Peças Teatrais de Nazareno Tourinho 2 por folha

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PEÇAS TEATRAIS DE NAZARENO TOURINHO

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AGRADECIMENTOS

Ao dramaturgo Nazareno Tourinho, pelas lições de vida e de escrita para a cena; pelas longas conversas e entrevistas para falar sobre sua obra; pela confiança e honra que me concedeu para organizar e apresentar as quatorze peças aqui reunidas; pela amizade iniciada em maio de 2010. Agradecimento extensivo à família Tourinho. À Josefa Magalhães, estudiosa e pesquisadora da obra de Nazareno, colaboradora incansável desde o início do Projeto de Pesquisa Memórias da Dramaturgia Amazônida: construção de acervo dramatúrgico. Ao Fábio Limah, meu orientando – Programa de PósGraduação em Artes, do Instituto de Ciências da Arte (ICA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) – cuja dissertação tratará de parte da obra de Nazareno Tourinho. Aos bolsistas de iniciação científica, Alyne Góes e Enoque Paulino, pela leitura atenta e montagem da peça Nó de 4 pernas, em 2012. Ao bolsista Mailson Soares pela leitura apaixonada dos textos de Nazareno. Agradecimento especial à Assembleia Legislativa/Estado do Pará, na pessoa do Deputado Estadual Edmilson Rodrigues, pelo apoio amigo e financeiro, sem o qual esta publicação não viria a público.

BENE MARTINS (Organizadora)

BENE MARTINS (Organizadora)


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PEÇAS TEATRAIS DE NAZARENO TOURINHO

SUMÁRIO PREFÁCIO ......................................................................................................

BENE MARTINS

PALAVRAS DO AUTOR .....

(Organizadora)

PALAVRAS DO EDITOR .... PALAVRAS DO PATROCINADOR.....

Colaboração: Josefa Magalhães & Fábio Limah

PERFIL BIOGRÁFICO DO AUTOR.... CRÍTICAS REFERENTES À DRAMATURGIA DO AUTOR....

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

NÓ DE 4 PERNAS (1961) ........................................................................................... SEVERA ROMANA (1970) ...................................................................................... O HERÓI DO SERINGAL (1976) ............................................................................

MARTINS, Bene Peças Teatrais de Nazareno Tourinho / Martins Bene. 2013.

FOGO CRUEL EM LUA DE MEL (1976) ............................................................. AMOR DE LOUCO NUNCA É POUCO (1976) ....................................................

XXXp.

LEI É LEI E ESTÁ ACABADO (1984) ....................................................................... A GREVE DO AMOR (1986) ..................................................................................

Editora ?????????

PAI ANTÔNIO (1989) ..............................................................................................

ISBN- 978.85.338.0540-8

A ESTRANHA LOUCURA DE LORENA MARTINEZ (1997) ........................ 1. Teatro. 2. Artes-Pesquisa. 3. Dramaturgia. I. Título. CDD - 22. ed. 792.098115

CAPRICHOSA LIÇÃO DOS ESPÍRITOS (1997) .............................................. CABANAGEM (2012) ................................................................................................ QUINTINO BOM DE BRIGA DEFENSOR DOS SEM TERRA (2013) .............. SONHO DE UMA NOITE DE INVERNO (Inédita) ........... A LOUCURA DE UMA ATRIZ (Inédita)..........................


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APRESENTAÇÃO

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dramaturgia, apresentam conflito, peripécia, agilidade, verossimilhança, diálogos bem estruturados, surpresa, resolução inesperada para os impasses, nem sempre com final

Nazareno Tourinho como dramaturgo

considerado feliz, a exemplo da peça Nó de 4 Pernas, em cujo término os casais ficam com filhos trocados. Esses são alguns dos requisitos para que haja empatia entre autor e

Sei que existem pessoas acreditando que as peças, assim como partituras musicais, não servem para leitura silenciosa. Diferentemente da música, no entanto, a dramaturgia é concebida e gravada em palavras. Como cada leitor de peças é um diretor autonomeado, com todo um teatro na cabeça, parto da premissa de que o leitor bem equipado seja capaz de experimentar e avaliar uma peça em seus estudos e, ainda, que uma peça que não seja boa para ser lida, não deva ser uma boa peça. (BENTLEY, E. O Dramaturgo como Pensador).

leitor/espectador. Nazareno é mestre nesse ofício da escrita para a cena. E, naturalmente, seus textos sugerem ou exigem interpretação adequada. Essas qualidades são comuns em todas as peças do autor, cujas temáticas abordam desde a exploração dos seringueiros, à época áurea da extração do látex; revolta dos caboclos contra o poder estabelecido; escravidão em foco; greve de amor entre casais ribeirinhos; religiosidade; ética; censura; repressão. Não há como negar as referências pessoais do autor – sem biografismo, a constatação é evidente – na coerência com que ele

Após breve contextualização da existência do autor nos aspectos poético-sócio-

traça entre seu modo de interpretar o mundo, seus princípios, sua filosofia e maneira de

político-culturais buscar-se-á apresentar a obra completa de Nazareno Tourinho, composta

viver, suas crenças. Estas facetas são recorrentes na sua obra, cuja produção escrita,

por quatorze peças, doze publicadas entre os anos de 1961 e 2013, mais duas inéditas. As

localizada geograficamente, extrapola espaços, porque fala das gentes para as gentes

tramas textuais contêm, em sua escrita, elementos da cultura popular, do vocabulário

amazônidas ou não. Eis outra razão que reflete na recepção, remontagens e circulação das

amazônico, dos problemas sociais, psicológicos, entre outros temas. A partir de

suas peças encenadas por grupos de teatro amadores e profissionais, pelo Brasil afora,

acontecimentos históricos ou totalmente ficcionais, Nazareno Tourinho põe na escrita

desde a publicação do primeiro texto, em 1961.

cênica traços dos povos que aqui habitam. Essas especificidades da escrita são trabalhadas

Uma das críticas mais coerentes sobre as primeiras peças deste dramaturgo foi a

pela temática abordada, pela linguagem clara e bem articulada, pela importância que

do acadêmico Ápio Campos, escrita em 1969, quando Nazareno Tourinho foi empossado

imprime à memória coletiva. São esses e outros cuidados com os textos que garantem a

na cadeira n. 2, da Academia Paraense de Letras. A vida literária de Nazareno Tourinho é

comunicabilidade do autor com o público. Suas peças são apreciadas tanto pela leitura

um nó de quatro pernas, em cujas pontas estão o Povo, a Terra, Deus, o Teatro. Para Ápio

quanto pela encenação, conforme epígrafe de Bentley, Nazareno escreve excelentes peças.

Campos, Nazareno é homem do povo sim, principalmente,

Conheci Nazareno Tourinho em 2010 – já havia lido algumas peças de sua autoria – Nazareno foi o dramaturgo homenageado no Primeiro Seminário de Dramaturgia

Porque amou o povo, sentiu o povo, viveu o povo e apreendeu-lhe o gosto, a linguagem, os anseios e as paixões, as dores e os desesperos. (...) Foi o povo que o marcou em definitivo para a vocação literária e foi o povo que determinou e condicionou a sua predestinação para o texto cênico. Nenhum outro gênero poderia seduzi-lo mais do que o teatro, justamente pelo seu caráter dialogal e vivencial e através dele V. Exa. pode recriar as personagens que conheceu na vida real, e por isso que o teatro de V. Exa., antes de ser um diálogo com o público, é um diálogo íntimo, seu com a sua vida, seu com o seu mundo, seu com a sua consciência (CAMPOS, 1969, p. 124)2.

Amazônida. Este evento, ação do Projeto de Pesquisa Memórias da Dramaturgia Amazônida: construção de acervo dramatúrgico, sob minha coordenação, é anual. A partir desse encontro, estreitamos relações no sentido de estudar, montar e, principalmente divulgar sua obra. As novas gerações merecem conhecer os textos desse autor amazônida que, desde o início de sua carreira, escreve, principalmente, sobre as mazelas sociais dos povos, com ênfase na crítica reflexiva. “Eu escrevo pensando no efeito social das minhas peças”1. Seus textos, para além da cena, se prestam à leitura individual ou dramatizada, eles têm fluidez, têm leveza, senso de humor, ironia e, acima de tudo, como requer a boa 1

Entrevista realizada por Fábio Limah em 24 de novembro de 2012.

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Revista da Academia Paraense de Letras, 1969.


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imaginação corta as correntes do impossível e nos solta no espaço azul do horizonte... Abre a porta da imaginação com chave da loucura, rebenta, Elza, rebenta!!! (Gil, em Fogo Cruel em Lua de Mel, 1976).

Além do genuíno interesse e envolvimento com as questões sociais comuns a toda humanidade, ou como afirma Ápio Campos, com as quatro pontas fundamentais da existência – o ser humano, as condições materiais para a sobrevivência, a fé e a arte – Nazareno, ao escrever suas peças, é de extrema generosidade; tudo está demarcado,

Além das qualidades inerentes ao texto literário escrito para o teatro, os diálogos

indicado pelas rubricas em todas as cenas: da caracterização psicológica à física das personagens, do conflito principal às ações e reações possíveis, do cenário ao figurino, ele delineia os pormenores e passos encadeados de tal maneira que, mesmo jovens encenadores podem montá-las. Seus textos são elaborados a partir de uma concepção

dos personagens primam pela clareza, pela reflexão filosófica, pela crítica ao sistema e às injustiças ainda hoje em voga no cotidiano dos nossos povos. A exemplo do diálogo do casal da peça Amor de Louco Nunca é Pouco, quando discutem suas idiossincrasias:

poética muito particular, cuja visão de estética ultrapassa a contemplação do belo, no

ELA Você me deixa confusa, embaraçada; me diga uma coisa: além de arte dramática você estudou Psicologia, Psicanálise?

sentido tradicional do termo, ou melhor, seria o belo no sentido mais amplo, no sentido de expor vilezas e grandezas do ser humano enredado em conflitos e situações diversas. Esse

ELE Estudei. Só que não estudei as pessoas em livros, estudei nelas mesmas... Não estudei por fora, estudei por dentro... Aliás, eu não estudei, eu vivi. Quase todos os tipos humanos eu já vivi no palco. Já senti na minha pele, nos meus nervos, nas minhas emoções, no meu cérebro (Amor de Louco Nunca é Pouco, 1976).

jogo de opostos é tratado pelo autor com delicadeza, elegância, beleza e, acima de tudo, respeito às fraquezas humanas. Seus textos, por mais intrincados que sejam, acenam para a esperança, para a confiança no crescimento do ser homem, podem apresentar assuntos trágicos com humor. Severa Romana é exemplar nesse aspecto. Nazareno, no entanto, adverte:

A dramaturgia de Nazareno é pensada e escrita de maneira visceral, não é aquela Não sei se tecnicamente, literariamente, é lícito a um autor fazer comédia com um tema trágico. Eu fiz. Fiz porque minha intenção, com esta peça, foi documentar de forma alegre e agradável a antiga vida suburbana de minha terra, com suas crenças ingênuas e poéticas, suas superstições e velhos costumes que vão desaparecendo à sombra dos edifícios de concreto. Ao escrever esta comédia “sui generis” agi com a maior honestidade intelectual. Procedi uma rigorosa pesquisa a fim de apurar como de fato ocorreu a história de Severa Romana, que até hoje muitos consideram SANTA, e coloquei na peça todos os detalhes encontrados, estruturei mesmo o enredo de acordo com tais detalhes, fazendo concessões à literatura, o que não é bom para um autor teatral (TOURINHO, 1970).

escrita de gabinete, é o traçar de linhas pautadas na pesquisa, na observação e nas vivências de pessoas envolvidas em situações críveis. Ainda se pode afirmar que, à semelhança de Bertolt Brecht, Nazareno também comunga da ideia de que “o mundo de hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido como um mundo suscetível de modificação”. (BRECHT, 2005, p. 21)3. As peças de Nazareno apresentam um tom de aposta no ser humano. Essa é uma das razões da boa acolhida e recepção, as pessoas identificam-se de tal maneira que cada re-encenação é prestigiada pelo público em geral, a exemplo das remontagens das peças: Fogo Cruel em Lua de Mel e Nó de Quatro Pernas, em 2012.4

Para Nazareno teatro é também expressão de nuances da realidade, da imagística,

Outra tônica dos textos de Tourinho é o jogo com as tradicionais oposições entre

é espaço de divergências, experiências, ensinamentos, pesquisa documental, ficção e

bem e mal; pureza e pecado; vício e virtude; sagrado e profano; lucidez e loucura. Em

exercício da imaginação. O ser humano tolhido em sua capacidade de imaginar seria um

Fogo Cruel em Lua de Mel, o protagonista afirma que loucura é revelação, conforme

ser menos feliz. Uma das características da imaginação, para o autor e um dos seus

fragmentos do diálogo do casal em noite de núpcias, ele considerado bom vivant; ela

personagens, seria a de que ela

extremamente conservadora:

Despreza o raciocínio, o raciocínio é traiçoeiro, só serve para enredar a gente da teia do artificial, do calculado, não conduz a nada de grande e de belo (...) a imaginação é diferente. Elza, a

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BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. Fogo Cruel, dirigida por Cláudio Marinho. Nó de 4 Pernas, dirigida por Enoque Paulino e Alyne Góes.


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(...) ELZA De fato, que diria, vendo você afiançar que jamais botaria na boca um pingo de álcool.

suportou? Ninguém sabe. E ninguém mais saberá... Eu posso contar a minha história, o senhor pode me fazer ter piedade, falando da repreensão do seu chefe e da promoção perdida. Porém este mendigo morto já não tem história e nem sequer terá sepultura: seu destino é a vala comum do cemitério. E como não tem história não é ninguém, é apenas um cadáver que vai dar trabalho pro médico legista e incomodar o dono da loja aí do lado...

GIL (Encosta a garrafa na imagem.) Eis aí dois símbolos, para você que admira simbolismos: o santo e a garrafa... a virtude e o vício... a pureza e o pecado... o céu e a terra... O teu santo e a minha garrafa... juntos, nos separando.....

POLICIAL Puxa! Como você fala. Está nervosa. (Lei é Lei e Está Acabado, 1984).

(...) ELZA Você é um maluco, ouviu? Um maluco!

Além de tecer os temas vivenciais, ou de perceber o ser humano em todas as condições

GIL Sou. Mas a minha loucura é mais honesta que a tua impostura. Experimenta você também enlouquecer, experimenta. A loucura é uma revelação. (...) Enlouquece você também, enlouquecer é sublime. Enlouquece comigo (Gil, em Fogo Cruel em Lua de Mel, 1976).

peça Pai Antonio. Nesta, além de dialogar com o público e explicar um pouco sobre o que

Para Gil a loucura liberta. Elza, até então devota e recatada, em situação de desespero, à

de outro recurso para esta peça, além dos tradicionais elementos cênicos. Ninguém poderá

iminência da morte, induzida por seu marido, começa a refletir sobre o tempo investido em

sociais, numa referência a Brecht, o autor ainda recorre à metalinguagem, especialmente na

verão, há a sugestão ou exigência da mistura de linguagem teatral e cinematográfica, hoje tão em voga. Nazareno, para além das tendências contemporâneas, já antevia a necessidade encenar Pai Antonio sem recorrer às técnicas da filmagem.

devoção e recato apenas. Gil, ao contrário, sempre aproveitou as coisas boas da vida. Mas,

O texto escrito a partir de pesquisa bibliográfica tece a trajetória da lendária

paradoxalmente, ele também em situação limite, demonstra o quanto o ser humano pode

personagem de um escravo, o Pai Antonio, "história do último escravo condenado à morte

surpreender quando se dispõe a tirar as máscaras, a olhar para si sem receio do que verá. Este casal

no Pará". Pai Antonio viveu em uma fazenda de Santarém, foi condenado à morte por ter

passa por uma transformação, ou melhor, uma inversão de comportamentos ante a morte que os

assassinado o carrasco patrão que a todos maltratava. Assim inicia-se a peça sobre o sábio

aproxima de si mesmos.

escravo Pai Antonio

Assim, as peças de Nazareno tecem as histórias das personagens/espelhos de vivências e todas as personagens têm razões justificadas para suas existências, não há julgamento, nos textos do autor, há espaço para vozes ignoradas, todos são elevados à categoria de humano com suas qualidades e defeitos, independente de classe social ou profissão. O embate entre a prostituta, o

(Espaço vertical do palco dividido em dois planos distintos. Ambos se demoram sem qualquer iluminação depois que o pano sobe. Quando a plateia começa a revelar sinais de impaciência ouve-se uma voz metálica, impessoal).

policial e o mendigo morto, em Lei é Lei e Está Acabado é aviltante e bem familiar naquele antigo jogo de quem manda é a autoridade e o resto obedece. A prostituta tratada como um traste de rua, ao defender um mendigo, é aviltada pelo policial com os costumeiros maus tratos aos considerados ninguém. A prostituta protesta e argumenta sobre as razões de cada um levar a vida que leva. Mas a reação do policial é de indiferença apenas, vejamos: PROSTITUTA E a minha história? Não lhe passou pela cabeça que tenho uma história, que cada uma das mulheres que passeiam pelas ruas, madrugada a dentro, têm uma história? E este mendigo morto, imagina que não teve uma história? Olhe pra ele, não sente nada? Quem sabe um dia este velho também não quis ser investigador da Polícia? Quem sabe não se tornou Mendigo por causa de desgosto, de uma traição. Quem sabe não teve posses e não foi enganado pelos amigos, pelos parentes? Quem sabe das humilhações que ele

VOZ Calma, calma, calma. É cedo para vos sentirdes incomodados, pois a representação ainda nem teve início... Sabei logo o seguinte, a peça que ireis assistir é diferente, não se encaixa no modelo de teatro convencional, aliás, tem uma ação dramática “esquizoflâmica”, isto é, esquizofrênica inflamada. Melhor dizendo: uma ação dramática incoerente e contraditória, ora densa, ora rarefeita, sempre pontilhada de quebras e curvas, nunca linear, por motivos brechtianos, confessadamente panfletários. Ostentando um caráter documental tão minucioso quanto critico, com sabor jornalístico-livresco não devia talvez ser encenada por que o palco, diz-se e pensa-se, não é o lugar para literatura. Mas o que se há de fazer se a arte cênica, como todas as outras, está permanentemente renascendo para novas formas??? Bem, chega de explicação, prestai atenção (Pai Antonio, 1989).


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Após essa espécie de introdução que serve para situar o espectador, a peça toda é

Não se pode ler a peça Pai Antonio de maneira indiferente, o texto faz refletir e,

perpassada pelos ensinamentos do velho escravo, há o repassar, o revitalizar das histórias

muito, sobre esse período injusto e violento em que viveram os povos negros. Para reiterar

antigas aos jovens. Pai Antonio, à semelhança do antigo contador de causos, conta e

a importância da trama da peça contada por um anônimo, representante da história não

reconta as suas vivências e as de outros. Assim mantém a tradição dos seus antepassados e

oficial, o historiador francês Jacques Le Goff nos lembra que

a recria ao contar ao seu modo, infelizmente, ainda sob o regime da escravidão. Regime que tudo controlava, menos a imaginação e a memória dos escravizados, para eles, o apego e cuidado com a memória era estratégia de sobrevivência acima de tudo. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, no poema Nosso Tempo, invocamos o velho preto: conta velho preto, conta o que resta na memória, tudo tão difícil, “e muitos de vós nunca se abriram” (ANDRADE, 1984, p.32). E Pai Antonio assim o faz, “(...) Foi filho, pode acreditar. Escutei do meu pai, que escutou do pai dele, que escutou do pai do pai dele. Faz um tempão, porém aconteceu, juro

É preciso lutar pela democratização da memória social. Tal luta se faria, como propôs Triulzi, resgatando conhecimentos não-oficiais, não institucionalizados, que ainda não se cristalizaram em tradições formais... que de algum modo representam a consciência coletiva de grupos inteiros (famílias, aldeias) ou de indivíduos (recordações e experiências pessoais), contrapondo-se com o conhecimento privatizado e monopolizado por grupos precisos em defesa de interesses constituídos (LE GOFF, 1984, p. 477). Pai Antonio, ao narrar suas lembranças e as de seus antepassados escravos socializa uma memória que a todos pertence, que paira viva nas vozes e recordações individuais, somente quando

por está luz que me alumia. Aconteceu e não deve ser esquecido, vocês têm de botar tudo o

são contadas tornam-se memória social, constituinte da história dos povos. O professor de

que eu disse na cabeça dos filhos que tiverem”. (Pai Antonio, 1989). A preocupação, o zelo

literatura, cinema e semiótica, Joel Cardoso, assim se refere à peça Pai Antônio.

com a lembrança dos velhos, sempre que vêm à tona, vem de maneira re-elaborada, pois que A função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que é mais apropriada a ele. O material indiferente é descartado, o desagradável, alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida, o trivial é elevado à hierarquia do insólito; e no fim formou-se um quadro total, novo, sem o menor desejo consciente de falsificá-lo (BOSI 1995, p. 68).

Um texto de registro e resgate de uma página negra do nosso passado; um contundente texto de denúncia; um texto que nos leva à reflexão; um texto que, ao nos percebermos como personagens da história, faz com que nos sintamos senão cúmplices, pelo menos, meio culpados pelos desmandos que tiveram lugar nesses perdidos rincões paraenses; um doloroso grito de revolta ecoando no marasmo do nosso comodismo (CARDOSO, 2012).

Embora todas as peças de Nazareno sejam dignas de estudos mais aprofundados, Ecléa Bosi refere-se à atualização que o indivíduo faz ao interpretar suas lembranças encobertas ou latentes, os silêncios da história, os fios da memória ou dos flashes do passado em texto falado, no caso do Pai Antonio. Ele seria, numa referência a Eduardo Galeano, um caçador/portador de vozes perdidas e verdadeiras vozes que andam esparramadas por aí. No caso da escravidão, tema da peça, restam ecos das tristes histórias, geralmente contadas pelo registro da história oficial. Nazareno Tourinho traz as vozes de

aqui destacamos somente alguns fragmentos de poucas peças. Todas serão analisadas na pesquisa a ser desenvolvida no meu projeto de pós-doutorado em 2015. Vale ressaltar ainda que, para além do compromisso com as problemáticas do povo, o autor é mestre em tecer diálogos intimistas, por assim dizer, seja entre casais, seja entre pais e filhos. Em A Estanha Loucura de Lorena Martinez, destacam-se vários momentos de diálogo franco entre mãe e filho, por exemplo:

quem protagonizou essa época. É como se o autor concordasse plenamente com a visão de Brecht sobre teatro. Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse contexto (BRECHT, 2005, p.142).

BRUNO Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, você ia me cobrar isso. Depois fica posando de mãe moderna, liberal. LORENA E de fato sou. Desde que completaste vinte e um anos que brigo com o Bertolo defendendo o direito que tens de viveres a tua vida sem a nossa interferência. Não me arrependo disso, nem pretendo


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te impor nada; somente não consigo compreender a situação porque a bebida jamais foi o teu fraco, costumavas até criticar os amigos por jogarem fora nos bares o tempo que poderiam aproveitar lendo. De repente te puseste a fazer o mesmo (A

Estanha Loucura de Lorena Martinez,1997).

as tentativas de uma outra história que fracassou (GAGNEBIN, 1993, p. 56).

Segundo Nazareno Tourinho, “na História do Brasil a Cabanagem figura como a única revolução armada em que o povo pobre de uma região, no caso a Amazônia,

A capacidade de estabelecer a empatia entre os personagens e a plateia é mais

derrubou o governo legalmente constituído e assumiu de fato o poder político”. Não

uma referência nos textos de Nazareno Tourinho. Estudioso das artes cênicas, nunca se

importa o quanto durou essa tomada de poder, importa é demonstrar o gesto e a capacidade

contentou em escrever apenas, sempre estudou autores importantes do teatro. Ele escreve

de organização que as lideranças demonstraram à época. Em Quintino Bom de Briga,

numa linha considerada mais clássica, aristotélica em certos aspectos e, no que se refere à

Defensor dos Sem Terra, é o poeta-cantador quem narrará a saga de Quintino, até a sua

empatia, há que se concordar com Bertolt Brecht, ao se referir à Poética de Horácio,

morte. Neste texto, Nazareno dramatiza a versão do ponto de vista do perseguido pelos que

quando este formula de uma forma linda, segundo Brecht, uma teoria referente ao teatro

detêm o poder. São outras histórias até então soterradas que o autor traz à tona para, no

praticado por ele, e que foi proposta por Aristóteles!

mínimo arranhar a textura daqueles textos considerados portadores da única versão dos que lutaram na Cababagem, neste caso.

Tens de encantar e prender O coração do leitor. Sempre quem ri nos faz rir, E a tristeza, quando a vemos, Aos nossos olhos traz lágrimas. Deves, pois, se queres que eu chore, Teus olhos mostrar primeiro Todos molhados de pranto. (BRECHT, 2005, p.200). Somente quem entrevistou Nazareno Tourinho percebe esse envolvimento de rir e de

Aqui, outra referência se faz presente a do escritor francês Patrik Chamoiseau: “Oh, Sophie, meu coração, você diz ‘a História’, mas não quer dizer nada, há tantas vidas e tantos destinos, tantas trilhas para fazer nosso único caminho. Você, diz a História, eu, eu digo as histórias, aquela que você acredita ser a raiz de nossa mandioca é apenas uma raiz entre um bocado de outras” (CHAMOISEAU, 1993, p. 87). Nazareno ramifica as raízes e expõe outros galhos, outras vozes, outros cantos para encenar a mesma história, mas com outras roupagens.

chorar, de se divertir e de sofrer com seus personagens. Nazareno, ao falar sobre sua dramaturgia é

Por todas as características e importância da dramaturgia de Nazareno, é que

contagiante. Ele não só explica como surgiu a ideia para escrever determinada peça, como dá uma

aceitei a proposta de reunir as suas quatorze peças neste volume. A obra será distribuída

aula de composição textual, ou melhor, ao falar sobre, ele dirige a peça, vive os personagens;

para universidades, escolas, teatros, sociedade em geral; espero que o público aprecie,

contagia quem o ouve, fala com paixão, interesse e prazer. Outra característica da escrita de

estude, divulgue os textos, todos com sabor e vozes amazônidas, em diálogo com vozes e

Nazareno é a pesquisa sobre acontecimentos históricos, a exemplo da Cabanagem e

anseios de todos os povos.

Quintino Bom de Briga, Defensor dos Sem Terra, publicadas em 2012. O autor tece outro

Bene Martins

lado da história registrada até então. É como se Nazareno – ao ouvir e expor outras vozes, outros atores sociais – concordasse com a crítica que Walter Benjamin faz ao historicismo: O historiador burguês não questiona nem sua posição, nem a maneira pela qual ela se realizou. A história não é - como seu nome, no entanto, parece indicar! - uma história possível entre outras, mas o relato incontestável e edificante das múltiplas manifestações da vida humana. (...) A historiografia descreve o vasto espetáculo da história universal, mas não o questiona (...) está bem longe de poder discernir por detrás da história dos vencedores


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PALAVRAS DO AUTOR

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ela é um ser coletivo, uma entidade heterogênea, incapaz de decodificar os diálogos para extrair deles a essência dos signos mais abstratos ou sutis porque as falas se sucedem,

Como não poderia deixar de ser, abrimos espaço, neste volume, para que Nazareno Tourinho desse um depoimento sobre sua produção intelectual no campo da arte

vertiginosamente, ora voltadas para a caracterização psicológica dos personagens, ora empurrando a trama para o seu desfecho natural, lógico ou absurdo.

cênica. Ele, porém, achou que não ficaria bem falar a respeito das próprias criações

E, ainda, diversamente do romancista, que constrói a sua narrativa sem limitação

teatrais, pois para tanto julga-se suspeito. E assim pensando nos pediu que transcrevesse,

de tempo e espaço, como um pássaro voando em liberdade plena, o autor teatral é escravo

no lugar do depoimento, um texto de sua autoria divulgado há muito tempo, em 1987, em

de uma pequena área de representação e, no máximo, de uns cento e cinquenta minutos de

uma antologia da Academia Paraense de Letras. Ei-lo:

espetáculo. Afora isso, enfrenta o problema de compatibilizar o estilo literário com a

O DRAMA DO DRAMATURGO Dentre os escritores dos vários gêneros literários clássicos, nenhum é mais desafortunado do que o autor teatral. Pode-se até admitir que o grande drama de um dramaturgo, ou dramatista, é o vivido por ele mesmo, relativamente à criação e ao destino de sua obra. Dificilmente uma pessoa que não tenha passado pela sofrida experiência de produzir peças para a ribalta avaliará as dificuldades, e as decepções, de quem cultiva a gloriosa arte de Ésquilo, Shakespeare e Molière. Para começar, escrever um texto teatral honesto e íntegro em sua unidade estética não é somente uma tarefa intelectual complexa, pelos componenetes plásticos, estruturais e dinâmicos a serem considerados, é, sobretudo, um exercício emocional doloroso porque, sem entrar na pele dos personagens, sentindo intensamente todas as suas reações íntimas diante do conflito que sustenta a ação cênica, o mais hábil autor não conseguirá ser convincente. Ao contrário do poeta e do romancista, por exemplo, que interrompem o seu trabalho para dormir e, no dia seguinte, após o café da manhã, têm condição mental de dar continuidade ao mesmo imediatamente, o dramaturgo precisa concentrar-se, às vezes, por horas, antes de retomar o labor criativo, recompondo na tela da imaginação “mil” detalhes da derradeira cena em conexão com as cenas precedentes para reviver o clima da ação em seu exato ritmo, sem o que deixará de desenvolver o enredo de forma satisfatória. Diferentemente do poeta que, manejando a técnica do verso, brinca com imagens sugestivas e, valendo-se de uma única figura verbal (metáfora), pode dizer muitas coisas infinitamente belas, majestosamente significativas, o autor teatral necessita utilizar a palavra, acima de tudo, como instrumento de informação para a plateia, sem esquecer que

linguagem coloquial (estamos nos referindo ao autor teatral realmente dramaturgo e não aos escribas culturalmente despersonalizados, que escrevem peças para serem alteradas e adulteradas por alguns encenadores tão pretensiosos quanto incompetentes), além de defrontar-se com problemas outros comuns à composição dramática: cenários, efeitos de luz, sonoplastia, atmosfera ambiental, indumentária etc. Elementos esses que, modernamente, devem ser, pelo menos em parte, indicados nas rubricas, se o autor de fato se preza como tal (Tennessee Williams e Eugene O’Neill fornecem edificante lição nesse sentido). Finalmente, depois de tanto esforço, o risco da frustração: é raríssima a possibilidade da obra ser editada, por falta de leitores para o gênero dramático, e não maior a probabilidade de ser ela encenada, a menos que satisfaça o gosto do grande público afeito à vulgaridade. Como se não bastassem todos esses percalços, o dramaturgo ainda corre o risco de ver as suas poucas peças que sobem ao palco, melancolicamente, liquidadas por erros na concepção do espetáculo ou pela falta de talento interpretativo, em uma época como a atual, quando frequentemente escutamos os minigênios de província afirmarem que o texto cênico é um mero roteiro para representação, julgando-se o diretor de cena no direito de fazer com ele o que bem entende e achando os atores que o teatro se resume unicamente na expressão corporal. Que drama, o do dramaturgo!....


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PALAVRAS DO EDITOR

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PALAVRAS DO PATROCINADOR POR AMOR À VIDA Na manhã de 29 de dezembro de 2011 fui-me aconselhar com o Nazareno Tourinho. Da poltrona da sala de sua casa, que por coincidência fica localizada em frente à praça “Bruno de Menezes”, fiz-me só ouvidos para sua voz potente e vibrante entoada como canto de esperança de um menino quase octogenário. Entre outros relatos, Nazareno disse-me: – Em 2009 passei dezoito dias em coma em um leito de hospital. Quando todos achavam que eu não mais recobraria os sentidos, eis que acordei. E como se não tivesse “adormecido” durante tanto tempo perguntei: Qual foi o resultado do jogo? Lembrei-me que tivera um sonho no qual via algumas estrelas muito brilhantes formarem a letra “V”. Em seguida percebi que outras estrelas agregaram-se as primeiras constituindo a palavra “VIDA”. Hoje tenho certeza de que não estava na hora de morrer. Reacordei porque ainda tenho coisas muito importantes a realizar neste mundo. Quem conhece o Nazareno sabe o quanto ele é imprescindível; o quanto de bem ele ainda faria e o muito que ainda fará nesta vida e eternamente. Basta lembrar que nos últimos anos, para além das milhões de estrelinhas por ele instaladas para tornar visíveis as veredas da VIDA de muitos seres humanos, nosso irmão Nazareno nos brindou com duas novas peças teatrais simplesmente belas. Uma sobre a Cabanagem como revolução vitoriosa e, outra, uma epopeia sobre a saga libertária de Quintino. Nazareno e Ariano Suassuna estão inquestionavelmente entre os mais importantes timoneiros da literatura contemporânea transecular. Este um pensa o Brasil e o mundo desde o semiárido nordestino; aquele um, por através dos bravios rios do amanhã, desde a nossa Flor das Águas – Belém, a metrópole da Amazônia, tão querida quanto sofrida. Ambos celebram a vida de forma magistral, como esperança em dias mais humanos que virão. A dramaturgia tourinhiana é temporalidade transcendente. É rio navegado que nos trouxe a um porto seguro fugaz, porque submetido às vicissitudes das pororocas. É rio sendo navegado pela consciência de que o amanhã belo e feliz vive porque a humanização da humanidade é uma possibilidade em concreção pela práxis transformadora. Por isso a obra de Nazareno Tourinho porta uma intencionalidade assumida de produzir o futuro.


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PERIFL BIOGRÁFICO DO AUTOR

Nazareno é sujeito histórico consciente de que sua obra, longe de servir ao mercado, é e deve ser apreendida e compreendida como um bem social. Sua produção intelectual, por ser fruto de uma alma luminosa, se expressa como instrumento poeticamente moldado para incentivar o ousado desafio de navegar rios do amanhã feliz.

Nazareno Tourinho conquistou diversas premiações em concursos de dramaturgia, uma delas fora do Brasil: sua peça Pai Antônio obteve a primeira Mención del Concurso

Por ser manifestação de fé na vida, fé no homem, fé no que virá, a dramaturgia de

Latinoamericano de Dramaturgia “Andres Bello”, realizado em 1985 em Caracas, na

Nazareno Tourinho é a própria transcendência entre o sujeito da produção e o objeto

Venezuela, pelo C.E.L.C.I.T. (Centro Latinoamericano de Creacione e Inverstigación

produzido. Sua dramaturgia não se contenta em apreender o mundo como se apartado da

Teatral);

história, do movimento real da vida social. Sua obra é também obreira. Ela prediz e produz possibilidades. E como parte desse esforço é imbuída da reflexão sobre a nova racionalidade desse mundo possível alternativo ao que ora é movido pela racionalidade do lucro. Traduz-se na voz, na resistência e na luta dos pobres, dos famintos, dos sem terra, dos oprimidos por sua condição sexual, étnica ou de classe social.

Foi citado em livro por gente importante como Zora Seljan, a esposa de Antônio Olinto, que fez crítica de teatro e o colocou, na década de sessenta, ente os novos autores teatrais brasileiros, ao lado de Ariano Suassuna, Dias Gomes e outros (volume Teatro Vivo, p.361, Ed. Fundo de Cultura S.A., Rio de Janeiro, 1962);

Parafraseando seus Versos para os pobres e oprimidos, pode-se dizer que Nazareno é

Teve peças de sua autoria encenadas por Companhias de teatro profissionais, sob

um escritor popular que aos brasileiros e em especial aos paraenses honra e orgulhece. É um

a direção de figuras de renome no cenário teatral brasileiro (Cláudio Correa e Castro

pensador de mente e coração abertos, mas crítico contundente da sociedade capitalista. É um

dirigiu a peça Nó de 4 Pernas no Rio de Janeiro e Wolff Maia dirigiu Fogo Cruel em Lua

ser humano incansável, um escravo da liberdade, como um pássaro cantando incessantemente

de Mel, em São Paulo tendo no elenco Vic Militelo, a “Dakinha” na novela Estúpido

a justiça, mesmo que se professe um poeta vagabundo. É apegado à verdade, é um pensador

Cupido);

que aprendeu a pensar com o povo. Por ser humilde e grandioso pode parecer pinto dentro do ovo, mas sabe como galo cantar. Nazareno Tourinho é beleza que produz beleza. A eternidade de sua obra o imortaliza para que ele continue a acordar vendo constelações e escrevendo VIDA. Vivamos a obra dramatúrgica reunida de nosso querido irmão Nazareno Tourinho!

Foi consagrado em sua terra como escritor teatral, tendo sido eleito, com menos de trinta e cinco anos, membro efetivo e perpétuo da Academia Paraense de Letras; Pagou o preço da dignidade como escritor de arte cênica: na época da ditadura o ministro Alfredo Buzaid proibiu a circulação em todo o território nacional do livro contendo sua peça Lei é Lei e Está Acabado, mandando a polícia federal apreender os

Edmilson Brito Rodrigues

exemplares, fato noticiado em manchete de primeira página do jornal O Liberal, de Belém do Pará, edição de 26/06/1971; Teve 12 peças teatrais de sua autoria divulgadas em livro (5 pela UFPA, em volume de mais de 400 páginas editado em 1976); Teve uma peça – Nó de 4 pernas – sua publicada pela Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – SBAT (Revista de Teatro, edição nº 457, janeiro/fevereiro/março de 1986) e pela Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo (Caderno Teatro da Juventude, ano 2, nº 3, agosto de 1997);


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PEÇAS E PRÊMIOS

Recebeu de instituições respeitáveis na capital paraense reconhecimento público pela importância da sua obra dramática: o IAP – Instituto de Artes do Pará denominou Prêmio Nazareno Tourinho, o prêmio de seu concurso literário anual; a TV CULTURA

Eis os títulos das peças publicadas até fevereiro de 2013 por Nazareno Tourinho:

fez todo seu programa REGATÃO CULTURAL do dia 14/04/2009 sobre as peças teatrais

Nó de 4 Pernas; Fogo Cruel em Lua de Mel; O Herói do Seringal; Severa Romana;

do autor em foco, e a UNAMA tem no seu Projeto Memória um vídeo de uma hora de

Amor de Louco Nunca é Pouco; Pai Antônio; A Greve do Amor; Caprichosa Lição dos

duração sobre a vida e a obra de Nazareno Tourinho;

Espíritos; Lei é Lei e Está Acabado; A Estranha Loucura de Lorena Martinez;

Em 2010 o Primeiro Seminário de Dramaturgia Amazônica, organizado na

Cabanagem e Quintino Bom de Briga Defensor dos Sem Terra.

ETDUFPA pela Profª. Dra. Bene Martins – ação do Projeto de Pesquisa: Memória da dramaturgia amazônida: construção de acervo dramatúrgico – escolheu Nazareno como

Algumas premiações em concursos de dramaturgia obtidas por Nazareno Tourinho:

autor homenageado; Prêmio “Governo do Estado do Pará” (1º lugar, Belém, 1961); Através do Decreto nº 16 de 27/07/2012 a Assembleia Legislativa do Estado do Pará criou a Comenda do Teatro Paraense Nazareno Tourinho.

Prêmio “Elmano Queiroz” (1º lugar, Belém, 1969); Menção de destaque no concurso “Coroa de Teatro” (Rio de Janeiro, 1969); Primeira Menção do IV Concurso LatinoAmericano de Dramaturgia “Andres Bello (Caracas Venezuela, 1985); Menção Honrosa no 2º Concurso Nacional de Peças Brasileiras (Rio de Janeiro, 1985); Prêmio “Intercâmbio” (1º lugar no Concurso Nacional de Dramaturgia Espírita, São Paulo, 1990).

Alguns títulos honoríficos de Nazareno Tourinho: Medalha cultural “Olavo Bilac”, alusiva 50º aniversário de falecimento do poeta (concedida pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Pará, em 1969); Medalha cultural “Pedro I”, comemorativa Sesquicentenário da Independência Política do Brasil (concedida pelo Conselho Estadual de Cultura do Pará, em 1972); Medalha comemorativa do DIA DO LEGISLATIVO (Concedida pela Assembleia Legislativa do estado do Pará, em 1973); Diploma de Honra ao Mérito (concedida pela Câmara Municipal de Belém, em 1988);


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Medalha do Mérito “Francisco Caldeira Castelo branco” (comenda outorgada pela

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CRÍTICAS REFERENTES À DRAMATURGIA DO AUTOR

Prefeitura Municipal de Belém, em janeiro de 2002); Medalha de Honra ao Mérito – homenagem aos que lutaram pela democracia no país (concedida pela Câmara Municipal de Belém em 2004); Medalha da Ordem do Mérito Legislativo Newton Miranda (comenda outorgada pela

A seguir transcrevemos, na íntegra, por ordem de publicação, críticas feitas em jornal relativas a algumas peças de Nazareno Tourinho.

NÓ DE VÁRIAS PERNAS

Assembleia Legislativa do Estado do Pará em 2004). Nazareno Tourinho é um comediógrafo do Norte, natural do Pará. Esteve há dias

DETALHES

nesta capital e ofereceu-nos sua última peça, intitulada Nó de várias pernas (ou Nó de quatro pernas). O original obteve o Prêmio “Governador do Estado” no 1º Concurso Literário do

Nazareno Tourinho, que ainda é autor de uma obra didática editada pela IBRASA,

Norte do Brasil, promovido pela “Página Artística” da “Folha do Norte”. A comissão

de São Paulo, na coleção Livros que Constroem (Chefia, Liderança e Relações Humanas) e

julgadora foi constituída por Benedito Nunes, Eneida e Pascoal Carlos Magno. A edição foi

de outra com poesia de crítica social dada a lume pela Prefeitura Municipal de Belém em

feita a expensas do governo do Estado do Pará.

2004 (Versos para Pobres e Oprimidos), nasceu em Belém no dia 06 de dezembro de

A peça é bem escrita e teatralizada, mas com certeza incidiria, aqui, nas mesmas

1934, filho do bombeiro Aristóbulo da Costa com Jarina Bastos Tourinho. Foi aprendiz de

iras que incriminaram de irreverente e, até de anticlerical, “A semente” de Gianfracesco

marceneiro, cobrador de ônibus, balconista de loja de ferragens, marítimo, professor

Guarnieri e “O testamento do cangaceiro”, de Francisco de Assis. A começar pelo cenário

autodidata de cursos livres e jornalista profissional. Seu nome completo é Nazareno Bastos

único: “sacristia de uma paróquia, de interior. Porta e janela para a rua, à D. e porta para o

Tourinho. Casado com a funcionária federal Miryam Zagury Tourinho, possui três filhos,

interior do templo, à E. Estante com livros, carteira larga tendo em cima um volume da

todos já com livro de sua autoria publicado: Helena Lúcia Zagury Tourinho, arquiteta,

Bíblia, papéis, lápis e uma imagem de Cristo. Quadro de santos nas paredes. Um oratório

professora universitária com doutoramento, Emmanuel Zagury Tourinho, psicólogo,

todo decorado, onde se vê Jesus pregado no madeiro da crucificação. Quatro cadeiras para

também professor universitário doutorado e Tânia Regina Zagury Tourinho, igualmente

visitas. Tudo muito precário”. Pela descrição acima, o leitor imaginará, certamente, que se

psicóloga, pós-graduada em administração recursos humanos.

trata de uma comédia de fundo religioso, ou de um drama repleto de pecadores à procura de remissão, pois que a sacristia, com seus santos e o Cristo, impõe meditação e sacrifício. Pois quem imaginar isso engana-se redondamente. Quem esperar, ao se abrir o pano, uma ação assim, terá surpresas. Levará sustos, pois o enredo é dos mais comezinhos e versa sobre problemas... pouco cristãos. Para acioná-lo, o Autor colocou em cena um padre, o prefeito da cidade, sua esposa (pouco virtuosa), um sacristão hipócrita, a zeladora da igreja, que tenta seduzir o sacristão; um operário comunista muito mulherengo e uma prostituta, dona de um lupanar. Ora, com essa gente, é claro que se não poderá esperar um ambiente de pureza ou santidade... Considerada, entretanto, sob moldes comuns, Nó de várias pernas, tendo bons intérpretes e diretor, tornar-se-á um espetáculo de êxito fácil e popular. Diário Popular, 28/07/1961. São Paulo.


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NÓ DE QUATRO PERNAS

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suficiente rendimento dos intérpretes. Faremos restrição apenas à excessiva cafajestização do padre que o tornou absolutamente inaceitável. Bom, o cenário é de Édio Guerra. Em resumo, “Os Associados” estrearam bem, com um espetáculo bastante

Um novo grupo teatral vem de se formar e sua estreia se deu no Teatro Tijuca com a comédia de Nazareno Tourinho, Nó de quatro pernas. “Os Associados”, denomina-se o referido grupo e tem como principais responsáveis, Ribeiro Fortes, Paulo Gonçalves e Luís Mota. Segundo afirmam, pretendem montar, “de preferência”, originais brasileiros – e aí está uma louvável iniciativa. Precisamos, de uma vez por todas, acabar com o tabu de que os autores brasileiros dão prejuízo – daí o receio das grandes companhias em montá-los. Deem

agradável e divertido – não obstante as opiniões em contrário que, certamente, surgirão, dos snobs da crítica teatral. Se conseguirem manter um repertório nacional eclético, vencerão, sem dúvida – já que contam com muitos bons elementos. E isso já é mais de meio caminho andado. Almir Azevedo. A Noite, 14/10/1961. Rio de Janeiro.

oportunidade aos bons autores nacionais – que os temos, sem a menor dúvida – em vez de

NÓ DE 4 PERNAS

encenarem pecinhas inferiores, de procedência estrangeira e os novos grupos estarão trabalhando, como devem, em prol do desenvolvimento do nosso teatro. Jamais ouvimos falar de Nazareno Tourinho e como, inexplicavelmente, o programa

O jovem paraense Nazareno Tourinho, primeiro prêmio do concurso da FOLHA DO

nada esclarece a seu respeito, ficamos sabendo, apenas, de início, que tem méritos, este seu

NORTE, parece que quebrou o encanto do pequeno Teatro da Tijuca, com a apresentação da

original, escolhido pelos “Associados”. Penetrando com bastante força de expressão nos

sua comédia Nó de 4 Pernas, já levada à cena há mais de uma quinzena.

problemas característicos não, apenas de “qualquer cidadezinha do interior do Brasil”, mas

Dificilmente qualquer companhia se equilibra nessa casa de espetáculos, porque, na

de qualquer país – pois aparentemente regionalistas, universais são os tipos que nela

linha os que acreditam em lendas, esta casa de espetáculos tenha caveira de burro. Só duas

pontificam – Nazareno Tourinho dá-nos uma obra, sob certos aspectos, meritória. Não será,

companhias, que eu saiba, até agora conseguiram vencer as suas temporadas, Alda Garrido,

evidentemente, algo extraordinário – mesmo porque, afigurou-se-nos trabalho feito às

conhecida cômica e os “Atores Associados”, com a atual peça do nosso inteligente

pressas, no qual não chegou a utilizar todos os recursos da carpintaria teatral de que parece

conterrâneo Nazareno Tourinho.

dispor – mas oferece motivos suficientes de agrado para o chamado grande público. Na

Teve uma magnífica estreia, aplaudida pela plateia escolhida, que reclamou, duas

verdade, o interesse maior da peça reside, exclusivamente, na figura excêntrica do Padre

vezes, a sua presença ao palco. Mais tarde, no espetáculo dedicado aos críticos teatrais,

Elias. Ao seu redor, os demais personagens carecem de maior importância. Isso, porém, não

conseguiu pular as barreiras dos mais exigentes, vez que a comédia foi classificada “boa”

invalida a obra cujo “nó” foi bem dado pelo autor e melhor “desfeito” pelos intérpretes. O elenco esteve bastante homogêneo. No papel principal, Ribeiro Fortes teve

(bonequinho d’O Globo batendo palmas) apenas com ligeiros comentários de ordem técnica, mas também de incentivo ao jovem autor, para novas produções.

excelente desempenho – em que pesem os exageros na composição do tipo, tornando-o um

É bem verdade, e faça-se justiça, que o autor teve sorte na escolha do elenco teatral

padre excessivamente acafajestado. Acreditamos que um pouco mais de sobriedade

que a representa, nomes “cartazes” do rádio e da TV, do Rio, com todas as perspectivas de

valorizaria bastante sua criação. Outro expressivo trabalho foi o de Valdir Maia, em que

sucesso. Ainda assim, se o trabalho intelectual não tivesse mérito dificilmente esses

todos reconhecem, sem favor, um dos nossos melhores intérpretes cômicos. Lêda Maria deu

excelentes comediantes o aceitariam, arriscando os seus nomes numa aventura cênica.

bastante realce ao seu engraçado personagem, enquanto os demais – Paulo Gonçalves,

Como primeira peça teatral de um jovem que inicia seus passos, Nó de 4 pernas,

Teresinha Moreira, Elza Martins e Luís Mota – em papéis menores, direção de Cláudio

está acima de qualquer expectativa, verdadeiro estímulo para quem, como Nazareno

Corrêa e Castro valorizou o espetáculo. Todos contribuíram eficientemente para a

Tourinho , tem à sua frente uma mocidade cheia de ilusões, idealismo e vivacidade.

homogeneidade do conjunto, a direção de Cláudio Corrêa e Castro valorizou o espetáculo

Não desejamos entrar na apreciação do mérito do trabalho intelectual e filosófico

dando-lhe bom ritmo, distanciando-o inteligentemente da chanchada e conseguindo o

do nosso companheiro de jornal, Nazareno Tourinho, porque esta modalidade de crítica não


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caberia nesta crônica, à base apenas de uma ligeira reportagem. Quando a floresta dos

A peça não é nenhuma maravilha, é escrita nos moldes antigos do teatro brasileiro,

desenganos, que são os nossos cabelos brancos, nos chegam no caminho comum da

mas traz à baila alguns problemas filosóficos, inquire sobre fatos comuns da vida moderna,

existência, já as nossas observações sobre homens, atos, fatos ou acontecimentos político-

que nos obrigam a meditar... situações da existência que nos deixam na dúvida de como deve

sociais, são feitas através de lentes bem realistas, fruto seguro das nossas vividas

conduzir-se a moral em certos casos... Torna-se assim uma comédia interessante, que chegou

experiências.

a merecer um prêmio.

E isso não agrada muito, nesse tempo de excessivo futurismo das artes da música e

O 1º ato iniciando com motivos simplórios vai pouco a pouco agradando o

da evolução das escolas literárias modernas, para as quais não passamos de um produto do

espectador. E mesmo com o teatro vazio como estava (fato lamentável) ouvia-se gargalhadas

passadismo superado.

espontâneas.

Nada temos a dizer da excelente comédia do nosso jovem paraense, depois que foi dissecada pelo bisturi dos mais exigentes críticos teatrais do Rio, de sorte que o nosso papel é apenas de juntar as nossas palmas às que recebeu na estreia, de uma assistência bem escolhida.

O cenário de Edio Guerra é bom, mas pobre, de acordo com o local onde se passa a ação: uma paróquia de uma igreja do interior... As atrizes em teatro são todas quase desconhecidas. Terezinha Moreira e Elza Martins sem serem nenhumas notabilidades, representam de maneira bastante satisfatória os

Por outro lado, temos o dever sincero, como paraenses, de dizer que nos sentimos contentes, quando um papa-chibé vem ao Rio, cérebro do Brasil e vence, como o nosso

seus papéis. Leda Maria, na criada, está muito à vontade e marca.

Nazareno Tourinho. É sempre um prazer espiritual constatar que o nosso Pará, de quando

Dos homens: Paulo Gonçales, que já vimos trabalhar com Alda Garrido e achamos

em quando, manda um embaixador das letras à cidade maravilhosa, para exaltá-lo, como

muito natural, nesta peça está um tanto forçado. Luiz Mota, no galã, sem muito físico para

está acontecendo com a peça Nó de 4 Pernas, em cena no Teatro Tijuca.

tal, pois é um tipo gordinho, está muito bem e até dominador nas cenas de violência, mas nas

Já agora nestes últimos dias, fomos encontra-lo, todo embandeirado, com cartazes

mutações, quando se intimida, fica com um ar demasiado infantil para o tipo que interpreta.

vistosos, onde se lia: “Venham assistir a Nó de 4 pernas, primeiro Prêmio FOLHA DO

Waldir Maia apreciável, mas repete-se nas suas intermináveis criações de velho.

NORTE, instituído pelo Governo do Pará, peça consagrada pela crítica, como magnífico

Este ator, que é moço, podia ser mais aproveitado em papéis de acordo com a sua idade, pois

trabalho intelectual e de excelente desempenho pelos “Atores Associados.”

é um artista talentoso.

