedman, Borun) e de natureza construtivista – como o modelo tridimensional de Loomis, a teoria dos filtros de McManus, o modelo sociocognitivo de Uzzell, a abordagem comunicacional de Hooper-Greenhill e o modelo contextual de Falk e Dierking. O quarto eixo relaciona-se com os estudos sobre representação. Desde sua origem como instituições modernas, os museus viram-se às voltas com tarefas relacionadas à representação de seus acervos. Inventariar, repertoriar, catalogar, classificar, nomear, descrever, indexar, organizar, tratar são alguns dos termos que desde então vêm sendo utilizados para tratar de um campo de intervenções práticas que, tomados a um nível tecnicista, chegaram a se constituir como parte essencial ou nuclear da nascente Museologia. O espírito nacionalista e historiográfico dos primeiros museus modernos foi decisivo para a configuração de critérios de ordenamento, descrição, classificação e exposição dos acervos (MENDES, 2009). A subárea de Documentação Museológica surgiu no início do século XX, a partir do trabalho de autores como Wittlin,Taylor e Schnapper (MARÍN TORRES, 2002). Nas décadas de 1920 e 1930 houve grandes debates sobre os critérios de classificação adotados nos museus, mas a temática só se converteu em campo de investigação décadas depois. Entre as várias abordagens desenvolvidas, encontram-se aquelas que buscaram problematizar aspectos classificatórios dos museus, como a questão da representação dos gêneros, dos diferentes povos do mundo, das diferentes


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culturas humanas, numa linha marcada pelos cultural studies (PEARCE, 1994). Os aspectos envolvidos no trabalho de ordenamento também foram estudados por Bennett (2004) numa perspectiva foucaultiana. Os avanços mais recentes em Museologia têm buscado agregar as contribuições das várias teorias e práticas desenvolvidas ao longo do século XX (apresentadas acima agrupadas em quatro eixos) de forma a superar o caráter limitado do quadro teórico do modelo custodial/tecnicista. Novos tipos de instituições, serviços e mesmo ações executadas no âmbito extra-institucional conferiram maior dinamismo ao campo teórico e à prática. Para superar os modelos voltados apenas para a ação dos museus junto aos visitantes, ou apenas para os usos que os visitantes fazem das exposições, surgiram também modelos voltados para a interação e a mediação, contemplando as ações reciprocamente referenciadas destes atores. Modelos sistêmicos também surgiram na tentativa de integrar ações, acervos ou serviços antes contemplados isoladamente. A própria ideia de acervo, ou item de coleção, foi problematizada, na esteira de questionamentos sobre o objeto da Museologia e sobre o imaterial como objeto museológico. Desenvolveram-se, ainda, as tecnologias digitais, com um impacto profundo sobre os museus, reconfigurando tanto o fazer quanto a teorização sobre o museu. Entre os diversos desenvolvimentos teóricos e práticos no campo da Museologia que ocorreram nas últimas décadas, destaca-se a questão dos ecomuseus e da Nova Museologia. Contudo, é preciso algum cuidado no exame destes termos, pois são usados para designar diferentes questões e, algumas vezes, ainda confundidos um com o outro ou tomados como sinônimos. Davis (1999) explica que o conceito de “ecomuseu” surgiu no começo do século XX, sob o impacto das ideias ambientalistas, com a criação dos chamados “museus ao ar livre”, que, numa perspectiva ampliada de museu, incorporavam sítios geológicos ou naturais ao seu “acervo”. Um outro sentido para o termo foi dado no âmbito do movimento da Nova Museologia. Surgida a partir das ideias de Georges Henri Rivière, Hugues de Varine-Bohan e Germain Bazin, ligados à Ecole du Louvre, mas atuantes no seio do ICOM, a Nova Museologia propôs-se a repensar o significado da própria instituição museu. Nessa visão, os museus deveriam envolver as comunidades locais no processo de tratar e cuidar de seu patrimônio. Como coloca Davis (1999), o termo “território” é então utilizado para definir tanto os limites geográficos como também as conotações dos sujeitos e comunidades que vivem no espaço, as apropriações que fazem dele. Com isso, ressurgiu o conceito de ecomuseu, mas tomado num sentido que incorpora também as identidades culturais e a ideia de comunidade. Van Mensch (1995) caracterizou esse movimento como a “segunda revolução” no campo da Museologia. Mudou o sentido de museu, de lugar de entrega de um conhecimento a uma comunidade (transmissão), para lugar construído pela própria comunidade (veículo de expressão de uma identidade). A primeira expressão pública e internacional deste movimento se deu em 1972, na Mesa Redonda de Santiago do Chile, organizada pelo ICOM, que buscou debater a função social do museu e o caráter global das suas intervenções. Daí surgiu a ideia do museu integral, que deveria proporcionar à comunidade uma visão de conjunto de seu meio material e cultural. Do ponto de vista teórico, tal noção busca propor que a relação que o homem estabelece com o patrimônio cultural passe a ser estudada pela Museologia e que o museu seja entendido como instrumento e agente de transformação social – o que significa ir além das suas funções tradicionais de identificação, conservação e educação, em direção à inserção da sua ação nos meios humano e físico, integrando as po-

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pulações na sua ação. O movimento foi formalizado na Declaração de Quebec, em 1984, nascendo aí o Movimento Internacional para uma Nova Museologia (MINOM). Defendendo a participação comunitária no lugar do “monólogo” do técnico especialista, tratou de colocar no lugar do tradicional tripé edifício/ coleções/público da Museologia uma nova rede de conceitos composta por território, patrimônio e comunidade (ALONSO FERNÁNDEZ, 1999). A Nova Museologia recebeu adesão de teóricos de várias partes do mundo, como Burcaw (EUA), Van Mensch (Europa Ocidental) e Stránský (Leste Europeu). Teve diversos desdobramentos práticos (vários ecomuseus espalhados pelo mundo), teóricos (na direção de novas definições da instituição museu) e no âmbito da formação (influenciando os programas em estudos museológicos de centros como os de Brno, Leicester, Leiden, Newark, além da própria Ecole du Louvre). Uma contribuição também mais específica, mas que teve efeitos na Museologia como um todo, foi a reflexão sobre a musealização, que “consiste na metamorfose de objectos que, não deixando de ter valor social e cultural, adquirem outro, mais especial, com a nova recontextualização” (MAGALHÃES, 2005, p. 12). Dessa forma, a musealização, mais do que mero processo técnico de adquirir, documentar e exibir um objeto, significa um “caminho que consiste em transformar objetos materiais e imateriais aparentemente vulgares em legados históricos ou testemunhos do desenvolvimento científico, técnico, artístico ou outro de uma determinada cultura” (MAGALHÃES, 2005, p. 12). Fernández de Paz e Agudo Torrico (1999) ressaltam que a discussão sobre a musealização traz uma problematização sobre quais bens ou objetos serão musealizados, isto é, que serão destacados como de especial significado dentro de um contexto cultural – e ainda, uma vez realizado esse processo, de que forma eles serão interpretados na realidade museal. Conforme os autores, essa questão começou a ser problematizada no âmbito da Comissão Franceschini, formada em 1966 para discutir a questão dos “bens culturais” a serem patrimonializados, tendo como desdobramento a Convenção da Unesco em Paris, em 1972, sobre a proteção ao Patrimônio Mundial Cultural e Natural. Nesta nova concepção de patrimônio, de uma só vez passou-se a considerar nas definições do interesse patrimonial a conhecer e proteger dois terços dos componentes do entorno cultural do ser humano: o natural (conceito modificado mais tarde para ‘paisagens culturais’ para reconhecer mais acertadamente a relação simbiótica que se dá entre ser humano e seu entorno físico) e o etnológico (no qual se inserem as atividades e conquistas - materiais e imateriais - que formam parte da bagagem mais cotidiana que contribui para dotar de uma identidade diferenciada cada coletivo). Com isso, buscou-se pôr fim a uma dinâmica surgida com a expansão colonial européia: a desvinculação entre objetos e sujeitos sociais, processo pelo qual os bens culturais (objetos materiais, representações simbólicas, rituais) teriam valor em si mesmos, desligados de quem os seguem criando e reproduzindo. Uma questão especial discutida nos estudos contemporâneos em Museologia diz respeito à questão do patrimônio imaterial. Os primórdios dessa questão se encontram numa convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação (Unesco) realizada em Haia, em 1954, e uma versão formalizada na Convenção de Belgrado em 1980. Para a Unesco, o patrimônio cultural imaterial abrange [...] as tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial; as artes do espetáculo; as práticas sociais, rituais e acontecimentos festivos; os conhecimentos e práticas


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que dizem respeito à natureza e ao universo; os saberes fazer ligados ao artesanato (LEAL, 2009, p. 289).

Alargando seus horizontes dessa forma, a Museologia se desloca da ênfase nos objetos para a dimensão imaterial da ação humana e dos sentidos construídos. Por fim, o fenômeno contemporâneo dos museus virtuais representa uma ampla dimensão com desdobramentos práticos e teóricos. Para Deloche (2002), a chegada da tecnologia digital à realidade dos museus representa muito mais do que apenas uma conjuntura nova à qual se adaptar, reformulando a própria concepção da instituição museal. Sem edifício ou coleções, marcos institucionais tradicionais, o museu precisa oferecer novos serviços, por meio de novas práticas e funções. Os usuários também se modificam em termos de ações e possibilidades. Assim, a adoção de tecnologias para o tratamento e o planejamento de exposições aproxima o museu do conceito de sistema de informação (HIGGINS; MAIN; LANG, 1996). Têm se desenvolvido ainda estudos numa área específica denominada Museum Informatics, que trata das interações sociotécnicas que ocorrem entre as pessoas, a informação e a tecnologia nos espaços museais (MARTY; JONES, 2008). Aliada à discussão do patrimônio imaterial, também tal dimensão relaciona-se ao que vem sendo denominado “patrimônio cultural digital” (ZORICH, 2010). O conjunto de teorias apresentadas neste tópico permite perceber como os modelos contemporâneos representam principalmente um grau maior de abstração na compreensão do fenômeno museal. Se o desenho das reflexões que vão do Renascimento ao século XIX ancora-se na extrema concretude dos objetos (a instituição museu, os acervos, as técnicas), as perspectivas desenvolvidas no século XX foram importantes para deslocar e ampliar o eixo de preocupações (para as funções sociais dos museus, seu papel nos tensionamentos sociais, as apropriações dos sujeitos, os efeitos de sentido gerados por seus acervos e pelas técnicas aplicadas). É o aprofundamento desse processo que acaba por conduzir às perspectivas contemporâneas, mais atentas à complexidade dos fenômenos e à interrelação de seus elementos constituintes. A evolução da Ciência da Informação A origem da Ciência da Informação deve ser buscada no paradigma consolidado, no final do século XIX, nas ciências relacionadas com o documento (a Biblioteconomia, principalmente, mas também a Arquivologia e a Museologia), pois foi em diálogo com ele – mas buscando ser uma outra coisa – que surgiu o campo da Documentação, que anos depois propiciou o surgimento da Ciência da Informação. A Documentação, campo de reflexão e atuação prática criado por Otlet e La Fontaine no início do século XX, voltou-se para a tentativa de se promover um inventário da totalidade dos registros do conhecimento humano - e não para o armazenamento ou a custódia destes registros, tal como vinha sendo realizado pelos arquivos, pelas bibliotecas e pelos museus. No âmbito desta ação, Otlet desenvolveu o conceito de “documento”, alargando o campo de intervenção para além dos livros e documentos administrativos. Embora tratando de arquivos, bibliotecas (e também museus e demais entidades documentais) numa perspectiva integradora, a área acabou se desenvolvendo como uma atividade profissional distinta, paralela, atuando principalmente no campo da informação científica e tecnológica (DAY, 2001).

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Foi justamente neste espectro de atuação, do registro e fornecimento de informações para campos específicos de ciência e tecnologia, que começaram a atuar aqueles que primeiramente ficaram conhecidos como “cientistas da informação” (FEATHER; STURGES, 2003). Na esteira das tentativas de institucionalização das atividades destes profissionais deu-se a base para a criação da nascente “Ciência da Informação”, que teve como marcos a International Conference on Scientific Information, realizada em Washington, em 1958, e a mudança, em 1966, do nome do American Documentation Institute (ADI) para American Society for Information Science (ASIS), tornando-se a primeira instituição científica específica da Ciência da Informação. A mudança de nome desta instituição inspirou outras, o que fez com que, na prática, a Ciência da Informação acabasse por ocupar o espaço institucional da Documentação e, por extensão, também o espaço de produção teórica e científica (SHERA; CLEVELAND, 1977). Os fundamentos teóricos imediatamente adotados pelo campo foram a Teoria Matemática da Comunicação de Shannon e Weaver, a Cibernética de Wierner e as contribuições de Vannevar Bush. Juntos, tais contributos permitiram a elaboração de um conceito “científico” de informação e a agenda de pesquisa da área, expressa num artigo de Borko, publicado em 1968, que se tornou um clássico. Nessa visão, a Ciência da Informação desenhava-se basicamente como uma ciência da transferência da informação, isto é, dedicada ao estudo e desenvolvimento de processos e serviços para garantir com eficácia e eficiência o transporte do “conteúdo objetivo” dos documentos de um emissor a um receptor. Contudo, a Ciência da Informação superou, nos anos seguintes, esse modelo consolidado em sua origem na década de 1960, a partir do desenvolvimento de subáreas ou diferentes “programas de pesquisa”. A primeira destas áreas está na origem mesma da CI: o estudo da informação científica e tecnológica (ICT). Os estudos iniciais estiveram voltados para a busca de caracterizações universais das diferentes fontes e recursos informacionais presentes na prática científica (tempo de produção de cada um deles, vantagens e desvantagens, completude, custos, etc). Ao longo dos anos, esses estudos se deslocaram para as práticas informacionais dos cientistas, identificando a importância da comunicação informal (com a descoberta dos “colégios invisíveis”), ampliando o foco de observação dos fenômenos. Mais recentemente, começaram a ser desenvolvidos estudos a partir do conceito de “rede”, analisando as ações informacionais dos cientistas tomados como coletivo interrelacionado e não apenas no nível individual. Uma segunda subárea se desenvolveu utilizando o mesmo instrumental da ICT, porém no ambiente organizacional. Surgiram aí os estudos em gestão da informação e do conhecimento, que também trouxeram uma série de inovações. Num primeiro momento voltaram-se para as diferentes fontes de informação (internas ou externas às organizações) e suas características e papel nos processos decisórios, naquilo que ficou conhecido como “gestão de recursos informacionais”. Com o avanço das pesquisas, percebeu-se a importância de se estudar os conhecimentos que os membros das organizações detinham, porém ainda não existiam fisicamente. Iniciou-se uma distinção entre “conhecimento tácito” e “conhecimento explícito” (tomada da filosofia de Polanyi) que ajudou a esclarecer ainda mais as distinções entre documento e informação. No âmbito dessa subárea também foram estudados os processos por meio dos quais conhecimentos tácitos tornam-se explícitos e vice-versa. Em anos mais recentes, vêm sendo estudada a natureza coletiva desse processo, em torno dos estudos sobre “cultura organizacional” e os ambientes de produção e uso da informação.


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Uma terceira subárea também utilizou os mesmos pressupostos da área de ICT, porém voltados para o ambiente geopolítico, e a partir de uma perspectiva tomada das teorias críticas. Tal campo, muitas vezes designado como “economia política da informação” (bem como estudos voltados para as ligações entre “informação, cidadania e democracia”) começou a problematizar a desigual produção e acesso a fontes, serviços e sistemas de informação por parte dos diferentes países do mundo e, dentro destes países, por parte de diferentes grupos ou classes sociais. De uma preocupação com o acesso físico à informação, tais estudos evoluíram para a compreensão das competências e capacitações envolvidas com a produção e o uso da informação. Mais recentemente, passaram a destacar como os contextos econômicos, políticos, regulatórios, sociais e culturais nos quais essas fontes, serviços e sistemas se inserem são coletivamente apropriados e usados para sustentar ou combater relações estruturais de poder, bem como para embasar os “livros verdes” da “sociedade da informação” promovidos por diferentes países. Uma quarta subárea que se desenvolveu é a relacionada com os estudos sobre representação da informação. Num primeiro momento tais estudos se desenvolveram estritamente vinculados à pesquisa em recuperação da informação, com a comparação dos indicadores de precisão e revocação de diferentes linguagens e instrumentos de representação dos conteúdos dos documentos. Depois, foram considerados os aspectos relacionados com a dimensão cognitiva dos usuários, combinando descobertas sobre necessidades de informação e estratégias de busca da informação (fenômenos/atributos que não estão presentes na fisicalidade dos documentos) para a construção de sistemas de recuperação da informação. Em anos mais recentes, as possibilidades trazidas com o hipertexto e as interfaces digitais proporcionaram um grande avanço na própria percepção do caráter essencialmente construído dos processos de representação. Organizar e representar a informação não são processos de “reprodução” da realidade, não consistem na produção de um “espelho” do real – antes, significam diferentes maneiras (realizadas por atores específicos, em contextos sócio-históricos específicos e, importante destacar, a partir de tecnologias específicas) por meio das quais a realidade é apreendida e sistematizada. Vêm aumentando de importância estudos em representação da informação em “domínios” específicos (noção construída a partir da ideia de “comunidade de discurso” de Wittgenstein) e construção de sistemas de representação singulares – como por exemplo as folksonomias, as ontologias e as diversas formas de indexação social. Outra subárea são os estudos de usuários da informação. Inicialmente, tal subárea constituiu-se de estudos buscando padrões de uso da informação, por meio da medição do acesso físico a determinados documentos ou sistemas de informação e sua correlação com fatores sociodemográficos dos usuários. Nos anos seguintes, foi se desenvolvendo a área conhecida como “comportamento informacional”, dedicada aos diversos modelos por meio dos quais se compreendia a totalidade do comportamento humano em relação à informação, desde a percepção da necessidade, passando pelo engajamento em ações de busca, chegando às variadas formas de uso e apropriação da informação. Em anos mais recentes, nesta subárea têm se manifestado os estudos sobre “práticas informacionais”, voltados para o estudo da ligação entre aspectos informacionais socioculturais (formas coletivas de se relacionar com a informação, critérios coletivos de relevância, necessidade, etc) e os comportamentos informacionais individuais. Também na subárea de estudos métricos houve uma gradual evolução. Inicialmente tais estudos se desenvolveram na esteira da Bibliometria, voltados

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para o estabelecimento e a confirmação de leis sobre produtividade de autores, distribuição de periódicos em listas de citações, entre outras. Nos anos seguintes, com a Cientometria e a Informetria, buscou-se aprimorar estes estudos questionando-se, por exemplo, as razões pelas quais documentos são citados em outros. Em anos mais recentes, estudos vêm sendo desenvolvidos relacionando resultados informétricos com dimensões geopolíticas ou redes e comunidades de pesquisa e suas relações estruturais, bem como a construção de mapas de visualização de literaturas. No desenvolvimento e nas pesquisas realizadas no âmbito de cada uma destas subáreas, deu-se uma progressiva sofisticação do conceito de informação, expressa sobretudo em dois momentos paradigmáticos para o campo. O primeiro deles consiste num conjunto de reivindicações teóricas elaboradas desde a década de 1960 em torno da necessidade de se incorporar o conceito de “conhecimento” na definição de “informação”. No evento The Copenhagen Conference Theory and Application of Information Research, ocorrido em 1977, na Dinamarca, estabeleceu-se um consenso sobre essa questão. Nos anos seguintes, tornou-se hegemônica uma definição tríade de informação: de um lado há os “dados”, isto é, aquilo que tem existência material, os documentos, os registros de conhecimento; de outro lado há o “conhecimento”, aquilo que está “dentro da mente” das pessoas; entre ambos, como resultado de sua interação, está a “informação”. Ou seja, a informação é a medida da alteração que os dados provocam numa estrutura de conhecimento. Algo não é mais compreendido como informativo em si. Os dados, aquilo que tem existência material, possuem uma dimensão objetiva (e ela define um certo horizonte de possibilidades de significado). Já o conhecimento do sujeito também estabelece um horizonte de compreensão, por ser composto de coisas “já sabidas” e por quadros de sentido nos quais o já sabido se acomoda. A informação emerge do encontro essas duas esferas, aquilo que o dado “diz” e aquilo que o conhecimento “permite” compreender do dado. Tem-se aqui um quadro de compreensão da informação mais complexo. O símbolo maior dessa inovação teórica foi a fórmula de Brookes, que define informação como o estado de conhecimento do indivíduo alterado pela incorporação de uma variação de informação, e sua fundamentação se deu com os trabalhos de Nicholas Belkin no começo dos anos 1980 em torno da teoria dos Anomalous States of Knowledge. Nos anos seguintes, diversos autores, como Tom Wilson, Carol Kuhlthau, Brenda Dervin, Perti Vakkari, Peter Ingwersen e David Ellis, engajaram-se em pesquisas tendo como fundamento esta noção de informação. Mas as subáreas da Ciência da Informação continuaram promovendo avanços teóricos e conceituais. Novas questões continuaram a ser formuladas indicando a necessidade de superação do modelo cognitivo consolidado até então. Em 1991, a comunidade científica da CI promoveu em grande encontro internacional, o I CoLIS – International Conference on Conceptions of Library and Information Science, realizado em Tampere, na Finlândia. Diversos artigos foram apresentados na ocasião, representantes das mais diversas subáreas da CI, apresentando resultados de pesquisas e reflexões que apontavam que esse “algo” identificado como “informação”, obtido no processo de interação entre dados e conhecimento, não era definido apenas pelo sujeito específico, um sujeito individual, isolado, destacado do mundo e do convívio com outros. Antes, os contextos específicos (as realidades históricas, políticas, econômicas, culturais) são parcialmente determinantes do processo. Ao mesmo tempo, o coletivo, isto é, as demais pessoas com quem o sujeito específico interage, também são fundamentais na determinação


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do processo – ninguém conhece sozinho, necessidades e usos de informação são coletivamente formados. O próprio conceito de “conhecimento” foi reformulado, não sendo mais compreendido com simples adição de dados a um estado mental, mas sim dentro de um quadro mais complexo relacionado com diferentes processos de assimilação, acomodação, interpretação, imaginação, análise e síntese. Ou seja, as pesquisas desenvolvidas nas últimas duas décadas evidenciaram o caráter essencialmente contextual e intersubjetivo dos fenômenos informacionais (FROHMANN, 2008; HJORLAND; ALBRECHTSEN, 1995; RENDÓN ROJAS, 2005). Essa evolução do conceito de informação foi mapeada por diferentes autores, de diferentes contextos. Saracevic (1999) apontou a existência de três conceitos de informação: um sentido restrito (sinais enviados por um emissor a um receptor), um sentido amplo (informação envolve processamento cognitivo e compreensão) e um sentido ainda mais amplo (informação existe em um contexto e no decurso de uma tarefa). Ørom (2000) identificou, na CI, a existência de um modelo físico num primeiro momento, superado por um modelo cognitivo. Para este autor, no momento contemporâneo estariam se desenhando abordagens alternativas a partir da aproximação com a comunicação e a semiótica, privilegiando a dimensão cultural da informação. Numa linha bastante próxima, Fernández Molina e Moya-Anegón (2002) identificaram três grandes modelos de estudo na CI: o modelo positivista (abordagem física da informação), o cognitivo (mentalista) e o sociológico (contextualiza, privilegia as relações que uma coletividade estabelece com os conhecimentos registrados que ela mesma cria). Os esquemas acima podem ser bem representados pela sistematização que Capurro (2003) realizou quando proferiu a conferência magna do Enancib, o Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação, em 2003. Na ocasião, o autor definiu a evolução da Ciência da Informação como sendo a história da consolidação de um primeiro paradigma, o físico (que privilegia a idéia de informação como “coisa” a ser transferida de um ponto a outro); que foi questionado por um outro, o cognitivo (inspirado na filosofia de Popper e que enfatiza a informação como elemento alterador dos modelos mentais dos usuários); que, por fim, vem sendo também questionado por um terceiro, denominado social ou pragmático (que busca entender o que é informação por parte de comunidades de usuários e de sua inserção em contextos socioculturais específicos, resgatando a idéia de informação como construção intersubjetiva). Desde então, diferentes autores têm buscado consolidar estudos fundamentados nesta perspectiva de estudos da informação (CAPURRO, 2009; CRONIN, 2008; GARCÍA GUTIÉRREZ, 2008; SILVA, 2006). Tem-se, assim, um progressivo incremento de dimensões e problemas incorporados como objeto de estudo para o campo da Ciência da Informação. De certa forma, o movimento foi bastante semelhante ao que aconteceu com a Museologia – da concretude à abstração, da simplificação à complexidade. Assim, as perspectivas contemporâneas de estudo da informação mostram-se portanto muito pertinentes para aplicação e compreensão dos fenômenos museológicos. O espaço do diálogo O quadro epistemológico contemporâneo da Museologia tem um importante significado na própria configuração do campo como disciplina científica. Esse quadro pode ser sintetizado pela discussão promovida por Stránský (2008), que em 1980 colocava o problema da identidade científica da Museologia. Em sua visão, a área se desenvolveu, desde o século XIX, de maneira bastante empí-

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rica e intuitiva, tratando de questões organizacionais e técnicas, contemplando a historiografia dos museus e descrições de práticas individuais, pouco voltadas para o descobrir. Mas, em sua avaliação, gradualmente a Museologia foi se aproximando de um estatuto científico, por meio da qual se afastou da prática para, em seguida, relacionar-se novamente com ela - porém, numa nova condição. Conforme a discussão empreendida neste texto, de 1980 para cá muito se avançou no campo em direção à sua consolidação, não apenas no sentido das teorias e práticas formuladas desde o início do século XX (agrupadas, neste texto, em quatro eixos) como, e principalmente, pelos arranjos e reconfigurações realizadas a partir delas nas últimas três décadas - as abordagens contemporâneas em torno da Nova Museologia, da mediação, do patrimônio imaterial, dos museus virtuais e, enfim, da ampliação do objeto da área do museu (sua organização, suas técnicas e seus acervos) para a musealidade. Como apontou Stránský (apud DELOCHE, 2002, p. 108), da mesma forma que o objeto da Ciência Política não são as instituições políticas mas “o político”, isto é, a dimensão política de toda ação humana, assim também o objeto da Museologia não é o museu, a instituição, mas sim “o museal”, uma dimensão da ação humana presente nos mais diversos contextos – inclusive, mas não só, no museu. Um paralelo com essa discussão, na Ciência da Informação, é a discussão sobre o conceito de informação promovida por Capurro (2009). O autor retorna à própria origem do termo, os conceitos gregos de eidos (ideia) e morphé (forma), para recompor o significado de informação como “dar forma a algo”. Informação, portanto, se inscreve no âmbito da ação humana sobre o mundo (“in-formar”), apreendendo-o por meio do simbólico, nomeando e classificando os objetos que conhece (objetos da natureza), criando objetos que passa a utilizar (com as mais diversas finalidades), produzindo registros que constituem novos objetos (textos impressos, visuais, sonoros) e criando ainda registros destes registros (catálogos, índices, inventários, etc). Informação, nesse perspectiva (que é aquela presente nas abordagens contemporâneas da CI), é um conceito que perpassa todo esse processo. Tem origem na produção de registros materiais e se prolonga nas atividades humanas (incluindo aí as museológicas) sobre esses registros. Mas é ainda mais ampla do que isso: é tudo aquilo que envolve essa ação humana a partir do primeiro registro, do primeiro ato de “in-formar”. Parte da ação humana comum, cotidiana, de apreender o mundo e produzir registros materiais desse processo; chega às instituições e procedimentos técnicos criados especificamente para intervir junto a estes registros; e os ultrapassa nos mais diversos usos, fluxos, apropriações, contextos. Dada sua amplitude, surge com grande potencial de permitir o estudo (a partir de uma perspectiva informacional) dos processos museológicos, vindo ao encontro das perspectivas contemporâneas da Museologia que a vêem como sendo muito mais do que os procedimentos técnicos definidos pelo modelo custodial e tecnicista inicialmente consolidado. Naturalmente, os fenômenos museais possuem muito mais do que uma dimensão informacional. Eles também possuem uma dimensão comunicativa, administrativa, educacional, histórica, entre outras. Cursos de Museologia poderiam se instalar tranquilamente em faculdades ou escolas de Comunicação, de Administração, de Educação, de História, e se relacionar com essas áreas. Em cada um desses casos, contudo, o diálogo se daria numa direção específica. Nesse sentido, o fato concreto é que, em alguns contextos, como mencionado no início deste texto, a Museologia ocupa o espaço institucional da Ciência da Informação. Pode-se pensar que isso seja ou venha a ser um mero acaso, ou


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pode se pensar nisso como uma ótima oportunidade de promoção de estudos e pesquisas a partir da dimensão informacional envolvida nas práticas museológicas, ao mesmo tempo em que tal oportunidade também possibilita o diálogo com os campos da Arquivologia e da Biblioteconomia. Em suma, uma oportunidade de incremento teórico e conceitual tanto para a Museologia como para a Ciência da Informação, a somar-se aos avanços já realizados nas décadas que se seguiram ao surgimento das duas áreas. Referências ALONSO FERNÁNDEZ, Luis. Introducción a la nueva museología. Madrid: Alianza, 1999. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BENNETT, Tony. Pasts beyond memory: evolution, museums, colonialism. Londres: Routledge, 2004. BOLAÑOS, María. La memoria del mundo: cien años de museología. Gijón: Trea, 2002. BOURDIEU, Pierre.A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007. CAMERON, Duncan. The museum as a communication system and implication of museum education. Curator, American Museum of Natural History, v. 11, n. 1, p. 33-40, 1968. CAPURRO, Rafael. Epistemologia e ciência da informação. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 5., 2003, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação, 2003. CAPURRO, Rafael. Pasado, presente y futuro de la noción de información. In: ENCUENTRO INTERNACIONAL DE EXPERTOS EM TEORÍAS DE LA INFORMACIÓN, 1., 2009. Anais... Leon: Universidad de Leon, 2008. CRONIN, Blaise. The sociological turn in information science. Journal of Information Science, v. 34, n. 4, p. 465-475, 2008. DAVIS, Peter. Ecomuseums: a sense of place. Londres: Leicester University Press, 1999. DAY, Ronald. The modern invention of information: discourse, history and power. Carbondale: Southern Illinois University Press, 2001. DELOCHE, Bernard. El museo virtual. Gijón: TREA, 2002. DUARTE, Adelaide Manuela da Costa. O Museu Nacional da Ciência e da Técnica: 1971-1976. Coimbra: Ed. Universidade de Coimbra, 2007. FEATHER, J.; STURGES, P. International encyclopedia of information and library science. Londres: Routledge, 2003. FERNÁNDEZ DE PAZ, Esther; AGUDO TORRICO, Juan. (Org.). Patrimonio cultural y museología: significados y contenidos. Santiago de Compostela: Federación de Asociaciones de Antropología del Estado Español (FAAEE), 1999. FERNÁNDEZ MOLINA, Juan Carlos; MOYA-ANEGÓN, Félix. Perspectivas epistemológicas “humanas” en la documentación. Revista Española de Documentación Científica, v. 25, n. 3, p. 241-253, 2002. FROHMANN, Bernd. O caráter social, material e público da informação. In: FUJITA, Mariângela; MARTELETO, Regina; LARA, Marilda (Org.). A dimensão epistemológica da ciência da informação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2008. p. 19-34.

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O QUE NOS UNE E O QUE NOS SEPARA? DEBATE EM TORNO DA PROPOSTA DE UM EIXO INTEGRADOR ENTRE OS CURSOS DE ARQUIVOLOGIA, BIBLIOTECONOMIA E MUSEOLOGIA DA FACULDADE DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Cynthia Roncaglio1 Universidade de Brasília

RESUMO: Os cursos de graduação em arquivologia, biblioteconomia e museologia da Universidade de Brasília (UnB) foram criados em períodos e contextos político-institucionais distintos e diversos da trajetória desta Universidade e da educação no Brasil. Este artigo tem como objetivos fazer uma breve síntese do percurso individual desses cursos, expor os motivos que os uniram em torno de uma proposta de integração curricular e apresentar os resultados parciais do debate que ainda está em curso

ABSTRACT: Archivology, librarianship and museology were created as undergraduate courses, at the University of Brasília (UnB) within different political and institutional contexts and their background differs from the university´s background and from historical patterns of education in Brazil. This article aims to provide a brief overview of these particular courses, show the reasons that have united them around a proposal of curriculum integration and present partial results of this on going debate.

PALAVRAS-CHAVE: Arquivologia. Biblioteconomia. Museologia. Ciência da Informação. Integração Curricular.

KEY-WORDS: Conservatory. Museum. Musical instruments.

1 Professora do Curso de Arquivologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Faculdade de Ciência da Informação da Universidade de Brasília. e-mail: cynthia.roncaglio@gmail.com.


Cynthia Roncaglio

Introdução A Universidade de Brasília (UnB) foi fundada em 1962, dois anos após a criação de Brasília e a transferência de vários órgãos da administração pública federal para a nova capital federal do Brasil. O Curso de Biblioteconomia nasceu quase concomitante à fundação da UnB.A proposta de criação do Curso, em 1962, inseria-se no projeto de dotar a UnB de uma Biblioteca Central, composta de obras gerais e de referência, serviços de documentação e intercâmbio científico e cultural. Junto à Biblioteca funcionaria o Curso de Biblioteconomia voltado para atender os alunos bacharelados pelos Institutos Centrais (Matemática, Biologia, Química, Ciências Humanas, Letras etc.) que desejassem se especializar na área de biblioteconomia e documentação (RIBEIRO, 2012, p. 23-27).A criação do Curso também coincidia com a regulamentação da profissão de bibliotecário e o estabelecimento do currículo mínimo nacional. Porém, o Curso só passou a funcionar efetivamente em 1965, na Faculdade de Biblioteconomia e Informação Científica (FUBICA) (ARAÚJO, MARQUES;VANZ, 2011, p. 97). Observa-se que no projeto da UnB, contemplava-se, além da Biblioteca Central, um “Museu da Civilização Brasileira” e um “Museu da Ciência” (RIBEIRO, 2012, p. 24). Não há menção no projeto à criação de um Arquivo Central, talvez por se compreender à época que a responsabilidade e a guarda da documentação coubessem à Biblioteca Central ou aos próprios Institutos e Faculdades. Nos anos 1970, a FUBICA passou a ser denominada Faculdade de Estudos Sociais Aplicados (FA). A partir de 1978, passou a contar também com um Curso de Mestrado em Biblioteconomia, depois Mestrado em Ciência da Informação e, em 1992, foi criado o Curso de Doutorado na mesma área (ARAÚJO; MARQUES;VANZ, 2011). O Curso de Arquivologia foi criado três décadas depois, em 1991. Embora se cogitasse a sua criação desde o final da década de 1970, junto ao Departamento de História e Geografia, a proposta não vingou e somente após mais de dez anos foi retomada, no âmbito do então Departamento de Biblioteconomia da FA. A justificativa para a sua criação respaldava-se na ausência de profissionais preparados para gerir os arquivos públicos e privados existentes no Distrito Federal e da necessidade de garantir a preservação da memória nacional. No mesmo ano de criação do Curso de Arquivologia da UnB é criado o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) e a Lei n.8.159, que dispõe sobre a Política Nacional de Arquivos. Em 2003, os cursos de Arquivologia e Biblioteconomia passaram a fazer parte do Departamento de Ciência da Informação e Documentação (CID) da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Ciência da Informação e Documentação (FACE). No final dessa década é que começa a ser engendrado o Curso de Museologia. Este Curso, tal como o de Arquivologia, também foi imaginado muito antes da sua efetiva existência. Atendendo às diretrizes educacionais do Ministério da Educação (MEC) foi proposto, em 1988, um curso de especialização em Museologia, baseado em uma integração curricular com as demais áreas de informação, notadamente, Arquivologia e Biblioteconomia. Na mesma década, a Unesco realizou um Simpósio Internacional para Compatibilização da Formação Profissional e Treinamento em Ciência da Informação, Biblioteconomia e Arquivologia, no qual não se inseriu a área de Museologia (MÜLLER, 1984), e a mesa redonda internacional, organizada pela International Federation of Library Associations (IFLA), para a qual foi convidado um professor do CID a apresentar uma pré-proposta de harmonização curricular dos cursos de Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia, no âmbito da Ciência da Informação. (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, 2010). Todavia, as circunstâncias institucionais, mais uma vez, não permitiram isso acontecer. O Curso de Museologia teria que esperar uma nova conjuntura po-

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O que nos une e o que nos separa? Debate em torno da proposta de um eixo integrador entre os cursos de arquivologia, biblioteconomia e museologia da faculdade de ciência da informação da universidade de brasília

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lítica educacional e institucional, para nascer em 2009, cerca de três anos após uma solicitação do Departamento de Museus do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Demu/Iphan) feita ao CID e dois anos depois ao lançamento do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)2. No caso do Curso de Museologia há que se destacar ainda a peculiaridade de que, embora esteja sediado na Faculdade de Ciência da Informação, o Curso faz parte de um consórcio no qual também participam os departamentos de Antropologia, História e Artes Visuais da UnB. A criação de mais este Curso no Departamento de Ciência da Informação e Documentação também foi um dos fortes argumentos para o CID transformar-se em Faculdade de Ciência da Informação (FCI), fato que ocorreu a partir de 2010. Do percurso individual dos cursos à aproximação dos campos de estudo Como visto até aqui, a concepção e a trajetória de cada um desses cursos na UnB foram frutos das circunstâncias e atenderam mais ou menos às expectativas da conjuntura social e institucional de cada período. Evidente que, guardadas as suas especificidades, compreende-se que esta trajetória liga-se também ao desenvolvimento científico da Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação no âmbito nacional e internacional, à expansão dos cursos acadêmicos nas universidades públicas brasileiras, à tendência das Ciências a estabelecer novos paradigmas, baseados na interdisciplinaridade e no diálogo dos saberes e, enfim, à importância que conquistou a informação e o conhecimento na sociedade contemporânea3. Mas o quê efetivamente fez que com que os Cursos de Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia da UnB percebessem a necessidade de não apenas compartilharem o mesmo espaço físico e a vinculação institucional, mas também seus vieses epistemológicos? Bem, o fato de compartilharem o mesmo espaço físico e pertencerem à mesma Faculdade pode não ser suficiente para promover uma integração curricular, mas não pode ser ignorado. A necessidade de laboratórios para organização e tratamento da documentação, por exemplo, permeia os três cursos. O entendimento do que seja a Ciência da Informação, que dá nome à Faculdade e à qual os três cursos estão vinculados institucionalmente, também parece ser importante para a contextualização das três áreas que tratam da gênese, da organização, da recuperação e do acesso à informação. Mas há outros motivos gerados, talvez, sobretudo, pela proximidade física e institucional dos cursos. Os próprios estudantes de graduação da FCI têm se interessado em cursar disciplinas de dois ou dos três cursos e, amiúde, têm se diplomado em um ou mais cursos. Os docentes de cada curso, por sua vez, estão analisando alterações curriculares dos seus respectivos cursos. Esses aspectos, somados, têm contribuído para um olhar mais cuidadoso sobre a sua própria unidade acadêmica, sobre o perfil dos alunos e sobre as disciplinas que compõem o núcleo geral e específico de todos os cursos.Ademais, as experiências similares em outras universidades brasileiras, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UNIRIO -, a Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG - e a Universidade Federal 2 Dentre os seus principais objetivos, o REUNI visa a aquinhoar as universidades federais das condições necessárias para ampliação do acesso e da permanência na educação. Esse Programa prevê metas para ampliação das estruturas físicas, reforço e ampliação das iniciativas para ampliação de vagas e elevação da qualidade da educação nacional (REUNI, 2007). 3 Vários eventos e publicações têm abordado as reflexões e os relatos de experiência resultantes de propostas de integração dessas áreas. Alguns autores têm procurado sintetizar e discutir os resultados disso. Ver, entre outros: Matos e Cunha (2003); Araújo (2010); Araújo, Marques e Vanz (2011).


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do Rio Grande do Sul – UFGRS - e a divulgação de dois documentos oficiais do MEC, contribuíram, decisivamente, para a reflexão sobre os rumos dessas áreas: o primeiro, divulgado pelo Departamento de Políticas de Ensino Superior da Secretaria de Educação Superior (SESU), elaborado em 1998, por uma Comissão de Especialistas de Ensino da Ciência da Informação que propõe diretrizes curriculares para os três cursos aqui abordados (SESU, 1998). O outro documento consiste nas diretrizes do REUNI, que apontam o descompasso entre os rumos da educação pública de nível superior e a sociedade atual, quando diz que: Ela [a graduação da educação pública] é fundamental para que os diferentes percursos acadêmicos oferecidos possam levar à formação de pessoas aptas a enfrentar os desafios do mundo contemporâneo, em que a aceleração do processo de conhecimento exige profissionais com formação ampla e sólida. A educação superior, por outro lado, não deve se preocupar apenas em formar recursos humanos para o mundo do trabalho, mas também formar cidadãos com espírito crítico que possam contribuir para solução de problemas cada vez mais complexos da vida pública (BRASIL, 2007, p. 5, grifo nosso).

Levando em consideração esses aspectos, em 2010, foi criada uma Comissão de Integração Curricular na FCI para analisar a atualização da grade curricular e estudar um “tronco comum” para os cursos de graduação em Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia. A Comissão foi composta por 15 membros da FCI, distribuídos da seguinte maneira: a presidente da Comissão, professora do Curso de Arquivologia e, então, coordenadora do Curso de Museologia; 2 docentes e 1 discente do Curso de Arquivologia; 6 docentes e 1 discente do Curso de Biblioteconomia; 1 docente e 1 discente do Curso de Museologia, 1 docente do Curso de Pós-Graduação em Ciência da Informação e a diretora da Faculdade de Ciência da Informação. A preponderância de membros da Biblioteconomia na Comissão deve-se ao fato de que, sendo o curso mais antigo, contava com um número maior de docentes. O Curso de Museologia, com menor número de representantes, encontrava-se, naquele momento, em processo de contratação de novos professores. Já nas primeiras reuniões procurou-se um método de aproximação entre os presentes em torno da construção de um quadro onde se pudesse visualizar os conteúdos desejáveis ao “tronco comum” de disciplinas da Ciência da Informação e respectivas disciplinas, a partir dos documentos do MEC/SESU. Assim sendo, os representantes de cada curso podiam expressar suas opiniões sobre quais os termos mais adequados para denominar cada eixo e os conteúdos a serem contemplados pelas respectivas disciplinas e ementas. As reuniões foram produtivas e calorosas. Em um primeiro momento identificou-se os seguintes eixos integradores, nos quais se agrupariam determinadas disciplinas: Eixo 1) Construção do saber Eixo 2) Ciência da Informação Eixo 3) Instituições e usuários Eixo 4) Tecnologia Mesmo havendo alguns dissensos, os trabalhos da Comissão seguiram em frente, definindo-se quais disciplinas fariam parte de cada eixo e elaborando-se as ementas para as disciplinas. Cerca de um ano depois, foram feitas reuniões abertas aos docentes dos três cursos, a fim de apresentar a proposta elaborada

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pela Comissão. Foram muitas as interrogações, algumas delas já feitas anteriormente pelos próprios membros da Comissão. Afinal, estaríamos a discutir um “tronco comum” ou “eixos integradores”? Qual a diferença? O tronco seria a base a partir da qual se ramificam os saberes/disciplinas. Os eixos integradores, diferentemente, correspondem às ideias fulcrais, os pontos mais importantes que dão sustentação, apoio a um conjunto de disciplinas. A Arquivologia, a Biblioteconomia e a Museologia seriam ramificações da Ciência da Informação? Para os representantes da Biblioteconomia, que há muito tempo dialogam com a Ciência da Informação, a ideia de ramificação parecer-lhes-ia mais natural. Entretanto, para os representantes da Arquivologia e da Museologia, que identificam marcos epistemológicos anteriores e, em alguma medida, divergentes da Ciência da Informação, e com entrecruzamentos teóricos e conceituais mais freqüentes com outras áreas (Administração, Direito, História, Antropologia, Artes etc.), a vinculação à Ciência da Informação parece ser muito recente e artificial, não havendo respaldo epistemológico que garanta tal vinculação, embora isso não seja considerado pelas organizações oficiais de educação superior.4 Seria então a Ciência da Informação uma ciência que engloba as três áreas? Ou Arquivologia, Biblioteconomia, Ciência da Informação e Museologia são áreas de conhecimento autônomas, distintas, embora voltadas, em última instância, para o acesso à informação registrada nos seus mais diferentes formatos e suportes? E esta finalidade seria realmente o ponto final ou o principal fio que alinhavaria todas as áreas? Tais questionamentos levaram a uma reformulação da proposta inicial, alterando-se os eixos integradores e, respectivamente, as disciplinas e algumas ementas, que resultaram na seguinte versão: Eixo 1) Construção do saber Eixo 2) Fundamentos, organização e preservação da informação Eixo 3) Administração de unidades de informação Eixo 4) Tecnologias da informação Percebe-se nesta nova proposta que ocorre uma exclusão do eixo Ciência da Informação e a inserção do termo Informação em três eixos integradores. A seguir, a proposta deveria ser discutida nos colegiados de cada Curso e a Comissão se reuniria novamente para processar os ajustes indicados pelos Cursos. Mas existiam ainda muitas dúvidas e os cursos de Arquivologia e Museologia, em especial, voltavam-se, respectivamente, para a discussão da sua atualização curricular e para a organização do Curso, que agora contava com mais professores da área específica. As discussões foram retomadas no ano de 2012, com a realização de um evento que contou com a participação de um professor convidado da UFMG, Carlos Alberto Ávila Araújo, que muito contribuiu para a reflexão sobre os propósitos da integração curricular na FCI. Além do debate com os docentes da FCI, Ávila (ARAÚJO, 2012) apresentou uma síntese histórica da trajetória de cada um dos campos de conhecimento (Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação), apontou os elementos comuns que podem ser 4 Cabe notar que na estrutura de áreas de Ciência e Tecnologia no Brasil, definidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Arquivologia e Biblioteconomia constam como subáreas da Ciência da Informação, enquanto que a Museologia é considerada uma área, no mesmo nível da Ciência da Informação, ambas subordinadas à grande área de Ciências Sociais Aplicadas. Ver CNPq. Disponível em: <www.cnpq.br>. Acesso em: 12. jul. 2012.