Depois disso, só nos resta baixar o pano de boca e dar por findo o espetáculo, com a

Agora o que estranhamos e não nos deixa elogiar a direção de Cláudio Corrêa e Castro é que Ribeiro Fortes, um ator sóbrio, com passado artístico, esteja completamente

vitória do jovem Tourinho. Martins e Silva. Folha do Norte, 08/11/1961. Belém.

falso, acafajestado no na criação do papel principal: o padre. Quando surge em cena dá a impressão de um ladrão fazendo-se passar por sacerdote. Se fosse isso realmente diríamos que a sua criação foi perfeita. Nunca pensamos que o discreto Ribeiro Fortes tivesse tanto

NÓ DE QUATRO PERNAS

jeito para encarnar um malandro. Mas padre como ele faz, não existe nem aqui, nem na Conchinchina.

A peça Nó de Quatro Pernas, comédia premiada do escritor Nazareno Tourinho, paraense, e montada pelos Associados, grupo formado por conhecidos artistas de televisão, deixou o Teatro Tijuca para ir instalar-se no Teatro do Rio no Catete, agora dirigido por um novo e esforçado empresário, Walter Duarte, e foi lá que nós fomos assistir ao espetáculo.

Acreditamos que o autor tenha querido fazer do pároco um personagem como Don Camilo, dos filmes italianos, ou como aquele vigário que cantava e jogava futebol num filme americano, interpretado por Bing Crosby, interpretação que lhe valeu até o “Oscar”. Assim como Ribeiro Fortes está fazendo, anarquiza a peça e transforma-se numa criatura ridícula, em desacordo com o texto que o torna um homem preocupado com as


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incógnitas que os pecados dos homens oferecem. E cuja conclusão nos faz pensar naquela

está, a nosso ver, ainda absorvida pelos ensinamentos que o palco oferece aos atores ou,

frase popular e às vezes até amoral: “Deus escreve direto por linhas tortas”...

talvez, não tenha recebido essa iluminação por parte da equipe diretora. Uma decaída se

Nó de quatro pernas para chegar a ser um espetáculo completo entre os

caracteriza pela forma habitual como conduz a bolsa, brandindo-a infatigavelmente, pois é o

“Associados”, tem muita coisa para ser polida. E merece, pois é uma peça com muitas

seu cartão de visita, onde não se encontram as letras do seu triste nome, mas os utensílios de

qualidades.

sua triste profissão. Uma dama traz a bolsa simplesmente pendida do antebraço ou mesmo

Walter Sequeira. Marcha, 16/11/1961. Rio de Janeiro.

entre as mãos, sem que oscile ou cresça às vistas alheias. Uma prostituta autêntica será incapaz de assim proceder, a não ser que seja aprendiz ou deliberadamente se disfarce. O

CORAJOSA AVENTURA NO TEATRO SÉRIO

policial vai bem, muito bom mesmo. Sua exclamação ao verificar que o mendigo não havia morrido é espontânea, clara, justa. Deve progredir, à medida que se apresentar outras, vezes,

Todos os paraenses devem ir ao Teatro da Paz assistir à peça de Nazareno

pois, como todos sabemos, o teatro é uma escola permanente.

Tourinho. É uma corajosa realização genuinamente nossa: intérpretes, direção, cenografia,

Se não fosse exagero, lembraria ainda ao autor aquele trecho do livro “FOME”, de

luz, sonoplastia, maquilagem, autoria e assunto. Repita-se que “Teatro Adulto de Belém

Knut Hamsun que, assim descreve a fome: “Nenhum pesar me atormentava, a fome sepultara

Adulta” – TABA – apresenta a fotografia linear de um fato autêntico, adjetivo que o autor

em mim todo o mal-estar; sentia-me agora pelo contrário leve, aéreo, separado de todo o

transfere inteligentemente para a cena. Não se pode dizer que há uma arrogante

contacto com a matéria; pus as pernas sobre o banco, reclinei a cabeça, e, nessa posição,

originalidade, pois o próprio autor diz ao público, antes do espetáculo, das diferenças (ou

ausente de mim mesmo, sentia uma verdadeira beatitude. Nem uma sombra escurecia o meu

semelhanças) entre “Lei é Lei e Está Acabado” e “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos.

espírito, nem o menor sentimento de inquietação, e não recordo a mais leve impressão de

Enquanto nesta o autor “fotografa” um fato escabroso, real, doloroso e permanente entre os

mágoa ou de prazer. Com os olhos abertos alheei-me de tudo, num abandono total, como se a

infelizes que se deixam vencer pelas brutais solicitações do sexo e do vício, naquela,

minha consciência se projetasse para fora de mim, a uma distância infinita”.

Nazareno Tourinho vê mais um aspecto social, que nos envergonha e nos diminui como entes

Esta é a reação com que a fome favorece um intelectual, que não é o caso do

humanos: a ignorância e a prepotência que, afinal, é tudo a mesma infelicidade. Sem

esfomeado proletário de Tourinho, mas, assim mesmo, Barradas apresenta, em várias

apresentar a vivência máxima de “basfond”, como Plínio, nem a grandeza de caráter da

ocasiões, um vigor inesperado para quem tem fome, febre e pânico.

“Prostituta Respeitosa”, de Sartre, o paraense enfrenta o fato com maior superficialidade realística, porém com as mesmas arte e segurança do sulista. Acreditamos, ainda, que sua

De qualquer forma, os queridos confrades fazem uma corajosa experiência: teatro sério, ao mesmo tempo poético e realista, limpo e atual, o que não é empresa fácil entre nós.

modéstia consentiu em dar à peça um título realmente não merecido pelo seu texto, pelo seu

O Governo e o Povo não devem consentir que a semente sucumba em terreno estéril.

desempenho. Gostaríamos que Tourinho tivesse preferido denominá-la “O Homem e a

Cândido Marinho Rocha. O Liberal, 08/11/1968. Belém.

Fome” ou “A Lei e a Fome”, títulos que diriam melhor e mais de relevante trabalho, de boa

IMPLOSÃO CRIADORA

crítica aos nossos costumes. Os atores desempenham corretamente seus papéis, destacando-se Cláudio Barradas como mendigo, numa excelente caracterização e valorizando o monólogo, que é a cena do

No teatro de Nazareno Tourinho o campo de batalha é o seu “alter ego” mitológico.

delírio. As outras intervenções de Barradas são prejudicadas pela posição em que se

Observando-se bem, trata-se de um caleidoscópio de temas e de ideias correlatos a propor

apresenta no palco, num ângulo ao qual não chegam às vistas dos que se encontram nos

uma transposição ideal do fato.

camarotes pares mais aproximados do proscênio. De um modo geral, realiza a sugestão que

O autor desfia, antes de mais nada, uma aguda visão documental, segundo a qual os

o papel encerra, num desempenho consciente e comovedor. A jovem que faz a prostitua não

hábitos e os costumes da comunidade são produto de linguagem específica. Menos forma que


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fundo (“o fundo da forma é a forma” diria Julio Cortazar), tais textos buscam ultrapassar o

sua obra literária: a honestidade inflexível que caracteriza a forma de expressar a sua

limite que separa da realidade a sua inspiração.

maneira de sentir. Não teme debates, até mesmo, quando necessário, se torna agressivo, na

Tourinho chega aos 50 anos como criador de “Nó de 4 Pernas”, “Severa Romana”,

defesa de sua verdade, sempre voltada para o engrandecimento do bem comum. Daí se

“O Herói do Seringal”, “Fogo Cruel em Lua de Mel”, “Amor de Louco Nunca é Pouco” e,

perceber essa “inteira fidelidade às alterações do universo urbano e rural”, marcante,

afinal, proibido em 1971, pelo ministro da justiça, Alfredo Buzaid, “Lei é Lei e Está

principalmente, na literatura que Nazareno Tourinho nos proporciona, como dramaturgo de

Acabado”. São peças deflagradas a partir de pequenos eventos de inteira fidelidade às

incontestáveis méritos.

alterações do universo urbano e rural que descaracterizam valores que, basicamente, são pura transparência.

Em Nó de Várias Pernas, comédia em três atos (1º lugar, por votação unânime, no 1º Concurso do Norte do Brasil – Prêmio Governo do Estado do Pará “Teatro”, promoção

Peças que, como configura Nazareno, acreditam na “verdade”, nascida desde

da “Página Artística”, da “Folha do Norte”, editado pela Falangola, Belém, 1961), o autor

Pausânias, da obsessão de se refazer o cotidiano. É como que “um nó de quatro” (ou

nos apresenta Padre Elias, personagem central da peça, transmitindo uma compreensão

múltiplas) pernas a contextualizar aquela especificidade, na extensão, de corpo e espírito, de

profundamente humana dos ensinamentos religiosos para harmonizar conflitos de

matriz geradora do texto. De “Severa Romana” ao “Herói do Seringal”, o nosso dramaturgo

paroquianos que sofrem as naturais carências de uma comunidade rural. O êxito alcançado,

acende um fogo cruel em “lua de mel”, a explicar que amor de louco nunca é pouco, já que

por certo, conduziu Nazareno Tourinho a nos oferecer Severa Romana, O Herói do Seringal,

lei é lei e está acabado: o mundo, que o habita, não é nem estranho nem hostil ao mundo que

Fogo Cruel em Lua de Mel, O Amor de Louco Nunca é Pouco e Lei é Lei e Está Acabado que,

o tem como habitante. "Mesmo entre os equívocos, o medo, a solitude mais solita" (Carlos

em 1968, no Teatro da Paz, obteve expressivo sucesso, levada à cena pelo Taba, contando

Drummond de Andrade), a pedra da memória se liberta e, implodindo, se materializa como

ainda com o talento de Cláudio Barradas, no papel principal, integrando um elenco de

dizer. Nesse sentido é que se pode afirmar que Nazareno Tourinho põe no papel – ou em cena

artistas paraenses, dirigido pelo próprio autor.

– o que carrega consigo em sangue e em nervos. Diga-se, até, que ele é a matéria-prima,

Lei é Lei e Está Acabado se baseia numa notícia, veiculada na antiga “Folha

mesma, da textualidade que escreve e, eventualmente, encena. Não sei de outro teatrólogo

Vespertina”, informando o abandono de um mendigo enfermo, encontrado na calçada da

que, no Pará, pelo menos de que se tenha notícia ao longo destes últimos anos, tenha mais

Avenida Presidente Vargas, em Belém. Apesar das providências solicitadas por um guarda

coerência ou se expresse com menos impessoalidade particularizada. Trata-se de um caso

noturno, tanto a Polícia como o Pronto Socorro se manifestam indiferentes ao fato, ocorrido

exemplar em que o ato criado reflete, substantivamente, o seu criador.

em abril de 1968. O autor, motivado pelo triste acontecimento, elaborou o texto, cujo

Acyr Castro. Diário do Pará, 11/12/1982. Belém.

conteúdo revela uma vibrante crítica social. No enredo estão envolvidos uma prostitua, um mendigo e um policial. Os diálogos, entre os personagens, trazem a autenticidade de

O TEATRO DE NAZARENO TOURINHO

expressões, comumente utilizados por pessoas do mais carente nível de convivência. Não poderia ser de outra forma para que a mensagem do autor chegasse à sensibilidade do

Com referência ao teatro de Nazareno Tourinho, eu concordo com a opinião de que: “O autor desfia, antes de mais nada, uma aguda visão documental, segundo a qual os hábitos e os costumes da comunidade são produto de linguagem específica. São peças deflagradas a partir de pequenos eventos de inteira fidelidade às alterações do universo urbano e rural que descaracterizam valores que, basicamente, são pura transparência”. (Acyr Castro). Considero oportuno ressaltar um importante e persistente traço da personalidade de Nazareno Tourinho, que faz inalterável presença em tudo o que realiza e que se reflete em

espectador, face a um drama que se repete, aliás com relativa frequência, nas avenidas e ruas das cidades. Deparamo-nos com um tema a reclamar os mais sérios debates a caminho das providências adequadas. Por tais motivos, Lei é Lei e Está Acabado entra para a história da Censura Federal. Embora lamentável, é compreensível que, em 1971, o Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, tenha proibido a circulação do livro, determinando ainda, ao departamento da Polícia Federal, que fossem apreendidos os exemplares. Nos regimes chamados de autoritários, o obscurantismo intelectual oblitera a compreensão e,


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consequentemente, o julgamento dos assustados censores, sob o pretexto de defenderem a moral e os bons costumes.

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O elenco comporta-se bem, embora o “Prefeito” e sua “mulher” precisem mais atenção da direção e de seus intérpretes para corrigir deslizes que estão reforçando o

Em dezembro último, Nazareno Tourinho teve a oportunidade de oferecer, ao

estereótipo. Os dois atores volta e meia sobreatuam até porque lhes falta o physique du role

público, Lei é Lei e Está Acabado, numa edição da Grafisa. Felizmente, uma nova esperança

que as personagens exigem, observação extensiva ao intérprete do “Sacristão”, o qual

conduz o país, num processo de redemocratização, assegurando condições de liberdade e

concentra o personagem nas mãos e nos pés, vício de interpretação que está sujando sua

aprimoramento intelectual.

postura em cena. De qualquer maneira, o espetáculo prossegue apoiado nas duas belas

Pádua Costa. Província do Pará, 21/04/1985. Belém.

performances de Paulo Mariano e de Josineide Sarrazin que construíram solidamente o “Padre” e a “Beata”. Os dois têm a exata noção de tempo e espaço e, por utilizarem muito

NÓ DE 4 PERNAS

bem o timing da comédia, empurram o espetáculo para cima a quando de suas intervenções. Duas boas revelações que tendem a crescer, pois têm talento para tanto.

De Nazareno Tourinho. Direção: Ruy Guilherme. Grupo Em Cena Ação. Teatro do

Excelente a iniciativa da AEPA ao criar o Grupo de Teatro, exemplo que deveria ser seguido por outras empresas. O Grupo Em Cena Ação estará seguindo para o Rio Grande do

Sesi. NÓ DE 4 PERNAS volta à cena mais uma vez. O texto de Nazareno Tourinho

Sul a fim de participar do III Festival Nacional de Representação Teatral (que acontecerá em

remoça-se a cada montagem pela universalidade dos temas abordados. Teatrólogo de ampla

seguida ao Festival Internacional de Teatro ora acontecendo em Canela-RS), a exemplo do

visão, sua discussão em torno do adultério, greves, socialismo, religião e política permanece

que fez na segunda versão do evento e, a julgar pela amostra que tivemos, deverá estar

atualíssima frente a uma realidade crua de distensões sociais como a que vivemos, já

nivelado a outras montagens presentes por lá. Pelo texto de Nazareno Tourinho e pelo

antecipada 30 anos atrás quando o texto foi escrito. Além disso, a forma como foi escrita

exercício cênico nivelar-se-ão por cima, certamente.

torna degustável a complexidade e gravidade da situação sem nunca enveredar por soluções

José Maria Viana. O Liberal, 28/10/1990. Belém.

fáceis e alienadoras, não obstante o happy end. A peça é um delicioso exercício de fino

PERNAS E PERNAS

humor, recheado de gags sutis e muita irreverência, apoiada na clássica estrutura do quiproquó, o que faz a plateia esquecer até mesmo pequenos defeitos que se observa em certas falas demasiadamente longas ou na esteriotipia de algumas personagens.

Pode ser chamada de Nó de várias pernas ou Nó de 4 pernas, tanto faz... o mérito é

A presente versão vem, através do Grupo Em Cena Ação formado por empregados

o mesmo. Comédia em três atos... a edição que tenho em mãos, e que guardo com carinho, é

da Caixa Econômica em projeto da AEPA (Associação do Economiários do Pará), e revela-

de 1961, publicada pela gráfica Falângola Editora, Belém, gritantemente a exigir uma

se uma grata surpresa. Embora acostumados à rotina burocrática, mostram incomum

segunda edição. Por todos os motivos, inclusive para que as novas gerações tomem

identidade com o palco para grupos deste nível. A direção de Ruy Guilherme (único do grupo

conhecimento do trabalho de Nazareno Tourinho.

com larga experiência cênica, nome dos mais conhecidos no metier) valoriza o texto e

Trata-se de uma comédia que obteve o prêmio do governo do Estado do Pará, no 1º

gerencia com habilidade a carpintaria teatral. A ambientação cênica de Carlos Nélson é

Concurso Literário do Norte do Brasil “Teatro”. Se fosse preciso uma apresentação,

funcional e compõe bem o espaço. Igualmente, a iluminação de Ruy e Rodolfo Evangelista

bastaria lembrar que obteve o 1º lugar com a votação unânime de Benedito Nunes, Eneida e

ajudaram a imprimir o tom certo à narrativa se forem corrigidas as óbvias falhas, debitadas

Pascoal Carlos Magno (Promoção da “Página Artística” da Folha do Norte).

ao frisson da estreia, principalmente durante o transcurso do tempo da ação marcado por

A edição referenciada foi feita a expensas do Governo do Estado do Pará, e vem

intervalos entre atos originalmente escritos e suprimidos no intuito de não quebrar o ritmo, o

resistindo bravamente ao implacável tempo. Destaque-se que é uma publicação de 1961:

que acabou acontecendo inapelavelmente.

mais de três décadas passadas...


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38

Apesar do tempo, o “nó”, vivo e atual, nos faz rir e pensar. Reunião de qualidade e de bom gosto que só um teatrólogo da expressão de Nazareno Tourinho poderia nos presentear. Certa madrugada, ouvindo o informativo de uma TV nacional, ouvi a notícia que o Nó de Várias Pernas estava sendo exibida em um teatro do Recife, com destaque. Feliz da vida, esperei o dia nascer para repassar a noticia ao autor. O texto não precisa ser revisto. O tempo decorrido só fez consolidar a arte teatral impregnada na comédia de três atos. O texto é seco, no bom sentido, isto é, não é discursivo, que é uma de suas boas qualidades. Sob vários ângulos pode ser examinada a comédia. Dentro do panorama nacional, é preciso destacar que se trata de conflitos que antecederam o ano de 1964, portanto, seus personagens refletem a problemática da época. E lá estão o Padre Elias, o coronel Menacê com sua esposa, o operário comunista e uma prostituta, formando um quadro agradabilíssimo, ligado pelas quatro pernas, por todas as

NÓ DE 4

pernas que transitam pela comédia. Disseram que as peças teatrais do velho e querido Joaquim Maria Machado de Assis devem ser lidas e não representadas. Com o Nó de Várias Pernas acontece exatamente o contrário: é uma obra de arte teatral para ser representada e também para ser lida, com prazer. Agildo Monteiro. O Liberal, 25/11/1992. Belém.

PERNAS


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INFORMAÇÃO Esta peça, que conquistou o primeiro lugar no I Concurso Literário do Norte do Brasil, realizado em Belém no ano de 1961, estreou no Rio de Janeiro em outubro do mesmo ano, dirigida por Cláudio Correa e Castro tendo no papel principal o ator Ribeiro Fortes. A seguir foi representada em São Paulo pelo Teatro Jambaí de Comédia, em Minhas Gerais pelo Movimento Universitário de Cultura e Assistência Popular (MUCAP, Juiz de fora), nas capitais do Nordeste pela Companhia profissional de Milton Carneiro e

CENÁRIO Sacristia de uma paróquia modesta. Porta e janela para a rua, à Direita e porta para o interior do templo, à Esquerda. Estante com livros, carteira larga tendo em cima um volume da Bíblia, papeis, lápis e uma imagem de Cristo. Quadros de santos nas paredes. Um oratório todo decorado, onde se vê Jesus pregado no madeiro da crucificação. Quatro cadeiras para visitas. Tudo muito precário.

no Festival Nacional de Teatro de Estudante que Pascoal Carlos Magno realizou no Arcozelo por um grupo de amadores de Natal-RN. Foi traduzida para o alemão pela Sra. Lilian Berley-Bering.

PERSONAGENS

Em Belém foi à cena, pela primeira vez, no Teatro da Paz em novembro de 1970. PADRE ELIAS, 30 anos. CORONEL MENACÊ, Prefeito municipal, 55 anos. D. IRANEIDE, esposa do Coronel Menacê, 40 anos. Euzébio, sacristão, 60 anos. D. NAZARÉ, zeladora da igreja (serviçal), portuguesa, 40 anos. ZÉ PEDRO, operário, líder classista, 28 anos. LUDOVINA, prostituta, dona de um lupanar, 25 anos.

]


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PRIMEIRO ATO

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D. NAZARÉ Toda ataviada, a se requebrar...

Ao subir do pano encontra-se Euzébio em cena, todo de preto. Tira a imagem de cima da mesa, beija-a, limpa a mesa, repõe a imagem no lugar, benzendo-se. Vai ao oratório e executa o mesmo jogo. Espana os quadros, cadeiras etc.

EUZÉBIO Não critique, D. Nazaré. Jesus recomendou que não notássemos os defeitos dos outros. Mateus, capítulo sete, versículos um a cinco.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

(Entrando à direita, de luto fechado.) Bons dias, “seu” Euzébio. (O sotaque

Arra! O senhor não cansa de fazer sermões!?... D. Iraneide esteve a dizer para

português não deve ser exagerado.)

minha vizinha que ando a caçar marido.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

(Litúrgico) Bom dia, com a graça do Pai Celestial e da Mãe Santíssima.

(Escandalizado) Virgem Maria!

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

A igreja trancada?

Não tenho eu o direito de lhe pagar na mesma moeda?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

É a nossa homenagem ao padre Tadeu. Pobrezinho, tão bom e puro ele era... se durasse mais acabaria fazendo milagre...

Palavras de Cristo a S. Pedro: “Deveis perdoar não sete vezes, mas setenta vezes sete vezes”.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Tivesse vindo outro padre para substituí-lo e não haveria de morrer. Por que é que

Ela está a espalhar que o senhor...

deixam tanto trabalhar um sacerdote?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

(Interessado) O quê?

Não sei.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Não, não digo. Pois Nosso Senhor não proibiu também o fuxico?

Ele não estava já a carregar seus oitenta anos?

EUZÉBIO

EUZÉBIO Oitenta e dois.

Conversa mole. Há trinta e cinco anos que leio a Bíblia e nunca deparei com uma proibição ao fuxico. Eu é que sou um cidadão sério e não me intrometo na vida alheia.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

A igreja não dá aposentadoria?

Então, homem, não venha se intrometer na vida de D. Iraneide.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

A aposentadoria é no céu... No céu ninguém faz nada... todo dia é feriado. É só

O que foi que aquela pirua choca falou de mim?

contemplar a face de Deus e escutar as sinfonias sacras...

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

É grave...

Viu a faceirice da mulher do prefeito no enterro?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Desembuche.

Não reparei.


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D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Não. É pecado. O senhor a pensar que eu não quero ir pro céu? Falar dos outros é

Que por outra se apaixonou?

desobediência a Deus. Qual é mesmo o número do capítulo?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Que outra?

Eu rezo um terço pra Deus lhe dispensar esta faltazinha.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Eu é que sei?

Sei lá eu do seu prestígio com Ele...

EUZÉBIO

EUZÉBIO (Categórico) Muito bem, não diga.

Mas que confusão! A senhora embaralha tudo numa salada dos diabos. (Constata, repentinamente, que se referiu ao Diabo.) Perdoai-me, Pai Celeste. (Benze-se)

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

(Meditativa) Bom... como não deseja mais saber não adianta guardar eu segredo...

O pior é que os boatitos prejudicam-me.

Surpreendi D. Iraneide propalando, aos quatro ventos, que o senhor me quer namorar.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Por quê? A senhora devia era estar orgulhosa.

(Horrorizado) Oh! Minha nossa Senhora do Perpétuo Socorro, será que no Inferno

D. NAZARÉ

aceitam uma alma tão cretina???

Orgulho? O senhor a se considerar um cobiçado galã? Um gostosão?

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

No meu quarteirão não cessam um momento de comentar. O senhor está mesmo apaixonado?

(Áspero) Psiu!... Isto é uma casa de respeito e orações... Não use este vocabulário de ralé.

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

Quem, eu???

Ai! Ralé uma ova! Ralé uma...

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Sim.

Por tudo quanto é mais sagrado, não prossiga.

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

Pela senhora?

O senhor não deu corda? Aguente agora o rojão.

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Ué! O senhor a se apaixonar por outra??? O senhor teve a petulância de se enfeitar para

Não se agite. Quais são os prejuízos que os boatos têm lhe acarretado?

qualquer macaquinha???

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Isto também é um segredinho. Tenho vergonha de contar.

Quem disse isso?

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

Vergonha? Eu estou no meio?

Não terminou de dizer?

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

E por que não haveria de estar?

Dizer o quê?

EUZÉBIO Do que se trata?


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D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

É melhor calar. “Em boca fechada não entra mosca”.

Tá danadinho pra ouvir os palavrões, hein? Acho eu que o senhor, com esta

EUZÉBIO

carinha de Eucaristia, há-de de findar num reformatório para velhos pervertidos.

Calar por quê?

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

(Exaltado) D. Nazaré, eu sou um homem sério, um homem idoso e idôneo. Não

Achará o senhor um bocadito imoral. EUZÉBIO Não tem importância.

abuse de minha consideração. D. NAZARÉ Hum... como esperneia por qualquer coisita... Todo “não me toque”... todo...

D. NAZARÉ

histérico. Até parece milionário... Em todo o caso vou eu desabafar. Mas não fique

Tem, sim. Isto aqui “é uma casa de respeito e orações”...

contente, não, que não tem palavrões. Conhece o leiteiro?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Depois desses boatos a senhora se encheu de dengos...

Conheço.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

(Resoluta) Quer mesmo vir a saber?

Vive a me galantear, a me perseguir...

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Quero.

Como? A senhora de namoriscos com o leiteiro?

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Se disser algum palavrão não terá o senhor uma tremedeira?

Julga que uma atraente viuvinha, como eu, somente pode simpatizar com um

EUZÉBIO Palavrões... Em toda a parte, atualmente, se ouvem coisas obscenas. Imagine que

sacristão como o senhor, que não dá mais nada?... EUZÉBIO

na semana passada dois garotos com menos de cinco anos, discutiam baixinho sobre

E a senhora simpatiza comigo?

mulheres, dentro da igreja, antes da comunhão. Um se gabava de ter visto a irmã despida

D. NAZARÉ

no banheiro, olhando pela fechadura. O outro garantia que quando crescer será um famoso

Ai! Que ridícula pergunta!

transviado.

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

Ridícula por quê?

Que barbaridade.

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Porque esta pergunta cabe à mulher fazer. Deus meu! Quanta ignorância!

Pois é. Pode desabafar.

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

(Encabulado) Nesta matéria eu ando atrasado.

Desabafar o que, os palavrões?

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

É... consome o tempo todo a ler a Bíblia...

Sim.

EUZÉBIO E o leiteiro?


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D. NAZARÉ

rezas e mais rezas... Como é que consegue viver solteiro? Sem... sem... sem uma

Ao saber que o senhor se enamorou de mim passou quatro dias sem me levar

companheira?

leite...

EUZÉBIO EUZÉBIO

Companheira para quê?

D. Nazaré, ou a senhora está variando ou está querendo brincar comigo. Quem

D. NAZARÉ

lhe convenceu que eu me enamorei?!... D. NAZARÉ

Para quê??? Para quê?! Oh! Quanta ingenuidade a se misturar com estupidez! Não sabe o senhor para que serve uma mulher?...

O senhor declarou indagorinha.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Eu tenho lavadeira e como de hotel.

Eu??? Como???

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Ô besta! E mulher apenas serve para cozinhar e lavar?

Não lhe compreendo...

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Não... Serve também para comprar roupas caras, para adoecer, para desencavar as

Compreenda que sou um homem profundamente religioso. A minha grande

amantes que o homem não tem...

vocação é para pastor de almas. Há dezenas de anos que vivo para Cristo, enfurnado nesta

D. NAZARÉ

Igreja. Tenho um palpite que o Sr. Arcebispo me aproveitará como padre.

E para mais nada?... Quando o senhor acorda, de madrugadinha, e se mexe de um

D. NAZARÉ

lado para o outro na cama, a tiritar de frio, não sente uma...

Padre??? O senhor???

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Eu durmo em rede.

A escassez de sacerdotes é alarmante. No futuro a Santa Madre Igreja convocará

D. NAZARÉ

os leigos para a ativa; os leigos como eu, que tenham devoção e sejam solteiros. D. NAZARÉ

(Explodindo) Dorme em rede eu sei. Porém depois de visitar, sorrateiramente, a pensão da Ludovina...

Ah! O seu negócio é não casar?!

EUZÉBIO

EUZÉBIO

(Benzendo-se) D. Nazaré, isto aqui é uma casa de respeito e orações...

Se Deus pedir o meu sacrifício...

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ Deus pede nada, seu presunçoso. Tem tanto bispo, tanto padre formado, tanta

E daí? Cochicharam nos meus ouvidos que o senhor tem um chamego com uma mulher na pensão da Ludovina. É por isso que não resolve a nossa situação.

freira a se oferecer para Deus, que ele nem vai se lembrar dos sacristãos de paróquia do

EUZÉBIO

interior. Não seja carola. Deus deve é andar chateado com tanta bajulação da Humanidade.

Que situação? Que situação? Tenho porventura alguma dívida consigo? E qual foi

EUZÉBIO

o demônio que murmurou nas suas orelhas de abano esta calúnia? Eu seria um devasso,

O meu maior sonho era vestir uma batina...

para me comprometer com uma prostituta? Eu sou algum prostituto?

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Eu lhe empresto a minha saia. O mesmo efeito há de fazer. O seu maior sonho é

É o que vejo correr por aí...

nunca ter a responsabilidade de sustentar uma família. E haja sombra e água fresca. Rezas,


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50

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Não espalhe estas injúrias. Se até amanhã o Sr. Arcebispo não responder o meu

Quando?

telegrama, avisando que virá alguém para o lugar do padre Tadeu, comprarei uma batina e

D. NAZARÉ

o domingo não passará sem Missa. Darei bênção a todos...

Não me posso recordar.

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

E acertará o senhor a recitar Missa?

Jamais lhe toquei em casamento. Não sou leso nem demente.

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

Faz mais de dezoito anos que sei todo o Missal, de cabo a rabo. Verá a minha

Se não tocou pensou em tocar. EUZÉBIO

pose. D. NAZARÉ

Como tem certeza disso?

Verei é o senhor envolvido na pororoca de um escândalo.

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Semana retrasada o senhor não quis se atracar com o leiteiro, aos murros?

Como?

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

É um salafrário.

Se virar padre darei uma escabrosa notícia às amigas minhas. Aliás, é suficiente

D. NAZARÉ

dar a uma delas; em trinta minutos todas as demais terão na pontinha da língua.

É não. O senhor é que está roído de ciúmes porque ele escreve bilhetinhos e

EUZÉBIO

madrigais para mim, a cantar o meu juízo com seus mimos. Aliás o seu Joaquim é um

Esta notícia escabrosa é a meu respeito?

lusíada garboso e bem apessoado. (Suspirando) Ah! Como seria delicioso se a minha

D. NAZARÉ

próxima lua de mel fosse com um patrício. (Desdenhosa) Um patrício que gostasse mais de

É.

costela do que de rosário...

EUZÉBIO

EUZÉBIO

(Inquisitorial) Explique a sua ameaça.

Afinal, o que tem a senhora contra a minha dignidade eclesiástica?

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

O senhor esteve a me empatar durante treze anos.

É o senhor se aboletar na batina e eu ir me queixar ao delegado.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Eu??? Acaso lhe fiz propostas de amor? (Transição) Virgem Mãe Santíssima!

Se queixar de quê?

(Benze-se) Acaso lhe disse que tencionava me amasiar consigo? D. NAZARÉ Amasiar se fosse eu a sua avó. Casamento com véu e luvas...

D. NAZARÉ Depende. Alegarei lastimosa que nos encontrávamos sozinhos, nesta “sala de respeito e orações”, e o senhor...

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Eu lhe prometi isso?

(Cortante) O senhor o quê? Complete!

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Prometeu.

O senhor tentou... violentar-me. (Euzébio cai numa cadeira e D. Nazaré abana-o com o espanador.)


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EUZÉBIO

EUZÉBIO

(Recobrando os sentidos.) Arranje depressa um copo d’água...

Chantagem é uma patifaria deslavada, como esta que deseja fazer comigo. Pecado

D. NAZARÉ

mortal.

(Olhando para os lados.) Não tem. Engula cuspo.

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Por que pecado?

(Arquejante) Na pia batismal... água benta...

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

Porque a senhora enlameia a minha honra.

(Saindo à esquerda.) Ai! Que desta vez até as suas tripas vão se sacramentar.

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

E o senhor ainda tem honra?

(Levanta-se vagarosamente, dirigi-se ao oratório, ajoelha-se.) Pai supremo,

EUZÉBIO

livrai-me desse satanás de porta-seios. Por que é que todo homem, ainda que seja sacristão,

(Apoplético) Verá!

há de ter uma D. Nazaré no seu caminho?

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ (Entra com uma vasilha – ou castiçal – transbordante de água.) Tome.

Tomara que não demore... Não tenha medo, homem, que não darei parte ao delegado. (Palmas da rua.)

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

(Bebe e lambe os lábios.) É saborosa. Tem um gostinho de santificação.

(Entrando, à direita.) Licença! (Traja uma batina branca, talhada de forma

D. NAZARÉ

diferente da tradicional, tem aspecto jovial e segura uma maleta.) Bom dia. Como vão,

Todo esse aparato, todo esse lero-lero somente porque ia eu revelar uma coisita

tudo azul?

que o senhor esconde.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Tudo o quê? Azul? V. Excia. Quem é?

O que é que eu escondo? D. Nazaré, não ofenda a minha fé!

PADRE ELIAS

D. NAZARÉ

Um reverendo, uai. Não estão vendo?

Fé... isto mesmo: fé... O senhor busca esconder a vontade que tem de fazer uma

D. NAZARÉ

fezinha comigo. EUZÉBIO Tenha compostura! A minha fé é uma fé banhada de pureza, não é uma “fezinha”

Vendo... revendo... reverendo... reverendo é nome de padre protestante. V. Excia. Equivocou-se, aqui é a paróquia da Imaculada Conceição. EUZÉBIO

indecente. E mude de conversa. Violentar uma mulher é algo muitíssimo delicado e

E adventista excomungado não pisa debaixo deste teto. É fineza se retirar.

perigoso.

PADRE ELIAS

D. NAZARÉ Ai! Que besteira. Eu sou viúva...

Calma, meu chapa. Que zelo franciscano é esse? O senhor não é fiscal da Alfândega!... Eu sou um sacerdote católico, na batata.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Não me interessa. A senhora é uma chantagista.

É?... Eu sou o sacristão Euzébio...

D. NAZARÉ

PADRE ELIAS

Nem sequer sei o que é “chantagismo”.

(Para D. Nazaré.) E a senhora, o que é que é?


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54

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Zeladora... D. Nazaré Coimbra...

O senhor não veio para suceder a padre Tadeu? Coitadinho, era um homem bom e

PADRE ELIAS

puro; se durasse mais acabaria fazendo milagre...

Satisfação em cumprimentá-los. (Aperta a mão de ambos.) Irmão Elias, à vossa

PADRE ELIAS

inteira disposição... EUZÉBIO

Vim por determinação do Arcebispado, acolitar o irmão Tadeu. O navio atrasou três dias, encalhado. O que aconteceu?

Deste quando padre veste batina desse tipo?

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Padre Tadeu a estas horas jaz entregue às minhocas.

Que esquisitice!

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Bronquite crônica temperada com pneumonia galopante...

(Reparando a indumentária deles.) Sacristão e zeladora é que não deveriam se

PADRE ELIAS

vestir assim, carnavalescamente. Para que toda esta escuridão? Estão fazendo propaganda

Morreu??? Ora viva!!!

de uma agência funerária ou pensam que religiosidade é como resina de laranja, que se

EUZÉBIO

concentra na casca? O Mestre ensina que nos compete cuidar primeiro do interior, para

(Espantado com a euforia do padre Elias.) Miserê...

não sermos como os sepulcros caiados.

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Está biruta...

Lucas, capítulo onze, versículo trinta e nove.

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

O Senhor percebeu o desastre que nós anunciamos? O Padre Tadeu hospedou-se

É o defeito de D. Iraneide, que não tem pejo de pintar toda a venta com um batom

na cova 415 do cemitério Bom Sossego, empacotado numa mortalha roxa... PADRE ELIAS

vagabundo, a se encher de brincos e anéis e a entupir a consciência de sovinice e despeito. PADRE ELIAS

E a extrema-unção?

Deixemos em paz o próximo que não está próximo. Por que não abriram a igreja?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

(Pedante) Eu ministrei!...

Não lhe comunicaram?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Formidável! Extraordinário! Este sim, ganhou passaporte para o céu.

Não. O quê?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Por que o senhor afirma com tanta convicção?

E o telegrama?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

(Distante) Afirmo o quê?

Que telegrama?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Que o padre Tadeu foi para o céu?

Não lhe comunicaram nada do telegrama?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Porque a morte dele, para mim, caiu do céu. E na hora agá, safando-me duma

Nem um grama...

arapuca.


55

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EUZÉBIO

EUZÉBIO

Arapuca?

Para perder de vez a liberdade?

PADRE ELIAS

D. NAZARÉ

Escreverei sem demora a D. Floriano. Sopa no mel. Não arredo mais o pé daqui. D. NAZARÉ (Para Euzébio, à parte.) Esse palavreado dele é de beira de praia. Igualzinho ao de um político pedindo votos em subúrbio.

Padre Elias, é o senhor um iluminado, um missionário que Deus escolheu para trazer sabedoria a estas bandas. Nunca ouvi um conselho tão providencial. EUZÉBIO (Para o padre Elias.) Observou a cidade?

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

O senhor não voltará?

Efetuei um voo de reconhecimento da pista logo depois do desembarque.

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Não. Preencherei a vaga do padre Tadeu.

Não possui mais de vinte mil habitantes.

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

É uma deslealdade. A vez é minha...

Mentira: vinte e dois mil fora os cachorros e os gatos...

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Vez de quê? Como quer desempenhar as funções de sacerdote? Não é um

O mercado é uma porcaria, uma sujeira.

sacristão?

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Isto é normal.

(Desnorteado) Sim... Sim... sacristão... antes do senhor nascer já era sacristão...

EUZÉBIO

um mero sacristão que não aprendeu o latim... contudo, eu esperava que me aproveitassem

As mulheres não seguem a lei divina e levantam falso testemunho.

para o cargo.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

É animador.

Se aquiete, meu caro. A igreja católica não é Autarquia. A carreira clerical é

EUZÉBIO

rígida. Às vezes, a promoção mais certa é a que nos transfere diretamente para o paraíso.

Animador?

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Eu me esforcei tanto...

Sim. A mão que a inveja faz atirar pedras, a compaixão obriga a lançar lírios.

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

(Paternal) Continue esforçando-se. Podemos servir a Deus sem ostentar o hábito.

(Para D. Nazaré.) Agora ele não falou como político.

O senhor é solteiro?

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

Falou como o leiteiro que me quer namorar.

Felizmente. Adoro a castidade.

PADRE ELIAS

D. NAZARÉ

(Para D. Nazaré.) É solteira?

Castidade!...

D. NAZARÉ

PADRE ELIAS

Viúva, às suas ordens...

Não seja antiquado. Não estrague a sua liberdade: se case.


57

58

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

(Fulo) Esse leiteiro é um cafajeste. Em cada litro de leite ele põe um pouco

Desgosto recolhido?

d’água. (Para o padre Elias.) Na sua terra é assim? PADRE ELIAS Não. Lá em cada litro d’água eles botam um pouco de leite.

PADRE ELIAS Desgosto, não, gosto. Gosto dos ambientes como este de gente simples e laboriosa. Além disso, me armarem uma cilada...

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Neste vilarejo temos apenas um ônibus desconjuntado, um tabelião cachaceiro e

Cilada?

um médico materialista.

D. NAZARÉ

PADRE ELIAS

Uma emboscada?

Se não tivesse nenhum veículo, melhor. Movimentar as pernas é um ótimo

PADRE ELIAS

exercício: revitaliza os músculos e mantém em segurança os nossos ossos. A embriaguês do tabelião pode ser produto de um drama íntimo; talvez seja uma necessidade fisiológica:

Mais ou menos. Um dos meus superiores chegou à conclusão sumária de que devia me “corrigir”.

determinados órgãos do corpo humano se conservam melhor no álcool. Quanto ao médico,

D. NAZARÉ

o essencial é a sua cultura e abnegação. É preferível ser ateu com sinceridade do que

Por quê?

religioso com hipocrisia.

PADRE ELIAS

D. NAZARÉ

Porque eu tenho ideias que ele não endossa. Sobretudo porque eu falo na gíria.

Apoiado, apoiado.

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

E falar na gíria não é pecado?

(Para Euzébio.) É por tudo isso que na minha opinião o senhor deveria se casar.

PADRE ELIAS

D. NAZARÉ

Neste país pecado é não falar na gíria. O sacerdote para ser amado, para esclarecer

Aprovado. O senhor, padre, é um colosso.

os humildes, tem que se expressar na linguagem do povo. Falar na gíria é falar o idioma

EUZÉBIO

dos pobres, dos analfabetos, e são estes os que mais necessitam da religião.

O meu sonho é ser pastor de almas...

D. NAZARÉ

PADRE ELIAS

E que armadilha lhe prepararam?

Conforme-se. Há muitos padres frustrados, que dariam excelentes pais de família.

PADRE ELIAS

E existem pais de família que são verdadeiros padres sem se ausentarem do lar. EUZÉBIO O senhor não me convence. Afinal de contas, por que tem tanto interesse em ficar aqui?

Estou na iminência de ser designado para uma luxuosa capela em Brasília, onde deverei lidar com políticos importantes... D. NAZARÉ (Com imensa comiseração.) Coitadinho.

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Há um motivo especial...

(Compadecido) Nesse caso, eu sou forçado a admitir que o senhor tem razão.

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Qual é?

Em face desta sentida e comovente manifestação de apreço, eu me declaro, solenemente, vigário desta paróquia.


59

60

D. NAZARÉ

EUZÉBIO

(Beijando-lhe a mão.) Com a graça do Altíssimo.

Tenho até acanhamento.

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

E da Virgem Mãe Santíssima. (Noutro tom.) Espere, e o decreto do Arcebispado?

(Pilheriando) Não é o capeta, não?

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

É... depois eu quebro este galho. Festejemos o acontecimento com um brinde.

Não, não é o capeta mas é um instrumento dele...

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Doravante o senhor é o chefe. (Tira da parte de baixo da estante, ou de uma das

Um saxofone?

gavetas da carteira, três copos, e os entrega à D. Nazaré.)

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

Uma mulher... (Para fora.) Desapareça! Isto é uma casa de respeito e orações...

Novamente água benta?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Deixe entrar.

(Para ela.) Traga o vinho da Missa.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

É... é.... a Ludovina.

Que heresia! (Benze-se)

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Ludovina era o nome de minha mãe.

“O que mata não é o que entra pela boca. O que mata é o que sai pela boca,

EUZÉBIO

porque procede do coração...”

Uma prostituta...

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Marcos, capítulo dez, versículo dezenove.

(Transtornado, batendo na mesa.) O senhor connheceu minha mãe?

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Desta feita deu uma fora. Isto está em Mateus, capítulo quinze mais ou menos.

Eu?...

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Não acredito. Por mais de trinta anos que leio a Bíblia e por mais de dez que

Se não provar que ela foi prostituta...

gravei quase todo o Novo Testamento. Verifiquemos. (Tira da estante um volume de capa

EUZÉBIO

negra e o manuseia; D. Nazaré sai, à esquerda.; ouvem-se palmas; Euzébio dirige-se à

Minha Nossa Senhora das Agonias, acuda-me. Prostituta é a Ludovina que está aí.

porta da rua e o padre Elias senta-se.)

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

(Retemperado) Mande entrar.

O que mata é o que sai pela boca... as palavras... Oh! Se todas as pessoas fossem

EUZÉBIO

mudas...

Pois não. (Para fora.) Entre. EUZÉBIO

LUDOVINA

(Para fora.) Que atrevimento! Que desaforo!

(Entrando: decote espalhafatoso, saia ultracurta.) Buenas!

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Quem é?

Bom dia, senhorita.


61

62

LUDOVINA

PADRE ELIAS

O senhor é o novo padre?

Sei.

PADRE ELIAS

LUDOVINA

Parece...

Tenho uma fama péssima.

LUDOVINA

PADRE ELIAS

O senhor é o tipo do artista de cinema.

Eu vi.

PADRE ELIAS

LUDOVINA

E você é um pedaço de perdição. (Nesta altura D. Nazaré vem entrando, à

A culpa é minha; sou proprietária de um cabaré.

esquerda, estanca e deixa cair os copos com o vinho, que se quebram.) Algum fantasma? D. NAZARÉ (Esfregando as pálpebras.) Não é possível...

PADRE ELIAS A proprietária é certamente a estrela mais disputada... Sim senhor, até neste quase sítio tem meretrício organizado.

EUZÉBIO

LUDOVINA

Uma profanação do recinto...

É...

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Que pieguice é esta?

A polícia não proíbe?

D. NAZARÉ

LUDOVINA

É ela uma... prostituta.

Não possuímos o alvará de autorização.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

E Maria Madalena era virgem?... E para que existem as igrejas, não é para os

Autorização de quem?

pecadores? Ou vocês liquidam este puritanismo meloso ou eu demito todos dois. E vamos

LUDOVINA

começar a por as coisas nos eixos. (Para Euzébio.) Abra as portas da igreja.

Da polícia...

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

É uma homenagem ao finado padre Tadeu...

A polícia ao invés de proibir fornece autorização por escrito?

PADRE ELIAS

LUDOVINA

Reverencie a memória dele seguindo os seus exemplos. Também se homenageia os mortos trabalhando pela fraternidade entre os vivos. Escancare todas as portas. (Euzébio sai à esquerda.) D. Nazaré, providencie moradia para mim. (D. Nazaré sai à direita, resmungado.) LUDOVINA

O delegado escalou uma patrulha de soldados para nos vigiar; à menor arruaça, prendem. PADRE ELIAS Resumindo: a polícia não proíbe, dá autorização por escrito e ainda colabora vigiando para que tudo corra às mil maravilhas...

É um padre bacana...

LUDOVINA

PADRE ELIAS

É o destino...

Obrigado.

PADRE ELIAS

LUDOVINA

Da polícia?

Eu sou a Ludovina.


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LUDOVINA

PADRE ELIAS

Não, nosso.

Desde que não seja o meu sacristão...

PADRE ELIAS

LUDOVINA

O destino é geralmente fruto de sementes que plantamos.

É o coronel Menacê.

LUDOVINA

PADRE ELIAS

Vim pedir a sua cooperação.

Quem é esse coronel Menacê?

PADRE ELIAS

LUDOVINA

Em que, para que e por quê?

É o prefeito, marido de D. Iraneide.

LUDOVINA

PADRE ELIAS

Eu...

Hum... hum... você me entregou uma arma poderosa...

PADRE ELIAS

LUDOVINA

(Indulgente) Dispense os rodeios e fale sem constrangimento. LUDOVINA

Quando espocar o escândalo ele não terá coragem de negar porque sabe que sou espoletada.

Estou grávida...

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

E o que resultará disso?

Isto é da profissão.

LUDOVINA

LUDOVINA

Resultará que D. Iraneide é uma mulher recatada, refinada, mas essas sonsinhas

O jeito é abortar...

quando se espinafram são de morte... (Displicente) Ela dará um tiro nele, ou ele dará um

PADRE ELIAS

tiro em mim, ou eu darei um tiro nela...

Não consinto!

PADRE ELIAS

LUDOVINA

Em qualquer hipótese terei que benzer um caixão... Muito lindo...

O senhor fala como se fosse o pai! E as despesas do parto? E a educação da

LUDOVINA

criança? E a irmã aleijada que eu sustento?

É esta a sua cooperação?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Se você suplica cooperação é porque me aceita como guia espiritual. Aceita ou

Confie em Deus e não se precipite. Advogarei a sua causa.

não aceita?

(Ludovina despede-se e sai, à direita.)

LUDOVINA

D. NAZARÉ

Aceito.

(Entrando pela mesma porta.) Chamo um carregador para conduzir a sua maleta?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Ouça: esta criança vai nascer de qualquer jeito. Se ela desaparecer

Não precisa. Onde é o correio?

misteriosamente de seu ventre eu atiçarei uma campanha para fechar o seu cabaré.

D. NAZARÉ

LUDOVINA

Nesta travessa, segunda esquina da direita. (Gesticula mostrando.)

De acordo. O grilo é que este filho tem um pai...

PADRE ELIAS Vou telegrafar para o Arcebispo. Um instante que iremos juntos. (Sai à direita.)


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SEGUNDO ATO

EUZÉBIO (Entrando à esquerda.) Cadê ele? D. NAZARÉ Foi ao correio. Bons lados o levem.

Cena vazia. Padre Elias entra da rua, à direita, senta-se à mesa e examina a papelada.

EUZÉBIO Não tem porte de um ministro de Deus. D. NAZARÉ É pintoso... EUZÉBIO Chi... a senhora já está falando na gíria??? Dê licença. (Sai à esquerda.) D. NAZARÉ Bossa nova. Esse padre pode não ser bom e puro, mas vai acabar fazendo milagre...

EUZÉBIO (Entrando, à esquerda.) Bom dia. Como suportou a noite? Os mosquitos não perturbaram o sono? PADRE ELIAS Não. Os mosquitos daqui são mais civilizados do que as pulgas do Rio de Janeiro EUZÉBIO (Olhando os documentos remexidos.) Que tal as dívidas? PADRE ELIAS Quilométricas. Falência total. Assumir uma paróquia nesta pindaíba é pior do que presidir um Instituto de Previdência. EUZÉBIO E qual a solução? PADRE ELIAS “Dolorosa interrogação...” (Levanta-se, passeia.) O senhor tem cigarros? EUZÉBIO (Aturdido) Cigarros para fumar??? PADRE ELIAS E por eu não? EUZÉBIO Padre fuma??? PADRE ELIAS Se fuma? Nas grandes cidades padre fuma cigarros, cigarrilhas, charutos e cachimbos; padre monta em lambreta, salta de paraquedas e joga futebol. É a evolução... O que me sugere para equilibrar as nossas raquíticas finanças? EUZÉBIO Regresse para a sua terra que eu descasco o abacaxi. PADRE ELIAS O que é descascar o abacaxi? O senhor já aderiu à gíria?


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EUZÉBIO

EUZÉBIO

(Desconcertado) É influência sua...

(Discordando) É o fim... (Continua escrevendo.)

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

(Olha para cima, estala os dedos.) Encontrei! Tome nota com atenção. (Euzébio

Artigo terceiro: Casamento de moça de mais de vinte anos, grátis.

pega lápis e papel.) Estas são as medidas preliminares para a salvação de nosso barco.

EUZÉBIO

Artigo primeiro: Todos os débitos da paróquia da Imaculada Conceição, feitos pelo

Curtiremos fome...

falecido padre Tadeu, não serão saldados. O vigário atual da paróquia toma esta

PADRE ELIAS

deliberação a fim de cumprir um axioma, que diz que, duas vezes que... que quem... EUZÉBIO

Casamento de moça de menos de vinte anos, tabela especial: em lugar de trezentos cruzeiros, mil novecentos e noventa e cinco cruzeiros.

Assim são quatro quês fora o quem.

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

(Radiante) Agora sim. Nesta igreja nunca uma noiva teve mais que dezenove

(Pausadamente) Um axioma que diz que quem compra fiado é que deve pagar.

anos.

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

A palavra pagar é sobra. Chega o deve. Para que deve pagar? Aquele que deve é que deve pagar.

Observação: para o ato de matrimônio pede-se a certidão de idade somente do noivo.

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Leia o que rabiscou.

Positivo.

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

O vigário da paróquia atual...

Artigo quarto: As famílias católicas que viverem em plena harmonia, sem rusgas e

PADRE ELIAS

sem arengas, formarão na primeira, segunda e terceira filas da procissão; para compor

O vigário atual da paróquia. (Euzébio emenda.)

essas filas contribuirão com cem cruzeiros. Nota: a procissão sairá quatro vezes na próxima

EUZÉBIO

Semana Santa.

(Repetindo) O vigário atual da paróquia toma esta deliberação a fim de cumprir um axioma, que diz que quem compra fiado é que deve.

EUZÉBIO Nadaremos em dinheiro. Tenho notado que em todo o trajeto da procissão os

PADRE ELIAS

casais se derretem de amores.... As três filas não chegarão; os nossos fiéis são uns

Ponto e vírgula. (Lento) Consequentemente, os fiados do padre Tadeu nós não

querubins: quando alguém aparece de queixo inchado é sempre “dor de dentes”...

resgataremos. Parágrafo único: as reclamações dos que se presumirem lesados, em vez de

PADRE ELIAS

serem formuladas às autoridades públicas deverão ser endereçadas ao Criador, que

Artigo quinto: Quem obtiver uma graça difícil, em vez de fazer jejum, ou

recompensará a todos com sua inesgotável Misericórdia... Artigo segundo: O preço do

qualquer outra mortificação, agradará o santo protetor depositando quinhentos cruzeiros

batizado não será mais duzentos cruzeiros.

sobre a toalha do altar-mor.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Um batizado vale quinhentos cruzeiros. Com elogio aos padrinhos, setecentos.

Bravos. Bravíssimo.

PADRE ELIAS Preço do batizado: quarenta cruzeiros. Operário desempregado não paga.