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considerados e potencializados numa integração curricular e os aspectos específicos que fazem parte do corpo de conhecimentos de cada campo. O evento durou dois dias e vários professores e estudantes dos três cursos de graduação participaram e expuseram suas preocupações e dúvidas. Foi o momento, mais uma vez, de se interrogar: o que temos em comum? O que queremos? Temos um projeto coletivo? O que justifica este projeto coletivo? Quais são as vantagens de se realizar este projeto? Quais são os desafios? Dentre as preocupações expressas pelos docentes consta o receio em relação a: • preparo dos docentes para ministrar disciplinas transversais às quatro áreas; • possíveis distorções de conteúdos específicos para atender a uma vi- são genérica; • desvirtuamento da legislação referente à atuação de cada profissional. Todavia, várias dúvidas foram esclarecidas no debate e percebe-se que há mais pontos em comum entre esses campos do conhecimento do que diferenças, como apontam diversos estudos há mais de três décadas. Ainda assim, os docentes e os profissionais de cada área estão muito envolvidos na afirmação e consolidação do seu campo específico de conhecimento, na organização e funcionamento dos seus cursos e todos comprometidos com o desempenho de outras atividades e responsabilidades acadêmicas, comuns a todos os cursos, que muitas vezes os impossibilita de dedicar tempo e reflexão aos pontos em comum dessas áreas de atuação e delinear uma atuação conjunta. Considerações finais Ainda não se chegou a um consenso sobre os eixos integradores como também está sendo reavaliada a condução do debate: se este deve continuar via Comissão e/ou grupo de estudo, por meio de reuniões mais restritas ou mais amplas, aberta a docentes e discentes, periodicidade e assim por diante. No entanto, o processo de construção da integração curricular dos cursos que compõem a graduação da atual Faculdade de Ciência da Informação tem sido rico e estimulante para todos os envolvidos, embora moroso. Mas essa morosidade significa que, apesar de haver um desejo de construir um projeto coletivo, tem-se consciência de que este não pode se basear apenas em demandas ditadas pelas mudanças institucionais ou pelas diretrizes da legislação educacional. Deve ser prioritariamente resultado da maturação intelectual e da capacidade crítica de todos os envolvidos de perceber, do ponto de vista epistemológico, o que nos une e o que nos separa. Quais são os limites e as potencialidades dessa integração? Há vários indícios e razões, de ordens diferentes, no entanto, que sugerem que vale a pena seguir nesta empreitada: a. A informação como elemento comum a todas as áreas da graduação e da pós-graduação envolvidas, ou, em outras palavras, a contribuição do olhar informacional da Arquivologia, Biblioteconomia, Museologia e Ciência da Informação, por meio de suas teorias e práticas, para a área da Informação; b. O interesse dos estudantes da FCI em adquirir informações nas áreas afins e obter a graduação em mais de um curso ou até nos três cursos; c. O incentivo e reforço dos vínculos entre graduação e pós-graduação; d. A possibilidade de fortalecer a estrutura institucional, aprimorar os in-

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vestimentos financeiros, a gestão administrativa e o quadro de docentes; e. A possibilidade de promover eventos integrados e ampliar os eventos de extensão; f. A harmonização docente, a partir do diálogo gerado pelo processo de integração curricular entre todos os professores, consubstanciada em enriquecimento dos conhecimentos gerais e específicos de cada campo de conhecimento (fortalecimento do que é comum e do que é específico) e da própria formação intelectual e profissional de cada docente. Certamente o tempo e o esforço continuado, de todos os envolvidos na proposta, dirá qual o melhor caminho a tomar. Referências ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila.Aspectos históricos e epistemológicos que sustentam as relações entre Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia com a Ciência da Informação. In: REUNIÃO GERAL SOBRE O TRONCO-COMUM DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO DA FCI.Apresentação verbal. Brasília, 21 e 22 de junho de 2012. Não publicado. ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. Ciência da Informação como campo integrador para as áreas de Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia. Inf. Inf., v. 15, n. 1, p. 173-189, jan./jun. 2010. ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila; MARQUES, Angélica Alves da Cunha;VANZ, Samile Andréa Souza. Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia integradas na Ciência da Informação: as experiências da UFMG, da UnB e da UFRGS. Ponto de Acesso, v. 5, n. 1, p. 85-108, abr. 2011. BRASIL. Ministério da Educação. REUNI. Reestruturação e expansão das universidades federais: diretrizes gerais. Brasília, 2007. Disponível em: <http://portal. mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/diretrizesreuni.pdf>. Acesso em: 11 jul. 2012. MATOS, Maria Teresa Navarro de Brito; CUNHA,Vanda Angelica da. Notas acerca da convergência da formação acadêmica e profissional entre a Arquivologia, a Biblioteconomia e a Ciência da Informação. In: CINFORM, 4., 2003, Salvador. Anais... Salvador: UFBA/ICI, 2003. p. 167-177. MÜLLER, Suzana. P. M. Em busca de uma base comum para a formação profissional em Biblioteconomia, Ciência da Informação e Arquivologia: relato de um simpósio promovido pela Unesco. Revista Biblioteconomia, v. 12, n. 2, p. 157-165, jul./dez. 1984. RIBEIRO, Darcy (Org.). Universidade de Brasília: projeto de organização, pronunciamento de educadores e cientistas e Lei n.º3.998, de 15 de dezembro de 1961. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2012. SESU. Proposta de diretrizes curriculares. Brasília, 1998. Disponível em: <http: www. google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CC4QFjA A&url=http%3A%2F%2Fwww.abecin.org.br%2Fsiteantigo%2Fportal%2Fabecin%2 Fdocumentos%2Frepositorio%2FDiretrizesCIMecVersao1.doc&ei=cxohUo22LIO m9AT024GACA&usg=AFQjCNGiR0AQPqnFz5UU5FAwyQlV0wxqiw&sig2=PiD 6y8g6SoRhDepbvMWTFg&bvm=bv.51495398,d.eWU>. Acesso em: 01 jul. 2012. UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (BRASIL). Faculdade de Ciência da Informação. Curso de Museologia. Manual do curso de bacharelado em museologia. Brasília: UnB, 2010. Artigo recebido em março de 2013. Aprovado em maio de 2013


ARQUIVOS DE MUSEUS: CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES

Maria Celina Soares de Mello e Silva1 Museu de Astronomia e Ciências Afins/MAST/MCTI

RESUMO: O artigo aborda as definições de arquivo e museu e a partir de seus objetivos, explora as características dos arquivos de museu apontadas pela literatura e traça as duas funções básicas do arquivo de museu, que são a de recolher e colecionar documentos.

ABSTRACT: The article discusses the definitions of archival and Museum and from your goals, explores the characteristics of the proposed literature Museum archives and traces the two basic functions of the Museum, which are to collect and collect documents.

PALAVRAS-CHAVE: Arquivo de Museu. Coleção. Função do Arquivo. Arquivo Institucional. Características do Arquivo.

KEY-WORDS: Museum Archives. Collection. Archives Function. Institutional Archives. Archives Features.

1 Arquivista do Museu de Astronomia e Ciências Afins/MAST/MCTI.


Arquivos de museus: características e funções

Introdução

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As instituições arquivo e museu são antigas e hoje têm suas atribuições e características bem definidas e debatidas. Tanto os arquivos como os museus preservam acervos que são vistos como objetos de memória, processam informações e tornam disponíveis à sociedade. Mas também possuem os mesmos problemas, como pessoal qualificado e espaço físico, além de, como outras instituições culturais, estarem entre os primeiros a enfrentar as demissões e fechamento durante os períodos de escassez de recursos (WYTHE, 2004, p. 3). Porém, quando se trata de um museu que possui um arquivo em sua estrutura, ou ao contrário, um arquivo que possui um museu, os arquivos passam a adquirir características, situação ainda pouco exploradas na bibliografia brasileira. O objetivo deste artigo é explorar o tema dos arquivos enquanto um serviço prestado por um museu, e as funções e características que este deve assumir por estar inserido no universo dos museus. De início é preciso entender a definição de arquivo. O arquivo tanto pode ser uma instituição como um todo, como, por exemplo, um arquivo municipal ou estadual; como também pode ser um setor em uma empresa ou instituição. Independente de seu status institucional, os objetivos de sua criação são os mesmos.Arquivo, segundo a Lei 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências, é: o conjunto de documentos recebidos e acumulados por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência de exercício de atividades especificas, bem como por uma pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos (BRASIL, 1991).

Com este entendimento, a legislação brasileira chancela que os documentos oriundos da prática institucional ou de uma empresa, desde que produzidos no âmbito do exercício de suas funções e atividades, são considerados arquivo, qualquer que seja a instituição. Já a definição de museu elaborada pelo Estatuto dos Museus, por meio da Lei 11.904, diz que: Consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento (BRASIL, 2009).

A definição apresentada pela lei é mais sucinta e objetiva. A definição elaborada pelo Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM – especifica com mais detalhes, explicando as características dos museus2: O museu é uma instituição com personalidade jurídica própria ou vinculada a outra instituição com personalidade jurídica, aberta ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e que apresenta as seguintes características: I – o trabalho permanente com o patrimônio cultural, em suas diversas manifestações; 2 A definição de museu apresentada pelo IBRAM está disponível em: <http://www.museus.gov.br/museu/>. Acesso em: 06 mar. 2013.


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II – a presença de acervos e exposições colocados a serviço da sociedade com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e oportunidades de lazer; III – a utilização do patrimônio cultural como recurso educacional, turístico e de inclusão social; IV – a vocação para a comunicação, a exposição, a documentação, a investigação, a interpretação e a preservação de bens culturais em suas diversas manifestações; V – a democratização do acesso, uso e produção de bens culturais para a promoção da dignidade da pessoa humana; VI – a constituição de espaços democráticos e diversificados de relação e mediação cultural, sejam eles físicos ou virtuais. Sendo assim, são considerados museus, independentemente de sua denominação, as instituições ou processos museológicos que apresentem as características acima indicadas e cumpram as funções museológicas.

O Conselho Internacional de Museus, em seu Código de Ética, ressalta que a missão de um museu é adquirir, valorizar e preservar suas coleções com a finalidade de salvaguarda do patrimônio natural, cultural e científico (INTERNATIONAL..., 2006). Pode-se observar que tanto a definição de arquivo como a de museu contempla a autonomia enquanto instituição, ou admitem que possam ser vinculadas a outra entidade. E é justamente este último caso que os arquivos ou os museus se adaptam e acabam por assimilar as características um do outro. Segundo Camargo, Uma das características importantes do arquivo – e que é preciso levar sempre em consideração, é a de ser o resultado natural e necessário do funcionamento da entidade que lhe deu origem. Não se trata, pois, de uma coleção de documentos feita a partir de critérios seletivos e finalidades variáveis, como ocorre em bibliotecas e museus de perfil institucional especializado (CAMARGO, 2010, p. 22).

O arquivo é o reflexo das atividades e da funcionalidade de uma instituição, pois é criado justamente para preservar os documentos que registram as atividades, servindo de testemunho e de prova das mesmas. Os documentos não são colecionados, eles são produto da instituição e são utilizados, em um primeiro momento, pela própria instituição, que necessita dos registros de sua trajetória por vários motivos, inclusive para a tomada de decisões, no âmbito administrativo. Em um segundo momento, os documentos passam a assumir um outro valor, diferente daquele que gerou sua produção, como, por exemplo, o valor histórico. É nesta fase que frequentemente pode ocorrer distorções de procedimentos. O desmembramento de documentos de seu contexto original por serem considerados importantes para receber destaque fora do arquivo é mais comum do que se possa imaginar. Camargo enfatiza a descaracterização dos documentos de arquivo e o próprio desmembramento do arquivo institucional, retirando alguns documentos do arquivo para compor centros de memória ou de documentação Independentemente do uso que se faça deles no futuro, os documentos de arquivo continuarão a refletir as atividades de que se originaram

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– daí o imperativo de tratá-los de modo a garantir estabilidade a essa relação de correspondência (CAMARGO, 2010, p. 24).

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A manutenção da integridade do arquivo é importante, independente de ser uma instituição ou um setor de um museu. Os documentos devem ser preservados junto ao conjunto documental onde foi originado. Como um organismo que reflete as atividades do museu ao qual pertence, o arquivo acaba por absorver algumas características do museu, conforme veremos a seguir. Características dos arquivos de museus As características dos arquivos de museus foram estudadas pelo Conselho Internacional de Arquivos, por meio da Seção de Arquivos de Museus. Os participantes dessa Seção produziram um livro com as diretrizes para a implantação de arquivos de museus (WYTHE, 2004), que enfatizam os pontos a serem observados: 1. Definição e escopo 2. Missão 3. Status do arquivo 4. Profissional arquivista 5. Documentação do museu e arquivos pessoais 6. Política de aquisição para coleta de materiais 7. Critérios de retenção dos documentos do museu 8. Arquivo corrente 9. Localização e condições 10. Arranjo, descrição e preservação. 11. Acesso Para cada uma dessas diretrizes são fornecidas explicações sobre sua importância e significado. Mas estas são pertinentes também para qualquer tipo de arquivo, não apenas os de museus. Os autores enfatizam, porém, que o documento foi produzido para não arquivistas, apresentando as características básicas dos arquivos. O documento pretende orientar a equipe do museu na implantação de um arquivo de museu. Roberts considera que os arquivos de museus atuam como a memória do museu, assim como os arquivos de outras instituições (ROBERTS, [200-?]). Mas aponta que muitos arquivos de museus contêm pelo menos três tipos de documentos: 1. Documentos que são parte de sua coleção, incluindo itens como mapas, artefatos, fotografias e audiovisuais; 2. Material de arquivo pertencente a sua coleção, incluindo informação de proveniência; 3. Museus também gerenciam seu próprio arquivo institucional. O primeiro refere-se ao documento do arquivo propriamente dito, ao seu acervo. O segundo refere-se aos documentos que registram as peças do museu, que na museologia são os chamados registros do acervo. E o terceiro item refere-se aos documentos produzidos pelo museu no decorrer de suas atividades, ou seja, ao arquivo institucional.


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Para além dos documentos institucionais, a autora acrescenta que muitos arquivos de museus contêm itens que são coleções em e de si. Tanto arquivos pessoais quanto objetos pertencentes a personalidades ligadas ao museu podem ser encontrados nos arquivos. Documentos de objetos, que registram a aquisição, catalogação, exposição, movimentação e conservação das coleções dos museus são considerados documentos típicos de missão; sem esses documentos, o museu não é capaz de funcionar. Como tal, eles são facilmente avaliados e devem ser mantidos. Uma vez que são continuamente ativos, no entanto, os documentos do objeto raramente são transferidos para os arquivos. Neste caso, a avaliação dever ser feita em cooperação com os membros da equipe que cuida desses documentos (WYTHE, 2004, p. 32, tradução nossa).

Trata-se de uma produção documental da instituição, que possui um uso corrente de longo prazo, permanecendo no setor onde foi produzido. O material produzido pelas exposições representa um volume considerável de documentos, que precisam ser avaliados. O museu deve decidir quais poderão ser eliminados e quais serão encaminhados ao arquivo para a guarda permanente (WYTHE, 2004, p. 32). O mesmo ocorre com a pesquisa, que é uma atividade central em muitos museus. É preciso fazer a diferença entre o que pertence ao membro individual da equipe e o que é propriedade do museu. Os dados da pesquisa também podem permanecer de uso corrente por um longo prazo, pois os pesquisadores podem utilizá-los para diferentes pesquisas. Também podem ser compartilhados com pesquisadores de outras instituições. As atividades e programas promovidos pelo museu, tais como programas educativos, eventos, visitas guiadas etc., também devem ter seus registros preservados no arquivo. São atividades com data marcada, com prazos de guarda nas fases corrente e intermediária fáceis de prever. O sistema de gestão de documentos abrange todas estas atividades realizadas pelo museu. É importante que o plano de classificação de documentos, elaborado para o arquivo, contemple estas atividades e, ainda, que as equipes sejam treinadas para o arquivamento corrente e a classificação dos documentos ainda na fase corrente. As características apontadas levam os arquivos de museus a desempenhar, assim, uma dupla função: recolher os documentos produzidos internamente pelo museu, e colecionar documentos de interesse do museu. Funções dos arquivos de museus Baseado na literatura, o que se pode perceber é que as características apontadas para os arquivos de instituições museológicas referem-se essencialmente a duas funções básicas dos arquivos de museus: recolher e colecionar. A função de recolher refere-se à função de arquivo institucional do museu; e a função de colecionar refere-se à de preservar o acervo arquivístico adquirido pelo museu, de acordo com a política de aquisição institucional. Cada uma dessas funções possui características e procedimentos próprios, incluindo diferenças no processamento técnico das informações. Podemos resumir as duas funções como: recolher e colecionar.

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1) Função de arquivo institucional (recolher)

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Os arquivos de museus exercem o papel de arquivo permanente (ou histórico) da instituição, recolhendo os documentos produzidos e acumulados pelo museu no exercício de suas atividades.Também deve ser da responsabilidade do arquivo a implementação e o gerenciamento de um programa de gestão de documentos, que regule a produção documental do museu. Em geral, as instituições museológicas entendem o arquivo institucional como responsável pelos documentos produzidos pelas atividades administrativas ligadas às áreas-meio, não contemplando a documentação produzida pelas atividades das áreas finalísticas, como as de exposição ou pesquisa, por exemplo. Como consequência, documentos dessas atividades permanecem nos setores onde foram criados, ou mesmo podem ser descartados com o tempo. Por exemplo, a documentação de uma exposição, como projeto, plantas, cartas e convites, arte gráfica, relatório para os apoiadores, dentre outros, podem nunca chegar ao arquivo institucional. Essa documentação, oriunda das exposições que os museus promovem como atividades decorrentes da sua função social, leva a questionamentos sobre seu destino. Para Bevilacqua, que levanta a questão para os arquivos de museus de arte, este: [...] material que não é documento de arquivo (pois não é constituído por registros documentais e processuais de atividades, mas pelo produto final em si de uma atividade), mas pode aparecer no arquivo (BEVILACQUA, 2010, p. 158).

O exemplo também é comum em outras tipologias de museus: o material das exposições nem sempre tem seu destino final determinado. Em alguns museus, os resquícios das exposições podem ir parar nos arquivos, mas, em outros casos, permanecem nos setores que produziu o material e seu destino é incerto: esquecimento ou descarte. Desta forma, a documentação sobre as exposições deverão ser encaminhadas para o arquivo tão logo deixe de ser vigente. Bevilacqua também defende que o arquivo institucional de um museu tem como função manter atualizadas as informações sobre as exposições realizadas pelo museu (BEVILACQUA, 2010, p. 158). O material produzido pela atividade de realizar exposições em um museu é recolhido ao arquivo institucional. Nesse sentido, o autor explica essa função do arquivo institucional da Pinacoteca do Estado de São Paulo: [...] Aqui vemos algumas atividades de pesquisa que o setor desenvolve. A primeira delas foi a complementação da cronologia histórica do museu, que virou uma atividade corriqueira. Hoje, uma das nossas funções é manter essa cronologia atualizada, juntamente com a lista de exposições realizadas pela Pinacoteca do Estado. No Cedoc ocorreu exatamente o que a Deborah Wythe colocou. Tradicionalmente, o primeiro trabalho de pesquisa se faz a partir do arquivo institucional organizado é o levantamento das exposições realizadas pelo museu (BEVILACQUA, 2010, p. 158-159).

Um arquivo institucional organizado e atuante será capaz de fornecer informações sobre o histórico da instituição e, como ressalta Bevilacqua, “estranhamente, os museus são muitas vezes pouco preparados para dispor publica-


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mente de informações capazes de gerar reflexão sobre sua própria trajetória” (BEVILACQUA, 2010, p. 161). O não encaminhamento de documentos para o arquivo institucional dispersa e dificulta a recuperação de informações para o próprio museu, para a recuperação de sua história, memória e feitos marcantes. Esta função de fornecer informações históricas sobre o museu é uma tarefa que deveria caber ao seu arquivo. Os documentos produzidos pela atividade de documentar as coleções podem causar problemas terminológicos. Em geral, na área de arquivo, a documentação refere-se ao conjunto de documentos de um arquivo, ou seja, ao próprio acervo. Na museologia, a documentação refere-se aos documentos produzidos pela atividade de pesquisa, que identifica e contextualiza as peças e coleções do acervo de um museu. Nesse sentido, essa documentação permanece sob a guarda da equipe de tratamento museológico por um prazo longo, senão indeterminado. Para a arquivologia, poderia se dizer que esses serão utilizados por um longo prazo no arquivo corrente, já que são de uso contínuo pela equipe que o produziu.Assim, os prazos de guarda da documentação sobre a coleção deverão ser avaliados pelo arquivo e definidos em conjunto com os museólogos. O arquivo de museu deve realizar um levantamento da produção documental de todas as atividades da instituição, área meio e fim, e estabelecer os prazos de guarda nos setores, bem como os prazos de encaminhamento para o arquivo institucional ou eliminação. É preciso que os museus entendam o programa de gestão, características dos programas de arquivo, em suas fases correntes – quando os documentos ainda estão sendo utilizados pelos setores que os produziram – na intermediária, quando os documentos não são mais de uso corrente, mas podem ser auditados ou consultados sem frequência; e a permanente – quando então os documentos são recolhidos ao arquivo institucional para guarda e uso. 2) Função de aquisição de acervos arquivísticos (colecionar) Os arquivos de museus têm a missão de atuar no planejamento da política de aquisição de documentos arquivísticos por parte da instituição, em conformidade com a de acervos museológicos. Os museus, em geral, praticam uma constante busca de novos itens que complementem sua coleção, seja por compra, doação, permuta ou comodato. Os itens adquiridos para integrar o acervo do museu podem possuir características de documentos bibliográfico, museológico ou arquivístico. Esses documentos podem apresentar os mais variados gêneros (textual, iconográfico, cartográfico etc.) e suportes (papel, madeira, metal, magnético, eletrônico etc.). Os documentos arquivísticos adquiridos devem ficar sob a guarda do arquivo. Esta recomendação refere-se tanto para a aquisição integral de um fundo, como para documentos avulsos, separados de seu contexto de produção. Mesmo considerado como peça única, isolada, o item documental deve ser tratado arquivisticamente. Sem a intenção de entrar na discussão terminológica entre “prova documental”, “artefato” e “objeto”, cuja distinção é difícil de determinar, arquivos institucionais com frequência contêm placas comemorativas, bótons, galhardetes, selos ornamentais, troféus, bustos e outros objetos tridimensionais produzidos, recebidos ou adquiridos pela instituição (WYTHE, 2004, p. 3). A aquisição de documentos arquivísticos pelo museu deve ser regulada por uma política de aquisição, tal como para o acervo museológico. A política

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deve contemplar os objetivos e a missão do museu, e prever os temas, os tipos de acervo e diversos critérios de seleção, a serem estabelecidos pela instituição. Além disso, e igualmente importante, é a definição das responsabilidades sobre o acervo. Se o museu possui um arquivo, o acervo arquivístico adquirido deve ficar sob sua guarda, bem como o acervo bibliográfico deve ficar sob a guarda da biblioteca. Se não fisicamente, pelo menos por meio do controle intelectual. Em geral, o acervo arquivístico adquirido pelo museu trata-se de arquivos oriundos de pessoas e entidades privadas, na forma de arquivos e coleções pessoais, cujo conteúdo é compatível ao interesse dos objetivos da instituição, tanto pela temática, quanto pela relevância da atividade do produtor do arquivo. A complementação de temas e de coleções museológicas é um forte argumento nas políticas de aquisição de acervos. A atividade de pesquisa para coleta de informações é fundamental até para a própria atividade de organização do arquivo. Para Bevilacqua, É fundamental deixar claro que nenhuma atividade de coleta de informações e documentos não arquivísticos é necessariamente inadequada no âmbito das funções do arquivo, mas sim que ela deve ser bem delimitada e estar organizada de acordo com as demais prioridades existentes no setor (BEVILACQUA, 2010, p. 157).

A política de aquisição deve regular a entrada de documentos arquivísticos ou coleções de documentos, prevendo a área de interesse, a identificação da proveniência, as datas ou período pertinente, além da responsabilidade interna pela guarda e preservação física dos mesmos. A política é um instrumento fundamental para a profissionalização das atividades, determinando os procedimentos, delimitando ações e traçando limites. A política de aquisição dá respaldo e transparência ao processo decisório. No caso de museus que adquirem arquivos pessoais, estes podem vir acompanhados de artefatos e objetos em geral. A aquisição desse material é pertinente e deve estar contemplada na política de aquisição. Normalmente, arquivistas não recebem objetos em arquivos e a questão é controversa na literatura. Alguns arquivistas consideram que os objetos podem ter sido produzidos ou adquiridos no âmbito do desenvolvimento de uma atividade, institucional ou pessoal, e que, portanto, podem ser considerados documentos de arquivo. O importante é que, antes da aquisição, o objeto ou artefato deve ser avaliado pela equipe responsável pelo acervo museológico e seguir os mesmos critérios de análise utilizados para o acervo museológico, tais como procedência, tipologia e estado de conservação, dentre outros (SILVA, 2012). A interação entre o trabalho da equipe de museologia e da equipe do arquivo é fundamental para a contextualização do acervo. Mesmo que objetos sejam adquiridos pelo arquivo, seu processamento e preservação devem ser da responsabilidade da equipe de museologia, capacitada para lidar com este material. Ressalta-se, porém, que a proveniência nunca seja perdida, e esteja registrada nos instrumentos de pesquisa.Tal situação será possível pela integração entre os trabalhos das equipes e pelo amadurecimento institucional sobre os aspectos que envolvem a preservação de acervos. O papel do arquivista do museu O arquivista que exerce suas atividades em museus tem como funções, além das tradicionais de avaliar os documentos institucionais de valor perma-


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nente e fornecer diretrizes para o recolhimento de documentos, as de servir como uma fonte de informação sobre a história do museu. Assim, segundo Morris (2003), o arquivista acaba por exercer funções de historiador, curador de coleções especiais e gestor de documentos. Para o autor, as funções dos arquivistas de museus seguem sendo: avaliar, arranjar, descrever e tornar acessíveis documentos de valor permanente. Para tal, precisa proteger e acondicionar documentos institucionais, organizá-los de acordo com as normativas arquivísticas, criar instrumentos para o acesso, fornecer serviços de referência à equipe e ao público, bem como conduzir trabalhos de história oral. O arquivista de museu busca, ainda, identificar todos os documentos do museu e determinar quais são correntes e quais irão para o arquivo, e preservá-los para o uso futuro. O arquivista do museu não deve atuar sozinho, sem o apoio de outros profissionais. Flecker (1990) lamentou que muitos arquivistas e museólogos trabalhem na mesma instituição quase que isolados um do outro, tendo sua própria literatura profissional, suporte institucional e metodologia, mesmo que para tocar funções similares. Um dos resultados deste longo tempo de não relacionamento tem sido que – até relativamente recente – profissionais de museus, embora colecionadores ávidos por natureza e necessidade, geralmente não reconhecem a importância de documentar suas próprias atividades, coletando, mantendo e tornando acessíveis os documentos de suas instituições (MORRIS, 2003, p. 3). Uma responsabilidade básica para os arquivistas e museólogos é o desenvolvimento e implementação de normas para as práticas profissionais de ambos, onde são definidos limites, competências e responsabilidades mútuas. A interação de ambos permitirá que um aprenda com o outro (FLECKER, 1990, p. 69). Arquivo versus Coleção Uma questão importante de se abordar é a diferença entre arquivo e coleção, ou entre fundo e coleção. Museus adquirem seus acervos que comumente são chamados de coleções. E isto tem sido aplicado inclusive para os acervos arquivísticos. A identificação de um acervo como arquivo ou coleção muitas vezes é equivocada. O ICOM, em seu código de Deontologia, alerta para a diferença entre coleção e fundo, o que se torna realmente necessário, já que museólogos não costumam lidar com esta questão em seu ofício: Para constituir una verdadera colección es necesario que el agrupamiento de objetos forme un conjunto relativamente coherente y significativo. Es importante no confundir colección con fondos. Estos últimos designan un acervo de documentos de todo tipo ‘reunidos automáticamente, creados y/o acumulados y utilizados por una persona física o por una familia en el ejercicio de sus actividades o de sus funciones’ (Oficina Canadiense de Archivistas, 1992). En el caso de los fondos, contrariamente a una colección, no hay selección y pocas veces la intención de constituir un conjunto coherente.Ya sea material o inmaterial, la colección figura en el corazón de las actividades del museo. ‘La misión de un museo es adquirir, valorizar y preservar sus colecciones con el fin de contribuir a la salvaguarda del patrimonio natural, cultural y científico’ (INTERNATIONAL…, 2006).

Tessitore também alerta para esta questão, quando trata de sua experiência na organização do arquivo permanente do Museu Paulista. A autora per-

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cebeu que os dois equívocos no que diz respeito a arquivos de museus são: “a confusão da coleção como parte do arquivo e o tratamento do próprio arquivo como coleção do museu como sendo seu arquivo” (TESSITORE apud BEVILACQUA, 2010, p. 161). Para dirimir tais enganos, precisamos entender o conceito de coleção e fundo. Na versão espanhola dos “Conceitos chave” da Museologia, produzido pelo ICOM, coleção está explicada como: De manera general, una colección se puede definir como un conjunto de objetos materiales e inmateriales (obras, artefactos, mentefactos, especimenes, documentos, archivos, testimonios, etc.) que un individuo o un establecimiento, estatal o privado, se han ocupado de reunir, clasificar, seleccionar y conservar en un contexto de seguridad para comunicarlo, por lo general, a un público más o menos amplio (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2010).

O glossário do ICOM explica que para constituir uma verdadeira coleção, é necessário que o conjunto de objetos seja relativamente coerente e significativo, e também ressalta que é importante não confundir coleção com fundo: Estos últimos, designan un acervo de documentos de todo tipo ‘reunidos automáticamente, creados y/o acumulados y utilizados por una persona física o por una familia en el ejercicio de sus actividades o de sus funciones’ (Oficina Canadiense de Archivistas, 1992). En el caso de los fondos, contrariamente a una colección, no hay selección y pocas veces la intención de constituir un conjunto coherente (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2010).

O ICOM entende que a diferença precisa ser esclarecida, pois as atividades dos arquivos e dos museus se complementam, e é preciso que cada um atue de acordo com seus princípios e normativas, sob pena de não executarem um trabalho eficiente de recuperação da informação. Para o Dicionário Terminologia Arquivística, coleção “é a reunião artificial de documentos que, não mantendo relação orgânica entre si, apresentam alguma característica em comum” (CAMARGO; BELLOTTO, 1996). O termo “artificial” empregado pelo Dicionário faz o contraponto com o termo “orgânico”, característica típica dos documentos de arquivos. Para a Sociedade dos Arquivistas Americanos (Society of American Archivists - SAA), coleção é “um grupo de material com alguma característica que os une”; mas também pode ser “o acervo de um depósito”3, já que em língua inglesa é comum o uso do termo “collections” ou “holdings”, para o conjunto de documentos de um arquivo. Para os arquivos, um fundo significa um conjunto de documentos de uma mesma proveniência, que mantêm relação orgânica entre si, já que um documento é mais bem compreendido dentro de seu contexto. O desmembramento de documentos de seu contexto original também pode ser um problema para a descrição e contextualização. Os museus trabalham com coleções. O que vimos até agora é que os documentos de arquivo não são colecionados, eles são produzidos pela instituição e existe legislação respaldando as atividades. Mas os museus colecionam documentos que, muitas vezes, foram retirados de seu con3 O glossário da SAA, na versão em inglês, está disponível em Collection ([2006?]).


Maria Celina Soares de Mello e Silva

texto por diversas razões, e foram vendidos ou doados a museus, arquivos e bibliotecas. Assim, eles acabam sendo considerados como peças isoladas, recebendo tratamento individualizado (SILVA, 2008, p. 65-66).

Os arquivistas de museus devem estar atentos para os documentos adquiridos, examinando seu contexto de produção para identificar se é fruto de um fundo ou de uma coleção. Considerações finais Os museus são instituições vivas onde muitas atividades são planejadas e executadas anualmente. Também estão constantemente produzindo novos programas e atividades. Por consequências, os arquivos de museus devem acompanhar essa dinâmica no seu planejamento. O programa de gestão de documentos deve ter flexibilidade para abranger novas atividades e programas, de tal forma que não fique nem engessado, nem ultrapassado. As atividades típicas de museus, como exposições e atividades educacionais deverão estar contempladas no programa de gestão de documentos do museu, de tal forma que os registros sejam recolhidos ao arquivo. A decisão sobre quais documentos deverão ser encaminhados ao arquivo e quais poderão ser eliminados deverá ser conjunta com a equipe de museólogos, após a definição de critérios para a avaliação. Os arquivistas e museólogos devem trabalhar em parceria para o planejamento das atividades e a definição dos limites de atuação de cada um. Além disso, também devem definir e criar procedimentos para o tratamento técnico dos acervos, bem como os espaços de guarda e as responsabilidades. Esta parceria proporcionará um melhor desempenho no processamento e na preservação do acervo sob a guarda do museu. A reflexão que se pretendeu desenvolver é fruto de uma realidade cada vez mais emergente nos museus brasileiros, da criação de arquivos nas instituições museológicas, visando ao tratamento dos registros documentais sob a guarda do museu. Há o reconhecimento crescente de que os documentos com características arquivísticas devem ser tratados como tal, aproveitando-se da experiência de ambos os profissionais, arquivistas e museólogos, para que a informação possa ser tratada e recuperada de forma mais rápida e eficiente. E a parceria entre o conhecimento do arquivista com o do museólogo parece ser o caminho mais efetivo para a eficiência. Referências BEVILACQUA, Gabriel Moore. Arquivos em museus: apontamentos a partir da experiência do Centro de Documentação e Memória da Pinacoteca do Estado de São Paulo. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ARQUIVOS DE MUSEUS E PESQUISA, 1., São Paulo, 2010. Anais... São Paulo: MAC/USP, 2010. p. 155-166. BRASIL. Lei 11.904, de 14 jan. 2009. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 jan. 2009. Seção 1, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em 06 mar. 2013. BRASIL. Lei 8. 159, de 8 de janeiro de 1991. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 09 jan. 1991. Seção 1, p. 455. Disponível em: <http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.

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Arquivos de museus: características e funções

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MUSEOLOGIA, CAMPO DISCIPLINAR DA MUSEALIZAÇÃO E FUNDAMENTOS DE INFLEXÃO SIMBÓLICA: ‘TEMATIZANDO’ BOURDIEU PARA UM CONVITE À REFLEXÃO1 Diana Farjalla Correia Lima 2 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

RESUMO: Análise do campo museológico retratando seu perfil teórico e prático como instaurador do poder simbólico: a musealização do(s) patrimônio(s). Aplicação da Teoria Geral da Economia dos Campos, perspectiva de Pierre Bourdieu, interpretando as representações construídas, significações expressas, relações estabelecidas e as variadas circunstâncias no ambiente social da forma cultural Museu. Indicadores analíticos abordaram as peculiaridades do campo associadas a bens culturais, entidades/instituições e profissionais no modelo cultural da apropriação simbólica. Destaque para juízos/atitudes enlaçando conceitos de distinção, competência, legitimidade dos profissionais de museu e instâncias institucionais no jogo das estratégias de fortalecimento das fronteiras disciplinares e manutenção do exercício de poder simbólico.

ABSTRACT: Analysis of the museological field depicting its theoretical and practical profile as a space that establishes the symbolic power: the musealization of symbolic assets (cultural heritage). The research uses the General Theory of Economy of Fields (Bourdieu), interpreting the representations, meanings, relationships and the varied circumstances’ of the Museum image in social environment. Analytical indicators discussed the peculiarities of the field associated with cultural objects, entities/institutions and professionals in the cultural model of symbolic appropriation. Emphasis on judgments/attitudes linking concepts of competence, legitimacy of museum professionals and institutional instances in the set of strategies for strengthening disciplinary boundaries and maintenance of symbolic power.

PALAVRAS-CHAVE: Musealização. Museu. Poder Simbólico. Campo do conhecimento. Interdisciplinaridade.

KEY-WORDS: Musealization. Museum. Symbolic Power. Field of knowledge. Interdisciplinarity.

1 Pesquisa, apoio CNPq (produtividade): Musealização e Patrimonialização – Termos e Conceitos da Museologia em ação: identificando e explicitando indicadores teórico-práticos para aplicação. 2 Museóloga (graduação: Museus Artísticos, 1975; Museus Históricos, 1976) Museu Histórico Nacional, (MHN)/UFRJ; mestrado: Memória Social e Documento UNIRIO (1996); doutorado: Ciência da Informação, IBICT/ECO-UFRJ (2003). Professora: Curso de Graduação em Museologia, UNIRIO, e Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio UNIRIO/MAST.


Diana Farjalla Correia Lima

Iniciando... Ao focalizar-se o universo museológico, o seu aparato conceitual e técnico como campo do conhecimento e a construção cultural que o anima e constitui sua representação essencial: o Museu, bem simbólico, cabe em razão de tal caráter abordar a questão do sentido simbólico, postura que leva a compreender a dimensão da cultura como meio aglutinador das disposições sociais. E reconhecer que as significações relacionadas constituem “mensagens vinculadas aos objetos, instrumentos e agentes do campo que demarcam o espaço arbitrário no qual evoluem” (LIMA, 2000, p. 30) os grupos sociais diferenciados cujas origens são encontradas no exercício do “poder simbólico” (BOURDIEU, 1989). Também, do mesmo modo, ter em conta que as significações representam “o poder dominante na construção das realidades dos grupos sociais” (LIMA, 2003, p. 44), portanto, exercendo presença ativa com lastro no espaço social, cenário de inserção dos campos. O conjunto interpretativo produzido consubstancia o código cultural de comunicação estabelecido pelos grupos sociais que enunciam a construção do mundo dos objetos. E a compreensão do mundo calcada nas múltiplas formas de percepção do real comporta distintos significados explicativos, assim como traça linhas buscando definir espaços correspondentes às respectivas áreas de significação que, no assunto em questão, conformam-se como campos do conhecimento, domínios, áreas, territórios, espaços do saber/saberes. Em se tratando de domínios do conhecimento e no bojo do processo que os identifica simbolicamente como ambientes construídos segundo o aspecto da separação e da hierarquia, configurados por linhas arbitrárias demarcadas representando a especialização e a concentração de saberes e poderes, a referência teórica para apoiar o estudo desenvolvido para a pesquisa é Pierre Bourdieu. A decisão para a escolha foi determinada em virtude das suas investigações analisando os sistemas simbólicos e pela formulação construída para a Teoria Geral da Economia dos Campos (BOURDIEU, 1986; 1989). Portanto, o teórico constitui a fonte para apontar no campo da Museologia as significações elaboradas por esse espaço e, ainda, deixar margem para futuras reflexões acerca da inflexão simbólica e das relações que são estabelecidas. Especialmente quando os estudos da Museologia focalizam o contexto classificado e denominado de Bens Culturais, ou “bens simbólicos”. E para a classe dos Bens a dimensão da cultura tem atribuído um valor caracterizado pelo seu reconhecimento na categoria Patrimônio, isto é, representação da herança cultural, tema que tem sido na ação da Museologia interpretado e identificado como Patrimônio Musealizado (Museus), denominação que a autora do artigo usa em posição semelhante ao que ela se permite designar como Patrimônio Musealizável 3, ou seja, os bens/patrimônio ainda não submetidos à interpretação da ação museológica que, no entanto, pelo aspecto cultural que lhes foi outorgado estão aptos a serem modelados conforme a feição elaborada pela Museologia para os Museus. No entanto, ao tratar do sentido emprestado à expressão bens simbólicos é preciso não esquecer a afirmativa de Bourdieu (1986, p. 102) que alerta, apontando, serem constituídos por “realidade com dupla face – mercadorias e 3 Em razão da condição simbólica que as representações dos Bens encerram e tendo como intuito distinguir as condições pelas quais é possível reconhecer o Patrimônio que a Museologia trata, quando abordo em artigos ou em aulas as estreitas relações entre Museologia e Patrimônio venho, ao longo dos anos, aplicando dois termos que refletem e esclarecem de modo simples as duas situações existentes: Patrimônio Musealizado ao já estar enquadrado na categoria Museu; e Patrimônio Musealizável na medida em que apresenta potencial para o processo de musealização.

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significações”. No aspecto mercadoria em razão de ter havido no espaço onde os bens circulam a valorização sob a lógica capitalista do consumo. E no que tange às significações também é possível lembrar outro teórico, Lier (1972, p. 152), que afirmou serem os “signos definidos em uma sociedade” formas criadas para dar conta das significações que se fazem ver nas práticas.

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Campo do conhecimento da Museologia e a presença do poder simbólico O Campo do Conhecimento é considerado território de disciplinas acadêmicas que se afigura como delimitado por ‘linhas invisíveis’ cuja significação indica a separação desenhada por diferentes conhecimentos. Tal forma de representação caracteriza diversas áreas de significação da realidade demarcadas por ‘fronteiras’ conceitualmente estabelecidas e institucionalizadas no universo cultural. Nesses campos institucionalizados do saber, socialmente aceitos e reconhecidos, fundamentados na ideia da autoridade, da legitimidade, da hierarquia, a estrutura se sustenta na relação de interdependência entre saber e poder político, o “poder simbólico” (BOURDIEU, 1986, p. 183-202), poder dominante na construção da(s) realidade(s) dos grupos sociais. A imagem construída pelas linhas arbitrárias estabelecidas, as fronteiras do conhecimento, demarcam um espaço de especialização e concentração de saberes e poderes. Sendo um campo regionalizado de produção simbólica e representando a relação entre o poder e o saber expressa um lócus de “lutas” em cujo espaço as condições e os critérios de legitimação dos membros na hierarquia do campo foram estabelecidos. Identifica-se essa modalidade de ação como “relações informais do poder” (BOURDIEU, 1989, p. 11, 15, 64) que, atuando de modo sutil, passam praticamente despercebidas por refletirem a condição de naturalização resultante e estabelecida pelo processo de dominação enraizado, paulatinamente, pelo poder simbólico no contexto social. O poder simbólico que é da ordem do arbitrário é, assim, explicado por Bourdieu (1989, p. 14-15, grifo nosso): [...] um poder de fazer coisas com palavras. E somente na medida em que é verdadeira, isto é, adequada às coisas, que a descrição faz as coisas. Nesse sentido, o poder simbólico é um poder de consagração ou de revelação, um poder de consagrar ou de revelar coisas que já existem. Isso significa que ele não faz nada? De fato, como uma constelação que começa a existir somente quando é selecionada e designada como tal, um grupo - classe, sexo, religião, nação - só começa a existir enquanto tal, para os que fazem parte dele e para os outros, quando é distinguido segundo um princípio qualquer dos outros grupos, isto é, através do conhecimento e do reconhecimento” (grifo nosso).

E o campo do conhecimento, domínio específico da realidade social no qual se exercita o poder simbólico, é dotado de características merecedoras de abordagem no presente texto cujo foco é o território museológico. E, dessa maneira, está sendo apresentado o que se considera relevante, enquadrando-se no ‘convite’ que foi feito às reflexões nomeadas no título do artigo. 2.a) – CAMPO - Formalizado como esfera autônoma de organização, de produção e circulação de bens culturais, o mesmo que “bens simbólicos” (BOURDIEU, 1986, p. 102).


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A autonomia de um campo do conhecimento é o resultado de longo processo histórico traçado para sua constituição e está sedimentada na figura nomeada de “depuração” (BOURDIEU, 1989, p. 285-286). Consiste na construção elaborada pelas condições de isolamento mantidas em relação a outras “instâncias de legitimidades externas”, por conseguinte, evitando qualquer interferência que possa ser considerada estranha, que se venha intrometer na caracterização do seu perfil e abalar sua estrutura de poder. Em decorrência, nas palavras do mesmo autor (BOURDIEU, 1986, p. 100), o campo passa a ser regido por orientações e “padrões que lhe são próprios”. Em virtude disto, torna-se apto a exercer sua independência frente a imposições das demais esferas. A condição independente ou autônoma, exatamente e de modo exclusivo, é o elemento que distingue e define um campo. Exerce o poder capaz de validar suas leis, seus princípios e suas normas. É o que lhe imprime caráter e o legitima tanto em nível interno como externo. Nesse aspecto e em se tratando do domínio museológico é possível apontar, tomando como exemplo, as disciplinas que lhe são próprias e ostentam na designação a marca distintiva do campo: Museologia Aplicada a Acervos, Museografia. 2.b) – CAMPO - Espaço, ao mesmo tempo, da organização, da produção e dos instrumentos para apropriação dos bens simbólicos, o conjunto patrimonial que reflete e consubstancia a Herança Cultural, perspectiva integradora dos bens da coletividade sob a imagem do pertencimento, representação na qual se pode reconhecer a ambiência do Patrimônio Musealizável e do Patrimônio Musealizado. O comportamento lastreado pelo poder simbólico facultando produzir e apropriar-se, enquadra-se na imagem de Bourdieu indicativa do encontro que se dá entre os “cérebros ou consciências” e as “coisas” (BOURDIEU, 1989, p. 176), produzindo e reproduzindo o princípio básico que estabelece a realidade (simbólica) para o campo, movimentando-o. E a dinâmica que o move provém da combinação entre o que é construído e o que é praticado no domínio do conhecimento. Envolve e focaliza a junção entre as atitudes específicas do campo e o universo social que o representa. O procedimento diz respeito ao processo que abrange o Juízo / a Atitude -- eivado de significações, de conteúdo simbólico -- em facetas que tanto agem na criação do campo quanto as que são por ele criadas e capazes, também, de ajustarem-se em movimentação permanente. Quanto à especificidade do processo está marcada nas convenções, nos atributos, nos valores que revestem a forma cultural compreendida como “forma simbólica” (CASSIRER, 2001, p. 36) no ambiente referente à “formação cultural” (CHARTIER, 1990, p. 13, 18) e registra o que se identifica na modalidade de um juízo como o artístico, o juízo religioso, o juízo científico e o que fala de perto ao tema em pauta: o Juízo Museológico. Ao apontar o juízo e a atitude correlata, torna-se relevante destacar sob perspectiva intelectual e operativa as proposições que, no espaço do conhecimento Museologia, formalizam os referenciais constitutivos do estatuto do campo. 2.b.1) Musealização. É um processo institucionalizado de apropriação cultural. Imprime caráter específico de valorização a elementos de origem natural e cultural. Estabelece sua caracterização identificando formas interpretativas materiais e imateriais da humanidade às quais imprime a interpretação de testemunhos que referenciam as existências e identidades. Considerados como documentos da realidade são

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determinados como objeto de tratamento científico pela Museologia, portanto adotados sob outra percepção da realidade, sendo reconhecidos na categoria dos bens simbólicos e integrados ao domínio do Museu, logo, ao contexto do patrimônio musealizado. A musealização consigna um juízo / atitude enlaçando o plano conceitual e a prática que se pode executar indistintamente no local no qual está situada a coisa – musealização in situ -- quanto realizando a sua transferência para outro espaço – musealização ex situ. Em qualquer das circunstâncias, a interferência apropriadora do poder detido pelo campo altera a realidade (da coisa) ao estabelecer um novo contexto de existência. A musealização para socialmente ser concretizada envolve a institucionalização, pois implica em “singularizar juridicamente” ou em “uma decisão administrativa” 4 (DESVALLÉES, 2000, p. 71), atribui um “estatuto patrimonial” 5 (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2011, p. 625) para a apropriação cultural da coisa a ser musealizada (objeto, espécime, sítio, ou qualquer outro elemento que se adéqüe ao processo) e estabelece um estado museológico, o “estatuto museal” 6 (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2010, p. 48), outorgado pelo enfoque especializado da Museologia. De um ponto de vista museológico, a musealização é uma operação que tende a extrair, fisicamente e conceitualmente, uma coisa de seu meio natural ou cultural de origem e dar-lhe um estatuto museal, para transformá-la em musealium ou museália, “objeto de museu”, ao fazê-la entrar no campo [...]. (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2010, p. 48; 2011, p. 251, grifo do autor) 7

2.b.2) Musealidade. Em consonância com o processo de musealização tem-se a musealidade para assinalar a qualificação de um “valor cultural” atribuído ao bem (DESVALLÉES, 2000, p. 72), (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2011, p. 256). Termo proposto pelo museólogo checo Zbyněk Stránský para designar o valor cultural ou a qualidade de uma [verdadeira] coisa musealizada. [...] A razão pela qual este objeto foi selecionado é seu valor de testemunho da realidade que documenta. [...] Esse valor é chamado ‘musealidade’, porque não é mais a realidade (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2011, p. 625) 8

A musealidade faz-se entendida detentora de ‘qualidade’ que imprime e configura efetivando a mudança da realidade dita de origem por outra situação: a construção da ‘realidade’ musealizada. A musealidade é um atributo que assume caráter definidor e valorativo, uma ‘especificidade’ outorgada por condição do campo da Museologia pela sua via expressiva de representação, o Museu, 4 No original: singulariser juridiquement; une décision administrative 5 No original: statut patrimonial. 6 No original: statut muséal. 7 No original: D’un point de vue museologique, la musealisation est l’operation tendant a extraire, physiquement et conceptuellement, une chose de son milieu naturel ou culturel d’origine et à lui donner un statut muséal, a la trans former en musealium ou musealie, “objet de musée”, soit a la faire entrer dans le champ [...]. 8 No original: Terme proposé par le muséologue tcheque Zbyněk Stránský pour designer la valeur culturelle ou la qualité d’une [vrai] chose muséalisée. [...] La raison pur laquelle cet objet a été sélectionné est sa valeur de témoignage de la réalité qu’il documente. [...] Cet valeur est appelé “muséalité” car il ne s’agit plus de la realité


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elemento mediador junto ao meio social da percepção do real através da ‘sua’ realidade construída; assentada no elenco de bens culturais e naturais no seu espaço teórico e prático de ‘ser’ e, ao mesmo tempo, ‘tratar’ o patrimônio, isto é, a herança coletiva. O trabalho da musealização conduz, no máximo, a dar uma imagem que não é um substituto da realidade a partir da qual os objetos foram selecionados. Este substituto complexo, ou modelo de realidade construído no seio do museu, constitui a musealidade, ou seja, um valor específico que emana das coisas musealizadas (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2010, p. 49) 9.

2.b.3) Competência Cultural Museológica ou o respaldo social para a musealizar e comunicar os resultados. A “competência cultural” (BOURDIEU, 1986, p. 25, 62; 1989, p. 61) também faz referência ao estatuto de um campo do conhecimento no contexto juízo / atitude que expressa a marca da presença do poder sob a forma simbólica. E o perfil exigido pelo campo para modelar a competência tem constituição de natureza político-institucional. É traçado pelo padrão que regula o comportamento relativo aos procedimentos museológicos componentes da trajetória profissional. O desenho sob o ponto de vista dos movimentos que inspiram à teoria e exercitam a prática no espaço em questão, por exemplo, é ilustrado no plano teórico pelas pesquisas em Museologia, pois descortinam horizontes, conduzem ora a rumos conceituais novos ora reforçam os rumos já conhecidos, porém, em ambos orientam à consolidação científica do campo. E, assim, o fortalecimento do domínio se acentua nas duas circunstâncias. Com referência ao plano da prática vale destacar o âmbito que se convencionou nomear museográfico e no qual se pode citar na dinâmica do pensar e do agir do campo o processo de construção e realização das exposições museológicas – ambiência do museográfico – quando, então, a informação e a comunicação dirigidas aos diversos segmentos que formam o público de museu – os visitantes – passam a ser o ponto fundamental, prioritário para a interação. No domínio qualquer que seja o olhar interpretativo lançado, modelo (teoria) ou ação (prática), a competência trabalha aliada ao espectro do conhecimento nos modos e nos ritmos das ocorrências. Está atrelada ao relacionamento entre o museu e a sociedade para a qual se coloca a serviço no atendimento a princípios éticos de conduta profissional que dizem respeito ao comportamento social do campo. 2.b.4) Linguagem de Especialidade - expressando ideias e procedimentos do campo. A Linguagem de Especialidade, Linguagem Profissional, é outra modalidade pautada no poder simbólico e exercida no foco do estatuto de campo. É identificada e “se apoia [...] expressa por meio de termos [...] do discurso museológico [...] E a linguagem, manifestação cultural do sistema simbólico, consubstancia, ao lado dos agentes individuais e institucionais, um dos instrumentos de legitimação do campo” (LIMA, 2007). A linguagem atua integrando e reforçando as ligações entre o corpo de agentes. Sua consistência se faz verificar pela compreensão das formulações pro9 No original: Le travail de muséalisation ne conduit, tout au plus, qu’à donner une image qui n’est qu’un substitut de la réalité à partir de laquelle les objets ont été sélectionnés. Ce substitut complexe, ou modèle de la réalité construit au sein du musée, constitue la muséalité, soit une valeur spécifique se dégageant des choses muséalisées.

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postas, não obstante as diferenças teóricas e metodológicas que os campos possam apresentar em meio a seus grupos; e há estreita relação entre a consistência terminológica e o caminho de consolidação do domínio do conhecimento. A terminologia museológica confere às interrelações e aos produtos das comunidades do campo “sentido e valor” (BOURDIEU apud MICELI, 1986, p. xii).Ao se constituir como língua especializada procede à comunicação entre pares com poder de disseminar a informação de cunho específico referida à área. A Linguagem de Especialidade é elemento fundamental, instrumento básico de aplicação na comunicação científica do campo. E ao modo de um código só é compreensível para os ‘iniciados’, reforçando as fronteiras do conhecimento. Constitui a marca da “distinção” (BOURDIEU, 1989, p. 11) conferida ao campo indicando sua especificidade. Integra o que merece ser considerado patrimônio do campo e determina a (marca da) diferença entre as linguagens profissionais dos espaços do conhecimento (veja-se o exemplo dos termos / conceitos Musealização e Musealidade). E o patrimônio do campo consigna o “capital cultural”, o mesmo que “capital de bens simbólicos” (BOURDIEU, 1989, p. 116, 153), o conhecimento acumulado e amealhado merecendo ser preservado por representar a herança que, simbolicamente, pertence a todos os pares e os identifica como grupo, atuando como elemento de coesão. 2 c) CAMPO - Estrutura exigindo especialistas: os “produtores e empresários de bens simbólicos” (BOURDIEU, 1986, p. 100). As formas culturais institucionalizadas e objetivadas de representação coletiva são fixadas no campo e encontram respaldo nas funções de representação (simbolização). A finalidade é atender aos padrões ditados pelo contexto de autonomia e juízos / atitudes. Tais formas aparecem configuradas como “condições [...] de acesso à profissão, [...] quanto àquelas referentes à participação no meio especializado” (LIMA, 2003, p. 18). Em destaque estão os agentes que, tradicionalmente, são nomeados e reconhecidos como especialistas. São grupos constituídos por corpos sociais organizados que detêm domínio dos conteúdos da profissão, os conhecimentos da área. No traçado do campo fazem-se representar pelos profissionais da Museologia em duas vertentes: a dos agentes individuais e das entidades, os agentes institucionais. Em se tratando da inserção no campo, o que se entende por representação social de cada um desses ramos, não se pode deixar de assinalar um dos exemplos do modelo em nível local que diz respeito às instituições de registro profissional, reguladoras do exercício prático e do padrão ético das condutas, entre outras condições da profissionalização. E, em nível internacional, as associações que congregam membros individuais e instituições de diversos países voltadas, também, para conduta ética além de disseminarem os conhecimentos do campo por meio de eventos, publicações, repositórios digitais locais e em sites na internet, entre outros recursos informacionais. No primeiro exemplo, no Brasil, o Conselho Regional de Museologia (COREM) e no último, o Conselho Internacional de Museus, International Council of Museums (ICOM). No que tange aos agentes individuais que atuam no campo da Museologia, ainda, vislumbra-se uma distinção com relação ao exercício do poder simbólico no tocante ao que se entende por especialista no assunto e manifestada sob duas denominações no espaço do conhecimento. Há a categoria Museólogo, no Brasil retratando uma condição profissional definida e regulamentada por instrumentos legais: Lei nº 7.287, de 18 de dezem-


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bro de 1984 e Decreto nº 91.775, de 15 de outubro de 1985; e que se credencia a partir da formação em cursos de graduação e de pós-graduação em Museologia com exercício respaldado pelo registro no COREM 10. Deve-se dizer que é uma situação peculiar comparada aos demais países nos quais há pessoas que não só atuam nos museus como enfocam temas da Museologia sob perspectiva teórica, no entanto, sem o respaldo de instrumentos jurídicos de definição de igual teor e, em largo senso na literatura do campo, são agentes referidos como museólogos. E convém lembrar: cursos existentes fora do Brasil que podem apresentar o título ligado particularmente a Museologia/Museu e auferir a condição de formadores de museólogos, isto é, profissionais que dominem não só os conteúdos práticos como também os de ordem teórica, como é do conhecimento dos que atuam campo ainda são em número ínfimo, principalmente quando se toma como referência o Brasil cuja graduação em Museologia com os novos cursos criados marca sua presença de forma exponencial 11. A outra categoria está associada ao “membro individual” do ICOM e nomeada Profissional de Museu (icom.museum). A condição apontada no contexto internacional não determina para ingresso na Instituição que se tenha a qualificação de museólogo obtida pela formação, pelo estudo especializado em Museologia como se aplica no Brasil. O contingente reúne diversos profissionais de outras áreas do conhecimento que contribuem com suas especialidades para o cotidiano da Museologia no processo de associação e troca de experiências entre campos do conhecimento. A relação entre os saberes aparece visualizada, por exemplo, quando se depara com certos títulos entre os 31 Comitês Internacionais do ICOM (icom. museum): – Comitê Internacional para Educação e Ação Cultural, CECA, International Committee for Education and Cultural Action; -- Comitê Internacional para Documentação, CIDOC, International Committee for Documentation; -- Comitê Internacional para Museus e Coleções de Arqueologia e História, ICMAH, International Committee for Museums and Collections of Archaeology and History, entre outros. E do mesmo modo a marca dos diversos conhecimento se faz inscrita nos nomes que vários museus ostentam como: Museu de Artes; Museu de Astronomia; Museu de História Natural e tantos outros que se apresentam. O assunto tratando da relação entre os campos focalizando as disciplinas e as áreas do conhecimento envolvidas no contexto museológico será tratado adiante, no tópico 3. Museologia compartilha experiências com outros campos. 2. d) – CAMPO - “campo de concorrência” (BOURDIEU, 1989, p. 278) entre especialistas do conhecimento e as instâncias de legitimação dos bens simbólicos musealizados. As representações da profissionalização que respondem pelo campo, agentes individuais e institucionais, atuam no papel de avalistas do poder simbó10 Ao regulamentar-se a profissão de museólogo foi reconhecido o direito legal para enquadrar na categoria o profissional que, na ocasião, exercia atividade compatível e já cumprira na data da regulamentação o tempo mínimo definido pela lei no contexto da Museologia/Museu, independente da formação em curso específico. Trata-se do Museólogo registrado sob a classificação Provisionado. 11 Torna-se interessante mencionar a expansão ocorrida. No início do ano 2000, no Brasil só havia dois cursos de graduação (UNIRIO e UFBA, tendo sido o do Rio de Janeiro herdeiro do pioneiro curso do Museu Histórico Nacional). Hoje o número está rompendo a barreira da quinzena. Em se tratando da pós-graduação, cuja história é recente, além do curso de mestrado (2006) e doutorado (2011) do Programa em Museologia e Patrimônio, PPG-PMUS UNIRIO/MAST, no Rio de Janeiro, foram criados: o mestrado (2012) do Programa Interunidades em Museologia, USP, em São Paulo; e o mais novo em Salvador, Programa em Museologia, UFBA, com início previsto para 2013.2.Tal situação, ao que parece, indica não só o interesse pelo assunto Museologia mas, sobretudo, a necessidade da formação profissional pela via acadêmica.

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lico emprestando valor, outorgando “legitimidade cultural” (BOURDIEU, 1986, p. 187; 1989, p. 279) aos movimentos competitivos que integram o processo de economia do domínio. Nesse ambiente assume relevância a “lei do campo” (BOURDIEU, 1986, p. 187; 1989, p. 279), conjunto de regras de coexistência que subentende o exercício da competitividade (rivalidade) entre os agentes. Em face disto, instaura nos pares e nas entidades a condição de concorrentes pela “dinâmica da competição do conflito por crédito” (HOCHMAN, 1994, p. 228), conjuntura que combina o juízo, a atitude e o mérito à concessão, por exemplo, de aportes financeiros para as realizações da área (pesquisas, bolsas, equipamentos, eventos, etc.). A mescla de juízo, atitude e mérito está alicerçada na harmonização entre a qualidade e a quantidade de fatores que mensuram a trajetória profissional de cada participante. No cenário de concorrência enfocando a temática dos bens simbólicos musealizados (patrimônio) avultam os espaços de competência para legitimação cultural, estabelecendo as posições e as disposições profissionais e institucionais emanadas da “lei”. Na caracterização do campo há instâncias culturais que, niveladas na estrutura simbólica do território, detêm o poder de reafirmar a força de representação do Museu no contexto social: as “instâncias de consagração, de difusão e de reprodução dos produtores e dos consumidores” (BOURDIEU, 1986, p. 116-135) determinando para o Museu, segundo o mesmo autor, o caráter de “capital simbólico de reconhecimento” por estar presente em três instâncias definidoras do desenho do campo. As “instâncias de consagração” espelham a competição pela legitimidade cultural dirigida aos destinos da “vida intelectual” da área (conforme o autor na mesma obra). Atuam no papel voltado a favorecer o surgimento de novas propostas conceituais e de práticas, ainda podem reforçar o pensamento e a ação tradicionais em permanente e estimulante jogo. As exposições museológicas pela repercussão pública tradicionalmente consignada no processo informacional e comunicacional; a produção científica resultante das pesquisas pela visibilidade interna e externa que imprime pela disseminação da informação; as distinções ou diferenças (BOURDIEU apud MICELI, 1986, p. x) relativas ao valor atribuído ao caminho profissional, como por exemplo, a medalha do Mérito Museológico; entre outras formas culturais, exprimem o significado consagratório que a primeira categoria de instância determinada pelo teórico francês encerra. As “instâncias de difusão” tomam por base para seleção a legitimidade que Bourdieu (1986, p. 120) denomina “propriamente cultural”, isto é, as atividades culturais variadas que, embora similares as de outras áreas como os eventos técnicos, os cursos, as palestras, as edições (em diversos suportes/mídias), os concertos, etc., tornam-se identificadas pela responsabilidade, pela competência da realização museológica e são chanceladas como ‘produto de museu’, o que empresta o sentido (distintivo, diferenciador) da especificidade. Por último, as “instâncias de reprodução dos produtores e dos consumidores” comportando os aparelhos de produção simbólica de acesso à formação e ao aprimoramento profissional, configurando o sistema de ensino da Museologia nos níveis universitários da graduação e da pós-graduação. Espelham o processo de reprodução cultural, aparato de cunho ideológico. 2 e) – CAMPO - Zonas estratégicas: campo disciplinar e manutenção do poder simbólico que instaura a musealização. Nas áreas do conhecimento pode ocorrer que qualquer disciplina identificada como colaboradora pela conjugação de estudos focalizando o mesmo


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objeto -- e em determinada situação nos moldes do “trabalho de fronteira” 12 (KLEIN, 1996, p. 60); atue perpetrando movimentos que podem ser percebidos como ameaça de ‘invasão’ no campo que recebe a contribuição disciplinar. O comportamento alcança um resultado que poderá forçar e precipitar outra movimentação do poder simbólico nos limites das fronteiras disciplinares. A ação do campo ao sentir-se ameaçado é representada por meio da luta simbólica e executada pela via de uma postura defensiva baseada em estratégias de negociação como caminho para manutenção do poder simbólico, não fosse tal postura reativa uma formulação gerada pela sutileza e invisibilidade de que se reveste o poder, como frisa Bourdieu ao longo das suas pesquisas que tratam do tema. Ele nomeou esse modo de reagir de “formas eufemizadas de luta”, uma imagem que ilustra adequadamente e reproduz o que ocorre. O procedimento tático é não entrar em confronto aberto e lançar mão de estratégias para uma solução sem danos, sempre que possível, a cavaleiro da situação. No caso em pauta dá-se uma abertura consentida como se fora uma dilatação das fronteiras que operando em movimentos de “deslimites” (LIMA, 2003: 57) desenha espaços considerados permeáveis e desenvolve o intercâmbio disciplinar (KLEIN, 1996: 2), configurando áreas ao modo de “zonas comuns” de convívio (LIMA, 2003: 56) para que venham a permitir a ação combinada, escamoteando embates que poderiam gerar perdas significativas de poder no domínio. Isto se compreende em razão dos novos espaços abertos atuarem expressando o sentido de “zonas de acordo” (LIMA, 2003: 64-66) entre conhecimentos, capacitando que haja integração entre os grupos profissionais heterogêneos que ali estão atuando. A composição de zonas de concordância e comunidades mistas do conhecimento que se reorganizam para compartilhar e manter o poder pode ser vista como um retrato do campo museológico, em tudo similar a qualquer outro campo na mesma situação. Trata-se de um modo de subsistir formalizando um ambiente de convivência entre variados conhecimentos e agentes, isto em virtude da comunidade dita museológica estar composta pelos museólogos de formação e pelos demais profissionais de Museus oriundos dos outros campos. As modalidades zonas de intercâmbio, zonas comuns, zonas de acordo são espaços profissionais que conformam relações de cooperação entre os campos do conhecimento e seus membros. 3 Museologia compartilha experiências com outros campos O campo da Museologia que se estruturou faz pouco mais de meio século encontra nos museus existentes há centena de anos o ponto de convergência de olhares internos e externos ao seu domínio. E o domínio do conhecimento museológico tem comportado atuar relacionando-se com outros campos quer nas questões que importem em discurso, quer nas que se prestem ao ato, portanto, perpassando os extratos da teoria e da prática. O envolvimento combinando comunidades e conhecimentos disciplinares no espaço cotidiano da Museologia permite considerar que a ocorrência dos mencionados trabalhos de fronteira, ao longo dos tempos, é situação que favorece trocas entre as unidades do conhecimento, contemplando, compatibilizando e completando as necessidades impostas pelas questões surgidas como resultado das diferenças disciplinares. E em tais ambientes colaborativos (mesmo pela força do traçado estratégico) são as comunidades mistas, heterogêneas na 12 No original: boundary work.

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sua formação, que se tornam aptas para desenvolver a competência teórica e de ação visando atender e tratar os problemas que apresentam múltiplas feições. No panorama de um espaço de simbolização representado pelo campo do conhecimento e no contexto de espaços e negociações do poder simbólico é interessante e oportuno lembrar a modalidade de desenvolver encontros e harmonizar saberes – uma estratégia articulada para o ganho. No caso da Museologia o foco se volta para as relações desenvolvidas pelo campo (território da musealização) com os outros domínios por meio da contribuição de “disciplinas cooperantes” (JAPIASSU, 1976, p. 89) que atuam como conhecimentos aliados, sobretudo em atividades ligadas a projetos operacionais que a musealização desenvolve. Os campos / disciplinas contribuem com suas perspectivas interpretativas, inclusive, podendo trazer aportes conceituais e/ou metodológicos e agir no campo museológico como aplicação disciplinar, modalidade de ação que em determinadas circunstâncias, conforme os estudos da interdisciplinaridade, pode em perspectiva epistemológica evoluir para a composição interdisciplinar. E como meio de ilustração das disciplinas cooperantes são apresentados alguns exemplos de campos / disciplinas que já marcaram sua presença como saberes aliados ao campo museológico ao longo do seu percurso de consolidação, ora no contexto da formação acadêmica da Museologia, ora no quadro das pesquisas e demais estudos realizados no âmbito dos Museus. Administração (em Museus) -- Antropologia -- Arqueologia – Arquitetura (de Museus e de Exposições) -- Arquivologia -- Arte Sacra -- Artes Plásticas – Astronomia -- Biblioteconomia -- Botânica -- Ciência da Informação (CI) – Ciências da Computação -- Comunicação / Comunicação Visual – Desenho Industrial -- Documentação / Documentação em Museus ou Documentação Museológica (contexto da CI)– Ecologia -- Educação Ambiental -- Educação Patrimonial -- Etnologia / Etnografia -- Estética -- Diplomática -- Filatelia -Filosofia -- Física -- Heráldica -- História – História da Arte – História das Ciências -- História Militar e Naval – Iconografia -- Informática – Informação em Arte (contexto da CI) -- Memória Social -- Mineralogia – Música – Numismática -- Paleontologia -- Pedagogia / Educação em Museus / Educação Artística -- Preservação / Conservação / Restauração -- Química -- Semiologia / Semiótica -- Sigilografia -- Sociologia -- Webdesign -- Zoologia 13. 4 Encerrando A leitura analítica que se fez do campo do conhecimento da Museologia recortou as características que se apresentam como imagens determinantes do seu perfil como instaurador do poder simbólico da ordem da musealização do(s) patrimônio(s). Na tarefa para realizar a interpretação dos elementos considerados marcantes no domínio foram aplicados conceitos selecionados dos estudos teóricos realizados por Pierre Bourdieu que abordam o exercício do poder simbólico no contexto dos espaços do saber. A escolha da proposição do autor permitiu identificar a presença de tal força perpassando as representações construídas pelo campo, as significações que são expressas, as relações que estabelece e as variadas circunstâncias que envolvem no ambiente social a forma cultural Museu. Os indicadores para análise que foram referidos à seara museológica trataram das peculiaridades do campo nos aspectos que estão ligados aos bens 13 O elenco atual, ligeiramente modificado, tomou por base a relação que consta da tese da autora do artigo podendo ser conferido em: LIMA (2003).


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culturais, a entidades/instituições e aos profissionais no modelo cultural da apropriação simbólica. É nesse desenho do campo simbólico que se deve destacar o discurso e a prática nas modalidades do constructo musealização e do corolário musealidade; na legitimidade dos modos pelos quais se revestem os juízos atribuídos e as atitudes pertinentes; no lastro dado pela competência museológica; no domínio de uma linguagem exclusiva, linguagem de especialidade, expressando as singularidades da teoria e da prática; na identidade da profissionalização caracterizando seus agentes; nos referenciais da distinção definindo os grupos, estabelecendo a perspectiva da competição e destacando a legitimação pelas instâncias; nos procedimentos estratégicos para integridade das fronteiras disciplinares e nas formalizações de suas adequações desenvolvidas em experiências conjuntas. A visão que surgiu está mostrando os procedimentos que se analisou marcados pela ação do poder simbólico e veio a indicar que esse instrumento intangível de marcante presença é elemento ativo no caminho da consolidação dos campos do conhecimento. Deixando perceber que os campos usufruem estrategicamente desse poder visando múltiplos resultados para benefício. O assunto estimula continuar a pesquisar. Referências BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas.Tradução de Sérgio Miceli. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. (Estudos). BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. (Memória e sociedade). BRASIL. Decreto nº 91.775, de 15 de outubro de 1985. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 16 out. 1985. Seção 1, p. 15068. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/ decreto-91775-15-outubro-1985-441776-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 21 jan. 2013. BRASIL. Lei nº 7.287, de 18 de dezembro de 1984. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 19 dez. 1984. Seção 1, p. 19033. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7287.htm>. Acesso em: 21 jan. 2013. CASSIRER, Ernest. A filosofia das formas simbólicas: a linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Tópicos, 1). CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Lisboa: DIFEL, 1990. (Coleção memória e sociedade). CONSELHO FEDERAL DE MUSEOLOGIA (Brasil). Home. Disponível em: <http://cofem.org.br/>. Acesso em: 17 jan. 2013. DESVALLÉES, A. Terminología museológica: proyecto permanente de investigación. Rio de Janeiro:Tacnet Cultural. 2000. 1 CD ROM. (ICOFOM, ICOFOM LAM (ICOM). DESVALLÉES, A.; MAIRESSE, F. (Ed.). Concepsts clés de muséologie. [S.l.]: Armand Colin; ICOFOM. 2010. Disponível em: <http://icom.museum/fileadmin/ user_upload/pdf/ Key_Concepts_of_Museology/Museologie_Francais_BD.pdf> Acesso em: 27 jan. 2013. DESVALLÉES, A.; MAIRESSE, F. (Ed.). Dictionnaire encyclopedique de museology. Paris: Armand Colin, Centre Nacional du Livre, 2011. 2 v. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 1989.

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FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES NOS MUSEUS DE ARTE

Durval de Lara Filho1 Centro Cultural São Paulo

RESUMO: Historicamente os gabinetes de curiosidades e dos primeiros museus de arte adotaram diferentes formas de organização dependendo das condições sociais, políticas e culturais. Com o surgimento da história da arte, a organização dos museus passa a ter como referência as categorias por ela privilegiadas, o que será colocado em xeque com as profundas mudanças na arte contemporânea e o ‘fim da história da arte’. Hoje, como alternativa paralela ao museu físico, o uso das tecnologias de informação e comunicação podem permitir, por meio de uma organização por múltiplas facetas, uma possível resposta às demandas atuais.

ABSTRACT: Historically, cabinets of curiosities and the first art museums have adopted different organizational forms depending on the social, political and cultural. With the emergence of art history, the organization of museums is replaced by reference to the categories privileged by it, which will be put in check by the profound changes in contemporary art and the ‘end of art history’. Today, as an alternative to parallel physical museum, the use of information and communication technologies can allow, through an organization by multiple facets, a possible response to current demands.

PALAVRAS-CHAVE: Museu de Arte. Museologia. Ciência da Informação. Organização de Exposições Permanentes. Formas de Organização de Coleções.

KEY-WORDS: Art Museum. Museum Science. Information Science. Art Museum. Museum Science. Information Science. Enlightenment Museums. Permanent Exhibitions Organization.

1 Doutor em Ciência da Informação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), ex diretor de Informação e Comunicação do Centro Cultural São Paulo.


Durval de Lara Filho

Introdução Ao longo de sua história o museu experimenta diferentes maneiras de expor seu acervo e, para tal, recorre a formas de organização. As exposições e os catálogos dos museus de arte são narrativas ou ficções cuja organização varia: ou expressam o pensamento tradicional e dominante recorrendo a um didatismo ‘facilitador’ ou buscam trazer à discussão visões inovadoras e complexas, propondo formas antecipatórias. As atividades e funções do museu – e também da Ciência da Informação – CI - não surgem apenas a partir dos próprios campos e disciplinas conexas e, também, não são determinadas por aquilo que ocorre fora delas: há uma relação dinâmica dessas áreas de atividade com cruzamentos, embates, consensos e dissensos que acabam por conformar o que vemos e temos. A museologia é um campo que abrange o trabalho em torno da memória, das coleções e das exposições desenvolvido em um conjunto heterogêneo de instituições. Mantém com a CI diferentes intersecções, como, entre possivelmente muitas outras, a tarefa de registrar a memória, as atividades de documentação e de mediação. No entanto, se é possível considerar a CI uma ciência, atributo presente na própria denominação da área, na Museologia essa caracterização é mais complexa quando se trata de objetos de arte. A dificuldade, nesse quadro, se relaciona ao modo de abordar o campo das artes, que instrumentos utilizar e que critérios classificatórios adotar. Neste artigo pretendemos abordar as formas de organização dos objetos de arte e de seus catálogos nos museus e exposições, procurando discutir seus princípios, modos de expressão e referências. Como pontos de partida, consideramos que as classificações “permitem orientar-nos no mundo à nossa volta, estabelecer hábitos, semelhanças e diferenças, reconhecer os lugares, os espaços, os seres, os acontecimentos; ordená-los, agrupá-los, aproximá-los uns dos outros, mantê-los em conjunto ou afastá-los irremediavelmente” (POMBO, 1998, p. 1). Classificar é “dar ao mundo uma estrutura” (BALMAN, 1999, p. 9, grifo do autor), é uma forma de ordenar o caos, de estancar e dividir aquilo que é fluxo, de criar uma ordem ‘racional’ que nos permite atuar no mundo. Para a CI interessam as classificações pragmáticas ou funcionais, aquelas que procuram estabelecer uma relação de uso entre os documentos e os usuários: “a diferença entre as classificações das ciências e as classificações documentais e biblioteconómicas reside justamente no carácter, em geral meramente especulativo, das primeiras em contraste com os intuitos funcionais imediatos das segundas” (POMBO, 1998, p. 120). A CI não trata das ‘mensagens’ ou ‘conteúdos’ nas artes em geral, nem mesmo na literatura ou no teatro que se expressam por meio do texto, e menos ainda nos museus de arte, instituições que colecionam objetos e imagens. A classificação, de um modo geral, prioriza os formais, relegando aos destinatários finais o trabalho interpretativo2. Existe assim na mensagem estética uma quantidade n de informação que apenas encontra um referente para sua determinação na estruturação interna, subjetiva do receptor, contrariamente ao que acontece com a mensagem semântica, mais dura, rígida e fechada, e que se impõe de uma maneira objetiva (COELHO NETTO, 1973, p. 15-16 apud GRINSPUM, 2000, p. 45). 2 Sobre este assunto e também sobre a Informação em Arte, ver: Pinheiro e Gonzáles de Gómez (2000).

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Formas de organização de exposições nos museus de arte

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A classificação por aspectos formais é uma prática bastante utilizada há bastante tempo, variando apenas pelas facetas que elege. Nos sistemas mais fechados escolhe-se informações ligadas à realidade material e de produção, como, nome do autor, data da realização, título da obra, formato e técnica utilizada. Nada impede, entretanto, que a estes aspectos sejam agregados muitos outros, que possam enriquecer o conjunto, sem no entanto ter a pretensão de ‘representar’ a obra de arte. Quando tratamos das artes visuais, temos que considerar diferentes níveis de organização, cada qual com suas especificidades: a) organização de bibliotecas de arte (livros, catálogos e publicações em geral), b) documentação dos acervos do museu, c) exposições e catálogos, que se subdividem em exposições permanentes e temporárias, cada qual com sistemas de organização e disposição diferentes. As exposições, objeto principal deste texto, são as formas de manifestação dos museus perante seus públicos; são formas de expressão e de divulgação de seus acervos e também de “organização de objetos para a produção de sentido” (MENESES, 1994, p. 22). As exposições permanentes são montadas a partir de um acervo e as temporárias podem ou não basear-se numa releitura desses mesmos acervos, incorporar obras de outros museus ou simplesmente acolher mostras completas vindas de outras instituições. As primeiras, conforme já assinalava Benédite na introdução aos Rapports du jury International (1904) relativos à exposição universal de 1900, contam a história da arte por suas grandes características, seus traços marcantes, ao passo que as exposições temporárias salientam as nuances; o museu tem um compromisso com o tempo futuro e por isso precisa avaliar muito bem aquilo que vai acolher em seu acervo, mas a exposição, ao contrário, por seu caráter temporário, pode correr mais riscos, ousar mais. O museu, diz ele, “é uma exposição permanente e a exposição um museu temporário” (1904, p. 134). Nas exposições temporárias é o trabalho curatorial que dá a elas o caráter, expressando pontos de vista por meio de uma narrativa. A organização das obras é o resultado de uma seleção e uma interpretação do curador com o objetivo de criar uma narrativa ou uma ficção, defender um ponto de vista ou expor o resultado de uma pesquisa. Estas exposições muitas vezes fogem de uma excessiva ligação com a história da arte predominante e propõem novas formas de leitura por meio de aproximações inéditas, e para isso, recorrem a temas, cronologias, trajetória de um artista, similitudes, diferenças etc. Diferentemente, as exposições permanentes dos grandes museus, de forma geral, seguem as classificações baseadas em estilos, estabelecidas na história da arte, e distribuem as obras e objetos segundo categorias previamente definidas, “discretas e distintas” (BALMAN, 1999, p. 9). A aparente naturalidade das classificações “que constituem os quadros mentais em que estamos inseridos” (BALMAN, 1999, p. 9), muitas vezes nos impede de ver além delas. As formas de organização e disposição das obras no espaço físico dos museus e nos catálogos sofrem mudanças que acompanham as concepções e visões de mundo e a estrutura disciplinar a eles vinculadas. Assim, nas coleções de arte do século XVIII, encontramos formas de organização e de distribuição das obras no espaço segundo princípios totalmente diferentes daqueles das coleções privadas dos reis, dos gabinetes de curiosidades e de História Natural, relativas aos períodos anteriores. Para discutir o assunto, focalizaremos os gabinetes de curiosidades, os catálogos e inventários, as alterações decorrentes da introdução do conceito de patrimônio público na organização e os condicionantes das mudanças verificadas na contemporaneidade.


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Os gabinetes e suas formas de organização As classificações utilizadas nos Gabinetes de Curiosidades refletem os conceitos de semelhança e similaridade, ao contrário dos de História Natural que aos poucos aproximam-se das disciplinas científicas e adotam sistemas de organização baseados em critérios disciplinares. O primeiro tem um caráter de exposição, isto é, a coleção é organizada para a contemplação, enquanto o segundo pode ter outras funções, como, por exemplo, o estudo e a pesquisa. Nos museus de objetos – históricos, antropológicos, de história natural e outros – prevalecem as ideias de Quiccheberg, Lineu e Bufon acerca do objeto como documento ou “portador de significação (semióforo)” e não somente como suporte da memória, o que pressupõe a intenção de não mais reter o objeto mas o conhecimento sobre ele (MAIRESSE, 2004, p. 57). Esta concepção irá se desdobrar em exposições que ‘contam uma história’, fazem uma narrativa, e não mais expõem curiosidades ou pretendem ser um espelho do mundo. Uma importante obra de orientação para a organização das coleções é a de Samuel Quiccheberg3 que, em 1565, publica um pequeno volume (Inscriptiones vel tituli theatri amplissimi) no qual prescreve alguns parâmetros para se organizar uma exposição de acordo com um projeto enciclopédico. Segundo Desvallées (2003, p. 64-65), Quiccheberg procura criar uma enciclopédia universal, um museu de toda a memória. “O modelo de museu de Quiccheberg existe, antes do mais, sob a forma de catálogo”. Tais critérios de agrupamentos podem ser melhor compreendidos se considerarmos que Quiccheberg enxerga a natureza como um tecido contínuo e as coleções de livros e objetos como uma espécie de espelho ou reprodução organizada desse mundo. Quiccheberg não inclui os livros em sua classificação, ao contrário das imagens, presentes ao lado dos objetos, e justifica esta escolha ao afirmar que “com efeito, uma única visão de uma imagem é mais benéfica à memória que uma longa leitura de muitas páginas” (QUICCHEBERG apud MAIRESSE, 2004, p. 56). Fica clara a intenção ‘pedagógica’ desses conjuntos nos quais as imagens e os objetos são os meios para se chegar ao conhecimento universal. As coleções dos Gabinetes de História Natural seguem propósitos diferentes daquelas dos Gabinetes de Curiosidades. Embora os objetos presentes nesses gabinetes possam ser os mesmos, o que os diferencia são os agrupamentos, a catalogação e a classificação cujo intuito era o de uma aproximação cada vez maior das disciplinas científicas.A catalogação das espécies e sua descrição passam a ocupar um papel importante nessas coleções. Pomian salienta que os objetos Adquirem um significado a partir do momento em que são relacionados com textos provenientes da Antiguidade, dos quais devem tornar possível a compreensão. Por isso, não são apenas relíquias ou mirabilia: tornam-se objectos de estudo; adquirem um significado preciso através de pesquisas que consistem em confrontá-los uns com os outros e em reportá-los todos aos textos que provém da mesma época (POMIAN, 1984, p. 76).

Embora o conceito de patrimônio público somente apareça formalmente após as revoluções burguesas do século XVIII, bem antes já se esboçavam ideias embrionárias sobre formas de organização das coleções de modo que elas se voltassem para uma missão pedagógica, o que pressupõe uma abertura a um 3 Samuel Quiccheberg (1529-1567) nasceu nos Países Baixos e morreu aos 38 anos em Munique, Alemanha. Foi conselheiro cultural do Duque lbert V da Baviera e “particularmente encarregado das aquisições e classificação de suas coleções” (MAIRESSE, 2004, 54).

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certo público. Os termos biblioteca ou enciclopédia são metáforas frequentemente empregadas para os gabinetes – e futuramente também para os primeiros museus – por suas formas de organização, por ser um espaço dedicado à memória, ao estudo e aprendizagem e, talvez também, por uma evocação do museu de Ptolomeu de Alexandria ou do Liceu de Aristóteles (BREFE, 1998).

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Organização dos catálogos e inventários Os catálogos e inventários, que antes enfocavam coleções particulares e privadas, terão um importante papel na divulgação do museu público. A partir do século XVIII, quase todos os museus lançam, periodicamente, catálogos de seus acervos, alguns ilustrados, outros apenas descritivos ou mesmo críticos. As primeiras publicações apresentavam as obras na mesma sequência que se encontravam nos espaços expositivos, podendo servir de guia para a visita ou referência às pessoas que estavam distantes e, de alguma forma, impossibilitadas de visitar o museu ou coleção in loco. Embora tais publicações quase sempre revelassem uma intenção fundada nas ideias emancipatórias do iluminismo – independência da razão, liberdade de pensamento e responsabilidade na elaboração das visões de mundo – e que o Estado tenha chamado a si o papel de provedor da educação e da cultura, não encontramos nenhuma referência ao impacto que tais ações tiveram sobre os públicos. Diversas instituições, logo em seus inícios, editam catálogos, como a Galerie de Düsseldorf, o Museu Imperial de Viena - Palais Belvédère - e o Louvre. As galerias alemãs são, talvez, as primeiras a editar catálogos a partir de coleções dos príncipes, como, por exemplo, a Galeria Real de Desden, que aberta em 1746, passa a publicar catálogos da coleção em 1753, 1765 e 1771. A Galeria de Düsseldorf é criada em 1709 a partir da coleção privada de Johann Wilhelm II e, em 1719, Gerhard Joseph Karsch, uma espécie de gestor desse museu, publica um catálogo da coleção que reproduz a mesma ordem de distribuição das obras. Segundo Gaehtgens e Marchesano (2011, p. 4), o que se pode supor é que as obras eram agrupadas por critérios artísticos (composição, desenho ou cores) ou decorativos, ainda guardando relações com os gabinetes. Em 1754, François-Lois Collins (1699-1760) assume a direção da Galeria e implementa pequenas mudanças na distribuição das obras além de produzir outro catálogo (1756). A mudança maior ocorre com a chegada de Lambert Krahle que irá implementar o agrupamento por escolas pictóricas (geralmente identificadas com os países ou regiões: escola flamenga, italiana etc.). Também diminui o número de obras expostas criando espaços entre cada tela, o que permitia uma visão mais individualizada de cada obra. É a partir da história da arte formulada por Winckelmann4 que os museus elegem um mapa a partir do qual as obras são distribuídas segundo padrões pré-estabelecidos e razoavelmente definidos. As obras passam a ser agrupadas por ‘escolas’, países de origem e períodos. Nicolas Pigage (1723-1796) e Christian von Mechel (1737-1817) são encarregados de produzir um catálogo completo da Galeria de Düsseldorf5, o que acontece em 1778. Mechel havia feito parte 4 Johann Joachim Winckelmann (1717 – 1768) é reconhecido como o fundador da moderna arqueologia e também o pai da história da arte, aplicando a ela as categorias da arqueologia científica. Foi o pioneiro a estabelecer “as distinções entre arte Grega, Greco-Romana e Romana, o que seria decisivo para o surgimento e ascensão do neoclassicismo durante o século XVIII”. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Johann_Joachim_Winckelmann>. Acesso em: 10 mar. 2013. 5 A publicação recebeu o título de: “La Galerie Électorale de Dusseldorff; ou, Catalogue raisonné et figuré de ses tableaux, dans lequel on donne une connoissance exacte de cette fameuse collection, & de son local, par des descriptions détaillés & par une suite de 30. planches, contenant 365. petites estampes redigées & gravées da’près ces mêmes tableaux, par Chretien de Mechel ... Ouvrage composé dans un gout nouveau,


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do círculo de Winckelmann e esta proximidade levou-o a uma concepção na qual o aprendizado se daria pela história da arte e, portanto, a organização das obras, tanto nos espaços da galeria como nas publicações, deveria seguir uma distribuição por escolas, períodos e estilos. O primeiro volume é apenas de textos descritivos e traz informações técnicas e comentários sobre as obras. O segundo volume apresenta imagens das plantas e elevações do edifício, além das paredes cobertas pelas obras, e não os quadros individuais. Estas imagens mostravam as obras em tamanho pequeno, acompanhadas pelo nome dos artistas, e serviam de guia para a visita ao museu. O iluminismo, os museus e as novas formas de organização O iluminismo traz, para as coleções, outras e diferentes funções a partir do conceito de patrimônio público que terão implicação na organização dos acervos. As intenções de democratização e universalização dos saberes encontram na ‘instrução pública’ o seu canal. Esse movimento tinha como intuito levar as pessoas à sua ‘emancipação’ e, para isto, “nenhum dogma ou instrução pode mais ser considerado sagrado” (TODOROV, 2008, p. 15). Por ‘instrução’ entende-se não apenas o que hoje denominamos educação formal, mas envolve instituições culturais como as bibliotecas e museus. A dificuldade, porém, é que por ‘finalidades pedagógicas’ entende-se muitas coisas diferentes, até num momento como o da Revolução Francesa, quando a educação é vista como a oportunidade para mostrar ações virtuosas e exemplos a serem seguidos (ÉTIENNE..., [20--?]), ou para criar uma visão crítica por meio de ampla formação do povo, defendidas por Condorcet6 (1943, p. 9-10 apud BOTO, 2003). As motivações pedagógicas, embora com maior ou menor ênfase, quase sempre ‘a serviço’ de alguma ideologia, foram (e continuam sendo) os mais fortes propósitos dos museus desde finais do século XVIII. O Museu Imperial de Viena – Palais Belvédère – foi aberto em 1780 na antiga residência do príncipe Eugênio e trará importantes contribuições para os futuros museus. Segundo Pommier (2000), já na data de sua abertura tinha um caráter público e gratuito, aberto a todos às segundas, terças e quartas-feiras. Alinhava-se aos princípios iluministas e enciclopedistas e contava também com a participação de Chistian von Mechel, encarregado de organizar o museu. Mechel era um gravador bastante reconhecido e, segundo Pommier, foi designado por Joseph II para organizar a coleção dos Habsburgo adotando “pour la première fois et de manière systématique le parti d’une présentation des tableaux de la collection [...] par « écoles » et, en principe, à l’intérieur des écoles, suivant une progression chronologique” (POMMIER, 2000). Esta afirmação de Pommier entra em contradição com Gaehtgens, transcrita anteriormente, que atribui as mudanças à Lambert Krahle da Galeria de Düsseldorf, alguns anos antes. De qualquer modo, estes são, talvez, os primeiros registros sobre esta forma de organização das obras numa exposição e o que permite inferir que tanto Krahle quanto Mechel tinham posições semelhantes, pouco importando quem foi o primeiro a adotá-la. As inovações não foram bem recebidas por todos em Viena, em especial pelos artistas que identificaram a classificação ‘racional’ como excessivamente par Nicolas de Pigage. 6 O Marquês de Condorcet (Marie-Jean-Antoine-Nicolas Caritat) nasceu em Ribemont, França, no dia 17 de setembro de 1743. Filósofo e matemático colabora com a Enciclopédia e mantém contatos próximos com Voltaire, Diderot, D’Alembert e muitos outros. Disponível em: <http://enlightenment-revolution.org/ index.php/Condorcet,_Marie_Jean_Antoine_Nicholas_Caritat,_Marquis_de>. Acesso em: 10 jan. 2013.