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PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Artigo sexto: A paróquia agradece, sensibilizada, os cinco mil cruzeiros que a

Genial, genial. Neste município o único casal que não tem filhos é o coronel

Prefeitura lhe destinará, mensalmente, como subvenção.

Menacê com D. Iraneide. Os outros, se têm poucos, têm três ou quatro.

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Aposto que isso o senhor não conseguirá. O coronel Menacê é um prefeito

Artigo décimo: Revogam-se as disposições em contrário. Copie à máquina e

ranzinza.

distribua cópias para os frequentadores da igreja. São os meus “dez mandamentos”.

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

(À parte.) Abençoada gravidez, a da Ludovina... (Para Euzébio.) Artigo sétimo:

Por estes dez mandamentos nota dez para o senhor.

Convidamos os protestantes e os espíritas a prestigiarem a fundação de um colégio para

PADR ELIAS

alfabetização de adultos; aceitamos qualquer donativo; os protestantes poderão nos enviar

Quantas velas grandes acendemos diariamente?

meia dúzia de dólares, com os quais nos será fácil adquirir vários milheiros de tábuas,

EUZÉBIO

pacotes de pregos, latas de tinta, carradas de areia, e mais alguma coisa; os espíritas

Uma dúzia à tarde e duas à noite.

poderão nos mandar mensagens mendiúnicas de incentivo: em retribuição, mão

PADRE ELIAS

apontaremos os protestantes que possuem retratos de santos atrás da porta, nem

Trinta e seis. Quanto cobram por uma vela?

deixaremos de batizar os filhos dos espíritas.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

As grandes custam cada uma cinco cruzeiros.

Uff! Mais compassado.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Cinco vezes seis trinta, vão três, cinco vezes três, quinze e três dezoito. Cento e

Artigo oitavo: As madames chiques desfrutarão da livre entrada no templo, aos

oitenta cruzeiros. Multiplicados por trezentos e sessenta e cinco dias perfaz... (Efetua a

domingos, na Missa das dez, para o costumeiro e inevitável desfile de modas. É permitido

operação a bico de lápis e exclama com ênfase.) Sessenta e cinco mil e setecentos

virem com modelos aerodinâmicos, super funcionais, desde que não ultrapassem os limites

cruzeiros em um ano. Que esbanjamento faraônico.

da decência e ponham cento e cinquenta cruzeiros na bandeja das esmolas. Para evitar

EUZÉBIO

esquecimentos o vigário fará pessoalmente a coleta.

E a iluminação dos santos?

EUZÉBIO Não mereço a sua confiança?

PADRE ELIAS Para que dispomos de luz elétrica? Não se gasta mais nenhum centavo em cera;

PADRE ELIAS

adaptaremos lâmpadas de cores em todos os nichos; para ornamentá-los usaremos flores

Comigo elas darão mais, por exibição. Artigo nono: A paróquia informar-se-á, no

artificiais, que não secam nem murcham.

Cartório, quanto à data do nascimento de todos os meninos e meninas filhos de pais

EUZÉBIO

católicos. Quando um deles aniversariar, o vigário irá apresentar-lhe os seus parabéns,

D. Nazaré sabe fazer. (Palmas da rua.)

levando-lhe um catecismo com gravuras em tecnicolor. Esta vista de cortesia não custará

PADRE ELIAS

nada; todavia, do sermão domingueiro, constará a quantia que os pais do nataliciante

Atenda.

oferecerem ao padre, espontaneamente...

EUZÉBIO (Na porta.) Salve! Um momentinho. (Para dentro.) É a D. Iraneide, esposa do prefeito. Quando encontro com esta mulher de manhã cedo, o dia todo é azarado.


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PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Isto é superstição. Não alimente crendices. Mande entrar.

Eu não sei datilografar.

EUZÉBIO

D. IRNANEIDE

(Introduzindo D. Iraneide na sala.) Seja bem-vinda, minha senhora.

Peça à secretária dele.

D. IRANEIDE

EUZÉBIO

Bom dia, padre.

Eu não sei quem é.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Bom dia.

É a D. Miguelina, uma que tem as pernas tortas...

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

(Apresentando-a solícito.) Esta é a virtuosíssima esposa do nosso venerável

Vá logo, seu Euzébio. EUZÉBIO

Prefeito. PADRE ELIAS

Com licença. (Sai à direita.)

Satisfação em conhecê-la. Padre Elias, ao seu dispor.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Sou todo ouvidos, D. Iraneide.

(Com visível nervosismo.) Obrigada.

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

É um problema melindroso... o senhor é tão jovem...

Sente-se, por gentileza.

PADR ELIAS

D. IRANEIDE

Idade não é garantia de retidão moral. Existem homens que quanto mais

O senhor... poderíamos conversar reservadamente?

envelhecidos mais sem vergonhas...

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

(Para Euzébio.) Abriu as portas da igreja?

E mulheres também...

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Abri. PADRE ELIAS

As mulheres se regeneram com mais antecedência, por falta de preparo físico; mulher depois dos quarenta é como automóvel de segunda mão...

Deu uma varridela no assoalho?

D. IRANEIDE

EUZÉBIO

(Prescrutadora) Como o senhor define a senvergonhice?

Isso é com a D. Nazaré. Ela chegou e saiu: na certa foi atrás do leiteiro.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS É preciso datilografar os meus “dez mandamentos”.

Senvergonhice não se define, pratica-se. É uma fatalidade na vida das pessoas ditas normais; entretanto, subordina-se a circunstâncias atenuantes ou agravantes.

EUZÉBIO

D. IRANEIDE

Máquina só na prefeitura.

Como assim?

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

Vá à prefeitura e diga ao Menacê que...

Senvergonhice tanto pode ser o rapazola gazetar uma aula, como o velho professor cheirar o pescoço de uma aluna. Depende tudo da intenção.


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D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

Adultério é senvergonhice?

Não, não julgaria.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

(Impassível) O adultério é uma das modalidades mais dolosas da senvergonhice.

Como interpretaria a minha doidice?

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

Uma das modalidades mais gostosas?... PADRE ELIAS Dolosas... É uma senvergonhice, infelizmente, vulgarizada em todo o universo. E aliás está na moda.

Não interpretaria... São muitas as categorias de adultério, e os especialistas na classificação desse gênero de pecado “falham mais do que isqueiro molhado”. D. IRANEIDE Por quê?

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

Quer dizer que é uma senvergonhice mas não é uma SENVERGONHICE.

Porque também são adúlteros em potencial.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Se o Cristo recomendou que não julgássemos os semelhantes foi porque sabia que

O senhor é um homem inteligente.

somos incapazes de devassar o coração alheio. O adultério, em essência, é mais fraqueza

PADRE ELIAS

do que maldade. O adultério da mulher, diga-se de passagem, porque o do homem não é

Obrigado.

fraqueza, é praxe. E o curioso é que sendo o homem um adúltero no mais alto grau,

D. IRANEIDE

revolta-se, sedento de vingança, quando é traído pela esposa, como se a mulher também

Cometi uma horrível imprudência...

não fosse sujeita aos desequilíbrios do sexo.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Sim?

Por que a sociedade condena tão rudemente adultério?

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

O senhor já “pescou”, não é? (Pausa.)

Os homens possuem acentuada inclinação para combater nos outros as suas

PADRE ELIAS

próprias iniquidades. É uma forma suave de autocondenação. No fundo, cada um

Quantos anos de casada?

reconhece as suas deficiências mas não tem coragem de admiti-las.

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

Vinte e um. (Pausa.)

Se eu lhe revelasse que enganei o meu marido, o que o senhor diria?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

“Incompatibilidade de gênios”?

Nada. Que tenho a ver com isso?

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

Não. Embora o Menacê seja um boêmio frequentador assíduo da pensão da

E o que pensaria?

Ludovina. Sai depois do jantar e só retorna ao amanhecer.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Pensaria que a senhora é infeliz e, sendo infeliz, merece a minha solidariedade.

A senhora mantém relações cordiais com a Ludovina?

D. IRANEIDE O senhor não me julgaria uma...


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D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

Quem, eu??? Não... Não poderia manter relações cordiais com uma prostituta...

Algum legionário da Congregação Mariana?

Sou a presidente do Clube Municipal...

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

O senhor chegou ontem, não?

As prostitutas profissionais, D. Iraneide, são as mais honestas; pelo menos não

PADRE ELIAS

encobrem as suas ações com o véu do fingimento. Não menospreze a sua colega.

Sim.

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

Colega??? PADRE ELIAS Exatamente. Traindo o seu esposo a senhora se transformou numa prostituta. A diferença é que a Ludovina tem uma outra justificativa...

Ainda não foi apresentado a ele... o Zé Pedro detesta se aproximar da Igreja e de padre. PADRE ELIAS Por quê?

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

Qual?

Porque ele acha que é o único líder do povo pobre daqui.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Ela aluga o corpo porque não dispõe de meios para cuidar da irmã enferma. No

O único?

meu parecer isso é uma prostituição altruística, elogiável até... D. IRANEIDE O senhor insinua que comigo se deu o inverso?... Que tendo bastante recursos aluguei um corpo masculino para satisfazer um capricho cínico?...

D. IRANEIDE No dia dois de fevereiro o Zé Pedro, que é empregado na olaria do meu marido, veio à minha casa, às nove horas da noite, rogar um vale de duzentos cruzeiros para comprar umas injeções; sua mãe gemia com uma crise de asma. O Menacê tinha saído para

PADRE ELIAS

o habitual serão na Prefeitura, que se encerra, invariavelmente, na pensão da Ludovina. Eu

Que raciocínio! Não se martirize à-toa. O seu remorso é um atestado de que não

cedi ao Zé Pedro uma cédula de mil cruzeiros; não tinha miúdo. Mais tarde, umas onze

perdeu a dignidade. D. IRANEIDE Se o Menacê souber é provável que me dê um tiro. Sua noção de honra é muito avançada.

horas, ele voltou para trazer o troco. Os vizinhos dormindo... eu sozinha.... Oh!...meu Deus... (Chora copiosamente.) PADRE ELIAS Suspenda a narração... Qual foi o móvel da ação?

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Não creio... Como são imbecis os homes que assassinam friamente para “lavar a

A cama. Que importância tem o móvel?...

honra com sangue”!... É o cúmulo da covardia! Eles ensaiam a palhaçada frequentemente

PADRE ELIAS

por cabotinismo: para verem a fotografia nos jornais, aureolada com a coroa dos heróis, e

Toda prevaricação, todo adultério, origina-se de uma causa substancial. Em suma,

porque se escudam na certeza de serem absolvidos no Tribunal do Júri, onde rareiam os votos das mulheres. Mas... vamos à sua epopeia. Quem a seduziu? D. IRANEIDE Um moço inexperiente...

por que fez concorrência com a Ludovina? D. IRANEIDE A tentação do momento... O desejo de me vingar do Menacê... Um outro desejo... carnal... dominador... e depois... depois... o meu ideal é ter um filho!...


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PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

E o coronel Menacê?...

Tenho a impressão de que o senhor brevemente rezará num velório... Se o Menacê

D. IRANEIDE

souber fuzilará Zé Pedro ou a mim.

A princípio eram os nossos germes que não combinavam. Submetemo-nos a um

PADRE ELIAS

tratamento longo e dispendioso... PADR ELIAS

Talvez apele para o suicídio como melhor solução... A senhora quer mesmo este filho?

Não deu resultado?

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

O senhor não me aconselha abortar, não?

No anos passado o médico garantiu que eu estava pronta para conceber, podia até

PADR ELIAS

ter mais de um filho... porém o Menacê... cinquenta e cinco anos... PADRE ELIAS

Acha-me com cara de infanticida? Para que fez a senvergonhice com o “inexperiente” Zé Pedro?

Esse Zé Pedro, quantos anos tem?

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

Como lhe disse... para... para ter um filho...

Uns vinte e cinco.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS Casado?

Quem sabe se perante Deus isso não é também uma prostituição altruística e elogiável?!

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

Solteiro.

Eu não sei. O senhor sabe?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Vou lhe receitar uma penitência. Advertindo, entretanto, o seguinte: as

Não, não sei. De qualquer maneira CRIAR uma vida é algo meritório. Vá para

penitências que eu prescrevo só são eficazes estando a pessoa no propósito de não recair no

casa e comece a costurar as fraldas. (Entram abruptamente, à direita, Euzébio e o

mesmo pecado.

Prefeito.)

D. IRANEIDE

CORONEL MENACÊ

Isto eu afianço com absoluta convicção.

(Colérico) Isto é um ultraje à minha honorabilidade.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Está tão segura de si?

(Estática) Nossa Mãe!

D. IRANEIDE

EUZÉBIO

Sim... já tenho o que queria... PADRE ELIAS

(Servil) Padre Elias, este é o coronel Menacê, prefeito de incomparável tirocínio administrativo.

A senhora?...

CORONEL MECANÊ

D. IRANEIDE

(Gritando) Que farei diante desta ignominia?!

Estou grávida... Gravemente grávida... Grávida do Zé Pedro.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Diminua o tom de voz que isto aqui não é a casa da sua sogra.

Esta não! E o seu marido?


79

80

D. IRANEIDE

CORONEL MENACÊ

Padre... eu vou orar umas ave-marias por conta da penitência. (Trata de escapulir

A nojenta subvenção da paróquia. (Para D. Iraneide.) Você?...

para o interior do templo.)

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

Vim fazer penitência para alcançar uma graça...

Espere. (D. Iraneide senta-se.) Inicialmente, seu Prefeito, cientifico-o que não

CORONEL MENACÊ

possui um pingo de educação e de que esta sala...

Que graça?

EUZÉBIO

D. IRANEIDE

De respeito e orações...

É... depois... depois lhe direi.

PADRE ELIAS

CORONEL MECANÊ

Esta sala não é gafieira da Ludovina. O senhor com este derrame de boçalidade

(Para o Padre Elias, sobriamente.) Eu...

não me intimida.

PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

Sente-se. As amizades mais duradouras começam com bofetadas.

(Autoritário) Eu exijo...

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

Concordo. Não concordo é com a subvenção.

Exige no forró de suas negas. Aqui o senhor pede. Neste terreiro o galo que canta

EUZÉBIO

sou eu.

(Para o padre Elias.) Ele leu e não deixou a secretária datilografar. EUZÉBIO

D. IRANEIDE

(Benzendo-se) Valha-me, minha Nossa Senhora! Padre Elias, o senhor é um

Padre Elias, em que santuário devo rezar a penitência?

pastor de almas... PADRE ELIAS (Indignado) Feche esta boca fofoqueira! Porque eu sou sacerdote devo ser

PADRE ELIAS Penitência de mulher casada é na cozinha, enquanto a panela ferve... reze oito salve-rainhas, até o feijão amolecer.

efeminado? Acaso Jesus dói um molongó, um palerma? Não consta dos Evangelhos que

CORONEL MENACÊ

ele deu uma surra de chicote nos vendilhões do templo? (Para Menacê.) Ou o senhor se

É, vá indo. (D. Iraneide despede-se e sai, à direita.)

comporta como deve ou eu lhe aplico o Evangelho do cacete!!!

PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

O senhor não dá a subvenção, hein?

Isto é uma cachorrada! É uma afronta às minhas imunidades.

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

Não. A prefeitura atravessa um período deficitário. Regime de compressão de

Essas imunidades em homens da sua laia se prestam unicamente para estimular o roubo, a corrupção, as falcatruas de toda espécie, e para cavar o túmulo da democracia.

despesas. PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

Hum... o velho papo da falta de verbas...

(Taxativo) Pois eu não libero verba, seu padre desordeiro. E...

CORONEL MENACÊ

D. IRANEIDE

E tem mais: eu não tolero imposição.

(Pasma) Que verba?

PADRE ELIAS Tolera, sim...


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CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

O senhor graceja? Se é para rir mande o sacristão fazer uma cosquinha no meu

(Em apuros.) O senhor ouviu o que eu disse?

sovaco. (Euzébio dá as costas.)

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

Ouvi.

Não é para rir, é para chorar. O senhor dará, prazerosamente, a subvenção; ou as

PADRE ELIAS

subvenções....

Mas eu não disse nada...

CORONEL MENACÊ

CORONEL MENACÊ

Como???

O Zé Pedro não é pilantra. É um rapaz correto, instruído e estudioso. Tem o curso

PADRE ELIAS

ginasial. Dizem que ele veio da capital há três anos porque feriu dois guardas-civis numa

Uma para a igreja, outra para a Ludovina.

arruaça política.

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

(Indeciso) O senhor...

Cada vez me engano mais... O senhor não está propenso a trucidar o Zé Pedro?

PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

Seu Euzébio, volte à prefeitura, dê os meus “dez mandamentos” à secretária do

Eu??? Ele é que quando descobrir me retalhará com a sua peixeira.

coronel para ela datilografar em quatro vias, e diga-lhe que o prefeito determinou isso.

PADRE ELIAS

(Euzébio sai à direita.)

Ele... D. Iraneide...

CORONEL MENACÊ

CORONEL MENACÊ

Padre...

Tenho um palpite que um de nós esticará as canelas.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Estou a par da gravidez de Ludovina. O senhor oferecerá a ela a mesada de três

Que embrulhada!

mil cruzeiros, além de arcar com as despesas da parteira e dos medicamentos. E depois do

CORONEL MENACÊ

primeiro ano, já sabe: correção monetária, além da correção moral.

Não entendeu?

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

(Totalmente transformado.) Se souberem estarei arrazado.

“Estou mais por fora do que língua de enforcado”.

PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

Ninguém saberá. A menos que a verba da paróquia caia em exercício findo. CORONEL MENACÊ A minha maior preocupação é a Iraneide. Coitadinha, tão dedicada, tão leal... (Lagrimoso) Padre, eu tenho uma pena da minha mulher!...

O Zé Pedro é o xodó da Ludovina; quando ele souber que ela engravidou de mim... PADRE ELIAS Agora clareou... Descanse que eu desmancharei este nó de quatro pernas.

PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

(Entre os dentes.) Ah! Zé Pedro pilantra...

Como agirá?

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

Pilantra, não.

Não se incomode. Conte com a minha assistência incondicional e desinteressada. Tanto quanto eu conto com as subvenções...


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84

CORONEL MENACÊ

D. NAZARÉ

Obrigado. (Despede-se e sai à direita.)

São para o meu mui querido Santo Antônio.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

(Em frente do oratório.) Senhor, me arranca dessa. Que hei-de fazer? A Ludovina

Santo Antônio aniversaria hoje?

é o xodó do Zé Pedro e está grávida do Coronel Menacê; a D. Iraneide é esposa do coronel

D. NAZARÉ

Menacê e vai ter uma criança por obra e graça do Zé Pedro. É muita senvergonhice junta!

Não. Sou devota dele há treze anos.

E como é que tu, oh! Deus, crias os teus filhos do mais torpe adultério? Sim, são teus filhos

PADRE ELIAS

e por isso vão nascer nem que “chova canivetes”. Uma existência humana é mais

E o seu Euzébio ainda não caiu na ratoeira?

importante do que um milhão de catedrais... Oh! Senhor, perdoa-me. Tudo é natural... a

D. NAZARÉ

senvergonhice é natural... tu não dissestes que a carne é fraca?... Paciência... Não leves a

“Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. (Sai à E.)

mal minha ousadia. Só sei orar expondo a ti os meus sentimentos com franqueza e sem

PADRE ELIAS

subterfúgios. A prece não é uma conversa da criatura com o seu Criador? Por que, então,

Algum quiproquó?

não ser uma conversa sincera?

ZÉ PEDRO

D. NAZARÉ

Desfecharemos uma greve na olaria do coronel Menacê. Centa e oitenta operários.

(Entrando à direita com Zé Pedro e um buquê de flores.) Bom dia, irmão Elias.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

E o que é que o pacato vigário da paróquia tem a ver com a greve dos ilustres

Bom dia. D. NAZARÉ Este é o Zé Pedro.

artistas em confecções de barro? ZÉ PEDRO Vim lhe dizer que não deve jogar o povo e as autoridades contra nós. O Coronel

ZÉ PEDRO

Menacê, com as regalias de prefeito, tentará nos derrotar recorrendo a esse golpe baixo. O

Bom dia.

senhor não deve se intrometer...

PADRE ELIAS Seja bem vindo.

PADRE ELIAS Eu não devo o quê? Quem é você para ditar-me regras de conduta? Nesta igreja

D. NAZARÉ

ninguém faz farol, ninguém alardeia valentia. Se deseja pedir um favor, peça; se não deseja

Ele veio debater com o senhor...

suma desta sala.

ZÉ PEDRO

ZÉ PEDRO

O assunto é uma greve.

Sumo com muito prazer, só vim para avisar. Pensa que eu preciso do senhor? Eu

PADRE ELIAS

sou ateu.

Sente-se (Para D. Nazaré.) Quem é o aniversariante?

PADRE ELIAS

ZÉ PEDRO

Ateu... Por que é ateu?

Por quê?

ZÉ PEDRO

PADRE ELIAS

Porque não creio em Deus.

As flores...

PADRE ELIAS E o que é Deus?


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ZÉ PEDRO

PADRE ELIAS

Não sei. Indague dos católicos praticantes, dos católicos simpatizantes e dos

(Enigmático) Não arrebentará...

católicos farsantes. Pelas descrições que tenho ouvido é um rei gordo, vermelho e barrigudo, que repousa num trono reluzente, todo estufado com espuma de “náilon” americana...

ZÉ PEDRO O senhor me irrita! Já disse que a greve arrebentará e arrebentará nem que eu tenha de derrubar esta igreja reacionária. Em que o senhor se fia?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Que mentalidade tacanha! Está bem.

Na gravidez de D. Iraneide... na espingarda do Coronel Menacê... na aflição de

ZÉ PEDRO Está bem... Está bem... Para os padres tudo está bem... Enquanto nós trabalhamos

Ludovina vendo o seu cadáver... ZÉ PEDRO

como cavalos para ganhar míseros tostões, os senhores ganham milhões para não

O senhor?... ela confessou?... ela...

trabalhar...

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Com todo este nervosismo você é o líder de cento e oitenta homens?

Quem que não trabalha??? (Incisivo) Explique-se senão lhe achato um olho.

ZÉ PEDRO

ZÉ PEDRO

(Completamente mudado.) Padre, evite esta tempestade...

Eu arraso com a saúde, dando duro das sete da manhã às seis da tarde, e no fim da

(Começa a rir de repente.)

quinzena não recebo um níquel; só os vales. O senhor não tem patrão, não suja as unhas,

PADRE ELIAS

não escuta repreensões, não traz os bolsos vazios...

Enlouqueceu? Ou isso é um ataque de hidrofobia?...

PADRE ELIAS

ZÉ PEDRO

Eu não lhe dou um tabefe porque você é um retardado, um débil mental. Quem

Não, não enlouqueci. (Ri mais uma vez.)

lhe informou que padre não trabalha, não se esgota, não traz os bolsos vazios? Encontro-

PADRE ELIAS

me numa apertura mil vezes pior do que a sua. Se no prazo de oito dias não arrecadar trinta

Incorporou algum espírito zombeteiro?...

mil cruzeiros para consertar uma parede rachada deste prédio, eu é que entrarei em greve.

ZÉ PEDRO

Cerro as portas da igreja e o pessoal que reze no meio da rua. ZÉ PEDRO

Não, somente me recordei que o senhor está impossibilitado de revelar minha safadeza com D. Iraneide.

Isso é demagogia...

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

(Intrigado) Impossibilitado???

É real. E nos selaremos um pacto. Como você não vai mesmo fazer a sua greve,

ZÉ PEDRO

apoiará a minha.

Sim. O segredo da confissão não é inviolável?...

ZÉ PEDRO

PADRE ELIAS

(Reagindo à altura.) Quem não vai fazer a greve???

(Apreensivo) Por esta eu não esperava... Confissão... eu disse confissão?

PADRE ELIAS

ZÉ PEDRO

Você.

Não disse?

ZÉ PEDRO

PADRE ELIAS

Uma joça! A greve arrebentará na próxima semana.

(Ri no mesmo diapasão.) Ora, ora, ora...


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ZÉ PEDRO

ZÉ PEDRO

Incorporou o Espírito Santo?

Eu não gosto de Deus. Se ele de fato existe é o culpado de todas essas desgraças.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

(Peremptório) Confissão autêntica é no Confessionário. Ela falou comigo nesta sala...

Tenha fé na justiça. A fé na justiça é tão poderosa quanto a fé em Deus. Não desanime.

ZÉ PEDRO

ZÉ PEDRO

Não deixa de ser confissão.

Adeus, padre. (Sai)

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

(Vencido) É...(Transição) Que confissão? Não houve confissão. O que houve foi confidência. ZÉ PEDRO (Entregando os pontos.) Padre... PADRE ELIAS Elias, às suas ordens, para um entendimento amigo ou uma briga violenta, você é quem decide o que prefere. ZÉ PEDRO (Implorativo) O senhor não empastelará a nossa greve... Estamos com fome, endividados, ao passo que o coronel Menacê faz farras e mais farras na pensão da Ludovina; quase toda noite dorme com ela. PADRE ELIAS E por que você não interfere? Não é o xodó da Ludovina? ZÉ PEDRO Se eu expulsar o prefeito do quarto dela quem aviará as receitas de sua irmã? PADRE É triste... É re-vol-tan-te!... ZÉ PEDRO Prometa que estará conosco... PADRE ELIAS Prometer não prometo. Contudo, vá tranquilo. ZÉ PEDRO O senhor... PADRE ELIAS Não se preocupe. Tenha fé em Deus.

Fé em Deus... Fé na justiça... Qual das duas é a mais verdadeira?


89

TERCEIRO ATO

90

EUZÉBIO O Coronel Menacê, o Zé Pedro, a Ludovina, D. Iraneide, todos. O que acontecerá?

A sala apresenta aspecto de geral modificação, como se o padre tivesse modernizado tudo.

PADRE ELIAS É impossível prever. EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Eu queria lhe falar... mas a atmosfera anda tão fumacenta...

(Lendo as Escrituras.) “Quanto a Jesus, foi para o monte das Oliveiras; mas ao

PADRE ELIAS

romper do dia, voltou ao templo e todo o povo veio ter com ele que, sentando-se, entrou a

Prenúncio de furacão.

ensiná-lo. Então os escribas e os fariseus lhe trouxeram uma mulher, que fora apanhada em

EUZÉBIO

adultério, e a puseram no meio de toda a gente. E disseram a Jesus: – Mestre, esta mulher

O meu caso pode ser adiado.

acaba de ser apanhada em flagrante adultério... Na Lei ordenou-nos Moisés que

PADRE ELIAS

apedrejássemos semelhantes mulheres; tu, pois, que dizes? Com esta pergunta queriam

Não, por quê? Vamos lá, ponha para fora.

experimentá-lo para terem do que o acusarem. Jesus, porém, abaixando-se, pôs-se a

EUZÉBIO

escrever no chão. Como insistissem na pergunta, ele se levantou e lhes disse: – “Aquele

Eu me sinto sem fôlego.

que dentro vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire a pedra”. E, tornando a

PADRE ELIAS

abaixar-se, continuou a escrever no chão. Os que o interrogaram, ao lhe ouvirem a

Não desperdice o ensejo, daqui a uns cinco minutos talvez seja tarde...

resposta, foram saindo um por um, a começar pelos mais velhos até os últimos, ficando só

EUZÉBIO

Jesus e a mulher que estava no meio. Erguendo-se, Jesus lhe perguntou: – “Mulher, onde

Por quê?

estão eles? Ninguém te condenou?” Respondeu ela: – “Ninguém, senhor. Disse Jesus: –

PADRE ELIAS

“Nem eu tão-pouco te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais.” Aquele que

Por causa de um defunto.

dentre vós está sem pecado seja o primeiro que lhe atire a pedra... (Suspende a batina, tira

EUZÉBIO

cigarros e fósforos da calça, fuma.) Que sinuca! A Ludovina não pode mais camuflar a

Depois de sepultarem o defunto o senhor me atenderá.

barriga. A D. Iraneide também não pode esconder a gravidez. O nó tem que ser desatado...

PADRE ELIAS

E é hoje. Vou botar tudo em pratos limpos...

E se o defunto for o Padre Elias?

EUZÉBIO (Entrando à direita.) Dei o recado a todos.

EUZÉBIO O senhor???

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Eles virão?

Sim.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Virão.

Virgem, Mãe do Céu. (Benze-se) Estou assombrado.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Todos?

Com tão pouca coisa? Então prepare-se para receber uma enorme emoção. Uma emoção dulcíssima, que arrancará pérolas cintilantes de seus olhos... Uma emoção...


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92

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Já estou emocionado...

O responsável pelo filho.

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Pronto para receber uma bomba?

E não é o senhor?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Bombardeado, já... PADRE ELIAS

Não. Eu permaneço ainda imaculado... Conservo a pureza do batismo... Se morresse hoje seria um anjo...

(Rindo) O senhor ainda não sabe?

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

Se topava com D. Nazaré por que não se declarou?

(Desesperado) Saber como???

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

Isto aqui é uma casa de respeito e orações.

Necessariamente não ignora. É o autor...

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

(Sorrindo) Vou dar uma olhadela no cofre da padroeira. (Sai à esquerda.)

Autor???

EUZÉBIO

PADRE ELIAS Sim. Autor de D. Nazaré. Ou, mais detalhadamente: autor da gravidez de D.

Quem diria que a D. Nazaré me enganaria! Quem diria!... (Soluça compungidamente; D. Nazaré entra à direita; ele, de costas, não a vê.) Oh! Jesus, como é amargo o meu sofrimento!... Como amo a D. Nazaré! Tão bonita!... (D. Nazaré deixa cair

Nazaré. EUZÉBIO

um ramalhete de rosas que traz e ele se espanta com o baque.) A senhora???

(Caindo numa cadeira, comicamente.) Uma vertigem...

D. NAZARÉ

PADRE ELIAS

Sim, seu Euzebiozinho. O senhor é também tão bonito!... Tão cavalheiro!... Tão

Não lhe alertei que a emoção seria forte?! Todo homem fica atordoado quando sabe que vai ser pai.

galante!... Tão irresistível... EUZÉBIO

EUZÉBIO

Desapareça da minha vista!!!

Pai??? Pai??? Eu???

D. NAZARÉ

PADRE ELIAS

Ué?!...

Não negue.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

A senhora é uma mulher sem pudor.

Nego, nego, nego. Jamais tive tamanha intimidade com D. Nazaré! A prova disso

D. NAZARÉ

é que ia lhe dizer, neste instante, que pretendia noivar com ela no ano que vem. Que

(Inocente) Eu??? Por quê???

decepção! (Contrafeito, choroso.) Tudo por águas abaixo. D. Nazaré foi ingrata para mim.

EUZÉBIO

Tanto tempo convivendo comigo e no fim me abandonar por outro...

Nunca mais desejo vê-la. Não sabia que eu simpatizava consigo?

PADRE ELIAS

D. NAZARÉ

Que outro?

Ai! E o senhor me disse?


93

94

EUZÉBIO

EUZÉBIO

E por que eu não disse tratou de arrumar um Adão?

Como???

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Adão???

Suspeito que é o Nizomar, porém não afirmo...

EUZÉBIO

EUZÉBIO

E o danado desse padre, como se não fosse bastante a sua patifaria, ainda me taxa

E existe a possibilidade de ser outro?

de autor do seu Caim.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

O seu Genivaldo ou o seu Agostinho...

Adão?... Caim?... O que quer dizer?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Três???

(Impiedosamente satírico.) Que a senhora comeu a fruta proibida.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Apenasmente.

Que fruta proibida?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Tarada! A senhora é uma tarada.

A maçã.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Eu???

Que maçã?

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Sim! T-A-R-A-D-A!!!

A maçã da senvergonhice...

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

O senhor me respeite, seu MARICAS!

Isto tanto tempo faz que não mais sei o sabor... Há dezenove anos que meu

EUZÉBIO

maridinho morreu.

Respeitar uma prostituta?

EUZÉBIO

D. NAZARÉ

(Mordaz) D. Nazaré Inocência dos Prazeres..

Prostituta??? (Quase desmaia.) Prostituta é a... é a rapariga da sua irmã com toda

D. NAZARÉ

a parentela.

(Idem) Sr. Euzébio dos Prazeres Inocentes...

EUZÉBIO

EUZÉBIO

E os diversos pais de seu filho?

Quem é o pai?

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Crio o pirralho desde os três aninhos de idade. Pelo que vim a saber a mãe dele

De quem?

viveu amancebada com o seu Agostinho, com o seu Nizomar, com seu Genivaldo...

EUZÉBIO

EUZÉBIO

Do seu filho.

E a sua gravidez?

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Sei não, homem.

Gravidez???


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96

EUZÉBIO

CORONEL MENACÊ

Sim. Não se faça de boba.

Não. (Vez por outra Euzébio e D. Nazaré se olham com transparente furor.)

D. NAZARÉ

PADRE ELIAS

Quebro-lhe a cara! Que gravidez é esta?

(Para D. Iraneide.) Tem tido enjoos?

EUZÉBIO

D. IRANEIDE

O padre Elias me disse que a senhora engravidou. A sua cintura está mesmo

Não.

empinada, saliente.

CORONEL MENACÊ

D. NAZARÉ

Enjoos?

(Mirando-se) Saliente é o senhor, seu atrevido duma figa. Isso é artimanha sua. O

PADRE ELIAS

padre Elias não me difamaria.

Sim, enjoos... por falar em enjoos, ontem o Zé Pedro esteve aqui, bêbado, para

EUZÉBIO

avisar que tinha “enjoado” os afazeres em sua olaria e achava-se disposto a enfrentar uma

Vou chamá-lo para a confirmação. (Sai atarantado e esbarra no padre Elias, que

cadeia...

vem entrando à esquerda.)

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

(Apreensivo) Uma cadeia? E o que fará para ingressar numa prisão?

Que borrasca é esta? (Sorri) Arengando na véspera do casório? (Entram o coronel

PADRE ELIAS

Menacê e a D. Iraneide, desconfiadíssimos.)

Isso ele não avisou.

CORONEL MENACÊ

D. NAZARÉ

Bom dia, padre Elias.

Dê licença, irmão Elias. (Faz menção de sair mas se detém.) Eu que cá estou a

PADRE ELIAS

enjoar esta estória de gravidez.

Bom dia. Como vai, D. Iraneide, alguma anormalidade?

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

A senhora?

Não, graças a Deus e ao senhor.

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

Adeus, D. Nazaré, não se atrase.

E o coronel?

EUZÉBIO

CORONEL MENACÊ

Eu também me retiro.

Tudo em paz, graças a Deus e ao senhor; principalmente ao senhor...

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Alto lá! Ninguém foge. Elucidemos a gravidez...

D. Iraneide, tem tido tonteiras?

CORONEL MENACÊ

CORONEL MENACÊ

Padre Elias, tenha dó... a Prefeitura aumentará para dez mil cruzeiros a subvenção.

Tonteiras??? A Iraneide não sofre de tonteiras.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Qual das duas?

Não, padre.

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

A da igreja... não toque na questão...

(Para o Coronel Menacê.) Tem se avistado com o Zé Pedro?


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98

D. IRANEIDE

CORONEL MENACÊ

(Para o padre Elias.) Ia me esquecendo que tenho umas joias para lhe presentear;

Tenho que assinar umas portarias na Prefeitura. (Encaminha-se para a porta da

é o meu óbulo para a paróquia... não toque na questão...

rua, à direita.)

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

O assunto não é pra ser ventilado dessa maneira...

(Interceptando-o) Para que tanta afobação? Fique, coronel, mais um pouquinho

CORONEL MENACÊ

que o bate-papo é convidativo... Depois o senhor assinará as portarias. (Para Ludovina.) O

(Para Euzébio.) Como é que o senhor tem a audácia de meter o bedelho nisso?

parto é para que mês?

EUZÉBIO

D. IRANEIDE

(Retrucando altivo.) Eu é que lhe pergunto. O senhor é que é o pai?

(Absorta) novembro...

CORONEL MENACÊ

LUDOVINA

Eu sou coisa nenhuma!

(Para ela.) A senhora já sabe?

D. IRANEIDE

D. IRANEIDE

(Aérea) Tem que ser você, meu amor...

Como não haveria de saber?

EUZÉBIO

LUDOVINA

(Para D. Nazaré.) Ainda precisa de confirmação?

(Para o coronel Menacê.) Sacripanta.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Vocês estão... invertendo... EUZÉBIO

(Para Ludovina, drástica.) Você qualifica o meu marido de sacripanta simplesmente porque ele fez um filho? Não é uma prerrogativa dele?

Eu não sou o pai.

PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

Não se esqueçam, não façam bagunça nem apelem para o tumulto, que isto aqui

Nem eu.

não é Câmara Legislativa.

PADRE ELIAS

LUDOVINA

Pelo que noto o pai serei eu...

Pois se é uma prerrogativa dele a senhora vai criar.

LUDOVINA

PADRE ELIAS

(Entrando à direita.) Bonjour para todos. Mandou-me chamar, padre Elias?

Eu peço a palavra e não concedo apartes. Ponhamos os pontos nos is.

PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

Está na cara...

Padre Elias... as portarias... são urgentíssimas...

LUDOVINA

EUZÉBIO

(Olhando de soslaio para o coronel Menacê.) É sobre a mesada para o nenê?

(Dramático) Ausento-me. Prefiro desconhecer uma verdade tão cruel.

Naquela base?

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

Eu deixei o macarrão refogando.

É sobre a gravidez.

PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

Não se afastem sem que eu anuncie a celebração de um matrimônio.

Oh! Que escândalo!...


99

100

LUDOVINA

PADRE ELIAS

Matrimônio? O Coronel Menacê não é casado oficialmente com D. Iraneide?

Seu.

PADRE ELIAS

EUZÉBIO

O matrimônio tardio, porém venturoso, do seu Euzébio.

Meu???

CORONEL MENACÊ

D. IRANEIDE

Então foi ele, sua vigarista?

(Descuidada) É do Zé Pedro, isto é, do Menacê...

EUZÉBIO

LUDOVINA

Eu o quê?

Justamente. É do Corone Menacê.

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

(Para Euzébio.) O senhor, hein?!...(Arremendando) “O meu sonho é ser pastor de

Irmão Elias, que confusão! Que encrenca! Quem é que engravidou?

almas”...Velho saçariqueiro!... E eu a fazer promessas para Santo Antonio de Lisboa...

EUZÉBIO

(Joga um punhado de flores no rosto de Euzébio.)

Pela derradeira vez eu berro: o filho não é meu!

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

(Para ambos.) Não briguem que ainda não estão casados...

(Para Euzébio.) O filho é seu, apenas ainda não foi concebido.

CORONEL MENACÊ

EUZÉBIO

O casamento é deles? E a Ludovina?

Como é isso?

LUDOVINA

PADRE ELIAS

(Debochando) A Ludovina não é reumatismo, portanto não está interessada em

(Contornando, risonho.) Seu Euzébio, eu planejei um ardil para provocar o seu

casar com velho; se contenta com uma mesada polpuda...

casamento com D. Nazaré. Sabia que o senhor gostava dela e me confrangia a alma ver

EUZÉBIO

tantas súplicas a Santo Antonio. Se eu não dissesse que D. Nazaré se achava grávida, o

(Indicando D. NAZARÉ.) Eu vou casar com esta mulher???

senhor não confessaria que a amava. A gravidez de D. Nazaré foi uma farsa que bolei para

PADRE ELIAS

forçá-lo a um pronunciamento. Creio agora que vocês se casarão. Posso marcar a data do

Não se apaixonou por ela?

auspicioso acontecimento?

D. IRANEIDE

EUZÉBIO

Feito, feito, não se discute mais.

Espere, me dê um tempinho para refletir...

LUDOVINA

PADRE ELIAS

(Para D. Iraneide.) Ilusão sua. O caldeirão vai entornar.

Se não casar sem refletir, refletindo é que não casará... Sábado que vem serve, D.

CORONEL MENACÊ

Nazaré?

(Para Ludovina.) Não deposite mais lenha na fogueira.

D. NAZARÉ

PADRE ELIAS

Ai! Que por mim serve até amanhã.

(Para Euzébio.) A sua futura esposa está intacta. Desde que o marido viajou para

PADRE ELIAS

o outro mundo, ela permanece como a Petrobrás: intocável...

Tudo acertado; sem ser este sábado, no outro.

EUZÉBIO

EUZÉBIO

E o filho, de quem é?

E a minha liberdade?


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102

D. NAZARÉ

D. NAZARÉ

Não hei de prendê-lo, não. Poderá sair todas as noites de novena.

Não fique a tratar-me por dona. Isto não vem muito a calhar. Não sabe pois o meu

D. IRANEIDE

apelido de família?

(Para D. Nazaré.) As minhas felicitações.

EUZÉBIO

CORONEL MENACÊ

Não.

(Para Euzébio.) As minhas condolências.

D. NAZARÈ

PADRE ELIAS

Lindinha.

Via Deus!

(Despedem-se e saem, à direita.)

TODOS

PADRE ELIAS

Viva!

Seu Menacê... D. Iraneide... Zé Pedro... Ludovina...

ZÉ PEDRO

(À medida que os nomes são enumerados, os circunstantes se fitam.)

(Entrando bruscamente, à direita.) Bom dia. (Vira-se, acena com a mão da porta

CORONEL MENACÊ Pois é...

da rua para fora.) PADRE ELIAS

D. IRANEIDE

(Para ele.) Bom dia. Você era indispensável nesta reunião, cujo assunto é uma

Pois é.... ZÉ PEDRO

gravidez... ZÉ PEDRO

Pois é...

(Perturbado) Gravidez?... Que sei eu de gravidez, se sou solteiro?...

LUDOVINA

PADRE ELIAS

Eu danço conforme a música...

Não se lembra de nada?... Um ataque de asma em sua mãe.... os vizinhos

ZÉ PEDRO

dormindo.... o troco dos mil cruzeiros ... onze horas da noite... ZÉ PEDRO

(Vai à porta da rua, faz um gesto para fora e volta-se.) Os meus companheiros estão aí.

Padre Elias, pelo amor de Deus!...

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

Os operários?

Não é mais ateu!...

ZÉ PEDRO

ZÉ PEDRO (Para o coronel Menacê.) Temos conta a ajustar.

Sim, os seus escravos; os homens que financiam com o próprio suor as suas bacanais.

CORONEL MENACÊ

D. IRANEIDE

(Tímido) Aqui, nesta casa de respeito e orações?...

Bacanais???

EUZÉBIO

PADRE ELIAS

D. Nazaré, vamos antes que uma bala se atravesse entre nós dois. Namorar treze

Acalme-se, D. Iraneide. Se ele se inflamar em excesso eu requisitarei a sua

anos e morrer nove dias apenas para o casamento, é brabo...

atenção para o problemazinho da gravidez... CORONEL MENACÊ (Para Zé Pedro.) Não admito afronta.


103

104

ZÉ PEDRO

agora, a situação tem de mudar porque vamos dar uma lição nesse prefeitozinho

Nem eu serei mais seu lambaio. Consegui um emprego na usina e vim lhe dizer

vagabundo, eleito à custa de corrupção fiananciada pela fábrica que a gente carrega nos

que se não dobrar o ordenado do pessoal... (Ouve-se barulho de tumulto fora.) D. IRANEIDE (Monologando) Dobrar o ordenado, agora que temos um filho para criar?... (O coronel Menacê não ouve.) LUDOVINA

ombros. (Zé Pedro sai falando em voz alta para a rua. Por um instante, ouve-se indistintamente suas palavras inflamadas.) CORONEL MENACÊ Eu já me acostumei com estes movimentos. É o estômago apertar e eles afrouxarem.

(Para o Padre Elias.) Ela pensa que ficará mesmo com a criança.

ZÉ PEDRO

CORONEL MENACÊ

(Retornando, da porta para fora.) O rumo que temos a seguir...

Aumento eu não darei.

VOZES

ZÉ PEDRO

È quebrar! Quebrar todos os tijolos! Quebrar todas as telhas! Quebrar! Quebrar!

(Para o coronel Menacê.) É assim, não é? (Põe-se na porta, com ares de tribuno.)

CORONEL MENACÊ

Companheiros! Trabalhadores sacrificados! O Coronel Menacê não cede às

(Acovardado) Padre Elias, o senhor intervirá, não é?

nossas reivindicações. (Gritos, fogos etc.) Só nos resta a greve. (Aplaudos estrondosos.)

PADRE ELIAS

Farei mais uma tentativa para convencer o espezinhador dos nossos direitos; se o prefeito

Não tenho atribuições para invadir a seara da polícia.

não se curvar, eu vou fazer um discurso e no final vou dizer o que temos a fazer.

ZÉ PEDRO

CORONEL MENACÊ

(Empolado, na mesma posição.) Não, não quebraremos cacos de telha...

Mistificador...

CORONEL MENACÊ

ZÉ PEDRO

Que alívio...

(Para o Coronel Menacê.) O que o senhor decide?

ZÉ PEDRO

CORONEL MENACÊ

Quebraremos o focinho do prefeito...

Grevem. Quando cansarem, como das vezes anteriores, me procurem para uma

D. IRANEIDE

solução conciliatória.

(Para o Coronel Menacê.) O prejuízo será menor....

ZÉ PEDRO

ZÉ PEDRO

(Para a rua.) O prefeito persiste na sua avareza. Ouçam que eu vou fazer um

(No auge.) Não quebraremos, não quebraremos.... Incendiaremos tudo.

discurso.

PADRE ELIAS

VOZES

(Com energia.) Pare!!! Agora basta, com fogo não se brinca.

Muito bem! Muito bem! Faça um daqueles.

ZÉ PEDRO

ZÉ PDERO

(Para ele.) Não se meta...

Companheiros. Chegou o momento da luta, o momento de mostrar que somos

PADRE ELIAS

homens, que temos coragem, que temos dignidade, que não lambemos a sola do sapato de ninguém. O nosso patrão é um inimigo que enriquece sugando o sangue dos empregados e

Como não me meto? Você ameaça transformar tudo em cinza e eu não devo me meter no troço?

só pensa nos seus interesses. O Coronel Menacê sempre nos enganou com a ajuda do velho

ZÉ PEDRO

padre Tadeu que fazia sermão para jogar as autoridades e o resto do povo contra nós. Mas

Troço?


105

106

PADRE ELIAS

não se rebelem. Entretanto, Jesus não aconselhou aos fracos que se conformassem com a

Sim, troço. Esta greve é um troço. Um troço que eu destroçarei.

expoliação dos fortes. Jesus, foi um revolucionário pacífico em sua época, e morreu

CONONEL MENACÊ

crucificado porque agrediu com a sua doutrina os pontentados e os perversos. (Frenéticas

O senhor é fenomenal, padre Elias.

aclamações.)

PADRE ELIAS

VOZES

(Para ele.) Cale-se, seu indolente! Seu gozador repugnante! Seu explorador do

Viva o padre! Viva!

esforço alheio! (Coloca-se na porta e brada para a rua.) Irmãos em Cristo! Eu vos

PADRE ELIAS

conclamo como irmãos, porque somos filhos do mesmo DEUS. Conclamo-vos como

O Cristo elegeu os seus apóstolos no seio dos pescadores; exerceu, em sua

irmãos porque vos consagro afeto, porque participo de vossas vicissitudes, porque não vos

adolescência, a profissão de carpinteiro; percorria os campos empoeirados e os casebres

concito à arbitrariedade... (Vaias, urras, assovios.)

longínquos à cata dos esquecidos para confortá-los; curava os aleijados; abraçava e fazia

D. IRANEIDE

sarar os leprosos; era um infatigável defensor dos oprimidos; e se batia pela igualdade de

(Interrompendo) Não estrague a sua cultura. Eles são analfabetos.

todos os homens.

PADRE ELIAS

VOZES

(Para dentro.) Tem razão, D. Iraneide. Modificarei o estilo de pregação. (Para

Viva o novo padre! Viva Jesus!

fora.) Cegos! Bobalhões! Vocês são uns bestas! Umas vacas quadradas! Aonde já se viu

CORONEL MENACÊ

atear fogo numa fábrica? Por que não ensopam o prefeito de gasolina e não jogam ele no

(Para D. Iraneide.) Este padre é um agente de Moscou.

forno do lixo?! Existe, no entanto, umas labaredas que queimam mais intensamente, que

ZÉ PEDRO

ardem com mais vigor – são as chamas do Inferno. E para alguém ser torrado nas brasas

(Para Ludovina.)

infernais não é preciso que morra. O Inferno se acende, um dia, é na consciência de todo

Se ele não se desdizer eu assistirei uma dúzia de missas.

homem egoísta, de todo ladrão da pobreza...

PADRE ELIAS

VOZES

(Arrematando) Meus irmãos, a greve de vocês triunfou. Vão para os seus lares

Muito bem! Muito bem!

que eu obrigarei o coronel Menacê a aumentar os salários. (As vozes diminuem

PADRE ELIAS

gradativamente e se extinguem.)

Eu me admiro da vossa fibra e me tortura com as vossas privações. É uma

CORONEL MENACÊ

desumanidade o que alguns ricos fazem com vocês. Por que acumulam tanta fortuna

Que anarquia!

enquanto milhões de criaturas vivem na miséria? Feras insaciáveis e insensíveis! Almas de

PADRE ELIAS

gelo! Corações de pedra!!! (Gritos, vivas.) Irmãos! Os operários alimentam,

(Para ele.) O senhor tem que abortar esta majoração de salário.

presentemente, uma indisfarçável aversão aos sacerdotes católicos. Por quê? Porque muitos

D. IRANEIDE

padres, como retribuição ao dinheiro e aos benefícios que recebem dos capitalistas,

(Distraída) Abortar? ... é para abortar?...

auxiliam à política conservadora. Esta política é conter o desespero dos trabalhadores

CORONEL MENACÊ

escravizados, para que eles não tomem, pela violência, o que lhes pertence. Esta política é

(Para o padre Elias.) Não, não e não.

justificar a injustiça, a pretexto de que tudo acontece pela vontade de Deus. Esta política é

PADRE ELIAS

ensinar a resignação para que não haja a revolução. É incutir nas mentes que, no céu,

Pois eu vou dizer...

existem deslumbrantes recompensas para os sofredores da terra, a fim de que as massas


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108

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

È uma falsidade!

(Para Zé Pedro.) Aceite os oitenta por cento.

D. IRANEIDE

ZÉ PEDRO

O quê?

Não, não aceito.

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

O que ele vai dizer.

Aceita ou não aceita?

PADRE ELIAS

ZÉ PEDRO

E o que é que eu vou dizer?

Não.

ZÉ PEDRO

PADRE ELIAS

(Para o coronel Menacê.) Nós incendiaremos a olaria numa hora em que o senhor

A D. Iraneide está grávida...

esteja lá dentro.

ZÉ PEDRO

PADRE ELIAS (Para Zé Pedro.) Não cacareje!

(Rápido) Combinado, Coronel Menacê. Oitenta por cento. Aliás, como o senhor anda aperreado, chega setenta por cento...

LUDOVINA

CORONEL MENACÊ Agora sim, Zé Pedro, você provou que é um líder. Um líder setenta por cento,

Quando teremos o derradeiro ato desta comédia? D. IRANEIDE

digo, cem por cento. (Caindo em si.) A Iraneide grávida??? (Zé Pedro recua assustado.)

Que sufocação!...

D. IRANEIDE

PADRE ELIAS

(Tremendo) É...

(Para o coronel Menacê.) Como é, dá ou não dá? (Mutismo e prolongada

PADRE ELIAS É...

espectação.) a Ludovina está grá... CORONEL MENACÊ

CORONEL MENACÊ

Eu dou, padre Elias, eu dou.

Fabuloso!!! Monumental!!! Minha velha, dá cá uma beijoca! (Beija-a) Depois de

PADRE ELIAS

tantos anos, o tratamento deu resultado?! Padre Elias, que coisa espetacular! (Abraça-o)

Já?...

Ludovina, não me parabeniza? (Aperta a mão dela.) Zé Pedro, um abraço para o amigo do

CORONEL MENACÊ

peito (Abraça-o).

Se eu der mais de oitenta faliremos.

PADRE ELIAS

ZÉ PEDRO

(Num desafogo.) Deus seja louvado!

Se não for cem por cento, não aceitaremos.

ZÉ PEDRO

CORONEL MENACÊ

Amém.

Não ponderei que faliremos? A minha falência será ruinosa para todos vocês. Que

CORONEL MENACÊ (Para D. Iraneide.) Organizaremos uma festança do arromba para comemorar o

diferença faz vinte por cento? ZÉ PEDRO Ou cem por cento, ou a olaria acabará como um fogareiro.

evento. D. IRANEIDE (Melíflua) É, meu bem...


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LUDOVINA

CORONEL MENACÊ

Quando será o forrobodó?

(Imitando o padre Elias.) Deus seja louvado!

CORONEL MENACÊ

PADRE ELIAS

Semana que vem.

Por que não casam logo?

PADRE ELIAS

ZÉ PEDRO

E se coincidisse com o casamento de D. Nazaré e seu Euzébio?

(Para Ludovina.) Se lhe agradar...

D. IRANEIDE

LUDOVINA

Magnífico.

(Para ele.) Se lhe convier...

LUDOVINA

PADRE ELIAS

Não haverá esta festa! D. IRANEIDE

Realizaremos os dois casamentos e a comemoração do coronel Menacê em um só dia.

Por quê?

TODOS

PADRE ELIAS

É.

(Para Ludovina.) Não estrague...

PADRE ELIAS

CORONEL MENACÊ

O coronel Menacê batizará o menino.

(Idem) Duplicarei a sua mesada; amanhã receberá seis meses adiantados.

ZÉ PEDRO

LUDOVINA

O nome dele será Stalin.

Estou grávida!

CORONEL MENACÊ

CORONEL MENACÊ

(Para o padre Elias.) Por que não batizará o senhor?

Até logo para todos. Vou assinar as portarias... (Caminha para a porta, à direita.)

PADRE ELIAS

ZÉ PEDRO Grávida??? (O coronel Menacê estanca.)

Não, o padrinho é como um segundo pai. Se a criança ficar órfão, o padrinho tem obrigação de guiar seus passos. Eu não poderia...

LUDOVINA

ZÉ PEDRO

Sim...

Por quê?

PADRE ELIAS

PADRE ELIAS

Sim... ZÉ PEDRO (Tenso, num misto de alegria, ceticismo e angústia.) Por que me escondeu,

O arcebispo certamente escolherá um padre mais amadurecido para dirigir esta paróquia. Sou muito... LUDOVINA

Ludovina? (Corre para o coronel Menacê que retrocede, temeroso.) Venha cá, me dê um

O senhor não irá!!!

abraço que também vou ser pai. (Para Ludovina.) Meu amor, você, sim, é uma santa

D. IRANEIDE

milagrosa. (Beija-a) Ontem me apareceu uma colocação de capataz na usina. Casaremos.

Rogaremos ao Arcebispo.

LUDOVINA

ZÉ PEDRO

(Hesitante) Que bom!... Fecharei a pensão...

Provocarei uma greve monstruosa, de toda a cidade, para reivindicar a sua permanência.


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CORONEL MENACÊ Decretarei luto oficial por três dias e enviarei uma comissão de vereadores ao Arcebispado para protestar. PADRE ELIAS Vocês me comovem com este carinho. ZÉ PEDRO O senhor devia ser sacerdote na Rússia... CORONEL MENACÊ Eu o nomearei Assessor Especial Vitalício da Prefeitura. LUDOVINA

SEVERA

Ajudarei o senhor no Apostolado da Oração. D. IRANEIDE Igualmente eu. PADRE ELIAS Obrigado, obrigado... coronel, pode ir assinar as suas portarias. (Todos se despedem e saem à direita, confraternizando-se.) Meu Deus, o que fiz?... Como viverão eles com os filhos trocados? Eu deveria ter dito a verdade? Devemos sempre dizer a verdade?... (Para a imagem do oratório.) Um dia te perguntaram, Jesus, o que era a Verdade, e tu respondente com o silêncio... Será pecado ocultarmos um pecado para evitarmos mais pecados? ... O pecado!... O que é o pecado?... O pecado existe realmente ou existe apenas em nossa imaginação?... O pecado tem alguma importância para ti?... Oh!, Deus, o que tem importância para ti é que as criaturas sejam felizes!...

FIM

ROMANA


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INFORMAÇÃO Esta peça obteve o Prêmio “Elmano Queiroz” no Concurso Literário da Academia Paraense de Letras em 1968. Foi representada pela primeira vez no Teatro da Paz em março de 1969, sob a direção do próprio autor, dirigente do grupo cênico TABA – Teatro Adulto de Belém Adulta, por ele fundado. Sobre o presente texto dramático o autor escreveu o seguinte:

PERSONAGENS SEVERA ROMANA FERREIRA, 18 anos aparentes, bonita, cabelos longos, lavadeira. PEDRO CAVALCANTE DE OLIVEIRA, marido de Severa Romana, 22 anos, soldado do Exército. ANTÔNIO FERREIRA DOS SANTOS, 39 anos, colega de Pedro, cabo do Exército.

“Esta peça é uma comédia.

JOANA MARIA GADELHA, hospedeira do casal; uns 50 anos, parteira.

Não sei se tecnicamente, literariamente, é lícito a um autor fazer comédia com um

VIZINHA, uns setenta anos.

tema trágico. Eu fiz. Fiz porque minha intenção, com esta peça, foi, acima de tudo, documentar de forma alegre e agradável a antiga vida suburbana de minha terra, com suas crenças ingênuas e poéticas, sua linguagem típica, suas superstições e seus velhos

CENÁRIO

costumes que vão desaparecendo à sombra dos edifícios de concreto. Ao escrever esta comédia “sui generis” agi com a maior honestidade intelectual. Procedi uma rigorosa pesquisa a fim de apurar como de fato ocorreu a história de Severa Romana, que até hoje muitos consideram SANTA, e coloquei na peça todos os detalhes encontrados, estruturei mesmo o enredo de acordo com tais detalhes, fazendo concessões à literatura, o que não é bom para um autor teatral. Um minucioso relatório com os dados da pesquisa que fiz acha-se no arquivo da Academia Paraense de Letras e prova o que digo acima. Enfim, aí está a comédia, e eu feliz porque o povo que amo e para quem escrevo ao assisti-la riu durante quase duas horas, identificando-se com o passado ainda não

Interior de uma barraca paupérrima, paredes sem pintura. Sala à direita, ocupando um terço do espaço frontal do palco; porta e janela para a rua, na lateral; quatro banquinhos rústicos espalhados; uma tábua de passar roupa, ferro de engomar em cima. Quarto ao centro, tomando outra terça parte do espaço frontal do palco, cama velha, uma “malazinha” etc. Cozinha à esquerda, na área restante, saída para o quintal confinando com os bastidores: pequeno fogão a lenha, panelas de barro, mesa para refeição rodeada de bancos, vassoura a um canto e, em lugar destacado, um pote de barro.

esquecido, num reencontro cheio de ternura.”

ÉPOCA A ação se passa no ano de 1900.


115

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PRIMEIRO ATO

SEVERA (Leva o dedo indicador aos lábios e com ele toca o ferro de engomar, verificando

JOANA

a temperatura do mesmo; queima-se ligeiramente e isto a faz perder o ar introvertido;

(Procura a vassoura na cozinha; caminha sempre com dificuldade, arrastando

recomeça a faina, deixando transparecer na fisionomia acentos de jovialidade; súbito,

uma perna defeituosa; tosse.) – Diacho! Não chegava o reumatismo, ainda mais este

suspende a tarefa, visivelmente acabrunhada.) Comadre, eu preciso de uma opinião sua.

pigarro me azucrinando. (Descobre a vassoura, dirige-se para a sala, faz menção de dizer

JOANA

algo à Severa, que ali se encontra, arrepende-se, inicia a varrição, depois de um tempo

Como então? Que serventia tem o meu fraco pensar, Severa?

interrompe o serviço e fala.) Como vai esta barriga? Tenho um palpite que pego essa

SEVERA

criança muito antes do que vocês esperam. (Severa responde com um gesto vago.)

Preciso de uma orientação e a senhora é a única pessoa a quem posso recorrer.

Conversa alguma coisa, criatura, nunca vi ninguém tão retraída e caladona. Nessa boca não

JOANA

entra mosca...

Tem alguma complicação para deslindar? Pois se está no mato sem cachorro,

SEVERA

desembuche. SEVERA

(Passa roupa a ferro; está grávida de sete meses; desenvolve o trabalho

(Hesitante, depois resoluta.) O Cabo Ferreira... O Cabo Ferreira está apaixonado

nervosamente, com a ansiedade e insegurança de quem se debate, intimamente, num martirizante dilema.) Comadre... comadre, qual é a pior coisa que pode acontecer a uma

por mim... JOANA

mulher?

(Espanta-se; nota-se que a revelação deixa-a descontrolada.) É mesmo??? Nunca

JOANA Ficar viúva como eu. Viúva e doente, dando consumição aos outros, tendo de

bispei isso. E olhe que sou macaca velha... SEVERA

viver atamancando.

Desde anteontem ele vem... me perseguindo. Estou disposta a contar tudo ao meu

SEVERA (Um tanto alheia.) Ficar viúva é triste, mas não é o pior. Outra coisa existe, mais dolorosa...

marido. JOANA

JOANA

Vôte! Não caia nessa asneira. Boca de siri.

Pior do que ser largada neste mundo ingrato, sem nenhum arrimo?

SEVERA

SEVERA

E por quê?

(Em solilóquio.) Pior que a morte do marido, pior que a própria morte...

JOANA

JOANA

Sei lá.

O que pode haver mais horrível do que o abandono e miséria, Severa?

SEVERA

SEVERA

Afinal, o que acha?

A desonra...

JOANA

JOANA

Acho que o escovado do Cabo Ferreira querer namorar você debaixo deste teto,

Com honra ou sem honra Nosso Senhor devia era livrar deste vale de lágrimas toda criatura sem valia, traste inútil como eu. Enfim, vasilha ruim não quebra...

nas ventas do seu marido, vai... SEVERA Não há de ser nada. Pedro saberá como agir.


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JOANA

SEVERA

O melhor é não bater com a língua nos dentes. O melhor é se conservar caladinha,

Duma forma ou doutra esta situação terá um paradeiro. (Descontraída) Contarei

não soprar coisíssima nenhuma a seu marido. Se mais tarde ele vier a saber, por portas e

tudo e Pedro tomará uma providência. (Encosta o ferro de engomar e dirige-se à cozinha,

travessas, você nem se dá por achada, alega que não percebeu qualquer saliência da parte

vai ao quintal, de onde retorna com roupas lavadas.)

do Cabo Ferreira. SEVERA Não é meu direito enganar o companheiro que Deus me deu. Tenho de contar tudo.

JOANA (Conclui a varrição da sala cantarolando, numa tentativa de superar ou disfarçar a preocupação.) Sapo cururu,

JOANA

Da beira do rio,

É perigoso. Seu marido pode imaginar que esse coirão se embeiçou por você

Quando o sapo canta

porque... Porque você lhe deu confiança.

Maninha

SEVERA

É porque tem frio.

(Com firmeza.) Pedro me conhece de sobra. Nunca dei motivo para ele duvidar de

A mulher do sapo,

mim.

Deve estar lá dentro JOANA Desculpe, não desejei ofender. É que, pelo sim pelo não, a gente carece ser

Fazendo rendinha Maninha...

prevenida. Seguro morreu de velho, desconfiado ainda vive. Se lembra da Paquita? Aquela

(Sai ao encontro de Severa na cozinha.) Eu sei que quem muito quer saber

que casou atrás da porta? Disque ela quis tirar uma linha com o tapioqueiro, nem lhe digo:

mexerico quer fazer; mas porém... (Titubeia, encabulada.) Você... nunca deu mesmo trela

quando o amante deu em cima foi um fuzuê danado, a infeliz levou uma pisa que passou

pro Cabo Ferreira?

uma semana no azeite de andiroba.

SEVERA

SEVERA

(Estremece, recebendo a inquirição como uma afronta moral.) Eu???

O meu caso é diferente. Que culpa tenho desse homem se apaixonar por mim?

JOANA

JOANA

(Pressurosa) Não é que eu não deposite fé na sua honestidade, compreende? É

Culpa você tem – é bonita...

que... pinóia! Às vezes quanto mais a gente enquizilha com um perna de calça, mais tem

SEVERA

vontade de grudar o olho nele. Tentação do capeta. Eu sei como são essas coisas, sou

(Imperativa) Bem, obrigada pelo conselho. Infelizmente, não posso aceitá-lo.

vivida. Olha, o meu finado marido não era um babaquara, com ele escreveu não leu, pau

JOANA

comeu; pois bem: apesar da afoiteza do Diquito eu sentia uma gana de me por na janela

Aceite, Severa, aceite, eu tenho experiência de vida. Mulher quando se preza não

toda boquinha da noite, quando o minguazeiro passava. Era o danisco do minguazeiro

deve assuntar com o marido certas estórias. Guarde o seu recato até a maré baixar; o Cabo

passar e eu ali na janela, rente como pão quente. Pois o homenzinho não encasquetou que

Ferreira acaba se desvanecendo por obra e graça do tempo.

eu tinha interesse nele?

SEVERA E se ele não desistir? Se abusar de mim dentro de meu próprio lar?

SEVERA Não costumo olhar para o Cabo Ferreira, evito sempre a sua presença, sinto

JOANA

repugnância dele como de uma cobra. (Exaltando-se) Pelo meu gosto esse sujeito não

Abusa nada: formiga sabe o pau que rói...

entrava aqui. (Seus olhos umedecem.) Alguma coisa me diz que ele é portador de uma


119

120

desgraça. (Chora, extravasando toda a angústia.) Alguma coisa grita dentro de mim:

JOANA

cuidado com a fera, sai da jaula! ... A jaula é este segredo, preciso me libertar dele. Hoje,

Não disse isto. Você me perdoa, mas é que sou covarde, nasci assim. Prefiro

dê no que der, contarei tudo a Pedro.

perder os cobres do aluguel, prefiro curtir fome, amanhecer e anoitecer o dia com um

JOANA

chibé... (Regressa à sala, apanha a vassoura e efetua a limpeza do quarto; ouve-se um

Conte tudo, tim-tim por tim-tim, bote tudo em pratos limpos, não estou puxando

ruído característico de comida queimando; acorrem as duas ao fogão; Severa retira uma

para trás. Porém se o seu marido resolver tomar as dores com o Cabo Ferreira, se os dois

panela do fogo e esmiúça o seu conteúdo.)

brigarem e um deles esticar as canelas, recorde que eu avisei...

SEVERA

SEVERA

Terá estragado?

(Sem grande convicção.) Não haverá briga. Pedro é de bom caráter, não se altera

JOANA

com facilidade.

Se demora mais um tiquinho esta jabá virava torresmo.

JOANA

SEVERA

Pois é em homem pacato que mulher inteligente não se fia...

(Adiciona água ao alimento.) Descuido.

SEVERA

JOANA

A senhora, comadre, em vez de me ajudar fica me amedrontando?

Vou comprar umas postas de peixe frito? Na quitanda tem piramutaba. O Cabo

JOANA

Ferreira é arisco para comer, não se contentará com esta bóia. Arre! Até parece que

(Judiciosa, convencida.) Não se vexe... Ninguém perde por esperar.

jogaram caninga em cima de nós.

SEVERA

SEVERA

Não é justo eu ter segredos para o meu esposo.

Tolice.

JOANA

JOANA

(Com uma ponta de malícia.) Ora, Severa! Qual é a mulher que não esconde

Você não acredita em pussanga, caçoa muito da Vizinha, porém uma coisa eu lhe

alguma coisa do marido? ... SEVERA

asseguro: se fizer aquele banho de priprioca, receita da Vizinha para descarregar o corpo, o Cabo Ferreira lhe deixa de mão. Dou o meu braço a torcer se ele não deixar

(Raciocina por alguns segundos, confusa; decide-se; sua determinação é

SEVERA

irrevogável.) Nesta casa não se almoça hoje sem que o Cabo Ferreira seja chamado à responsabilidade.

Sem banho de priprioca, sem a pajelança da Vizinha, a partir de hoje o Cabo Ferreira me dará sossego, nem que o mundo desabe.

JOANA

JOANA

(Fita Severa, entendendo que todos os seus argumentos foram ineficazes para

Na minha cabeça não desabará... (Resignada, vencida.) Só penso é os dois se

demovê-la do intento.) Como você está tão cuíra para entornar o caldo, vou fazer uma

emboletarem, se darem pancada... (Súplice) Severa, tome sentido. O tiro pode sair pela

confissão: tenho medo que me pelo de escândalo. Se o seu marido e o Cabo Ferreira

culatra.

virarem a frege esta biboca, eu agarro os meus breguéssos e pernas para quem te quer! Não

SEVERA

tenho meu umbigo enterrado onde haja barulho.

Não acontecerá nada de anormal. Eu falo com o Pedro, ele conversa com o Cabo

SEVERA

Ferreira, diz-lhe para conseguir outro lugar onde fazer refeições, para entregar a roupa a

A casa é sua. Quem tem obrigação de sair sou eu.

uma lavadeira.


121

122

JOANA

Severa lava até a roupa dele. Que mal faz, se Pedro não se importa, se os dois são como

(Sardonicamente) Ninguém será bobo de aceitar, ninguém dará de comer e beber

unha e carne?

ao Cabo Ferreira pelo preço que vocês cobram. É melhor sustentar um burro a pandeló...

VIZINHA

SEVERA

Esse Cabo Ferreira! ...

Tudo será resolvido sem qualquer confusão.

JOANA

JOANA

Não é boa bisca, eu sei, não vale três vinténs. Descobri isso há dois minutos.

Assim seja. Sou um trapo velho, sem eira nem beira, não tenho apego à existência,

VIZINHA

porém desejo morrer tranquila na minha rede de tucum. E lhe confesso, pela derradeira

Tenha cautela com ele.

vez: se houver um furdúncio aqui, do seu marido com o Cabo Ferreira, tenha a santa

JOANA

paciência – a Joana Maria Gadelha vai plantar a sua macaxeira noutra roça, volto somente quando a pororoca tiver asserenado. VIZINHA (Entra à direita, desinibida e espalhafatosa, a despeito da idade avançada; traz

Agora é tarde, Inês é morta. Dei ontem a minha palavra, alugando para o Cabo Ferreira esta sala, desde hoje, e sabe a novidade? Vigie só: ele anda querendo namorar a Severa, entendeu-porque-entendeu de conquistar a coitada, mesmo ela estando barriguda. VIZINHA

uma cuia petinga com açaí e entrega à Severa.) Toma, mulher, está fresquinho, amassei

Patife!

agorinha, mata o teu desejo. Por falta de açaí ninguém perde filho nessa terra. (Vislumbra

JOANA

um tamanco emborcado, endireita-o.) Tamanco ou sapato emborcado chama azar, minha

Para completar, a Severa embirrou com ele e decidiu contar tudo ao marido daqui

gente.

a pouco, quando os dois chegarem para almoçar. O assunto delicado é esse. SEVERA

VIZINHA

Obrigada, Vizinha. Como está vermelho este açaí. Cor de sangue.

Santa Bárbara.

VIZINHA

JOANA

Por falar em sangue, fizeram o que eu mandei? (Inspeciona o lado interno da

O pau vai chinchar.

porta da rua.) Joana Gadelha, Joana Gadelha, deixa de ser desleixada. Corta o pé duma

VIZINHA

galinha e com o sangue dela faz uma cruz atrás dessa porta, pra afastar o Tinhoso. Olha

Se pegue com São Jorge, que é santo forte.

que eu tenho o corpo fechado, chorei na barriga da minha mãe, mas nem por isso me

JOANA

esqueço de resguardar a minha casa contra as influências das trevas. SEVERA Um instantezinho, Vizinha, preciso falar com a senhora, preciso do seu parecer para um assunto delicado. (Sai da sala, levando o açaí para a cozinha.) JOANA Sabe qual é o “assunto delicado”? Vizinha, estou num beco sem saída, metida numa barafunda medonha. Imagine que ontem, depois do jantar, o Cabo Ferreira me falou

A vontade que tenho é de tomar um chá de sumiço antes das coisas ficarem pretas, antes da porca torcer o rabo. VIZINHA E não é pra menos. JOANA Quando um homem cisma de arrebatar a mulher do outro, nem Santo Antônio com gancho dá jeito, o canalha que traz a vara do diabo entre as pernas é capaz de tudo.

pra alugar a ele esta sala. Eu concordei, um dinheirinho a mais não dá frieira, disse cá com

VIZINHA

os meus botões: não faz mal o Cabo Ferreira morar aqui, se já come e bebe conosco e a

Menos de uma coisa: quebrar a força de uma oração minha. Quer aprender?


123

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JOANA

JOANA

Não, não. (Simulando) Afinal de contas, no frigir dos ovos o capeta não é tão

Experimente seguir. Experimente envenenar o Cabo Ferreira, ou então agarre um

horroroso como se pinta; estou na minha casa, não tenho culpa no Cartório, não coloquei

pedaço de cipó titica e lasque uma surra nele, até a sua cara ficar como folha de jurubeba.

toucinho nessa maniçoba, pode o caldeirão ferver. Quem for podre que se quebre.

Experimente. O que ganhará com isso?

VIZINHA

VIZINHA

Isto. Coragem, mulher. JOANA (Transição) Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Eu estou apavorada, é inútil me iludir a mim mesma... VIZINHA

Experimente, Severa, siga o meu conselho, é o mais acertado. E ainda tem outra: você lava a roupa desse conquistador de meia tigela, não lava? Pois então roube uma ceroula dele e me dê. Arranje uma cueca dele usada e deixe o resto por minha conta – faço um despacho com ela que durante vinte anos o Cabo Ferreira não vai ter sustância pra mulher nenhuma.

Pra todas essas encrencas o remédio infalível é uma defumaçãozinha. Ah! Se você

SEVERA

soubesse o valor dessas bugigangas não vivia assim na pindaíba.

Também assim não, é muito.

SEVERA

VIZINHA

(Volta da cozinha, desmonta a tábua de engomar roupa.) Vizinha, veja se não

Muito nada, minha filha, eu conheço essa raça. Não tem homem sem sustância,

tenho razão: o Cabo Ferreira, desde anteontem, vem procurando me seduzir. Que atitude

que precisa tomar sumo de mastruz pra mostrar na cama que é homem? Do mesmo modo

deve ser a minha? Contar tudo a Pedro, não é?

tem homem assanhado, fogoso, que a gente ou dá um jeitinho nele ou ele dá um jeitinho na

JOANA

gente...

Não...

FERREIRA

VIZNHA

(Entra da rua, trazendo um grande embrulho, acompanhado de Pedro, ambos

Sim. Conte tudo a seu marido e mande o atrevido bugiar.

com farda do Exército.) Quem é fogoso? Aposto que estavam falando de mim. Estavam

SEVERA

não?

Pois é isto que eu vou fazer logo mais. VIZINHA Faça. JOANA Não se precipite, Severa, entregue a Deus. Quando a justiça do Alto tarda é porque...

JOANA É, estávamos falando de você. Falando bem, aliás... (Faz um sinal para ele, comunicando que Severa ainda ignora a sua mudança; sente-se em apuros.) PEDRO Olá, Vizinha. Severa, chegamos atrasados pro almoço. Por causa do Cabo Ferreira: parou em três tabernas pro matabicho; diz ele que a cachaça daqui é melhor do

VIZINHA Essas questões imorais não adianta entregar a Deus que Ele não recebe, devolve, e

que a de Fortaleza. SEVERA

a gente tem de sair da arapuca com as próprias pernas. Diga tudinho ao seu marido, Severa,

E tu, o que dizes?

e se o curubento do Cabo Ferreira, se aquele jagunço fizer pose, sapeque veneno na comida

PEDRO (Conduz Severa ao quarto, com a intimidade de marido.) Eu não conheço

dele. SEVERA (Para Joana.) Ouviu, comadre, como o conselho da Vizinha é diferente do seu?

nenhuma das duas. Só beberei, e pra me embriagar, no dia do nascimento do nosso filho.


125

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JOANA

PEDRO

Deixem eu ir ver o almoço. (Desloca-se para a cozinha, prepara a mesa da

Tive pena dele. Foi removido pra Belém de supetão, largou a família no Ceará.

refeição; no quarto Pedro e Severa permutam confidências; na sala a Vizinha e o Cabo

SEVERA

Ferreira discutem acaloradamente.)

Esse homem é falso, é mesquinho.

FERREIRA

PEDRO (Risonho) Mulher quando engravida enjoa tudo quanto é homem. Enjoaste o Cabo

Está vendo este embrulho? São os meus terens, toda a minha bagagem. De hoje em diante vou fazer a minha pousada aqui.

Ferreira? Não vai enjoar de mim...

VIZINHA

FERREIRA

Devia ir fazer a sua pousada era no Inferno.

(Na sala.) Não sei aonde estou que não lhe meto a mão no focinho, velha.

FERREIRA

VIZINHA

Por que, velha?

Faça uma malvadeza comigo e você se estrumbica. Estou ciente do seu “assunto

VIZINHA

delicado” com a Severa...

Porque tem parte com o Cão.

FERREIRA

FERREIRA

(Aturdido) O que lhe disseram, velha?

Ô xente! Vosmecê me ofende. Sou um bom cristão.

VIZINHA

VIZINHA

Disseram que você vive atazanando a Sereva, pra namorar com ela.

É um bom salafrário.

FERREIRA

SEVERA

Quem levantou esta calúnia?

(Transfere-se o diálogo para o quarto.) Pedro, tenho um assunto delicado para

VIZINHA Calúnia??? A sua cara não treme? ...

falar contigo. PEDRO

FERREIRA

(Descalçando as botinas.) Tem mesmo?

Eu costumo elogiar a boniteza da Severa, porém sem interesse...

SEVERA

VIZINHA

Tenho. E é urgente.

Eu sei, como diz a Joana: quem não arrisca, não petisca. Elogia e espera pra ver se

PEDRO

ela morde a isca do seu anzol, não é? Pois tomou o bonde errado: Severa é uma mulher

(Brincalhão) Mesmo, mesmo? Jura? Pela fé da mucura? Já sei: fim do mês

honrada.

começo a comprar fraldas, mamadeira...

FERREIRA

SEVERA

Minha mãe também era e eu nasci sem casamento...

Não é isto. Falo sério.

JOANA

PEDRO

(Na cozinha.) Alguém me chamou? Um instante e a gororoba está na mesa.

Eu também. Nosso garoto – será homem, hein? – terá cueiros bordados, pipos de

SEVERA

borracha macia, sapatinhos de lã e até um cordão de ouro. Tu vais ver.

(No quarto.) Pedro, afasta de mim o Cabo Ferreira.

SEVERA

PEDRO

Pedro... por que fizeste amizade com o Cabo Ferreira?

Tens antipatia por ele?


127

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SEVERA

FERREIRA

Antipatia não, nojo.

Por que não? Vosmecê tem autoridade pra proibir isso?

PEDRO

VIZINHA

Não digo? É da gravidez, mulher no teu estado sente nojo de tudo, por isso vomita tanto.

Eu não apito nada nesta bodega, mas Severa não tem sangue de barata, pra consentir que você se enfronhe no seu lar; quando ela souber da sua intenção você volta

SEVERA

com este embrulho de crista baixa.

Ainda não reparaste como o Cabo Ferreira me olha?

FERREIRA

PEDRO

Ela ainda não é sabedora que aluguei a sala?

Não, como é?

VIZINHA

SEVERA

Não, não é sabedora, e quando for vai dar pinote que nem piranha doida.

Como se quisesse me devorar inteira.

FERREIRA

PEDRO

Porém não pode me expulsar. A casa não é dela.

É o jeitão dele. É olhar de nordestino que já viu muita seca amontoando cadáver

VIZINHA

nas estradas.

Não pode expulsar? Uma joça. Bota-lhe no olho da rua, e eu ajudo.

SEVERA

FERREIRA

Não, é olhar de serpente que busca atrair pra devorar.

Vosmecê não vale um deréis de mel coado.

PEDRO

VIZINHA

Talvez ele olhe pra ti assim lembrando a mulher no Ceará.

Mas tenho sentimento, não sou da sua igualha.

SEVERA

SEVERA

Ao contrário. Quando ele olha para mim esquece a esposa.

(No quarto.) Pedro, se eu te pedir uma coisa tu fazes?

PEDRO

PEDRO

Ora, Severa, como podes adivinhar o que existe no pensamento dele? Ferreira é

Se estiver em meu alcance...

um sujeito rude, mas não tanto pra te querer mal.

SEVERA

SEVERA

Afasta o Cabo Ferreira daqui, de uma vez por todas.

(Desnorteada ante a infantilidade do marido.) Querer mal?

PEDRO

VIZINHA

Por que, Severa?

(Na sala.) A Severa você não desencabeça. Ela tem juízo.

SEVERA

FERREIRA Vosmecê não sabe o que diz, velha. E zombe deu não, pois filho de meu pai não

Porque a melhor coisa que poderá nos acontecer será ele não aparecer mais nesta casa.

esmorece com pouca coisa. O principal já consegui: sou da casa, desde hoje moro aqui,

PEDRO

posso ficar tocaiando Severa o tempo todo. Se ela fraquejar eu dou o bote.

O Cabo Ferreira está sozinho em Belém. Não tem ninguém por ele, Severa.

VIZINHA

SEVERA

Julga que vai mesmo morar aqui? Uma ova.

(Desolada) Eu é que estou sozinha, não tenho nem a ti por mim...


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VIZINHA

FERREIRA

(Na sala.) Neste momento Severa deve estar contando ao marido o tal assunto

(Na sala, colérico.) Velha dos seiscentos diabos, se vosmecê der mais um pio eu

delicado da sua safadeza; se apronte pro que der e vier.

lhe arrebento a carcaça.

FERREIRA

VIZINHA

Cabra do meu sertão não corre doutro homem.

Arrebente seu ordinário!

VIZINHA

SEVERA

Dizer é fácil. Eu quero ver é na hora da onça beber água, como diz a Joana.

(Indo à sala.) O que houve?

JOANA

PEDRO

(Na cozinha, alto.) Somente mais um minuto e eu ponho na mesa o bacobaco.

(Idem) O que é isto?

FERREIRA

JOANA

(Na sala.) Cale esta boca, velha arreliada.

(Na cozinha.) Meu Deus! Será que o mundo começou a desabar? (Dirige-se para

VIZINHA

a sala, sofregamente.)

Cale então primeiro a sua, seu Mapinguari.

FERREIRA

FERREIRA

Esta velha abusada...

Vá cuidar da sua vida.

PEDRO

VIZINHA

Acalme-se, acalme-se.

E você vá pentear o macaco.

JOANA

FERREIRA

O que estão discutindo? É o aluguel da sala?

Velha do diabo eu já estou ficando engasgado com a sua provocação.

SEVERA

VIZINHA

Aluguel de que sala?

E eu também já estou ficando tiririca com a sua presepada, seu indecente duma

JOANA

figa.

É a paixão do Cabo Ferreira? SEVERA

PEDRO

(No quarto.) Pedro... esse Cabo Ferreira é um homem sem escrúpulos... não vês

Que paixão?

como ele me trata? ... PEDRO

JOANA Ai, meu Deus, não acerto uma... (Contornando a situação.) Vamos almoçar

É pra ser agradável a mim que ele te exalta, te elogia a beleza, te bota nas alturas.

enquanto é tempo... (Induz Pedro e Severa a se encaminharem para a cozinha; Ferreira

SEVERA

reluta em entrar.)

Na tua ausência ele não me respeita como deve ...

FERREIRA

PEDRO

Velha imunda, fede mais do que ticaca.

Isso eu creio, mas não é por ruindade. A ignorância é que faz o Cabo Ferreira

VIZINHA

desbocado. (A discussão na sala esquenta, percebe-se o tumulto.) Escuta! Na certa ele travou uma briga com a Vizinha aí na sala. É analfabeto e estúpido que dói.

(Encarando Ferreira e saindo para a rua.) Xô, saracura do lago! ..


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FERREIRA

FERREIRA

(Desloca-se com Joana para a cozinha, onde se encontram Pedro e Severa;

Porque não quis. Vosmecê acha que eu ia me largar pra terra estranha com toda

senta-se à mesa, juntamente com Pedro; Joana e Severa servem a comida, tensas, qual se

aquela filharada da moléstia?

aguardassem o desencadear de uma tempestade; Ferreira prova o alimento, cospe.) Chi,

JOANA

danou-se! Esta carne seca está mais queimada do que capim da minha terra no verão.

E a sua mulher não reclama?

JOANA

FERREIRA

Para variar hoje não tem cozido, é guisado sem molho... no meu paladar está

Sei lá. Faz um tempão que não ligo pro meu povo.

ótimo, não fica devendo nada a um quitute de primeira qualidade... (Há um silêncio

JOANA

forçado; os quatro se entreolham, comem.) Gostoso como pato no tucupi...

Não tem saudade da sua Zefina?

FERREIRA

FERREIRA

Comida péssima. Mais péssima do que rapadura mole com farinha mofenta.

Zefina está envelhecida. É uma peitica.

JOANA

JOANA

Não se zangue; depois eu mato um frango de Nossa Senhora do Ó que está

E daí? Coco velho é que dá azeite. Mande buscar a sua Zefina.

mesmo dizendo: me comam! ... Teremos um senhor jantar.

FERREIRA

PEDRO

(Intencional) O meu bem-querer já pertence à outra...

(Para Severa.) Quase não comeu. Doente?

JOANA

SEVERA

Quem não te conhece que te compra...

Preocupada.

SEVERA

JOANA É do estado. Com sete meses de gravidez toda mulher se enche de quindim. Na

(Para o marido, erguendo-se do banco, taciturna.) Vamos dormir a sesta?! Não estou gostando da conversa.

janta ela come mais, a boiosa será uma especialidade...

FERREIRA

PEDRO Sete meses, hein, Severa? FERREIRA Barriga bonita, essa da tua mulher, Pedro. PEDRO Daqui a um mês é que ela estará uma lindeza. FERREIRA (Mirando Severa, sensual.) Formosura aí é língua de mosquito. Faz lembrar a Zefina há quinze anos atrás.

Pedro, és um felizardo. Tens uma mulher bonita, nem flor de moleque duro é tão bonita. JOANA (À parte, considerando a insistência dos galanteios de Ferreira.) Vai ser audacioso assim na caixa-prego... PEDRO Concordo. A minha Severa é uma linda esposa. Linda e boa. Tive a maior sorte em casar com ela. JOANA

JOANA

Teve, sim. Casamento é sorte. Casamento e mortalha, no céu se talha.

(Para o Cabo Ferreira.) Por que não trouxe sua família consigo?

FERREIRA Eu invejo a tua sorte. Dei um azar da peste no casório, podia ter arrebanhado coisa melhor... era um moço de fama... me vestia igual a dono de engenho quando conheci a


133

134

Zefina... ganhava bem, viajando no rio Parnaíba como marinheiro do navio “Piauí”...

JOANA

naqueles tempos as mulheres me adulavam pra dançar com elas...

(Para Ferreira.) Não seja saído. A comida está saborosa, eu é que ando

JOANA

empazinada. (Desarruma a mesa.) Tão panema tenho andado que tomo a bênção a

Pavulagem!

canhorro e chamo gato de tio...

FERREIRA

FERREIRA

Depois que entrei no Exército então é que me tornei um cabra mais afamado...

Minha roupa enxugou, Severa?

nunca ouviu falar no quartel das minhas proezas na campanha de Canudos? PEDRO Dizem que você foi um herói.

SEVERA Acho bom contratar uma lavadeira. (Sai para o quarto, contrafeita, separa algumas roupas de Ferreira, o qual nesse interim corta toda a cena em direção à sala.)

FERREIRA

PEDRO

(Pedante) Um herói, nem mais nem menos, eu sou.

Essas bravatas do Cabo Ferreira não são invenção. Ele já matou pelo menos um,

JOANA

todos sabem no quartel.

Um gabola...

JOANA

FERREIRA

Tome cuidado consigo.

(Rememorando) E em Grajaú? ... O alferes Guapindaia apanhou uma cacetada, eu

PEDRO

saquei da minha lambedeira de palmo e meio e gritei no terreiro: quem encostar no homem

Somos amigos; amigos e colegas.

fica com o bucho destripado nesta meleca!

JOANA

PEDRO Todo mundo correu...

Com um pouco mais, nós saberemos até onde ele preta ou não presta. É morando junto que a gente se conhece.

FERREIRA

PEDRO

Não, ninguém se avoou. Eu tornei a xingar. Aí formou-se o banzé. Partiu o

Sim?

primeiro pra riba do Alferes e eu, olhe, faca nele! Partiu o segundo e eu: faca no pé do

JOANA

umbigo dele...

Pois é.

JOANA

PEDRO

Que moleza, que macacoa, vamos cochilar? (Para Ferreira.) Chega de potocas.

Não compreendi.

FERREIRA

JOANA

Tudo o que eu digo é realidade, acreditem. Se digo que sou valente é porque sou

O negócio é que eu fiz um negócio com o Cabo Ferreira ... Ontem ele me pediu

mesmo. (Outro tom.) Se digo que Severa é bonitona, não estou fazendo favor.

para alugar a sala; sabia que vocês dormem no quarto e eu aqui na cozinha...

PEDRO

PEDRO

(Para Joana.) A senhora também não almoçou. É o reumatismo?

A senhora alugou a sala daqui de casa pro Cabo Ferreira?

FERREIRA

JOANA

O reumatismo uma droga! Ela não almoçou porque deixou a comida queimar.

Aluguei, por que não haveria de alugar? As coisas andam vasqueiras, tenho precisão de mais uns cobres para comprar aquelas pílulas do reumatismo.


135

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PEDRO

FERREIRA

Eu concordo com a hospedagem. Combinou com a Severa?

Resolvi me mudar... não aguentei a tristura de viver só, dia e noite. Minha

JOANA

bagagem está ali. (Mostra o embrulho.) Maleta de nordestino é um saco ou um embrulho, o

Ainda não disse nada e não sei como dizer. Ela agora impinimou com o Cabo

cadeado é um nó.

Ferreira...

SEVERA

PEDRO

(Fazendo menção de retirar-se.) Dê licença e pode levar a sua roupa.

É da gravidez. Mulher quando fica grávida pega uma porção de manias, enjoa as

FERREIRA

pessoas, nem o marido escapa.

Levar pra onde, se desde hoje moro aqui?

SEVERA

SEVERA

(Dirige-se do quarto para a sala, e secamente entrega a Ferreira roupas

Mora onde?

dobradas e limpas.) Mês que vem não posso continuar lavando.

FERREIRA

FERREIRA

Nesta sala.

Está com raiva de mim?

SEVERA

SEVERA

Não gosto de gracejos.

O resto está no coradouro.

FERREIRA

FERREIRA

Eu aluguei esta sala ontem. Não lhe disseram?

Não lhe fiz nada pra vosmecê amarrar a cara. Que bicho lhe mordeu?

SEVERA

SEVERA

Esta sala???

Eu sou assim mesma.

FERREIRA

FERREIRA

Pois não foi? Aluguei sim senhora. Ontem.

É não.

SEVERA

SEVERA

É mentira!!!

Sou.

FERREIRA

FERREIRA

É não. Vou me agasalhar neste canto. Em boa companhia...

Tenho uma novidade...

SEVERA

SEVERA

Eu não permito!

Não me interessa.

FERREIRA

FERREIRA

Cadê autoridade pra dar ordem?! A casa não é sua.

Cansei de passar as noites no quartel como preso ou renegado da família.

SEVERA

SEVERA

A comadre não tinha o direito de fazer isso sem me consultar.

Não tenho porque me importar com isso.

FERREIRA Não tinha o direito e não tinha o dinheiro pra comprar remédio. Vosmecês pagam uma ninharia pelo quarto... Eu aluguei esta sala, está alugada, quero ver quem vem no meu gogó...


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SEVERA

JOANA

Obrigarei a comadre Joana a desfazer a transação. (Mais uma vez ensaia a

(Para Severa.) Alguma coisa grave? Você está nervosa como quem tem bicho

retirada.)

carpinteiro.

FERREIRA

SEVERA

(Obstando-lhe a passagem.) Severa... vosmecê compreende, não é?

Comadre, a senhora alugou a sala para ele?

SEVERA

JOANA

(Briosa) Compreende o quê?

Eu explico, eu explico, não sou mulher de engabelar ninguém. Aluguei porque...

FERREIRA

SEVERA

Que eu... eu... não resisto ficar distante de vosmecê... Sem amor não há cristão

Mas comadre, a senhora não sabe que este homem...

que suporte a desgraceira desta vida...

JOANA

SEVERA

Sei, sei, sei, você está enfezada com ele, porém sei disso desde quando? Não foi

Está louco?

indagora que me rezou a ladainha? Ontem, quando o Cabo Ferreira me propôs a mudança,

FERREIRA

eu não sabia patavina do “assunto delicado”; não maldei nada, não me passou pela telha

Sim, louco... Ah! Paixão da peste que me queima até os ossos. Veja, Severa, como

que a vinda dele ia lhe aperrear tanto.

estou queimando de amor por vosmecê... ponha a mão na minha pele: está mais quente do

PEDRO

que lombo de jumento puxando cangalha debaixo do sol...

(Conciliador) Severa, estás aborrecida, é natural... sete meses de gravidez...

SEVERA

JOANA

(Com asco.) Não chegue perto de mim.

Mulher quando fica barriguda, por qualquer me dá cá aquela palha se zanga.

FERREIRA

PEDRO

Ponha a mão na minha pele e veja como está em fogo vivo. É a febre do amor.

Que importância tem o Cabo Ferreira morar aqui? Durante a noite ninguém ocupa

(Esbarra em Severa, ela recua.) A pele de vosmecê não está comichando de ardume, como a minha; ela é macia que nem pena de juriti...

a sala. SEVERA

SEVERA

Que importância tem??? Puxa, como és cego.

(Volta-se energicamente.) Não bula comigo!

PEDRO

FERREIRA Vosmecê tem de me compreender... Sou capaz de me arrastar de joelhos, duzentas léguas, pra angariar o seu carinho... SEVERA Suma-se! (Gritando) Pedro!

Ele não faz parte da nossa mesa todo dia? Tu enjoaste o Cabo Ferreira porque vais dar a luz, Severa. Depois do menino nascer essa murrinha desaparece. JOANA É o que penso, mas a Severa não se convence: tem uma cabeça dura como ouriço de castanha.

JOANA

FERREIRA

(Ouve o grito, na cozinha.) Valha-me, minha Nossa Senhora de Nazaré.

Posso falar?

PEDRO

JOANA

(Segue apressado até a sala, com Joana.) O que é?

(Impedindo-o) Não, não abra a boca. Feche esta latrina senão estraga tudo.


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PEDRO

FERREIRA

Afinal, estamos em paz, o que passou, passou, é preferível a paz do que a guerra,

(Retorna da rua, atravessa a sala e o quarto, atinge a cozinha e dirige-se à

todo soldado sabe disso.

Joana.) Palavra é palavra, negócio desfeito, punhal no peito.

JOANA

JOANA

Justamente, é preferível a paz, principalmente dentro do lar. Boa romaria faz que

(Para ele.) Vá-se embora, não me atente mais. A sala é sua, pode dormir nela,

em sua casa chega em paz ou quem em sua casa está em paz. SEVERA Pedro, a partir deste momento tu vais saber de tudo. A partir deste minuto tu vais saber porque não admito a morada do Cabo Ferreira aqui, porque detesto este homem.

mas agora desinfete, volte somente à noite. SEVERA (Para Ferreira, altiva.) Acho melhor não sair já-já. Vou dizer a meu marido toda a verdade a seu respeito, a respeito da sua falta de compostura.

JOANA

FERREIRA

Meu Deus, dessa vez espoca o escândalo... (Dramática) Severa, basta de falatório,

Eita! O que lhe deu nos miolos, bichinha?

mais tarde você discursa sobre o tal assunto. (Súplice) Cabo Ferreira, dê uma voltinha antes

SEVERA

que a casa caia. (Empurra-o para a rua.) Pedro, jogue uma pá de cal nesta lenga-lenga,

Vou mostrar a meu esposo o perigo que você representa nesta casa.

encha o pote pra mim na cacimba (Conduz Pedro à cozinha, coloca-lhe nas mãos o pote de

JOANA

barro, fazendo- sair para o quintal.)

(Assustada) Severa de minha alma, se contenha.

PEDRO

SEVERA

(Saindo) O pote está quase cheio.

Vou desmascará-lo, ouviu?!

JOANA

JOANA

É... Mas... a água ficou choca... ponha outra. (Pedro sai; Severa chega da sala.)

Severa, Severinha, se aquiete.

SEVERA

SEVERA

Comadre, não adianta.

Vou exigir de Pedro uma providência à altura da minha honra de mulher casada.

JOANA

JOANA

Severa, por tudo quanto é mais sagrado, se cale.

(Trêmula)

SEVERA

Está me dando um chilique...

É impossível.

PEDRO

JOANA

(Entra do quintal distraído, o pote no ombro.) A água.

Pelo menos espere uns dias. Quem espera sempre alcança.

SEVERA

SEVERA Alcança o quê? A desgraça? Ah! Esta eu sinto que alcançarei, esta eu sinto que vem se aproximando, só peço a Deus que salve meu filho. JOANA Que é isto, Severa? Que desgraça?

(De chofre.) Pedro, o Cabo Ferreira está apaixonado por mim. (Com o choque da surpresa Pedro larga o pote, que se quebra ruidosamente no chão.)


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142

SEGUNDO ATO

JOANA Essa coisa esquisita é o medo, ora se é. Toda mulher prenha, inteirou oito meses,

É noite, os três aposentos do casebre são iluminados por fumacentas lamparinas.

começa com dengo. Tenha fé e o medo se evapora. Sabe a estória da oração costurada? SEVERA

Transcorreram algumas semanas. Severa está no oitavo mês de gestação.

Ouvi dizer que existem orações poderosas, para casos como o meu, mas não VOZ DE MOLEQUE, FORA.

acredito muito. JOANA

Velha coroca, nariz de taboca...

A estória da oração costurada é esta: alguém enrolou uma oração num pedaço de

JOANA (Entra da rua gesticulando, como se repreendesse o moleque; vai ao quarto, onde

couro, costurou bem costurada e deu para certa mulher que ia ter filho, garantindo que, na

se encontra Severa, semideitada numa rede.) A Vizinha não tarda; tinha ido ao Teatro

hora do parto, se ela segurasse e apertasse a bolsinha de couro com a oração, a criança

Politeama, com a filha e o futuro genro. A velha ainda gosta dos seus fandangos, eu queria

nascia como um anjo. A mulher, quando teve a dor, tacou a oração na mão direita e haja a

que você visse como ela chegou toda empiriquitada, toda perequeté. Aquela negra tem

apertar – pois não é que o parto foi de rainha? Aí o boato se espalhou e toda mulher das

alma de branco.

redondezas, na hora de ter filho, apertava a bolsinha da oração entre os dedos e a criança

SEVERA

nascia logo, lépida e faceira.

Comadre, estou tão indisposta... Será que perco esta criança?

SEVERA

JOANA

Uma oração dessas contra perseguição de homem me servia, porém não creio

Não perde não. Dou o meu pescoço a cutelo. Conheço gravidez como a palma da

nisso...

minha mão, e por falar em mão sou parteira de mão cheia e com estas mãos já peguei mais

JOANA

de uma dúzia de crianças.

É o seu erro. Se tivesse fé talvez se livrasse da caipora. A fé faz milagre, criatura.

SEVERA

SEVERA

Sinto a barriga pesada...

Fé é uma coisa, superstição é outra.

JOANA

JOANA

Isto é a falta de prática, primeiro filho é assim, depois acostuma. Não banque a “cabôca” do sítio.

No fundo tudo é o mesmo, tudo é crença, o principal é ter crença. A estória da oração costurada prova isso, deixe eu acabar de contar. Por mais melindroso que o parto

SEVERA

fosse, toda mulher, apertando a bolsinha, descansava logo; era água fira na fervura. Um

Comadre, tenho tido uns pesadelos...

dia, quando a mulherada já havia apelidado a bolsinha da oração do “pacotinho

JOANA

milagroso”, um velhote embriagado descosturou o couro, abriu a bolsinha e leu a oração;

Tudo é resultado do medo. Você está temerosa de... com perdão da palavra –

sabe o que estava escrito no papel?

temerosa de parir.

SEVERA

SEVERA

O que era?

Não, comadre, é uma coisa esquisita dentro de mim...

JOANA O que estava escrito, a tal oração do “pacotinho milagroso” só tinha estas três palavras: “PÁRI LOGO, BESTA ”...


143

144

SEVERA

JOANA

(Com profundo abatimento.) A Vizinha está demorando. Ela vem mesmo?

Então repouse, vou tomar um caribé. (Desloca-se para a cozinha, onde um pote

JOANA

novo substitui o que foi quebrado; lá defronta Pedro, fumando, cismarento.)

Vem. E na oração dela pode confiar, a velha entende do riscado. Aquilo é

PEDRO

curandeira de nascença, e ainda por cima formada com o pagé Procópio, de Vigia.

E a Vizinha?

SEVERA

JOANA

Será que ela me cura mesmo deste mal-estar?

Não tarda.

JOANA

PEDRO

Cura. Ela cura qualquer urucubaca. Em dois dias você fica toda sagica.

Problema...

SEVERA

JOANA

Ah! Comadre, a senhora até me anima com seu entusiasmo.

Gravidez avançada é assim, seu tio-bimba.

JOANA

PEDRO

Você está mais murcha do que pinto gouguento. Desperte, criatura, gravidez só é

Tenho pra mim que isso da Severa não é só gravidez, é desgosto porque eu não

doença em rico, para nós é saúde.

pus o Cabo Ferreira para fora de casa.

SEVERA

JOANA

Tem razão. Nada de bom se consegue sem luta ou sem sacrifício.

É bem possível.

JOANA

PEDRO

Assim é que se fala, mas não basta falar: endireite esta cara desenxabida e penteie

A senhora acha que eu deveria ter enxotado o Cabo Ferreira?

este cabelo.

JOANA

SEVERA

Não sei... sei é que ele é um cínico de marca maior, cinismo ali é mato.

(Prende os cabelos com um “pente de coque”.) Pedro não me permite aparar estes

PEDRO

cabelos, estão enormes, cresceram mais que a barriga.

O que a senhor acha que eu devia ter feito, sendo ele meu amigo e colega?

JOANA

JOANA

Os homens tem cada capricho tolo, não é? O meu finado marido não deixava eu

O que devia ter feito também não sei. Mas que você é um pamonha, é.

me empoar, porque o pó para ele era novidade extravagante. Coitado, tão cedo o Diquito é

PDERO

que virou pó...

Pamonha por quê?

SEVERA

JOANA

(Move-se na rede, faz uma careta.) Viu, comadre? Fui me entusiasmar com a senhora, as pontadas voltaram. JOANA Levante e caminhe um bocadinho para criança se acomodar no lugar dela. Ande, andar faz bem, cobra que não anda não enfole sapo. SEVERA Prefiro continuar nesta posição. Sinto um cansaço!

No princípio eu era favorável à moradia do Cabo Ferreira aqui. Quando aluguei a sala não imaginei que ele premeditava namorar a Severa, quero morrer de gota serena se sabia... PEDRO Esse namoro é invenção da Severa. Ela criou isso na cabeça porque o Cabo Ferreira elogia muito a beleza dela.


145

146

JOANA

JOANA

“Menas” verdade. O Cabo Ferreira persegue mesmo a Severa, não é implicância

O povo aumenta, mas não inventa... Pedro, o que você tem a fazer, e fazer

dela com ele não.

depressa como quem rouba, é convidar o Cabo Ferreira para ir cantar noutra freguesia.

PEDRO

PEDRO

Persegue nada. Ele faz os elogios como prosa e a Severa leva a mal.

Não posso.

JOANA

JOANA

Seja como for, no princípio eu era pela moradia do Cabo Ferreira conosco, agora

Pode. E deve, porque não é justo Severa amanhã ser difamada, e talvez o pelo

não. E sou de opinião que você deve reagir. Quem muito se abaixa...

próprio Cabo Ferreira, que adora contar vantagem.

PEDRO

PEDRO

Sendo expulso daqui ele não tem para onde ir. Está desarranchado no quartel.

Vou refletir, sou um homem prudente.

JOANA

JOANA

Que se lixe!

Prudente não, covarde. Mais covarde do que eu.

PEDRO

PEDRO

Com mais vinte ou trinta dias Severa tem a criança, o nervoso passa – tudo é

Já tomei as minhas precauções.

nervoso dela – e as coisas se modificam.

JOANA

JOANA

Você tomou foi caldo de preguiça, para ser tão molongó.

Fique nessa fiuza e não estranhe depois a desmoralização.

PEDRO

PEDRO

Quer me ofender?

Desmoralização?

JOANA

JOANA

Quero lhe dar um chá de coragem, antes que seja tarde.

Sim. Os “filhos da Candinha” não demoram a murmurar...

PEDRO

PEDRO

Coragem eu tenho. Sou apenas cauteloso.

O quê?

JOANA

JOANA

Tem coisíssima nenhuma. Tem é medo. Tem mais medo de afrontar o Cabo

Pedro, não se faça de embasbacado. Daqui a pouquinho toda a vizinhança começa a falar que o Cabo Ferreira procura namorar a Severa nas suas barbas e você nem seuSouza...

Ferreira do que o diabo da cruz. Por que não passa debaixo de um defunto para perder esse medo? PEDRO

PEDRO

O meu defeito é ser educado.

Alguém falou isso?

JOANA

JOANA

Educado não, zuruó. Parece um cachorrinho acorrentado, lambendo os pés cheios

Por enquanto não, porém mais dia menos dia... essa gente tem a língua ferina.

de chulé do Cabo Ferreira. O seu nome, em vez de Pedro Cavalcante de Oliveira, devia ser

PEDRO

Pedro Cavalcante de COLEIRA...

Sei como enfrentar essa injúria. Existe a Polícia.