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rigorosa das obras, o que impediria a ‘festa para os olhos’ (“un régal pour les yeux”). Eles se queixaram do que consideravam o abandono do sistema tradicional alegando que se aprende mais quando escolas são misturadas. Também os críticos defenderam o museu como um “templo da arte” onde se busca a “formação do gosto” de um ser sensível, discordando da divisão das obras por escolas e defendendo que elas deveriam ser organizadas por aspectos artísticos da pintura buscando uma distribuição que priorizasse a proximidade e a sensibilidade. Mechel rebate as críticas, defendendo que sua intenção era a de dar aos visitantes as condições para que eles compreendam a história da pintura, pois somente a distribuição das obras por escolas e períodos poderia permitir uma “história visível da arte”: La finalité de tous mes efforts a été d’utiliser la disposition de ce beau bâtiment, divisé en pièces nombreuses, en sorte que l’arrangement de l’ensemble comme des parties soit instructif et puisse devenir, dans la mesure du possible, une histoire visible de l’art. Une grande collection publique, comme celle-ci, destinée davantage à l’enseignement qu’au plaisir passager, paraît ressembler à une riche bibliothèque, dans laquelle l’homme désireux d’apprendre est heureux de trouver des œuvres de tous les genres et de tous les temps, et pas seulement ce qui plaît et ce qui est parfait, mais aussi des contrastes variés, par l’étude et la comparaison desquels (l’unique moyen de parvenir au savoir) il pourra devenir un connaisseur dans le domaine de l’art […] De là est résulté un tout aussi instructif que frappant, puisque de salle en salle la gradation et les caractères des siècles sont devenus si sensibles, que la simple vue en apprend infiniment plus que ne feraient ces mêmes morceaux distribués sans égard au temps où ils ont été faits. Personne ne disconviendra des avantages sans nombre que l’on peut retirer dans tous les temps de cet arrangement systématique, et il doit être intéressant pour les artistes et les amateurs de tous les pays de savoir qu’il existe actuellement un dépôt de l’histoire visible de l’art (MECHEL apud POMMIER, 2000).

A abordagem de Mechel mostra que “há um paralelismo entre o surgimento do museu e da história da arte, como duas formas de um discurso paralelo” e que o aprendizado sobre a arte pressupõe um conhecimento de “sua evolução cronológica no quadro das escolas tradicionais” (POMMIER, 2000). Nessa concepção, o museu deve ser um local de aprendizagem e não, apenas, para trazer sensações agradáveis aos visitantes. Na França, o Museu de Luxemburgo é inaugurado em 1750 e é considerado o primeiro museu público de pintura na França (MUSÉE DU LUXEMBOURG). Na contra-corrente das galerias alemãs, segue uma disposição tradicional das obras, adotando critérios subjetivos de semelhança e proximidade entre elementos formais como as cores, composição e motivos ou temas. Tal escolha visava “ressaltar, pelas comparações e oposições, as características formais de uns e outros” e leva o visitante a desfilar “diante de um panorama da natureza e da história” (POMMIER apud BREFE, 1998, p. 291). A discussão, ocorrida anteriormente em Viena agora se dá em Paris. Pommier e Savettieri chamam a atenção para os debates sobre a forma de organização do Louvre, em 1792, quando o ministro do interior francês, Jean-Marie Roland, defende a mistura das obras e artistas. Uma comissão do museu é criada para desenvolver os trabalhos necessários e inclusive propor as formas de or-


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ganização e distribuição das obras no espaço. As orientações eram no sentido de se ter um museu destinado a se tornar público, mas também um espaço para os artistas: “devenir le centre d’attraction des amateurs éclairés et des hommes d’un cœur pur qui, savourant les délices de la nature, trouvent encore des charmes dans ses plus belles imitations” (POMMIER, 2000). Com esta postura, divergem totalmente dos critérios adotados no Museu Imperial de Viena considerando que o agrupamento por escolas e as cronologias eram inúteis para os artistas e entediante para os visitantes. A Comissão justifica seus critérios de organização dizendo que L’arrangement que nous avons adopté est celui d’un parterre de fleurs variées à l’infini, mais dont nous avions les compartiments tracés. Si, par une disposition différente, nous avions montré l’esprit de l’art dans son enfance, dans son accroissement et dans sa dernière période, ou si nous avions séparé les écoles, nous aurions pu contenter quelques érudits; mais nous aurions craint le reproche bien fondé d’avoir fait une chose inutile et surtout d’avoir mis des entraves aux études des jeunes élèves qui, par notre disposition, pourront comparer les maîtres (POMMIER, 2000).

Visão contrária tinha Jean-Baptiste Le Brun, pintor e erudito que também foi o primeiro negociante de arte de Paris7. Le Brun vê como missão do museu mostrar “les différentes époques de l’enfance, des progrès, de la perfection et enfin de la décadence des arts» (LE BRUN, apud POMMIER, 2000). Para isso as obras devem ser dispostas de forma a permitir que o visitante percorresse a história da arte. Somente dessa forma, diz ele, se formará o gosto, pois permitirá que um estudante acompanhe o desenvolvimento de cada mestre ou escola em suas diferentes fases. Chama de ridículo o agrupamento proposto afirmando que ele mais parece aquele utilizado nos gabinetes, nos quais se coloca «uma concha ao lado de um pássaro» (LE BRUN, 1793, p. 15). Trava uma grande polêmica com Roland e a Comissão sobre a intenção destes de colocar artistas à frente da direção do museu pois eles fariam melhor papel se ficassem com seus pincéis e cavaletes pois «não têm conhecimentos práticos necessários para dirigir a instituição» (LE BRUN, 1793, p. 2). As opiniões da Comissão e do ministro Roland prevalecem e o Louvre foi inaugurado seguindo a distribuição das obras no formato tradicional, como se constata no Catalogue des objets contenus dans la Galerie du Muséum français: décrété par la Convention nationale, le 27 juillet 1793 l’an second de la République française, lançado em sua inauguração. Em sua apresentação justifica o fato das obras não estarem agrupadas por ‘escolas’: On a cru devoir les mélanger, parce que ce systême paraît le plus prope à developper le génie des élèves, et à former leur goût d’une manière sûre et rapide, em leur présentant sous un même point de vue des chefs-d’oevres em divers genres. D’ailleurs, cette disposition facilite aux amateurs la comparaison des objets (MUSÉE DU LOUVRE, 1793).

Nesse catálogo encontram-se informações bastante resumidas de mais de quinhentas obras numeradas seguindo a ordem de sua apresentação no espaço: Première travée em entrant à droite 7 Jean-Baptiste Pierre Le Brun (1748-1813). Pintor, colecionador e marchand, “trabalhou com o conde d’Angivillier para aumentar as coleções reais que formaram a base do Louvre” (LE BRUN, 1793).

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NICOLAS POUSSIN No1 Les Isrëlites recevant la mâne dans le desert Hauter 4 pieds 7 pounces, larguer 6 pieds”

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SIMON VOUET 2. La Victoire tenant un enfant dans ses bras; près d’elle est le génie de l’abondance H 5 pi. 4 po., L 3 pi. 10 po. L’ESPAGNOLET 3. Saint Paul H. 4 pi. 3 po., L 2pi 2 po. LÉONARD DE VINCI 4. La Sainte Famille avec Saint Michel H. 3 pi, L 2 pi. Seconde travée à droite, e assim por diante (MUSÉE DU LOUVRE, 1793) As obras expostas estavam divididas em dois grandes blocos: arte moderna e arte antiga, tendo como fronteira o Renascimento. A publicação não apresenta informações que hoje consideramos importantes como data da obra e origem do artista. Ela traz apenas o nome do artista, da obra e suas medidas. Uma curiosidade é que antes das informações das obras existe uma orientação sobre sua exata localização no espaço do museu, mostrando claramente seu caráter de guia para a visitação. Durante todo o século XIX, pouca coisa mudou nas formas de organização das exposições de arte nos museus. Apenas no final desse século, a partir das Exposições Universais, um misto de evento comercial, industrial, institucional, cultural e de entretenimento com o propósito de mostrar os avanços da época e congregar e celebrar as recém-criadas nações ocidentais, surgem novas propostas para as exposições. Estes eventos terão importante papel na reconfiguração dos museus e, principalmente, das exposições. As exposições universais trazem as obras dos museus, dos salões e dos artistas contemporâneos, que não tinham espaços nessas instituições, para um público ávido por novidades mas que estava longe de ser um frequentador de museus. São uma forma de prolongamento do museu tradicional que têm um papel importante na divulgação da arte desse período e uma atitude bastante inovadora ao colocar a arte ao lado de máquinas e produtos do comércio, indústria e agricultura, quebrando o isolamento que o museu criava. A discussão de Léonce Bénédite8 sobre as diferenças e semelhanças entre uma exposição temporária e um museu é uma amostra daquilo que tais exposições desencadearam: um rico debate sobre os museus, as exposições e seus papéis. “Os museus são forçosamente incompletos”, diz Bénédite, “eles não têm o poder de recolher todas as obras-primas” e têm que se limitar a um processo de escolha de obras que lhes parecem mais importantes e significativas. Mas “quem pode se vangloriar de ter uma capacidade de julgamento infalível e de escapar do entusiasmo ou aos pré-julgamentos?” (BENÉDITE, 1904, 135). 8 Léonde Bénédite (1859-1925) foi professor da escola do Louvre, Historiador da arte e Conservateur du Musée National de Luxembourg. Foi o autor do capítulo referente às artes expostas na Exposição Universal de 1900, denominado Rapports du jury International (BÉNÉDITE, 1904).


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Ao contrário dos museus, as exposições, por sua “formação rápida e existência efêmera, oferecem maior flexibilidade, mobilidade, elasticidade. [...] Elas não atendem ao mesmo tempo a todas as exigências do ensino geral; elas podem não responder senão a um propósito exclusivo que é dado pelo momento. [...] Elas podem enfim ousar sem perigo, o que os museus não podem fazer sem trazer dano à sua autoridade” (BENÉDITE, 1904, p. 135). Para Bénédite não é possível se escrever uma história da arte sem levar em conta, de forma equitativa, as próprias obras e a documentação sobre elas (BENÉDITE, 1904, p. 126). Esta visão levou a que as exposições de 1889 e de 1900 apresentassem a arte produzida na época – portanto, a arte contemporânea – ao lado das últimas novidades da técnica e da tecnologia e, em mostras paralelas, as obras clássicas da arte francesa. Bénédite retoma os ideais revolucionários de 1789 para reafirmar o papel do museu, não mais como um “agradável refúgio para um mundo heteróclito de sábios diletantes [...] de visitantes distraídos, mas um verdadeiro estabelecimento de ensino (BENÉDITE, 1904, p. 133-134). Num trecho revelador Bénédite diz que as novas gerações “desejam se educar, não com os olhos dos outros, mas com seus próprios olhos” (BENÉDITE, 1904, p. 138). Esta afirmação, que tem parentescos com as ideias de Condorcet, é um tanto surpreendente para a época, quando o pensamento dominante era de que o mundo e a natureza poderiam ser apreendidos, dominados e representados e que a ‘educação e a instrução’ nada mais eram do que a transmissão do conhecimento dos mestres para os alunos. O modelo criado nas Exposições Universais será adotado na formatação da Bienal de Veneza e, depois, nas outras bienais criadas no século XX. A cidade de Veneza vivia um período de crise econômica e buscava uma alternativa que trouxesse de volta os turistas do mundo todo. Planejada desde 1893, Veneza realiza a primeira mostra em 1895 (BIENNALE di Venezia). A mostra de obras contemporâneas selecionadas pelos países participantes, critério adotado nas Exposições Universais para todos os produtos expostos, será um dos pilares das bienais em todo o mundo, durante muitos anos. A Bienal de São Paulo somente aboliu a divisão dos artistas por representações nacionais na 16ª e na 17ª bienais de São Paulo, respectivamente, em 1981 e 1983, quando o curador-geral, Walter Zanini, adota uma organização das obras por analogias de linguagem. Nas edições seguintes a Bienal retoma as representações nacionais e somente na 27ª, com a curadoria de Lisette Lagnado, volta a adotar outros critérios. Museu e documentação Uma figura importante na passagem do século XIX para o século XX é o belga Paul Otlet (1868-1944), criador de um sistema de classificação (CDU – Classificação Decimal Universal) e do conceito de documentação, que para ele é, tanto “o conjunto de documentos como a função de documentar” (OTLET, 1934, p. 373). Otlet vê a falta de ordem, rigor e dispersão dos conhecimentos e se propõe a enfrentar os problemas por meio de uma proposta de organização das informações por afinidade de assunto, num trabalho gigantesco que envolvia muitas pessoas especializadas, bem como a utilização de técnicas e dispositivos tanto para a organização como para a recuperação. Os conceitos de documento e Documentação estabelecem uma diferenciação com o conceito de biblioteca. Enquanto a Documentação “organiza as informações relacionadas a um assunto”, a biblioteca “organiza os próprios documentos”, isto é, o seu acervo (SMIT, 1987, p. 10). Sua proposta para os museus pode ser sintetizada quando Otlet fala sobre as funções do ‘trabalho museográfico’: a) escolher e reunir obras e objetos; b)

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classificá-las e etiquetá-las; c) preparar um catálogo sobre elas; d) identificar as obras mais importantes; e) dispor obras e objetos para a apreciação do público; f) estabelecer intercâmbio com outras instituições. O museu é visto, por Otlet, como um centro de documentação que tem grandes semelhanças, no plano funcional, com a biblioteca, pois ambos trabalham com coleções, catálogos, classificações, identificação, conservação etc. No entanto, não vê a mostra ou exposição como uma operação documentária, salvo em casos particulares, mas defende os princípios de organização e tratamento dos objetos como documentos visando extrair deles uma quantidade de informações com o objetivo de mostrar de forma didática, inteligível e agradável. É talvez por isso que vê as Exposições Universais, embora efêmeras, como um importante marco a ser apreciado e seguido. Otlet defende que as coleções não devem ser criadas de qualquer forma, mas seguindo um método e uma sistematização na escolha das peças que irão compor os acervos. A classificação das obras e objetos pode ser feita seguindo diversos critérios – cronológicos, geográficos ou outros – , dependendo das características e propósitos do museu e da natureza do acervo. Num museu documentário, diz ele, o visitante encontrará os objetos “ordenados sistematicamente numa evocadora representação da vida” (OTLET, 1934, p. 358). O catálogo deve ser um guia para o visitante, composto por uma introdução sobre o museu e a coleção, além de informações sobre os objetos expostos acompanhando sua disposição em cada sala. A exposição dos objetos e obras deve seguir uma técnica e valorizar os objetos expostos, lançando mão de artifícios que facilitem a compreensão dos visitantes, como máquinas que mostram seu funcionamento interno ou que funcionem mediante o acionamento de um botão, cenários em miniatura com os objetos apresentados de “forma dramática”, filmes e projeções complementares aos objetos expostos (OTLET, 1934, p. 358). Os espaços expositivos, para ele, têm de ter uma arquitetura funcional. Um museu deve ser um “tratado visualizado, objetivo e sinóptico”, cujas divisões devem seguir os mesmos princípios daqueles dos livros – capítulos, seções e parágrafos que desembocam nas frases e palavras. Eles devem ser grandes, retangulares, bem iluminados e divididos por divisórias móveis que formarão as salas (1934, p. 358). O museu visto como «essencialmente uma forma institucionalizada de transformar objetos em documentos» [...] que é, afinal, o eixo da musealização» (MENESES, 1994, p. 31-32) cabe perfeitamente para um museu de história ou antropologia, mas é discutível num de arte moderna ou contemporânea que demanda outras leituras dada a natureza da informação estética do objeto artístico. Tanto a memória como o objeto-documento e a informação estão presentes em todos os museus, porém em níveis diferentes. Por este motivo a generalização pode levar a conclusões pouco aceitáveis. Essa diferenciação também demanda outra abordagem na organização. A visão do museu como uma instituição homogênea tem predominado nas abordagens e discussões, o que dificulta uma aproximação mais específica que pode trazer algumas imprecisões ou mal-entendidos. Mesmo entre os museus de arte, podemos estabelecer uma diferenciação entre aqueles formados antes da existência do museu moderno (a partir de finais do século XVIII) e os de arte moderna e contemporânea. Enquanto os primeiros são formados a partir da reunião de obras que antes estavam em coleções privadas, igrejas e mosteiros ou mesmo objetos da cultura material que se julgou ter ‹valor artístico›, o museu de arte moderna e contemporânea irá formar seu acervo a partir de obras criadas para ele, isto é, obras que não tinham nenhuma outra finalidade senão a de serem ‹obras de museu›.


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O museu de arte nos dias de hoje Os museus de ‘belas-artes’ criados nos séculos XVIII e XIX são como um ‘grande livro’ da história da arte, expondo um paralelismo de origem com a história da arte. Analisando brevemente alguns dos maiores museus vemos que a distribuição das obras no espaço, antigas ou clássicas, obedece a critérios vinculados a locais geográficos e a períodos históricos. As subdivisões e especificidades e agrupamentos por estilos aparecem naqueles setores de maior interesse do museu, ou nas áreas em que o museu possui um acervo mais rico, como por exemplo a seção de obras de arte oriental do Hermitage ou as pinturas italianas e francesas do Louvre. Selecionamos exemplos de como alguns museus classificam e distribuem seu acervo. As pinturas são distribuídas, no Louvre e no Prado, por local de origem do artista e data, enquanto na National Gallery de Londres e no Hermitage adota-se como primeiro critério as datas das obras. Na National Gallery as pinturas são organizadas em ordem cronológica (de 1250 a 1900), enquanto no Hermitage a pintura européia está subdividida em dois grandes grupos: séc. XIII-XVIII e séc. XIX-XX. Mesmo nos museus que apresentam certas semelhanças na classificação, a terminologia adotada varia. Um pequeno exemplo é de como esses museus denominam suas seções de pintura. No quadro abaixo, procuramos uma certa correspondência entre as divisões apresentadas, mas elas estão muito longe de serem exatas. Quadro 1 – Organização das pinturas nos museu do Louvre, Prado, National Gallery Londres, National Gallery Washington e Hermitage Louvre

- Holanda - Países Baixos séc. XVI séc. XVII - Pintura germânica séc. XVIII e XIX - Flandres séc. XVII - Alemanha séc. XIV-XVI - Pintura francesa séc. XIV-XVII - Pintura francesa séc. XVIII - Pintura francesa séc. XIX - Pintura francesa em grandes formatos séc. XIX - Pintura inglesa - Pintura

Prado

National Gallery Londres

National Gallery Washington

Hermitage (departamento de arte européia ocidental) - Séc. XIII-XVIII Pinturas

- Pintura - Pinturas 1250- - Séc. XIII-XV holandesa 1600- 1500 Pintura italiana 1695 - Séc. XV-XVI - Pinturas 1500- Pinturas dos - Séc. XIX-XX 1600 Países baixos e Pinturas alemãs - Pinturas 1600- - Séc. XVI Pintura 1700 italiana e - Pintura espanhola flamenga 1430- Pinturas 1700- - Séc. XVII Pintura 1700 1900 italiana, espanhola - Pintura alemã e francesa 1450-1800 - Séc. XVII Pintura - Pintura holandesa e francesa 1600flamenga 1800 - Séc. XVIII-XIX Pintura espanhola - Séc. XVIII e inícios do XIX - Séc. XIX pintura francesa - Pintura francesa - Pintura britânica - Pintura americana - Pintura britânica 17501800 - Pintura

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XVIII - Pintura francesa séc. XIX Pintura Formas de organização de exposições nos museus de arte francesa em grandes formatos séc. XIX - Pintura inglesa - Pintura britânica 17501800 - Pintura - Pintura espanhola espanhola 11001910 - Pintura italiana - Pintura italiana séc. XIII-XV 1300-1600 - Pintura italiana séc. XVI-XVII - Pintura italiana séc. XVII-XVIII

inícios do XIX - Séc. XIX pintura francesa - Pintura francesa - Pintura britânica - Pintura americana

Fonte: O autor.9 Nesta comparação – abordando apenas a pintura – percebe-se que os critérios de nacionalidade e períodos prevalecem, porém agrupados de forma diferente. Outros museus adotam uma mistura de critérios, como o Metropolitan de Nova Iorque. Nele encontramos seções como: Escultura e Artes Decorativas européias (séc. XV-XIX), Arte Medieval (pinturas, objetos e tapeçaria dos séc. XIII-XVI), Pintura européia (séc. XVI-XIX), Arte Moderna e Contemporânea (séc. XIX-XX), Fotografia (séc. XIX-XX), África, Oceania e America (objetos arqueológicos e etnográficos), Armas, Arte egípcia, Arte grega e romana, Instrumentos musicais. Em 1929 é criado o MoMA, cuja função manifesta era a de ajudar as pessoas a entender e a fruir as artes visuais contemporâneas. Desde o início, o MoMA contou com generosas contribuições, o que o levou a possuir, se não a maior, uma das maiores e mais completas coleções de arte moderna. Em 1939, o MoMA muda-se para o edifício criado pelos arquitetos Philip L. Goodwin e Edward Durell Stone, um marco na arquitetura de museus que inaugura o conceito de ‘cubo branco’10. Para abrigar a enorme coleção de pinturas, filmes, vídeos, objetos, além de uma vastíssima biblioteca, a expansão física do museu não para. A última delas ocorreu em 2004 e dobrou a área do museu, sendo que as áreas de exposição aumentaram cerca de cinquenta por cento. Fiel aos princípios que o criaram, além de incluir novas manifestações e produções até então nunca vistas num museu, como a fotografia e o desenho industrial, o MoMA se estrutura de forma diferente, promove exposições temporárias e cerca-se de um público assíduo que frequenta as conferências, debates, sessões de cinema e que lhe dá sustentação financeira. O novo ‘modelo’ de museu divide as obras pelos suportes ou técnicas: Pinturas e esculturas 1 (1880-1940, com obras européias); Pinturas e esculturas 2 (1940-1980, arte norte-americana);Arquitetura e design – de meados do século XIX aos dias atuais; Desenhos (lápis, tinta, carvão, aquarelas, colagens e técnicas mistas, a partir 9 Todas as informações estão disponíveis nas seguintes fontes: Louvre. Disponível em: <http://www.louvre.fr/>. Acesso em 10 mar. 2013. Prado. Disponível em: <http://www.museodelprado.es/>. Acesso em 10 mar. 2013. National Gallery Londres. Disponível em: <http://www.nationalgallery.org.uk/>. Acesso em 10 mar. 2013. National Gallery Washington. Disponível em: <http://www.nga.gov/>. Acesso em 10 mar. 2013 Hermitage. Disponível em: <http://www.hermitagemuseum.org/>. Acesso em 10 mar. 2013 10 A expressão “cubo branco (White Cube)” foi criada por Brian O’Doherty e usada para definir o museu moderno. Seu livro, No Interior do Cubo Branco; a ideologia do espaço da arte, (O’DOHERTY, 2002) é uma crítica ao espaço do museu modernista, vista como uma espécie de ideologia que, sob um manto de neutralidade, se esconde no espaço expositivo de museus e galerias.


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de 1880); Fotografia (desde 1840); Mídias e novas tecnologias (vídeos e outros trabalhos desde 1960), impressos e livros (desde 1880); Cinema e Teatro (coleção de mais de cem anos de filmes); Galerias contemporâneas, com obras a partir de 1980 (MoMA). Esta forma de organização, por um lado permite uma visão ampla da produção moderna por meio utilizado, mas por outro, conforme observa Crimp, no MoMA, desde seu período inicial até nossos dias, muitas obras das vanguardas foram “domesticadas”, isto é, “São apresentadas, na medida do possível, como se fossem obras-primas convencionais das belas-artes […] livres do peso da história” (CRIMP, 2005, p. 232-233). Cita o exemplo de Rodchenko que, em dado momento, abandona a pintura em favor da fotografia. Rodchenko via a pintura como um vestígio de uma cultura ultrapassada, e a fotografia como um instrumento possível para a criação de uma nova cultura […] mas não se consegue concatenar essa história porque as diferentes obras de Rodchenko encontram-se distribuídas entre os diferentes feudos do museu. Do jeito que está, Rodchenko é percebido meramente como um artista que trabalhou com mais de um meio, ou seja, um artista versátil como muitos ‘grandes artistas’ (CRIMP, 2005, p. 234).

Estão nesta situação as obras de Marcel Duchamp, da vanguarda soviética, e dos dadaístas que, distribuídas por diferentes seções tendo como critério o suporte que utilizam, acabam por isolar suas “implicações radicais”, seu vínculo com a história e com as questões sociais. Este gesto aparentemente banal, segundo Crimp, revela a intenção do museu de construir uma “história formalista do modernismo” (CRIMP, 2005, p. 232-233). Acrecente-se que em grande parte dos museus – inclusive no MoMA – as categorias utilizadas para agrupar as obras são também departamentos independentes. Assim, o departamento de fotografia e o de pintura, por exemplo, têm funcionamento autônomo e uma interação entre eles, embora desejável, é improvável. Também os catálogos são na verdade guias para se visitar as exposições, tal como nos inícios dos museus. Diferenciam-se apenas ao inserir informações textuais sobre as obras e autores. Os museus dedicados à arte moderna, em geral, não fogem à regra e geralmente adotam critérios cronológicos e por suporte. Uma exceção é o Museu Reina Sofia, em Madri, por exemplo, que possui um acervo de obras que cobrem o período de 1900 até o presente, e adota o critério cronológico. A exposição permanente é dividida em três grandes períodos: a) A irrupção do século XX: utopias e conflitos (1900-1945; b) A guerra terminou? A arte num mundo dividido (1945-1960) e c) Da revolta à pós-modernidade (1962-1982) (MUSEO NACIONAL CENTRO DE ARTE REINA SOFIA, 2012). Nesse museu não há separação por origem ou suporte e cada segmento apresenta, lado a lado, pinturas, esculturas, filmes, vídeos, impressos e livros, o que permite uma visão não somente de obras, mas de processos artísticos e dos momentos sociais, econômicos e políticos nas quais foram criadas. Considerações finais As formas de organização das obras nas exposições permanentes, como vimos, seguem diferentes critérios: por origem (regiões, países ou continentes) e períodos; apenas por períodos; por momentos históricos (Idade Média, Renascimento, Restauração, Monarquia de Julho); pelos suportes e materiais: pinturas, esculturas, bronzes e objetos preciosos, terracotas, cerâmica grega etc. Esta mis-

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tura de critérios que segue lógicas diferentes é uma amostra das dificuldades encontradas para distribuir obras e peças segundo critérios que obedecem a “categorias de objetos” (MENEZES, 1994, p. 16) e não a “campos do conhecimento” (MENEZES, 1994, p. 16). A complexidade dos objetos é, muitas vezes, sacrificada em nome de uma compartimentação que reforça “com rigor o que parece ser a fragmentação natural dos objetos segundo o meio” (CRIMP, 2005, p. 234) e que pode levar a perdas das perspectivas históricas e sociais e induzindo a problemas de interpretação ou a uma visão da arte como algo à parte do mundo. A ordem e a classificação expressam determinados valores ou significados em detrimento de outros, e podem mudar em razão dos valores de uma época ou, mesmo, de uma determinada cultura. González de Gómez (2004, p. 66) utiliza o conceito de museu como um dispositivo informacional que abriga objetos fronteiriços e, sem questionar como o objeto ou obra foi escolhido para um determinado museu e não outro, transfere para o visitante a tarefa de ‘reconstruir as malhas’, o que de certa forma remete ao ‘museu imaginário’ de Malraux: Se pensarmos em um objeto musealizado como objeto fronteiriço, poderíamos considerar que [ele] estabelece elos entre os produtores originários do objeto e do mundo de sua produção (uma cerâmica utilitária indígena), os museólogos e curadores que o incluem em uma exposição sobre cultura marajoara do Pará (um objeto de valor antropológico, estético ou histórico), e o público do museu que pode olhá-lo das mais diversas maneiras, considerando seu valor decorativo ou vendo nele uma lembrança das férias artesanais de sua terra natal. O museu seria assim um dispositivo informacional que pode reconstruir as malhas que ligam seus objetos museais aos diversos universos culturais de origem e destinação (GONZÁLES DE GÓMEZ, 2004, p. 66).

A complexidade do objeto nunca é plenamente considerada à medida em que a classificação se sobrepõe a ela e algum aspecto é destacado dependendo do tipo de museu e dos sistemas de classificação adotados. Em outras palavras, um objeto ou uma obra de arte podem receber diversas camadas de leitura e interpretação e seu destino advém de algum fator que se considera preponderante, definindo assim o seu local, o seu museu. O vínculo profundo existente entre o museu e a história da arte, como se ambos surgissem de uma mesma célula, é colocado em xeque pelo pensamento contemporâneo ao sugerir o ‘fim da arte’ e principalmente o ‘fim da história da arte’ (DANTO, 2006; BELTING, 2006). Para este autor a história da arte reduz as obras de arte a meros “testemunhos” ou documentos ao privilegiar a sucessão dos estilos e a ver a obra como autônoma, isto é, que poderia ser avaliada segundo leis próprias. A arte moderna, a partir do século XX, não mais se prende a estilos e geralmente expressa vários pontos de vista diferentes e até contraditórios, não se deixando inserir num sistema ou princípio único e linear. “O que se mostrou é que um apego científico à ordem não está preparado justamente para a arte caótica do século XX e que o pretenso universalismo da história da arte é um equívoco ocidental” (BELTING, 2006, p. 7). Belting alerta que “O discurso do ‘fim’ não significa que ‘tudo acabou’”, mas que exige “uma mudança no discurso, já que o objeto mudou e não se ajusta mais aos seus antigos enquadramentos”. O termo enquadramento utilizado por Belting refere-se a uma visão “em perspectiva do acontecimento artístico. Por isso o fim da história da arte é o fim de uma narrativa” ou ainda o “fim de uma tradição” (BELTING, 2006, p. 23-32).


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Somente o enquadramento permitia o nexo interno da imagem. Tudo o que nele encontrava lugar era privilegiado como arte, em oposição a tudo o que estava ausente dele, de modo muito semelhante ao museu, onde era reunida e exposta apenas essa arte que já se inserira na história da arte. A era da história da arte coincide com a era do museu (BELTING, 2006, p. 25).

Por enquadramento entende-se também a existência de de um “esquema rígido de apresentação histórica da arte”, muitas vezes “puramente estilística” (BELTING, 2006, p. 172). O fim do enquadramento ou o ‘desenquadramento’ pelos quais a arte se inseria na história da arte inicia “uma nova era de abertura, de indeterminação, e também de uma incerteza que se transfere da história da arte para a arte mesma” (BELTING, 2006, p. 25). Não se trata apenas de mudanças decorrentes dos estatutos da arte contemporânea, mas também uma mudança nos modos de ver que solicitam outras formas de organização das exposições. Diante disso cabe discutir como fica o museu que nasceu e se firmou ao lado de uma história da arte diante das manifestações contemporâneas. Esta mais recente ‘crise’ do museu é potencializada por outras formas de consumo da cultura e da arte presentes na contemporaneidade. Ørom assinala que os enfoques da ‘nova’ história da arte podem ser esboçados a partir da “semiótica e teorias da representação, história de gênero com inclinação feminista, psicanálise e história social e das instituições artísticas” (BELTING, 2006, p. 139). Resumidamente pode-se dizer que no enfoque semiótico “cada leitura de um texto ou imagem é uma recriação, uma construção de significação num processo em curso” (BELTING, 2006, p. 139). Por seu lado, a história de gênero e a psicanálise criticam e buscam recuperar a participação das mulheres, geralmente excluídas na história tradicional. Finalmente, o enfoque social gera formas de exposição que incluem “diferentes estilos e épocas com o objetivo de criar diálogos e relações intertextuais entre elas”, de forma que a significação não se dê antecipadamente, mas que ocorra a partir “do novo contexto de exibição” (ØROM, 2003, p. 140). Hoje vemos multiplicarem-se exposições que adotam esses novos critérios e que Preparam a cultura (ou história) sobre determinado tema para o visitante curioso e não para o leitor de um livro. O motivo para a organização de exposições reside então menos na própria arte do que na cultura, que, para ser convincente, tem de ser apresentada de maneira visível por meio da arte (BELTING, 2006, p. 27).

É o que vemos em muitas exposições temporárias mas que quase nunca ocorre nas permanentes, quando o museu expõe seu acervo. Com as tecnologias de informação e comunicação estas propostas tornam-se possíveis com maior facilidade e flexibilidade, permitindo formas diferentes e mais ricas de acesso. Alguns dos sites de museus ‹tradicionais› apresentam possibilidades de pesquisas por diferentes facetas ‹quebrando› a rigidez encontrada no seu espaço físico, enquanto outros simplesmente transferem para o novo meio as mesmas estruturas e classificações oferecidas em seus espaços, não explorando as possibilidades oferecidas. Um exemplo de uma certa ampliação das possibilidades de leitura das obras encontra-se no site do MoMA, onde pode-se pesquisar pelo nome dos artistas, por termos, obras selecionadas, departamentos ou datas (anos). Mas essa apresentação ainda é muito incipiente

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diante das informações que os museus têm das obras e daquilo que se encontra disponível sobre o assunto pesquisado em outros sites. Uma proposta possível é a exploração de um tema de modo a oferecer várias camadas de informação sobre a obra ou artista pesquisado, como por exemplo, obras do mesmo período e local, informações do contexto social, econômico, político e cultural, técnicas empregadas, apreciações críticas etc. A partir de um resultado teríamos um conjunto de informações relacionadas que ampliariam o universo pesquisado, oferecendo opções de aprofundamento a um simples toque. Nada disso é fruto das tecnologias e pode muito bem ser realizado em bibliotecas e museus, porém demandam um trabalho intenso e, principalmente, uma clara noção daquilo que se deseja. Com os bancos de dados e as formas de acesso acima descritas, tudo isto poderá estar disponível. Um exemplo pode ser a obra de Malevich. Podemos observar sua obra como um conjunto de composições inovadoras e instigantes. Porém, se soubermos que ele pertencia à vanguarda russa pós-revolucionária (1917) e tivermos acesso às ideias e ao quadro social e político da época, o caminho percorrido pelo artista, seus conterrâneos, os demais artistas dessa vanguarda e dados sobre o que ocorria no Ocidente nesse momento, as obras ganhariam outras dimensões. Referências bibliográficas BALMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. BENÉDITE, Léonce. Deuxième partie: beaux-arts. In: MINISTÈRE DU COMMERCE, DE L’INDUSTRIE DES POSTES ET DES TÉLÉGRAFES. Rapports du jury international. Paris: Imprimerie Nationale, 1904. t. 1. p. 123-858. (Exposition universelle internationalle de 1900). Disponível em: <http://cnum.cnam.fr/CGI/gpage.cg i?p1=123&p3=8XAE583.1%2F100%2F870%2F0%2F0>. Acesso em: 20 mar. 2013. BIENNALE DI VENEZIA. La biennale. Veneza. Disponível em: <http://www.labiennale.org/en/biennale/index.html>. Acesso em: 18 mar. 2013. BOTO, C. Na revolução francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de Condorcet. Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, set. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302003000300002&script=sci_arttext#nt05>. Acesso em: 08 out. 2012. BREFE, A. C. F. Os primórdios do museu: da elaboração conceitual à instituição pública. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 17, p. 283-315, jul./dez. 1998. CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DANTO, Arthur Coleman. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Edisseus Ed., 2006. DESVALLÉES,André. Que futuro para os museus e para o patrimônio cultural na aurora do terceiro milênio? Lugar em Aberto: Revista da APOM, n. 1, p. 46-74, out. 2003. ÉTIENNE La Font de Saint-Yenne. Wikipédia: La Encyclopedie Libre. [20--?]. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/%C3%89tienne_La_Font_de_Saint-Yenne>. Acesso em: 15 mar. 2013. GAEHTGENS,Thomas W.; MARCHESANO, Louis. Display and art history: the Düs-


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A ANTROPOLOGIA AINDA PRECISA DE MUSEUS? Nélia Dias1 Instituto Universitário de Lisboa

RESUMO: O presente artigo busca mapear a relação entre a antropologia e o museu por meio de uma cartografia individual orientada pela pesquisa e pelo ensino na área de Museologia em Portugal. Alguns questionamentos são elencados para compreender, entre outras coisas, se um museu de antropologia é sinônimo de uma museologia antropológica. Nesta trajetória abriram-se pesquisas em diferentes museus como: Musée du quai Branly e o Musée de l’Homme na França. Pesquisas que visaram analisar as implicações epistemológicas do saber antropológico preconizado pelas instituições.

ABSTRACT: This article seeks to map the relationship between anthropology and the museum through a mapping guided through individual research and teaching in the field of Museology in Portugal. Some questions are given to understand, among other things, the anthropology museum is synonymous with an anthropological Museology. In this particular story, investigations were opened in different museums such as Musée du quai Branly and the Musée de l’Homme in France. Reserch that aimed to examine the epistemological implications of anthropological knowledge advocated by institutions.

PALAVRAS-CHAVE: Museu. Antropologia. Coleções.

KEY-WORDS: Museum. Antropology. Collections.

1 Professora Associada. nelia.dias@iscte.pt


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Em 2001 num livro editado por Mary Bouquet, Academic Anthropology and the Museum. Back to the Future, escrevi um texto, a pedido da coordenadora do volume, sobre as relações entre a minha experiência de ensino da museologia e a investigação antropológica em Portugal (DIAS, 2001a). Na altura não achei que o tema tratado pudesse ter relevância para os leitores, visto remeter apenas para a minha situação pessoal que não era, de forma alguma, ilustrativa do meio académico português. Dez anos mais tarde, Margaret Lopes pediu-me para dar conta da minha actividade docente no âmbito da museologia e da pesquisa desenvolvida em relação aos museus. E tal como em 2001, as minhas reticências mantém-se ; se no início dos anos 2000 assistia-se ainda ao boom da museologia e a um certo entusiasmo pelos museus por parte dos alunos, actualmente a museologia não ocupa em Portugal um papel central tanto em termos académicos – cadeiras de opção nas licenciaturas e mestrados na área – como no que diz respeito às publicações e investigação neste domínio. A dimensão pioneira e original que os museum studies2 deram para a abordagem dos museus suscitando um estímulo intelectual acabou por dar lugar a uma certa acalmia, que se traduz de uma certa forma, em abordagens mais convencionais e menos criticas em relação às práticas e aos fundamentos da museologia. Esta mudança de orientação parece-me ser sintomática da ausência de um paradigma novo na museologia ; mais ainda, com a crise económica que se instalou em Portugal e suas repercussões em termos do ensino superior e nomeadamente da procura por parte dos alunos, parece-me que a situação apresenta todas as condições para se manter. Ensino: da museologia etnográfica aos museus e colecções Desde dos anos 1990 que comecei a leccionar a Unidade curricular ‘Museologia etnográfica’, funcionando como optativa para os alunos de antropologia do 2º e 3º anos da licenciatura em Antropologia do ISCTE /IUL e também de outras áreas disciplinares, nomeadamente da licenciatura em História moderna e contemporânea. Em 2008 esta unidade curricular alterou a sua designação passando a ser intitulada ‘Museus e Colecções’, numa clara tentativa de alargar o seu conteúdo programático e de abordar o leque mais vasto de museus. Foi minha a decisão de alargar o conteúdo desta unidade curricular porque considerei por um lado, que a museologia etnográfica tinha deixado de ser, em termos de publicações recentes, um domínio em crescimento e que, pelo contrário, assistíamos cada vez mais a publicações de âmbito geral, da esfera dos museum studies3. Por outro lado, que a relação entre o ensino da museologia nos departamentos de antropologia e os museus etnográficos, nomeadamente o Museu de Etnologia (Lisboa) longe de se fortalecer, estava, bem pelo contrário, a esvanecer e que o fosso entre as duas esferas só poderia ser cada vez maior. Muitas vezes a primeira (e única) visita a este museu por parte dos alunos ocorre no âmbito do 1º ano da licenciatura. A designação Museum anthropology revela, de uma certa maneira, a ambiguidade do relacionamento entre estas duas esferas. O museum anthropology é sinónimo de museologia antropológica ou de antropologia dos museus? Como sublinhou Kaplan (1996, p. 813) “museum anthropology may be defined either as anthropology practiced in museums or as the anthropology of museums”. Esta 2 É sintomático que os Museum Studies tenham-se tornado, a partir dos anos 2000, num objecto de estudo.Ver: Starn ( 2005) e Macdonald ( 2006). 3 Ver: MacDonald (2006).


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ambiguidade é reveladora do mal estar entre a antropologia e os museus e se, tal é a minha hipótese, os antropólogos souberam encontrar no museu um novo e rico objecto de investigação, os museus por seu lado não conseguiram ainda captar através de temáticas e domínios de investigação a atenção dos antropólogos. Apesar da unidade curricular ‘Museus e Colecções’ ter uma grande procura por parte dos alunos, no entanto saber até que ponto esta unidade curricular tem o seu lugar numa licenciatura de antropologia, é uma questão em aberto. Apesar da existência no currículo da licenciatura de antropologia de outras unidades curriculares com afinidades com a museologia, tais como ‘Análise de objectos’ e ‘Antropologia da arte’, no entanto elas não constituem um conjunto sistematizado em termos de conteúdos programáticos e articulação curricular, cabendo aos discentes efectuar as articulações necessárias. Paralelamente ao ensino ao nível da licenciatura, tenho leccionado também desde há mais de 15 anos a unidade curricular ‘Questões de Museologia’ ao nível do Mestrado em Museologia – Conteúdos Expositivos, mestrado organizado em conjunto com o departamento de História moderna e contemporânea e o departamento de Antropologia. A unidade curricular, ‘Questões de museologia’, funciona como cadeira obrigatória para os alunos do 1º ano do mestrado mas também para aqueles que, depois de uma pós-graduação, obtiveram equivalências e ingressam directamente no 2º ano do mestrado. Como o titulo deixa claro, trata-se de uma unidade curricular com um conteúdo muito geral ; a primeira parte do programa é dedicada à emergência e consolidação dos museus nas suas relações com campos disciplinares, a segunda parte focando questões de actualidade tais como a arquitectura dos museus, a importância dos museus na indústria cultural e na indústria do turismo, as relações entre museus e memoriais. As temáticas das dissertações de mestrado e de doutoramento que orientei prendem-se com os percursos e os interesses profissionais dos discentes. Assim algumas dissertações incidiram sobre projectos de renovação de salas de museus e de palácios nacionais, a incorporação e a desincorporação nos museus portugueses, a introdução de novas tecnologias, os museus virtuais, o processo de digitalização das colecções públicas portuguesas e o programa Matrix, as colecções recolhidas pelos missionários da Congregação de Espírito Santo em Angola nos inícios do século 20 e actualmente conservadas no Museu antropológico de Coimbra. Depois de ter suscitado uma imensa procura por parte dos estudantes, o Mestrado em Museologia – Conteúdos expositivos tem vindo a perder a sua atractividade inicial, provavelmente por necessitar de uma reformulação a nível dos conteúdos programáticos. Se atendermos ao facto de outros mestrados e cursos de pós-graduação em museologia existentes em Portugal continuarem a atrair numerosos estudantes, talvez o verdadeiro problema não resida na diminuição da procura mas sim numa oferta diversificada e consequente competição entre instituições universitárias. Convém salientar que, pela primeira vez em Portugal, foi estabelecido em 2010 um protocolo de colaboração entre o Instituto dos Museus e da Conservação (IPM) através do seu director, Professor Doutor João Brigola, e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) visando ‘a necessidade de reforço e criação de investigação centrada nos Museus portugueses e suas colecções’. A luz deste protocolo, foi aberta uma nova área temática no concurso geral de atribuição de Bolsas de doutoramento e pós-doutoramento da FCT, sob a designação ‘Museologia, Conservação e Restauro’, com particular incidência em torno da história

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das colecções e museus. Para além do orientador, pertencente a uma instituição do Ensino Superior, os candidatos deviam ter um co-orientador pertencente à unidade museológica na qual seria desenvolvido o trabalho de investigação. Tendo tido o privilégio de coordenar o painel ‘Museologia, Conservação e Restauro’, pude assim obter um panorama geral de quais as áreas de pesquisa em curso, quais as temáticas mais procuradas pelos estudantes e aquelas que suscitam um certo desinteresse. Esta experiência permitiu-me constatar a relativa ausência de pesquisas em torno da história das colecções / museus e da figura do coleccionador como temas de investigação. Seria interessante reflectir sobre as razões pelas quais a história das colecções e dos museus tem vindo a ser negligenciada pelos académicos e consequentemente pelos futuros académicos, alunos de mestrado e de doutoramento. Do Musée du quai Branly às práticas de coleccionar Tendo iniciado a minha pesquisa com o estudo da fundação em 1878 do primeiro museu etnográfico em Paris, o Musée d’Ethnographie du Trocadéro (DIAS, 1991), achei que era uma ocasião única poder analisar o processo de criação de um novo museu, o Musée du quai Branly, no século XXI, reunindo as colecções de etnologia do Musée de l’Homme e as do Musée National des Arts d’Afrique et d’Océanie. O meu objectivo inicial era o de fazer uma etnografia do projecto museológico, tentando perceber quais as escolhas museográficas, assistir às reuniões de trabalho entre etnólogos, museografos e conservadores, perceber quais os critérios de selecção dos objectos bem como as articulações entre a museografia e o projecto arquitectónico. Considerei que fazer uma etnografia de um projecto museológico, tendo como referência os trabalhos de Macdonald (2002) no Science Museum (Londres) poderia ser um exercício altamente estimulante. Como Thomas (2010, p. 14) sublinhou recentemente: While the former narrow, almost automatic connection between anthropology and the ethnographic museum no longer seems to work, the ethnographic approach seems patently well-suited for analysing other kinds of museum.