PEDRO (Com um murro na mesa, agastado.) Basta! Eu vou resolver este caso.


147

148

JOANA

PEDRO

Até que enfim. Salvou-se uma alma...

Desta forma eu não posso proceder. O Cabo Ferreira é meu superior.

PERDO

JOANA

A senhora me auxiliará... JOANA

Superior em que, um bestalhão daquele. Ele se gaba de muitas bravuras porém é tudo lambança.

Eu não. Eras!

PEDRO

PEDRO

O Ferreira é cabo e eu sou soldado raso; desacatando ele vou preso.

Eu peço para o Cabo Ferreira se mudar e a senhora diz o motivo.

JOANA

JOANA

Não digo que é um bocó?

Eu? Se enxergue, Pedro.

PEDRO

PEDRO

Não me avacalhe...

Não se toca no assunto da Severa. A senhora alega que precisa da sala para

JOANA

abrigar uma conhecida. JOANA Vamos ser frouxo, mas assim é demais. Por que tem tanto pavor do Cabo Ferreira, hein?

Um palerma. Com um marido do seu tipo, coitada da Severa. Ela que passe pena de jurutaí por baixo da cama para proteger a honra, senão está frita... PEDRO Severa tem moral de sobra para zelar pela honra dela.

PEDRO

JOANA

Não é pavor. É que na minha frente ele sempre foi um sujeito respeitador.

Tem, contudo não se fie muito... o Cabo Ferreira é matreiro, desencava um olho

JOANA

de boto...

Pois vá remediando a situação, vá remancheando e depois não se arrependa.

PEDRO

PEDRO

O que a senhora quer dizer com isto?

Se houvesse um recurso...

JOANA

JOANA Para mandar às favas o Cabo Ferreira? Há, sim: hoje mesmo você está com a faca e o queijo na mão. PEDRO

Duas coisas. Primeiro: mulher alguma, por mais fiel que seja, resiste a um homem que traga consigo olho de boto. Segundo: o Cabo Ferreira, com toda a liberdade dentro de seu lar, sujigando a sua esposa todo santo dia, sujigando, sujigando, sujigando... o que poderá acontecer?

Como?

PEDRO

JOANA

Eu é que lhe pergunto.

Ele ainda não chegou e sabe como ele chega aos sábados, não sabe?

JOANA

PEDRO

E eu respondo: ou ele agride ela, ou ela agride ele...

Embriagado.

PEDRO

JOANA

Ou ele se decepciona...

Adivinhou, passarinho verde... Aproveite a ocasião, berre que o seu lar não é antro de cachaceiro, e se o dito cujo estrebuchar, pau na moleira dele.


149

150

JOANA

JOANA

Ou ela dá com os burros n’água e você não pode nem se queixar, tem que ser

Porém antes você pega uma acha de lenha maraximbé e sapeca nele. É pá casca.

corno manso.

PEDRO

PEDRO

E depois?

(Ruborizado) Não fale deste modo.

JOANA

JOANA

Depois feijão com arroz.

Falo, porque estou até aqui consigo. Então o Cabo Ferreira tem a petulância de

PEDRO

perseguir a Severa e você não se dá por achado? PEDRO

Somos militares, eu subalterno, disciplina é disciplina, se bater no Cabo Ferreira é xadrez na certa. Talvez expulsão.

Ele não persegue, é o nervosismo dela.

JOANA

JOANA

Francamente, nunca houvera de pensar que você fosse tão boboca.

Tomara que dê na veneta da Severa lhe enganar. Quando você menos esperar,

PEDRO

pronto: acabou-se o que era doce...

Hei de dar baixa da caserna com o meu nome limpo.

PEDRO

JOANA

Quando menos esperar o quê?

Ouça, Pedro, a mim ninguém toma por lesa. Qual é a verdade?

JOANA

PEDRO

Quando você menos esperar, babau! Estará mais chifrudo que boi do Marajó!

Que verdade?

PEDRO

JOANA

(Explodindo de irritação.) Pare! Pare!

Nessa sua recusa de despachar o Cabo Ferreira há dente de coelho. Ou você é

JOANA

muito medroso mesmo ou está mal intencionado com a sua mulher, ou esconde alguma

(Noutro diapasão, fraternalmente.) Pedro, eu sei, jamais Severa cairá em desonra.

coisa.

Estou-lhe cutucando dessa maneira para sacudir seu tino, para você tomar uma providência

PEDRO

enquanto é tempo. O Cabo Ferreira pode reinar com a sua mulher, ela pode ter um abalo e

Bom, a verdade...

perder o filho. Sou parteira há mais de dez anos neste Umarizal e tenho visto muita mulher

JOANA

abortar em consequência de susto e de ser magoada. PEDRO

É o medo. Você não tem tupete de botar as cartas na mesa com o cabo Ferreira, não é?

O Cabo Ferreira não tira do bolso a navalha...

PEDRO

JOANA

Mais ou menos....

Grandes coisas! Por causa de uma navalha você vai ficar tremendo que nem vara

JOANA

verde na frente daquele tratante? PEDRO Numa refrega do Cabo Ferreira comigo ele pode machucar a Severa, por vingança.

Eu bem desconfiava. PEDRO O medo me paralisa, não adianta negar. Medo do Cabo Ferreira me prejudicar no quartel e medo dele fazer uma arte com Severa, despeitado. Mas a senhora se encontra noutra posição é a dona da casa, podia resolver o problema.


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JOANA

JOANA

Quem, eu? Uma osga!

Não, Pedro, grave é outra coisa, você bem sabe...

PEDRO

VIZINHA

Por que não?

(Encerrando o exame.) O que ela tem é doença chinfrim: espinhela caída.

JOANA

JOANA

(Num rasgo de sinceridade.) Porque também tenho medo...

Ela tem espinhela caída?

PEDRO

VIZINHA

E fica me criticando, me ridicularizando... JOANA

Na batata, mas eu curo isso em três tempos. Ponham um grelo de malvarisco no peito e nas costas, depois me informem o resultado.

Não estava mangando de você não. Estava só alertando, porque a mulher cobiçada

SEVERA

é sua. De mais a mais, não queira se comparar comigo, uma pobre aleijada pelo

Vizinha, a criança está no lugar?

reumatismo.

VIZINHA Isto a Joana vê, minha filha. A parteira é ela. Eu só entendo de doenças caseiras,

VIZINHA (Entra da rua, dando o primeiro passo com o pé esquerdo, retrocede e retifica a

mal e porcamente.

passada, a fim de penetrar na sala com o pé direito.) Custei, mas cheguei, e cheguei com o

JOANA

pé direito. (Invade o quarto para onde igualmente se dirige Joana, saindo da cozinha.) O

A criança está no lugar, Severa. Não tenha dúvida. Este coirão nasce direitinho.

que é isto, Severa? Puseram mandinga em você?

VIZINHA

SEVERA

Ainda é pra êste mês?

Umas tonteiras, pontadas, palpitações, tanta coisa reunida...

JOANA

VIZINHA

Olhe como a barriga dela empinou, Vizinha. Com toda certeza é homem.

Bebeu o chá de erva-cidreira?

VIZINHA

JOANA

(A Pedro.) Comprou uma tesoura nova?

Não, ontem ela se alagou no tacacá, eu pensei que fosse fígado, dei o chá de

PEDRO

sucuba.

(Para Joana.) A senhora não tem? VIZINHA

JOANA

Vai ver que é a mãe do corpo. Deixe examinar. (Apalpa Severa demoradamente; Pedro chega da cozinha, intervém, solícito.)

O quê? Tesoura nova para cortar o umbigo do curumim? Não, sou parteira mas não tenho: casa de ferreiro, espeto de pau.

PEDRO

SEVERA

Ela está nervosa. Fica tranquila, Severa.

Basta o malvarisco para me aliviar, Vizinha? Eu padeço também de uma falta de

VIZINHA (Detendo a destra sobre o músculo cardíaco de Severa.) Chi!... Vejam o baticum do coração.

ar... VIZINHA Minha filha, eu vou convocar os meus caruanas pra fazerem uma descarga no teu

PEDRO

lar. Se não houver melhora no prazo de dois ou três dias é porque existe algum trabalho de

É grave?

macumba feito contra ti, trabalho de inveja. Aí somente um tajá curado resolve.


153

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JOANA

PEDRO

Como se prepara esse tajá curado? Ensine logo porque além da mofineza da

Deus lhe recompense, Vizinha. Amanhã eu falo com a senhora sobre o tajá...

Severa... (olha significativamente para Pedro.) nós aqui em casa estamos com um

VIZINHA

problema do tamanho de um elefante...

Vou indo, é tarde, a noite está um breu.

VIZINHA

JOANA

Não tem o que errar: mata-se um gavião caipira, ensopa-se uma blusa ou um

Espere o cafezinho.

qualquer pano no sangue dele, queima-se a fazenda suja de sangue e com as cinzas alimenta-se o pé de tajá. Curado deste modo o tajá atrai a felicidade pro lar. SEVERA

VIZINHA Não, Matinta-Perera tem aparecido cedo, não quero topar com visagem. (Encaminha-se para a sala, seguida por Joana e Pedro. Severa permanece no quarto.)

Obrigada, Vizinha, mas eu confio mesmo é nas minhas preces.

JOANA

JOANA

Ainda ontem eu acordei de madrugada com um assovio de Matinta-Perera.

(Para a Vizinha.) Ela gosta de rezar. Reza à bessa. E quando reza se compenetra

VIZINHA

tanto que, mal comparado, parece uma santa... VIZINHA Minha filha, tu gosta de rezar? Então vou te ensinar a “Oração da Força do

Não era ela, não, era um rasga-mortalha. Mau agouro. Rasga-mortalha deu sinal, pode anotar, alguém entregará a alma a Deus por estas bandas. JOANA

Credo”. Tenho copiada lá me casa, trago no papel, pra não esqueceres. É curtinha, diz

Tomara que seja o maldito do cabo Ferreira.

assim:

VIZINHA Meu amantíssimo Jesus

Ele não se endireitou? Não deixou de perseguir a Severa?

Eu vos ofereço este credo

JOANA

Que rezo em tenção de Nossa Senhora do Desterro

Já viu pau que nasce torto se endireitar? Continua atucanando a Severa.

Pra desterrar todos os meus inimigos

VIZINHA

Pra que me livre da ponta de faca

E Pedro não sabe? JOANA

Da boca de espingarda

(Sarcástica) Paresque...

De todo instrumento cortante

PEDRO

De todo malefício

A história não é bem assim...

De morrer afogada

VIZINHA

Nosso Senhor Jesus Cristo no rio Jordão salvou a Pedro

JOANA

(Para Joana.) E você acoita na sua casa gentinha dessa espécie? Na barca de Noé eu me tranco Eu me fecho

Quando aluguei a sala para o cabo Ferreira, já lhe disse, não pesquei a tramóia que ele arquitetava. Se arrependimento matasse...

Nosso Senhor Jesus Cristo me acompanha na vida e na morte

VIZINHA

E com três palavras eu me benzo.

Ele não respeita nem a barrigona da Severa?


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156

JOANA

VIZINHA

Não tem a menor consciência, é um esganado por mulher.

E você, vá mundiar desta casa, seu desavergonhado.

VIZINHA

FERREIRA

Quem diria! Um sujeitinho encarquilhado daquele, feio como a necessidade...

(Procura algo no bolso em vão.) Ah! Se eu estivesse com aminha navalha, velha.

JOANA

VIZINHA

Metido a conquistador, se julga mordido de formiga taoca.

E ah! Se eu tivesse aqui com a minha muxinga, seu Curupira.

VIZINHA

FERREIRA

(A Pedro.) E você não se mexe?

O que, velha? Vosmecê me surrava de rebenque? Era mulher capaz disso?

PEDRO

VIZINHA

A história não é bem essa.

Sou mulher até pra lhe por um sapo na barriga.

JOANA

JOANA

Eu cansei de dizer a Pedro para reagir. A senhora reagiu? Assim foi ele.

Vizinha, não gaste a sua vela com defunto tão ruim.

VIZINHA

PEDRO

É... Esse costume de conquistar mulher dos outros está entrando em voga...

Ele está embriagado, não adianta discutir.

JOANA

JOANA

Porque existe muito marido com sangue de barata. Não vê este aí? Acha que para

É malhar em ferro frio.

enfrentar o cabo Ferreira deve aguardar primeiro a mulher ter criança, acha que deve

PEDRO

esperar quase um mês, acha que isso não é sangria desatada.

Vá dormir, Vizinha, eu lhe acompanho, deixo a senhora na porta de sua barraca.

VIZINHA

VIZINHA

O único jeito é vocês, sempre quando o Cabo Ferreira entrar em casa, virarem a

Vou mas jogo uma praga pra ele, não levo desaforo pra casa.

vassoura pro ar e jogarem um pouco de sal no fogo.

FERREIRA

FERREIRA

Cale a boca, velha arreliada.

(Entra alcoolizado.) Chegou eu. (Cambaleia, mira Joana de cima a baixo,

VIZINHA

provocadoramente.) JOANA

(Imponente, para Ferreira.) Tenho fé em Deus, e na Virgem Santíssima, que você há de acabar os seus dias coberto de lepra num hospital ou coberto de ódio numa prisão.

Por que me olha com estes olhos de seca pimenteira?

FERREIRA

FERREIRA

(Gargalhada boçal.) Ora, ora, velha espevitada.

Fedorenta.

VIZINHA

JOANA

Te desconjuro. (Sai).

Fedorento é quem chama.

PEDRO

VIZINHA

Que praga!...

Apoiado. Apoiado.

JOANA

FERREIRA

Muito merecida: os anjos do céu digam amém.

(Volta-se para a Vizinha.) Vá se coçar, velha feiticeira.


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FERREIRA

JOANA

(Trôpego) Estou tonto... tonto...

Severa está deitada.

JOANA

FERREIRA

(A Pedro, num sussurro.) Aproveite a ocasião, escorrace ele. Quer que eu apanhe

Deitada? (Entra no quarto.)

uma acha de lenha?

JOANA

PEDRO

Não disse? E agora, seu degas?

Não forme um escarcéu, a Severa pode ouvir e piorar.

PEDRO

JOANA

(Sem iniciativa.) É duro ter juízo.

Aproveite, ele está desarmado. Não viu que quando xingou a Vizinha ele

JOANA

vasculhou o bolso e não encontrou a navalha.

Mais duro é ter um marido paspalhão. Faça alguma coisa, homem! Se de fato é.

FERREIRA

PEDRO

(Totalmente dominado pela embriaguez, fala sem atinar o que diz.) Dancei no

Estou refletindo.

boi-bumbá... dancei e briguei.. Foi cacete que nem Nosso Senhor em dois anos remenda os

JOANA

feridos...

Não há o que refletir, seu. Ou você veste calça por informação? JOANA

PEDRO

Aproveite, Pedro. Quem tem medo morre cedo. Morre na véspera, que nem porco.

Não me afobe.

FERREIRA

JOANA

Estou tonto... e vou beber mais até endoidecer... hoje, eu mando um pro inferno...

Será que você não gira bem da bola?

PEDRO

PEDRO

Ouviu? É bom ter paciência, é bom ter paciência. Ele fica possesso aqui, Severa

Venha comigo sem zuada.

desmaia, tem um passamento, aborta. FERREIRA

JOANA Inda mais esta! (Entram os dois no quarto; Severa ressona na rede, indiferente à

Hoje eu faço uma arruaça, hoje eu viro cangaceiro.

presença de Ferreira, este, postado ante Severa, balança o corpo silenciosamente, ébrio;

JOANA

há uma pausa; Pedro e Joana, sem ação, prolongam a expectativa do que poderá ocorrer

Você não bota cobro nas impertinências dele, é isto, está escutando? Cangaceiro!

em tal circunstância.)

Não toma uma decisão, não ata nem desata.

FERREIRA

PEDRO

(Baixinho) Severa...

Eu sei o que faço.

PEDRO

JOANA

Psiu... ela está adoentada, não perturbe.

E eu sei o que digo. Você termina ficando sem a Severa. Deus só dá asa a quem

FERREIRA

não sabe voar; uma mulher tão virtuosa e um marido tão... deixa eu me calar, o melhor é

(Suspende a voz.) Severa...

meter a viola no saco...

JOANA

FERREIRA Severa... onde se socou a Severa?...

Saia, seu inconsciente; não ouviu Pedro dizer que ela está malacafenta?


159

160

FERREIRA

FERREIRA

(Inflexão mais forte.) Severa!

Se volto?... Minha cabeça está rodando... mas ainda vou pra um forró...

SEVERA

JOANA

(Erguendo-se) O que é isto?

Vá. Deus lhe leve e não lhe traga mais.

PEDRO

FERREIRA

Não é nada não, ele se embriagou.

Vou a uma festança do arromba... na Pedreira ...

SEVERA

JOANA

(Impetuosa) Com autorização de quem invadiu o meu quarto?

Pois o que espera? Vá logo senão eu me espoleto. (Puxa-o para a porta da rua.)

PEDRO

FERREIRA

Calma, Severa, calma.

Que braveza é esta?

SEVERA

JOANA

(Contundente) Não me respeita? Sou sua cativa? Sou sua amante?

Estou a pique de me engalfinhar consigo, seu caraquento.

JOANA

FERREIRA

Isto, dê uma lição em regra nele.

Não me desfeiteie... não me achincalhe...

SEVERA

PEDRO

(Vibrante) Não tem pudor?

Tenha calma, tenha calma.

PEDRO

JOANA

Severa, não acorde os vizinhos.

(A Pedro.) E você, tudo o que sabe dizer é “tenha calma, tenha calma” – uma

JOANA

besta quadrada!

O que tem os vizinhos? Dê uma banana para eles.

FERREIRA

SEVERA

Por que deseja que eu me arribe?

(Recosta-se na rede.) Ai! A minha fronte...

JOANA

PEDRO

Porque você não tem um cuí de vergonha.

(Aparando-a e fazendo-a deitar-se.) Eu previ, eu previ.

PEDRO

JOANA

Não complique a situação.

(A Ferreira.) Puxe já daqui! (Empurra-o para a sala.)

JOANA

PEDRO

Quem complica tudo é você. Não passa de um tapado. Fique no quarto com a sua

(À Severa.) Melhorzinha?

mulher e me deixe sozinha, sei onde tenho o nariz.

SEVERA

PEDRO

Passou. Só uma sonolência.

Concordo, mas tenha cuidado com o seu nariz. (Vai para o quarto.)

PEDRO

FERREIRA

Cochile, adormeça. (Sai para a sala.)

Perneta levada da breca... eu lhe dou uns bofetes...

JOANA

JOANA

(A Ferreira na sala.) Volte pra rua. Volte pra sua gandaia.

Só se for dia de São Nunca.


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FERREIRA

PEDRO

E vosmecê não ganha mais o aluguel da sala... pra comprar as suas pílulas...

(Procura encher um caneco d’água, constata que o pote está vazio.) Devolveu o

JOANA E eu tenho precisão de me sujeitar à sua patifaria por causa de dinheiro? Axi! Porcaria.

balde emprestado? JOANA Não.

FERREIRA

PEDRO

Vosmecê quer me despedir de vez daqui?... É?...

Ótimo, vou encher o pote. (Apresta-se para executar a tarefa.)

JOANA

JOANA

É.

Não torne a me quebrar o pote, por favor. Este pote é novo, custou caro e eu tenho

FERREIRA

de pagar uma promessa com ele.

Pra onde quer que eu vá? ... Pro quartel?

PEDRO

JOANA

(Aludindo ao pote.) Bojudo como a barriga de Severa.

Para qualquer parte, até para onde o diabo perdeu o cachimbo.

JOANA

FERREIRA

Se o Cabo Ferreira se mudar, sem espalhafate, levarei este pote para o largo de

Eu sei o que vosmecê está maquinando... pago o aluguel dobrado, serve?

Nazaré, no dia do Círio. Promessa é promessa, eu prometi distribuir água pra quem

JOANA

acompanha a procissão descalço. (Pedro sai para o quintal.)

Não. Quem tem nariz furado é índio.

SEVERA

FERREIRA

(Gemendo no quarto.) Comadre, venha cá.

Vosmecê acha que fez um mal negócio?

JOANA

JOANA

(Atendendo) O que é?

Pior que uma ferrada de arraia.

SEVERA

FERREIRA

(Exibindo o ventre.) Repare, repare, a criança está pulando, não está apenas se

Vosmecê é ranzinza, hein?

mexendo, está pulando.

JOANA

JOANA

Pela luz que me alumia, se você não sair já eu pego uma acha de lenha e lhe

Isto é comum, Severa. (Rindo) Marinheiro de primeira viagem é assim mesmo.

achato (Coloca-o para a rua tranca a porta.)

quiser.

162

SEVERA

SEVERA

Corra, chame o Pedro para ele ver.

(A Pedro, no quarto.) Estou com sede...

JOANA

PEDRO

(Desce para a cozinha, até o limiar da porta do quintal.) Pedro! Pedro!

Não se levante, eu trago água. (Desce para a cozinha ao lado de Joana.)

PEDRO

JOANA

(Entra esbaforido, com o pote na mão.) Severa piorou?

Graças, ele se foi para farra. Por hoje dorme-se em paz, manhã seja o que Deus

JOANA A criança está pulando na barriga dela.


163

164

TERCEIRO ATO

PEDRO Eu não disse? Eu bem que avisei! (Dirige-se para o quarto atarantado, deposita o pote em falso sobre a mesa, o pote cai e quebra-se ruidosamente, repetindo o acontecido

É hora do crepúsculo. A cena está fracamente iluminada e a claridade que a envolve

no ato anterior.)

vai esmaecendo com o pôr do sol. Severa, à porta do quintal, admira o firmamento; o volume de seu ventre, mais dilatado, denuncia os últimos dias de gestação. JOANA (Abastecendo as lamparinas.) Matutando, Severa? SEVERA (Olhando o céu.) Como as nuvens estão mimosas, comadre. Amarelas, róseas, esverdeadas, roxas... JOANA (Observando) É, diversas cores. Porém, aquela nuvem escura ali... nuvem escura como aquela à tardinha, é chuva. Pode esperar o aguaceiro. Eu só penso nas goteiras, ontem surgiu uma em cima da minha rede. SEVERA Chuva grossa, a de ontem. JOANA Um pampeiro. E estamos em julho, é verão. Como chove nesta terra. SEVERA Tem chovido até com sol. JOANA É, chuva com sol, casamento da raposa com o rouxinol... SEVERA Olhe, comadre, em cima daquela mangueira, parece um monte de brasas... JOANA (Olhando) Parece um incêndio, um fogareiro escritinho. SEVERA E veja aquela nuvenzinha, deslizando como uma canoa no igarapé. JOANA Em riba dela está... se formando... não é uma tartaruga? SEVERA Não, lembra mais uma criança de colo.


165

166

JOANA

SEVERA

Você agora só pensa em criança.

Não sinto medo. Sinto um desalento...

SEVERA

JOANA

Dentro de uma semana, se as minhas contas não falharem, terei a minha nos

Nervoso, como diz o Pedro.

braços. Que alegria!... Olhe ali, comadre, a lua vem aparecendo, igualzinha a uma bola de

SEVERA Nervoso também não é. Uma coisa esquisita... não posso explicar. Como se uma

algodão. JOANA

desgraça estivesse para me acontecer.

Cheia como o seu bucho.

JOANA

SEVERA

Não fale nisso que amanheci com o olho esquerdo tremendo.

Olhe aquela estrela perto dela, como brilha.

SEVERA

JOANA

Não sei se foi a prisão de Pedro que me afundou nessa tristeza.

Não aponte para estrela que dá verruga.

JOANA

SEVERA

O que Pedro lhe disse quando você foi deixar o almoço? A prisão dele custa a

Olhe, olhe a criança de nuvem vai-se desfazendo. Que pena!

terminar?

JOANA

SEVERA

Pena por quê? Era apenas de ilusão.

Mais uma semana... se a criança nascer antes...

SEVERA

JOANA

Podia durar mais...

Veja como são as coisas: Pedro não expulsou o Cabo Ferreira temendo uma

JOANA

confusão e cadeia – acabou indo para o xilindró por causa de uma insignificância. Castigo.

Se deseja uma criança de mentira, assim branquinha, eu fabrico uma para você de

Deus tanto castiga os valentes como castiga os covardes. VIZINHA

espuma de sabão.

(Entra com os seus modos extrovertidos.) Boa tarde, pessoal; ou boa noite.

SEVERA Não, desejo de verdade. De mentira já tenho, quando durmo e sonho. Sabe, comadre, às vezes fico pensando que não há dentro de mim uma criança real, de carne e

(Atravessa o quarto, atinge a cozinha.) Severa, eu soube que você vai dormir fora; já é para ter o bebê? SEVERA

osso... JOANA

Não, vou dormir na casa da Maria Antônia porque Pedro está preso no quartel.

Ainda bem que este filho pula na sua barriga que nem bode na chuva.

JOANA E o Cabo Ferreira anda farejando ela, como é do seu conhecimento. Não se pode

SEVERA Às vezes tenho a impressão de que esta criança não se criará... É uma sensação estranha que me assalta. JOANA Já deixou escapulir para mim, que ando bicorando o seu comportamento: é o medo do parto. É você com medo do parto e o seu marido com medo do Cabo Ferreira.

facilitar. SEVERA Hoje, quando fui levar o almoço, comuniquei a Pedro que não suporto mais essa situação. Tive até uma crise de choro. Como não há meio de fazer o Cabo Ferreira me respeitar, Pedro aconselhou que eu dormisse fora uns dias.


167

168

JOANA

JOANA

Pelo sim pelo não, é melhor.

Abria a boca que nem jacaré quando engole piranha...

VIZINHA

VIZINHA

Estou de pleno acordo, minha filha, abra o olho.

Juro pela luz divina.

JOANA

JOANA

Ela está com a barriga tal qual uma camaleão ovada, porém assim mesmo é

Olhe que quem jura falso...

possível que o devasso tente lhe possuir. O Cabo Ferreira não tem escrúpulo com mulher.

VIZINHA

Para ele o que cair na rede é peixe...

Não sou de lesco-lesco, Joana.

VIZINHA

JOANA

Por que ele não se amiga com uma mulher da vida?

Pudera! Com três homens parrudos em casa... Vantagem fiz eu, que descompus o

VIZINHA

Cabo Ferreira de corpo presente, na sala, enquanto o Pedro catava piolho da Severa no

Devia era trazer a família do Ceará.

quarto.

JOANA Com que grana? Todo o dinheiro que sobra do ordenado ele bebe de cachaça: não tem o que o periquito roa...

SEVERA Não esqueça de dizer, comadre, que o Cabo Ferreira se encontrava tão embriagado que quase não se aguentava em pé.

SEVERA

JOANA

É um irresponsável. Sabe lá as privações sofridas pela sua esposa.

É, com ele no juízo perfeito e a navalha no bolso eu não tinha a ousadia não.

JOANA

VIZINHA

Quem manda ela ser parada? Eu como ela tinha embarcado num vapor, no rumo

Pois eu tinha.

daqui, há muito tempo, com parentes e aderentes. SEVERA Ah! Se ela viesse.

JOANA Morda aqui! Duvido. O cabo Ferreira é um assassino perigoso, já matou gente em Grajaú, não se farta de fazer propaganda disso. É assassino por vocação.

JOANA

SEVERA

(Jocosa) Quando a parentela do Cabo Ferreira der as caras, como essa casa é gita

Ele está demorando para o jantar.

para acomodar muitas pessoas, a gente informa que a Vizinha hospeda todinha a família...

JOANA

VIZINHA

E esse atraso... Acho que tem boi na linha...

Sabe o que eu fazia?

SEVERA

JOANA Se fechava em copas...

Será que ele soube da minha dormida fora e está retardando a chegada de propósito?

VIZINHA

JOANA

Não, recebia todos no meu taperí e em meia hora descascava as palhaçadas do

O bandido é astucioso.

Cabo Ferreira, punha ele mais raso que o chão.

VIZINHA E se o Cabo Ferreira chegar bêbado e proibir a Severa de sair?


169

170

JOANA

SEVERA

Se vier bêbado eu perco as estribeiras e baixo a acha de lenha maraximbé na

Sinto uma sufocação... um aperto na garganta... (Soluça em um pranto reprimido.)

ilharga dele. Sou mulher para isso, quando o meu medo se transforma em coragem. Ele que

VIZINHA

venha com marmota.

Minha filha, não se aflija.

VIZINHA Que pilintra. Tão safado quanto ignorante. JOANA Se espremerem o Cabo Ferreira num tipiti, depois de escorrer todo o caldo da safadeza e da ignorância só resta bagaço.

JOANA (Confortando Severa, que começa a chorar copiosamente.) É da gravidez, Severa, esse nervosismo. SEVERA Qualquer coisa me acontecerá...

VIZINHA

JOANA

Quantos ele já matou?

Não seja esmorecida.

JOANA

VIZINHA

Sei lá. Se a senhora ouvisse ele falar nisso... conta coisas do arco da velha.

Amanhã sem falta eu consigo o seu tajá curado.

SEVERA

JOANA

Esta demora dele para o jantar me preocupa.

De hora em hora Deus melhora.

JOANA

SEVERA

Dá para cismar. Hoje, na hora do almoço, o cínico me pagou o aluguel da sala e deu dinheiro a mais. Quando a esmola é grande o santo desconfia.

(Refazendo-se) Obrigada; sem vocês eu desanimaria. VIZINHA

SEVERA

Este desespero da Severa me recordou a Maria Bárbara.

Perguntou alguma coisa a meu respeito?

SEVERA

JOANA

Maria Bárbara?

Ora si-si. Indagou um bocado de coisas sobre o passado de você e de Pedro.

VIZINHA

SEVERA E o que a senhora revelou?

Sim, ela devia ter uma criança, como você, e como você era mulher de um soldado. Foi no ano de 1800.

JOANA

JOANA

Nada, me fiz de esquecida, como quem comeu casca de queijo.

Coincidência, há cem anos certinho.

SEVERA

VIZINHA

(Leva a mão à testa, acabrunhada.) Essa impressão... essa angústia... qualquer coisa me acontecerá...

De fato, quanta coincidência: ela também lavava roupa pra ajudar o marido a sustentar a casa e era muito correta.

VIZINHA

SEVERA

Não se deixe abater, minha filha. Abaixo de Deus aquela oração lhe resguarda

Costumava ter os meus pressentimentos?

contra todo o mal. JOANA Ih!... meu olho esquerdo começou a tremer novamente... Mau sinal.

VIZINHA Isto eu desconheço. Um dia, quando Maria Bárbara caminhava por uma estrada deserta, pra ir lavar roupa no Marco, foi atacada.


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172

SEVERA

SEVERA

Grávida?

A senhora decorou os versos?

VIZINHA

VIZINHA

Grávida. Um canalha quis bulir com ela, a pobrezinha não consentiu.

Como não, se ouvia todo dia?

SEVERA

SEVERA

Tinha de defender a honra.

Diga pra nós.

VIZINHA

JOANA

Pois é. Defendeu e findou degolada.

Eita! Seu mano. Vamos ter uma representação de poesia.

SEVERA

VIZINHA

Degolada? VIZINHA

(Para Joana.) Minha educação não tem parecença com a sua. Sou um pouquinho letrada, neta de professora.

Sim.

JOANA

SEVERA

Então desemboque os versos; estou cuíra-cuíra para escutar, ô coisa ruim para eu

(Põe instintivamente a mão no pescoço.) Que horror!

achar boa...

JOANA

SEVERA

Criminoso como esse nem Satanás aceita no Inferno.

Não faça cerimônia, Vizinha.

SEVERA

VIZINHA

Quanta crueldade.

(Declama com extraordinária riqueza de mímica; a iluminação, mais fraca,

VIZINHA

obriga Joana a acender as lamparinas durante a recitação.)

Tem gente pra tudo, minha filha. JOANA

Se acaso aqui topares, caminhante,

O Cabo Ferreira é dessa laia.

Meu frio corpo já cadáver feito,

SEVERA

Leva piedoso com sentido aspeito

Pedro afinal tomou uma providência; dormir fora é mais segurança para mim.

Esta nova ao esposo aflito, errante.

VIZINHA Durma. Eu não quero aumentar o seu temor, mas hoje ainda é dois de julho, falta

Diz-lhe como de ferro penetrante

uma boa lasca pro fim do ano e eu sempre ouvi dizer que todo o século termina com uma

Me viste por fiel cravado o peito

grande desgraça.

Lacerado, insepulto e já sujeito

SEVERA

O tronco feio ao corvo altivolante.

Esse caso de Maria Bárbara é impressionante... VIZINHA

Que dum monstro inhumano, lhe declara,

E bastante ilustrativo, como afirmava minha avó, que era professora e não se

A mão cruel me trata desta sorte;

cansava de recitar os versos escritos pelo poeta Tenreiro Aranha em homenagem ao sacrifício de Maria Bárbara.

Porém que alívio busque à dor amara,


173

174

Lembrando-se que teve uma consorte,

VIZINHA

Que, por honra da fé que lhe jurara,

O mundo então ficaria entregue aos maus.

À mancha conjugal prefere a morte.

JOANA Os maus se entendem uns com os outros. Os bons é que quando se misturam com

JOANA

eles pagam o pato.

(Bate palmas, zombeteira.) Meus parabolas, Vizinha.

VIZINHA

SEVERA

Isto é verdade. Não vê a Maria Bárbara? Minha avó afiançava que ela era “nobre e

Formidável.

bela”.

VIZINHA

JOANA

Não carece exaltações.

A coincidência do caso de Maria Bárbara com Severa Romana é curiosa.

JOANA

VIZINHA

Carece, sim, sois merecedente, como dizia o meu pai, que não era professor, mas

Todas duas mulheres de soldado, todas duas barrigudas...

era o homem mais inteligente em Cametá, depois da Cabanagem.

JOANA

SEVERA

Todas em fim de século...

Deem licença um instante; preciso ir comunicar a Leonor que a partir desta noite

VIZINHA

não durmo mais aqui. (Corta o quarto e a sala, sai para a rua.)

Todas duas lavavam roupa pra ajudarem os maridos...

VIZINHA

JOANA

(Referindo-se a Severa.) Tão boazinha e tão atribulada.

Todas duas desejadas por serem bonitas...

JOANA

VIZINHA

É mesmo boa, essa menina. Boa que dói.

Todas as duas fiéis aos maridos...

VIZINHA

JOANA

Tanto é virtuosa como é vistosa.

Meu Deus! Para ser tudo igual...

JOANA

VIZINHA

E caprichosa.

Só falta o Cabo Ferreira degolar a Severa... Vôte! Cruz, credo.

VIZINHA

JOANA

Tem um jeitinho meigo.

Nossa Senhora! Sinto até um calafrio na espinha. Há coincidência até nos nomes:

JOANA

Antônio Ferreira dos Santos, que é como se chama o Cabo Ferreira, e Severa Romana

Simpatia chegou ali, parou. Não existe curiboca mais graciosa neste quarteirão.

Ferreira que é o nome de batismo de Severa.

VIZINHA

VIZINHA

Na idade dela, tão novinha, é raro encontrar moça casada com tamanho senso.

Temos que providenciar o tajá curado o quanto antes.

JOANA

JOANA

Perece que caiu do céu por descuido. Sabe o que eu penso? Pessoas assim não deviam nascer.

Agora quem está com os maus pressentimentos sou eu. E o Cabo Ferreira não tarda.


175

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VIZINHA

JOANA

O perigo é tão grande que talvez somente a oração não dê conta do recado.

É... o marido mandou...

JOANA

FERREIRA

O meu olho esquerdo continua tremendo...

Aquele peste desconfia de mim?

VIZINHA

JOANA

Se eu disser uma coisa você não se apavora? JOANA

Não sei, ele deve estar organizando alguma coisa, Pedro não mete prego sem estopa. Tiro a sua janta?

Dizendo ou não dizendo, apavorada já estou.

FERREIRA

VIZINHA

Tire não. Espero Severa.

Como se não bastasse aquele rasga-mortalha, hoje de manhãzinha xincuã cantou

VIZINHA

triste mais de uma vez.

Até amanhã, Joana. Vou indo porque quem com porco se mistura, farelo come...

JOANA

(Passa por trás de Ferreira, faz o sinal da cruz, exorcizando-o, afasta-se; Joana a segue,

Xincuã cantou triste?

sorrateiramente.)

VIZINHA

JOANA

Cantou.

(Na sala.) Que azar, o cretino não bebeu.

JOANA

VIZINHA

Se xincuã cantou triste...

Viu como ele me tratou?

VIZNHA

JOANA

É morte na certa...

Deve estar se mordendo, por causa da dormida fora da Severa.

JOANA

VIZINHA

Roguemos a Deus que o escolhido seja o cabo Ferreira FERREIRA

A minha satisfação é que nunca uma praga minha falhou. Ou ele termina os dias coberto de chagas num leprosário, ou termina coberto de ódio nas grades duma cadeia.

(Entra da rua, dirige-se à cozinha; não está embriagado.) Cadê Severa?

JOANA

JOANA

O meu olho esquerdo ainda não parou de tremer.

Saiu. Foi avisar a Leonor.

VIZINHA

FERREIRA

Fique com Deus e com o Divino Espírito Santo. (Sai para a rua.)

Avisar o quê?

JOANA

JOANA Ela vai...

(Desce para a cozinha, destampa uma panela no fogão, volta-se para Ferreira; este se conserva sentado à mesa de refeição, impassível.) Ponho a comida?

VIZINHA

FERREIRA

Dormir na casa da costureira Maira Antônia.

Já disse: espero a Severa.

FERREIRA

JOANA

(Para a Vizinha.) Cale a boca, velha; ninguém lhe chamou na conversa. (Para

Está emburrado?

Joana.) Ela vai dormir fora?


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FERREIRA

JOANA

Estou não.

Gosto, porém não sou carrapato para viver pregada nos outros. Cada um que

JOANA

procure suas melhoras, cada macaco no seu galho.

Quer um gole de café?

FERREIRA

FERREIRA

A dormida fora é só por hoje?

Quero não.

JOANA

JOANA

Acho que é toda noite, enquanto eles não se mudam.

Falou com o Pedro no quartel?

FERREIRA

FERREIRA

Mudança de Pedro com Severa?

Falei não.

JOANA

JOANA

Claro. A criança nascendo os dois vão morar noutra casa. Um casal sem filho é

Se você se sente triste, zangado, por que não faz uma farra daquelas? Encha os

uma coisa, com filho necessita de um cantinho isolado.

bofes de cachaça, isso espanta as mágoas. Pode chegar aqui caindo de bêbado que eu cuido

FERREIRA

de você...

Eles não estão bem aqui?

FERREIRA

JOANA

Chame Severa.

Por enquanto. Porém depois do parto a situação é diferente. Criança

JOANA

choramingando, criança fazendo xixi em toda parte, criança mamando... Já imaginou?

Ela risca já aí. Ainda soltam Pedro esta semana?

Severa com os peitos de fora dando leite para o filho, de repente você aparece...

FERREIRA

FERREIRA

Sei não. Por que ele mandou a Severa dormir fora?

E o que é que tem?

JOANA

JOANA

Desta vez sou eu quem diz: “sei não”...

O que tem mostrar os peitos? Pergunte se a sua mãe lhe amamentava na frente de

FERREIRA

qualquer marmanjo.

Vosmecê não deu palpite nesse assunto?

FERREIRA

JOANA

No sertão não se liga pra isso.

Eu? Não tenho nada com o peixe.

JOANA

FERREIRA

Não estamos no sertão, seu cínico, estamos numa capital. Em Belém do Pará

Por que não arrancou da cabeça da Severa a ideia de dormir fora?

“peito de mulher casada é joia sagrada”.

JOANA

FERREIRA

Em questão de marido e mulher não convêm meter a colher.

Vosmecê quer entrar num acordo comigo?

FERREIRA

JOANA

Mas vosmecê não gosta tanto de estar junto dela?

Depende da combinação. FERREIRA Sairá lucrando.


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JOANA

JOANA

Depende do lucro.

Cadela é...

FERREIRA

VIZINHA

É somente pra dar uns conselhos à Severa.

(Surge à porta da rua, com um tajá num vaso.) Joana, vem cá.

JOANA

JOANA

Que conselhos? Hum... compreendo porque me deu dinheiro a mais quando pagou o aluguel... (Dirige-se para a sala, Ferreira em seu rastro.)

(A Ferreira, saindo da cozinha.) Comigo é assim: pão-pão, queijo-queijo. (Na sala, para a Vizinha.) O que é isso? O seu tajá de estimação?

FERREIRA

VIZINHA

Se vosmecê cochichar nas oiças de Severa ... falando pra ela arribar da companhia

Justamente o de estimação, curado numa sexta-feira treze.

de Pedro e...

JOANA

JOANA

Para Severa?

Não sou alcoviteira.

VIZINHA

FERREIRA

Emprestado, enquanto não se consegue o dela. Trouxe logo porque com xincuã

Severa tem de viver comigo.

não se brinca.

JOANA

JOANA

E sua Zefina com a filharada, no Ceará, vai ficar comendo banha?

Meu olho esquerdo continua tremendo...

FERREIRA

FERREIRA

Que se dane.

(Avança da cozinha para a sala, ao deparar com a Vizinha tem um gesto de

JOANA Não se acanha de perseguir uma mulher prenha? FERREIRA Já fiz coisa mais escabrosa.

repulsa.) Por aqui novamente, coruja velha? VIZINHA (Para Ferreira, profética.) Deixa-te estar. Um dia ainda vejo o teu fim, com estes olhos que a terra há de comer.

JOANA

FERREIRA

Olhe que um dia a casa cai. Quem com muitas pedras bole, uma lhe dá na cabeça.

Pra que é esta planta?

FERREIRA

JOANA

Vosmecê rejeita a minha proposta?

Para... embelezar a sala...

JOANA

FERREIRA

Ainda pergunta! (Retorna à cozinha, seguida por Ferreira.)

Pode levar daqui.

FERREIRA

VIZINHA

Vosmecê é péssima.

Não volto com ela não. (Acomoda o tajá em um canto.) Fica neste cantinho.

JOANA

FERREIRA

E você é uma boa bisca! Um patifão!

Fica não.

FERREIRA

JOANA

Não me afronte, sua cadela.

Fica porque a casa é minha.


181

182

FERREIRA

JOANA

Fica não porque esta sala está alugada pra mim e eu não vou dormir cheirando

Homem macho? Um assassino chué... (Sai para o quintal; Ferreira enrola um

mato.

cigarro.) JOANA

SEVERA

Fica porque, aqui, este tajá é mais importante do que você. Aliás, ele foi trazido

(Entra da rua, dirige-se à cozinha, ao vislumbrar Ferreira diminui

por sua causa. FERREIRA

automaticamente o ritmo de seus movimentos, contraindo-se; aproxima-se do fogão.) Posso servir o jantar?

Por minha causa?

FERREIRA

VIZINHA

Vai dormir fora?

Ora se foi.

SEVERA

JOANA

Vou. (O diálogo é arrastado e reticencioso.)

Porque se você não quisesse conquistar a Severa, não corria o risco de haver um

FERREIRA

desastre nesta casa nem carecia o tajá para proteger o ambiente...

A que horas vai?

FERREIRA

SEVERA

(À Vizinha, violento.) Esta planta é pra desmanchar a minha paixão por Severa?

Agora. (Serve a comida.)

VIZINHA

FERREIRA

Não grite assim comigo que não sou sua rapariga.

(Inicia a refeição; “come pouco ou não come nada”.) Comida sem gosto...

FERREIRA

SEVERA

Responda, velha macumbeira.

Não sei fazer melhor.

JOANA

FERREIRA

(Para ele.) Não faça tanto barulho.

Sente e coma comigo.

FERREIRA

SEVERA

Pois eu arrebento esta porcaria em cima de vocês. (Suspende o vaso com o tajá,

Não tenho fome.

faz menção de atirá-lo sobre elas: Joana corre capengando pela sala, a Vizinha também corre, atrapalharam-se comicamente as duas, Ferreira desiste de atingi-las e lança o vaso para a rua.) JOANA

FERREIRA Pedro continuará preso até não sei quando. E hoje mesmo que fosse solto, não poderia aparecer por aqui, porque está de sentinela. Esta noite temos toda a liberdade... eu... você...

Com licença, Vizinha, que vou lá dentro coisá...

SEVERA

VIZINHA

Vou arrumar a minha bagagem. (Entre no quarto, embrulha alguns pertences

Boa noite, Deus se apiede de você e de Severa. (Joana recolhe-se à cozinha, a Vizinha sai.) FERREIRA (Desce para a cozinha.) Não se zomba de homem macho, ouviu?

numa rede.) FERREIRA (Desloca-se para o quarto, bruscamente, agarra Severa pelo braço, objetivando conduzi-la à cozinha.) Jante comigo, sua geniosa.


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184

SEVERA

SEVERA

(Desvencilhando-se dele.) Seu indigno, me largue.

Nunca!

FERREIRA

FERREIRA

Que mal tem isso? Jante comigo.

Eu lhe dou tudo o que vosmecê quiser... todos os luxos... vestidos de seda...

SEVERA

SEVERA

(Ríspida) Não. (Gritando) Joana!

Nunca!!!

FERREIRA

FERREIRA

Mulherzinha de natureza opiniosa. Quanto mais pirracenta, mais bonita... (Tenta

Tem medo? Se vosmecê não for minha eu...

beijá-la.)

SEVERA

SEVERA

Tenho nojo de você! Nojo!!!

(“De sua fraqueza tira a pobre criatura forças para eximir-se à peçonha do

FERREIRA

ósculo criminoso”.) Não!!!

(Espalma a navalha.) Severa eu lhe mato (Parte para subjugá-la, lutam os dois.)

JOANA

SEVERA

(Entra do quintal com uma acha de lenha, penetra no quarto.) Respeita a mulher,

(Alto) “Comadre, me acuda”...

seu malino, senão... FERREIRA (Saca de uma navalha diante de Joana.) Está vendo? Navalha afiada como esta não foi feita pra minha goela. JOANA

FERREIRA (Desvairado, derruba Severa, que se esforça para levantar-se com volumosa barriga, somente logrando permanecer de joelhos.) Vou decepar o pescoço de vosmecê. SEVERA (Em pranto compulsivo.) Não, por Deus, não faça isso... (Mostra o ventre

(Terrificada) Endoideceu?

intumescido.) Poupe a vida deste inocente que ainda não nasceu... Eu lhe suplico, não por

FERREIRA

mim, pelo meu filho, tenha piedade...

Desapareça da minha frente. Nós não estamos brigando, é só um acerto que vamos fazer e vosmecê não tem nada a ver com o nosso trato. (Joana obedece, retorna ao quintal com a acha de lenha, humilhada.)

FERREIRA (Desfere o primeiro golpe, ao lado direito do tórax de Severa, em direção ao abdômen.) Vosmecê não será minha, não será de outro... (Severa sangra, reúne as

SEVERA

energias, ergue-se, corre para sala e para a rua, Ferreira em seu encalço: a cena fica

(Com a trouxa da bagagem.) Saio eu também, e amanhã me queixo no quartel

vazia; ouve-se um grito agudo de dor.)

para o comandante.

VOZ DA VIZINHA

FERREIRA

“Não mata a mulher, desgraçado”!...

Não! (Impede-a de ausentar-se.)

VOZ DE FERREIRA

SEVERA

“O que eu fiz com ela faço contigo”... (Silêncio; Ferreira reaparece, compondo a

Arrede daí, ande!

farda, junta algo que deixou cair na sala ao sair correndo; limpa na calça a navalha suja

FERREIRA

de sangue, as luzes apagam.)

Hoje nós dorme juntos...

FIM


185

186

Esta peça conquistou MENÇÃO DE DESTAQUE no concurso “Coroa de Teatro”, realizado em 1969 no Rio de Janeiro. Foi encenada pela primeira vez, em abril de 1976, no Teatro da Paz, pela Federação de Teatro Amador do Pará-FETAPA. A ação se passa por volta de 1920, no interior da Amazônia.

PERSONAGENS

O HERÓI DO

“CORONEL” POLIDORO. Proprietário e senhor absoluto do seringal. Uns 60 anos de idade. Veste-se sempre de linho branco, usa anel de ouro saliente e chapéu panamá de vistosas abas. GUARIBÃO. “Criado” do seringal. Negro. Já velho, ostenta na cabeça, em vez de

SERINGAL

chapéu, alva cabeleira que torna a sua figura de ancião não apenas simpática, mas sobretudo solene. CAPATAZ. Homem de meia idade com função de carrasco. Veste-se à caráter: botas de cano longo, chicote e revólver na cintura. GUARDA-LIVROS. Burocrata. Uns 55 anos. Roupa sóbria e diferente, à moda da capital em 1920. ESPOSA. Mulher do “Coronel”. Pouco mais nova que ele. Traje doméstico característico da época. CABOCLA. Morena, baixa, gorda. Uns 45 anos. Moradora das redondezas do seringal. Roupa paupérrima, rasgada. SERINGUEIRO-BRABO. Nordestino. Calça de brim escuro e blusa de riscado com mangas compridas. Chapéu de palha. Uma bolsa de couro onde guarda fumo e cachaça. Nos pés, tamanco ou galocha rústica de borracha feita no próprio seringal, como era costume. Sua condição de novato reflete-se na cor da roupa ainda não desbotada. SERINGUEIRO-VETERANO. Também nordestino. Mesma indumentária, mesmos pertences. A qualidade de veterano é denunciada pelo envelhecimento da roupa em relação aos demais seringueiros. SERINGUEIRO-CULTO. Seus traços físicos, tanto quanto os modos, contrastam com a aparência de todos os outros seringueiros. Apesar de barbado tem aspecto aristocrático.


187

188

PRIMEIRO ATO

SERINGUEIRO-DOENTE. Como os restantes, é nordestino e enverga o traje comum aos seringueiros, já descrito. Difere dos companheiros pela excessiva magreza e palidez.

CENÁRIO SERINGUEIRO-VALENTE. Idem, idem. Ao contrário do Seringueiro-Doente

Floresta de seringueiras.

destaca--se por ser musculoso e sanguíneo. SERINGUEIRO-COVARDE

Em algumas árvores vê-se pequenas tigelas de alumínio espetadas; uma das

SERINGUEIRO-INDECISO

seringueiras tem um “jirau”, espécie de escada feita com cipós entrelaçados por onde seria

SERINGUEIRO-DELATOR

possível uma pessoa subir: nela as tigelinhas acham-se fincadas bem em cima, perto dos

Idem, idem. Nada de especial a observar. Definem-se pelas atitudes.

galhos. Nota: Quando abre o pano a área de representação está vazia. Tanto neste ato, como nos seguintes, são atores que, já devidamente caracterizados para o espetáculo e bastante descontraídos, armam o cenário. Enquanto o trabalho é executado poderão ser utilizados, a critério da Direção, recursos técnicos (gravações, “Slides” etc.) para informar a plateia sobre o caráter documental da peça. Cartaz: REGIME DE TRABALHO EM SERINGAL, ANO DE 1920, AMAZÔNIA LEGAL... Cena deserta. Barulho de passos e vozes. Entra à esquerda o Capataz seguido pelos seringueiros Brabo e Veterano. Postam-se os três diante da árvore que contém o “jirau”. CAPATAZ Então é verdade, hein, seu cretino? Há quanto tempo você faz isto? SERINGUEIRO-BRABO Não faz tempo não... É que ainda não sei trabalhar... Cheguei a coisa de um mês... CAPATAZ Mas já aprendeu que ferindo a seringueira lá em cima dá mais leite, não é? Quem lhe ensinou esta safadeza? Foi este aí? SERINGUEIRO-VETERANO Eu não, afianço ao senhor que não. Nós moramos juntos, porém eu só boto sentido na minha obrigação. Sou pela honestidade, o senhor me conhece. CAPATAZ Conheço sim, seu conversa-mole, você mente mais que o Guaribão. Já foi um seringueiro regular dez anos atrás, hoje não vale três vinténs. Já deu produção, agora é um vadio como os outros.


189

190

VETERANO

CAPATAZ

Não fui eu que fiquei amorrinhando não, os paus é que secaram e a seringa

Pois continue abusando e quando rebentar a pororoca não peça perdão que é pior.

começou a minguar. As minhas seringueiras estão todas cansadas, o senhor precisa ver.

Seringueiro que chora no tronco apanha mais pra não ser frouxo. (Sai à esquerda.)

BRABO

VETERANO

Olhe, seu Capataz, as minhas seringueiras...

Filho duma cadela...

CAPATAZ

BRABO

Cale-se! Eu não sei onde estou que não lhe queimo todo o costado, que não lhe

Será que... será que vão me açoitar?

esquento o lombo com o chicote. Não sabia que é proibido fazer o que fez? Não sabia que

VETERANO

cortando a seringueira lá em cima sai muito leite, mas depois a árvore fica estragada?

Não se avexe. Só entra no chicote quem procura fugir ou quem desfeiteia o

BRABO

“Coronel”. Cuidado, quando o “Coronel” lhe passar o carão aguente firme de boca

Sabia não...

trancada. Banque o carneirinho, se perder a calma está frito.

CAPATAZ

BRABO

Sabia sim, seu desavergonhado duma figa. Sabia e não está arrependido, não é?

Eu não devia era ter me arribado da minha terra. O sujeitinho que nos arrebanhou

BRABO

prometeu mundos e fundos, garantindo que num ano nós enriquecia na Amazônia. Puro

Não sabia não, porém estou arrependido, sim senhor.

iludimento. Bandido da peste! Eu que gosto tanto do meu sertão... o capim verdinho,

CAPATAZ

molhado, no inverno... o gado no curral e o requeijão... a sanfona roncando e o pagode

Sabe qual é a sua punição? Ninguém lhe disse o que acontece com fregueses que

animado... as crianças brincando...

fazem trapaça com o patrão?

VETERANO

VETERANO

Quantos filhos?

Pelo amor que o senhor tem na sua mãe, não conte nada pro “Coronel”. O meu

BRABO

companheiro é brabo. CAPATAZ

Por enquanto seis, mas vou dobrar a conta quando voltar. Não me demoro neste seringal não, estou danado de saudade da Severina.

É brabo, é brabo, e o que tem isso? Todo seringueiro novo é avisado logo que

VETERANO

chega. Não lhe avisaram? BRABO

Eu não tenho lembrança da Filomena... Era uma diaba tão pirracenta que não servia nem pra tirar cafuné. Acabou morrendo de enfezamento.

Avisaram, sim senhor... É que na primeira quinzena só entreguei quarenta quilos

BRABO

de borracha... O “coronel” me peitou falando que diminuía a minha ração se eu não melhorasse.... tive medo... porém, arrenego o que fiz, juro que não faço mais não...

É por isso que vosmecê vive aqui há tanto tempo. Não sente vontade de se arribar?

CAPATAZ

VETERANO

Experimente fazer, experimente. A lei aqui é chibata, errou, pagou, não tem

Sinto não. Pra quê? Não tenho ninguém por mim em parte nenhuma...

escapação. Em todo o alto Tapajós nenhum cabra ladino se livra da justiça do “Coronel”

BRABO

Polidoro. Ouviu? Ouviu???

Se acostumou nesta budega? Eu não me acostumo não.

BRABO

VETERANO

Ouvi, sim senhor.

Acostuma sim. Como eu me acostumei. Como todos tem de se acostumar.


191

192

BRABO

VETERANO

E a barriga? Vosmecê não enjoa essa comida que dão pra nós?

Vosmecê não tem tutano pra isso. Ninguém tem.

VETERANO

BRABO

De tanto comer conserva e carne seca parece que me viciei. Quando mato uma

O ódio transforma o cristão.

paca ou uma cotia o bucho até desanda. (Tira da bolsa de couro uma garrafa de cachaça, bebe; o outro imita-o.) Cartaz: O PROBLEMA DA MULHER, QUE SEMPRE EXISTE, QUANDO ELA FALTA O HOMEN NÃO RESISTE... BRABO Depois duma cachacinha como é gostoso um pedaço de rapadura...

VETERANO Não bote banca nem conte vantagem não, que na hora do pega pra capar vosmecê se ajoelha como os outros e beija o pé do “Coronel”. BRABO Não seja besta! Eu não beijo o rosto da Severina, pra não parecer que sou boboca, vou beijar o pé do “Coronel”?!

VETERANO

VETERANO

Com a falta de comida a gente se acostuma. Não se acostuma é com a falta de

Fale baixo que o Capataz pode estar tocaiando nós. Vamos trabalhar?

mulher-fêmea. BRABO Eu me acostumo. Só não me acostumo com a falta da minha Severina...

BRABO Hoje não trabalho mais não, vou me embebedar pra esquecer... esquecer o demônio desse Capataz...”coronel”... o chicote...

VETERANO

(Bebem mais, os dois.)

Não faz questão de mulher-fêmea? Então, bichinho, vosmecê não é macho, veste

VETERANO

calça por informação... BRABO Olhe lá, seu. Se me desrespeitar outra vez toro as suas tripas com a minha lambedeira. VETERANO Vosmecê foi quem disse que não faz questão de fêmea. Não tem o direito de ficar arreliado.

É cedo pra se amedrontar. Já lhe disse que só entra no chicote seringueiro que tenta fugir ou que faz como o “cospe brasa”. BRABO O que ele fez? Cuspia brasa? VETERANO Cuspia não. “Cospe brasa” era apelido, porque ele bebia tanto que se alguém passava por cima do cuspe dele ficava embriagado... Duma feita o “Coronel” foi mordido

BRABO

por uma cascavel e o “cospe brasa”, que estava perto, retalhou a cobra e chupou o sangue

Pois arrepita o insulto e lhe mando pros infernos. Homem da minha terra é

envenenado do patrão. Depois disso caiu no agrado dele e um dia o “Coronel” mandou o

homem de verdade. No sertão do Ceará se liquida qualquer atrevido por um deréis de mel

“cospe brasa” comprar burros pro seringal da ilha do Marajó. Porém, o “Coronel” não

coado.

apreciou a compra; todo burro que “cospe brasa” apresentava ele punha defeito. Tudo o VETERANO

que era defeito ele punha. Aí pareceu um burro com beiço partido; o “Coronel” reclamou e

É melhor esquecer esta desavença que filho do meu pai também não leva desaforo

o “cospe brasa”, que tinha tomado umas lapadas de cachaça com pólvora, falou assim: O

pra casa. E guarde a sua braveza pra quando tiver necessidade dela... pra quando o

senhor espezinha o burro porque ele tem o beiço partido? O senhor quer burro pra carga ou

“Coronel” arresolver fustigar o seu costado com chicote.

pra tocar flauta?...

BRABO

BRABO

Se o “Coronel” me bater eu me vingo.

Engraçado...


193

194

VETERANO

VETERANO

O “Coronel” não teve dúvida: mandou o Capataz atar o “cospe brasa” no tronco e

No seringal não tem casamento de tinta e papel não. Nós leva a fêmea pro

sapecar vinte chicotadas. BRABO

“Coronel” abençoar os dois e pronto: está feito o casório. É difícil porque quase sempre nós não tem saldo e não tendo saldo nas contas do “Coronel” ele não dá permissão.

É... engraçado...

BRABO

VETERANO

Vosmecê tem saldo?

Eu não acho não. E se vosmecê provar um dia da chibata não vai achar nada

VETERANO

engraçado.

Parece... já nem sei...

BRABO

BRABO

(Absorto, olhos fechados.) Engraçado...

Não estava se gabando, dizendo que se acostumou com esta vida?

VETERANO

VETERANO

Engraçado o que, seu? Onde está pondo a ideia?

Acostumei.

BRABO

BRABO

Na Severina... engraçado, quando fecho os olhos vejo ela direitinho... com vestido

E por que não se casa então com a serigaita dessa Andreza?

novo, sem remendo.. até a fita que ela tinha no cabelo no dia que nós se conhecessemos eu

VETERANO

vejo... engraçado, ela está tão longe e tão pertinho...

Por causa do seu Mendes. Ele também anda esganado atrás dela. Porém quem vai

VETERANO Ih! seu Zé, tome jeito que por estes lados homem com juízo fora do lugar leva à

fazer o trato sou eu, logo que o marido da Andreza morrer. BRABO

breca. Se acautele, esqueça essa sua Severina. Tem mulher com fartura na Amazônia, o

Ela tem marido???

negócio é que elas vivem distante; quando os rios sobem alagando tudo e empatando o

VETERANO

trabalho da seringa o “Coronel” consente que nós desça do centro atrás delas. Aquele que tem expediente se arruma.

Tem e não tem: o coitado está com béri-béri, morre não morre, coisa de mais dois ou três meses.

BRABO

(O seringueiro-culto entra à direita.)

Vosmecê já se arrumou?

SERINGUEIRO-CULTO

VETERANO

Bom dia. Não almoçam?

Mais ou menos. Tenho uma em vista.

VETERANO

BRABO

É mesmo, vamos comer, está na hora da xepa.

É bonita?

BRABO

VETERANO

Eu não quero, não sinto prazer.

Boniteza por aqui é luxo... A Andreza é feiosa, porém é carnuda. O principal é ser

VETERANO

forte, ter sustança, não se entregar com facilidade pro impaludismo.

Vamos almoçar, seu. Comer é coisa de muito agrado.

BRABO

CULTO

Por que não se casa com ela?

Realmente, comer é uma das poucas coisas agradáveis que nos restam.


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VETERANO

CULTO

Eu só penso em comer e em mulher.

Apaixonado não é bem o certo. Digamos que eu estou... desesperado... Há dez

BRABO

meses que faço jejum de mulher, não aguento mais. Se vocês soubessem os pesadelos que

O meu pensar é pra Severina. Oh! saudade da peste!...

me assaltam de noite.

VETERANO

VETERANO

Homem, se é tão agarrado na sua Severina por que se despregou dela?

Que azar!...

BRABO

CULTO

A seca... a seca foi pavorosa, nunca vi tanta caveira de boi... nunca vi tanto urubu

Azar por quê? Sorte minha.

voando em riba de cearense moribundo... caminhamos duas semanas sem pouso certo...

VETERANO

tive que me apartar do meu povo e aventurar o destino...

A Andreza é feiosa pra xuxu...

CULTO

CULTO

Você tem razão. Não conheço o nordeste, mas posso imaginar o que seja o flagelo

Mas tem uma saúde de ferro.

da seca numa região árida, sem rios, sem lagos.

VETERANO

BRABO

Ela é burra que dói. O senhor, um homem tão letrado...

Como a secura maltratou as crianças... E a Severina, com os peitos mirrados, sem

CULTO

poder amamentar, tadinha... Não esqueço ela, aquilo não é mulher, é uma santa... CULTO Não fale em mulher que ando indócil para conquistar a única que mora próximo daqui, no estirão da jabota, a Andreza. VETERANO

Na minha situação uma cabocla rude, por mais ignorante que seja, vale mais do que todas as bibliotecas de Paris. VETERANO O senhor está certo, seu Mendes, a falta de mulher é horrível. Eu me amigava até com uma velha aleijada. Tinha pensado na Andreza... Ela já lhe deu o sim?

Gosta mesmo dela, seu Mendes?

CULTO

CULTO

Não, porque existe mais alguém interessado... (Entram à direita os seringueiros

Que jeito, meu caro? A Andreza, com o marido quase morto, é a única mulher

Valente, Doente, Indeciso e Covarde.)

disponível nesta brenha e eu não posso me afastar do meio do mato: a polícia do Acre

Cartaz: A GRANDE VONTADE DE FUGIR E O MEDO DE NÃO CONSEGUIR...

fareja o meu rastro e com a polícia do Acre não se brinca.

SERINGUEIRO-VALENTE

VETERANO

Ei, estão farreando no serviço?

Pra obrigar um homem de estudo como o senhor a se socar nestes cafundós só

CULTO

mesmo uma polícia espigaitada. CULTO

Um pouco de cachaça ajuda a suportar o peso da miséria. (Oferece bebida, todos aceitam menos o Seringueiro-Doente.)

Desgraçadamente fui vítima de uma cilada. Mas vamos mudar de assunto...

SERINGUEIRO-DOENTE

VETERANO

Obrigado, se tocar nisso fico jururu, o fígado piora, incha, a boca amarga que nem

Quer dizer que o senhor, como não pode escapulir do seringal, está apaixonado pela Andreza? Eu...

folha de araracanga, é uma semana inteirinha que passo amunhecado.


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VETERANO

VETERANO

Beba uma golada, seu. Um tico de pinga, apenas um tiquinho, não destrói a saúde

Durante mais de dez anos que tenho neste seringal nunca vi ninguém ter o tupete

não.

de atirar no “Coronel” ou no Capataz. Vi não. DOENTE

VALENTE

A minha destrói. Sou um infeliz condenado que só vive porque ainda não

Pois eu sou três vezes macho pra matar o “Coronel” e todos os seus lambaios. Na

morreu... VALENTE

Paraíba já fiz um cangaceiro acomodar nos bofes palmo e meio da minha peixeira. Furei o cão até ele esticar as canelas e não tenho um farelo de remorso.

Nós vem discutir um assunto melindroso: fugir.

INDECISO

VETERANO

Se nós tivesse a certeza de que tudo ia dar certinho...

Fugir do seringal?

VALENTE

VALENTE

Chega de conversa fiada. Quem está disposto? Quem foge comigo?

Sim.

BRABO

SERINGUEIRO-INDECISO

Homem, pra tornar a abraçar a minha Severina eu me meto em qualquer

Eu não sei se fujo. Será que vale a pena?..

enrascada.

SERINGUEIRO-COVARDE

DOENTE

Só em maginar o perigo, sinto calafrio no espinhaço...

Eu vou. Sei que não duro mesmo, é preferível morrer na esperança...

VALENTE

INDECISO

Vosmecês preferem apodrecer nesta pinoia?

Eu... amanhã, conforme for, arresolvo.

COVARDE

CULTO

É que... se nos pegarem no momento da fugida... Deus me livre!

Lamento não poder acompanhar vocês. Preciso ficar escondido nesta selva alguns

VALENTE

anos. VETERANO

Se alguém quiser nos prender pode deixar que eu sangro o jagunço.

Eu também não vou. Não tenho família, ninguém me conhece lá fora, já estou

INDECISO Antes de arresolver é preciso pensar muito. O tiro pode sair pela culatra...

aqui há tanto tempo, já sofri tanto que a liberdade pra mim não tem mais serventia...

CULTO

COVARDE

Preparem cuidadosamente um plano de fuga.

Eu não vou. Vou o quê?

VALENTE

VALENTE

Por mim, nós começava fuzilando o “Coronel” e o Capataz.

Vosmecê é um leso.

COVARDE

COVARDE Leso? Sou precavido, isto sim. Leso é vosmecê que está tentando uma coisa

Égua! Eu é que não tomo parte em tamanha doidice. INDECISO

impossível. Magina que é fácil fugir? VALENTE

Será que dava certo?...

Nós rouba umas das canoas. Tenho uma lima pra serrar a corrente que prende elas.


199

200

INDECISO

INDECISO

E nós arresiste remar até Santarém? Pode ser, porém acho difícil. Não sei não,

Será que ele ouviu?...

estou meio escabreado...

COVARDE

COVARDE

Eu não disse que a coisa ia feder?...

E eu apavorado...

DOENTE

VALENTE

Chí!... Já começou o enjoo no estômago e o tremor nas pernas...

Vosmecê é um bestalhão, eu já disse.

BRABO

COVARDE

Este preto é fiscal?

Sou, nasci assim, não tenho culpa.

VETERANO

INDECISO Se nós pudesse adivinhar o resultado... Se tivesse a garantia de engabelar a

É não. É mateiro e faz outros serviços pro “Coronel”. Mente um bocado, porém é uma boa alma, este Guaribão.

vigilância do “Coronel”... O diabo é que pode dar certo e pode dar errado... Meu pai

VALENTE

sempre dizia que macaco velho não mete a mão em combuca...

(Para Guaribão.) Vosmecê não responde?

VALENTE

GUARIBÃO

Pois eu não sou macaco, sou um Homem. E por isso vou fugir, nem que seje

Não carece te consumir, meu branco. Eu não tava bicorando tu.

sozinho.

VALENTE BRABO

Filho duma égua, se vosmecê fuxicar de nós...

Estou do lado de vosmecê. Quero fugir. São dois homens.

CULTO

DOENTE Vosmecês contem comigo. Eu fujo também, apesar de estar com o pé na sepultura. São dois homens e um defunto... (Guaribão entra à esquerda em tempo de ouvir as últimas falas; entrega um envelope ao Seringueiro-Indeciso e dirige-se aos outros seringueiros humildemente.) Cartaz: AGORA PRESTEM ATENÇÃO QUE CHEGOU O GUARIBÃO E TALVEZ A SALVAÇÃO...

Calma, calma, dessa maneira a situação se agrava. Guaribão, você percebeu o assunto que nós tratávamos? VETERANO Não percebeu, não é? GUARIBÃO É. VALENTE

GUARIBÃO

É o quê? Vosmecê ouviu ou não ouviu a nossa combinação?

Carta pelo navio do mês só veio esta.

GUARIBÃO

VALENTE

Não te espoleta, filho. Guaribão é amigo de todo mundo.

Vosmecê ouviu a nossa conversa?

VALENTE

GUARIBÃO Não sou abelhudo, filho.

Eu perco a paciência e amasso o miolo deste peste. Vosmecê ouviu ou não ouviu???

VALENTE

CULTO

Ouviu ou não ouviu?

Claro que ele ouviu. Mas não irá dizer nada ao “Coronel”, não Guaribão?


201

202

GUARIBÃO

VALENTE

É, filho, não bispei quase nadinha, sou meio surdo.

E vosmecê ainda se põe nesse foge-não-foge, quero-não-quero, como moça

CULTO

donzela com namorado?

Não, Guaribão, surdo você não é que eu sei. Acontece que não irá nos denunciar

INDECISO

porque é nosso amigo como assegurou, não é mesmo?

Agora eu acho que vou, sei não...

GUARIBÃO Não bato com a língua nos dentes não, filho, também já fui escravo...

VALENTE (Referindo-se ao Guaribão.) Tomara que este São Benedito à paisano não estrague a festa.

CULTO

CULTO

Justamente. Você conheceu a senzala, compreende a situação. Aliás, você tem

Ele não fará isso. Não é, Guaribão?

jeito de quem enfrentou e venceu a crueldade de algum senhor de engenho. Sou capaz de

GUARIBÃO

apostar que você fez qualquer proeza quando escravo e salvou os seus companheiros do

Não faço intriga não, filho, juro pela bênção da minha mãe.

sofrimento.

VETERANO

GUARIBÃO

Ele não tem mãe, até jurando mente...

Ah!, meu branco, se o Guaribão te contar... Um dia eu fiz uma proeza de arrepiar

GUARIBÃO

o cabelo...

Não é mentira não, filho, juramento é coisa sagrada.

VETERANO

DOENTE

(Para o Seringueiro-Valente.) Vosmecês estão salvos, o fraco do Guaribão é

Se vosmecê afiança que não bota o “coronel” atrás de nós dê uma prova.

mentira. Deixe ele contar as lorotas dele, finja que acredita e pronto: ganhou um amigo pro

GUARIBÃO

que der e vier.

Que prova, filho?

GUARIBÃO

DOENTE

Um dia agarrei uma faca, filho, amolei numa pedra, mostrei pra toda a negralhada da senzala e gritei: “Independência ou morte!”...

Empreste pra nós a chave do cadeado da corrente que prende as canoas. Nós precisa de uma canoa pra fugir.

CULTO

GUARIBÃO

(Sem poder controlar o riso.) Se não me falha a memória eu conheço esta frase...

Não tenho, filho, que chave?

GUARIBÃO

DOENTE

Então, filho, já te contaram essa minha proeza?

Tem, sim senhor. Vosmecê é quem guarda as canoas na corrente, semana passada

CULTO

eu vi, quando o calor da febre, à boquinha da noite, me obrigou a ir me banhar na beira do

Talvez...

rio.

GUARIBÃO

GUARIBÃO

Olha, tem outra maior daqui do seringal, quando eu taboqueei uma onça e segurei

O Guaribão não carrega a chave com ele, filho.

ela sozinho... INDECISO (Lagrimoso, após ler a carta entregue pelo Guaribão.) Minha Nossa Senhora... Meu pai ficou cego e minha mãe tuberculosa.

VETERANO Eu conheço este preto como a palma da minha mão. Dou o meu pescoço a cutelo se ele não tiver a chave no bolso.


203

204

VALENTE

“CORONEL”

Precisamos dela. Possa ser que a lima não serre bem, a corrente é grossa.

Corja de mal agradecidos. Eu faço a caridade de contratar vocês pra não morrerem

BRABO

de fome no nordeste e é este o pagamento que querem me dar: fugir. Cambada de patifes!

Cadê a chave do cadeado da corrente, seu Guaribão?

CULTO

DOENTE

“Coronel”, me dê a oportunidade de um esclarecimento...

Cadê?

“CORONEL”

CULTO

Não pedi a sua opinião, a conversa ainda não chegou pela cozinha. Quem é mais

Não adianta negar, Guaribão. Dê a chave.

que ia fugir?

COVARDE

COVARDE

Guaribão, vosmecê dá a chave se quiser, eu não tenho nada com isso.

Eu não tomei parte nisso, “Coronel”, quero ser um cego da gota serena se tomei.

VALENTE

INDECISO

Vamos com a chave pra cá, seu pilantra, antes que nós lhe dê uma surra e tome

Eu jamais fugirei “coronel”. Será que o senhor não bota fé na minha pessoa?

ela.

DOENTE GUARIBÃO

Ai! que dor na testa, que tonteira, vou ter uma desmaiada...

(Ajoelha-se, aflito.) Minha Santa Bárbara valei-me...

VETERANO

(Entra à esquerda o “Coronel” Polidoro ladeado pelo capataz e pelo

O senhor sabe de sobra como eu sou, “Coronel”. Estou satisfeito no trabalho da

Seringueiro-Delator.)

borracha, me acostumei, não fujo nem pra ir pro céu.

“CORONEL”

CULTO

Que brincadeira é esta? Não minta, Guaribão. Eles estavam lhe forçando a fazer

Eu, perseguido pela polícia, mesmo que desejasse não poderia.

palhaçada?

BRABO

GUARIBÃO

Eu cheguei não faz nem duas quinzenas...

Não, padrinho, juro pela luz divina. Eu é que tava ensinando eles como se agarra

“CORONEL”

onça...

Agora, como viram que a porca vai torcer o rabo, são todos uns santinhos do pau SERINGUERO-DELATOR É aquele. (Aponta o Seringueiro-Valente.) “CORONEL”

oco. DELATOR (Insistindo em relação ao Seringueiro-Valente.) Os outros eu não sei, mas este

É você o chefe dos que desejam fugir?

queria fugir. Ontem ele me convidou, exibindo uma lima pra serrar a corrente que prende

VALENTE

as canoas. (O “Coronel” revista o Seringueiro-Valente, encontra a lima.)

Não... eu...

“CORONEL”

“CORONEL”

Ah! você é o cabeça, hein? Pois vai se arrepender de ter nascido.

Quem são os seus parceiros?

CAPATAZ

VALENTE

Levo ele pro tronco, patrão?

É invenção dele, “Coronel”. Nós não ia fugir não.


205

206

“CORONEL” Amarra o safadão ali, junto daquela sumaumeira. (O Capataz segura o

Nova expectativa; reaparece o Seringueiro-Valente, ensanguentado e trôpego; repete-se o estalar do chicote complementado pelos gemidos agudos do Seringueiro-Culto.

seringueiro-Valente e o arrasta para fora de cena, à esquerda; há uma pausa; ouve-se o

GUARIBÃO

estalo das chicotadas e gemidos que vão aumentando de intensidade até se transformarem

Padrinho, pelo amor que o senhor tem na sua esposa...

em gritos lancinantes; Guaribão e os seringueiros, à exceção do Delator, contraem

“CORONEL”

sucessivamente a face, penalizados.) GUARIBÃO

(Para o Seringueiro-Valente.) Agora vai desembuchar: quem é que ia fugir com você?

Padrinho, chega... Ele não foge...

VALENTE

“CORONEL”

“Coronel”... compaixão... nós...

(Alto, para o Capataz.) Pare!

“CORONEL”

VOZ DO CAPATAZ

Quer que eu lhe arrebente com outras chicotadas? Seringueiro não foge sozinho;

O molongó está pedindo pro senhor perdoar, patrão.

quem é que ia fugir com você? Diga ou lhe quebro o pescoço.

“CORONEL”

VALENTE

Está pedindo perdão, é? Pois castigo é castigo. Seringueiro assanhado que na hora

Era... era...

da peia se acovarda apanha mais pra não ser frouxo. Sapeque outras chibatadas.

DOENTE

CULTO

Era eu! Era só nós dois que ia. Ele e eu.

“Coronel”, por gentileza, ouça a minha ponderação. Isto é uma... desumanidade...

“CORONEL”

“CORONEL”

Você, seu pamonha?

Desumanidade é o que você praticou no Acre, seu patifão. Feche a latrina desta

DOENTE

boca e não dê mais um pio.

Pamonha é a sua mãe.

CULTO

“CORONEL”

Não é direito, “Coronel”, o que o senhor está...

O quê???

“CORONEL”

DOENTE

Ah! você quer se salientar, é? (Empurra-o para fora na mesma direção.)

Pamonha é a sua mãe!!!

BRABO

VETERANO

O homem está com a moléstia..

Endoideceu...

“CORONEL”

INDECISO

(Para o Capataz, que ainda se encontra ausente de cena.) Desamarre o fujão e

Será que a doença dele atacou o juízo?...

lasque o chicote no lombo deste acreano assassino.

“CORONEL”

VOZ DO CAPATAZ

Eu ouvi direito???

Quantas chicotadas?

DOENTE

“CORONEL” Por enquanto, seis.

Ouviu. Pamonha é sua mãe, seu Satanás. (O Seringueiro-Doente avança alucinado para agredir o “Coronel”; este aplica-lhe violento pontapé, derrubando-o e dirige-se ao Seringueiro-Delator.)


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208

“CORONEL”

“CORONEL”

Vá buscar uma enxada. Depressa.

Basta de bajulação. Como preciso no barracão de um caixeiro, vou aproveitar a

DELATOR

sua sapiência. Aceita o emprego?

É pra já. (Sai à direita.)

CULTO

CAPATAZ

Aceito, sim, com prazer. Entendo de contabilidade, posso até auxiliar na escrita do

(Entrando em cena com o Seringueiro-Culto.) Acabou, patrão?

barracão.

“CORONEL”

“CORONEL”

Não, o melhor da festa ainda não começou. (Para o Seringueiro-Culto.) Gostou?

Apareça lá amanhã.

É assim que amanso quem me falta com o respeito.

CULTO

CULTO

Obrigado, o senhor é muito generoso.

O senhor me interpretou mal, “Coronel”. Nem de leve tive a intenção de

DELATOR

desrespeitá-lo.

(Retornando com a enxada.) Pronto, “Coronel”.

“CORONEL”

“CORONEL”

Ah! não teve?

(Para o Seringueiro-Doente a quem entrega a enxada.) Implora perdão?

CULTO

DOENTE

Espero que o senhor me releve a ousadia, se por acaso se sentiu ofendido. Espero

Não!

que me perdoe...

“CORONEL”

“CORONEL”

Quem é pamonha?

Está com medo que eu mande avisar à polícia que você se escondeu aqui, não é?

DOENTE

CULTO

A sua mãe. A mãe, a mulher, a sua avó torta e toda a parentela.

Seria o meu fim, “Coronel”...

“CORONEL”

“CORONEL”

Sabe que vai morrer, miserável?

Pois eu vou mandar avisar. Você é inteligente e metido a corajoso, detesto gente

DOENTE

dessa qualidade. CULTO

Sei. Uma semana mais, uma semana menos, não faz diferença... “CORONEL”

Eu me expressei daquele modo porque fiquei nervoso, “Coronel”, burrice minha,

Caminha com a enxada, desgraçado; vai cavar a tua sepultura. (Silêncio

isto prova que não sou inteligente. Também não sou corajoso, pelo contrário, sou muito

prolongado; O Seringueiro-Doente fita cada um dos companheiros, especialmente o

tímido, tanto assim que mais uma vez imploro perdão ao senhor...

Seringueiro-Delator; encara o “Coronel” e o Capataz com altivez; empurra a enxada,

“CORONEL”

desloca-se para o fundo da cena e de costas gesticula como se estivesse abrindo uma

Implora, não é? E só? ... Como é que se pede perdão neste seringal?

cova; enquanto dura essa operação o “Coronel” passeia de um lado parao outro, o

(Há uma pausa significativa.)

Capataz prepara o revólver, os seringueiros entreolham-se desolados e Guaribão parece

CULTO

rezar; o Seringueiro-doente termina a tarefa e larga a enxada, mantendo-se de costas; o

Eu me sujeito... (Olha encabulado os outros seringueiros que baixam a fronte

Capataz aponta a arma; Guaribão, em gesto mudo e patético pede clemência ao

constrangidos; hesita; a seguir beija os pés do “Coronel”.)


209

210

“Coronel”; este faz um sinal para o Capataz que, obedecendo, dispara o tiro; o

COVARDE

Seringueiro-doente dobra-se lentamente; outro tiro; ele tomba.)

Puxa, ainda estou entalado.

CAPATAZ

CULTO

Acertei na nuca.

De revolta?

“CORONEL”

COVARDE

Aprenderam a lição?

De medo...

COVARDE

CULTO

Sim senhor... INDECISO

Eu, sinceramente, lastimo tudo o que aconteceu. Lastimo, sobretudo, porque minha posição delicada me levou a uma atitude indigna.

Sim senhor...

VALENTE

VETERANO

Atitude indígna foi a deste Judas.

Sim senhor...

VETERANO

CULTO

A falta de mulher transtorna o vivente...

Aprendemos...

VALENTE

BRABO

Nós devia agora era enforcar este bandido.

Sim senhor...

COVARDE

VALENTE

Vôte! Quando o “Coronel” descobrisse nos esfolava vivo.

Sim senhor...

INDECISO

“CORONEL”

Será que um amaldiçoado como este não morre leproso?...

Pois então façam bom proveito.

DELATOR

(O “Coronel” sai à esquerda junto com o Capataz, Guaribão desaparece à

Se vosmecês continuam a me xingar eu me queixo pro “Coronel”.

direita, de onde volta trazendo dois pedaços de pau e um curto cipó, com o que improvisa

VALENTE

uma cruz; os seringueiros acercam-se do colega Delator.)

Suma da minha frente, seu imundo!

VALENTE

CULTO

Traidor nojento!

Controle-se, senão é pior.

BRABO

VETERANO

Vosmecê fede de podre.

Vá embora, seu. (O Seringueiro-Delator retira-se à esquerda; Guaribão enxuga

INDECISO

os olhos úmidos; olha para onde está o morto, olha para a cruz.)

Por que vosmecê fez isto? Será que foi por dinheiro...?

BRABO

VETERANO

Pelo que vi, este preto velho é a única pessoa que presta neste seringal.

Foi não. Foi por causa de mulher. Dou o meu braço a torcer se ele não fez essa

VALENTE

sujeira pra angariar as boas graças do “Coronel” e conseguir uma fêmea. Este corno é mais mulherengo do que eu.

Vosmecê ainda está disposto a fugir?


211

212

SEGUNDO ATO

BRABO O “Coronel” não carregou a lima que vosmecê tinha pra serrar a corrente das canoas? (Guaribão tira do bolso uma chave e a entrega ao Seringueiro-Valente.)

Cenário: Barracão do seringal.

GUARIBÃO – Toma, filho, a chave do cadeado da corrente que prende as canoas. Fujam. Deus guia vocês. Deus não gosta de escravidão.

À esquerda, pequeno escritório com escrivaninha e duas ou três cadeiras, cercado por um gradil. À direita, compartimento maior, também delimitado por gradil, onde se espalham muitas garrafas de cachaça, algumas de champanha, fardos de fazenda, latas de conserva, carne seca, paneiros de farinha, sacos de feijão, terçados, lamparinas etc. Ao fundo portas. Cartaz: A FUGA FINALMENTE REALIZADA FOI PIOR QUE A PLANEJADA... Em cena Guaribão e o Seringueiro-Culto, este no seu posto de caixeiro do barracão, ocupando-se em arrumar os mantimentos. GUARIBÃO Pois é, coragem não é piolho, filho, que todo mundo tem... Quando eu, sem mais aquela, pulei no igarapé, todos ficaram abismados, vermelhos que nem pena de ararapiranga, não acreditavam que o Guaribão ia fazer mais uma braveza. Todo mundo se apinhou na beira do igarapé, num aperta-cunha medonho. Ninguém se mexia, ninguém dizia uma palavra, o quiriri era completo; e eu entrando cada vez mais no igarapé. Tava já no meio, com água pelo queixo, quando escutei um fragoído; levantei umas canaranas e vi o jacaré de bubuia: um pajureba, comprido que só ele. Fui me chegando devagarinho, devagarinho e tibum! Me atraquei no bruto; o bichão deu uma rebanada, mergulhou, e o Guaribão ali, firme, escanchado nele. Tu sabe, filho, que jacaré no fundo não abre a boca pra não se afogar. Pois é, quando nós tava debaixo d’água eu enrolei a corda na boca fechada dele, nas patas, e quando nós veio à tona o serviço tava feito. CULTO Isto é o que se chama heroísmo, Guaribão, você é um HERÓI... Pela descrição verifica-se que com o jacaré a coisa foi mais difícil do que com a onça... GUARIBÃO Olha, filho, pra falar a verdade verdadeira não foi não, foi fácil. Difícil foi eu me atracar com um porco espinho do tamanho de um boi... (O Seringueiro-Valente entra; Guaribão, ao deparar com ele, interrompe a narrativa com ares de estranheza.) VALENTE Bom dia. Eu vim...


213

214

VALENTE CULTO

Não perderam tempo; fugiram esta madrugada.

Não fugiram?

GUARIBÃO

VALENTE

Eles não eram mais de dois, não filho?

Nós desistiu.

VALENTE

GUARIBÃO

Um punhado... de... zoito...

Com a faca e o queijão na mão..

CULTO

CULTO

Quantos? Oito?

Mas por quê? Não tinham a chave do cadeado?

GUARIBÃO

VALENTE Nós não teve a coragem.

Minha Santa Bárbara! Quando o padrinho souber, filho, que o Guaribão deu a chave, arranca a minha pele.

GUARIBÃO

VALENTE

É o que eu digo, filho, coragem não é piolho...

Ninguém diz nada não.

CULTO

CULTO

Você estava tão decidido? E o outro, não queria tanto rever a Severina dele?

Você alega que perdeu a chave, Guaribão.

VALENTE

GUARIBÃO

É, porém nós pensemos, pensemos.... e nos amedrontemos.

É?

GUARIBÃO

CULTO

Mais amedrontado tava o Guaribão, filho; se o padrinho descobre que dei a chave

Exatamente. Pôs a chave no bolso e ela desapareceu.

pra ti...

GUARIBÃO CULTO

É?...

Vocês me decepcionaram. Francamente.

CULTO

GUARIBÃO

Claro.

Dá cá a chave, filho.

GUARIBÃO

VALENTE

E o padrinho acredita?

Não tenho não. Emprestei pro pessoal do Laguinho.

CULTO

GUARIBÃO

Ele estima muito você, não estima? Geralmente a gente acredita em quem estima.

Pra que, filho?

GUARIBÃO

VALENTE

É..

Pra eles fazerem o que nós não fez.

CULTO

GUARIBÃO

Você enfeita a coisa, como naquela estória do jacaré... Por via das dúvidas faz um

Fugir?

buraco no bolso da calça.

CULTO

GUARIBÃO

Ora viva! E se eles se foram? A turma do Laguinho?

Pra que, filho?


215

CULTO Para o “Coronel” ver por onde a chave caiu. GUARIBÃO É, filho, tu tem razão, deixa eu furar o bolso... (Ouve-se a voz estridente do “Coronel” Polidoro que se aproxima falando com alguém; pânico; os três se dispersam,

216

Cartaz – COMO ERA EXPLORADO O POBRE SERINGUEIRO QUE SÓ GANHAVA RAÇÃO, NÃO VIA DINHEIRO... COVARDE Bom dia, “Coronel”. Já é hora de aviamento? (O “Coronel” não responde a saudação; olha o seringueiro, escreve algo em uma papeleta e entrega a ele.)

atarantados; Guaribão começa a limpar o escritório, excitado, o Seringueiro-Culto

“CORONEL”

arruma desastradamente alguns mantimentos e o Seringueiro-Valente corre ao fundo da

Pode apanhar a sua ração.

cena, escondendo-se atrás de uma porta; entram o “Coronel” e o Guarda-livros, dirigem-

COVARDE

se ao escritório.)

“Coronel”, o senhor pode botar na minha nota umas pílulas de quinino? Ainda

“CORONEL” Comigo é no chicote ou na bala. Anteontem o pau cantou e o resultado é que os fujões se acachaparam.

tenho um saldozinho, não tenho?... “CORONEL” Tem, mas ultimamente sua produção diminuiu muito. O que vale é que é

GUARDA-LIVROS

obediente, se não fosse eu fazia você roer uma pupunha. (O “Coronel” reescreve a

Fujões? Seringueiros? Quantos fugiram?

papeleta e a devolve ao Seringueiro-Covarde; este desloca-se para o outro lado e entrega

“CORONEL”

a papeleta ao Seringueiro-Culto que, mediante a apresentação da mesma, passa a servi-lo

Fugiram uma joça! Estavam maquinando isto, mas eu baixei a ripa e duvido que

de mantimentos; o Seringueiro-Covarde acomoda os volumes dentro de um saco; o mesmo

tenham a audácia de tentar fugir. (O Seringueiro-Valente põe o rosto fora do esconderijo,

jogo será executado pelos outros seringueiros.)

olha para o Guaribão e para o Seringueiro-Culto; a fisionomia dos três exprime maior

BRABO

angústia à medida que o “Coronel” enfatiza não ter havido fuga.)

Bom dia, ”Coronel”.

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Faço uma ideia do castigo que o senhor infligiu a eles.

Bom dia, não, mau dia pra você. Mau, ouviu?

“CORONEL”

BRABO

É preciso energia, seu Moreira. Comigo eles se estrumbicam. Duvido que fujam.

Sim senhor...

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

A época não é para facilitar, depois quero conversar com o senhor sobre a situação

Não tem um cuí de vergonha na cara?

da borracha. Se deixar que os seringueiros fujam...

BRABO

“CORONEL”

Tenho, sim senhor, sou um homem de sentimento.

Deixo uma ova! Daqui nenhum espertalhão escapole. Dou um doce. (Entram os

“CORONEL”

seringueiros Covarde, Brabo, Veterano e Indeciso; aproveitando a oportunidade o Seringueiro-Valente sai do esconderijo e mistura-se aos outros; o “Coronel” e o Guarda-

É um preguiçoso e safado, isto sim... Por que feriu a seringueira perto dos galhos?...

Livros permanecem no escritório, sentados frente à escrivaninha, consultando papelada;

BRABO

os seringueiros, em fila, vão até ali com naturalidade, como se estivessem habituados

Eu... quer dizer... eu...

àquele ritual.)


217

218

“CORONEL”

VETERANO

Da próxima vez que fizer “mutá” vai pro tronco, por hoje a punição ainda é

Talvez seje a falta de mulher... Tenho uma em vista ... Se o “Coronel” desse

pequena.

permissão..

BRABO

“CORONEL”

Punição, “Coronel”?

A borracha que produziu este ano não paga a boia que comeu e ainda vem me

“CORONEL” Sim, e não adianta estrebuchar. Seringueiro que desobedece às ordens no trabalho perde toda a produção da quinzena e só rebece a metade da ração. (Entrega a papeleta.)

falar de mulher? Se enxergue! (Entrega a papeleta.) INDECISO Bom dia, “Coronel”... Será que eu posso ter um particular com o senhor?...

VALENTE

“CORONEL”

Bom dia...

O que deseja?

“CORONEL”

INDECISO

Tenho uma novidade pra você. É valentão, não é? VALENTE

Recebi uma carta. Notícias malfadadas. Meu pai cegou e minha mãe ficou tuberculosa...

Não senhor...

“CORONEL”

“CORONEL”

E eu que é que tenho com isso?

É, sim. E por isso vai trabalhar nas “estradas” do Laguinho.

INDECISO

VALENTE

Não suporto mais a tristura, “Coronel”. Até chorar eu já chorei. Será que é feio

Onde, “Coronel”?...

homem chorar?.. Quando acordei de manhãzinha e alembrei da minha mãe me deu uma

“CORONEL”

apertura na guela e a água começou a pingar do olho...

La-gui-nho.

“CORONEL”

VALENTE

De que mês é a carta?

“Coronel”, eu... tenha piedade. Não há seringueiro que demore ali; ainda não faz

INDECISO

uma semana que os índios mataram o Juventino... “CORONEL” Pois quando os índios aparecerem você convida eles pra fugir... (Entrega a papeleta.)

De setembro do ano passado. Nós recebe as cartas com um atraso tão grande... “CORONEL” Então sua mãe já morreu. A tuberculose é terrível, o máximo que um tuberculoso dura é seis meses. Sua mãe já virou bagaço, o melhor que você faz é rezar.

VETERANO

INDECISO

Bom dia, “Coronel”.

Eu agradeço ao senhor, “Coronel”.

“CORONEL”

“CORONEL”

Você está indo de mal a pior, hein?

Não tem de quê.

VETERANO

INDECISO

Bem que eu puxo pelas árvores, “coronel”. Elas foram secando....

Porém eu queria o meu saldo pra ir embora... Será que o senhor?..

“CORONEL”

“CORONEL”

Esta desculpa é velha, alguma coisa há com você.

Quanto tempo faz que chegou no seringal?


219

220

INDECISO

INDECISO

Quatro anos e um pedacinho.

Isto quer dizer o quê?

“CORONEL”

“CORONEL”

Não tem cinco anos? Está difícil, difícil...

Quer dizer que você ainda me deve quase um conto de réis.

INDECISO

INDECISO

Eu preciso ir, “Coronel”. Uma coisa me diz que minha mãezinha me chama pra se

Eu não tenho saldo?...

despedir antes de morrer. Ela só tem eu de filho...

“CORONEL”

“CORONEL”

Não, não tem. E daqui ninguém sai devendo.

(Coloca uma pasta nas mãos do Guarda-Livros.) Seu Moreira, leia a conta-

INDECISO

corrente dele. GUARDA-LIVROS

Será que o senhor não me adiantava trezentos mil réis? Eu ia ver a minha mãe e depois vinha trabalhar, pagava o senhor.

O nome todo?

“CORONEL”

INDECISO

Não empresto um tostão. Pensa que sou besta?

Antônio... Antônio das Mercês.

INDECISO

“CORONEL”

Meu “Coronel”, o senhor tenha paciência, porém eu não posso desprezar a minha

Se eu lhe solto com menos de cinco anos é um péssimo exemplo pros outros.

mãe tuberculosa...

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Antônio... das Mercês. Diversos: uma passagem de terceira classe... uma

O quê??? Está se rebelando contra mim? Está ameaçando fugir? Pois vai

machadinha... duas meias arroubas de tabaco... garrafas de cachaça.. xarope e pílulas para

experimentar uma dúzia de chicotadas.

maleita... querosene... latas de conservas... calça e camisa...um boião e uma bacia para

INDECISO

seringa...caixas de fósforos e outras miudezas... Preço total: um conto, oitiocentos e

Eu não pensei não em fugir, “Coronel”. Não sou maluco.

quarenta e seis mil réis. Produção: borracha fina, cinco contos de réis... sernamby,

“CORONEL”

novecentos mil réis... Total da produção nos quatro anos de serviço: cinco contos e

Não pensou mesmo?

novecentos mil réis. Descontos: um conto, oitocentos e quarenta seis mil réis de passagem,

INDECISO

compras etc., mais quatro contos e oitocentos mil réis de ração para comer durante

Pensei não.

quarenta e oito meses, à razão de cem mil réis por mês...

“CORONEL

INDECISO

Então dispenso as chicotadas.

Não estou entendendo essas contas não. Será que o senhor não podia tirar os nove

INDECISO

fora?...

Obrigado. GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Até o mês passado o movimento geral era o seguinte. Receita: cinco contos e

Em todo caso, pra não pensar, recebe a terça parte da ração. (O “Coronel”

novecentos mil réis. Despesa: seis contos, seiscentos e quarenta e seis mil réis. Débito:

entrega a papeleta e o Seringueiro-Indeciso, cabisbaixo, vai juntar--se aos outros; o

setecentos e quarenta mil réis.

“Coronel” o segue atravessando a cena para inspecionar os aviamentos.)


221

222

CULTO

GUARIBÃO

Estou pegando a prática, “Coronel”.

Gostoso, chega faz coceirinha no céu da boca. (O “Coronel” esvazia o copo e

“CORONEL”

manda abrir outra garrafa.)

Levem a ração, comam, mas trabalhem, seus malandros. Tirem da caixola a mania

“CORONEL”

de fugir e façam como a turma do Laguinho: produzam! (Ao ouvir a referência ao pessoal do Laguinho Guaribão estremece.) “CORONEL” Está com frio, Guaribão? GUARIBÃO

Viva a borracha da Amazônia, que há de transformar o Brasil no país mais rico do mundo! GUARDA-LIVROS É sobre este assunto, “Coronel”, que eu desejo conversar com o senhor. A borracha, a crise...

Não, padrinho...

“CORONEL”

“CORONEL”

Crise coisa nenhuma, seu Moreira. Isto são boatos da Capital.

Que tremedeira é esta?

GUARDA-LIVROS

GUARIBÃO

Não, não, a crise é um fato consumado. A cotação da borracha, o preço que as

É... a falta duma cachacinha... ainda não matei o bicho hoje...

nações compradoras estão pagando por ela continua baixando cada vez mais. Quero

“CORONEL”

informar o senhor da realidade porque nos últimos meses fechei o balanço de sete

(Ao Seringueiro-Culto.)

seringais: cinco estão praticamente falidos. O senhor sabe que em 1876 um inglês chamado

Dê cachaça a ele. (Guaribão é servido, engole um trago, joga fora um pouco da

Henry Wickham furtou setenta mil sementes das nossas seringueiras, não sabe?

bebida como que oferecendo a uma entidade invisível.)

“CORONEL”

GUARIBÃO

Foi? Como?

Saravá!...

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Ele empaneirou as sementes e embarcou em um navio que era brasileiro. Quando

Toma alguma coisa, seu Moreira? Em casa tenho champanha e vinho.

o tal navio atracou no porto de Belém, para os despachos de carga, ele visitou a Alfândega

GUARDA-LIVROS

e disse que os paneiros continham espécimens vegetais destinadas ao Jardim Botânico da

Obrigado. Mais tarde aceitarei, no almoço.

Rainha Vitória.

“CORONEL”

“CORONEL”

Comece logo, homem, você ainda não triscou em nada. Vamos festejar a sua

Mas o que tem isso?

chegada que demorou tanto. Cartaz: A CRISE DA BORRACHA QUE ABALOU A REGIÃO NESTA CENA LIGEIRA TEM A EXPLICAÇÃO...

GUARDA-LIVROS O que tem é que em 1903, há quase vinte anos, já existiram na Ásia vinte e três mil e quatrocentos acres de terra cultivados com as sementes das nossas seringueiras. E

“CORONEL”

agora essa borracha do Oriente está fazendo concorrência com a borracha da Amazônia,

Um brinde à sua saúde, seu Moreira.

acarretando a sua desvalorização no mercado internacional.

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

E a prosperidade deste seringal. (Bebem)

Nós ganhamos qualquer concorrência. (Bebe mais.)


223

224

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Tenho minhas dúvidas, a menos que o Governo interfira na produção da borracha,

Eu não digo? São uns burroides. Por que não inventam um líquido milagroso pra

oriente, fiscalize, dê o seu apoio...

conservar a borracha? Pra fazer que os pneus nunca se gastem? Pavulagem!

“CORONEL”

GUARDA-LIVROS

O Governo meter o bedelho na minha propriedade???

O senhor fala como se não tivesse a menor preocupação com a crise...

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

É preciso, “Coronel”. Os donos de seringal devem mudar o seu procedimento. Por

E eu me preocupo? Sou dez vezes milionário, seu Moreira. Não vê a fartura do

exemplo: quando o senhor mandar recrutar homens no Nordeste permita que os casados

meu seringal? Dinheiro aqui é mato. Já viu como é que eu acendo charuto?

tragam suas famílias. Eles trazendo a esposa e os filhos trabalharão com regularidades,

GUARDA-LIVROS

com mais interesse e sem a preocupação de fugir.

Naturalmente.

“CORONEL”

“CORONEL”

Ora, seu Moreira, cada seringueiro trazendo todos os parentes e aderentes por

Como é?

quanto não sairá a despesa da viagem? (Bebe, insistindo para que o Guarda-livros faça o

GUARDA-LIVROS

mesmo; os sintomas iniciais de embriaguez já se manifestam no “Coronel”; manda ele

Com fogo..

abrir outra garrafa de champanha e, a partir daí, beberá com mais sofreguidão; Guaribão

“CORONEL”

o imitará, muito compenetrado da sua importância eventual.)

Não, não viu não... Um homem das minhas posses não acende charuto como

GUARDA-LIVROS

qualquer pé rapado. É até diminuir o prestígio. Quando vou a Belém o povo fica se

O custo da viagem do seringueiro com a família será maior, mas, em

babando com a minha pose. Faço de propósito. Convido amigos e um monte de artistas pra

compensação, ele com a moradia fixa, certa, quando tiver que interromper o trabalho da

um anoitada e no meio do furdunço começo a acender meus charutos. É um sucesso, seu

seringa, durante o rigor do inverno, poderá aproveitar o tempo e fazer a sua roça. Cessando

Moreira, um sucesso. As artistas batem palma e se esfregam em mim. Aquelas bailarinas

as chuvas ele voltará ao serviço da borracha e a família cuidará da pequena agricultura,

louras são umas teteias; não se compreende nada do que elas dizem, mas mulher como

colhendo arroz, o feijão...

aquilo não precisa mesmo nem falar...

“CORONEL”

GUARDA-LIVROS

Esta é boa! Vou empregar um dinheirão em passagens pra nordestino fazer horta

São estrangeiras. Francesas, italianas. Belas artistas.

nas minhas terras? Pois não vê que além disso ser uma estupidez eu ia perder o lucro que tenho vendendo toda a comida pros seringueiros?

“CORONEL” E eu sou um apreciador das belas artes... Sabe que quando estou em Belém não

GUARDA-LIVROS

perco uma representação no Teatro da Paz? Falou em apoiar a cultura eu compareço pra

São pontos de vista de pessoas ilustradas, “Coronel”. Sempre leio artigos na

me divertir...

imprensa...

GUARIBÃO

“CORONEL”

Esqueceu do charuto, padrinho. Não ia fumar um?

Esses escrivinhadores de jornal são tios bimbas, seu Moreira.

“CORONEL”

GUARDA-LIVROS

Quer a bagana, não é?

Uma das coisas que eles aconselham é ferir as seringueiras com facas apropriadas para o corte e não com machadinhas.


225

226

GUARIBÃO

GUARDA-LIVROS

(Desinibido, por obra e graça do champanhe.) O padrinho me desculpa, porém

Muito obrigado. Se bebo mais agora não trabalho hoje e não apronto a escrita

depois de beber uma bebida dessa o Gauribão não pode fumar um enrolado... (Guaribão

antes do navio passar. (O Capataz entra.)

revira as gavetas da escrivaninha, encontra uma caixa de charutos, tira um e dá ao “Coronel”, este puxa do bolso um presumível maço de dinheiro, risca fósforo e faz arder

Cartaz: NOVAMENTE PRESTEM MUITA ATENÇÃO NA FIGURA DO GUARIBÃO DE QUEM TANTO GOSTA O PATRÃO...

uma cédula; com a chama acende o charuto.)

CAPATAZ

“CORONEL”

Bom dia, patrão. Bom dia, seu Moreira.

Viu, seu Moreira? Viu só?

GUARIBÃO

GUARDA-LIVROS

Não dá bom dia pro Guaribão? Também tô bêbado...

Estou vendo...

CAPATAZ

“CORONEL”

Patrão, não amanheceram todas as canoas na corrente.

Dono de seringal que se preza acende charuto com nota de quinhentos mil réis.

GUARIBÃO

GUARDA-LIVROS

(Distancia-se do “Coronel” e sussurra para o Seringueiro-Culto.) Deu-se a flor,

Quantos charutos o senhor fuma por semana acendendo desse jeito?..

filho..

“CORONEL”

CULTO

Depende da ocasião, não faço isto sem necessidade. Faço quando quero quebrar a

Controla-se senão complica tudo. (Aproximam-se os dois do “Coronel”, atentos

castanha na boca de quem duvida da minha riqueza.

às palavras do Capataz.)

GUARDA-LIVROS

CAPATAZ

Não foi da sua riqueza que eu duvidei, “Coronel”. Duvidei da riqueza que sustenta

Duas canoas sumiram. Duas.

a Amazônia.

“CORONEL”

“CORONEL”

Vá procurar.

Bobagem, a Amazônia vai pra frente. Ou vai ou racha.

CAPATAZ

GUARDA-LIVROS

Mas se elas sumiram é porque...

Se depender da borracha parece que vai rachar... E depois de rachada os países

“CORONEL”

poderosos tomam conta dos pedaços, como alertou um jornalista. E a nação perde a metade

Vá procurar e não me azucrine que estou festejando a chegada do seu Moreira.

do seu território. A coisa é séria, já houve até quem dissesse que o Brasil devia dar de

CAPATAZ

presente o Acre para a Bolívia e pedir desculpa pela demora. É preciso que o Governo

O pessoal do Laguinho já chegou pro aviamento?

tome uma providência.

“CORONEL”

“CORONEL”

Não.

Deixe o Governo em paz, homem. Vamos é esvaziar outra garrafa.

CAPATAZ

GUARIBÃO

Não é de estranhar, patrão?

Vamos...