Proceder a uma etnografia de um museu etnográfico em construção levantou um certo número de obstáculos, pelo que fui levada a pôr de lado o projecto inicial e a focalizar apenas na documentação secundária (sob forma de artigos nos jornais europeus e norte-americanos e artigos dos principais protagonistas deste museu publicados em revistas especializadas). O meu primeiro texto sobre o Musée du quai Branly publicado em 2001 foi uma espécie de descrição das diversas etapas institucionais, das medidas legislativas, seguida de uma contextualização dos debates em curso. Paralelamente redigi outros artigos sobre a criação em 2000 da antena no Louvre, o Pavillon des Sessions, contendo mais de 100 obras primas de arte não ocidental (DIAS, 2002) e sobre as designações à volta do futuro museu, nomeadamente a utilização, durante os anos 2002-2004, do termo ‘arts premiers’ (DIAS, 2003). Tentei também analisar as implicações epistemológicas subjacentes ao Musée du quai Branly, tais como : que tipo de saber antropológico era dado a ver, qual o conteúdo da diversidade cultural preconizado por esta instituição e qual a mensagem politica veiculada (DIAS 2006; 2008a). Posteriormente e no seguimento da abertura deste museu ao público em 2006, tentei examinar qual o papel do passado histórico das colecções no seio desta instituição (DIAS, 2008b) e retra-


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çar as rupturas bem como as continuidades entre o primeiro museu etnográfico (1878) e o Musée du quai Branly (DIAS, 2007b). Abandonei provisoriamente a análise do Musée du quai Branly, análise essa que focou apenas e exclusivamente sobre as colecções permanentes, visto que, nos últimos anos, numerosos artigos e livros foram publicados em torno desta instituição. Paralelamente, retomei desde 2009 dois temas que tinha brevemente sido abordado há mais de 20 anos, nomeadamente as colecções de crânios e os troféus de caça. Graças ao amável convite de Irina Podgorny et Francesco de Ceglia para participar no workshop ‘Immortal Bodies’ organizado pelo Max Planck Institute for the History of Science ( Berlin) em Janeiro de 2011, tive a oportunidade de re-trabalhar os materiais relativos ás practicas de recolha de crânios no século 19, tentando perceber as lógicas epistemológicas subjacentes a este tipo de colecções (artigo no prelo para Nuncius). Um tipo de abordagem semelhante presidiu ao texto que redigi sobre a colecção de troféus de caça do Duc d’Orleans, colecção que deu origem nos anos 1930 ao Musée du duc d’Orléans dependente do Muséum national d’Histoire naturelle (Paris). De uma certa maneira, estes dois temas estão estreitamente ligados se atendermos aos facto que alguns crânios humanos (sobretudo de inimigos capturados durante expedições militares) foram trazidos para Europa como troféus. Desde dos inícios de 2011, integrei um projecto de pesquisa coordenado por Tony Bennett financiado pelo Australian Research Council (ARC); este projecto que tem a duração de três anos, intitulado ‘ Museum, Field, and Colony. Practices of Social Governance’ reúne cinco outros investigadores, entre os quais Ira Jacknis, Rodney Harrison, Conal McCarthy, Ben Dibley e Fiona Cameron. O projecto tem por objectivo elaborar um estudo sistemático e comparativo das práticas de recolha de objectos entre os finais do século 19 e os princípios do século 20 em cinco contextos nacionais (França, EUA, Austrália, Nova Zelândia e Gra-Bretanha) ; a diversidade destes contextos nacionais estando associada a práticas de governação distintas. Centrada em torno dos museus etnográficos em França, a minha participação no projecto visa explorar os preceitos metodológicos e epistemológicos subjacentes á recolha de objectos no terreno levada a cabo pelos etnólogos franceses durante a primeira metade do século 20 O trabalho de campo implicou um novo tipo de relações entre os museus e o terreno, nomeadamente os terrenos coloniais, encarados como centros de recolha. Paralelamente, pretendo examinar a maneira como o Musée de l’Homme funcionou como uma espécie de Grand Central, um ponto central no seio de uma rede de instituições espalhadas tanto no território francês como nas antigas colónias. Esta instituição reuniu quase todas as colecções espalhadas em Paris, não apenas as colecções de etnografia, como também as de antropologia física e de arqueologia. Por outro lado, o Musée de l’Homme funcionou como um centro de coordenação de uma vasta rede de museus espalhados nas diferentes partes do mundo, sobretudo nas antigas colónias francesas mas também em países da América Latina, como o Equador. Deste ponto de vista, este museu desempenhou um papel de centro de cálculo, segundo a expressão de Bruno Latour, como lugar onde objectos e informação provenientes de várias partes do mundo foram reunidos, sistematizados e transformados em materiais científicos. Um dos meus propósitos é o de questionar a pertinência da noção de centro de cálculo. No caso francês, se o Musée de l’Homme funcionou até um certo ponto como um centro de cálculo, contudo a existência de museus nas diversas colónias francesas de Africa ocidental e na Indochina bem como a hierarquia entre os vários museus nas colónias, permite atenuar um pouco

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a concepção de um único centro de cálculo. Por exemplo, o museu de Dakar serviu de centro de cálculo em relação aos outros museus da chamada Africa Ocidental francesa e o museu de Hanoi desempenhou um papel semelhante em relação aos outros museus do Extremo Oriente. No primeiro ano do projecto, a tónica será posta na analise das relações entre museus metropolitanos e museus nas colónias, a circulação de informação, de objectos e de pessoas entre estes dois tipos de instituição e as suas articulações com práticas especificas de governamentalidade, e nomeadamente as práticas de administração colonial. O estudo das colecções antropológicas do século 19 até aos dias de hoje permitiu-me corroborar o ponto de vista de Thomas (2010, p. 8), segundo o qual “Anthropological collections are always also historical collections; they are the products of, the evidence of, and maybe even the memorials to entangled histories”. Esta perspectiva esteve de uma certa forma presente aquando o debate ocorrido entre 2006 e 2009 em torno do destino a dar ao Museu de Arte popular (Lisboa). A mobilização de uma parte da comunidade antropológica portuguesa e as controvérsias entre apologistas de conservação do museu enquanto ‘museu de si próprio’ versus defensores da transformação deste museu e consequente abertura a outras formas de cultura popular4 revelaram a importância da disciplina antropológica nos debates culturais contemporâneos. Maioritariamente centrada nos museus que possuem colecções etnográficas nacionais (ver Leal no prelo), a produção antropológica em Portugal tem vindo a orientar-se para as questões do património cultural imaterial, como testemunha a publicação recente por parte do Instituto dos Museus e da Conservação (MUSEU..., 2009). Referências DIAS, N. Le Musée d’ethnographie du trocadero (1878-1908):anthropologie et museologie en France. Paris: Editions du CNRS, 1991. DIAS, N. ‘Does anthropology need museums?’: teaching ethnograhic museology in Portugal, thirty years later. In: BOUQUET, M. (Ed.). Academic anthropology and the museum. New York: Berghahn Books, 2001a. p. 92-105. DIAS, N. Esquisse ethnographique d’un projet: le musée du Quai Branly. French Politics, Culture & Society, v. 19, n. 2, p. 81-101, 2001b. DIAS, N. Une place au Louvre. In: GONSETH M. O.; HAINARD, J. (Ed.). Le musee cannibale. Neuchâtel: Musée d’Ethnographie de Neuchâtel, 2002. p. 15-29. DIAS, N. Ethnographie, art, arts premiers: la question des désignations. Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, v. 45, p. 3-13, 2003. DIAS, N. What’s in a name?: anthropology, museums and values. In: GREWE G. (Ed.). Die Schau des Fremden. Ausstellungskonzepte zwischen Kunst, Kommerz und Wissenschaft. Stuttgart: Franz Sterner Verlag, 2006. p. 169-185. DIAS, N. Des ‘arts méconnus’ aux ‘arts premiers’: inclusions et exclusions en anthropologie et en histoire de l’art. Histoire de l’Art, n. 60, p. 5-13, 2007a. DIAS, N. Le musée du quai Branly: une généalogie. Le Débat, n. 147, p. 65-79, 2007b. DIAS, N. Cultural difference and cultural diversity: the case of the musée du quai Branly. In: SHERMAN, D. J. (Ed.). Museums & difference. Bloomington: Indiana University Press, 2008. p. 124-154. 4 Ver Dossier Etnográfica (MUSEU..., 2009).


Nélia Dias

DIAS, N. Double erasures: rewriting the past at the musée du quai Branly. Social Anthropology, v. 16, n. 3, p. 1-12, 2008. LEAL, J. O povo no museu. Museologia.pt. (No prelo). KAPLAN, F. Museum anthropology. In: LEVINSON, D.; EMBER, M. (Ed.). Encyclopaedia of cultural anthropology. New York: Henry Holt and Co, 1996. p. 813-817. MACDONALD, S. Behind the scenes at the science museum. Oxford: Berg, 2002. MACDONALD, S. Review article: reviewing museum studies in the age of the reader. Museum and Society, v. 4, n. 3, p. 166-172, 2006. MUSEU de arte popular: extinguir, metamusealizar, redinamizar? Etnográfica, v. 13, n. 2, p. 465-480, 2009. MUSEU e património imaterial: agentes, fronteiras, identidades. Lisboa: Instituto dos Museus e da Conservação, 2009. STARN, R. A historian’s brief guide to the new museum studies. American Historical Review, p. 68-98, February 2005. THOMAS, N.The museum as method. Museum Anthropology, v. 33, n. 1, p. 6-10, 2010. Artigo recebido em junho de 2013. Aprovado em agosto de 2013

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MUSEUS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS: ENTRE O CAMPO CIENTÍFICO, O ENSINO, A PESQUISA E A EXTENSÃO Emanuela Sousa Ribeiro1 Universidade Federal de Pernambuco

RESUMO: Este artigo tem como foco a análise da gestão dos museus e acervos universitários, relacionando-a com as funções da universidades: o ensino, a pesquisa e a extensão. Utiliza-se, como ferramenta de análise, a teoria dos campos de Pierre Bourdieu, a fim de discutir como opera o campo científico nas universidades públicas e quais ganhos, simbólicos e materiais, os museus universitários propiciam, ou não. O campo científico e os museus e acervos universitários são analisados em cada uma das três funções das universidades – ensino, pesquisa e extensão – e conclui-se que a extensão universitária possui potencial para apoiar os museus universitários, oferecendo o apoio institucional que o ensino e a pesquisa já não podem oferecer no atual contexto acadêmico nacional.

ABSTRACT: This article focuses on the analysis of the university’s museums and collections management, making a relation between that and the universities’ functions: teaching, research and extension. As an analysis tool, it’s used the field theory of Pierre Bourdieu, to discuss how to operate the scientific field in public universities and to know which gains, symbolic and material, university museums provide, or not. The scientific field and university museums and collections are analyzed in each of the three functions of universities - teaching, research and extension - and it’s concluded that the university extension has the potential to support university museums, offering the institutional support that teaching and research can no longer provide the current national academic context.

PALAVRAS-CHAVE: Museu Universitário. Patrimônio Universitário. Campo Científico. Gestão de Museus.

KEY-WORDS: University Museum. University Heritage. Scientific Field. Museums Management.

1 Professora do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE e do Curso de Mestrado Profissional em Gestão Pública da UFPE. E-mail: emanuela.ribeiro@ufpe.br


Emanuela Sousa Ribeiro

Museus universitários: discutindo conceitos Este artigo analisa a gestão dos museus e acervos universitários, situados na interface entre a gestão das instituições de ensino superior públicas, o campo científico/acadêmico e a já complexa tarefa da gestão de museus. Assim, trabalhamos com a intersecção entre as análises da área da teoria social, da gestão pública e da museologia. No âmbito da gestão pública é importante perceber que, quando tratamos dos museus e acervos das instituições de ensino superior públicas, estamos tratando de instituições cuja gestão está vinculada ao funcionamento, regras e impedimentos da administração da coisa pública, com as vicissitudes do bom ou mau funcionamento do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, tratando-se de museus universitários, não se pode desconhecer que estes estão inseridos nas lógicas e práticas do campo científico (BOURDIEU, 2004), sendo influenciados pelas práticas de pesquisadores, professores e administradores deste campo, tal como está configurada a vida acadêmica no Brasil desde a estruturação do atual sistema de ensino superior universitário, após a Reforma Universitária de 1968. E, por fim, nunca é demais ressaltar a complexidade das práticas relacionadas à gestão dos museus, cujas necessidades de conservar, investigar, comunicar, interpretar e expor, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo (BRASIL, 2009), demandam, cada vez mais, articulação entre eficiência técnica e o atendimento às demandas da sociedade contemporânea. Assim, acreditamos ser importante discutir o funcionamento dos museus universitários, refletindo sobre as particularidades deste tipo de gestão, que está inserido em um campo com regras de funcionamento bastante particulares. O universo empírico de onde partem nossas análises surgiu a partir das visitas de campo realizadas durante o projeto Valorização do patrimônio científico e tecnológico brasileiro2, do qual somos parceiros institucionais em Pernambuco. O projeto está voltado para a identificação e valorização do patrimônio cultural de ciência e tecnologia, que compõe a enorme maioria – mas não a totalidade – dos acervos dos museus universitários, e os trabalhos de campo desenvolvidos ao longo do projeto nos propiciaram contatos com o cotidiano de diversos pequenos museus das universidades de Pernambuco, tanto públicas quanto privadas. Por outro lado, a Universidade Federal de Pernambuco, instituição pública de ensino superior onde desenvolvemos nossa atividade profissional é uma das nossas principais fontes de observação cotidianas, comparação com outras instituições e, principalmente, nossa principal fonte de inquietações e de instigação para a colocação deste problema de pesquisa. Assim, apesar do recorte empírico regional, acreditamos que os impasses e problemas identificados ao longo do trabalho se reproduzem na grande maioria das universidades do país. Antes de qualquer coisa, é relevante retomar, ainda que brevemente, a discussão sobre a natureza dos museus e acervos universitários, perguntando-nos qual a peculiaridade deste tipo de museu, cuja diversidade temática é tão ampla. Efetivamente, há museus universitários de todas as áreas do conhecimento, que poderiam estar agrupados em torno de seus similares não universitários. Por exemplo, o banco de dados do comitê internacional do ICOM para museus 2 Projeto de pesquisa coordenado pelo Prof. Dr. Marcus Granato, que visa “ampliar o conhecimento sobre conjuntos de objetos de C&T existentes no país, propiciando sua melhor preservação e um estudo teórico sobre o patrimônio de C&T no Brasil”. Disponível em: <http://www.mast.br/projetovalorizacao/ new-page-2.html>. Acesso em: 22 jul. 2013.

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Museus em universidades públicas: entre o campo científico, o ensino, a pesquisa e a extensão

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e coleções universitárias (UMAC – International Comittee for University Museums and Collections3) listas 757 (museus universitários de história cultural e arte), 133 (museus universitários de etnologia e antropologia), 313 (museus universitários de história e arqueologia), 318 (museus universitários de medicina), 1057 (museus de história natural e ciências naturais), entre outros. Certamente os museus de etnologia e antropologia, por exemplo, poderiam estar vinculados apenas ao comitê internacional do ICOM destinado aos museus de etnografia (ICME – International Comittee for Museums and Collections of Ethnography), assim como cada um dos demais museus, poderia estar vinculado apenas ao comitê especializado de sua área, de acordo com temática das suas coleções. Porém, acreditamos que, na maior parte das vezes, o fato de ser um museu universitário é determinante para sua configuração institucional, tanto no nível da sua missão e objetivos, quanto no nível de suas políticas de gestão institucional. No dizer de Gil (2005, p. 46) “os museus universitários, como tais, têm características específicas que fazem com que atravessem transversalmente a tipologia museológica” Acreditamos que isso se dá em virtude da origem da coleção, bem como em virtude do seu uso após a musealização. Do ponto de vista da origem, trata-se de levar em consideração a motivação para a construção das coleções e, claro, o contexto no qual se inseremos acervos. Podemos ilustrar essa afirmativa com a declaração dos ministros da União Européia sobre o patrimônio universitário: O ‘patrimônio universitário’ engloba todos os bens tangíveis e intangíveis relacionados com as instituições de ensino superior e o seu corpo institucional, bem como com a comunidade acadêmica composta por professores/pesquisadores e estudantes, e todo o meio ambiente social e cultural que dá forma a este patrimônio. O ‘patrimônio universitário’ é composto por todos os traços, tangíveis e intangíveis, da atividade humana relacionada ao ensino superior. É uma grande fonte de riqueza acumulada, que nos remete diretamente à comunidade acadêmica de professores/pesquisadores e estudantes, seus modos de vida, valores, conquistas e sua função social, assim como os modos de transmissão do conhecimento e capacidade para a inovação (UNIÃO EUROPÉIA, 2005).

Percebe-se que a conceituação do patrimônio universitário, que designa o acervo dos museus universitários, identifica a origem das coleções com a “comunidade acadêmica, seus modos de vida, valores e função social” – mesmo quando a conceituação foi produzida a partir de um fórum político, de não especialistas. Assim, retomando o exemplo das coleções de etnografia, podemos afirmar que uma coleção etnográfica construída no âmbito universitário tem, potencialmente, características distintas de outras coleções, construídas fora das universidades. Mudam os sistemas de classificação das peças, muda a documentação associada, muda o uso, muda o público-alvo etc. O sistema de valores, modos de vida e função social das universidades e, consequentemente do seu patrimônio e dos seus museus é, portanto, um dos principais elementos que constituem o acervo dos museus universitários. Esta parte do acervo, conquanto seja em geral constituído por um patrimônio 3 Banco de dados completo disponível em: <http://publicus.culture.hu-berlin.de/collections/>. Acesso em: 22 jul. 2013.


Emanuela Sousa Ribeiro

imaterial e de difícil apreensão, ajuda a explicar o porquê da existência de características e de questões que são próprias deste tipo de museu, independente da tipologia das suas coleções materiais. Trata-se de um conjunto de valores, saberes, modos de vida, que falam de uma cultura universitária, surgida já no século XIII, em plena Idade Média, intimamente associada com a pretensão de universalidade dos saberes e com a experiência da autonomia universitária (VERGER, 2002, p. 579-580). Estas características da universidade medieval – a autonomia e a universalidade, pretensas, pelo menos –mantêm-se até os dias atuais e somam-se à experiência científica do século XVIII, que propugna o controle da natureza e o desenvolvimento técnico-científico como inevitavelmente positivo (BAZZO, 2011, p. 93-94). Trata-se de uma cultura universitária, que também é parte dos museus universitários, independente da sua especialidade. A perspectiva da existência de uma cultura universitária pressupõe, portanto, a necessidade de difundi-la, torná-la acessível aos não universitários, de maneira a trabalhar também na consolidação da Universidade como locus portador de determinadas características, específicas e privilegiadas, da sociedade contemporânea. Assim como os demais museus – e não poderia ser diferente –, os museus universitários existem também para legitimar valores e experiências da sociedade em que estão inseridos, conforma afirma Poulot: Na escala das coletividades, os mecanismos de aquisição, de transmissão e de conservação das obras [...], envolvem um horizonte de expectativa ligado às representações de um grupo social, a uma sensibilidade local, às experiências, próximas ou longínquas, sociais e culturais, dos quais ele participa (POULOT, 2003, p. 40).

Entre as muitas representações levadas a efeito pelos diversos tipos de museus, há que considerar também o seu papel na representação do saber universitário, de caráter acadêmico, diferenciado daquele saber que circula fora dos seus muros.Tal saber configura-se em um “microcosmo dotado de suas leis próprias” (BOURDIEU, 2004, p. 20), cuja legitimação depende, intrinsecamente, da sua capacidade de funcionar autonomamente, como campo científico, conforme analisaremos no item seguinte. Diante do exposto acreditamos que podemos fazer uma síntese das particularidades dos museus universitários a partir das delimitações propostas por Gil (2005, p. 49): Deve estar integrado numa universidade [...]; Deve ter a preocupação de estudar, conservar e apresentar convenientemente as coleções que possui, usando-as em ações científico-pedagógicas[...]; Tem como uma das suas missões constituir a “face visível” da universidade para o grande público [...]; Os museus universitários deverão constituir um meio [...] com que a universidade pode contar para levar sua ação de sensibilização dos jovens pré-universtiários para as atividades científicas, bem como de divulgação cultural (no sentido mais amplo) às populações que não a frequentam; Tem o dever de proteger e valorizar o seu patrimônio histórico-artístico, facilitando a fruição dele pelo grande público e favorecendo o seu estudo pelos especialistas da própria universidade ou exteriores a ela; Distinguem-se dos seus congêneres dependentes de outros organismos

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Museus em universidades públicas: entre o campo científico, o ensino, a pesquisa e a extensão

no fato das atividades enumeradas serem realizadas numa perspectiva universitária, dando origem a uma instituição híbrida que projeta a universidade nas populações que não a frequentam – influindo na sua qualidade de vida – bem como nos jovens que nela pretendem ingressar.

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Analisando as propostas de Gil, podemos afirmar que os museus universitários agregam, às funções dos museus não universitários, as demandas por legitimação e difusão dos saberes, experiências, sensibilidades e representações do campo científico e da vida acadêmica, sendo também responsáveis por apresentar a Universidade aos não universitários. Transportando essas características para o modelo brasileiro de universidade, cujas funções típicas são, por mandamento constitucional, o ensino, pesquisa e a extensão4, podemos compreender porque grande quantidade de museus universitários se vincula ou aos próprios departamentos onde surgiram as coleções que lhes deram origem – ou seja, se vinculam às unidades de pesquisa científica e de ensino – ou, mais contemporaneamente, estão vinculados às unidades administrativas da extensão5, pois, estas são as “responsáveis” pelo contato com a sociedade. Mesmo quando os museus universitários não são formalmente vinculados às unidades extensionistas, muitas vezes os financiamentos universitários para os museus provêm da extensão, pois, as atividades vinculadas aos museus não costumam ser encaradas como atividades de pesquisa, conforme discutiremos a seguir. Há, portanto, que se refletir sobre a configuração do campo científico, de um lado, e, do outro lado, sobre a relação (não harmoniosa, na prática) entre ensino, pesquisa e extensão e seu impacto na gestão dos museus universitários. Para tanto utilizamos como ferramentas de análise a teoria do funcionamento dos campos, tal como proposta por P. Burdieu, e sua aplicação no contexto da especialização das funções das universidades no Brasil. Museus universitários: o campo científico, a função ensino e a função pesquisa De acordo com Bourdieu (2004) o conceito de campo é operacional no sentido de analisar o funcionamento de determinados setores do mundo social que possuem características e regras de funcionamento autônomas, embora sejam também influenciados pelo contexto social geral. Nas palavras do autor: A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias. Se, como o macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não são as mesmas. Se jamais escapa às imposições do macrocosmo, ele dispõe, com relação a este, de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada (BOURDIEU, 2004, p. 20-21).

Uma vez que o campo científico dispõe de autonomia de funcionamento, também é importante lembrar que ele maneja capitais próprios, valores e poderes que lhes são particulares. Este tipo de capital, nomeado por Bourdieu como capital científico, pode ser conceituado como 4 Conforme exposto na Constituição Federal de 1988, art 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (BRASIL, 1988). 5 Breve levantamento, amostral, aponta museus ou memoriais vinculados às unidades administrativas da extensão na USP, UFPE, UFRPE, UFS, UFPR, UFSC, UFRGS, UFRJ, UFMA, UFS, UFMT, etc. Esta pesquisa ainda está por ser realizada de maneira sistemática, contudo, nossa intenção é apenas apontar para uma realidade que precisa ser analisada, porém, ainda carece de estudos acadêmicos.


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uma espécie particular do capital simbólico (o qual, sabe-se, é sempre fundado sobre atos de conhecimento e reconhecimento) que consiste no reconhecimento (ou no crédito) atribuído pelo conjunto de pares-concorrentes no interior do campo científico (BOURDIEU, 2004, p. 26).

Estes capitais funcionam como moedas que se recolhem de acordo com as funções e atividades realizadas pelos docentes nas universidades e se distribuem, de maneira desigual, entre atividades de ensino, de pesquisa e extensão. O capital científico se expressa através de duas formas de atuação, principais, no campo científico: uma atuação temporal/política e outra atuação “científica pura”, por assim dizer. No caso da atuação temporal/política estamos nos referindo àqueles agentes que têm uma atuação institucional voltada para o funcionamento quase que burocrático – mas não menos importante - do campo científico, ou seja, que está ligado à ocupação de posições importantes nas instituições científicas, direção de laboratórios ou departamentos, pertencimento a comissões etc., e ao poder sobre os meios de produção (contrato, créditos, postos etc.) e de reprodução (poder de nomear e de fazer as carreiras) que ela assegura (BOURDIEU, 2004, p. 35).

Neste contexto estão as chefias de departamento, as coordenações de cursos de graduação e pós-graduação, entre outras atividades ligadas ao ensino e à pesquisa, cujos ganhos simbólicos são bastante altos. Porém, cumpre, desde já, observar que a direção e administração de museus não costuma ser um do posto de direção que gera grande capital científico na modalidade temporal/política. Amparamos esta afirmação na análise de Delicado (2008), cuja pesquisa analisa os museus de ciência de universidades portuguesas: os museus tutelados por instituições do campo científico são necessariamente dirigidos por docentes ou investigadores. Estes cargos são ocupados por indivíduos com um interesse particular pela museologia ou divulgação científica ou por docentes do respectivo departamento, escolhidos em regime de rotatividade ou por responderem a necessidades específicas do museu. São geralmente profissionais que já atingiram o topo das suas carreiras, com tempo disponível para dedicarem a uma actividade que é pouco valorizada no campo científico (PAOLA, 2004), no qual os capitais são acumulados através da docência, dos projectos de investigação e da publicação de artigos em revistas (DELICADO, 2008, p. 57).

Para referendar a tese do pouco prestígio gerado pelos postos administrativos nos museus universitários brasileiros, podemos lançar mão das pesquisas realizadas por Marques e Silva (2011, p. 78) no contexto dos museus da UFBA, e Silva Filho (2013) no contexto da gestão dos acervos de patrimônio cultural de ciência e tecnologia da UFPE. Após entrevistar gestores de quatro museus da UFPE, Silva Filho conclui: “Em nenhum momento os entrevistados se queixaram de seus salários, apenas fizeram menção ao não reconhecimento institucional por seu trabalho e pelos acervos que guardam” (SILVA FILHO, 2013, p. 109). Mesmo em universidades públicas com maior tradição na gestão de museus universitários, como a USP, que possui museus desde a sua fundação, pode-se perceber um desequilíbrio entre o prestígio dos cargos de direção de

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museus e dos demais ambientes hierárquicos da instituição, conforme apontou, em 2001, Mortara:

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No Conselho Deliberativo de cada museu há participação de docentes representando as unidades afins; entretanto, como destaca Ulpiano Meneses, não há;representantes dos museus nos Conselhos das unidades afins. Além disso, cada museu deve indicar uma lista tríplice para submeter ao Reitor na escolha de seu diretor; este deve ser no mínimo titular e até o momento não há titulares procedentes dos museus. Assim, os diretores indicados vêm dos departamentos afins (MENESES apud MORTARA, 2001, p. 61-62).

Apesar de não dispormos de dados produzidos em pesquisas exaustivas sobre a realidade dos museus das universidades públicas brasileiras, acreditamos que existem dados suficientes para afirmar que os cargos de diretoria de museus universitários são assumidos em detrimento de atividades que geram maior prestígio, maior rendimento, seja no âmbito do capital científico com uma atuação temporal/política, seja no âmbito do capital científico com atuação “científica pura”. Nesta outra modalidade de atuação, a do capital científico puro, os museus universitários fornecem ainda menos prestígio. O capital científico puro está amparado principalmente nas “contribuições reconhecidas ao progresso da ciência, as invenções ou as descobertas (publicações, especialmente nos órgãos mais seletivos e mais prestigiosos...)” (BOURDIEU, 2004, p. 36). No contexto do sistema de avaliação do campo científico no Brasil, trata-se de ganhos relacionados principalmente com a atividade de pesquisa e com seus mecanismos de legitimação (publicações em periódicos com Qualis, participação em projetos de pesquisa financiados, geração de patentes etc.). Assim, qualquer atividade que não produza lucros neste campo é desvalorizada institucionalmente. Contudo, mais do que a desvalorização institucional, cumpre-nos lembrar que a preponderância deste tipo de capital no campo científico tem um impacto também nas condições materiais de preservação dos acervos dos museus universitários, pois, os recursos econômicos destinados a produzir capital científico puro são muito maiores do que os recursos destinados à manutenção de museus universitários. Embora esta situação seja, aparentemente, paradoxal, estamos, no fundo, tratando da especificidade dos museus e coleções universitárias, que analisamos anteriormente: as coleções universitárias foram criadas para o ensino e a pesquisa, a elas subordinadas, por assim dizer. Em última instância, e com manifesto exagero didático, poderíamos afirmar que os museus e coleções universitárias foram criados para garantir a pesquisa, para garantir a produção do capital científico puro. Esta contextualização – e mesmo o exagero didático – são importantes para que possamos compreender o quanto a desvalorização dos acervos e museus universitários, no contexto da administração interna das universidades, está relacionada à sua pouca funcionalidade no âmbito da pesquisa científica. Os museus universitários existem desde o século XVIII, contudo, apenas no século XIX estes começaram a generalizar sua preocupação com o atendimento especializado ao público não universitário (GIL, 2005, p. 43), entretanto, pode-se afirmar que os recursos destinados às atividades externas foram sempre limitados, em comparação com a função principal dos acervos, que era o atendimento às necessidades internas das universidades.


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O ponto de descenso na gestão dos museus universitários ocorreu quando o ensino e a pesquisa começaram a ter seus métodos e objetos modificados pela miniaturização e pela virtualização. O século XX, em especial na sua segunda metade, assistiu a uma grande mudança nos métodos e objetos de estudo das universidades, que passaram do campo macro ao campo micro, ou seja, a investigação científica afastou-se daquilo que podemos designar por ‘objeto museológico’, centrando-se cada vez mais no átomo e na molécula, tornando, na opinião de diversos especialistas, os Museus de História Natural organismos obsoletos no que respeita ao ensino e à investigação (GIL, 2005, p. 43).

Embora o próprio Gil relativize este afirmação para o contexto geral europeu, podemos observar, até por experiência empírica, que os métodos e materiais de ensino e pesquisa científica foram amplamente impactados pela lógica da renovação tecnológica. Conforme explicam Favacho e Mill (2007), na sociedade contemporânea, o saber tende sempre a ser associado à inovação tecnológica: a relação de saber que engendra poder é marcada por um conturbado processo de inovações tecnológicas em curto prazo. Em decorrência dessa aceleração das inovações em curto prazo, as relações de saber tornam-se efêmeras à medida que a crítica ao saber tecnológico é substituída pelas facilidades da técnica (inovação). Isto significa dizer que o vínculo estabelecido entre os aspectos privilegiados da cultura ocidental e o discurso tecnológico conduz tal discurso para uma verdade vaga, porém inquestionável, a saber: a metamorfose do discurso tecnológico. Em outras palavras, o discurso tecnológico tem a pretensão de desviar-se de qualquer conservadorismo e de viver basicamente de supostas vanguardas (FAVACHO; MILL, 2007, p. 209).

Longe de entender a renovação tecnológica como a vilã responsável pela crise dos museus universitários enquanto fonte de pesquisa, queremos chamar atenção para o fato de que os museus e coleções universitárias mudaram de função quando deixaram de ser a fonte privilegiada de dados/espécimes/exemplares/amostras para a pesquisa e passaram a receber valor cultural. O movimento de atribuição de valor cultural está relacionado a um outro capital, outro poder simbólico, outra forma de distinção e de legitimação (PRADO, 2011, p. 128), não tradicionalmente manejado pelas universidades para tratar de si próprias. Este movimento é recente se pensarmos na longa trajetória institucional das universidades no ocidente e, no caso brasileiro, podemos afirmar que esta atribuição de valor cultural aos seus acervos ainda está em processo de implantação, posto que o nosso sistema de ensino superior é extremamente recente (meados do século XIX). Podemos identificar na literatura outros exemplos, fora do âmbito da história natural, que nos indicam que museus e coleções universitárias com valor cultural – não utilizados para a pesquisa e o ensino – são criações recentes no âmbito europeu. Por exemplo, Lourenço explica como se deram os processos de musealização de instrumentos científicos em algumas universidades europeias: Os instrumentos eram utilizados até à exaustão, tornando-se depois obsoletos e postos de lado (tipicamente, iam para o lixo ou, na melhor das hipóteses, para uma cave ou um sótão). Apenas no século

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XX foram estas ‘proto-coleções’ organizadas em museus, geralmente na sequência de centenários ou celebrações – foi assim com o Museu de Utrecht, com o Museu de História da Ciência de Oxford, com o Museu/Gabinete do Volta em Pavia e com o Museu de Ciência da Universidade de Lisboa (LOURENÇO, 2009, p. 51, grifo nosso).

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No caso dos museus de arte, a motivação para a constituição das coleções está relacionadaà busca por outro tipo de legitimação, vinculada à distinção que o capital simbólico cultural pode gerar (PRADO, 2011), conforme exemplifica Mortara sobre o contexto britânico: A posse de valiosas coleções dava prestígio às universidades, tanto pelo fato de poderem utilizá-las para ensino e pesquisa como pela criação de uma imagem de patrocinadoras/protetoras das artes e ciências. Nas décadas de 60 e 70 muitas universidades britânicas tornaram-se responsáveis por museus e coleções que estavam com problemas financeiros e também adquiriram outras importantes coleções. Com a crise financeira das universidades nos anos 80, passou-se a questionar a sua capacidade de gerir todo esse patrimônio (MORTARA, 2001, p. 26).

Certamente este quadro analítico que estamos traçando é bastante genérico, contudo, podemos afirmar com segurança que mesmo no contexto europeu, a institucionalização do patrimônio universitário6 é recente (século XXI)7, e que esta institucionalização pressupõe a atribuição de um valor cultural a um grande conjunto de bens que, durante séculos, só teve valor enquanto ferramenta para a geração de capital científico. No caso brasileiro, estamos falando de universidades jovens, em sua esmagadora maioria criadas já no século XX, sem uma experiência acumulada com a gestão dos museus e coleções universitários, os quais têm sido criados a serviço da pesquisa (especialmente no caso das ciências da terra e de algumas áreas que necessitam do espécime como os herbários, ou as coleções zoológicas, entre outras) ou, o que é mais comum, são fruto de ações individuais de pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, que têm particular sensibilidade para a preservação de algum acervo. Esta atividade individual, personalista até, também ocorre nas universidades mais jovens da Espanha, conforme explica Fernandéz, afirmando que os novos museus têm em comum o fato de terem “sido gerados graças ao esforço e dedicação de uma pessoa que com seu entusiasmo conseguiu envolver profissionais e voluntários de diversas disciplinas, transformando em realidade um projeto duradouro” (GARCÍA FERNANDÉZ, 2012, p. 105). Deste modo, retomamos o argumento de que os museus universitários, nos dias atuais, não costumam gerar capital científico e, por este motivo não recebem suficiente valorização no ambiente institucional universitário, estando sempre em 6 Ressaltamos a diferença entre patrimônio universitário e museu universitário, contudo, há que se observar que os movimentos de valorização, e desvalorização, de ambos são um processo único, pois, na origem, os acervos que os compõem serviam para a pesquisa científica, tendo sofrido o mesmo processo mudança de utilização quando passaram a necessitar da atribuição de valor cultural para garantir sua sobrevivência. 7 Ver, por exemplo, o Manifeste pourl’intégracion des museés et collections dans la politique scientifique et culturelle des universités, produzido por 70 profissionais de museus das mais importantes universidades francesas em 2012. Disponível no site do Comitê Internacional do Icom para os Museus e Coleções Universitárias. Disponível em: <http://publicus.culture.hu-berlin.de/umac/pdf/MANIFESTE-Muse%CC%81es%20 et%20collections%20universitaires.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2013.


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situação de inferioridade na disputa por recursos humanos e materiais. Esta situação se reflete até mesmo na disputa por condições mínimas de infra-estrutura material, tal como a alocação de espaço físico, a distribuição de verbas de manutenção, a reposição de funcionários, os recursos para publicação etc. As autoras Marques e Silva fazem uma lista de dificuldades encontradas na gestão dos museus da UFBA, a saber: 1) dificuldades financeiras; 2) falta de autonomia; 3) tensões nas relações com departamentos (entre professores, estudantes e funcionários) e com as comunidades universitária e local; 4) pressão dos departamentos para a utilização do espaço; 5) abandono das coleções; 6) falta de espaço para armazenamento e para a exposição; 7) falta de profissionais especializados em atividades museológicas; 8) chefia exercida por pessoas sem formação na área museológica; 9) acúmulo de função por parte dos dirigentes (MARQUES; SILVA, 2011, p. 78).

Enquanto Silva Filho identificou demandas muito semelhantes entre os gestores de museus da UFPE: “Verbas para manutenção, reconhecimento institucional e déficit de pessoal foram as dificuldades mais referidas pelos gestores” (SILVA FILHO, 2013, p. 110). Segundo os mesmos gestores entrevistados por Silva Filho, os museus não lhes propiciam ganhos no campo científico, seus ganhos são de outra natureza, “expressos através de depoimento emocionado como: ‘[...] cuido dele porque ele é meu filho’” (SILVA FILHO, 2013, p. 110). Certamente poderíamos estender essa realidade para a enorme maioria dos museus universitários brasileiros, pois, de maneira ampla, podemos afirmar que nas universidades brasileiras a função pesquisa está dissociada dos museus, e vice versa. Na disputa por melhores condições de trabalho os detentores do capital científico precisam, para sua própria manutenção, optar por, por exemplo, direcionar os funcionários existentes para a realização das atividades que garantam a execução financeira do Departamento, e não para o museu; na distribuição das escassas verbas do Departamento, os recursos destinam-se a adquirir um data-show para as atividades de ensino da graduação, não para o museu; na disputa por espaço físico para instalar um novo laboratório de análises científicas, perde a reserva técnica do museu. Enfim, os exemplos poderiam ser replicados ad infinitum, pois, nas atividades cotidianas das universidades, os capitais científicos relegam a gestão dos museus a segundo plano, a fim de garantir sua própria sobrevivência no campo científico. Enfatizamos a importância de correlacionar a gestão dos museus com o funcionamento do campo científico, pois, são as dinâmicas internas deste campo – aliadas à gestão da coisa pública no Brasil – que atribuem o lugar dos museus nas universidades. Museus universitários e a extensão: limites e possibilidades A extensão é a faceta mais recente das universidades. Enquanto o ensino e a pesquisa estão na base do seu surgimento, ainda na Idade Média, a extensão é uma criação da universidade moderna, surgida apenas em 1808, na Alemanha, e nas universidades populares, também surgidas no século XIX, com a função de disseminar os saberes técnicos (CARVALHO, 2011, p. 19). No Brasil a função extensionista se consolidou com a Lei Básica da Reforma Universitária (Lei n. 5.540/68), que normatizou a atuação extensionista

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das universidades8. Desde então, podemos afirmar que a função extensão vem crescendo a passos largos, especialmente no Brasil e na América Latina (FORPROEX, 2012), tendo se consolidado atualmente com o seguinte conceito:

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A Extensão Universitária, sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, é um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre Universidade e outros setores da sociedade (FORPROEX, 2012, p. 15).

Contudo, apesar do muito que se escreve sobre a necessária integração entre ensino, pesquisa e extensão, sabemos que, do ponto de vista da infraestrutura e dos recursos materiais e humanos, a extensão é a mais frágil das funções das universidades brasileiras, conforme aponta Carvalho (2011, p. 12): É notória a pequena importância que se dá à extensão universitária enquanto produção acadêmica e disponibilidade de recursos pelos órgãos de fomento. A ausência de um órgão regulador e fomentador da extensão em âmbito nacional, como acontece com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na área de pesquisa e com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) na pós-graduação, pode ser fator de desvalorização da extensão no seio das universidades, que muitas vezes não consideram essas ações como atividades acadêmicas. O currículo lattes, por exemplo, não leva em conta participações nas ações extensionistas9, sendo, ele, considerado no ambiente acadêmico como o grande e, por muitos, o exclusivo instrumento de avaliação do grau de excelência dos docentes.

Do ponto de vista orçamentário, é importante lembrar que a extensão ainda não está sequer institucionalizada nas diretrizes orçamentárias do governo federal (planos plurianuais, a partir do qual são geradas as leis orçamentárias federais) (FORPROEX, 2012, p. 29), ou seja, os recursos financeiros são escassos e instáveis. Poderíamos mencionar uma série de outros elementos que apontam a fragilidade da extensão no âmbito das universidades brasileiras, contudo, para os fins deste trabalho, importa tão somente considerar que se trata de uma atividade recente, cujos mecanismos de institucionalização e legitimação ainda se encontram em construção, da mesma maneira que o lugar dos museus e acervos universitários nesta função. Assim, podemos apontar, novamente, para os poucos ganhos de capital, tanto simbólico quanto econômico, neste novo lugar institucional dos museus e coleções universitárias. Mais uma vez, gestores de museus ganham pouco reconhecimento e prestígio institucional, pois, estão vinculados à função mais frágil da universidade. Na falta de espaços institucionais vinculados às atividades de ensino e pesquisa, os museus e acervos universitários assumem a função de equipamentos de difusão dos conhecimentos da universidade para os não universitários. Por um lado, podemos dizer que este espaço institucional, apartado dos espaços 8 Existem referências a ações extensionistas desde o início das experiências universitárias brasileiras, porém, destaca-se o período entre 1968 e 1996, ano da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394, 20/12/1996), como um período importante para o desenvolvimento das atuais feições da extensão. Deve-se ressaltar especialmente a criação do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras-FORPROEX em 1987 e a Constituição de 1988. (FORPROEX, 2012). 9 Só recentemente foi inserida uma seção específica para os projetos de extensão no Curriculum Lattes; o texto citado é de 2011.


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onde são desenvolvidos os ganhos de capital científico, reforça uma certa exclusão do museu universitário que se aparta, ainda mais, dos principais espaços de poder e mecanismos de legitimação do campo científico. Porém, por outro lado, a reversão deste quadro pode estar em construção. No âmbito da extensão vêm sendo construídos – com rapidez, se compararmos com a trajetória do ensino e da pesquisa – conceitos e práticas que abrem um maior espaço para uma atuação mais efetiva dos museus universitários e, consequentemente, uma maior força institucional na disputa por recursos para a sua gestão. Para compreendermos melhor esta possibilidade que parece estar em construção, é importante lembrar que o conceito de extensão no Brasil passou por diferentes fases, antes de adquirir as feições atuais: Da extensão cursos, à extensão serviço, à extensão assistencial, à extensão ‘redentora da função social da Universidade’, à extensão como mão dupla entre universidade e sociedade, à extensão cidadã, podemos identificar uma resignificação da extensão nas relações internas com os outros fazeres acadêmicos, e na sua relação com a comunidade em que esta inserida (SERRANO, [2011?], p. 1).

A atual concepção de extensão universitária tem origens epistemológicas que são muito próximas às concepções de museu que foram propostas durante as reuniões de Santiago do Chile (1972) e Caracas (1992). As trajetórias, e os autores que embasam estas trajetórias, são muito semelhantes. O mesmo Paulo Freire que debateu o papel autoritário da extensão, criticando a “extensão como um momento autoritário da universidade, que desconhecendo a cultura e o saber popular, apresentava-se como detentora de um saber absoluto, superior e redentor da ignorância” (SERRANO, [2011?], p. 2), foi também o inspirador da Declaração de Santiago10, quando esta tratou da nova forma de atuar dos museus latino-americanos: A tomada de consciência, pelos museus, da situação atual e das diferentes soluções que se podem vislumbra para melhorá-la, é condição essencial para sua integração à vida da sociedade. Dessa maneira, consideraram que os museus podem e devem desempenhar papel decisivo na educação da comunidade (DECLARAÇÃO DE SANTIAGO, 1972 apud BRUNO, 2010, p. 1).

Vinte anos depois, ambos conceitos passaram por atualizações e adaptações, passando a propugnar não mais a necessidade da intervenção dos museus, e da extensão universitária, em uma dada comunidade que precisaria ser conscientizada, mas, sim, reconhecendo a “Comunidade como cogestora desses bens, com sua visão própria e seus próprios interesses” (HORTA, 2010, p. 65). Para os museus, a declaração de Caracas propugnou, principalmente, a integração dos museus à vida comunitária. Neste mesmo período foi formulado o atual conceito de extensão, baseado na perspectiva de Santos, que incorporou o conceito de “interação dialógica entre a Universidade e a sociedade” (FORPROEX, 2012, p. 10). É possível perceber que existe uma matriz conceitual muito próxima, como já se apercebera Santos: Considero que a área de extensão, nesse novo contexto, terá uma importância vital na construção da pluriuniversidade e será responsável 10 E só não foi debatedor principal daquela conferência porque seu nome foi vetado pelo delegado brasileiro junto à UNESCO, por questões políticas (VARINE, 2010, p. 39).

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por promover transformações importantes na organização dos currículos dos cursos das diversas áreas, na formação e na carreira docente. Comentando a importância da extensão pra a universidade do sec. XXI, Santos (2005, p. 175) registra que a reforma da universidade deve conferir uma nova centralidade às atividades de extensão e concebê-las de modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo às universidades uma participação ativa na construção da coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental e na defesa da diversidade cultural (SANTOS, 2008, p. 235).

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Esta proximidade de conceitos pode transformar os museus e coleções universitárias em um veículo privilegiado de comunicação entre a universidade e a sociedade, ao invés de apenas apresentar a universidade aos não universitários. Se a extensão ainda não produz grande quantidade de ganhos de capital simbólico, poderão os museus universitários colaborar na sua institucionalização e legitimação. Poderão, museu e extensão crescer juntos, propiciando mútuo apoio e melhores condições de desenvolvimento institucional. Novos estudos e planos de ação precisam ser construídos para que os museus universitários e a extensão universitária se integrem, proporcionando a exploração dos valores culturais para os acervos sob guarda das universidades. Trata-se de um campo ainda em construção no ambiente acadêmico, porém, o reforço da institucionalização dos museus como espaços privilegiados de uma extensão dialógica, poderá criar os mecanismos de institucionalização dos museus, propiciando ganhos simbólicos e materiais para os agentes envolvidos na gestão dos museus e oportunizando uma revalorização destes no contexto da gestão universitária como um todo. Referências BAZZO, Walter Antonio. Ciência, tecnologia e sociedade e o contexto da educação tecnológica. 3. ed., rev. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP, 2004. BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 05 out. 1988. Seção 1, p. 1. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 22 jul. 2013. BRASIL. Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009. Estatuto dos museus. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 jan. 2009. Seção 1, p. 1. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ Ato2007-2010/2009/Lei/L11904.htm>. Acesso em: 22 jul. 2013. BRUNO, Maria Cristina de Oliveira. O ICOM/Brasil e o pensamento museológico brasileiro: documentos selecionados. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010. CARVALHO, Luciano de. Relações de parceria entre universidade e extensão universitária na UFJF. 2011. Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Educação)- Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 2011. DELICADO, Ana. Os museus e a promoção da cultura científica em Portugal. Sociologia, Problemas e Práticas [online], n. 51, p. 53-72, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?pid=S0873-65292006000200004&script=sci_arttext>. Acesso em: 06 dez. 2012 FAVACHO, André; MILL, Daniel. Funções do discurso tecnológico na sociedade contemporânea. Pro-Posições, v. 18, n. 2 (53), maio/ago. 2007. Disponível em:


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TRÊS COLEÇÕES DO ESPAÇO CULTURAL CASA DAS ONZE JANELAS: DOAÇÃO E EDITAIS NO FORTALECIMENTO DE UM ACERVO Marisa Mokarzel1 Universidade da Amazônia RESUMO: O presente artigo discute a relação entre três coleções: a proveniente da FUNARTE; a Fotografia Contemporânea Paraense, resultante do Programa Petrobras de Artes Visuais e a coleção de fotografias de Luiz Braga adquirida com o Prêmio Marcantonio Vilaça/FUNARTE 2009. Todas pertencentes ao Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, do Sistema Integrado de Museus e Memoriais da Secretaria de Estado de Cultura do Pará – SIM/SECULT. O artigo analisa ainda o contexto histórico e a importância dessas três coleções para o acervo de um museu situado na região Norte do Brasil.

ABSTRACT: This article discusses the relationship between three collections: the coming of FUNARTE; Contemporary Photography Pará resulting from the Petrobras Visual Arts and the collection of photographs of Luiz Braga gained the Call Marcantonio Vilaça / FUNARTE. All belonging to the Cultural House of Eleven Windows, the Integrated Museums and Memorials of State Secretary of Culture of Pará - SIM/ SECULT. It also examines the historical context and the importance of these three collections for the collection of a museum located in northern Brazil.

PALAVRAS-CHAVE: Coleções. FUNARTE. Fotografia Paraense. Luiz Braga. Casa das Onze Janelas.

KEY-WORDS: Collections. FUNARTE. Photography of Pará. Luiz Braga. House of Eleven Windows.

1 Doutora em Sociologia (UFC) e Mestre em História da Arte (UFRJ). Professora e pesquisadora do Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura e do Curso de Artes Visuais da Universidade da Amazônia – UNAMA. Foi diretora do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, do Sistema Integrado de Museus e Memoriais da Secretaria de Estado de Cultura do Pará – SECULT.


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Em 1997 teve início, no Centro Histórico de Belém, o Projeto Feliz Lusitânia da Secretaria de Estado de Cultura do Pará – SECULT, que se desenvolveu em quatro etapas, abrangendo prédios antigos, integrados à história da cidade. A intenção era estabelecer laços de identidade e memória na perspectiva de preservar o patrimônio histórico, cultural e paisagístico. Enquanto a primeira etapa foi inaugurada, em 1998, com a restauração da Igreja de Santo Alexandre e do Palácio Episcopal – conjunto concernente ao Museu de Arte Sacra –, o Espaço Cultural Casa das Onze Janelas abriu suas portas em 2002, juntamente com o Museu do Forte do Presépio cujo processo de restauração pertencia à terceira etapa. Os três museus encontram-se distribuídos em torno da Praça Frei Caetano Brandão, área na qual teve início a construção da cidade e atualmente caracteriza-se pela presença de prédios históricos adaptados para uso museológico. A pesquisadora Costa (2007) menciona em sua dissertação de Mestrado sobre o Museu do Forte do Presépio, que o Projeto Feliz Lusitânia recebeu dois prêmios: o Aloísio Magalhães, do Ministério da Cultura, em 1999, e o primeiro lugar do Salão Amazônico de Arquitetura, em 2001. O prédio que abriga o Espaço Cultural Casa das Onze Janelas foi construído no início do século XVIII como residência oficial do rico proprietário de engenho Domingos da Costa Bacelar. Na segunda metade daquele mesmo século, a casa é adaptada pelo arquiteto italiano Antônio José Landi para funcionar como Hospital Real Militar. Após a desativação do hospital a casa exerceu outras funções de caráter militar, por último serviu de sede para a 5ª Companhia de Guarda do Exército. Como mencionado anteriormente, a função museológica da Casa das Onze Janelas nasce em 2002 e a coleção FUNARTE foi decisiva para o processo de sua criação. A coleção FUNARTE e o Espaço Cultural Casa das Onze Janelas No final dos anos 1990 o Museu do Estado do Pará - MEP, pertencente à SECULT, recebeu em três lotes a referida coleção. Os lotes foram encaminhados, em tempos diferentes, depois de um acordo entre o escritor Márcio Souza, presidente, de 1995 a 2002, da Fundação Nacional de Arte – FUNARTE2, e Paulo Chaves Fernandes que foi Secretario do Estado de Cultura do Pará durante o mesmo período, sendo que sua gestão foi ampliada quando o novo Governo assume. O acordo vislumbrava a oportunidade de doação desde que a Secretaria de Cultura conseguisse restaurar as obras que naquele momento necessitavam de uma boa higienização e de reparos, uma vez que a FUNARTE não possuía uma reserva técnica, um lugar adequado para mantê-las conservadas. A maioria era proveniente do Salão Nacional de Artes Plásticas – SNAP, promovido por essa instituição cultural e coordenado pelo Instituto Nacional de Artes Plásticas – INAP3, outras vinham de exposições realizadas na Galeria Macunaíma4 e uma pequena parte era de outras procedências. Em 1998 integrei a equipe do recém-criado Sistema Integrado de Museus e Memoriais – SIM, pertencente à SECULT e responsável pelo gerenciamento sistêmico dos museus do Estado. Como pesquisadora e curadora conheci a coleção FUNARTE e logo me interessei por ela ao perceber a sua importância 2 Pertence ao Governo Federal e foi criada em 1975, tendo suas atividades interrompidas em março de 1990, durante o governo Collor que criou o Instituto Brasileiro de Arte e Cultura – IBAC, englobando a FUNARTE. Esta voltou a funcionar de forma independente somente em 1994 quando o IBAC foi extinto. 3 O INAP integrava a estrutura organizacional da FUNARTE e era responsável pela área de artes plásticas. 4 A Galeria Macunaíma pertencia a FUNARTE e os artistas dela participavam por meio de convite ou edital.


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ao agregar obras de artistas representativos do campo da arte, como Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Rubens Gerchman, Cildo Meireles, Jorge Guinle, José Bechara, Adriana Varejão, além de artistas paraenses como Emmanuel Nassar, Osmar Pinheiro e Ruy Meira. O processo de catalogação ocorreu paralelamente ao de restauração e à medida que os trabalhos foram sendo concluídos, equipes da FUNARTE visitaram o acervo, por mais de uma ocasião, para dar o parecer que contribuiu com os procedimentos de doação. Como ainda não existia a Casa das Onze Janelas, a primeira ideia foi realizar uma grande mostra para apresentar a coleção para a população. Mas, a diretora do SIM, Rosangela Britto teve dificuldades para convencer a SECULT de realizar a exposição da forma que imaginávamos, devido aos custos um pouco mais elevado, diferente de uma exposição usual. O orçamento incluía além da mostra, um catálogo com imagens das obras e textos críticos, e uma ação educativa consistente, bem planejada a partir do panorama da arte que o conjunto das obras oferecia. Apesar da primeira proposta ser negada, o desejo de realizar uma exposição com uma coleção especial permaneceu e as dificuldades foram vencidas em função de uma simples e eficaz estratégia: Rosangela Britto agendou uma nova visita à Secretaria de Cultura, desta vez munida de fotografias de obras de artistas que tinham o reconhecimento nacional. A imagem aliada aos nomes já consagrados foi fundamental para o processo de convencimento da importância da coleção. Sabe-se que “[...] as imagens mostram objetos ausentes, dos quais elas são uma espécie de símbolo: a capacidade de reagir às imagens é um passo em direção ao simbólico” (AUMONT, 1995, p. 66). Talvez o simbólico presente naquele conjunto de imagens tenha sido decisivo não só para se realizar a exposição, mas também para nascer um museu voltado para arte moderna e contemporânea. Na época do encontro entre Rosangela Britto e o Secretário de Cultura, o Governo do Estado do Pará estava assinando um convênio com o Exército Brasileiro, transferindo ao Estado o terreno onde funcionava a 5ª Companhia e

Fonte: Armando Queiroz.

Figura 1- Fachada do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas.

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atualmente se encontra a Casa das Onze Janelas. O espaço ainda não tinha uma destinação precisa. O reconhecimento do valor artístico e cultural da coleção FUNARTE e a existência de um prédio histórico disponível na área do Projeto Feliz Lusitânia fez com que nascesse um museu destinado à arte moderna e, principalmente, à arte contemporânea. Com a possibilidade de um prédio histórico ser adaptado para função museológica com a previsão de serem criadas quatro salas expositivas, o plano de expor as obras da coleção FUNARTE foi repensado e assim a curadoria propôs uma mostra com obras provenientes também de outras coleções que passaram a pertencer à Casa. A ideia era apresentar traços da história da arte contemporânea que poderiam ser trabalhados com escolas, universidades e a comunidade em geral. De acordo com Scheiner (2006) pode-se perceber “[...] a História não como retorno, mas como fluxo, onde cada indivíduo, cada sociedade tem seu significado e seu lugar”. Ao se entremear história e arte, no qual se inclui as obras locais, abre-se um leque de discussões e nos faz pensar que os museus “[...] são uma poderosa ágora cultural, uma instância de aproximação entre Diferentes” (SCHEINER, 2006). Ter contato com as imagens de obras de arte não substitui a potência da obra quando apresentada de forma presencial, a relação que se estabelece é muito diferente, por isso considero que a coleção FUNARTE viabilizou uma oportunidade única de um público situado no Norte do país, região mais desprovida economicamente, ter contato direto com obras que até então só eram possíveis serem vistas em livros, revistas e outros meios. A ideia de unir esta a outras coleções ampliava a oportunidade de realizar uma seleção tendo em vista a participação de obras de artistas locais sem hierarquias ou diferenças regionais, levando em consideração a fluidez de fronteiras e uma demarcação cronológica mais flexível. Para Danto (2006, p. 15):

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[...] o contemporâneo é, de determinada perspectiva, um período de desordem informativa, uma condição de perfeita entropia estética. Mas é também um período de impecável liberdade estética. Hoje não há qualquer limite histórico. Tudo é permitido.

Fonte: Octávio Cardoso.

Figura 2 – Uma visão panorâmica da exposição Traços e Transições que inaugurou a Casa das Onze Janelas.


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Esta ampla permissão gera conflitos em função de uma flexibilidade que torna confusos os parâmetros para direcionar o posicionamento crítico da arte. A falta de critérios mais claros, de certa forma, desnorteia um pensamento acostumado a se orientar e analisar o contexto artístico a partir de normas que definem este ou aquele movimento. Trata-se, na verdade, de um momento da história da arte que finda e que deve ser compreendido como “[...] a transição histórica da arte moderna para a pós-histórica.” (DANTO. 2006, p. 15). A curadoria denominou a exposição que inauguraria a Casa das Onze Janelas de Traços e Transições da Arte Contemporânea, o pensamento era justamente trabalhar com esse corpo hibrido da arte que se realiza em um terreno movediço e instável da contemporaneidade. A outra intenção da curadoria era promover um amplo diálogo entre um prédio histórico, do século XVIII, e a arte contemporânea, situando esse diálogo além dos limites das salas expositivas, a ideia era mostrar as obras também em outras dependências do museu. Da mesma forma, pretendia-se envolver o entorno, por isso se propôs que algumas obras ocupassem o jardim da Casa e assim estivessem mais próximas do público, pois se tratava de um espaço aberto, no qual não havia portas ou fronteiras estabelecendo horário de visitação, de entradas ou saídas. A exposição Traços de Transições, nascida da coleção FUNARTE e que inaugurou a Casa das Onze Janelas além de estabelecer relações com a história da arte, abrangia diferentes linguagens artísticas, constituindo ainda uma importante aderência ao universo da fotografia que, em Belém, representa uma força consolidada em termos não só regional, mas também nacional. O entrelace entre coleções, na mostra inaugural, torna-se mais significativo com a participação da coleção Fotografia Contemporânea Paraense: Panorama 80/90. A Coleção Fotografia Contemporânea Paraense: Panorama 80/90 e o Programa Petrobras de Artes Visuais. De uma forma geral, os museus brasileiros têm dificuldade em traçar sua política de aquisição de obras por diferentes motivos, mas principalmente pela constante falta de verbas e esses problemas se ampliam quando o museu situa-se em uma região que apresenta graves problemas sociais e econômicos. Por esta razão, nos anos 2000, os editais do Governo Federal de incentivo à aquisição de acervo, representam uma fonte de contribuição para ampliar, cobrir lacunas ou formar um conjunto de obras que pode colaborar com a difusão do conhecimento da arte e da cultura. Um acervo e uma coleção nele inserido podem gerar pesquisas, exposições e fornecer informações e imagens que, ao circular, proporcionam novos conhecimentos. Todo o processo em que resultou a formação da Coleção Fotografia Contemporânea Paraense: Panorama 80/90 foi muito importante pelas parcerias estabelecidas, pelas pesquisas realizadas, pela visibilidade que reafirmou o Pará como um fértil campo da fotografia desde a documental até a expandida5. 5 Termo utilizado pelo pesquisador Fernandes Junior em sua Tese de Doutorado A Fotografia Expandida, defendida em 2002 (FERNANDES JUNIOR, 2002).

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Fonte: Fotografia contemporânea paraense (2002)

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Figura 3 – Outeiro, fotografia de 1987, de Miguel Chikaoka que integra a coleção Fotografia Contemporânea Paraense: Panorama 80/90.

O projeto concernente a esta coleção de fotografia, exposta na Casa das Onze Janelas em 2002, recebeu patrocínio do Programa Petrobras de Artes Visuais e teve a coordenação do fotógrafo/pesquisador Mariano Klautau Filho. Participaram da pesquisa sobre a produção fotográfica no Pará nos anos 1980 e 1990, os pesquisadores Patrick Pardini6 e Rubens Fernandes Junior7. O artista visual Orlando Maneschy8 centrou o seu texto critico em torno de Gratualiano Bibas, autor homenageado pelo projeto que participou da fotografia experimental dos anos 1950 e 1960. A parceria estabelecida com a FotoAtiva9 foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisa uma vez que esta associação possui um excelente banco de imagens e uma importante documentação sobre a fotografia no Pará. O mapeamento dos fotógrafos, a análise de sua produção no contexto das duas décadas, originou um livro, um CD-ROM, um site e uma exposição que compuseram o projeto. A exposição teve a curadoria de Nakagawa10 (2002, p. 46) para quem “a fotografia paraense contemporânea se manifesta como um movimento artístico coordenado por intelectuais de sólida e diversificada formação [...]”. Uma parte da mostra ocupou a Sala Gratuliano Bibas, a outra parte, em um processo curatorial compartilhado, fundiu-se com a Traços e Transições, realizada na maior sala, a Valdir Sarubbi. O Programa Petrobras ao viabilizar a publicação do livro, a aquisição das fotografias para compor o acervo, assim como a exposição, possibilitou uma série de procedimentos que muito contribuiu para se refletir sobre o contexto da foto6 Fotógrafo franco-brasileiro grande conhecedor da fotografia paraense. 7 Curador e crítico de fotografia, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com tese sobre a fotografia expandida. 8 Professor e curador que tem se dedicado a produção de artes visuais na Amazônia. 9 A FotoAtiva criada no começo dos anos 1980, por Miguel Chikaoka, tornou-se associação somente nos anos 2000, é uma das grandes responsáveis pela reflexão sobre fotografia e a formação de um grupo de fotógrafos respeitados no circuito de arte. 10 Curadora dedicada à fotografia, que realizou inúmeras curadorias sobre a produção fotográfica do Norte e Nordeste brasileiro.


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grafia no Pará e fornecer materiais para novas pesquisas em um campo fotográfico que alcançou reconhecimento nacional e revelou-se importante fonte de conhecimento sobre a fotografia no Brasil. Fernandes Junior (2002, p. 19) considera que: No mundo contemporâneo das imagens em abundância, o que se busca é mostrar algo que se destaque da mesmice. Uma imagem que carregue a centelha da transformação capaz de estimular o espectador a refletir sobre aquilo que vê. É com essa perspectiva que detectamos nas últimas duas décadas, no estado do Pará, particularmente na cidade de Belém, um grupo de realizadores que construiu, através de um processo incomum de organização e trabalho, um dos melhores conjuntos imagéticos produzidos no país.

Trata-se, de fato, de um conjunto imagético gerador de reflexões sobre a fotografia brasileira em sua dimensão plural, que se desdobra em diversas direções e abriga fotógrafos como Luiz Braga que abrem canais para uma poética visual singular. Na opinião de Fernandes Junior (2002, p. 19) “Com certeza, podemos afirmar que a fotografia paraense destaca-se na produção contemporânea brasileira porque foi um movimento que soube incorporar as diferenças internas e atingir uma dimensão social, cultural e política, que nenhuma outra região do país conseguiu”.As diferenças internas podem ser percebidas quando, em um mesmo intervalo de tempo, a fotografia caminha em direção ao fotojornalismo, se constitui a partir de concepções mais relacionais de natureza social e coletiva ou adota formas conceituais que se materializam em distintas linguagens e suportes, podendo ser concebidas na forma de instalação, objeto, vídeo. A importância dessa coleção é inegável, mas como os investimentos em arte e cultura apresentam as dificuldades já comentadas, somente uma década depois foi possível dar continuidade ao fortalecimento de um acervo tão representativo para a cultura paraense. À coleção de Fotografia Contemporânea Paraense somou-se outra coleção que mais uma vez recebeu o apoio de edital. A Coleção Luiz Braga, o Premio Marcantonio Vilaça/FUNARTE 2009 e a reafirmação de um acervo fotográfico A legitimação11 alcançada pela fotografia no Pará justifica que haja um investimento cada vez maior na formação de um acervo fotográfico, por essa razão a parceria entre o fotógrafo Luiz Braga e Nina Matos, diretora da Casa das Onze Janelas por ocasião da seleção do Premio Marcantonio Vilaça, demonstrou-se bastante pertinente como uma ação de fortalecimento desse acervo que escreve uma história e possibilita a formulação de um pensamento sobre a fotografia brasileira. O projeto foi apresentado por Luiz Braga, com anuência da Casa das Onze Janelas que também colaborou com informações sobre o museu, suas condições, sua programação e interesse em receber a coleção formada por 13 fotografias inéditas da série Verde Noite, que utiliza a técnica “nigthvision”. Sobre essa série Herkenhoff (2005), curador e diretor cultural do Museu de Arte do Rio – MAR revela que a técnica “[...] distorcida pelo filme calibrado para ‘day light’, produz verde. Produz a amazonidade falsa. Certa fotografia de Braga desterritorializa o olhar geográfico ao subverter os meios fotográficos para produzir ineficiência e erro”. Esta distorção proposital que converte a luz diurna em noite verde é resultante de uma conjugação entre sensibilidade e razão que subverte a aproxima11 Termo usado no sentido dado por Pierre Bourdieu quando no campo artístico, constituído pela luta de poder, alcança-se o reconhecimento de seus pares.

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ção com o real e ao mesmo tempo distancia-se do exótico. Como afirma Herkenhoff (2005), Braga produz uma amazonidade falsa, não condizente com a artificialidade de imagens tão comumente produzidas. O clima irreal advém de outro caminho, de uma subjetividade que dota a imagem de nuances, produz camadas de uma narrativa sutil, atemporal e não localizável, apesar do título que situa o lugar da cena.

Fonte: Catálogo de fotografias (2003)

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Figura 4 – Estrada Nova – Trapiche, série Verde Noite, fotografia de Luiz Braga, adquirida pelo Prêmio Marcantonio Vilaça/FUNARTE 2009.

As imagens criadas por Luiz Braga integram a história recente da fotografia no Pará que o artista ajudou a construir. Ainda muito jovem, no final da década de 1970 começou a fotografar e no início dos anos 1980, por solicitação da FUNARTE e em parceria com Osmar Pinheiro, realizou um mapeamento sobre


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a “visualidade amazônica”. As fotos iniciais eram em preto e branco e apresentavam-se mais próximas da realidade, todavia o olhar especial dedicado à fotografia, que teve distintos momentos, já deixava transparecer uma assinatura seja pelo enquadramento, seja pelo uso da luz. A cor utilizada posteriormente de forma planar ou de maneira onírica reafirmavam a potencialidade de um fotógrafo que transforma em pintura a cor e a luz que vê, redesenhado universos cotidianos e nos fazendo chegar ao ambiente fotografado por outros caminhos: o do sensível. A técnica “nigthvision” foi outra possibilidade, mais recente, de trabalhar a cor, o monocromático e de narrar as cenas deixando em suspenso algo que ali está e se transforma em cada observador. Com as 13 imagens, adquiridas com o Prêmio Marcantonio Vilaça, foi laureado não somente Braga, mas também o museu que além das fotos da série Verde Noite recebeu como doação do fotógrafo mais 32 fotografias de suas várias fases. Este ato revela uma postura generosa e acima de tudo um compromisso com a instituição e com o público, uma vez que torna acessível para pesquisa e exposições parte da história da fotografia no Pará. Este conjunto de imagens soma-se a outro proveniente da Fotografia Contemporânea Paraense 80/90, e de outras fontes, tornando o acervo da Casa das Onze Janelas um dos mais significativos para se conhecer a produção de Luiz Braga, este importante fotógrafo brasileiro que participou à convite do curador Ivo Mesquita, da 53ª Bienal de Veneza, realizada em 2009. O vídeo, dirigido por Afonso Gallino, realizado como chamada da exposição Percurso do Olhar, apresentada como um dos resultados do Prêmio Marcantonio Vilaça, traz um depoimento de Braga, no qual deixa claro o que significou ter suas fotografias no acervo da Casa das Onze Janelas: “É um prazer ter a minha obra, enfim, na minha terra. Para mim, é um privilégio poder ter um recorte da minha vida guardado e conservado em um museu que considero um dos museus mais sério do Brasil”. O percurso de seu olhar, durante décadas, encontra-se presente nas obras adquiridas com o Prêmio e doadas pelo próprio artista. Esta coleção guarnece o acervo do museu com um significativo valor, representado pelas poéticas imagens de Luiz Braga. As três coleções, a que originou a criação do museu e as duas provenientes de editais federais, foram muito importantes para a constituição de um acervo que, apesar de grandes lacunas, representa uma fração das artes visuais no Brasil, em especial uma parte do percurso da fotografia brasileira em que o Pará ocupa destacado lugar. Para a constituição de acervo, sem dúvida, os editais federais vêm dando uma contribuição decisiva ao suprir parcialmente as questões referentes à aquisição de obras. Muitos problemas, no entanto, permanecem no que se refere à política aquisitiva que deve ser traçada conforme as necessidades do museu e revelar o comprometimento dos órgãos por eles responsáveis, destinando uma verba a esse objetivo, pois os editais resolvem em parte a questão, mas não isentam esses órgãos da responsabilidade de aplicar recursos em arte e cultura. Importante também lembrar que as ações relativas à aquisição de obras, para funcionar, necessitam ser acompanhadas de investimentos em conservação e preservação. Este conjunto de procedimentos é que torna possível a produção de conhecimento e o usufruto dos bens culturais e artísticos. Referências AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1995. BRAGA, Ana Cristina Lopes. Arquitetura em Belém no século XVIII: as obras de Landi e o contexto urbano atual. In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO

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DISCURSOS EMOLDURADOS: APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA DO MUSEU DE ARTE DE SANTA CATARINA Lucésia Pereira1 Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO: O estudo histórico do antigo Museu de Arte Moderna de Florianópolis (MAMF), atual Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), apresenta muitas questões em aberto, merecendo um olhar mais atento da historiografia no sentido de avançar sobre uma série de noções cristalizadas sobre seu papel na cultura institucionalizada. O contato com a produção de memórias, discursos, sua política arquivística e suas relações com a cidade constituem o leque de interesses deste artigo.

ABSTRACT: The study of the history of the Museum of Modern Art in Florianópolis (MAMF), current Art Museum of Santa Catarina (MASC), presents many open questions, deserving a closer look in its historiography, in a sense to move forward on a number of crystallized notions about its role in an institutionalized culture. The contact with the production of memoirs, speeches, policy and archival imagery with the power of its collection are the range of interests of this research.

PALAVRAS-CHAVE: Museu. Cultura. Imagem. Discurso. Arte Moderna

KEY-WORDS: Museum. Culture. Image. Discours. Modern Art.

1 O título do artigo se refere a Tese de Dourado, defendida em 2013 no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, a partir de recursos concedidos pelo Cnpq.


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Parcela da bibliografia disponível sobre o antigo Museu de Arte Moderna Florianópolis (MAMF)2, apresenta uma série de discursos cristalizados da sua história e consequentemente do seu papel na cultura institucionalizada. A perpetuação de tais discursos se dá a partir de uma visão neutra do arquivo. Ela desconsidera que em todas as instâncias de um museu, inclusive do seu arquivo, estão presentes relações de poder. Do ponto de vista de sua materialidade, é preciso considerar a presença de uma questão ética e política na escolha do indício que ficou retido, do mesmo modo sobre o que será encoberto e esquecido, “pois o arquivo, assim como o processo de musealização, é uma construção voluntária de caráter seletivo e político, vinculado a um esquema de atribuição de valores: culturais, ideológicos, religiosos, econômicos, etc.” (CHAGAS, 2002, p. 60). A principal referência que embasa tais discursos foi produzida no próprio museu na década de 1980, quando este estava sob a direção de Harry Laus (1922-1992). Escritor e crítico de arte, Laus foi um dos diretores mais atuantes do MASC, tendo por duas vezes dirigido a instituição. Em meados dos anos oitenta, quando assumiu pela primeira vez este cargo, trazia entre outras experiências o desempenho jornalístico na crítica de arte do eixo Rio/São Paulo e de ter estado à frente do Museu de Arte de Joinville (1980/1982). Além das ideias para exposições (realizadas ou não), que merecem por si só um estudo específico pela criatividade e ineditismo, ele desenvolveu soluções museológicas interessantes no sentido de organizar e dinamizar as duas instituições desta natureza que estiveram sob seu comando. Ao contrário de alguns dos diretores que lhe antecederam no posto, Harry Laus não pertencia apenas aos meios políticos e artísticos da capital e talvez por isso tenha dedicado esforços para abrir o MASC para a produção de várias regiões. Direto em suas afirmações, ele criticou abertamente - através dos documentos e textos que publicou em jornais e revistas de alcance local e nacional - o mau uso do dinheiro público em aquisições questionáveis para o acervo, denunciou o desaparecimento de obras importantes e se mostrou descontente com as nomeações feitas pelo governo estadual na área da cultura. Sua equipe fez frente a diversas áreas da atividade museal, a começar pelo levantamento documental do que havia sido retido ao longo do tempo. Esta ação, em particular, era condizente com aspectos da sua conduta pessoal, pois durante sua vida Harry Laus foi um sujeito voltado tanto para a geração de registros quanto para a sua organização3. A considerar este fato, é compreensível a crítica do escritor às condições da documentação encontradas no museu que, segundo declarou na época, se constituía em um amontoado de papéis, aparentemente preservados de modo aleatório e assistemático. Convencido da ineficiência dos processos de arquivamento do MASC, Laus (1987) revelou que “[...] seu arquivo era incompleto e confuso, praticamente impossibilitando o acesso a informações precisas sobre suas origens e sobre os dilemas de habitação e direção”. No espírito de colocar a “casa em ordem”, a equipe que atuava junto com Harry Laus fez frente à questão arquivística do MASC, tanto no sentido de um levantamento e ordenação dos documentos, quanto a posterior escritura acerca do que foi encontrado.4 Este movimento antecedeu as comemorações dos 2 O MAMF foi oficializado por um decreto em 1949, quando eram decorridos seis meses de uma exposição de arte trazida pelo escritor e marchand carioca Marques Rebelo (1907/1973) para Florianópolis. Desde 1969 a instituição passou a ser conhecida como Museu de Arte de Santa Catarina (MASC). Com base nesta mudança, as referências ao museu serão feitas da seguinte maneira: até 1969 utilizaremos a sigla MAMF e, a partir daí MASC. 3 O arquivo deixado por Harry Laus está depositado no Núcleo de Pesquisa de Literatura e Memória (NULIME), do Curso de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. 4 Em parte, o mérito desta realização é atribuído a Terezinha Sueli Franz, funcionária da Fundação Catari-


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38 anos do museu e resultou na montagem de quatro exposições simultâneas para comemorar o acontecimento. Uma dessas exposições chamada Memória Gráfica apresentava em painéis, ordenados temporalmente, o resultado do trabalho de seleção e classificação da documentação separada e organizada na ocasião, colocando o percurso do MAMF/MASC numa perspectiva de historicidade, A ‘memória do Masc’ é um levantamento da memória do museu e compõe cultura, e uma exposição de painéis com fotografias, recortes de jornais, catálogos e cartazes que permitirá uma revisão gráfica de toda a história do museu no período de 1949 a 1987 (MASC ABRE..., 1987, p. 16).

A versão construída na oportunidade teve ecos duradouros e se tornou essencial nos discursos posteriores. Daí pra frente, diversas publicações reeditam esta proposta histórica, muitas vezes destacando os mesmos acontecimentos e personagens. Entre tais publicações estão as que são feitas pelo museu, inclusive seu principal catálogo impresso em 2002, chamado Biografia de um museu (BORTOLIN, 2002). Apesar do tempo decorrido, entre sua publicação e Memória Gráfica (por volta de 20 anos), muitos textos foram ali republicados tal qual haviam sido produzidos na época de Harry Laus. Desta maneira, a equipe que realizou as atividades em prol da história e memória do MASC nos anos oitenta, além de ter salvado os documentos então existentes de uma maior dispersão, instaurou também um regime de verdade que ainda preside parte do que é dito sobre o museu. Entre os problemas em tornar fundante esta ou qualquer outra proposta de uma história derradeira, é que ela não contabiliza fatores como os apagamentos sobre vários processos da instituição como, por exemplo, das políticas de aquisição e de tombamento de obras. Neste sentido, a preocupação aqui registrada não desconsidera a relevância do trabalho realizado na época, no enfrentamento da questão histórica, mas alerta para a necessidade de que outros decalques sejam propostos ao que já é discutido, de acordo com as demandas do presente. Faz-se necessário uma revisão destes discursos, conforme propõe Michel Foucault em Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2012) ao escrever que é vital para a ciência histórica se libertar das noções de continuidade e repetição. A partir do olhar crítico vemos que muitos eventos que impactaram o MAMF/MASC são tratados nestes discursos sob uma perspectiva de neutralidade. Entre eles consta a mudança de terminologia em 1969 e a transferência para o Centro Integrado de Cultura (CIC) em 1979. Além disso, há questões invisíveis como o fato do museu ter sido palco de jogos políticos de afirmação de identidades, contrariando o fundamento de que eles devem existir para o benefício e o adiantamento do povo (conforme era o pensamento dos anos cinquenta). A história da relação do Museu com a cidade carece também de abordagens atualizadas que problematizem o seu papel institucional ajustado as políticas culturais do governo do estado. É preciso reconhecer os investimentos simbólicos que os agentes políticos lançaram sobre a cultura, fazendo com que o espaço se convertesse numa arena onde colocaram em afirmação os seus interesses. Um museu como resposta Assinalou Oliveira (2008), que o aparecimento do Museu em Florianópolis foi entendido tanto no contexto dos anos de 1950 quanto nos discursos postenense de Cultura (FCC). A FCC foi criada em 1979, com vistas ao gerenciamento das instituições culturais de SC.

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riores, como um grande passo, uma linha divisória de um novo tempo para uma região que tinha sobre si mesma uma percepção de atraso, de ser provinciana em relação às outras capitais. De fato, se for para se recorrer aos números, na maior parte dos estudos - sejam demográficos, econômicos ou culturais - se observa que, quando comparados a outras capitais, inclusive a vizinha Porto Alegre, os de Florianópolis são modestos, a começar pelos seus 69.122 habitantes nos anos de 19505. É por esta época que os olhares técnicos apontam a baixa produtividade do seu porto, principal esteio da economia urbana, baseada no comércio de mercadorias6. Com a atividade portuária em extinção e sem uma base industrial que permitisse alavancar a economia, cujos indíces eram crescentemente desfavoráveis, frente aos mostrados por outras cidades catarinenses – algumas sendo redutos da colonização alemã e italiana –, a capital precisava responder à situação e garantir a sua prevalência. O turismo (indústria sem chaminés), voltado para a apreciação dos atrativos naturais junto à invenção de uma tradição cultural relacionada ao modo de vida dos imigrantes vindos dos Açores, foi uma das ações deflagradas em Florianópolis, a partir dos anos de 1950 no sentido de superar esta condição. Foi no início desta década que o museu conquistou sua primeira sede, sendo alojado num imóvel situado numa das principais ruas do centro da capital. O espaço que chegou a funcionar nos moldes de um centro cultural era denominado de Casa de Santa Catarina. Em seus metros quadrados estavam reunidos, num clima de objetivos comuns, o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC)7, instituição ligada ao século XIX, a recém-criada Comissão Catarinense do Folclore (CCF) e o jovem museu destinado a exibir a arte contemporânea. Há, porém, vestígios documentais que mostram que antes de ser constituída a Casa de Santa Catarina, o espaço havia sediado uma associação recreativa mantida pela comunidade alemã, conhecida como Clube Germânia. No contexto nebuloso gerado pela Segunda Guerra o imóvel foi desapropriado pelo governo do estado. Sobre ambos os espaços (Clube Germânia e depois Casa de Santa Catarina) a documentação residual é escassa. Sem uma pesquisa específica, há limites ao que pode ser dito sobre os objetivos de sua criação e o papel que estas instituições tiveram no contexto estético/político daqueles anos e seus conflitos. O fato é que no período estava colocada uma complicada questão identitária, envolvendo os diferentes grupos étnicos de Santa Catarina. Da parte do governo, era manifesto o repúdio que sustentava com relação ao modo de vida das comunidades imigrantes (principalmente de alemães e italianos) que, segundo o discurso oficial das autoridades, se caracterizava pela manutenção dos antigos costumes pátrios. No caso alemão, a intenção última desta continuidade nos costumes seria fundar um apêndice da Alemanha na região sul da América - a fábula da Alemanha Antarctica. A falta de base comprobatória para tal proposição não impediu que a situação fosse declaradamente encarada como uma ameaça ao processo de nacionalização do país. Lembremos que ele tinha como principal mandamento a necessidade da unificação cultural e linguística. Mas, conforme o cenário antes esboçado, vimos que o que estava em jogo, ultrapassava a pretensão de uma identidade cultural dos catarinenses des-identificada do conflito internacional, mas a própria preponderância política e cultural da capital de Santa Catarina em face da prosperidade econômica observada nas regiões de colonização, principalmente do norte do estado. Diante da aliança 5 Conforme dados do censo demográfico do Estado de Santa Catarina, 1950. Fonte: Peluso Junior (1975). 6 Para saber mais sobre este contexto, consultar Sant’anna (2005). 7 O IHGSC foi criado em 07/09/1896.


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feita entre Brasil e Estados Unidos e a constante ameaça a sua hegemonia, as elites políticas de Florianópolis investiram na realização do I Congresso de História Catarinense, acontecido em 1948, portanto, no mesmo ano da exposição organizada por Marques Rebelo8, evento considerado a gênese do MAMF. Este foi o momento de alavancar um projeto que estes grupos alimentavam há certo tempo, pois a invenção de discursos evocativos da herança luso-brasileira já vinha se constituindo desde o inicio do século através das publicações do IHGSC. O congresso foi um evento marcante para fixar um estereótipo para o ser catarinense, que pelo investimento feito sobre uma suposta origem, passou, a partir daí, a ser identificado menos com a do imigrante empreendedor e mais com açoriano habitante do litoral e seu modo de vida. Independente de qualquer espectro obsedante do passado, a constituição da Casa de Santa Catarina mostrou a intenção das elites locais em formar no local um centro cultural, gerador de ideias. O acontecido revelava ainda as manipulações políticas presentes nesses processos de construção de identidades e invenção de tradições. Em face da consolidação do discurso vencedor e temporário (a considerar os câmbios futuros), é inquestionável que a transformação do clube Germânia nesse espaço simbolizava uma demonstração de força dos grupos dirigentes da capital, servindo para amainar o caráter temerário de sua posição no estado. A Casa de Santa Catarina contribuiria para dar legitimidade ao saber-poder que emanava da parceria entre o estado e os sujeitos que se ocupavam em pensar as diretrizes culturais para suas instituições. Vimos dessa forma, que o MAMF/MASC foi parte constituinte dos jogos identitários, justamente no contexto afirmativo dos emblemas regionais da capital. Mais tarde, a crescente mercantilização da cultura foi impondo outras matrizes a estes discursos, porém, manteve-se o silêncio que encobriu como um verniz a história de barbárie relacionada a tais processos. Os ressentimentos gerados, por sua vez, foram mantidos numa antecâmara da história, mas eles regressariam incessantemente e demandariam dos governos seguintes constantes rearranjos entre política e memória. Extremidades Por um decreto estadual publicado em junho de 1970, o Museu de Arte Moderna de Florianópolis passou a ser denominado Museu de Arte de Santa Catarina. Na maior parte dos discursos sobre este câmbio, o acontecimento aparece como algo irrelevante, um evento casual e sem maiores implicações políticas ou ideológicas. Neste espírito, o catálogo Biografia de um Museu apenas menciona em suas páginas a nova terminologia assumida pelo espaço. Mas, isto é apenas um modo de ver a questão. Em 2011, Lima apresentou a situação sob um novo enfoque e avançou sobre a visão superficial defendendo que a mudança foi parte da negociação e trânsito entre as noções de arte moderna e contemporânea que correspondiam também aos fluxos mais gerais do pensamento cultural do período. Em sua ótica, para que tal modificação acontecesse, foram fundamentais as deliberações acontecidas no I Colóquio de Museologia9 onde “[...] a maioria considerou que devem ser adotados nomes genéricos e não restritivos. Exemplo: Museu de Arte de Santa Catarina e não Museu de Arte Moderna de Florianópolis. Seria assim evitada a delimitação no campo de ações da entidade” (LAUS, 1966). 8 A respeito do congresso, ver Sayão (2004). 9 I Colóquio dos Diretores de Museus de Arte, realizado no Museu de Arte Contemporânea da USP em São Paulo, entre 27 e 28 setembro de 1966.

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É mesmo provável que a exclusão da arte moderna da terminologia do museu significasse um passo no sentido de posicionar a instituição junto a um pensamento museológico de diretrizes mais atuais e “universais”. Mas, é preciso incorporar a esta percepção que a alteração atendia também a questões internas do sistema artístico e político do estado, pois, além de um novo pensamento museológico, surgiram novas linguagens, espacialidades e diferentes relações entre política, cultura e mercado. Um dos elementos a ser incorporado na abordagem da mudança é relativo ao mapa da produção cultural, já que as regiões apartadas da capital vinham conquistando cada vez mais autonomia. Em distintas medidas, passou a existir em outras cidades um sistema de artes envolvendo o jornalismo crítico, as exposições, a atuação dos artistas e o próprio mercado, havendo uma importante movimentação, especialmente entre cidades como Lages, Joinville e Blumenau e os outros dois estados do sul do Brasil. Estas iniciativas foram muito diversificadas e organizadas individualmente pelos artistas ou em grupos de afinidade. A questão é que longe do eixo costumeiro (do qual o MASC fazia parte) os artistas construíram meios próprios de ganhar visibilidade e criar espaços que acolhessem obras, debates e ideias, como a galeria Açu-Açu, fundada em Blumenau, em 1970, e considerada uma das mais importantes galerias particulares do estado. Com o objetivo de fomentar um mercado turístico, o discurso de promoção do estado, buscou incorporar os atrativos culturais das principais regiões além do já consagrado litoral. Na época, a ideia de uma única matriz cultural – a açoriana (fortalecida no congresso de açorianeidade de 1948) - foi cedendo lugar a outra que procurava mostrar Santa Catarina como um mosaico de culturas que povoavam em harmonia os seus territórios, Santa Catarina não é somente a faixa litorânea, nem principalmente a capital. O Estado é composto, bem sabemos, das mais variadas regiões geográficas nas quais estabeleceram-se considerável quantidade de imigrantes gaúchos, alemães, italianos, portugueses, russos, holandeses e poloneses além de outros formando uma colcha de retalhos culturais estendida sobre uma superfície completamente acidentada e variada. São alemães na planície, no vale e no planalto; italianos em regiões montanhosas e no litoral, por exemplo, colorindo espetacularmente o solo cultural catarinense. Sendo assim, constituindo cada região um núcleo cultural riquíssimo em tradições e em potencialidade criativa, cada uma delas tem suas manifestações próprias, trazidas ou adquiridas no próprio habitat, bem diversa das demais, suas vizinhas catarinenses, mas ao mesmo tempo, impossibilitando a própria integração cultural de Santa Catarina (MAIS UM..., 1971).

Com os interesses voltados em mostrar as essências regionais, a mudança de nome era estrategicamente importante para o governo do estado, pois promovia um sentido de que o museu pertencia a todos os catarinenses. Desta maneira, não obstante a aparência de neutralidade, além da mudança no pensamento museal e da dinamização cultural das regiões catarinenses, a nova terminologia aconteceu também por influência direta das políticas identitárias e sua crescente mercantilização. Paredes do tempo É preciso salientar que se hoje é possível conceber a ideia de um museu que existe apenas no nosso imaginário, graças às inúmeras possiblidades abertas


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pelos mecanismos de reprodutibilidade de imagens, a noção ainda encontraria pouco sentido nos anos cinquenta quando as instituições museais eram pensadas a partir de um lugar-espaço reservado para a exposição, culto e guarda do acervo. A falta de um domicílio adequado para efetivar estas ações, foi um dos permanentes percalços enfrentados pelo museu nas três primeiras décadas de funcionamento. Inicialmente, o problema foi contornado pela promessa (irrealizada) da construção de um complexo moderno para abrigá-lo. Porém, a despeito das boas intenções o MAMF/MASC esteve sujeito a uma existência nômade, até que foi transferido em 1982 para o conjunto arquitetônico do Centro Integrado de Cultura (CIC) onde está até hoje. Antes dessa “derradeira” mudança, o MASC esteve instalado (desde 1979) no casarão onde funcionou a alfândega que atendia a extinta cidade portuária. Construído em 1875, o amplo edifício em estilo neoclássico fica na parte mais central de Florianópolis, precisamente no limite entre a cidade e o mar, conforme o traçado original da Vila de Nossa Senhora do Desterro. Fechado quando o porto foi desativado em 1964, o prédio foi tombado como monumento nacional e restaurado pelo governo federal que o cedeu sem ônus ao estado em 197710. A rua onde está a velha Alfândega, a Conselheiro Mafra, é uma das mais movimentadas vias comerciais da cidade e está próxima dos terminais de ônibus, da principal praça, do velho mercado. A antiga Rua do Príncipe sofreu intervenções importantes, tendo parte do seu casario tombado pelo município. A remodelação, que aconteceu por volta da época em que o museu foi lá alojado, deu prosseguimento à restrição da atividade de prostituição ali existente. Levando em conta o investimento feito sobre a região como lugar de memória e o fato de estar no caminho de um grande fluxo de pessoas, é mesmo possível que, nos três anos passados ali, o museu estivesse mais integrado à vida urbana, conforme comentaram funcionários do MASC. A comparação foi feita em relação ao conjunto arquitetônico do Centro Integrado de Cultura (CIC). Nas modernas características deste complexo, finalmente o museu alcançava a modernidade arquitetônica já pretendida desde os anos cinquenta. Como um marco positivo, a transferência dotou a instituição de um ambiente amplo e novo, dispondo o museu de uma área de 1.980 m². A exaltação com as novas instalações transparece numa matéria escrita pelo ex-diretor Harry Laus e publicada na revista Tempos Modernos, em 1985. Com regozijo, ele, que na época estava na direção do MAMF, ponderava sobre a nova condição alcançada no moderno complexo do CIC. O aspecto das novas instalações, descrito pelo crítico de arte, parecia estar mais condizente com as mudanças ocorridas no interior da própria instituição que, no fluxo mais geral dos processos artísticos, se abria para a arte contemporânea e poderia assim atender a sua demanda expositiva. Contudo, o transplante do museu para o CIC não contou apenas com aspectos positivos. Dez anos depois da mudança, Harry Laus lamentava que o acervo do museu encontrava-se numa condição vexatória para a cultura catarinense devido às condições inadequadas de guarda e às limitações enfrentadas na exposição do acervo, condenado à invisibilidade. E onde está tudo isto que o povo não vê? Escondido numa sala do CIC, sofrendo em silêncio o desprezo de governos que se sucedem, sem a sensibilidade e a compreensão daquele período. Esta célula dos tempos dourados, mantida intacta por mais de quarenta anos, apesar de todos 10 As características estéticas da construção e seu papel na história da cidade foram elementos determinantes para encaixá-lo dentro da política de preservação do SPHAN que, desde os anos cinquenta, estava focada na herança colonial e barroca.