CULTO (Interferindo, intencional.) Os seringueiros de outras partes igualmente ainda não chegaram.


227

228

GUARIBÃO

GUARDA-LIVROS

Tá todo mundo atrasado, filho, hoje quando vierem é duma vez; com um

Estou vendo.

pouquinho mais isto fica atupetado de seringueiros. CULTO A demora é normal. A turma do Laguinho, principalmente, costuma chegar tarde.

“CORONEL” Este negro é a única pessoa que não pede a Deus a minha morte... a única neste seringal que não me joga praga... a única pessoa que me tem amor...

CAPATAZ

GUARDA-LIVROS

Como é que você sabe disso se começou a trabalhar de caixeiro esta semana?

Não esqueça a sua esposa...

GUARIBÃO

“CORONEL”

Tu tá espigado, filho. O que te deu na veneta?

Aquilo é uma vasilha ordinária. Orgulhosa. Abusada. Uma jararaca.

CAPATAZ

(O “Coronel” cambaleia, Guaribão o ampara.)

Este negócio das canoas sumirem não me cheira bem.

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

“Coronel”, repouse uma meia hora para descansar os músculos...

Vá procurar as canoas, não mandei?

“CORONEL”

GUARIBÃO (Empertigado) Vá procurar as canoas, o padrinho não mandou? CAPATAZ

Este negro é a única pessoa que botou amizade em mim sem interesse... a única pessoa incapaz de me fazer uma traição... CULTO

Pode ser que eu me engane... (Sai)

(Espirituoso) E a turma do laguinho não chega...

GUARIBÃO

GUARIBÃO

Padrinho, não esqueça a bagana.

Padrinho, já que nós se gosta tanto, o Guaribão troca esta bagana por um charuto

“CORONEL”

inteiro. (Serve-se de um charuto ostensivamente, como que respondendo ao gracejo

Toma, negro. (Levado pela embriaguez lança o charuto de encontro ao Gauribão,

irônico do Seringueiro-Culto.)

atingindo-o com o fogo.)

CULTO

GUARIBÃO

Choveu no seu roçado...

O senhor me queimou, padrinho. Arra! Como tá ardendo.

GUARIBÃO

GUARDA-LIVROS

Tá com inveja, filho? Pode tirar um charuto pra ti.

Coitado.

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

O senhor necessita de um cochilo, “Coronel”.

Não foi por querer. (Apanha o charuto e o coloca nos lábios do Guaribão.) Fuma,

CULTO

fuma, não foi pela minha vontade. (Com certa ternura.) Não vê que eu não maltrato o meu xerimbabo de estimação?

Vamos levá-lo para sentar (Conduzem o “Coronel” e o instalam em sua cadeira no escritório.)

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Isto acontece, “Coronel”.

Não estou tonto.

“CORONEL”

CULTO

Não vê que eu gosto de você, Guaribão? Gosto deste negro, seu Moreira.

Claro que não...


229

230

“CORONEL”

DELATOR

Estou meio pau, meio tijolo...

(Divisando o “Coronel”.) Vou falar com ele.

GUARIBÃO

CULTO

Eu protejo o padrinho.

Por que tamanha afobação?

“CORONEL”

DELATOR

Não quero ama seca. Desinfetem. (O Guarda-Livros senta na outra cadeira e põe-

Fugiu um mangote de seringueiros do Laguinho.

se a consultar um livro contábil, tranquilamente; o “Coronel” cerra os olhos,

GUARIBÃO

semiadormecido, do que se aproveita Guaribão para se afastar com o Seringueiro-Culto, oferecendo-lhe charutos e champanhe.)

Depois tu diz, filho, não te agonia, bebe primeiro uma champanha... (Tenta servilo.)

GUARIBÃO

DELATOR

Fuma, filho, e bebe que o Guaribão garante.

Oxente! Eu estou sonhando?

CULTO

GUARIBÃO

(Aceitando somente o champanhe.) Garante mesmo?

É que o padrinho, filho, tá festejando o aniversário do seu Moreira...

GUARIBÃO

DELATOR

Garante, filho, tira a barriga da miséria.

Vou logo dizer pra ele que seringueiros do Laguinho se arribaram.

CULTO

GUARIBÃO

Está feliz da vida não?

Quantos???

GUARIBÃO

CULTO

Filho, Guaribão tá é com pavor.

Não foram uns oito?

CULTO

DELATOR

Pensando bem, a situação é crítica.

Vosmecês sabiam?

GUARIBÃO

CULTO

Nós se metemos numa arapuca!

É... o “Coronel” já sabe do desaparecimento das canoas..

CULTO

GUARIBÃO

Nós, não. Eu nada tenho com isso, você emprestou a chave porque quis.

Pode voltar, filho, e leva pra ti estes charutinhos...

GUARIBÃO

DELATOR

Mas tu foi quem ensinou pro Guaribão a mentira do bolso furado, filho.

Antes vou falar com o “Coronel”.

CULTO

CULTO

Ensinei com pena de você, depois do problema criado. (O Seringueiro-Delator

No momento ele não atende, deu ordem para eu não deixar ninguém perturbá-lo.

entra agitadíssimo.)

DELATOR

DELATOR

Atende sim. Pra isso atende.

Bom dia, cadê o “Coronel”?

CULTO

CULTO

Absolutamente. Não atende para nada.

O que deseja?


231

232

GUARIBÃO

CULTO

Não atende, filho, tu sabe que o Guaribão não mente.

Botes, botes não, que canoas largas como aquelas não são botes, aqueles batelões

DELATOR

são preciosos, é preciso ir procurar logo.

Vosmecês estão amarelos como sebo de Holanda. Alguma coisa houve por aqui...

GUARDA-LIVROS

CULTO

Por que esse tumulto todo para recuperar duas canoas? Não há pressa. Se elas se

Uma comemoração em homenagem ao Guarda-Livros, nada mais.

desprenderam de onde estavam guardadas, na certa encalharam ou estão rodopiando no

DELATOR

remanso.

Vou perguntar pro “Coronel”.

DELATOR

CULTO

As canoas estavam cheias de...

Por uma questão de disciplina não posso deixar.

CULTO

DELATOR

Isto não! Estavam vazias, eu afirmo porque assisti o Guaribão acorrentá-las no

Arrede da minha frente, seu!

barranco... Nenhuma canoa estava cheia d’água...

“CORONEL”

“CORONEL”

(Abrindo os olhos.) Que diacho é isso aí?

Basta de conversa mole!

DELATOR

DELATOR

“Coronel”, o senhor escuta duas palavrinhas?

“Coronel”...

“CORONEL”

“CORONEL”

Fale, seu espevitado.

Basta!!! Pediu pra dizer duas palavrinhas e disse cinquenta. Vá ajudar a procurar

CULTO O assunto é aquele das canoas, “Coronel”. “CORONEL” Duas canoas, não foi? CULTO (Para o Seringueiro-Delator.) Eu não disse que ele sabia? DELATOR Sim, “Coronel”, duas canoas e das maiores, pra caber... (O Seringueiro-Culto passa a cortar as frases do Seringueiro-Delator, a fim de que o “Coronel” não entenda o sentido real da comunicação.)

as canoas. DELATOR Morrendo e aprendendo... (O Seringueiro-Delator diz estas últimas palavras já transpondo a porta de saída ao fundo.) Cartaz: ÀS VEZES QUANDO O “CORONEL” BEBIA VEJAM SÓ VOCÊS O QUE ELE FAZIA... GUARDA-LIVROS Agora quem diz duas palavrinhas sou eu, “Coronel”. O senhor precisa de uma rede, precisa dormir um pouco. “CORONEL”

CULTO

Eu? Rede? Pensa que estou embriagado? Eu nunca fico coçado, seu Moreira.

É indispensável localizar essas canoas sem perda de tempo.

GUARDA-LIVROS

DELATOR

Embriagado não é bem o termo. Um tanto quanto tocado...

“Coronel”, aqueles...

“CORONEL” Estou no meu juízo perfeito. Não estou, Guaribão?


233

234

GUARIBÃO

“CORONEL”

Tá, padrinho.

Um... dois.... três... quatro. (Ouve-se o tiro; Guaribão agacha-se, contorcendo-se.)

“CORONEL”

GUARDA-LIVROS

Então vamos fazer aquela experiência pro seu Moreira ver como nunca fico

Guaribão, você está ferido?

embriagado.

GUARIBÃO

GUARIBÃO

Não...

Aquela... aquela da garrafa?

CULTO

“CORONEL”

Não está mesmo?

Sim, aquela mesma.

“CORONEL”

GUARIBÃO

Levanta, negro.

(Alamardo) Não, padrinho, pelo amor de DEUS... Noutra hora..

GUARIBÃO

“CORONEL”

Não posso, padrinho.

Se ponha na posição. Ali.

“CORONEL”

GUARIBÃO

Por que, seu presepeiro?

Ai, minha Santa Bárbara, desta vez o teu Guaribão se esborracha... (O “Coronel”

GUARIBÃO

vasculha as gavetas da escrivaninha, pega um revólver e balas.) “CORONEL” Seu Moreira, eu lhe mostro já-já como não estou coçado. GUARDA-LIVROS Para que esta arma, “Coronel”? “CORONEL” Espere um instante. (O “Coronel” carrega o revólver, coloca uma garrafa vazia na cabeça do Guaribão.) GUARIBÃO Padrinho, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo... “CORONEL” Vou lhe mostrar a minha pontaria, seu Moreira, pra ver que não estou tonto. (Guaribão, com os braços em forma de crucificado, equilibra a garrafa na cabeça verdadeiramente aterrorizado; o “Coronel”, corpo balançando, prepara-se para disparar com extrema dificuldade, apontando o revólver em direção à garrafa.) GUARDA-LIVROS Isto é uma temeridade. CULTO “Coronel”...

Tenho vergonha... me molhei todinho de xixi...


235

TERCEIRO ATO

236

ESPOSA Ainda está danado com os seringueiros que fugiram, não é? Se enraivece e vem

Cenário: residência do “Coronel”

desforrar em mim. Por que não descarrega em cima do Guaribão? “CORONEL”

Tomando a metade do palco, sala com porta à esquerda para o interior da casa;

Guaribão não tem nada com isso.

à direita janela larga e porta com escada que desce para o terreiro, ou seja, a metade

ESPOSA

restante do espaço cênico. A sala, em nível bem mais alto, a fim de possibilitar a escada,

Ele guardava a chave do cadeado da corrente, não guardava?

ostenta na parede uma coleção de espingardas.

“CORONEL”

Cartaz: NO DIA SEGUINTE O “CORONEL” CURTE A RESSACA BRIGANDO COM A ESPOSA... “CORONEL” (Entrando da porta à esquerda com a Esposa.) Enquanto eu me escangalho dia e noite numa trabalheira dos seiscentos diabos, aqueles marmanjos vivem folgados no rio de Janeiro.

Guaribão é um pobre coitado. ESPOSA Coitado? Morda aqui! Ele emprestou a chave ou deixou as canoas fora da corrente de propósito. “CORONEL”

ESPOSA

Ele perdeu a chave. Caiu do bolso.

Agora impininou com os meninos, não é? Eles têm que estudar pra ser gente.

ESPOSA

“CORONEL”

E como a chave foi parar tão depressa nas mãos dos seringueiros do Laguinho?

E é só quem estuda pra doutor que é gente? Eu não sou gente? Responde: não sou

Esta pílula eu não engulo. “CORONEL”

gente? ESPOSA

E por que não?

É gente, mas não é gente fina.

ESPOSA

“CORONEL”

Guaribão é useiro e vezeiro em arquitetar mentiras.

Sou mais gente do que muito figurão de fraque e cartola. GENTE, ouviu?

“CORONEL”

ESPOSA

Está despeitada?

Gentinha...

ESPOSA

“CORONEL”

Eu? Por que despeitada?

Gentinha é você, sua vaca. É você que não tinha eira nem beira quando casou

“CORONEL”

comigo. Eu tenho os meus haveres, tenho posses, tenho fortuna.

Você tem ciúme do Guaribão?

ESPOSA

ESPOSA

Queria seus filhos sem educação, era?

Ciúme?

“CORONEL”

“CORONEL”

Era. Queria eles aqui, pra cuidar da escrita do seringal, pra dispensar as vindas

Então por que embirra com ele?

desse Guarda-Livros cabuloso, que sempre chega com notícias ruins. Queria eles ajudando

ESPOSA

a vigiar os seringueiros...

Porque o Guaribão é um fingido de marca maior.


237

238

“CORONEL”

GUARIBÃO

É porque eu agrado ele e não agrado você. Porque ele sempre foi meu amigo e

Socorro! Socorro!

você sempre foi minha inimiga...

GUARDA-LIVROS

ESPOSA

O que foi?

E eu ligo pra isso? Eu dou trela pro seu chamego com aquele preto agourento? (O

“CORONEL”

Guarda-Livros, trazendo uma maleta, aparece à direita, sobe a escada, entra na sala.)

Alguma visagem?

GUARDA-LIVROS

GUARIBÃO

Dá licença?

Não, padrinho, é os índios que vêm nos atacar.

“CORONEL”

“CORONEL”

A casa é sua.

Uma hora desta? Índio ataca de noite.

GUARDA-LIVROS

GUARIBÃO

Estou pronto para embarcar. Creio que dentro de meia hora ouviremos o apito do

Eu vi, padrinho, agorinha, os índios ali do lado do barracão. ESPOSA

navio. ESPOSA

Se não for mais uma mentira...

Seu Moreira, o senhor não acha que o Guaribão emprestou a chave pros

“CORONEL”

seringueiros furigem? GUARDA-LIVROS

Cala-te, mulher faladeira, língua de trapo. (Barulho abafado, fora; o “Coronel” retira da parede as espingardas; expectativa; ruídos um pouco mais fortes.)

Que chave? Ah, sim... Não, não acho.

GUARIBÃO

“CORONEL”

É eles, padrinho...

Ela cismou com ele.

“CORONEL”

GUARDA- LIVROS Guaribão é ingênuo demais para uma atitude dessa natureza.

Se preparem. Dedo no gatilho. (De espingarda em punho aguardam, nervosos; novos rumores.)

“CORONEL”

GUARIBÃO

Um tapado.

Escutaram? É o grito de guerra dos Caiapós...

ESPOSA

ESPOSA

Um astucioso é o que ele é. GUARDA-LIVROS

Grito de guerra coisa nenhuma. Isto não é índio, é a porca que está fuçando no chiqueiro.

Inofensivo.

“CORONEL”

ESPOSA

Desde que os Caiapós desceram as cabeceiras do Iriri não se teve mais sossego.

Perigoso. (Guaribão entra à direita, correndo, galga os degraus da escada e invade a sala, ofegante.) Cartaz: MOMENTO PERIGOSO: OS ÍNDIOS VÃO ATACAR E GUARIBÃO SUA CORAGEM VAI DEMONSTRAR...

São umas feras. GUARDA-LIVROS Feras não, “Coronel”. Os índios são criaturas como nós, embora primitivas. “CORONEL” Na sua opinião.


239

240

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Convenientemente instruídos eles se modificariam.

Dantes a gente derrubava índio à bala pra se distrair...

“CORONEL”

GUARIBÃO

Vá se fiando nisso. Uma vez prenderam um indiozinho em Calama, no rio

Uma vez o senhor arrasou uma tribo inteira, não foi, padrinho?

Madeira. Criaram o Curumim com todo o conforto a fim de que ele, quando crescesse e

“CORONEL”

voltasse pra maloca, falasse a favor dos civilizados. Ele cresceu e voltou pra maloca, de

Hoje são eles que nos afrontam em pleno dia.

fato; mas voltou fugido e levou, como troféu, a cabeça de um branco que andou dando

GUARDA-LIVROS

umas bordoadas nele.

Bom, ou se foram ou recuaram para organizar outra investida.

ESPOSA

GUARIBÃO

É melhor pendurar as espingardas porque este ataque de índios é pura invenção.

Se avoaram com medo do meu tiroteio.

“CORONEL”

ESPOSA

Dê uma olhada lá fora, Guaribão.

Deixa de lambança, negro confiado.

GUARIBÃO

“CORONEL”

Eu???

Podemos largar as espingardas.

“CORONEL”

ESPOSA

Sim. Vá.

Tanto espalhafate sem a menor necessidade.

GUARIBÃO

GUARDA-LIVROS

E se os índios me flechar, padrinho?

E se os Caiapós nos apanhassem desprevenidos?

“CORONEL”

ESPOSA

Vá logo, seu coirão. (Guaribão move-se vacilante e, ao atingir o limiar da porta,

Não eram os índios.

escorrega, cai com parte do corpo para fora, detonando involuntariamente a espingarda.)

GUARIBÃO

GUARIBÃO

O tiro da minha espingarda é que afugentou eles.

Acudam!!! (O “Coronel” arrasta o Guaribão para dentro pelas pernas.)

“CORONEL”

“CORONEL”

Você viu mesmo os índios quando atirou?

Se bateu?

GUARIBÃO

GUARIBÃO

Vi, padrinho. Um até se acocorou detrás duma raiz quando o Guaribão...

(Recompondo-se). Viram a minha valentia? Acertei na carcuruta dum índio.

ESPOSA

ESPOSA

Ele não viu coisíssima nenhuma.

Acertou nada, preto desastrado.

GUARIBÃO

GUARIBÃO

Vi. Juro que vi. Eu reinei, apertei o gatilho da espingarda de supetão, fazendo uma

Acertei, juro que acertei.

careta e aí eles esbugalharam os olhos e correram. O mais parrudo falou pros outros assim:

ESPOSA

“Vamos que aquele é o Guaribão, preto maneiro e forçudo que só uma anta acuada”...

Mentira. A tua cara não treme?


241

242

ESPOSA

GUARIBÃO

Não quero debochar do Polidoro nem do senhor, seu Moreira, mas fizeram papel

Padrinho, os índios vieram...

de bobos com as espingardas em punho.

“CORONEL”

GUARDA-LIVROS

Basta! Não sei aonde estou que não lhe castigo por essa mentira tão descarada.

Será?

ESPOSA

ESPOSA Ora! Tudo foi artimanha deste negro...

O tempo que nós passamos em alvoroço ele devia passar no formigueiro, só assim deixava de ser cínico.

“CORONEL”

“CORONEL”

É... desta vez parece que você tem razão...

Devia mesmo.

GUARIBÃO

GUARIBÃO

O senhor tá contra eu, padrinho?

Padrinho, eu disse a verdade.

“CORONEL”

“CORONEL”

Você mentiu.

Cale-se, seu gorila duma figa! Agora quem está enfezado sou eu.

GUARIBÃO

GUARDA-LIVROS

Não, isto não. Eu vi! “CORONEL”

Confesse que mentiu, Guaribão. Depois daquela do anjo Gabriel não há outro recurso...

Tem a petulância de discutir comigo?

GUARIBÃO

GUARIBÃO

(Brioso) Hoje foi a primeira vez na vida que o Guaribão fez uma proeza na frente

Eu vi... GUARDA-LIVROS (Já incrédulo, troçando.) Ele viu, “Coronel”, e além de ver, ouviu...

de todo mundo. E querem que eu desfaça a minha proeza? Pois eu não desfaço. “CORONEL” Cala a boca, negro doido.

GUARIBÃO

GUARDA-LIVROS

Sim senhor. Quando disparei a espingarda e encarei os índios como quem diz:

(Conciliador) Errar é humano. Confesse a sua mentira e peça perdão.

“Vou quebrar os ossos de vocês” eles, oh! babau... Fugiram pulando e gritando: “É o

GUARIBÃO

Guaribão, mulato espritado e destemido como o anjo Gabriel”...

Não me desdigo não. Vocês tão é com inveja, porque a valentia foi minha.

ESPOSA

ESPOSA

Negro gabola.

Eu é que nunca me iludi com essa bisca.

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

E índio sabe o que é anjo Gabriel, Guaribão?

(Com exaltação crescente.) Quem é que está com inveja?

GUARIBÃO

GUARIBÃO

Não, não sabe não; eles falaram isso pra me bajular...

Todos. Até o senhor, padrinho. Tão com inveja porque de hoje em diante eu sou o

“CORONEL” Basta de potocas.

“Herói do Seringal”. “CORONEL” Cachorro! (Esbofeteia Guaribão.)


243

244

GUARDA-LIVROS

VALENTE

(Contendo o “Coronel”.) Calma, “Coronel”, calma.

Não era nenhum segredo não.

ESPOSA

VETERANO

Há muito tempo que ele precisava de uma boa pisa. GUARIBÃO

O senhor me conhece há anos, “Coronel”, sabe que eu não sou homem de enganação.

Padrinho, o senhor espancou a minha cara...

BRABO

“CORONEL”

Eu ainda não fiz nenhum mês de trabalho...

E daí?

INDECISO

ESPOSA

Será que o senhor não confia em nós, “Coronel”?...

Bem feito.

CAPATAZ

GUARIBÃO

Eles sabem qualquer coisa sobre o pessoal do Laguinho.

Em cara de homem não se bate, padrinho... (Transpõe a porta, desce a escada.)

VETERANO

Em cara de homem não se bate... (Atravessa o terreiro.) Em cara de homem não se bate...

Eu não sei patavina.

(Some)

BRABO GUARDA-LIVROS

Eu sei não.

Um tipo original, esse Guaribão.

VALENTE

“CORONEL”

Nem eu.

A única pessoa neste seringal que me tinha amizade... (A Esposa sai, à esquerda;

INDECISO

o Capataz surge à direita, acompanhado pelos seringueiros Valente, Brabo, Veterano e

E eu, o que posso saber?...

Indeciso; sobem a escada.)

“CORONEL”

Cartaz: O PROBLEMA DA FUGA AINDA NÃO FOI RESOLVIDO E O “CORONEL” CONTINUA BASTANTE ABORRECIDO... CAPATAZ Dá licença, patrão?

Preferem umas chicotadas pra soltar a língua? Como é, falam ou não falam? VETERANO “Coronel”, eu já vi muitas vezes como o senhor castiga os seringueiros fujões. Não sou desatinado pra me meter nisso.

“CORONEL”

INDECISO

Entrem.

Que culpa temos nós do pessoal do Laguinho fugir?...

GUARDA-LIVROS

CAPATAZ

Eis os Caiapós...

Alguém ajudou eles.

CAPATAZ

VALENTE

Estes cabras estavam cochichando um segredo sobre os seringueiros que fugiram,

Nós não ajudemos.

escondidos do lado do barracão.

BRABO

“CORONEL”

Ajudemos não.

O que era o segredo?

CAPATAZ Com meia dúzia de chibatadas, patrão, eles destrincham o segredo.


245

246

GUARDA-LIVROS

CAPATAZ

“Coronel”, uma pergunta: há motivos para o senhor considerar estes seringueiros

Foi um destes canalhas.

suspeitos?

“CORONEL”

CAPATAZ

É, foi mesmo. Esperem lá fora que nós vamos conversar baixinho.

Eles tramaram fugir esta semana. Como não puderam, instigaram o pessoal do

CAPATAZ

Laguinho.

Amarro logo eles no tronco, patrão?

GUARDA-LIVROS

BRABO

Não existe mais ninguém suspeito?

“Coronel”, eu quero ficar todo encarangado se tomei parte nessa fugida...

“CORONEL”

VALENTE

Bem... O Maxico era o caixeiro do barracão, fez uma besteira, eu despedi; quem

Eu já estou com o lombo assado de chicotada...

sabe se ele não achou a chave que o Guaribão perdeu? Quem sabe se pra se vingar não levou a chave pra turma do Laguinho? CAPATAZ

VETERANO Eu não boto ninguém no mal caminho, “Coronel”, o senhor sabe que me acostumei no seringal...

Patrão, pois não é que o Maxico também sumiu?

INDECISO

“CORONEL”

Ai, meu Jesus, será que nunca vai chegar o dia de nós acabar de padecer?..

Então foi isso: ele fugiu com os outros.

CAPATAZ

GUARDA-LIVROS

Vamos, seus ratuínos. (Saem à direita, o Capataz e os seringueiros; a Esposa

Neste caso, os seringueiros que estão aqui são inocentes.

retorna com uma bandeja, serve café, aparecem à direita os seringueiros Delator e

“CORONEL”

Covarde com a Cabocla; detendo-se no terreiro eles começam a questionar, enquanto

É...

dentro da casa, após beberem o café, o Guarda-Livros examina o conteúdo da sua maleta,

GUARDA-LIVROS

a Esposa limpa um móvel e o “Coronel” reflete , denotando profundo acabrunhamento.)

(Para os seringueiros.) A coisa melhorou. Estão contentes? VETERANO

Cartaz: POR MAIS INCRÍVEL QUE PAREÇA A VOCÊS, JÁ HOUVE NA AMAZÔNIA CASAMENTO A TRÊS...

Estemos triste.

COVARDE

GUARDA-LIVROS

Reclama mais do que bode na chuva...

Esta eu não entendi...

DELATOR

VETERANO

Se era tão apegada no seu marido por que veio pro nosso poder? Largou ele na

O Maxico não fugiu. CAPATAZ Como você sabe?

sepultura ontem, devia ainda está chorando... CABOCLA Ara, ara. Vim porque vocês me trouxeram aos emboléus, esfregando o focinho na

VETERANO

minha ilharga como tamanduá cheirando formigueiro. Eu nunca andei em capoeira com

Nós encontremos ele morto. Duas flechadas.

penca de homem. Axi!

“CORONEL”

DELATOR

Se não foi o Maxico que ajudou a turma do Laguinho a fugir...

Ah, mulherzinha geniosa.


247

248

CABOCLA

CABOCLA

Vim na fiúza de ter um amparo, mas-porém, já me arrependi. Antes tivesse me

Assinzinho.

ajuntado com seu coisinha... seu Mendes. Ou com aquele outro seringueiro antigo. Vocês

CULTO

são uns escovados, matreiros que nem carará.

Não me quis, hein?

COVARDE

CABOCLA

Nós não lhe trouxe a pulso, vosmecê veio porque quis. Veio pela precisão.

Paresque...

DELATOR

CULTO

Porque, como disse, não tinha mais nem uma cuia de farinha pra comer. Eu acho

O que ele lhe prometeu? CABOCLA

até que vosmecê não é gorda, é inchada... CABOCLA

Casamento...

Mas quando?! Vigie só... Eu não estava de tanga, vim porque vocês me adularam,

CULTO

mansos que nem jacamim. Se calhá eu abandonava o meu tapiri sem a sujigação de vocês?

Vão conversar com o “Coronel” a esse respeito?

Pra me entocar no matagal? No meu sítio da beira do rio não se adoece de impaludismo...

DELATOR

DELATOR

Não é da conta de vosmecê.

Não se adoece de impaludismo, porém se adoece de béri-béri que é mil vezes

CULTO E têm esperança que o “Coronel” case vocês?

pior.. CABOCLA

DELATOR

Axi! porcaria. O Paquito era um baita de homem, morreu de béri-béri porque

Tenho certeza. CULTO

fizeram pussanga pra ele. Nas minhas bandas todos têm saúde, só se morre de três doenças. COVARDE

Logo hoje que ele está de mau humor. Eu não arriscaria.

Só se morre de três doenças? Ah! Mulherzinha mentideira.

DELATOR

CABOCLA

Vosmecê quer que nós atrase o casório pra ter tempo de desencabeçar a Andreza,

É, sim, só se morre de três doenças: febre, inflamação e falta de ar... (O Seringueiro-Culto entra à direita, defronta-se com os três no terreiro.)

não é? CULTO

CULTO

Bem, vou falar com o “Coronel”.

Olá, o que fazem aí? Você, Andreza?

DELATOR

COVARDE

Do nosso casório?

Estemos criando coragem pra falar com o “Coronel”.

CULTO

DELATOR

Não, o ambiente hoje não está para assuntos matrimoniais... (Sobe a escada,

Vosmecê está, eu não preciso de coragem porque ele tem simpatia por mim.

penetra na sala, os três se acotovelam no terreiro, combinando algo em voz baixa.)

CULTO

“CORONEL”

(Para o Delator, com desprezo.) À custa de tanta traição você tinha que ganhar a

Entra sem pedir licença?

simpatia do “Coronel”. (Para a Cabocla.) Como vai?

CULTO Perdoe, “Coronel”, é que estou desorientado.


249

250

“CORONEL”

CABOCLA

O que houve. Por que largou o barracão?

Nunca viu, seu cara de pavio?

CULTO

CULTO

Não posso fazer nada. O Guaribão não deixa.

Comigo você lucraria mais.

“CORONEL”

CABOCLA

Não deixa como? CULTO

Ara hum... A modo que agora já foi tudo por águas abaixo... (O Seringueiro-Culto sai à direita, os três se aproximam da escada.)

Exigindo cachaça e mais cachaça.

DELATOR

“CORONEL”

Vamos subir?

Dê.

COVARDE

CULTO

Vosmecê é que fala, eu fico calado.

Já bebeu dois litros.

DELATOR

“CORONEL”

“Coronel”, dá licença? (Entram na casa.)

O que ele diz?

“CORONEL”

CULTO

Abandonaram o trabalho? Quem deu ordem?

Não diz nada, além de exigir cachaça. Tem os olhos vidrados, como quem sofre

DELATOR

alucinação.

Abandonemos só por umas horinhas....

“CORONEL”

“CORONEL”

Dê bebida até ele emborcar, dormindo. Coitado do Guaribão está sentido.

O que vieram fazer? E esta caboca?

ESPOSA

DELATOR

É manha.

Ela... é a Andreza...

“CORONEL”

“CORONEL”

Dê mais cachaça, Guaribão precisa de esquecimento.

E o que querem?

ESPOSA

DELATOR

Precisa duma boa sova.

É um assunto que... que nós entrega ao senhor...

CULTO

“CORONEL”

E se ele tiver uma indigestão? Indigestão alcoólica pode matar.

Se expliquem sem gaguejar. Não tolero gaguice.

ESPOSA

DELATOR

Se morrer não se perde nada.

“Coronel”, é um assunto que nós entrega ao senhor....

“CORONEL”

“CORONEL”

Acomode o Guaribão por lá com todo o cuidado. E não aperreie ele.

Sei. Está repetindo o que já disse, seu jumento.

CULTO

DELATOR

Pois não, vou fazer o que for possível. (O Seringueiro-Culto sai da casa, para no

(Para o Covarde.) Vosmecê não diz nada?

terreiro, fita a Cabocla.)


251

252

COVARDE

GUARDA-LIVROS

Digo não.

Vão casar os dois com esta mulher? Os três em um só casamento?

“CORONEL”

COVARDE

Finalmente, por que vieram aqui???

Sim, casamento é coisa tão boa que quanto mais gente melhor...

DELATOR

ESPOSA

“Coronel”, nós... o assunto é um casório...

São uns animais.

“CORONEL”

“CORONEL”

Casamento de quem com quem?

Querem casar os dois com esta caboca, não é?

DELATOR

DELATOR

É o seguinte: ele tem um saldozinho e contratou casar... (Vira-se para o Covarde

Se o “Coronel” não negar pra nós a graça...

e a Cabocla.)

“CORONEL”

“CORONEL”

Se ajoelhem.

Tem um “saldozinho”. Uma migalha de saldo, menos de cem mil réis. E eu nem

CORVADE

sei como ele pode ter esse saldo.

Sim senhor... (Os três se ajoelhem.)

COVARDE

“CORONEL”

É que não fumo, quase não bebo e como pouquinho.

Estão com sorte. Mereciam era uns tabefes. Mas como hoje eu fiz uma maldade

“CORONEL”

pro Guaribão, vou fazer o contrário com vocês pra me livrar do remorso. Repitam: nós

Se não tem prazer na vida, pra que mulher?

suplicamos...

COVARDE

COVARDE

Como eu tenho aquele saldozinho e o meu companheiro aí me convidou pra fazer

Nós suplicamos

companhia a ele...

DELATOR

GUARDA-LIVROS

Nós suplicamos

O quê? Os dois se casarem?

CABOCLA

DELATOR

Nós supliquemos...

Sim senhor...

“CORONEL”

GUARDA-LIVROS

Que o “Coronel” Polidoro nos case...

Homem com homem?

COVARDE

COVARDE

Que o “Coronel” Polidoro nos case...

Não, epâ! Nós dois casa com ela.

DELATOR

DELATOR

Que o “Coronel” Polidoro nos case...

“Coronel”, nós veio implorar pro senhor fazer o nosso casório. O senhor abençoa

CABOCLA

o nosso ajuntamento e eu prometo desencavar o nome do lugar pra onde o pesoal do

Que o “Coronel” Polidoro nos case...

Laguinho fugiu.

“CORONEL” Em nome dele mesmo...


253

254

COVARDE

“CORONEL”

Em nome dele mesmo...

Não se preocupe com isso. Eu estou preocupado é com Guaribão...

DELATOR

GUARDA-LIVROS

Em nome dele mesmo...

Eu gostaria de saber como os dois vão repartir os privilégios de marido.

CABOCLA

DELATOR

Em nome dele mesmo...

Repartir o que, a comida?...

“CORONEL”

COVARDE

Já que não existe igreja aqui...

Passou a comida, eu não faço questão, quase não tenho fome.

COVARDE

GUARDA-LIVROS

Já que não existe igreja aqui...

Não, privilégios de marido quer dizer... como vocês vão repartir a mulher?

DELATOR

DELATOR

Já que não existe igreja aqui...

Nós já combinemos.

CABOCLA

COVARDE

Já que não existe igreja por aqui...

Um dia pra cada um.

“CORONEL”

DELATOR

Assim seja. Assim tem que ser.

É não. Um dia pra vosmecê, dois pra eu.

COVARDE

“CORONEL”

Assim tem que ser.

Viu como são espertos?

DELATOR

GUARDA-LIVROS

Assim tem que ser.

Tem outra: quando nascer o filho, quem será o pai? (Os três entreolharam-se,

CABOCLA

confusos.)

Assim seja. Assim tem que ser.

DELATOR

“CORONEL”

Danou-se! Nisso nós não pensemos...

Pronto, estão casados. De hoje em diante são maridos e mulher...

CABOCLA

GUARDA-LIVROS

Filho? E esta uma aqui vai ter filho? Pois sim!...

Este casamento vai dar em complicação. Como é que vocês se arrumarão?

GUARDA-LIVROS

COVARDE

Mas se por acaso nascer?

Arrumando...

DELATOR

GUARDA-LIVROS

Nós se arresolve vendo com quem o moleque se parece.

“Coronel”, como será a vida deles?

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

É, não deixa de ser uma solução inteligente...

Coisa muito pior a gente vê nestas brenhas, seu Moreira.

“CORONEL”

GUARDA-LIVROS

São ou não são espertos.

Acontece que...


255

256

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Quem diria... (O Capataz reaparece empurrando os seringueiros Veterano,

Calem!!! São todos uns patifes. Todos!

Brabo, Indeciso e Valente; entram na sala.)

CAPATAZ

Cartaz: PELA DERRADEIRA VEZ PRESTEM ATENÇÃO: O FIM DESTA PEÇA GUARDA UMA LIÇÃO...

Isto, patrão, todos. (Referindo-se ao Covarde e Delator.) Estes dois também devem ter culpa.

CAPATAZ

DELATOR

Patrão, patrão, descobri que estão mesmo metidos na tramoia. Levei eles pro

Eu não, sou do lado do “ Coronel”, sempre fui.

tronco, fingi que ia buscar a corda pra amarrar, dei meia volta e me escondi atrás duma

COVARDE

castanheira. Os canalhas, com medo da chibata, começaram a discutir se contavam ou não

Pelo amor de Deus, seu Capataz, não levante falso.

a verdade. Este aqui (mostra o Valente), mais peitudo, ameaçou matar aquele que falasse.

GUARDA-LIVROS

“CORONEL”

Confesso que me enganei. Para mim eram inocentes.

Ah! continua valente, hein?

“CORONEL”

CAPATAZ

São uns bandidos. Inocente sou eu, seu Moreira. Eu que até o casamento destes

Foi ele que entregou pra turma do Laguinho a chave do cadeado das canoas.

dois canalhas acabei de fazer.

“CORONEL”

CAPATAZ

Ôpa! Vai se arrepender do dia em que foi parido.

Se eu tivesse descoberto antes do senhor fazer o casamento avisava, patrão,

CAPATAZ

porque sei que casamento não pode ser desmanchado.

Só não sei como ele conseguiu a chave, mas os outros sabem. Este (indica o

GUARDA-LIVROS

Veterano) dizia, na discussão, que não tinha nada com o peixe. Este (designa o brabo) dizia que estava comichando de saudade duma tal de Severina e não aguentava mais o

Pode ser anulado. E, aliás, esse casamento deve ser tornado sem efeito, não tem valor.

seringal. E este (segura o Indeciso) fazia uma porção de perguntas duvidando se era

DELATOR

melhor ficar calado ou abrira boca pra contar o segredo.

Não diga isso... Por quê?

“CORONEL”

GUARDA-LIVROS

Cretinos!

Porque há um marido sobrando...

COVARDE

“CORONEL”

(Para Delator, em surdina.) A situação está preta. Por Deus que está. DELATOR

O casamento está desfeito e vocês vão pro tronco com os outros, seus desgraçados.

Vosmecê sabia da estória?

COVARDE

COVARDE

Que horror!...

Sabia. Porém não ajudei não, Deus me livre.

“CORONEL”

“CORONEL”

E vão já. Tiro o couro de todos enquanto não souber de tudo.

Eu não disse, seu Moreira, que esta raça não vale nada? Só bala!

DELATOR

VALENTE, BRABO, VETERANO

“Coronel”, o senhor tem razão, porém de nós dois o culpado é só ele.

(Quase simultaneamente.) Será que? Há anos.... Eu...


257

258

COVARDE

ESPOSA

Vosmecê está me acusando?

Minha Nossa Senhora de Nazaré!!!

DELATOR

CAPATAZ

Estou.

O patrão morreu?..

COVARDE

CULTO

Meu Deus, o que eu fiz?

Não há dúvida, está morto!..

DELATOR

VALENTE

Sei não, vosmecê é que sabe: não acabou de me dizer que conhecia a estória da

Bem feito.

fugida?

DELATOR “CORONEL”

Que coisa desastrosa...

Ele disse isto?

COVARDE

DELATOR

Virgem!...

Sim senhor. De mansinho. Eu até me espantei.

VETERANO

“CORONEL”

Depois de tantos anos nunca que eu podia pensar...

Muito bem. Então é somente ele que entra no chicote com os outros...

BRABO

DELATOR

Coisa assim só no sertão...

“Coronel”... agora é só eu de marido... o senhor não desfaz o casório, não é?...

CABOCLA

(Ouve-se um apito, longo.)

Morte pior que béri-béri..

GUARDA-LIVROS

GUARDA-LIVROS

É o navio, felizmente. (O Guarda-Livros apanha a maleta e inicia

Contando na cidade ninguém vai acreditar...

apressadamente as despedidas: nesse ínterim em que trocam votos de “saúde”, “boa

INDECISO

viagem” etc., irrompe o Guaribão no terreiro, completamente desvairado, com as mãos

Será que ele morreu mesmo?... (As luzes se apagam.)

cruzadas para trás; ao pisar o primeiro degrau da escada Guaribão depara com o “Coronel” que vai saindo na frente dos outros; o “Coronel” abre os braços em um gesto amplo de alegria a fim de confraternizar com o Guaribão.) “CORONEL” Guaribão, não precisava pegar um porre tão grande, perdoei a mentira, você é o meu único amigo, você é mesmo o “Herói do Seringal”... (Guaribão descruza as mãos e quando o “Coronel” o abraça ele crava-lhe uma faca no peito, vigorosamente.) GUARIBÃO Em cara de homem não se bate... (O “Coronel” rola pela escada, agonizando; Guaribão afasta-se lambendo o sangue da faca e repetindo, até sumir, a frase: EM CARA DE HOMEM NÃO SE BATE...; todos descem a esscada correndo; o Seringueiro-Culto desponta à direita; acercam-se do corpo do “Coronel”.)

FIM


259

260

AMOR DE LOUCO NUNCA É POUCO5 (Comédia em dois atos)

PERSONAGENS

AMOR DE

ELE. Ator que resolve se matar de maneira muito especial. ELA. Suposta diretora de uma instituição de combate ao suicídio.

CENÁRIO

LOUCO

Lugar ermo do alto de uma montanha. Precipício ao fundo.

NUNCA É POUCO

5

Pará.

Esta peça foi encenada pela primeira vez em novembro de 1976, no Teatro da Paz, em Belém do


261

PRIMEIRO ATO

262

Lá vêm elas... nuvens brancas, alvas, como eu sempre quis... Um grande ator merece uma grande morte... Em segredo, sem olhares curiosos e sem o rumor de palmas...

(Ele entra em cena com uma pequena maleta; inspeciona o local, se detém com

Um grande ator merece ao menos fazer uma grande cena para si: a derradeira... Morrer...

interesse à beira do abismo, olha o céu que está sem nuvens, colorido, denunciando o

Lançar meu corpo neste abismo, de encontro às nuvens... bendito seja o DEUS que fez esta

entardecer.)

montanha tão alta... Bendito seja o sujeito que teve a ideia de fazer a estrada por aqui...

ELE

Bendito seja o gênio de Shakespeare que não imaginou uma cena tão original como esta

Só falta a nuvem... Ventos que soprais dos oceanos longínquos, varrendo cidades

que marcara o meu adeus do mundo... Bendito seja o sol que vai sumindo para não ver o

e florestas, trazei um colchão de nuvem para o meu primeiro e último repouso!... (Vira-se, abre a maleta, apanha vistosa indumentária e um toca-discos equipado. Põe o toca-discos em funcionamento; ouve-se música clássica. Veste a indumentária; seu rosto se ilumina, o porte toma um ar solene e trágico: é um personagem de Shakespeare. Caminha lentamente para o despenhadeiro declamando falas do REI LEAR.) “A natureza neste caso está acima da arte... Sim, rei da cabeça aos pés. Quando assumo um ar severo todos os vassalos estremecem!...

meu gesto final... (Ajeita a indumentária. Retorna à postura dramática, toma posição para saltar no precipício.) “Morrerei corajosamente, como um noivo que se vai casar...” (Barulho de carro freando com violência. Ele espanta-se. Por um instante hesita sem saber como agir. Corre para o toca-discos, desliga-o. Ela aparece.) ELA Boa... Boa tarde... Ou boa noite... (Ele a encara interrogativamente.) Desculpe...

Perdôo a vida a esse homem...

Desculpe incomodá-lo... (Espera em vão que ele lhe diga algo.) É que... sabe... meu carro

Qual foi o seu crime?...”

acabou de furar o pneu... encostei bem atrás do seu... aquele outro carro é seu, não é?

(Voltando-se para o lado da plateia.)

Lindo carro... será que o senhor faria a gentileza de me ajudar a trocar o pneu?...

“Vede aquela senhora que está ali embaixo, toda convencida, cujo rosto faz crer

ELE

que o seu temperamento é de neve, que se põe muito séria e abana a cabeça ao ouvir falar

Não. (Acende um cigarro com ostensiva indiferença.)

em prazer. Pois bem: nem a doninha, nem o cavalo são mais ardentes do que ela!...”

ELA

(Mirando um espectador.)

O senhor está brincando?

“Como? Estás doido? Um homem pode ver sem os olhos como vai o mundo.

ELE

Olhai com as vossas orelhas: vede como aquele juiz se zanga com aquele ladrão simplório?

Não.

Prestai atenção: trocai-os de lugar e adivinhai qual é o juiz e qual é o ladrão...”

ELA

(Fitando o espectador.)

Está aborrecido?

“Esbirro truculento, detém a tua mão sanguinária. Por que açoitas assim essa

ELE

devassa? Castigas as tuas próprias costas: estás morto por praticares com ela o ato pelo

Sim.

qual a chicoteias. É o usurário que enforca o falsário. Através das vestes esfarrapadas é que

ELA

se vêem os pequenos vícios; mas os vestidos de calda e os mantos de pele, esses escondem

Por favor, não leve a mal, eu sou uma pessoa distinta. Não poderia prever que ia me acontecer isto. O carro é novo, o senhor está tão sério!... (Ele continua fumando,

tudo...” (Pausa. Reflexão. Dirige-se, vagaroso, para a borda do abismo. Contempla o horizonte. Sua expressão e voz mudam, passam a ser naturais.)

indiferente à presença dela.) Eu... perdoe se o senhor se encontra acompanhado... se vim interromper... (Ele a examina com breve olhar.) O senhor está sozinho?...


263

264

ELE

ELE

Sim.

Este detalhe lhe interessa?

ELA

ELA

Não quer mesmo me dar uma ajudazinha?

Ah! Então o senhor se encontra acompanhado? Não precisava negar.

ELE

ELE

Não.

Como foi que...

ELA

ELA

Mas por quê?... Não entendo. Também estou sozinha... Na minha situação a sua ajuda é uma obra de caridade... Não gostaria de praticar neste momento uma boa ação?... ELE

Eu compreendo, é natural, mas pode ficar tranquilo, pelas minhas maneiras o senhor verifica que sou uma mulher educada, uma mulher de excelente posição social e, portanto, discreta.

Não.

ELE

ELA

Como foi que me desco...

Será possível que o senhor não gosta de ser humano?

ELA

ELE

Lamento muito ter aparecido numa ocasião imprópria.

Não.

ELE

ELA

Como foi...

O senhor só aprendeu a dizer sim e não, foi?

ELA

ELE

Agora compreendo o seu aborrecimento. É justo.

Sim.

ELE

ELA

(Ríspido) Como foi que me descobriu aqui?

Paciência. Nem todo homem é um cavalheiro...

ELA

ELE

O pneu furou, não ouviu o barulho do freio? Parei do lado da pista. Vi o outro

Adeus, boa sorte. Felicidades.

carro, a princípio julguei que o dono tinha ido embora, porém aí tive a impressão de

ELA

escutar música. Para ser sincera a impressão que tive foi de estar ouvindo o coro da igreja...

O senhor está brincando, certamente está brincando. Olhe, não brinque desse

O senhor sabe, o susto me deixou abalada. Imagine se eu derrapasse nessa curva e o carro

modo comigo, eu me sinto tão aflita! (Pausa) Vai escurecer, a estrada está deserta...

caísse no abismo. Nossa Senhora!... Seria pior que um desastre de avião... Que horror... Foi

(Pausa mais demorada.)

um grande choque que tomei, o senhor não avalia. Então... o que era mesmo que eu ia

ELE

dizendo?

Como foi que me descobriu aqui?

ELE

ELA

Como veio parar aqui.

Bom, eu... eu explico, já que o senhor resolveu conversar. Juro que não pensei em

ELA

lhe desagradar tanto, não pensei em lhe criar qualquer problema. É por isso que perguntei se o senhor se encontra acompanhado com alguém...

Pois sim, quando saí do carro, ainda com a cabeça rodando, julguei que o susto tinha afetado o meu cérebro e por isso eu estava com uma espécie de alucinação, ouvindo o coro da igreja. Aí desligaram a música, de repente, e então comprovei que não estava


265

266

delirando. A música só podia vir daqui. Como havia um pouco de terra pisada, bastou eu

ELE

seguir pelo rastro.

E tem mais. Além da senhora ser muito antipática, parece que é um tanto quanto...

ELE

irresponsável.

Você não acha que...

ELA

ELA

O senhor está me ofendendo moralmente e isto eu não admito.

O senhor me perdoe mas eu ficaria muito agradecida se me tratasse por senhora

ELE

em lugar de você. ELE A ilustre madame não acha que, para mim, está sendo inconveniente, inoportuna, isto é, em linguagem mais apropriada, não acha que está me enchendo todas as medidas?

Como é que anda sozinha quase à noite numa estrada perigosa como esta? Por que não trouxe o seu motorista, ou seu marido, ou seja lá quem for? ELA Não costumo ter motorista. E sou solteira.

ELA

ELE

Eu esperava que o senhor fosse menos deselegante. Aliás, em linguagem mais

Ainda?...

apropriada, menos grosseiro...

ELA

ELE

O que o senhor está querendo dizer?

E eu esperava que a nobre dama, depois de já ter demonstrado ser um precioso

ELE

exemplar da alta sociedade, desaparecesse da minha vista. Simplesmente isto:

Nada. Estou querendo perguntar...

desaparecesse!!! (Pausa)

ELA

ELA

Pois pergunte com boas maneiras.

Dá vontade de não acreditar. É impossível que o senhor não esteja brincando.

ELE

ELE

Não lhe parece esquisito que numa estrada tão longa, uma estrada que atravessa

Ouça, madame, eu não desejo espinafrar a senhora, também tenho educação, até de sobra para lhe dar de presente. Agora acontece o seguinte: não é por acaso que estou

três montanhas, o seu carro venha furar o pneu exatamente no lugar que eu escolhi para não ser perturbado?

neste lugar a esta hora. Preciso que me deixe em paz. O problema do pneu furado no seu

ELA

carro não é meu, é seu. Não tenho a menor inclinação para mecânico, detesto sujar as mãos

Mas que lógica! Então não existe coincidência?

de graxa, não pretendo prestar socorro hoje a quem quer que seja e penso até que você, que

ELE

a senhora, não merece auxílio porque é muito chata.

Há um limite para tudo.

ELA

ELA

É um direito seu me considerar desta forma.

O senhor não está sendo razoável.

ELE

ELE

É um direito seu, não, um direito do senhor. Também não lhe permito

E a senhora não está sendo agradável.

intimidades. ELA Tenha a bondade de me desculpar.

ELA Se me releva a sinceridade, mais esquisito é o senhor aqui uma hora desta, fazendo pic-nic só... Se é que não está mesmo acompanhado...


267

268

ELE

ELA

Vai indagar novamente se escondi alguma mulher quando a senhora se

Ah!... Era o senhor aquele que quis me dar passagem? Muito obrigada, foi gentil

aproximou?

da sua parte.

ELA

ELE

Absolutamente.

Por que não ultrapassou o meu carro?

ELE

ELA

Mas é este detalhe que está querendo saber, não é?

O senhor não acha que seria imprudência? Uma estrada estreita, toda em curva, do

ELA

lado o precipício tão fundo que a gente não enxerga nem o mato lá embaixo...

Não, o que estou querendo é que o senhor me ajude a trocar o pneu...

ELE

ELE

Agora sou eu que lhe pergunto: a senhora está acompanhada?

A senhora não me engana.

ELA

ELA

Claro que não...

Não engana como?

ELE

ELE

Não está nada claro. Pelo contrário.

O seu carro não é amarelo?

ELA

ELA

Como não está?

Como o senhor sabe?

ELE

ELE

Está tudo bastante escuro, bastante confuso. Quem é a senhora?

De capota preta?

ELA

ELA

O meu nome?

Sim, preta.

ELE

ELE

Não, a sua profissão, o seu trabalho, o seu meio de ganhar a vida.

Durante as duas primeiras ladeiras o seu carro vinha subindo atrás do meu, não

ELA

vinha?

Não preciso de meio de ganhar a vida. Sou rica. ELA

ELE

Não sei, não reparei.

É, de fato a senhora não tem jeito de ladra...

ELE

ELA

A senhora vinha me seguindo.

Ladra??? O senhor disse ladra?

ELA

ELE

Mas que absurdo!

De qualquer maneira, se a senhora veio me seguindo como “isca”, junto com

ELE

alguns bandidos, pode ir logo chamar o resto da quadrilha e começar o assalto. O que eu

Por que não passou à frente quando eu diminuí a marcha de propósito?

tenho está naquela maleta, inclusive a carteira de dinheiro.


269

270

ELA

ELA

Pelo amor de DEUS, não faça um juízo desse a meu respeito. Eu só desejo é que o

Desculpe, mais uma vez peço desculpa. Reconheço que o senhor tem a sua razão.

senhor me ajude a trocar o pneu. Naturalmente, se o outro pneu que tenho na mala do carro

Mas que culpa tenho eu?

não pestar, e o senhor quiser me levar de volta até à cidade, eu ficarei imensamente

ELE

agradecida e saberei recompensá-lo...

É…

ELE

ELA

Interessante. A senhora aproveitou oportunidade para dar a entender que é gente

Há alguma coisa errada comigo?

importante... agora fala em me recompensar... na verdade, vinha me seguindo pela

ELE

estrada... diz que não tem marido...

Sei lá…

ELA

ELA

Espero que não me interprete mal.

Por que o senhor permanece tão desconfiado?

ELE

ELE

Escute, vamos ser honestos, vamos esclarecer logo a coisa.

Há alguma coisa errada com a senhora, sim.

ELA

ELA

Esclarecer o quê?

Comigo?

ELE

ELE

A sua intenção, o seu objetivo. esta história de pneu furado não convence, é papo

Sim, há.

furado...

ELA ELA

O senhor poderia se explicar melhor?

Mas que embaraço! Eu disse a verdade, dou ao senhor a minha palavra de honra.

ELE

ELE

Não, não poderia, não posso. Mas há alguma coisa com a senhora que me soa

Tenho minhas dúvidas…

falso... não sei se é o seu modo de falar, estudado... não sei se é a sua fisionomia,

ELA

artificial... não sei se são os seus gestos... há alguma coisa na senhora que me sugere

Quanto à minha palavra? (Silêncio) Quanto à minha honra?

mentira, mistério... Não dá para explicar, sabe? Não dá.