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os contratempos, vem sendo acrescida de novos valores da arte brasileira e hoje são mais de novecentos prisioneiros da ingraditão. Por ironia, essa prisão fica no lado oposto da rua que abriga a penitenciária, na Agronômica, sem que esses degredados tenham sequer o direito humanitário de um passeio ao sol [...] (LAUS, 1996, p. 172).

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Sob a ótica da democratização do espaço, é preciso pelo menos considerar o fator antes mencionado sobre a pouca integração do museu com a vida urbana. O CIC foi erguido numa área situada entre a penitenciária da Pedra Grande e a Avenida Beira Mar Norte que, já nos anos oitenta, atendia a um grande fluxo de veículos.11. Se levarmos em conta o acesso como um dos fatores de democratização dos lugares públicos, no CIC, a visitação restringiu o tipo de expectador do MASC. Talvez os registros dos índices de visitação (os quais não pesquisamos) confirmassem se de fato o afastamento do burburinho citadino foi problemático no ponto de vista da visitação do museu, conforme sugerem os depoimentos antes mencionados. Se por um lado a urbanização daquela região traduzia a expansão da cidade com suas novas geografias, ela instituía novas formas de passagem, distintas do sentido de flânerie12 celebrado por Baudelaire. A cidade que ia se conformando trazia práticas sociais distintas e até paradoxais, porque eram contrárias às experiências vividas nas estruturas socioespaciais anteriores com seus sedimentos. Permanências Em 2011 o MASC foi reaberto depois de estar fechado por 2 anos para uma prolongada e polêmica reforma.13 Para a ocasião foi realizada uma dupla exposição: Tempo, espaço e arte e Linhas artísticas. A primeira apresentava a história do museu desde a sua criação até a definitiva instalação no CIC. Do ponto de vista de seu conteúdo, tanto os painéis afixados no salão de exposição quanto o texto que compõe o (muito bem ilustrado) catálogo do evento, praticamente, não trazem nada de novo, uma vez que foram parcialmente reeditadas as já conhecidas histórias sobre a fundação, sobre a relação deste acontecimento com o grupo modernista, sobre a suposta incompreensão local da arte moderna, entre outras. Em geral, são os mesmos discursos dos nos anos oitenta, cujos limites já mencionamos. Como é usual, as autoridades públicas destacaram nesta reabertura a importância do MASC, reafirmando algumas expectativas com relação ao espaço. A este respeito, se pronunciou um representante oficial, com a seguinte declaração: Com esse evento de memória simbolizada, o Governo do estado, por meio da Fundação Catarinense de Cultura, entrega o MASC dinamizado e equipado, com inovações que o colocam definitivamente no circuito nacional, no padrão de outros equipamentos brasileiros do gênero, e que, por certo, levara á ampliação das possiblidades de construção de identidades e a percepção crítica acerca das realidades artisticas e culturais (MUSEU DE ARTE DE SANTA CATARINA, 2011). 11 Como acontece ainda hoje, o local não tem uma linha regular de ônibus que, de fato, deixe os frequentadores em suas portas. 12 A flânerie, prática social moderna, diz respeito ao descompromissado e deliberado vagar pela cidade. 13 A promessa inicial era reabrir o espaço em 240 dias, todavia o espaço continuou fechado muito mais tempo do que o noticiado (fechado em 05/2009, reabriu em 06/2011).


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Sobre à possibilidade de construção de identidades destacada na mensagem, sabemos que no passado isto aconteceu muito mais pelas interferências do governo do que pelas apropriações simbólicas que a população projetou no museu. Na atualidade, isto se torna um objetivo polêmico e duvidoso, pois a cidade mudou consideravelmente e, apesar de toda nostalgia sentida pelos antigos moradores, ela mantém apenas um pálido reflexo da urbe de 1950. Hoje, a área metropolitana de Florianópolis possui por volta de um milhão de pessoas e tem enfrentado os problemas estruturais desta expansão, inclusive a carência de espaços culturais. Além disso, afirma Meneses (1993), as noções de identidades culturais são problemáticas, entre outras razões, por pressuporem uma lógica de pertencimento e, como tal, estabecerem diferenças que fundam defesas e privilégios. Transformada em palavra de ordem no museu, cabe-lhe o desafio de produzir discursos, ou seja, lugares de identificação que, alheios às históricas exclusões, contemplem a diversidade, atendendo a demanda plena da sociedade e não apenas de determinados grupos. Em síntese, a questão é: Como fazer com que os significados, a serem construídos em tal processo, expressem um futuro de democracia cultural ao mesmo tempo em que não maquiem a desigualdade do presente? Referência BORTOLIN, Nancy (Org.). Catálogo biografia de um museu. Florianópolis: FCC, 2002. CHAGAS, Mário. Há uma gota de sangue em cada museu: a ótica museológica de Mario de Andrade. Chapecó: Argos, 2006. FOUCAULT, Michel.Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. LAUS, Harry. Crítica aos órgãos da cultura. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, fev. 1966. Arquivo MASC. LAUS, Harry. Discurso de abertura do catálogo. 1987. Texto datilografado. LAUS, Ruth. Harry Laus: artes plásticas. Rio de Janeiro: Cervantes, 1996. LIMA, Sueli. Arquivo, museu, contemporâneo: a fabricação do conceito de arte contemporânea no Museu de Arte de Santa Catarina - MASC/SC. 2011. Tese (Doutorado)– Universidade Federal de Goiás, Faculdade de História, 2011. MAIS UM veículo de integração cultual no Estado. Revista Catarinense, Florianópolis, n. 20, 1971. Arquivo Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina. MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa: Edições 70, 2000. MASC ABRE 3 exposições e revive sua história. Jornal A Notícia, Florianópolis, p. 16, 12 mar. 1987. Arquivo MASC. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A problemática da identidade cultural nos museus: de objetivo (de ação) a objeto do conhecimento. Anais do Museu Paulista Nova Série, n. 1, 1993. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v1n1/ a14v1n1.pdf>. Acesso em: 10 maio 2012. MUSEU DE ARTE DE SANTA CATARINA. Catálogo da exposição: tempo, espaço e arte e Linhas Artísticas. [S.l.: s.n.], 2011. OLIVEIRA, Emerson Dionísio. Um acervo de arte moderna e contemporânea e a identidade institucional. Revista História em Reflexão, v. 2, n. 4, jul./dez. 2008. Disponível em: <www.historiaemreflexao.ufgd.edu.br>. Acesso em: 10 fev. 2012. PELUSO JUNIOR, Victor Antonio. A evolução urbana de Santa Catarina no período de 1940 a 1970. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, v. 3, n. 1, 1975.

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SANT’ANNA, Mara Rúbia. Poder e aparência: novas sociabilidades urbanas em Florianópolis de 1950 a 1970. 2005.Tese (Doutorado em História)– Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. SAYÃO, Thiago Juliano. Nas veredas do folclore: leituras sobre política cultural e identidade em Santa Catarina (1948-1975). 2004. Dissertação (Mestrado em História)- Centro de Filosofia e Ciências Humanas, UFSC, Florianópolis, 2004. ZILIO, Carlos. A questão política no modernismo. In: FABRIS, Annateresa (Org.). Modernidade e modernismo no Brasil. Porto Alegre: Zouck, 2010. Artigo recebido em junho de 2013. Aprovado em agosto de 2013


O MEMORIAL DO FRIGORÍFICO ANGLO DE PELOTAS: UM LUGAR DE MEMÓRIA NO FRIO ESPAÇO DO ESQUECIMENTO Francisca Ferreira Michelon1 Universidade Federal de Pelotas

RESUMO: Compara-se a trajetória do Frigorífico Anglo de Pelotas com a do Frigorífico de Fray Bentos, Uruguai, observando no segundo caso o surgimento do Museo de la Revolución Industrial. Aplica-se o conceito de lugar de memória para entender parte do processo de patrimonialização do contexto do frigorífico uruguaio. Observa-se como o mesmo conceito pode justificar um memorial dentro da Universidade Federal de Pelotas, que adquiriu parte da planta industrial do Frigorífico Anglo e a adaptou para uso acadêmico. Advoga-se que a vontade de memória sobrevive quando o lugar de memória se institui coletivamente.

ABSTRACT: Is compared the trajectory of Anglo Pelotas Refrigerator with the one of the Fridge of Fray Bentos, in Uruguay, observing in the latter case the appearance of the Museo de la Revolución Industrial. Is applied the concept of memory´s place to understand a section of the patrimony of the Uruguayan context of the refrigerator. Is observed how the same concept can justify a memorial in the Federal University of Pelotas, which acquired part of the Refrigerator Anglo´s industrial plant and adapted for academic use. The argument is that the memory will survive when the memory´s place is established collectively.

PALAVRAS-CHAVE: Museu. Memorial. Memória. Frigorífico Anglo.

KEY-WORDS: Museum. Memorial. Memory. Anglo Fridg.

1 Doutora em História. Coordenadora adjunta e professora do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas. Coordenadora do projeto de implantação do Memorial do Anglo da UFPel.


O memorial do frigorífico anglo de pelotas: Um lugar de memória no frio espaço do esquecimento

Introdução A situação que sugeriu a análise que se desenvolve neste texto ocorreu sob a observação do que vem a ser o lugar onde foi, em um passado recente, o Frigorífico Anglo de Pelotas. Desde o final do ano de 2005, parte da extinta planta industrial desta, que foi uma grande indústria da cidade, é ocupada pela Universidade Federal de Pelotas. No conjunto onde se localizavam os prédios do abate, câmaras frigoríficas e processamento do animal abatido há

Fonte: A autora Figura 1 – Fotografia de dentro do prédio das câmaras frigoríficas.

Fonte: A autora

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Figura 2 – Fotografia em posição inversa de enquadramento em relação à foto da figura 1.


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faculdades e setores da administração central. Interiormente, a reforma realizada para esses fins alterou o prédio significativamente, mas a visão exterior do conjunto permanece com o mesmo volume, contorno e proporções das aberturas. Vendo-se fotografias tomadas em 1997 e no presente (Figuras 1 e 2), apesar da diferença no ângulo de registro da imagem, nota-se como o conjunto ainda é reconhecível. A Universidade cuidou para que se mantivesse exposta a estrutura de alguma parede das câmaras frigoríficas, de modo a se enxergar os materiais empregados na construção de prédios frigoríficos na década de 1940. Esse local foi destinado a ser um memorial do prédio. Há, no mesmo andar, um conjunto de painéis com fotos e textos sobre os prédios históricos que pertencem ao patrimônio dessa Universidade, sendo que um desses se refere ao prédio do Frigorífico Anglo. Lamentavelmente, tanto as informações disponíveis sobre a parte da estrutura preservada e deixada aparente quanto o próprio painel. Não são insuficientes para esclarecer o público sobre o percurso desta fábrica, os impactos que exerceu sobre a cidade e os sentidos que a existência dos prédios de indústrias extintas ainda tem, primeiramente para a comunidade que habita as imediações do local e para a região. E a deficiência não está apenas na quantidade de informações passível de ser veiculada em tão exíguos suportes, mas ao conteúdo das mesmas, que afirmam a extinção do Frigorífico Anglo de Pelotas, como empresa e como lugar, silenciando equivocadamente um processo vivo, de mudanças, que se reatualiza e se recria pela memória de alguns milhares de pessoas que trabalharam no frigorífico ou tiveram parentes e amigos que também o fizeram. Uma parte dessas pessoas reside ao lado da Universidade, em um conjunto que se denomina Vila da Balsa. Com os moradores dessa Vila, a Universidade desenvolve alguns projetos. Outra parte de ex-funcionários da empresa ou seus descendentes residem em setores diversos da cidade. Igualmente, é uma população numerosa, embora a totalidade de cada uma não esteja quantificada. No âmbito dessa circunstância, o que se pretende é analisar a possibilidade de considerar o remanescente da planta do Frigorífico Anglo de Pelotas como patrimônio industrial. Deseja-se fundamentar e defender que o seu uso encontre soluções de assim mantê-la. A análise sustenta-se na observação comparativa entre a proposta do Memorial do Anglo, na UFPel e o surgimento do Museo de la Revolución Industrial, em Fray Bentos. Para tanto, inicia-se apresentando os dados já levantados pela pesquisa em andamento2, da qual é oriundo este estudo, para então confrontar o desenlace do Frigorífico Anglo de Pelotas com o do Frigorífico Anglo do Uruguai, que encerrou suas atividades quase duas décadas antes do que o brasileiro. Observamos, no percurso de ambos, as conexões que mantiveram com as cidades nas quais se localizaram. Por fim, as relações estabelecidas entre o processo de patrimonialização do frigorífico uruguaio e a proposição do Anglo pelotense como patrimônio industrial, sustentaram-se no entendimento de que em ambos os casos há uma condição de lugar de memória, 2 Patrimônio Industrial e Lugar de Memórias: o Frigorífico Anglo de Pelotas/Brasil e do Uruguai/Fray Bentos. Projeto de pesquisa lotado no Departamento de Museologia, Conservação e Restauro do Instituto de Ciências Humanas da UFPel, sob coordenação da autora do texto.

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tratado segundo o conceito proposto por Nora (1993) e tendo como objeto de investigação o inventário de ocorrências que o lugar propõe na trajetória que marcou o percurso de cada fábrica. Ao fim e ao cabo, deseja-se propor um leque de possibilidades para a questão que tenta equacionar a potencialidade memorial que se percebe nesse lugar - o remanescente da planta industrial do Frigorífico Anglo de Pelotas - e a compreensão de que é um patrimônio industrial da cidade que pode sugerir um espaço museal, tal como o que se implantou dentro do complexo de Fray Bentos. Para desenvolver esse tópico, primeiro situa-se o leitor nos dados históricos que contextualizam os dois frigoríficos para, após, analisar-se como foi resolvida a questão museal em Fray Bentos. Busca-se, não obstante o oceano de diferenças que existem entre os dois casos, partir do exemplo uruguaio para observar as possibilidades do caso pelotense. O Frigorífico Anglo de Pelotas É possível que um pouco de surpresa e concretude ajude a aguçar a atenção do pesquisador para os dados, oportunizando novos contornos para as conclusões às quais se pode chegar. O que aconteceu quando se soube que a reforma do prédio do Frigorífico Anglo havia segredado espaços, foi uma surpresa. Por uma fenda vertical na parede com não mais de 25 cm de largura, ingressou-se em um lugar totalmente escuro. A luz do celular iluminou a sala e as passagens que se seguiram. Esse lugar era o antigo conjunto de câmaras frigoríficas. Seguindo-se e passando-se de uma a outra, chegou-se a uma grande área de luz, que ingressava pelas janelas do andar e pela enorme abertura em uma das paredes, pela qual se via o espelho de águas do canal São Gonçalo. Pedaços das paredes estavam no chão e neles inscrevia-se a técnica construtiva de isolamento térmico, empregada nessas construções em meados do Século XX. Os trilhos de ferro no teto e os encanamentos de congelamento por amoníaco estavam visíveis. O achado foi uma surpresa e não o resultado de uma procura. Mesmo assim, sentiu-se a felicidade de um arqueólogo que se depara com um fóssil revelador. Naquele momento, constatou-se que o Anglo continuava resistindo ao esquecimento que os novos usos impunham ao conjunto. Ele existia quase como um ente biológico que refuta a morte. Foi assim que se sentiu, sabendo-se bem que concreto, ferros, tijolos, cortiça e tudo o mais que estava ali, não vive, portanto, não sente, não lembra, não lamenta. Isso, só o pensamento humano faz. A história desse Frigorífico tem mais de 90 anos, pois inicia com um empreendimento ousado e uma aposta alta que redundou em equivalente fracasso. O empreendimento foi a construção do Frigorífico Sulriograndense iniciada em 1918 e concluída no ano seguinte, quando se anunciava intensa crise no Banco Pelotense, maior acionista da companhia mantenedora. À sombra da falência, os investidores viram na proposta de compra apresentada pelo poderoso capital inglês do Grupo Vestey Brothers a solvência para o prejuízo que se anunciava. Assim, em 1921, a promessa de uma indústria frigorífica nacional do Rio Grande do Sul exauriu-se, dando lugar à instalação do frigorífico Anglo na cidade. Efetivamente, esse empreendimento só iniciaria em 1943, quando foram inauguradas as novas instalações do Frigorífico. A distância entre as datas de construção deste e da planta industrial de Fray Bentos justifica muitas diferenças. Comparando ambos, a unidade de Pelotas foi bem mais modesta do que a uru-


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guaia. Mesmo assim, a previsão do número de abates e de processamento de animais era alta e se supõe que possa, desde o começo, ter empregado, diretamente, mil funcionários ao ano. Não há, ainda, documentos que comprovem tais dados. Era uma produção de safra e, portanto, havia sazonalidade na fabricação dos produtos. Regularmente, havia períodos de alta produção e eventualmente, por razões de mercado, esses períodos alargavam-se e intensificavam-se. Também a ocupação dos prédios era muito funcional. Sendo uma indústria voltada para o mercado exterior, era cadenciada pela demanda das exportações e fiscalizada pela vigilância federal, ou seja, sujeita a regras exigentes e cambiantes. O atendimento a essas regras impunha mudanças rápidas, algumas oriundas do ingresso de novos equipamentos e métodos de produção. Assim, quando se pensa em recompor o uso do espaço, refere-se a uma eleição que deverá focalizar em um determinado período em detrimento de outros. Um exemplo simples pode ser dado pelo uso do uniforme. Até meados dos anos de 1970, os funcionários ingressavam e partiam da fábrica vestindo o uniforme. Aqueles que trabalhavam na sala da matança e nas áreas de processamento da carne costumavam ter o uniforme muito manchado. Alguns relatos referem o trânsito dos funcionários nas ruas, após o expediente, com as roupas brancas estampadas de manchas escuras. Quando as normas sanitárias proibiram o uso do uniforme fora da fábrica, o Frigorífico instalou, em um prédio já existente, o vestiário e em outro a lavanderia. Os funcionários tiveram que se adaptar a uma nova dinâmica de ingresso e saída. O ritmo de trabalho era intenso, cadenciado e muito supervisionado. No entanto, cada setor tinha as suas particularidades e os setores periféricos poderiam mudar ou deixar de existir conforme as necessidades da grande indústria. Essa pluralidade de aspectos torna complexa qualquer narrativa. Há numerosas formas de abordar os fatores técnicos, econômicos e sociais que implicam, ou podem implicar no que se ousa chamar a memória desse lugar. E, mesmo, diferentes disciplinas poderão narrar a existência de tal ambiente de formas diferentes. Ainda assim, alguns aspectos pela generalidade ou profundidade com que se apresentavam, são mais indicadores ou sugestivos do panorama do que era, ao longo de sua existência, a vida dentro dessa fábrica. O fato é que, na sua história que não foi tão curta, mas durou bem menos do que a unidade de Barretos e nem tão impactante na vida social de uma cidade como foi a unidade de Fray Bentos, houve muitas ocorrências. Elas se referem a eventos econômicos. Estão atreladas à trajetória da industrialização da carne e a refletem indiscutivelmente. São testemunhos do desenvolvimento da tecnologia frigorífica, indicam o percurso econômico dos países ao sul das Américas, enfim, participaram da história social desse país. Sobretudo, são ocorrências de muitas vidas, de muitas gerações. Nos depoimentos recolhidos, evidencia-se que os operários permaneciam quantidade considerável de horas na fábrica quando havia a possibilidade de ganho extra. Havia intenso convívio social. Muitos conheceram suas futuras esposas e seus futuros maridos e no local de trabalho, ou durante os curtos intervalos ou, ainda, nas ocasiões sociais de reunião dos operários. Era comum os filhos dos operários trabalharem no frigorífico. Essas situações, comuns nas fábricas, sugerem que as famílias acabavam por criar laços com esse espaço. Não foi raro encontrar ex-trabalhadores que tiveram toda sua vida produtiva anelada ao frigorífico. E mesmo sabedores das condições deletérias inerentes a algumas atividades, não culpavam o seu trabalho pela perda da saúde, que ocorria invariavelmente. E, evidente, o contrário também sucedia: havia os ressentimentos, merecidos ou não.

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No final dos anos de 1980, a produção já era pouca. A função de matadouro terminou nessa década e pouco antes de fechar, vários produtos já não eram mais fabricados. Como em tantos outros casos, o grupo encerrou a fábrica e a vendeu. A venda ocorreu no início da década de 1990. Os funcionários tentaram reativar parte das funções da fábrica, em vão. O silêncio caiu sobre um lugar que durante cinquenta anos não silenciou, por pouco tempo que fosse. Sem máquinas, sem animais, sem mortes, sem produção, os barulhos que se faziam eram eventuais, de ocupações menores, de visitas anônimas, de pessoas autorizadas ou não, em afazeres passageiros. No entanto, durante essa década e meia em que nada parecia acontecer, o nome Anglo continuava altivo no frontão do prédio onde antes se produziam as conservas. Lá ficou, até que entre os anos de 2005 e 2006 a Universidade Federal de Pelotas passou a ser a proprietária do local. O Frigorífico Anglo de Fray Bentos No formulário de apresentação da lista indicativa do Uruguai da Paisagem Cultural-Industrial Fray Bentos (COMISIÓN DE GESTIÓN DEL ANGLO, 2010, p. 2) o texto informa que a denominação se refere a um conjunto de elementos nos quais interagem fatores naturais com formas e expressões culturais, advindas da ocupação do território por atividades fabris, que impactaram na constituição da organização social dos grupos estabelecidos neste lugar. A pecuária e, em menor escala, a agricultura, estão na base da ocupação dessa área e antecedem a instalação dos primeiros saladeiros, em meados de 1850. No entanto, a fase efetivamente industrial no território, inicia em 1865, com a instalação da Liebig’s Extract of Meat Company Limited (LEMCO). Tal fato sublinha que a pecuária foi a atividade determinante na organização social e econômica do Uruguai, modelando as suas paisagens rurais e os seus contornos sociais (SENA, 2012, p. 49). A LEMCO triunfou soberana no Uruguai até metade da década de 1920, e foi responsável por fazer o nome de Fray Bentos tornar-se conhecido na Europa, o continente onde o extrato de carne era consumido em vários países. Em agosto de 1924, a empresa foi arrendada pelo Grupo Vestey Brothers e mudou seu nome para Frigorífico Anglo del Uruguay (EL OBSERVADOR, 2011, p. 18). Tem início a era frigorífica e, como consequência, a gama de produtos oferecidos aumentou. A máxima “do boi só se perde o mugido”, passou a circular como um lema da missão dos frigoríficos de capital estrangeiro, nos quais o sistema produtivo taylorista envolvia técnica e tecnologia no aproveitamento quase máximo da matéria prima (figura 3). O grupo Vestey comprou o frigorífico em Pelotas antes de comprar a LEMCO no Uruguai, no entanto, a unidade uruguaia foi ocupada em seguida e a planta industrial ampliada com a construção de novos prédios adequados ao processamento de 3600 animais por dia, entre bois e ovelhas (BERNHARD, 1970, p. 20). No mesmo ano da compra e do início das obras, a empresa passou a agenciar a vinda de imigrantes para atuar como funcionários da fábrica. Em seu estudo nos arquivos do Museo de la Revolucíon Industrial, o historiador Douredjian quantificou que entre o ano da compra da fábrica até 1934, ingressaram trabalhadores oriundos de 20 países diferentes, compondo em pouco mais de duas décadas um mosaico de etnias, dentre as quais predominavam 44 nacionalidades (DOUREDJIAN, 2009, p. 55-56). Evidentemente, a base da formação da classe trabalhadora nesta região uruguaia foi de imigrantes, e o grande responsável pelo fenômeno foi o frigorífico Anglo (TAKS, 2009, p. 211).


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Fonte: Archivo de la Imagem del Sodre /Uruguai

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Figura 3 – Fotografia de alguns dos produtos exportados pelo Frigorífico Anglo de Fray Bentos: além dos enlatados, exportavam-se ossos, chifres, cascos e torresmo.

Portanto, enquanto a unidade pelotense permanecia inativa, a uruguaia povoava parte da região de Rio Negro e passava, como integrante do trust dos “big four”, a monopolizar a indústria e o comércio da carne no Uruguai (BERNHARD, 1970, p. 20-24), com igual ingerência na agricultura. A empresa produzia em torno de 200 tipos de produtos de origem animal e vegetal. Não é difícil supor o desastre econômico e social que o fechamento da fábrica provocou em dezembro de 1967. Nesse ano, o grupo Vestey Brothers anunciou que fechava o Frigorífico Anglo e colocou a planta de Fray Bentos à venda. Praticamente,


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toda a população da cidade trabalhava no frigorífico e grande parte da região de Rio Negro vivia do fornecimento de matérias e serviços para a empresa. O governo uruguaio não encontrou outra forma de evitar um desastre social, senão a de comprar a obsoleta planta do grupo inglês. O perverso golpe final sobreveio em 1969, quando o Ministério da Agricultura e Alimentação britânico proibiu a importação de carnes do Uruguai alegando que os rebanhos do país estavam infectados com a febre aftosa. Nesse ano, cessam em definitivo as atividades do Anglo como frigorífico e, dois anos após, como matadouro, determinando que o ano de 1971 tenha sido aquele no qual o imenso complexo deixou de operar (DOUREDJIAN, 2009, p. 17). Como em Pelotas e em tantos outros casos, onde grandes fábricas fecharam suas portas partindo para investimentos ou lugares nos quais o lucro seria mais vantajoso, a população de trabalhadores tentou reativar algumas das funções do frigorífico, caindo, invariavelmente, no fracasso. Segundo a historiadora Campadónico ([2000?], p. 101), a última tentativa em usar industrialmente parte do complexo ocorreu em 1979, quando uma empresa árabe arrendou a planta industrial, sem, no entanto, conseguir fazê-la operar. Em 15 de outubro deste ano, as portas daquele que foi o maior complexo industrial da região foram definitivamente fechadas. De lugar de trabalho a lugar de memória Guardando-se as devidas proporções, a história de ambos os frigoríficos, em Pelotas e em Fray Bentos, seguiram a mesma trilha, em parte porque se tratava de investimento do mesmo grupo empresarial e em parte porque a trajetória da indústria frigorífica foi muito semelhante em todos os países da América do Sul. O que vem após o fechamento das fábricas, é que é peculiar a cada um. Da forma como o grupo Vestey Brother implantou o frigorífico na província de Rio Negro, a vida da cidade de Fray Bentos e do entorno se dava de acordo com existência desta fábrica. As palavras Anglo e Fray Bentos pareciam designar a mesma coisa no Uruguai, como ainda hoje parecem. No entanto, tudo mudou, embora a paisagem seja a mesma. Passados dez anos do seu fechamento irreversível, o complexo fabril e o bairro operário foram decretados Monumento Histórico Nacional. Em 2005, inaugurou-se no coração do complexo, no prédio construído no século XIX pela LECOM, o Museo de la Revolución Industrial e em 2008, ampliou-se a área protegida na resolução de 1987, nominando-a, então, Sistema Patrimonial Industrial Anglo. Criou-se a Comisión de Gestión Anglo, que em 2010 apresentou o projeto Paisaje Cultural Industrial Fray Bentos na lista indicativa do Uruguai perante à UNESCO, com fins de obter a declaração de Patrimônio Cultural da Humanidade. No momento em que se escreve este texto, a proposta se encontra classificada como projeto piloto, junto com outras nove em todo o mundo e aguarda o resultado da declaração para janeiro de 2014. Conclui-se que quando todo o trabalho cessou, surgiu a memória. A cidade de Pelotas já tinha 120 anos de história quando o frigorífico foi inaugurado. Era, desde a origem, uma cidade industrial, que já havia, em outra época, experimentado um período de riqueza. Assim, o Anglo em Pelotas não teve nem o impacto, nem a hegemonia que exercia em Fray Bentos. Muitos outros aspectos são diferentes entre as duas unidades: a vila que se formou ao lado da fábrica surgiu de modo espontâneo. Na década de 1940 as grandes empresas não construíam mais habitações para seus operários. No entanto, tal como descreve a historiadora Janke (2011), parte dos trabalhadores encontrou as formas de construir suas casas no terreno adjacente ao frigorífico. Em uma escala reduzida, essa comunidade fabril viu o frigorífico fechar suas portas e amargou a falta de trabalho e o abandono.As vãs tentativas de reativar algumas funções do complexo também foram fato em comum a ambas as comunidades.A grande diferença é que o fato memorial em Fray Bentos foi,


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por necessidade premente, chancelado desde o início pela Nação. No entanto, apesar das diferenças, o caso de Fray Bentos opera como um imenso espelho no qual o Anglo de Pelotas pode enxergar-se como parte do reflexo. Diante dessa circunstância é que se analisa o surgimento do Museo de la Revolución Industrial, para pensar comparativamente a condição que deve, ou pode, ter o Memorial do Anglo da UFPel. A memória encontra seu lugar em qualquer lugar. Que seja esse grande ou pequeno, perto ou longe, físico ou imaterial. O que importa é que o lugar de memória seja a ritualização do que resta de um tempo findo, incansavelmente presentificado pela lembrança. O trabalho da memória é o rito, evocação que revivifica as coisas de outro tempo. Mas como tudo o que é vivo, a memória precisa do seu espaço. A vida sobrevive: em Fray Bentos, a cidade que vivia do frigorífico foi incorporando-o até que, no presente, o frigorífico sobrevive na memória da cidade. Ela deixou de ser o entorno para ser o todo. O Museo de la Revolución Industrial foi instalado no edifício construído em 1872, pela LEMCO, onde se produzia o guano, fertilizante orgânico cuja fórmula foi inventada por Liebig. O discurso museal desta instituição relaciona o espaço da planta industrial com a constituição social do município. A visitação ao museu é proposta de modo que o visitante possa ampliar a visita. Do museu pode seguir para o espaço da fábrica, passando pela grande casa das máquinas, pela sala da matança, pelos setores produtivos, pela conexão aérea que conduz até o enorme edifício das câmaras frigoríficas. Poderá finalizar o percurso ascendendo ao topo deste prédio de onde pode contemplar a magnífica paisagem do Rio Uruguai tocando as margens da cidade. Ou seja, o passeio sugere que o visitante conheça a extinta fábrica em um trajeto linear e conclua o percurso contemplando o horizonte (Figura 3). Portanto, é um discurso que retoma a ideia da trajetória que estava dada desde a fundação da LEMCO: de Fray Bentos para o mundo. Essa grandiosidade pode ser entendida, na perspectiva memorial, como a intensidade que o passado vai adquirindo na construção que um coletivo faz da própria história.

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Fonte: A autora

Figura 3 – Fotografia tomada do alto do prédio das câmaras frias do extinto frigorífico Anglo em Fray Bentos. Vê-se, parcialmente, a extensão de um dos lados do complexo, com ênfase para a Casa Grande e para parte do bairro operário e ao fundo, a cidade.


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Esse processo de ressignificação do passado está, em geral, presente em todos os projetos de requalificação de espaços históricos. No caso de Fray Bentos, o viés que perpassa o discurso museal, também aparece em outra proposta, apresentada pelos arquitetos Ricardo Piazza e Mauro Delgrosso. Ambos elaboraram projetos de intervenção no edifício das câmaras frias. Na publicação que registra a proposta, constata-se o intenso trabalho de levantamento do edifício e, também, a visão patrimonial dos seus proponentes, que se expressa na definição que fazem do prédio: La enorme magnitud del edificio de cámaras Frías (freezer building) del Frigorífico Anglo, poco común en establecimientos aún mayores que éste, bien nos hacen pensar en la prioridad y la importancia que tuvo para la nueva empresa a partir de la década del 20, la exportación de carne roja (Uruguay for Export, como ilustraba Zitarrosa en su ‘Guitarra Negra’). […] La combinación de su excelente puerto y este gran depósito de carne fría, cortada con los distintos cortes que el mercado exigia (tarea que debido a la cadena de frío se realizaba dentro del edificio), permitía continuas exportaciones de carne roja directamente a los mercados de destino, europeos en su mayoría (PIAZZA, 2011, p. 11).

O discurso museal da visita ao complexo completa-se, no fim do passeio, com a paisagem vista de cima do prédio emblemático das câmaras frias. Nos projetos dos arquitetos, o grande edifício ganha paredes de vidro em alguns lugares e permitem a quem está dentro ver o horizonte no rio. Em ambos os casos, o frigorífico olha para além do seu lugar, olha para o mundo e parece querer afirmar que a paisagem cultural e industrial de Fray Bentos pertence à humanidade porque é capaz de reter aspectos que representam não apenas a sua cidade e o seu país, mas diferentes momentos da história das sociedades industrializadas. É uma paisagem que tem vontade de memória. Esse discurso pode ser pensado, em diferente proporção, para o remanescente do Anglo em Pelotas. Ainda há elementos com força evocativa no que sobrou. E cabe ao memorial sinalizar a evocação. A expressão da memória necessita de forma para que se afirme como um lugar e preme pelo simbólico para ritualizar o passado. A função de um memorial não é diversa da de um museu: ambos entabulam discursos memoriais, empregam narrativas para presentificar determinado passado e ritualizam objetos, ideias, fatos e toda a sorte de manifestações nas quais a humanidade possa se reconhecer. No entanto, a forma não segue a função, neste caso. Se ambos querem ser lugar de memória, não o são da mesma forma, nem com o mesmo formato. O pequeno memorial do Anglo, dentro do prédio onde funcionaram as câmaras frias do Frigorífico de Pelotas, deseja ser uma bandeira capaz de sinalizar-se como suporte para a memória. Conclusão: o grande espaço da memória que cabe em qualquer lugar Buscam-se os registros de todas as formas, porque a vontade de memória que nutre a condição viva da lembrança precisa deste jogo clarificado por Nora entre os lugares de memória e a história: Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui:


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momentos de história arrancados do movimento de história, mas que lhe são devolvidos [...] (NORA 1993, p. 13).

No entanto, se a finalidade de propor um memorial fosse a história dessa fábrica, o recurso empregado já seria um fracasso na origem. Não se deseja a história, mas a memória. E, se houvesse a dúvida de que um espaço tão escasso poderia limitar a amplitude de uma memória - que se deseja grande como a dor de um gigante mutilado – também esse memorial pareceria um caminho incompleto. Contudo, o objetivo não é reconstruir intelectualmente o passado, suscitando conhecimento em suportes impregnados de informação.Trata-se, sim, de propor estímulo à imaginação, para que ela possa ativar e tornar desejável a lembrança. Faz-se aqui uma analogia entre o que se figura intencional nesta proposta e a imersão de sentidos que Didi-Huberman apresenta no abismal estudo sobre as poucas fotografias feitas por prisioneiros do Sonderkommando no campo de concentração de Auschwitz e encontradas, após o fim da guerra, junto à resistência polonesa. Foram quatro fotografias apenas, feitas em condições inexplicáveis, que apresentam cenas pouco nítidas. Sabe-se que são cenas dramáticas porque o inferno que registram foi narrado e evidenciado de muitas formas. Nessas poucas e frágeis imagens, a informação é abreviada, dada a condição na qual foram geradas e, visualmente, apenas insinuam a mórbida grandeza da carnificina que gostariam de ter registrado. São pobres evidências do fato histórico, mas poderosos instrumentos para a imaginação. E como observa o autor: Es poco, es mucho. Las cuatro fotografías de agosto de 1944 no dicen toda ´la verdad´, por supuesto (hay que ser muy inocente para esperar eso de lo que sea, las cosas, las palavras o las imágenes): minúsculas muestras en una realidad tan compleja, breves instantes en un continuum que ha durado cinco años, sin embargo. Pero son para nosotros – para nuestra mirada actual – la verdad en sí misma, es decir, su vestigio, su pobre andrajo: lo que queda, visualmente, de Auschwitz (DIDI-HUBERMAN, 2004, p. 65).

Seja como for, tão inabordável é qualquer passado, que mesmo que se tenha um imenso espaço com incontáveis suportes, o que fará imaginar é a vontade de memória e o que fará lembrar é o convite à imaginação. E a vontade de imaginar é o que, habitualmente, leva o visitante ao museu, pois, como observou Molder “Não há imagem mais radicalmente virtual do que a imagem produzida pela mente. Na verdade, vemos, ouvimos, por meio dessas imagens, mas não a vemos nem ouvimos [...]” (MOLDER, 1997, p. 94). Referências BERNHARD, Guillermo. Los monopolios y la industria frigorífica. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1970. CAMPODÓNICO, Gabriela. El frigorífico Anglo: memoria urbana y social em fray bentos. [2000?]. Disponível em: <http://www.unesco.org.uy/shs/fileadmin/templates/shs/archivos/anuario2000/7-campodonico.pdf>. Acesso em: 07 jul. 2012. COMISIÓN DE GESTIÓN DEL ANGLO. Formulario de presentación de lista indicativa República Oriental del Uruguay: paisaje cultural-industrial Fray Bentos. [S.l.: s.n.], 2010. DIDI-HUBERMAN, George. Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto. Barcelona: Paidós, 2004.

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A ERA DA CURADORIA Cinara Barbosa1 Universidade de Brasília

RESUMO: O tema em questão trata de algumas circunstâncias que contribuíram para a afirmação na atualidade da curadoria de exposições como uma dimensão do sistema da arte. Propõe-se elencar uma série de discursos de especialistas como medida de conceituação da prática curatorial e problematizações que a envolvem, como parte de um período de existência que atravessa a história. Ao longo do texto alguns pontos de vista e análises são distribuídos para ressaltar as múltiplas visões e para tangenciar relações de saber e poder situadas no exercício dessa atividade.

ABSTRACT: The subject matter deals with some circumstances that contributed to the affirmation today’s curated exhibition as a dimension of the art system. It´s proposed to list a series of speeches by experts as a measure of the concept and practice curatorial problematizations surrounding it as part of a period of existence, which passes through the history. Throughout the text, some views and analyzes are distributed to highlight the multiple visions and tangent relationships between knowledge and power located in the exercise of this activity.

PALAVRAS-CHAVE: Curadoria. Exposição. Conceituação. Sistema da arte. Artista.

KEY-WORDS: Curatorship. Exhibition. Conceptualization. Art system. Artist.

1 Doutora em Arte Contemporânea (2013) e Mestre em Arte (2007) pela Universidade de Brasília (UnB), Especialista em Fotografia como Instrumento de Pesquisa nas Ciências Sociais (2002) pela Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro. É artista visual e curadora independente.


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O artista brasileiro Waltercio Caldas, em conversa relatada pelo historiador, crítico e curador de arte Paulo Sergio Duarte (DUARTE, 2008), comentou que “‘curadorismo’ seria o último ‘ismo’ do século XX e o primeiro do novo século”. Ao que este último completou dizendo que mais de um século depois da arte pela arte, teríamos agora a curadoria pela curadoria (DUARTE, 2008). Ambos os comentários, cada um à sua maneira, referiam-se criticamente à atuação do curador e à competência da curadoria na relação dos sistemas entre arte, artista e produção de sentidos de trabalhos expostos publicamente. De modo específico, serviram de mote no artigo “Uma Bienal diet” (DUARTE, 2008) para levantar alguns dos problemas que envolveram a 28ª. edição da Bienal de São Paulo (2008), sob curadoria de Ivo Mesquita, entitulada Vivo Contato, mas que ficou conhecida na imprensa como Bienal do Vazio. Só para lembrar, o projeto curatorial explorou questionamentos - que já circulavam preponderantemente no início dessa década - sobre o boom de bienais no mundo e deixou todo o segundo andar do pavilhão Ciccillo Matarazzo esvaziado de obras. O que o artigo procurou enfatizar foi a responsabilidade da Fundação Bienal pela “mostra tão rala” (DUARTE, 2008) apresentada e pela crise que se deixava passar. O que trazemos a partir dessas falas que assinalam a condição de um certo ‘curadorismo’ é a discussão sobre a dimensão do papel da curadoria e de como esta vem se destacando desde o fim do século XX a ponto de parecer se sobressair, na disputa por atenção e importância, sobre artistas e seus trabalhos em exposição. Na concepção de Duarte (2008) o “curadorismo” se revelaria quando são escolhidos e conectados tema, obras e artistas de forma a se produzir uma interação pronta para beneficiar o assunto perseguido pelo interesse do curador, mesmo que demonstrando conexões por vezes “arbitrárias” ou superficiais na apresentação de sua “tese”, ou seja, do ponto de vista exclusivamente curatorial. Para o historiador, manifesta-se ainda, quando ocorre um entendimento deste profissional como uma espécie de maestro e compositor a orquestrar artistas e obras por meio da exposição e, portanto, podendo invalidar os autores da arte e transformá-los apenas em intérpretes.2 Partindo-se da acepção de ‘curadorismo’ mencionada, tomemos emprestado o termo, reformulando-o, para dar feição a uma situação de um certo espírito de época, ou seja, de um estado curatorial existente no mundo da arte na atualidade, e não exclusivamente como designação de um tipo de conduta baseada na vontade própria do curador. Assim, se por um lado não é verdadeiro que exista um período artístico localizado na história recente como ‘curadorismo’, também não é equivocado que não possa ser aventado para além do âmbito daqueles que produzem arte, mas como ínsito do circuito de bens simbólicos. A concepção dos “ismos” na arte Os chamados ‘ismos’ ocidentais podem ser compreendidos grosso modo referentes a dois intervalos dissonantes na história da arte. O longo intervalo pré-moderno é aquele em que estão designadas periodizações e estilos vistos como decorrendo no seu tempo de existência de maneira linear, contínua e duradoura. É o caso dos “momentos culturais” (ARGAN; FAGIOLO, 1994, p. 144) do Renascimento como Classicismo e Humanismo, em que a teoria das proporções e a 2 Duarte (2008) ressalta que “engana-se quem pensa que a 28ª Bienal de São Paulo cai nesse último ‘ismo’ [...]. Sabe-se que o partido da 28ª Bienal não foi determinado por um tema do curador, mas por uma crise institucional de fundo moral e, em decorrência desta, a crise financeira.”


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noção de simetria são a medida do princípio de perfeição. Apesar da perturbação provocada pelo Barroco o intervalo normativo em questão é visto por historiadores como prosseguindo até suceder-se o período das vanguardas históricas. No intervalo moderno está em voga um novo espírito de designação das produções artísticas daquele espaço-tempo. Ao invés de se colocar a mira para amplas classificações, o enfoque dirigiu-se em função de movimentos artísticos. Múltiplos, simultâneos e rápidos, eram próprios de uma época em que a dimensão do sentido de velocidade passou a fazer parte de um entendimento e vivência de mundo numa Europa que abria-se para a máquina a vapor e, conseqüentemente para a revolução industrial. Pode-se dizer que o ‘movimento’ estava por toda parte rompendo com a suspeita quietude das coisas. No campo da produção artística, é na modernidade que se dissolvem as mais diversas fronteiras nas quais alguns acontecimentos do final do século XIX ajudaram a realçar essas transformações. Entre elas podemos falar do rompimento com a unicidade, da valorização da experiência, da construção visual por uma leitura particular de um entorno multifacetado, da variação do gosto, da visualidade no atravessamento de vários universos visuais para autonomização do olhar e que não mais segue normas clássicas e modelos institucionais.Tais rupturas estiveram afinadas com estruturas novas de pensamento e organização social como a mentalidade de que “a aparência exterior não era um reflexo da realidade interior” (BUENO, 2001, p. 22), gerando crises de identidade (social) e de representação (arte). Além disto, circunstâncias históricas também desempenharam papel importante na criação de condições materiais para desenvolvimento de “uma postura moderna das artes” (BUENO, 2001, p. 24) e de ampliação de seu público. Entre os responsáveis pelo fenômeno estavam a propagação do turismo, a adaptação dos transportes e dos meios de comunicação aos novos tempos, a implantação de técnicas de reprodução (litografia, fotografia) que contribuíram para exponibilidade das artes e expansão das cidades e da cultura de classe média entre outros (BUENO, 2001, p. 25). Podemos elencar como parte, por assim dizer, do circuito das artes da época em Paris o aumento da frequência dos Salões da Academia, a criação de novas salas de exposição, o museu do Louvre aberto para além da academia, a relevância do crítico de arte, o surgimento de novos marchands que iriam reconstruir o prestígio em torno da arte não mais institucional, mas da arte criada por autores inovadores, e a formação de colecionadores e de um panorama de museus modernos americanos.3 Na arte, o momento moderno é tido convencionalmente, nos compêndios da história, como inaugurado na exposição de 1874 em Paris. O ‘ismo’ a dar título à tendência ganha o nome de impressionismo pelo crítico de época Louis Leroy a partir do quadro de Monet, Impressão, Sol Nascente (1872) (DEMPSEY, 2003, p. 14). No entanto, a pletora de movimentos experimentais das vanguardas históricas no início do século XX, muitos deles deflagrados em meio a manifestos, documentos e declarações, tornaram-se a face mais visível da utilização 3 Entre 1870 e o começo do século XX foram abertos museus nos Estados Unidos, assim como espaços de arte que serviram para a construção e divulgação de um novo gosto. Entre eles podemos citar o Boston Museum of Fine Arts (1870); Metropolitan Museum of Art – MET (1870); American Art Association (1883); a galeria 291 de Alfred Stieglitz (1905); a Ash Can School (1907) escola de arte independente; o salão Arensberg (1915); a exposição Armory Show (1913) - retrospectiva de artistas modernos. É relevante também o papel de colecionadores para a formação de coleções de pintura moderna de americanos que irão residir em Paris, organizando seus próprios salões como dos irmãos Stein (Leo e Gertrude) (1903) e da New Society of American Painters in Paris (1879). Outra fase relativa a investimentos em um mercado e cultura de arte seria a partir dos anos de 1920, com o início da internacionalização de cartéis americanos. Entre outros exemplos estão a criação do Museum of Modern Art – MoMA (1929); Museum of Non Objective Painting (1937) - atualmente Guggenheim Museum; a galeria e centro de arte Art of this Century (1942) – de Peggy Guggenheim, que abrigou a exposição individual de Jackson Pollock de 1943. Em 1950 passa a ser fundamental a atuação do marchand Leo Castelli em sua galeria (BUENO, 2001, p. 30-201); (CAUQUELIN, 2005, p. 28- 32; 121-133).

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desse sufixo para a produção de novos vocábulos: fauvismo, expressionismo, cubismo, futurismo, surrealismo e dadaísmo entre outros. Isto quer dizer que é, sobretudo a esse intervalo aberto, o das vanguardas, que associa-se comumente o ‘jargão’ (ismo), proposto muitas vezes pelo próprio artista, o autor da alcunha, que lega para a história esse tipo de classificação.

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A noção de curadoria pela organização de exposições Um levantamento dos procedimentos museológicos permite pensar não somente em que tipo de práticas a curadoria se pauta, mas principalmente em que, na atualidade, esta transformou-se ou passou a ser dimensionada. A prática curatorial tem relação, senão metodológica, pelo menos afetiva com a história do colecionismo desde a Antiguidade, passando pelos gabinetes de curiosidades, os antiquários do século XVIII, até se criarem os primeiros museus. As ações em volta dessa função constituíram-se de maneira basilar sobre a salvaguarda de acervos e coleções. E, na relevância de análise das provas materiais da natureza e da cultura, desenvolveram-se medidas dedicadas a investigação, documentação, conservação, preservação, restauração e difusão desses objetos e material, pelas ações que envolvem “seleção, estudo, salvaguarda e comunicação das coleções e acervos” (BRUNO, 2008, p. 16-17). Granato e Santos (2008, p. 214), ao discorrerem sobre o conceito de “curadoria de acervos”, apontam visões que consideram tanto voltada ao gerenciamento de coleções quanto a propostas que a tratam “como um processo que perpassa todas as atividades do museu”. Além destas, haveria também aquelas cujo processo curatorial está centrado ora nos objetos, ora no público. Para Sanjad e Brandão (2008, p. 25) a curadoria, “ora entendida como a prática de organizar mostras específicas, ora como um conjunto de técnicas objetivando a conservação de objetos” pode, segundo os autores, ser entendida como o Ciclo completo de atividades relativas aos acervos, compreendendo a execução ou a orientação da formação e desenvolvimento de coleções, implicando em eventuais medidas de manutenção e restauro; o estudo e a documentação, além da comunicação e informação, que devem abranger todos os tipos de acesso, divulgação e circulação do patrimônio constituído e dos conhecimentos produzidos, para fins científicos, educacionais e de formação profissional (mostras de longa duração e temporárias, publicações, reproduções, experiências pedagógicas etc.) (SANJAD; BRANDÃO, 2008, p. 25).

Por sua vez, o museólogo Mensch (2004, p. 4-5) chama a atenção para a constatação de que não há mais curador. Não na concepção de um modelo antigo de museu cujo “curador arquetípico” Mensch (2004, p. 4-5) é aquele que recebe um treinamento, sendo o responsável central pelas diversas atividades museológicas como conservação, pesquisa, documentação, exposição e educação. Segundo Mensch, a partir de 1960 um novo modelo é adotado, separando as atividades museológicas e fazendo com que o curador não fosse mais considerado o centro daquele universo. Desta forma, o que passou a existir foram pesquisadores de assuntos específicos, ou melhor, especialistas. Para Horta (2010) é preciso que se entenda duas funções fundamentais na função museológica pela qual veio se constituindo a curadoria: a preservação e a comunicação como ponto final, ou seja,“a devolução ao público, à sociedade” pois esta “é a verdadeira dona dos acervos e não os cientistas”. A museóloga explica que o ocorre entre essas etapas “é o conhecimento das informações contidas no objeto seja ele científico, seja material ou mesmo imaterial” e que há grandes museus, como o Louvre e o Bristh Museum, que contam em seu quadro profissional


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com curadores extremamente especializados em certas obras, a partir de estudo e pesquisa. Por outro lado, argumenta que se há uma mudança no entendimento da atuação da curadoria no campo das artes, esta deve-se a um outro parâmetro que toma “as coisas como fonte de reflexão e inspiração”. Para Horta (2010), A curadoria na arte, que virou um campo acadêmico, é a expressão de elaborações intelectuais por fenômeno artístico. O perigo nesse fenômeno é que muitas vezes, descola da realidade do homem comum, que entra naquele museu e não entende absolutamente nada. Porque é absolutamente hermético e o que se vê muitas vezes são artistas e curadores falando para si mesmos em um território acima dos comuns dos mortais. É uma dificuldade no museu de arte, ou seja, como traduzir a elaboração intelectual acadêmica o pensamento sobre arte. As curadorias tem sido livros tridimensionais, textos tridimensionais. Quando um curador de arte monta uma exposição está fazendo um statement, elaborando o seu discurso até na maneira como vai pinçar aquilo, que vai mostrar os artistas, que vai selecionar. [...] Isso é um fenômeno: a curadoria de arte. É um campo à parte. Porque na curadoria dos demais museus tanto científicos quanto de história, não há reflexão. A reflexão, o pensamento, o aprofundamento da questão que é o fenômeno artístico exposto, e que na verdade é o princípio e o fim da obra de arte, pois o artista cria para que os outros vejam, para se comunicar. Portanto uma obra de arte trancada em um cofre não está funcionando.

A essa altura é legítimo observar que, dentre as diversas operações que se entrecruzam na identificação da prática curatorial, uma delas parece ter se popularizado, passando a servir como sentido, no que diz respeito à concepção dessa atividade na atualidade, e a gerar reflexões conceituais sobre este campo: a curadoria de exposições. Na área da museologia, a exposição é uma das possibilidades do campo de difusão do objeto museal considerada como etapa do processo de comunicação.4 É como o material é levado a público, seguindo princípios específicos para possibilitar o entendimento referencial de sua presença no espaço. Assim, as exposições vêm recebendo destaque em sua realização por ser aí uma das medidas para interação entre aquilo que é exposto, a instituição expositora - por exemplo, o museu - e a sociedade. Por conseguinte, há um conjunto de saberes constituídos que se tornam necessários para a construção do que se chama discurso expositivo, na medida em que as coisas reunidas e expostas adquirem significados e funções antes não previstos. Desta maneira, a execução da curadoria de exposições segue princípios específicos visando referenciar a presença do objeto no espaço e dar importância ao contexto no qual é colocado. Dentro do espectro que corresponde à organização de exposições e com base na museografia, ou seja, as diversas medidas práticas dos museus como “planejamento, arquitetura e acessibilidade, documentação, conservação, exposição e educação” (CURY, 2006, p. 27), podemos, grosso modo, elencar diversas tarefas e especialidades. São etapas como elaboração do planejamento e da ideia, pesquisa iconográfica, definição da planta conceitual do espaço, criação de composição da forma visual, expografia (design, mobiliário, sistema de segurança, controle ambiental); elaboração do projeto museológico (do4 Cury (2006, p. 26; 91) explica que o sistema de comunicação museológica faz parte de um “sub-sistema do museu. É entendido como fundamental para que o museu atue de forma positiva frente a sociedade, apresentando o objeto ao público por meio de exposições e atividades educativas entre outras.

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cumentação do projeto, plantas da arquitetura e desenhos descritivos, elaboração de textos, orçamento, cronograma); e execução (montagem), entre outros, de acordo com um plano técnico em conformidade com diretrizes expológicas, ou seja, adequadas a esta área teórica que estuda a exposição. Esta que é, no campo museal, considerada como “forma de mediação construída” (CURY, 2006, p. 27; 98-117). Assim, por um lado, temos a ligação tradicional entre curadoria e salvaguarda de coleções, e a realidade de um período atual em que a curadoria aparece amplamente atrelada à organização de exposições. Isto deve-se, grosso modo, ao aumento do volume de empreendimentos na organização de mostras e, por conseguinte, sua operacionalização midiática na garantia de repercussão pública. Os sociólogos Heinich e Pollak (2000) apontam vários fatores que contribuíram para o desenvolvimento da função curador de exposições. Segundo os autores Heinich e Pollak (2000, p. 235), alguns fatores contribuíram para a ‘crise’ e deslocamento da figura do ‘curador-conservador’ para o ‘curador de exposições’ e, dentre as funções tradicionais que definem o trabalho, são justamente as formas de apresentação ao público que permitem uma certa “personalização” e que foram adensadas pela solidificação dos modos variantes das tendências de ‘mostras temporárias’ ou de ‘curta duração’. No resultado de pesquisa realizada no Centro Georges Pompidou (Paris/ França) e publicada em 1988 sob o título de From Museum Curator to Exhibition Auteur – inventing a singular position, Heinich e Pollak (2000, p. 235) atribuíram o crescimento da atividade ao aumento do número de exposições do acervo permanente - seja de museus ou de galerias - para exposições temporárias em geral. Constataram que as exposições passaram a ser tanto de parte de uma coleção, como de trabalhos de uma coleção com acréscimos por empréstimos de obras externas, promovendo-se assim certa autonomia em relação a uma coleção especificamente, como aconteceu nas galerias nacionais do Grand Palais (Paris). Outro fator comentado pelos autores foi a diversificação das disciplinas sob a égide da atividade de exposição – sejam artísticas (belas artes) ou científicas (história natural) – assim como assistência técnica e industrial, isto sem incluir as feiras de arte comerciais e salões de exposições. Além disto, diversos tipos de exposições especializadas começaram a ser realizadas por instituições culturais que agrupavam variadas categorias de trabalhos de maneira multidisciplinar, incluindo artes visuais, música, arquitetura entre outras, promovendo-se portanto uma mudança no papel do curador no entrecruzamento com várias disciplinas. Para Heinich e Pollak (2000, p. 236), é importante ressaltar ainda o nível de especialização crescente de exposições desenvolvidas por instituições culturais, ou seja, certos tipos de mostras “monográficas (de um único artista), mas também histórica (que abrange um período), geográfica (de uma região ou país) e temática/enciclopédica (agrupa várias categorias de trabalhos – artes, visuais, arquitetura, literatura, música, etc. – em torno de um assunto)”. No campo da produção artística, a partir dos anos de 1960, a exposição se torna foco de interesse e investigação por parte de artistas. Neste momento, instauram-se questionamentos acerca do espaço formal de exibição pública e dos valores do sistema da arte. O contexto expositivo e a subversão dos códigos e das normas estipuladas pelos preceitos formais do ‘cubo branco’ são pontos fundamentais para o acontecimento do trabalho artístico. Entre alguns dos trabalhos que servem de exemplo da magnitude que o tema da exposição e o espaço da galeria exercem estão: “O Vazio”, 1958, de Yves Klein; “O Pleno”, 1960, de Armand P. Arman; as faixas de Daniel Buren no espaço da Galeria Apollinaire em 1968, em Milão; “Museu de Arte Moderna, Departamento das


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Fonte: Weitemeier (2001, p. 32-33)

Águias” (1968-1972), de Marcel Broodthaers.

Fonte: O´Doherty (2007, p. 107)

Figura 1. O Vazio, 1958,Yves Klein

Figura 2. O Pleno, 1960, Armand P. Arman

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Fonte: O´Doherty (2000, p. 329)

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Figura 3. Proposições didáticas, 1968, Daniel Buren


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Fonte: Nicol (2011)

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Figura 4. Museu de Arte Moderna, Departamento das Águias, 1968-1972, Marcel Broodthaers

Mais recentemente, o crescimento do número de exposições e, consequentemente, o aumento da presença do curador nesse campo, por sua vez, ganhou impulso com a explosão do número de Bienais de Arte no mundo. O “fenômeno das bienais”, assim identificado pela curadora Barbara Vanderlinden, organizadora juntamente com a historiadora da arte e curadora Elena Filipovic do livro The Manifesta Decade, foi apresentado como questão para refletir a diversidade de práticas culturais na esfera global, cuja iniciativas assumem a dianteira de instituições públicas da arte (VANDERLINDEN; FILIPOVIC, 2005, p. 13). Muitas das megaexposições vem ocorrendo fora do território da América do Norte e Velha Europa, chegando a mais de 200 bienais existentes no mundo. As experiências advindas da relação com as exposições podem ser elencadas pelo interesse de artistas para com o espaço expositivo; pelas instituições e organismos do campo da museologia; pelo surgimento de eventos periódicos como Bienais de Arte; pelos empreendimentos de galerias comerciais e seus colecionadores entre outros. No entanto, a partir da segunda metade do século XX, diante do percurso de experiências em se mostrar arte, o recurso da exposição, por si só, não seria mais novidade. O que se tornou relevante é, primeiro, como veio a se consolidar como parte de um investimento valioso e, até certo ponto, estratégico no discurso e nas ações de sujeitos e agentes da arte, e como veículo direcionado ao alcance de um público, não mais só espectador, mas fruidor. E é então, a partir daí, que passa a ser identificado no cruzamento de circunstâncias exemplares, como o domínio da pesquisa e da elaboração de projetos, entre outros, vinculados à figura do curador. Este fazedor de exposições5 se auto-arregi5 O curador Harald Szeemann prefiria utilizar o termo alemão ausstellungsmacher ao invés de curador, para referir-se a seu papel na realização de exposições. O termo pode ser traduzido em inglês como exhi-


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menta então como peça fundamental no propósito efetivo para a colocar a arte em visibilidade por meio deste arranjo. No tempo do curadorismo

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Podemos considerar que a prática curatorial chega ao século XXI como atividade que tem por princípio motriz realizar situações pontuais, portanto, de caráter primordialmente momentâneas, visando o agrupamento de elementos artísticos em prol de sua visibilidade pública e alcance amplo, utilizando supostamente expertise teórica, executiva e de instrumentos para a realização de meios de exibição. Pelas exposições, portanto, curadores vêm se colocando no posto de autoridade especializada, responsável e apta pela abordagem de certo tema, artista, obra, gênero, linguagem, acervo e conceito. Para o artista Basbaum (2010) essa dimensão de valorização da atividade da curadoria de exposições diz respeito a uma demanda de mediação típica do nosso tempo: ‘Se vai-se fazer uma exposição individual, precisa-se de um curador? Eu sempre acho engraçado o artista que diz assim: ‘essa é minha individual, esse é o curador!’ Penso: mas ele não é capaz de discutir, de montar sua própria exposição, de saber o que tem de colocar?’ Consigo entender isso, em uma escala maior, em uma retrospectiva.Vejo o curador principalmente localizado na ideia de mediação da obra, pensando nele, não como uma figura inútil, mas como uma figura necessária hoje. Por que seria? Pode ser o curador-artista, pode ser curador-crítico. Seja quem for. Mas por que essa figura se materializa? Vejo isso acontecendo na seguinte situação. A quantidade de mediação que se coloca hoje, entre expectador e a obra é de tal espessura - podemos olhar em várias direções, desde mediações discursivas à mediações institucionais - que é preciso colocar alguém na linha de frente para reorganizar a favor do artista teoricamente. Seria o curador ideal. O curador atuando, evidentemente, toma posição, ou a favor do pensamento da obra de arte, ou a favor do contato com a obra [...]. O bom curador, ou aquele que atue favoravelmente à obra, seria a figura necessária para tentar desmontar esse aparato e reconstruir as mediações, da maneira que possamos potencializar o contato com obra afinal. É como se não vivêssemos mais nesse momento inocente, bastando fazer o trabalho, colocando-o na frente de alguém para o trabalho acontecer. Não. Esse encontro, atualmente precisa ser construído. É preciso construir a experiência porque a questão da obra de arte estaria acontecendo em um cenário de maior complexidade, agregando um maior número de interesses que se associam junto à obra, das mais diversas frentes. Desse modo, tornar-se-ia minoritário o interesse, que nós, consideramos principal (vamos dizer assim), o artista, o pensador, o crítico, que é a obra como deflagradora de um processo de pensamento, desorganizadora do seu hábito cotidiano, portadora de um intervenção qualquer, que pode inaugurar outras formas de pensar. Ao falar assim, parece que estamos até idealizando, mas seria o que se espera um pouco da obra de arte - o papel transformacional. A configuração hoje é tal, que precisa-se de alguém na linha de frente. Ou seja, uma inteligência curatorial, nem tanto o curador, mas a compreensão disso, para reconstruir os acessos (BASBAUM, 2010).

bitionmaker e em português pode ser interpretado como criador, ou fazedor de exposições. Aqui pretende-se destacar a ideia do exercício de uma função que passa a ter volume de demanda MÜLLER (2006).


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Vista desta forma, a valorização da atividade curatorial parece tratar-se, até certo grau, da qualidade de uma função organizacional mediante o excesso, a diversidade e a complexidade geradas pelo sistema de bens simbólicos, implicando na premência de mediação da ampla rede composta de sujeitos, instrumentos e tarefas. Além disto, também vem servindo como procedimento no controle e na articulação das produções contemporâneas, consideradas muitas vezes de difícil compartilhamento de seus propósitos artísticos, devido às dificuldades de aceitação de seus jogos relacionais e de referência à própria história da arte, solicitando conhecimento anterior do público ou disponibilidade para seu aprendizado. A curadora de arte latino americana do museu do Museum of Fine Arts, de Houston (EUA), Ramírez (2000, p. 22), afirma que: É importante situar a função e posição do curador profissional no âmbito da cultura contemporânea. Curadores são, acima de tudo, especialistas institucionalmente reconhecidos do establishment do mundo da arte, seja atuando dentro de uma instituição ou de forma independente. Mais do que os críticos de arte ou galeristas, eles estabelecem o sentido e o status da arte contemporânea através da sua aquisição, exibição e interpretação.

No campo da arte, portanto, a curadoria aparentemente cristaliza-se quando a heterodoxia artística significa a contração de problemáticas que vão da forma ao conceito das obras, dos materiais aos locais de exposição, da função do artista ao papel do público. O curador parece despontar então como sendo a figura produtora da chave-mestra para o acesso à arte, colocando-se como gerador de uma circunstância de visibilidade e enunciação, ao gerar um campo de saber, e, como diz Deleuze (1989, p. 186, tradução nossa) a respeito dos dispositivos estratégicos, “ao fazer nascer ou desaparecer o objeto que não existe sem ela”. A compreensão do atravessamento da atividade da curadoria por ‘linhas de força do saber’ (DELEUZE, 1989), serve de medida para operações discursivas que alinham multiplicidades da arte contemporânea para um foco comum. É desta maneira que para o curador Herkenhoff (2008) o exercício curatorial cuida da presença e da corporeidade das obras, projetando sentidos temporários em volta delas e colocando-as à prova de hipóteses e problematizações conceituais. Para o curador, trata-se de uma forma de pensamento crítico discursando simbolicamente com símbolos ‘do outro’. No entanto, os arranjos artísticos produzidos pela curadoria de exposições podem gerar conflitos na relação entre artista, curador e público, devidos, entre outros, ao campo de sentidos produzidos pelas manobras conceituais e pela disposição dos trabalhos no espaço expositivo, nesta condução dos processos de subjetivação. Trata-se, portanto, da dimensão de outra linha de força, ou seja, da relação de poder que diz respeito às condições possíveis para que os objetos da arte possam aparecer e que não define, portanto, suas constituições internas. No entanto, ao se estabelecerem uma série de relações para que sua apresentação aconteça (pesquisa, projeto, seleção, conceituação, organização, montagem), produzem-se modos de ação e reação relativas ao tratamento das heterogeneidades. Ora, a feição da dimensão da linha de força do poder que também perfaz a curadoria pode ser isolada no exemplo da concepção de “curadorismo”, conforme vimos, argumentada por Duarte sobre alguns modelos curatoriais. Segundo o historiador (DUARTE, 2010), dizem respeito a certas arbitrariedades em nome da criação: “e tão criativa quanto os artistas, ao ponto de transformar os artistas em protagonistas involuntários de uma obra que não era concebida

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por eles”. Por este prisma, seja em nome da unidade da exposição, seja para demonstrar a visão do curador sobre a arte contemporânea, essa noção de curadoria, mais do que tratar de um tipo de prática curatorial, ajuda a materializar as condições de poder que constituem estas relações. Neste sentido, tendo em vista que “o poder é uma relação de forças” (DELEUZE, 1988, p. 78) e, portanto, uma relação, não tendo sujeito nem exigindo objeto, mas, por conta da distribuição de singularidades, relativa a ações sobre ações sendo capaz de afetar e ser afetada, faz parte das circunstâncias das estratégias que lhe possibilita existir. Logo, toda curadoria pode ser arbitrária, na medida que segue critérios e escolhas parciais, mas nem todo curador precisa ser autoritário. O período de existência de um mundo da arte de dimensão curatorial pertence em suma, ao artista e, desta realidade, faz parte o processo de sua produção. Referências ARGAN, Giulio Carlo; FAGIOLO, Maurizio. Guia de história da arte. Lisboa: Estampa, 1994. BRUNO, Maria Cristina. Definição de curadoria: os caminhos do enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, 2008. (Cadernos de diretrizes 2: mediação em museus:curadorias, exposições e ação educativa, n. 3). BUENO, Maria Lúcia. Artes plásticas no século XX: modernidade e globalização. Campinas: Ed. Unicamp, 2001. CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2006. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. DELEUZE, Gilles. Qu’est-ce qu’un disposif? Paris: Seuil, 1989. DEMPSEY, A. Estilos, escolas & movimentos: guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2003. DUARTE, Paulo Sergio. Uma bienal diet: o que aconteceu com a elite de São Paulo, que, depois da crise do Masp, abandona também a bienal e produz uma mostra tão rala? Revista Eletrônica Trópico, nov. 2008. Dossiê 28ª bienal/em obras Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3037,1.shl>. Acesso em: 3 ago. 2013. GRANATO, Marcus; SANTOS, Cláudia Penha. Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas (mas úteis) considerações. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, 2008. (Cadernos de diretrizes 2: mediação em museus:curadorias, exposições e ação educativa, n. 3). HEINICH, Nathalie; POLLAK, Michael. From museum curator to exhibition auteur. In: FERGUSON, Bruce W.; GREENBERG, Reesa; NAIRNE, Sandy (Ed.). Thinking about exhibitions. London: Routledge, 2000. HERKENHOFF, Paulo. Bienal 1998: princípios e processos. 2008. Revista Eletrônica Trópico, abr. 2008. HORTA, Maria de Lourdes Parreira. Entrevista. Rio de Janeiro, ago., 2010. Entrevista concedida à autora. MENSCH, Peter van. Museology and management: enemies or friends? Current tendencies in theoretical museology and museum management in Europe. In: MIZUSHIMA, E. (Ed.). Museum management in the 21st century.Tokyo: Museum Management Academy, 2004. 3-19. Disponível em: <http://www.icom-portugal.org/mul-


Cinara Barbosa

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MUSEUS E MUSEOLOGIA EM PANORAMA Rachel Vallego Rodrigues1 A recente publicação do livro de Dominique Poulot “Museus e Museologia” pela editora Autêntica vem suprir um vazio de traduções de obras deste autor no Brasil. Conforme comenta Maria Eliza Linhares Borges2, na apresentação do texto, o livro foi sugerido para tradução pelo próprio autor após visita3 ao país em 2011, especialmente por se tratar de um pequeno manual teórico sobre museus, que atende também a uma crescente demanda dos cursos de museologia e áreas afins no país. Dominique Poulot é um historiador francês, professor na Sorbone (Paris-I) e pesquisador no Centre Nacional de la Recherches Laboratorie d´Antropologie et d`Historie de l´Institution de la Culture, especialista em museus e patrimônio histórico. Em “Museus e Museologia” apresenta um interessante mapeamento do caráter histórico dos museus, seu desenvolvimento e consolidação como campo de estudo, destacando aspectos de acervo e colecionamento, patrimônio cultural e preservação, além da busca por especialização dessas instituições, desde sua relação de autoridade intelectual até ao consumo turístico e a fidelização do público, sem deixar de mencionar o surgimento de novas tipologias de museus, como ecomuseus, e museus dedicados ao patrimônio imaterial. Faz também uma retrospectiva do desenvolvimento dos museus europeus, com um capítulo dedicado aos museus franceses e chegando a contemporaneidade aborda temáticas recentes como museografia, arquitetura dos museus e também aspectos do relacionamento com a indústria cultural. O livro se apresenta dividido em seis capítulos divididos em tópicos, havendo destaque a alguns textos que aparecem como momentos de aprofundamento ou detalhamento do conteúdo principal. O autor nos proporciona uma ampla visão das transformações dessas instituições no tempo, mantendo sempre como referência a perspectiva e o desenvolvimento dos museus europeus e principalmente dos museus franceses, de maneira que para o leitor brasileiro, em vários momentos, pode parecer uma realidade muito distante e desassociado das nossas próprias experiências e possibilidades. No primeiro capítulo Poulot propõe uma retomada histórica do conceito de museu. Em referência ao conceito de templo da Grécia antiga como local de inspiração das musas, passando pela ênfase dada ao caráter de acumulo de riquezas intelectuais e sacralização do conhecimento, o conceito de museu tem um importante ponto de mudança com o surgimento do ICOM (Conselho Internacional de Museus) em 1946, que passa a propor normatizações de procedimentos e configura uma nova fase na elaboração das instituições. A conferência de 1972 no Chile une a dimensão social do museu na base formativa das políticas 1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília com a pesquisa “A coleção do Banco Central e seu impacto nos museus brasileiros”. 2 Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, Membro do Grupo de pesquisa “Elementos Materiais da Cultura e do Patrimônio”. 3 Convidados como conferencista para a abertura do 1* seminário Internacional Elementos Materiais da Cultura e do Patrimônio organizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2011.


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museais, enquanto nova proposta de conceituação em 1974 é um marco, por oferecer uma visão ampla e concisa do que seria o papel dos museus no século XX. O museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público e que faz pesquisas relacionadas com os testemunhos materiais do ser humano e de seu ambiente, tendo em vista a aquisição, conservação, transmissão e, principalmente, exposição desse acervo com a finalidade de estudo, educação e deleite (POULOT, 2013, p.18).

Complementado em 1986: “o museu deve se esforçar para assegurar que as informações fornecidas nas apresentações e exposições sejam honestas e objetivas, além de não perpetuarem mitos ou estereótipos.” (POULOT, 2013, p. 18). Evidencia-se assim as cinco principais funções do museu: colecionar, conservar, estudar, interpretar e expor. O autor identifica a conservação como a ação determinante para o surgimento dos museus, por garantir a preservação do patrimônio nacional, enquanto o estudo e a pesquisa se tornam a finalidade das políticas de aquisição e exposição. Reforça a importância da publicação de catálogos para democratização e acessibilidade da informação sobre os acervos, notadamente quando pertencem a instituições públicas, e oferece destaque ao papel da comunicação, considerando a exposição o principal meio de contato com o público, é também por meio dela que se gera visibilidade aos estudos produzidos pelo museu. Em seu entendimento a exposição é uma manifestação temporária, na qual é possível aumentar a rotatividade do acervo exposto ao promover destaques, exposições monográficas ou temáticas que favorecem a imersão do visitante no conteúdo ofertado, expandindo ainda mais a atratividade do museu. Alarga-se assim a gama de profissionais necessários para a criação de exposições e favorece-se o surgimento de novas profissões e empresas de museografia e expografia especializadas em criar exposições. Podemos rastrear desta forma o surgimento das exposições conhecidas como blockbusters, mega produções elaboradas para conquistar uma enorme quantidade de público e garantir visibilidade e prestígio ao museu. Entretanto o autor destaca que essa visibilidade nem sempre tem retorno a longo prazo para o museu, pois o caráter efêmero da exposição não garante a assiduidade posterior do público. Neste sentido, é importante que o museu tenha clareza de sua missão e de como suas coleções permanentes orientam os projetos futuros, a estrutura administrativa da instituição e suas possibilidades de expansão, seja de seu acervo como também da estrutura arquitetônica disponível para este fim. Apresenta-se em seguida um mapeamento da tipologia de museus dedicados a história das nações e de representação do espaço social. No segundo capítulo, Poulot observa um aumento na fundação de museus dedicados a temas específicos, como a história de um artista ou heróis do tempo, paralelamente a uma estabilização ou mesmo decréscimo de museus tradicionais de história, que buscavam a universalidade através da exposição de acervos abrangentes. Os museus dedicados a história das nações, focados em criar uma perspectiva identitária, de fervor patriótico perderam espaço no século XX para museus de reconstituição, que oferecem uma mimese do tempo passado, uma imersão na história, ou, por outro lado, museus que proporcionam uma perspectiva futura que não se limita a uma estética de ressurreição mas também pensam a tecnologia e a interatividade. Dentro deste perfil podemos encontrar também sobre fundação de museus dedicados ao luto, as memórias do Holocausto e suas ten-

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tativas de reconciliação, entrando nessa categoria todos os museus dedicados ao registro e ao não apagamento de memórias contraditórias ou mesmo controversas. Há ainda os museus de cunho social, como os localizados em sítios históricos, como palácios e museus de etnografia nacional. Já os museus dedicados a preservação da história urbana das cidades muitas vezes evocam com nostalgia a sua evolução, e procuram recriar cenários ou mesmo expor reconstituições em tamanho natural, como os museus a céu aberto que preservam integralmente construções e modos de vida tradicionais. Os ecomuseus por sua vez consideram a importância da preservação do meio ambiente em interação com a comunidade, que participa ativamente desse processo de tomada de consciência de salvaguarda de seu patrimônio ambiental. O autor destaca serem estes os primeiros museus pluridisciplinares, no qual a ação da população é uma peça fundamental para seu bom funcionamento. Poulot prossegue no terceiro capítulo com considerações sobre o surgimento da ação de colecionar e expor pelo mundo. A origem dos museus e a abertura das coleções para acesso público marcam a época museus modernos, e a partir da Revolução Francesa estabelece como direito e necessidade do povo de ter acesso a cultura para poder conhecer e estabelecer laços identitários de sociedade. No século XIX o museu era visto como símbolo da nação, da coletividade que representa, responsável por manter a memória cultural e propagar um saber positivo, universalizaste, e favorecedor de vínculos sociais. O autor destaca a Inglaterra, Alemanha e França como os principais “modelos em matéria de museu, graças à importância de seus acervos, à abertura de novos estabelecimentos e à qualidade de sua organização” (POULOT, 2013, p. 64) e passa a descrever os caminhos tomados por estes países e museus para atestar sua afirmação, incluindo também em seu comentário alguns museus norte-americanos. A partir do século XX tem-se uma guinada, seja pelo desejo de renovação do perfil de museu, na tentativa de abandonar a enfadonha noção de ser detentor de todo o conhecimento, seja pelos reflexos da guerra e o peso dos regimes totalitários que limitaram significativamente as possibilidades de expansão e reflexão crítica. Enquanto num primeiro momento a preocupação museografia européia era voltada para a iluminação e com o sistema de dependurar peças, nos Estados Unidos os museus buscam uma museografia de contexto que chama a atenção não apenas para a tentativa de ilustração decorativa das obras, bem como a transferência massiva de bens e obras de arte da Europa. A preocupação com o público e incremento de atividades educativas para enriquecer a visita são características do período, sempre colocando em destaque a visibilidade e acessibilidade dos acervos. O capítulo seguinte é totalmente dedicado a evolução francesa de museus e a sua intensa ligação com o Estado. Passando pela tradição dos salões de arte a Academia Real de Pintura e Escultura durante o século XVIII, evento considerado um dos maiores prestígios na carreira de um artista, durante o século XIX vai sofrer um crescimento exponencial tanto da quantidade de artistas aceitos quanto o aumento no número de visitantes. Inversamente decaem a qualidade das obras e do prestígio da própria instituição, questionada pela falta de critérios na seleção das obras, acaba por transformar-se em insignificante na formação dos artistas no seu desejo por reconhecimento. Em meados de 1880 o Salon é encerrado, considerando-se que foi gradativamente substituído pelo surgimento de diversas galerias particulares e marchands. O papel do Estado volta a ser atuante após a primeira guerra, com a necessidade de elaboração de uma política cultural. Dá-se assim a criação do Ministério da Cultura, tendo como primeiro chefe da pasta o artista André


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Maulraux, que estabelece como objetivo o fortalecimento das iniciativas do Estado para promoção da cultura, da arte e do patrimônio. Novos museus são fundados, como o Centre Pompidou - Beaubourg, cujo projeto é de 1969, mas só será inaugurado em 1977. A meta de 1% do orçamento francês destinado as ações do ministério só vai conseguir ser atingida nos anos 1980. Data de 2002 a lei sobre os Museus da França, definindo as frentes de atuação do Estado em relação ao patrimônio, educação e difusão. Evidencia-se a preocupação de tornar os bens artísticos inalienáveis, já que durante a Revolução Francesa promoveu-se uma política de devolução de bens e obras de origem estrangeira, visando restituir o sentido original e de legitimidade dessas obras. A criação da marca “Musée de France” registra os museus que alcançaram as três metas básicas, sendo elas a elaboração de um estatuto do museu, o inventariamento de todos os seus bens e a definição de um projeto cientifico e cultural que atue como direcionador do museu. O autor enfatiza que “o principal desafio para as próximas décadas é o do lugar e do papel dos museus como atores e alavancas de desenvolvimento na recomposição das diferentes regiões.” (POULOT, 2013, p. 101) tendo em mente considerar sempre a partir do estágio de desenvolvimento que os museus franceses já conquistaram. O texto oferece uma visão ampla do desenvolvimento dos museus na França, mas por vezes parece apressado, pressupõe um certo domínio da questão que para o autor é extremamente comum e cotidiano. Mas para o leitor estrangeiro, as trocas de referências, por exemplo, no uso de datas no Calendário da Revolução Francesa ao mesmo tempo, por vezes no mesmo parágrafo, em que são usadas datas do Calendário Gregoriano (a contagem de anos tradicional) ou o uso de siglas sem especificar qual o nome da instituição tornam a leitura confusa. O capítulo cinco nos oferece uma visão contemporânea dos museus, analisa as transformações do campo pela lente de alguns especialistas, alguns com um tom mais apocalíptico, prevendo a falência inerente ao sistema com a chegada da era da virtualidade, outros enxergam a necessidade de retorno ao material “como uma reação à ameaça de amnésia ou obsolescência acelerada” (POULOT, 2013, p. 106) da vida contemporânea. A partir dos anos 1970 vive-se um momento de expansão museal, há um crescimento expressivo da quantidade de museus pelo mundo e o surgimento de grandes empreendimentos, como museus sucursais (por exemplo o Gugenheim abre filiais em diversos países) e um crescente flerte com a industria cultural de entretenimento e os parques temáticos. O autor admite a instabilidade da instituição museu no cenário econômico, político e tecnológico atual e a necessidade adaptabilidade para manter suas portas abertas reflete na mudança de políticas, no reconhecimento da importância do público que passa a ser cada vez mais valorizado e colocado no centro das decisões. Tornar o museu um espaço social e coletivo, no qual a visitação se dá muito mais em grupos do que visitantes sozinhos, e uma premente necessidade de inclusão social de grupos que antes eram totalmente alheios ao museu desencadearam grandes mudanças no perfil dos museus e em como eles querem se projetar para a sociedade. Nesse sentido a arquitetura ganha destaque nos novos museus, que se dedicam a elaboração de um espaço que seja atrativo e versátil prioritariamente, da mesma forma que o projeto do museu ser assinado por um arquiteto importante se torna um fator de destaque e visibilidade. Por fim, o capítulo 6 é dedicado a museologia como campo de estudos, ressaltando a necessidade de profissionalização e os desafios contemporâneos impostos à área, o autor faz um breve histórico da profissão. Cito o comentário de Wittlin que reflete sobre o desenvolvimento dos museus em três fases:

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Resenha

A era clássica dos museus se apóia na centralização, nas especialização e na classificação das coleções, mas assiste também à primeira preocupação com o público. O período entre as duas guerras se satisfaz com uma temática da educação que define a ambição dos novos museus e, ao mesmo tempo, suscita oposições declaradas. Enfim, os anos posteriores à guerra são um momento “de busca e de conflito, de gestação e de realizações, tal como os museus nunca haviam conhecido (WITTLIN, 1970 apud POULOT, 2013, p. 136)

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Na contemporaneidade os museus estão intrinsecamente conectados com o desafio de atualização constante ao mesmo tempo detentores da tarefa de preservar as memórias da humanidade. O papel legitimador que os museus exercem sobre a história, as produções sociais e culturais tem cedido espaço para a “experiência vivida, a memória do corpo e dos sentidos” (POULOT, 2013, p. 144), que são transformadoras e transformadas pelo mundo contemporâneo. Nas palavras de Poulot: para se manterem pertinentes e atuais, os museus devem tomar cuidado com a amnésia dos lugares, dos homens e coleções; a atualização de seus sucessivos remanejamentos é uma tarefa que equivale à promessa de lucidez quanto à sua reivindicação obstinada de autenticidade (POULOT, 2013, p.143).

Enquanto espaço de troca de saberes, o museu tem muito a ofertar, pela possibilidade de rememoração e renovação do conhecimento para as novas gerações, mantendo vivas as tradições e experiências de outros tempos, ao mesmo tempo em aberto para as conquistas futuras. Poulot nos oferta com este livro uma excelente introdução ao estudo dos museus e da museologia, colocando em panorama as diversas experiências que construíram este campo de estudo até o momento. É um livro indicado aos estudantes universitários que desejem conhecer o complexo mundo dos museus. Mantendo o diálogo, sem ser superficial de mais nem muito específico, proporciona um quadro amplo da perspectiva européia, de tradição secular até alcançar o desenvolvimento contemporâneo e permite situar o leitor no estado da arte dos museus. Referência POULOT, Dominique. Museus e museologia. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autentica Ed., 2013. (Coleção ensaio geral). Artigo recebido em maio de 2013. Aprovado em agosto de 2013


Helen Faganello

Cachoeira, 2008, intervenção Tinta látex e vinil adesino sobre parede e assoalho 470 x 400 x 600 Museu de Arte de Ribeirão Preto –SP Foto: Helen Faganello


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R&M: Se podessemos arriscar uma ilação, diríamos que um ponto comum de seus trabalhos é o espaço, especialmente o espaço arquitetônico e sua relação com a paisagem que o cerca. Essa avaliação é correta? Como esses espaços impossíveis, segundo o curador e crítico Mario Gioia, se relacionam com as demais obras de sua carreira? Helen Faganello: Eu diria é sim, um ponto comum em muitos dos meus trabalhos o “pensar o espaço”, o espaço arquitetônico em si mesmo e também a sua relação com a paisagem ao seu redor. Isso se materializa mais especificamente nas instalações, as quais são todas pensadas especialmente para o lugar onde serão realizadas. São em alguma medida “espaços impossíveis”, como disse o curador e critico Mario Gioia, pela sua qualidade de retratar um espaço fictício, imaginário, algumas vezes simulando uma continuidade do espaço real, por intermédio da perspectiva, sendo que geralmente há algum elemento novo, por vezes estranho ao ambiente real, criando uma ficção que abre espaço para diversas leituras e ou reflexões por parte do espectador. R&M: As intervenções Sem título (2006) na Bienal de Santos, Cachoeira (2008) no MARP e Sem titulo com guaimbé (2010) no Paço das Artes manifestavam uma inquietude em relação aos espaços expositivos e o olhar do espectador. São proposições plásticas que expandem nossa consciência desses espaços. Como tais projetos instigam uma reflexão sobre os espaços museólogicos em sua opinião? Helen Faganello: Quero primeiramente comentar sobre a instalação Cachoeira, realizada no MARP, em Ribeirão Preto, em 2007, a qual serviu de capa para essa edição da sua revista. Antes de propor a instalação à instituição, visitei o museu, fotografei muitos e variados elementos da sua arquitetura, estudei o histórico do prédio, tudo isso serviu-me de base para a elaboração do projeto. Decidi focar em um elemento que remetia à história da instituição: várias luminárias pretas, que ainda hoje servem para iluminar vários cômodos do museu. Trabalhei a imagem dessa luminária de modo a situá-la no espaço de maneira como se estivesse despencando do teto defazendo-se, espalhando-se e “escorrendo” pelo assoalho. Tudo isso foi feito em uma escala muito superior à real, para potencializar a idéia do trabalho. A idéia ao propor esse trabalho, foi de alguma maneira pensando sobre a instituição MUSEU , do modo como a entendemos hoje, se esse modelo está se deteriorando ou se modificando com o passar dos anos, deixo a ideia em aberto para reflexão. Outro pensamento que me ocorreu ao conceber o trabalho foi com referencia ao passado do prédio, um passado cheio de glamour e de riqueza, símbolo de uma época e uma situação política e social que não cabe mais nos dias de hoje, por isso o lustre se despencando e se desfazendo. No trabalho Sem titulo com guaimbé, realizado em 2010 no Paço das Artes, São Paulo, a ideia era bem parecida com essa, de pensar na possível falência das instituições, nesse caso a vegetação exterior, exuberante, invade, se adensa e se agiganta dentro do espaço expositivo, tornando-se uma ameaça real a ele. R&M: Diante de sua experiência na constituição de “lugares utópicos” em diferentes espaços expositivos, quais as dificuldades de um artista contemporâneo em produzir intervenções/alterações na arquitetura de espaços convencionais? Helen Faganello: Quanto às dificuldades do artista contemporâneo intervir em espaços arquitetônicos convencionais, eu diria que quaisquer que sejam os espaços a ele (artista) disponibilizado, a tendência é encará-los como um desafio à sua criatividade, eu diria que todos são desafiadores, alguns mais, outros menos, e é isso o que move o artista, essa vontade de enfrentar o assunto e resolve-lo de maneira inesperada, inteligente, que seja capaz de gerar ideias


Helen Faganello

e instigar o pensamento às pessoas. Inclusive espaços não institucionais, espaços abandonados, a própria rua, calçadas, ou quaisquer outros que não tenham sido pensados como “ ideais para a arte”, esses estão sendo cada vez mais utilizados pelos artistas, como uma forma de desafiar o sistema vigente, muito focado em galerias e museus, e tem tido resultados cada vez mais promissores, ampliando o conceito de “lugar para a arte”.

Sem título com Guaimbé, 2010, intervenção Lamina de madeira marfim, mdf, vinil adesivado, tinta látex e tinta acrílica 270 x 300 x 30 Paço das Artes –USP Foto: Helen Faganello

R&M: Diante da complexidade do sistema da arte atual, qual o papel dos salões e dos editais de seleção na carreira de um artista? Que impacto tiveram estes dispositivos em sua carreira e como eles podem afetar o trabalho poético? Helen Faganello: Sobre o papel dos salões e editais na carreira de um artista atualmente, penso que ainda são um modelo que funciona, na medida em que proporciona aos artistas a possibilidade de terem seus trabalhos vistos por críticos, curadores, outros artistas já conhecidos do circuito. Pensemos nos artistas que moram longe dos grandes centros urbanos, para esses os salões e editais são quase a única alternativa que tem de divulgar o seu trabalho. Hoje existem vários tipos de tentativa de contornar esse modelo e oferecer alternativas a ele, muitas delas muito bem sucedidas, como por ex. o grafite. E todas elas são válidas e muito desejáveis, pois são inteiramente de acordo com o que se espera de um artista: ideias, propostas, etc, tudo o que possa acrescentar algo

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à arte e às maneiras de apresentar a arte a públicos cada vez maiores. Mas os salões e editais são um modelo que ainda funciona bem, dentro dos seus limites, creio que ainda vão durar um bom tempo, são eficientes dentro dos seus limites.

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Helen Faganello. Artista plástica, vive e trabalha em São Paulo. Participou de mostras no Museu de Arte de Ribeirão Preto, no Paço das Artes (SP), no Museu de Arte Contemporânea de Campinas, no Centro Cultural São Paulo (SP), entre outros. Além de experiência em mostras no Carpe Diem Arte e Pesquisa, Lisboa , Portugal; na Alemanha e no Casaquistão. helenfaganello.blogspot.com


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