ELE

ELA

Quanto às duas coisas...

Bem, pelo visto nada mais temos a conversar…

ELA

ELE

Infelizmente sou obrigada a ouvir as suas indiretas. Se tivesse outro recurso já

Isto mesmo. Finalmente estamos de acordo.

teria ido embora. O senhor sabe disso e fica explorando a situação, sua atitude é muito feia.

ELA

Um homem que tem dignidade não age dessa forma. Posso lhe garantir que em toda a

Estamos.

minha vida jamais fui tratada de maneira tão... insolente.

ELE

ELE

Estamos.

Cuidado. Agora a senhora é que está procurando me ofender e eu não lhe dou esta

ELA

liberdade.

Sem a menor dúvida.


271

272

ELE

ELA

Sem a menor dúvida.

O quê???

ELA

ELE

Perfeitamente.

Não sabe o que significa ninfomaníaca, não é?

ELE

ELA

Exato. Adeus, passe bem. (Pausa)

O senhor me respeite!

ELA

ELE

Pois é... (Pausa mais prolongada.) Já que a nossa conversa terminou de vez o

É sempre o mesmo figurino: rica, elegante e burra.

senhor podia me ajudar a trocar o pneu do carro e pronto, eu ía embora.

ELA

ELE

Burro é o senhor. Ignorante, pelo menos.

Puxa vida! A senhora tem cara dura, hein?! Escute, me diga uma coisa: vai ou não

ELE

vai me deixar sossegado? A senhora tem dois minutos para confessar o que está tramando ou para desaparecer da minha frente.

Ouça aqui, madame

analfabeta, ninfomaníaca é uma mulher sexualmente

insaciável... quando tem boa posição social, como a senhora, se maquila de maneira

ELA

extravagante para mudar de cara e sai pela rua ou pela estrada em busca de qualquer

O que o senhor quer que eu confesse em dois minutos?

homem...

ELE Dois, não, já só tem um minute e meio. Fale! Fale!!! ELA

ELA Quem não sabe o que é ninfomaníaca? Eu acho bom não medir a minha cultura pela sua falta de compostura! Também já li Freud.

Mas falar o que, meu DEUS?

ELE

ELE

Esta foi a melhor…

Um minuto…

ELA

ELA

Agora que o senhor chegou ao extremo de me igualar a uma prostituta, me

O senhor está no seu juízo normal?

responda uma pergunta: tem certeza de que não está sendo vítima de um desequilíbrio

ELE

nervoso? De uma perturbação mental?

Vinte segundos…

ELE

ELA

Vítima de quê?

Por tudo quanto é mais sagrado...

ELA

ELE

De um desajustamento…

A senhora por acaso é uma... ? Ora se é!...

ELE

ELA

Porventura o meu comportamento é de louco?

Uma o quê?

ELA

ELE

Louco não é bem o termo… Nem tanto…

Ninfomaníaca?!

ELE A minha aparência é de louco?


273

274

ELA

ELE

Bom, sobre a aparência eu diria… mais ou menos.

Vai perguntar pela décima vez se estou acompanhado?

ELE

ELA

Mais ou menos por quê?

Não vou perguntar mais nada.

ELA

ELE

O senhor já observou como está vestido? (Ele nota com certo constrangimento,

Moral da estória: a senhora acha que sou maluco, não é isto?

que esqueceu de tirar a indumentária teatral.) ELE É uma fantasia…

ELA Não. Não é, não. “Mas há alguma coisa no senhor que me sugere mentira, mistério... não dá para explicar, não dá...”

ELA

ELE

Acontece que não estamos em tempo de carnaval...

Aparece cada uma!

ELE

ELA

Eu poderia justificar esta minha roupa mas não é da sua conta.

Bem, como o senhor não me ajuda mesmo a consertar meu carro devo me retirar.

ELA

ELE

Não é, realmente. Porém “soa falso”...

A senhora é um tipo interessante...

ELE

ELA

Bolas, estou vestido com um traje de caça. E daí?

Obrigada.

ELA

ELE

Só falta a espingarda...

Sabe duma coisa? Estou disposto a conversar um pouco com a senhora.

ELE

ELA

Quer fazer gracinha, é?

Tenho pressa, está anoitecendo.

ELA

ELE

Não, apenas estranho que o senhor, para praticar o esporte da caça, não tenha

Não queria conversar? Sente aí. (Oferece a maleta a ela, senta-se no chão.)

escolhido um bosque ou algo parecido. Nunca ouvi dizer que se pudesse caçar em

ELA

montanha...

Vou embora. “Adeus, boa sorte, passe bem.”

ELE

ELE

Pic-nic não se faz com roupa comum.

Por favor, não vá ainda, vamos trocar umas ideias.

ELA

ELA

De fato. A hora é que não é muito indicada para pic-nic...

Agora sou eu que estou sentindo necessidade de ficar em paz. “Felicidades”.

ELE

ELE

Nova gracinha?

Espere um pouquinho mais.

ELA

ELA

E convenhamos que não é muito normal fazer pic-nic sozinho...

Não posso.


275

276

ELE

ELE

E se eu prometer que depois de trocar ideias troco o pneu do seu carro?

Estou falando sério.

ELA

ELA

Não precisa se preocupar. Obrigada. ELE

Não desejo comentar este assunto. Só toquei nele porque o senhor fez uma insinuação maldosa.

A senhora não tem força para afrouxar os parafusos.

ELE

ELA

Desculpe a insinuação. Jamais eu poderia supor que uma mulher esclarecida,

Não é problema, me encosto no carro, quando alguém passar peço colaboração.

madura, como você, aliás, como a senhora, ainda estivesse zero quilômetro... A senhora

ELE

então está em melhor estado do que o seu carro... Sim senhor! Quem tinha razão era um

Zangou-se porque suspeitei da sua honestidade? Desta vez a senhora é que não

colega meu que não se cansava de dizer: “mesmo entre as mulheres cultas e com mais de

está sendo razoável. Analise os fatos, ponha-se no meu lugar. Isto aqui é um local ermo,

trinta anos entre o céu e a terra há uma quantidade de virgens bem maior do que a nossa vã

deserto, um desvio da estrada, perto mas escondido. A senhora me descobre, aparece de

filosofia pode imaginar”... Grande colega... Velho companheiro... Que saudade... (Desloca-

surpresa, dizendo que está sozinha, que é uma mulher solteira, uma mulher livre...

se para o abismo, absorto.) Quanto tempo... quanto tempo... E parece que foi ontem... O

ELA

rato roendo nos bastidores um pedaço do cenário e o autor roendo as unhas na plateia.. A

Mulher livre, não. Uma mulher na minha idade ainda pode muito bem ser solteira

esperança em todos, a esperança... (Olha para o abismo; ela segue os seus movimentos,

e virgem.

atenta.)

ELE

ELA

Isto a senhora não disse...

O que houve com o senhor? (Ele aponta para baixo.)

ELA

ELE

Pois estou dizendo agora.

Vê?

ELE

ELA

Lamento...

As nuvens?

ELA

ELE

Com licença.

(Apressado e áspero.) Adeus, boa viagem para a senhora.

ELE

ELA

Um momentinho somente.

O que há?

ELA

ELE

Bom, se o senhor faz questão fechada de trocar o pneu do meu carro, eu consinto.

Nada. Vá embora.

Apenas para não ser indelicada.

ELA

ELE

E o meu pneu furado?...

A senhora é mesmo virgem? Isto me emociona...

ELE

ELA

Peça ajuda a outro.

Vai começar com as indiretas?

ELA Que outro? A estrada...


277

278

ELE

ELE

Espere até um carro passar!

Saia!!!

ELA

ELA

O senhor me empata tamanho tempo e depois me expulsa sem a menor

Está bem, está bem...

cerimônia? ELE Vá embora!

ELE (Agarrando-a). Olhe, se a senhora não sair já, sabe o que eu faço? Hein? Sabe o que eu faço???

ELA

ELA

Não vou não! Tenha paciência.

O que é que o senhor faz?

ELE

ELE

Vá logo, chega de chateação!

Faço a senhora se esmigalhar neste abismo abraçada comigo, quer ver?

ELA

ELA

Mas...

O senhor está transtornado. O senhor é que devia sair daqui imediatamente e se

ELE

internar num hospital de doenças... nervosas.

(Ameaçador) Vá!

ELE

ELA

Vá embora!!! Suma da minha frente!!! Olhe para mim, olhe: eu estou em crise de

Isso não são modos de tratar uma senhora. ELE (Encostando nela.) Vamos! ELA

raiva!!! Eu estou em crise de ódio!!! Eu estou em fúria!!! (Ele a empurra, ela tropeça.) ELA Meu anel... o senhor me fez perder meu anel de brilhante... Onde caiu meu anel de brilhante?... Onde caiu...(Começa a procurar o anel, apesar de apavorada.)

Não precisa empurrar.

ELE

ELE

Eu não aguento mais, juro que não aguento mais!

Desapareça, ouviu?

ELA

ELA

De todas as minhas jóias, de toda a herança que meu pai me deixou, o que sempre

Que brutalidade!

mais prezei foi este anel de brilhante. Minha Nossa Senhora onde caiu?...

ELE

ELE

Saia logo!

Eu vou estourar, não tem solução, vou estourar!

ELA

ELA

O senhor julga que...? Que...? Julga que me amedronta?

Pelo amor de DEUS, me ajude a achar o meu anel. Não é pelo brilhante, é pelo

ELE

valor estimativo, a minha avó usou esse anel no dia em que casou com o meu avô... (Ela

Não me irrite mais que já estou perdendo o controle!

acha enfim o anel.)

ELA

ELE

Calma, pelo amor de DEUS, se acalme.

Pare!!! Basta!!! Vamos acabar com esta encenação!!!


279

280

ELA

ELE

O que o senhor disse?...

Acha?...

ELE

ELA

Disse que a senhora está representando uma farsa!!!

Assisti diversas peças suas.

ELA

ELE

Ah!... Mas que satisfação!!!

Diversas?

ELE

ELA

(Surpreendido pela reação dela.) O quê???

O senhor é um artista notável.

ELA

ELE

Mas que alegria!

Obrigado.

ELE

ELA

Não entendo mais nada...

Não agradeça, só estou fazendo justiça.

ELA

ELE

Pois não é que eu conheço o senhor?!

Pois é...

ELE

ELA

Conhece???

Pois é.

ELA

ELE

Como não?

Espere aí...

ELE

ELA

Conhece a mim?

Sim?

ELA

ELE

Perfeitamente.

Não é estranho?

ELE

ELA

É?...

O quê?

ELA

ELE

O senhor não é de teatro? ELE

Que somente agora, depois de toda essa discussão, a senhora tenha me identificado?

Sim...

ELA

ELA

Ahn...

Eu sou uma admiradora sua. Como é que não recordei logo?...

ELE

ELE

Como é que explica isso?

Admiradora minha?...

ELA

ELA

Explicar?...

O senhor tem um talento extraordinário. Fabuloso.


281

282

ELE

ELA

Sim.

Como é mesmo o nome que se dá para o processo de funcionamento da memória?

ELA

Associação de ideias, não é?

Ora, muito simples.

ELE

ELE

Vai ou não vai responder???

Não é nada simples não. Aliás, tudo na senhora, desde o início, está complicado

ELA

demais.

Não torne a ficar nervoso, pode entrar em nova crise... ELA

ELE

Por que o senhor é tão desconfiado? Tem medo de alguma coisa?

A senhora é um pudim de enjoo que não tem mais tamanho. Vai explicar ou não

ELE

vai explicar porque somente depois de tanta chateação é que me reconheceu?

Medo de quê?

ELA

ELA

O senhor não me deixa falar...

Não sei, como posso saber?

ELE

ELE

Fale!

A senhora está querendo me embrulhar, é?

ELA

ELA

Quando o senhor disse que eu estava fazendo uma encenação, estava

Com que interesse?

representando, eu pensei em teatro, fiz a ligação. Aí lembrei várias peças suas. Numa delas

ELE

o seu trabalho foi impressionante: até hoje recordo aquele papel de louco que o senhor fez.

A senhora é bem sabida mas não conseguirá me confundir. Responda a pergunta

Antes de entrar naquela peça o senhor esteve internado em algum hospício?

que fiz.

ELE ELA

Hospício???

Que pergunta?

ELA

ELE

Sim.

Ponto final no seu jogo. Por que demorou todo esse tempo para lembrar que me

ELE Eu???

conhecia de teatro? ELA

ELA

O senhor por acaso ignora que a memória funciona de acordo com a

Não esteve?... ELE

oportunidade?...

Se ouvi direito a senhora está querendo dizer, pela segunda vez, que sou doido,

ELE E daí? ELA As lembranças surgem conforme a ocasião, conforme aquilo que a gente vê, ouve.

não é? ELA Mas que coisa! Não continue me interpretando mal. O que afirmei foi que o

ELE

senhor é um ator admirável. Indaguei se antes daquela peça o senhor não andou se

Eu sei, bolas, quer me responder logo?

hospedando em algum hospício, naturalmente para observar a conduta dos loucos. Pensei


283

284

que só assim poderia fazer aquele papel com tanto realismo. Nunca vi em teatro, nem em

ELA

televisão e cinema, uma imitação tão perfeita... Isto é, tão convincente. Não há dúvida, o

Que ideia!

senhor é um artista excepcional.

ELE

ELE

A senhora fala às vezes num tom meio doutrinário... Poderia ser também uma

A senhora acha mesmo?...

fanática testemunha de Jeová... ou até uma freira à paisana... Que diabo mesmo a senhora

ELA

é?

Mas é lógico que acho.

ELA

ELE

Uma pessoa comum, igual a outra qualquer.

Olhe para mim. De frente. Bem nos olhos. Firme. Sem piscar. Não tenha medo,

ELE

olhe bem no centro dos meus olhos. ELA

Não, é uma pessoa diferente, bastante diferente. Ainda não sei, na realidade, o que a senhora deseja de mim.

Para quê? O senhor quer me hipnotizar?

ELA

ELE

Trocar o pneu...

Olhe bem no centro dos meus olhos, sem nenhum receio, a menina dos meus

ELE

olhos também é virgem... (Ela obedece.) A sua opinião a respeito do meu talento não é

A senhora é tão diferente que está começando a me conquistar.

válida... é bondosa...

ELA

ELA

Fico feliz em saber disso.

O senhor tem um olhar penetrante. Gelado, mas queima.

ELE

ELE

Então a senhora acha que, de fato, sou um bom ator?

Gostei da definição. Foi um elogio ou uma crítica?

ELA

ELA

Eu não disse precisamente que o senhor é um bom ator.

O seu rosto, visto muito de perto, parece que tem algo de religioso, de místico.

ELE

ELE

Não?

Tem, é?

ELA

ELA

Disse que é extraordinário. Fabuloso.

O senhor ficaria zangado se eu lhe falasse de certos ensinamentos do Evangelho?

ELE

ELE

Gosta muito de teatro, é?

Ficaria.

ELA

ELA

Adoro.

O senhor não sabe como a religião é fundamental em nossa vida, principalmente

ELE

quando a gente se desespera e...

Entende de dramaturgia?

ELE

ELA

Ah! Já começo a compreender. A senhora é alguma missionária protestante que

Relativamente.

anda fazendo catequese na estrada?


285

286

ELE

ELA

Quais as peças clássicas que mais aprecia?

Nunca ninguém me chamou de ignorante com tanta convicção... E o pior é que o

ELA

senhor está completamente certo...

“O Burguês Fidalgo”, de Molière...

ELE

ELE

Nunca ninguém está totalmente certo a respeito de coisa nenhuma. Talvez até, em

Sim?

determinado sentido, a senhora entenda mais de dramaturgia do que eu. Olhe, quanto a

ELA

isto, o importante é que a senhora me considera um bom ator e eu a considero uma mulher

“As Troianas”, de Aristófanes...

bonita.

ELE

ELA

(Exaltado) Pare!

O senhor também acha?

ELA

ELE

Poderia citar outras...

Que sou um bom ator?

ELE

ELA

Basta! Já disse uma enorme besteira. A senhora pode entender de Evangelho, mas

Não, que sou uma mulher bonita?

em matéria de arte dramática sua ignorância está comprovada. Nem “As Troianas” é de

ELE

Aristófanes nem eu admito que continue desrespeitando a memória dos grandes autores

Acho.

teatrais! (Ela enxuga uma lágrima.)

ELA

ELA

Eu também acho.

Tem razão, sou uma analfabeta.

ELE

ELE

Que é bonita?...

Desculpe, não quis magoar. (Pausa) Todos nós somos analfabetos em algum

ELA Não, que o senhor é um grande ator.

assunto. ELA

ELE

(Humilde) Pois é, e eu não devia me meter a falar de um assunto que está acima

Mais uma vez obrigado.

da minha capacidade.

ELA

ELE

Quem agradece sou eu.

A sua especialidade é outra, ninguém pode saber tudo. Eu, por exemplo, não

ELE

entendo nada de Evangelho.

Bem, a troca do pneu do seu carro...

ELA

ELA

Acho que devo ir embora.

O senhor sabe que uma vez me disseram o contrário?

ELE

ELE

Ainda é cedo. Vamos ver se crio coragem para mexer no pneu do seu carro.

O contrário de quê? ELA Daquilo que o senhor disse: me disseram que sou inteligente e feia...


287

288

ELE

ELE

Gosto não se discute, cada um tem o seu senso estético. Porém para mim a

De um lado para o outro. Vá e venha. (Ela executa encabulada.)

senhora é uma mulher bonita.

ELA

ELA

Assim?

O senhor quer dizer... atraente?

ELE

ELE Não, atraente é outra coisa.

Não. Com mais... despreocupação. Faça de conta que está andando na praia... pisando em areia fofa.

ELA

ELA

Ah, sim... realmente eu nada tenho de atraente...

Não tenho prática... não frequento praia.

ELE

ELE

Não foi bem o que afirmei. A senhora não deixa de ser atraente, de certo modo.

Experimente balançar um pouquinho...

ELA

ELA

De que modo? Espiritual?

Não dá jeito.

ELE

ELE

Espiritual, não. Espere... Não estou compreendendo a sua dúvida. Ser atraente

É pena.

para a senhora é ser uma mulher “séxi”?

ELA

ELA

E sua conclusão, qual é?

Depende do seu conceito de “séxi”.

ELE

ELE

A senhora é bonita.

Parece que agora percebo o que a senhora deseja saber... Deixe eu reparar... É que

ELA

consumimos quase o tempo todo discutindo e nem sequer prestei atenção para o seu

E atraente?

aspecto... como diria... para o seu aspecto puramente físico... Mas isto é fácil, deixe eu me

ELE

concentrar na minha personalidade de homem-homem... na minha personalidade terra a

Bem, tenho alguma dificuldade em me sentir atraído por mulher.

terra, humana.... na minha personalidade não artística, entende?

ELA

ELA

É???

Entendo.

ELE

ELE

Questão de temperamento. Ou condicionamento.

Ande.

ELA

ELA

Depois o senhor diz que eu é que sou esquisita...

Como?

ELE

ELE

A senhora está enganada comigo... redondamente enganada.

Passeie.

ELA

ELA

É possível...

Por onde?


289

290

ELE

ELA

Está duvidando da minha masculinidade?

Porque infelizmente ainda não consegui que o senhor trocasse o pneu do meu

ELA

carro...

Não, não estou duvidando de nada. A esta altura já tenho plena certeza daquilo

ELE

que desejava saber...

Não conseguiu nem vai conseguir, ouviu? E quer saber mais?

ELE

ELA

Certeza de quê??? Vamos, diga! De quê???

Não precisa gritar.

ELA

ELE

Tenho plena certeza de que não sou atraente. Bonita talvez seja, mas de que vale

Já que não resolve mesmo ir embora vou lhe dar o golpe de misericórdia!!!

isto? O essencial na mulher, dizem, é exercer atração sobre os homens. E eu nada tenho de

ELA

atraente, na sua opinião.

(Alarmada) Vai me agredir?

ELE

ELE

E eu já lhe dei minha opinião? Ainda não manifestei opinião alguma.

Vou fazer coisa muito mais eficiente!

ELA

ELA

Às vezes não manifestar opinião nenhuma é muito pior do que dar opinião

Vai me...?

desfavorável...

ELE

ELE Estou apenas querendo ser criterioso. Para dar uma opinião honesta precisaria que a senhora colaborasse... ELA

Vou calar. Silenciar. Permanecer mudo. Adotar, friamente, a política do desprezo. (Pausa) ELA O senhor é espirituoso... (Aguarda que ele fale inutilmente.) E genioso.

De que maneira?

Impiedoso... De qualquer maneira, fico bastante grata por ter achado que sou bonita... De

ELE

qualquer maneira, é um ator fenomenal... Apesar de que como pessoa humana parece

A dificuldade é essa... A senhora está com excesso de roupa... Se tirasse a

desligado do mundo... Como homem parece que vive flutuando perdido no espaço... (Ao

metade... ELA O senhor está levando muito longe a confiança que lhe dei. Quem é que pensa que sou?

ouvir esta última frase ele sente um impacto; desloca-se para a beira do abismo, vasculha com o olhar a linha do horizonte.) ELE Sumiram... as nuvens sumiram... (Ela chega-se a ele, aflita.)

ELE

ELA

Melindrou-se, é?

Por favor. (Ele retrocede, desolado.)

ELA

ELE

Melindrei-me.

A senhora venceu. Escute, fora desse negócio de trocar o pneu do seu carro, o que

ELE

a senhora quer para me deixar em paz? Eu sou um ator de teatro, já sabe, não é? Estou aqui

(Agastado) Bolas, então por que não vai embora?

para ensaiar isolado, trouxe até a roupa de cena e me vesti com ela como está vendo a fim


291

292

de facilitar a concentração; o meu papel é longo e difícil, vou interpretar o REI LEAR, de

ELE

Shakespeare, preciso me preparar, a estreia da peça é depois de amanhã.

(Incrédulo) A senhora não tem a chave para trocar o pneu?

ELA Não é somente na sexta-feira? ELE

ELA Se o senhor, que é homem, não carrega ferramenta no carro eu é que haveria de carregar?

A senhora sabe???

ELE

ELA

Esta é boa!

Sim...

ELA

ELE

Não se preocupe. O senhor acaba seu ensaio e depois me dá uma carona. Pelo

Como??? Ninguém falou no adiamento da estreia. (Ligeira pausa.) ELA Uma coluna de jornal deu... Não me recordo em que jornal, mas li por esses dias... (Pausa maior.)

menos me leva até um posto de gasolina. ELE (Resignado) Está certo, vá para o seu carro e me espere lá. ELA

ELE

Se o senhor não se importa eu espero aqui.

Se a senhora não entende de dramaturgia como se ocupa em ler coluna de teatro?

ELE

ELA

Aqui não!

Eu falei isto?

ELA

ELE

Prometo não incomodar. Garanto que não incomodo. (Senta em um canto.)

Falou.

ELE

ELA

Como não incomoda?

O senhor está equivocado. Eu falei que li em uma coluna de jornal, não disse que

ELA

era coluna de teatro. Se não me falha a memória li em uma coluna social. De vez em

Ora, deixe de modéstia. O senhor é um ator consumado, não vai se prejudicar no

quando nas colunas sociais a gente vê informações e novidades artísticas. O que o senhor

ensaio com a presença de uma simples espectadora. O senhor tem capacidade de se

está pensando? De vez em quando nas colunas sociais sai alguma coisa útil...

concentrar até no meio de uma multidão. Eu fico quieta. Pronto, já estou calada.

ELE É, a senhora ganhou mesmo a batalha. A esta altura dos acontecimentos, se eu me julgasse capaz de trocar o pneu de um carro já não me encontrava mais aqui. (Pausa. Ele dá-se por vencido.) Bem, vamos ao pneu furado, vamos fazer uma tentativa.

ELE Senhor DEUS dos desgraçados, tende compaixão de mim! (Pausa. Ele reflete. Gargalhada.) ELA

ELA

Este riso é da peça ou o senhor está rindo de mim?

O senhor tem chave de roda, não tem?

ELE

ELE

Nem uma coisa nem outra. Estou rindo de mim mesmo, do grande idiota que eu

Eu? Nunca ando com ferramenta.

sou, suportando como um carneiro esta situação. É... a vida não passa de uma

ELA

tragicomédia... Sabe de uma coisa? Cansei de me aborrecer. A senhora é uma criatura

Então nada feito. Eu também não ando.

encantadora, adorável... sua presença aqui é para mim muito simpática, extremamente


293

294

honrosa... esteja tranquila e obrigado pela amabilidade de assistir o meu ensaio... (Passeia

ELE

de um lado para o outro. Fica imóvel, medita, concentra-se. Transfigura-se. Começa a

Voltar... Seguir e voltar... Nunca o passo à frente, definitivo...

representar.)

ELA

“Enquanto espero, quer revelar-vos as mais secretas resoluções...

A noite me dá às vezes uma sensação de medo...

Vamos deixar esses assuntos sobre ombros mias novos, mais fortes, de forma que,

ELE

sem pesadas cargas, possamos caminhar calmamente para a morte...

É... à noite a gente desperta...

Muito bem! Pois que esta fraqueza seja o teu dote. Pela sagrada luz dos sol, pelos

ELA

mistérios de hécate e da noite, por todas as influências dos astros pelos quais aqui vivemos

Eu gosto do dia, sabe? Gosto da claridade...

e deixamos de viver... ” (Ela faz um gesto.) Oh! Não fales que não preciso! Os nossos mias

ELE

vis mendigos... (Esquece o texto, hesita.) Não concedais a natureza mais do que ela exige.

Todo mundo gosta...

A vida humana pode custar tanto quanto a do animal. Tu és uma senhora: se não tivesse

ELA

necessidade senão de vestidos quentes...” (Torna a esquecer o texto.) Oh! Céus! Dai-me

Não é que não goste da noite. Quero dizer que prefiro o dia.

paciência... (À beira do abismo.) Soprai, ó ventos! Até que as vossas faces rebentem!

ELE

Soprai com violência!... (Afasta-se do abismo.) Mais te valeria estar na sepultura do que

Todo mundo prefere... A luz do dia projeta sombras em nosso redor e nós nos

andar assim exposto à inclemência do tempo!... (Diante dela.) O homem sem as

movimentamos atrás delas, distraídos no esquecimento da realidade... e o tempo passa

comodidades da civilização é apenas um triste animal, nu e desprezível como tu. Guerra!

pisando tão de leve que não deixa marcas no chão da consciência... alguém escreveu

Guerra ao que não é verdadeiro!... Deixemo-nos de imposturas... (Fitando-a com firmeza.)

isto?...

Que crueldade! Para que me arrancais da sepultura? Tu és uma alma abençoada, mas eu

ELA

estou amarrado a uma roda de fogo de tal modo que as minhas lágrimas me queimam como

O senhor pretende continuar ensaiando durante muito tempo ainda?

se fossem chumbo derretido... (Ela, sensibilizada, começa a lagrimar.) As vossas lágrimas

ELE

também são úmidas? E é verdade! Não choreis mais, eu vos peço; se tendes algum veneno

Sim e não...

para beber, dai-me.” (Pausa. Ele se descontrai, retoma a postura normal. Acende um

ELA

cigarro, senta-se no canto oposto ao dela. Olham-se. Silêncio.)

Como sim e não?

ELA Anoiteceu... Praticamente já é noite... ELE

ELE Depende de você, digo, da senhora. Se eu ficar só talvez resolva logo o meu problema. Com nuvens ou sem nuvens...

Sempre anoitece...

ELA

ELA

Não seria melhor terminar o ensaio na cidade?

As estrelas começam a aparecer...

ELE

ELE

Não.

Só não aparecem as nuvens...

ELA

ELA

O que há com o senhor?

É hora de voltar...

ELE Nada.


295

296

ELA

ELE

Não creio.

Fiz tudo o que um homem equilibrado e desequilibrado poderia ter feito. Pedi,

ELE

insisti, ameacei.

E com a senhora, o que há?

ELA

ELA

Não precisa se irritar novamente.

Um pneu furado...

ELE

ELE

(Com crescente excitação.) Esgotei todos os recursos que tive para me livrar da

Parece que chegou o instante de colocar as cartas na mesa e decidir o nosso jogo.

senhora e sobretudo para fazer a senhora se livrar de mim.

ELA

ELA

Não entendo. Que jogo?

Escute, não se inflame mais.

ELE

ELE

Da minha parte eu lamento, nunca fiz mal a uma mulher, a senhora vai ser a primeira...

Esgotei, desanimei, saturei, cheguei a um ponto em que não é mais possível falar, dialogar, conciliar.

ELA

ELA

O senhor vai me fazer mal???

Tenha calma, não custa ter um pouco de calma, estou disposta a...

ELE

ELE

Vou.

Eu é que estou disposto a não ser mais chateado, embromado, enfezado,

ELA

azucrinado. (Aproxima-se do abismo, resoluto.) Faz questão de ser testemunha, não faz?

Não, pelo amor de DEUS, eu grito!

(Ela corre para ele.)

ELE

ELA

Vou lhe fazer mal mas não como a senhora está pensando.

Testemunha de quê?

ELA

ELE Como é rica tem dinheiro suficiente para contratar advogado e se defender no

Ah, é?... ELE

inquérito policial, não tem? (Ela se interpõe entre ele e o abismo.)

Vou lhe arrumar complicações com a polícia.

ELA

ELA

O que o senhor tenciona fazer?

Polícia?

ELE

ELE

Tem cara dura para enfrentar o escândalo, não tem?

Quando se arrepender será tarde demais. Eu fiz tudo para a senhora ir embora, não

ELA Por caridade, ouça, o senhor perdeu o juízo? (Ele procura atingir a beira do

fiz? Fiz tudo para não lhe envolver no meu caso, não fiz? ELA Por favor não torne a se descontrolar dos nervos.

abismo.) ELE Pois esta cena ridícula vai chegar ao fim. Já. Sem nuvem lá embaixo, sem solidão, sem beleza... (Ele tenta se lançar ao abismo, ela o segura desesperadamente.)


297

298

SEGUNDO ATO

ELA Meu DEUS do céu, o senhor enlouqueceu? ELE

Momentos depois. Os dois estão deitados, um ao lado do outro, ele fumando

Você é que é uma louca. Saia! Largue! Eu preciso morrer! ELA

ELA

Eu não deixo você fazer esta loucura, não posso deixar!... (Lutam os dois, rolam

E agora?... (Pausa)

pelo chão, atracados; quando param, exaustos, estão com os rostos praticamente colados,

ELE

os lábios se tocam.)

Pois é... (Pausa) ELA O que vamos fazer?... ELE Já fizemos... (Pausa) ELA E a consequência?... ELE Por que haveria de ter consequência?... (Pausa) ELA Você estragou a minha vida... ELE E você estragou a minha morte... (Pausa) Como soube?... ELA Que ia se suicidar?... ELE Foi algum colega de teatro? Eu não falei nada a ninguém. ELA Foi o Diretor da Companhia, Diretor ou Empresário, não sei bem. Contaram a ele o seu plano. Parece que você esqueceu no camarim uma carta pela metade se despedindo de determinadas pessoas. Quando você apanhou a carta no outro dia ele já tinha lido, alguém mostrou. ELE Cretino.


299

300

ELA

ELE

Ele tentou, coitado, salvar a sua vida, e com que desespero. Você acha isso

No meu caso o resultado não foi exatamente aquele que você esperava, hein?

cretinice?

ELA

ELE Tentou salvar a minha vida... O que ele tentou foi salvar a estreia do espetáculo. Bobalhão: podia faturar muito mais em propaganda com a repercussão da minha morte.

É, não foi. Porém na maioria dos casos nós atingimos a nossa meta. No geral as pessoas pensam em se matar pelos motivos mais tolos. Há, naturalmente, os que são levados ao suicídio por falta de meios para superar problemas econômicos graves e

ELA

contrariedades dolorosas. Entretanto a maioria decide largar a existência sem saber bem

Suicídio hoje em dia não causa mais repercussão. São tantas as pessoas que se

porque...

matam... é uma pena.

ELE

ELE

Se está tentando sondar o meu ânimo perde tempo.

Acontece que não sou qualquer pessoa. Um artista de fama quando morre

ELA

tragicamente vira material de publicidade. E atualmente, por desgraça, é a publicidade que

Você deve ter um motivo forte para querer fugir da vida.

sustenta todas as artes. Mas, como foi mesmo que a senhora entrou nessa estória?

ELE

ELA

Não é da vida que quero fugir.

Voltou a me chamar de senhora?

ELA

ELE

Ah, não?

É...

ELE

ELA

Não.

Depois do que fizemos?

ELA

ELE

É de alguma responsabilidade?

De tanta insistência tua acho que me habituei.

ELE

ELA

Não.

Também não precisa me tratar por tu. Você é mais suave.

ELA

ELE

De alguma frustração?

Como foi que entrou nisso?

ELE

ELA

Negativo.

Sou Diretora de uma instituição religiosa de combate ao suicídio... nunca viu o

ELA

nosso anúncio no jornal? Temos um telefone funcionando dia e noite, fazemos plantão

Tédio? Está farto daquilo que faz, que sempre fez e sempre terá de fazer?

permanente. Qualquer pessoa dominada pelo desejo de se matar basta recorrer a nós:

ELE

entramos em ação incontinenti. Damos conselho, conforto, apoio moral e té auxílio

Não.

financeiro, uma vez ou outra. Já conseguimos evitar que centenas de criaturas amarguradas

ELA

metessem uma bala na cabeça. Só queria que lesse as cartas de agradecimento que temos

Câncer?

em arquivo: são comoventes. Nosso trabalho é importantíssimo, embora nem sempre dê os

ELE

resultados esperados.

Não.


301

302

ELA

ELA

Desencanto coma Humanidade?

Um dia uma velha nos telefonou. Tinha oitenta anos porém ainda estava lúcida.

ELE

ELE

Não.

Não insista.

ELA

ELA

Puxa! Não é mesmo fácil penetrar no seu ânimo.

Ouça que dá para uma gostosa risada.

ELE

ELE

Não, não é.

Todo o seu objetivo agora é me fazer rir, é?

ELA

ELA

Eu confesso que gostaria de levantar o seu ânimo.

Bem...

ELE

ELE

Não conseguirá. ELA

Se prometer encerrar a sessão de humorismo por este preço eu passo vinte minutos rindo sem parar e sem necessidade de você contar nenhum caso.

Será que não melhoraria se...

ELA

ELE

Ouça só um instantezinho, vou resumir. A velha, apesar dos noventa anos...

Se o quê?

ELE

ELA

Quantos anos?

Se eu pudesse lhe dar um pouquinho de bom humor?

ELA

ELE

Noventa.

Bom humor?

ELE

ELA

Em dois minutos já envelheceu dez anos?...

Sim, falando coisas engraçadas.

ELA

ELE

Eu não falei antes que ela tinha noventa anos?

Você não tem cara disso.

ELE

ELA

Não, oitenta. Erro de imprensa...

Concordo. Acontece que em minha atividade tenho tido oportunidade de tomar

ELA

conhecimento de casos engraçadíssimos.

Acha que estou inventando?

ELE

ELE

Neste mundo não existe nada engraçado, existe apenas o grotesco e o ridículo.

Eu não acho mais nada a seu respeito...

ELA

ELA

Ouça este caso e veja se não é para rir.

O caso foi real, ouça o resto...

ELE

ELE

Não adianta.

Já não sei nem se você é real...


303

304

ELA

ELE

Então, como ia dizendo, a velha de oitenta anos nos telefonou e...

Este poderia ser um cientista, um gênio. Que fim levou?

ELE

ELA

Comunicou que pretendia se matar. ELA

De início ele esclareceu que só podia se encontrar conosco no alto do Pão de Açúcar, às dez horas da noite.

Eu falei isto?

ELE

ELE

Foram?

Não, falei eu. É o seguimento natural da estória.

ELA

ELA

Não. Nós primeiro resolvemos que devíamos ir porque ele se identificou e logo

Ela não avisou que ia se suicidar não.

apuramos que não se tratava de um “trote”, o homem era um professor de Física que sofreu

ELE

uma fratura no crânio em um desastre. Depois desistimos porque ele voltou a nos telefonar

Ah, não?

recomendando que levássemos guarda-chuva ou sombrinha. Quando indagamos o porquê

ELA

do guarda-chuva ou sombrinha, ele alertou que a conversa seria longa e talvez o bondinho

Ela telefonou e apenas disse, com o maior charme, que tinha o máximo prazer em

do Pão de Açúcar não estivesse funcionando lá para as quatro horas da madrugada: o jeito

nos convidar para o seu enterro...

seria nós descermos de paraquedas...

ELE

ELE

E você foi?

(Impassível) Acabou?

ELA

ELA

Conversar com ela?

O que, a vida dele?

ELE

ELE

Não, no enterro?!

Não, o seu esforço para me fazer rir?

ELA

ELA Deixe eu terminar o caso da velha. Você não me deixa falar, desvia sempre o

Deixe de ironia, preste atenção. Ela fez o convite com tamanha seriedade que eu pensei: coitadinha, está com artérioesclerose, está caducando. Porque você também sabe que um grande número de pessoas se mata devido a distúrbios mentais, não é? De vez em

assunto. ELE

quando nos defrontamos com malucos de toda espécie. Certa feita um nos telefonou

Já falou até demais.

alegando que precisava morrer porque o mundo estava ficando cada vez mais redondo e ele

ELA

estava ficando cada vez amis quadrado...

Posso ao menos terminar o caso da velha?

ELE

ELE

(Quase rindo.) Este não era um suicida, era um gozador.

De sessenta anos?

ELA

ELA

(Entusiasmada) Ouro nos telefonou informando que tinha descoberto uma

Não, de oitenta. Onde era mesmo que eu estava?

fórmula química para fabricar bomba atômica com pó de gelo moído...

ELE No cemitério...


305

306

ELA

ELA

Não, no convite para o enterro. Ela nos convidou com muita classe, era uma velha

Desde que o padre da nossa confiança, na ocasião de sepultarem o corpo dela,

do soçaite, milionária, riquíssima. ELE

fizesse um violento sermão condenando ao Inferno, pelos séculos e séculos, todos os filhos que escravizam os pais na velhice proibindo-os de satisfazer suas vontades.

O que vale esta vida... Você enche a boca e diz: “riquíssima, milionária”; eu

ELE

penso: “e no entanto, velha”...

A velhinha estava lúcida mesmo...

ELA

ELA

Nós indagamos se ela não desejava ter uma entrevista conosco antes do enterro.

E desde que, no final do sermão, o padre lesse alto, para todos os presentes

Ela respondeu que daria a metade da fortuna para isto, mas que infelizmente era impossível

ouvirem, o testamento “moral” dela. Este testamento é que me pareceu engraçadíssimo. A

porque se encontrava proibida, pelo médico e pelos parentes, de receber visitas, se afastar

velha era metida a filósofa e havia escrito, ou escreveram para ela, mais ou menos assim:

do quarto, comer chocolate, fumar um cigarrinho e fazer todas as outras coisas de que

“Depois de legar a uma instituição caridosa as propriedades que constituíram os meus bens

gostava. Então, como a filha única, que tanto ela estimava, tinha se transformado em sua

e também os meus males, lego à família, aos que habitam a Casa do Cão onde morei, o

algoz, governando-a com mais rigor do que governava o cachorro, que podia até fazer pipi

patrimônio constituído pelos meus objetos de uso pessoal. A cadeira de rodas ficará para o

na sala, havia a pobre velha chegado a duas conclusões...

meu genro, a fim de que ele continue rodando como piru leso enquanto a mulher manda

ELE

nele. A bengala ficará para o meu neto, a fim de que pelo menos ele tenha alguma utilidade

A primeira, se matar.

depois da sua lambreta se arrebentar num poste. Os óculos de grau ficarão para a minha

ELA

filha, que me azedou o fim da existência, a fim de que ela enxergue um palmo diante das

Certo. E a segunda...

ventas”.

ELE

ELE

Se vingar.

Corte aí que não vejo nada engraçado nessa estória. Embora ela seja, sem dúvida

ELA

nenhuma, produto da sua imaginação, para me fazer rir, tem um conteúdo bastante

Exato. Como adivinhou?

humano, é mais triste do que cômica...

ELE

ELA

Raciocínio lógico.

É isto, você não deixa eu acabar nada do que começo a dizer. Assim não é

ELA

possível nós nos entendermos.

Pois aí é que entra o pitoresco, o engraçado. Sabe como a velha queria se vingar?

ELE

ELE

Não é possível nos entendermos porque você tem o péssimo defeito de enrolar

Isto eu não posso saber, uma atitude de vingança nunca é lógica.

todos os assuntos. Se está pensando que me embrulha perca as esperanças. Eu lhe

ELA

perguntei, um momento atrás, como foi que entrou nisso, isto é, como foi que entrou no

Imagine. Ela queria que providenciássemos um advogado para alterar em Cartório

meu plano de suicídio. Como foi que cruzou o meu caminho, como foi que veio parar aqui.

o seu testamento, doando à nossa instituição as suas propriedades.

Você informou apenas que é Diretora de uma instituição de combate ao suicídio, informou

ELE

apenas que eu esqueci uma carta de despedida no camarim do teatro e não informou mais

Uma boa vingança para ela e um bom negócio para você...

nada, embaralhou tudo.


307

308

ELA

ELE

Deixe então eu terminar de lhe contar. Realizo esta obra humanitária há anos,

E o seu noivo?

desde que meu noivo morreu.

ELA

ELE

Por que insiste nesse assunto?

Amava muito o noivo? Ficou apaixonada?

ELE

ELA

Fale nele. Morreu de quê?

Não convém falar disso para não enrolar o assunto... Então, hoje de manhã, nosso

ELA

telefone tocou e o Diretor ou Empresário da sua Companhia suplicou que nós vigiássemos

Desastre de automóvel.

você. Deu todas as orientações nesse sentido, explicando direitinho como deveríamos

ELE

proceder.

Estava com ele na ocasião?

ELE

ELA Estive minutos antes... Brigamos, eu desmanchei o noivado... O carro dele saiu da

Patife. Estava pensando no dinheiro que ia perder com o atraso da estreia. ELA

estrada, deu de encontro com a rocha, incendiou... Agora a vez de perguntar é minha. Por

Posso lhe fazer uma pergunta?

que sendo um artista famoso, e um homem ainda relativamente jovem, bonito, ia se matar?

ELE

ELE

Pode. Mas antes vou lhe fazer várias. Para começar: por que se arriscou a vir

Bonito? Eu bonito? O que você havia dito é que eu era um ator extraordinário,

sozinha até aqui? Não é tão ingênua para não ter avaliado o perigo.

notável.

ELA

ELA

Ele nos alertou que não adiantaria doutrinar você diretamente, que tínhamos de

Faz anos que não entro em um teatro...

agir com extrema habilidade senão seria pior. Geralmente o nosso trabalho é de equipe.

ELE

Quando saímos para atender alguém, o que é muito raro, quase sempre as pessoas é que

Pensa que eu acreditei? (Pausa)

vêm a nós, depois de ouvirem no telefone umas palavras de consolo que temos gravadas

ELA

em fita magnética, quando saímos para atender alguém eu vou junto com um psicólogo ou

Perdoe.

uma assistente social. No seu caso, porém era necessário que eu viesse sozinha e

ELE

enfrentasse o problema de frente... À princípio fiquei temerosa. Criei coragem quando me lembrei que afinal de contas era a primeira vez que estava tendo a oportunidade de salvar uma vida unicamente com o meu sacrifício próprio. ELE Espero que o sacrifício não tenha sido dos maiores... (Pausa)

Perdoar a sua mentira é fácil, era caridosa. O difícil é esquecer. Você é uma mulher muito inteligente, sabe? ELA E você também só agora falou a verdade afirmando que sou inteligente. Faltou completar: inteligente e sem o menor atrativo como mulher. (Pausa)

ELA

ELE

Achei maravilhosa a possibilidade de me sacrificar para salvar uma vida. Uma

É... finalmente tiramos as máscaras... A gente sempre acaba tirando as máscaras

sensação que não posso definir tomou conta de mim. Algo que eu jamais tinha sentido, mas que sentia que precisava sentir...

quando faz o mesmo com as roupas... (Pausa) ELA Por que ia se matar?


309

310

ELE

ELE

Por que viver?

Casei, vivi com uma mulher leviana meia dúzia de anos, durante esse tempo

ELA

cumpri com todos os meus deveres conjugais, e depois do bom cumprimento do dever dei

Ora, a vida é a vida.

o grito do Ipiranga, declarei a minha independência. Serenamente. E legalmente.

ELE

ELA

Belo argumento.

Então é desquitado.

ELA

ELE

Eu tinha muitos argumentos para mostrar a você a insensatez do suicídio. Mas depois do que houve entre nós perdi a graça... ELE Perdeu porque quis e não pode nem se queixar. O seduzido fui eu. (Pausa) ELA É casado?

Não, sou quitado. Paguei à esposa tudo o que ela me deu, não lhe devo nada, somos até amigos. Aliás, ela é que está me devendo um dinheiro emprestado para socorrer o amante. ELA Quer dizer que você, como eu, não tem compromisso?... (Silêncio) E nós, agora, como vamos ficar?...

ELE

ELE

Não.

Quem vai ficar sou eu. Você vai embora...

ELA

ELA

Solteiro?

Quer dizer que...

ELE

ELE

Não.

Lastimo. Porém a vida para mim não tem sentido.

ELA

ELA

Viúvo?

Mas eu... embora não fosse pura quando cheguei aqui, já não sou a mesma,

ELE

compreende?

Não.

ELE

ELA

Eu continuo igualzinho, não mudei nada.

Amasiado?

ELA

ELE

Você é um cínico!

Não.

ELE

ELA

Obrigado.

Ah! É divorciado.

ELA

ELE Não.

Uma última pergunta, porém vai ter que me responder: por que me possuiu fisicamente se não sente nada de especial por mim. Por quê? (Pausa)

ELA

ELE

E então é o quê? (Pausa)

Honestamente, não sei. (Pausa)


311

312

ELA

ELA

Foi simplesmente por gratidão? (Pausa)

Você me deixa confusa, embaraçada; me diga uma coisa: além de arte dramática

ELE

você estudou Psicologia, Psicanálise?

Acho que não. Não foi por um sentimento tão humano...

ELE

ELA

Estudei. Só que não estudei as pessoas em livros, estudei nelas mesmas... Não

Realmente o seu sentimento é desumano.

estudei por fora, estudei por dentro... Aliás eu não estudei, eu vivi. Quase todos os tipos

ELE

humanos eu já vivi no palco. Já senti na minha pele, nos meus nervos, nas minhas

Também não é assim. Creio que... veja se dá para entender: eu estou aqui a fim de

emoções, no meu cérebro...

me suicidar e me suicidar como deve se suicidar um verdadeiro ator, isto é, representando... quando eu ia me lançar no abismo você interferiu alucinadamente, tornando-se personagem da minha tragédia... interferiu e interpretou com tanta paixão o

ELA Não entendo como um homem que conhece tanto os sentimentos humanos não sente o menor afeto por uma mulher que arriscou a vida para salvá-lo.

papel de salvadora que eu, instintivamente, me envolvi no clima da ação e completei a

ELE

cena romântica... É... foi exatamente isto que aconteceu...

Se tudo o que me disse é verdade, não sei até onde as suas palavras merecem fé,

ELA

já lhe disse, pressinto nelas falsidade, mistificação, alguma coisa em você me soa falso,

Escute, você tem certeza de que é uma pessoa lógica?...

repito, se tudo o que me disse é verdade, também não lhe devo nada, estou quitado.

ELE

ELA

Tenho. Absoluta. E é nesta certeza que reside todo o meu drama sem solução. Eu

Como pode ser tão ingrato?

sei pensar. Eu raciocino. E, infortunadamente, sou lógico. ELA Já consultou um psiquiatra?...

ELE Pela lógica você não veio aqui para me salvar do suicídio e sim para me salvar de um complexo de culpa.

ELE

ELA

Já.

Que infâmia!

ELA

ELE

Não deu resultado?

No fundo deve se considerar culpada pela morte de seu noivo. Sabe que é possível

ELE

ele ter guiado o carro desastradamente em consequência da briga e do noivado desfeito.

Deu. Até hoje de vez em quando ele me procura para contar os seus problemas...

Inconscientemente, deve admitir que o seu noivo tenha até se suicidado por sua culpa.

ELA

Então, para compensar o remorso inconsciente, você entrou nessa de fazer campanha

Experimentou conversar com um padre?

contra o suicídio...

ELE

ELA

Conversei com dois, tornaram-se meus amigos. Sempre que posso ajudo um e

Você é um perverso.

outro a resolver questões de consciência. Infelizmente, ou felizmente, não conseguiram ainda coragem para largar a batina e casar...

ELE Pelo contrário, sou um sujeito boníssimo e a prova disso é que, antes de me matar, estou praticando a boa ação que me pediu logo quando chegou com a história do pneu furado. Eu, em nome de mim mesmo e não de qualquer instituição religiosa, por iniciativa


313

314

voluntária e não por impulso inconsciente, é que estou tentando salvá-la. Salvá-la da

ELA

mentira contra si própria, a pior forma de suicídio...

Vou me jogar no abismo com você.

ELA

ELE

Está querendo é desnortear o meu juízo para me arrastar à morte consigo.

Comigo???

ELE

ELA

Não, estou procurando acordá-la para que comece a viver. O seu problema é

Você merece.

diferente do meu, ainda pode ser feliz, não porque seja mais atraente do que pensa, e sim

ELE

porque é menos inteligente do que julga... Acredite em mim: ainda pode ser feliz, comece a

Que estupidez!...

viver.

ELA ELA

Só queria uma coisa.

Começar como?

ELE

ELE

Escute...

Vivendo de fato e não de fantasia. Sendo o que é: uma pessoa igual às outras e,

ELA

portanto, sujeita a fraquezas, contradições e erros. Talvez tenha provocado a morte do seu

Só queria que nós pulássemos para a morte abraçados.

noivo. E daí? Não provocou porque desejasse provocar, fez uma coisa que na ocasião

ELE

achava certo, não poderia adivinhar o que iria acontecer. Experimente se sentir quitada

Escute, deixe eu falar, sim?...

consigo mesma e veja como isto faz bem!

ELA

ELA

Já falou demais. E infelizmente disse o que precisava ser dito.

Nunca ninguém me falou como você está me falando.

ELE

ELE

Deixa ou não deixa eu falar?

É o raciocínio lógico.

ELA

ELA

Para quê? Para tentar me convencer a ir embora como digna Diretora de uma

Tem razão, todo ser humano deve ser lógico, vou seguir a orientação do seu exemplo.

instituição de Combate ao Suicídio? Agora é tarde... (Caminha para o abismo; ele a acompanha.)

ELE

ELE

Fico muito satisfeito.

O que vai fazer?

ELA

ELA

Também vou me suicidar. (Ele espanta-se.)

Vamos...

ELE

ELE

O quê???

Vamos o quê?

ELA

ELA

Vou me matar.

Morrer, é lógico.

ELE

ELE

Está brincando.

Eu não...


315

ELA

ELE

Não??? (Pausa)

Se a minha presença lhe incomoda retire-se você.

ELE

ELA

Claro que não vou me suicidar dessa maneira. Fiz um programa para minha morte de acordo com o meu temperamento, com o meu caráter, com a minha vocação.

(Explodindo) Desapareça da minha frente!!! ELE

ELA

Está louca???

Você me decepcionou. Francamente.

ELA

ELE

Bem, você fica, não fica? Eu avisei, não avisei? Pois quem vai ter complicações

E você, francamente, me surpreendeu...

com a polícia é você, ouviu? (Ela ensaia o pulo para o abismo, ele a segura, atracam-se os

ELA

dois, rolam pelo chão como na vez anterior. Param, exaustos. Olham-se. Ele aplica-lhe

Então depois de tudo o que houve, me nega a sua compreensão e a sua

uma bofetada.)

solidariedade?

ELE

ELE

Pronto!

(Buscando afastá-la do abismo.) Você não está no seu juízo perfeito.

ELA

ELA

O que fez, seu covarde?!

Faça o favor de se retirar!

ELE

ELE Por quê?

Fiz você esfriar a cabeça com o melhor remédio. Não fez a mesma coisa comigo me beijando?...

ELA

ELA

Também não quero testemunha.

Você é um débil mental! (Começa a chorar.)

ELE

ELE

Ouça: quer mesmo que eu saia para se matar?

E você, sinceramente, é uma doida dessas que nenhum médico cura...

ELA

ELA

Que pergunta inocente! Não, quero que saia para que eu possa mascar chiclete!...

Um monstro!

ELE

ELE

Ainda vem com ironia, hein? ELA

Sim, senhor, era só o que faltava me acontecer na vida e tinha de acontecer na hora da morte...

Como é? Vai ou não vai embora?

ELA

ELE

É um sujeito sem escrúpulos. Mas eu me vingo!

Não vou. Cheguei aqui primeiro, a vez é minha.

ELE

ELA

Vingue-se, que me importa? Vou acabar com a vida não faz diferença.

Ai, minha Nossa Senhora, dai-me paciência porque eu vou estourar, juro que vou estourar!

316


317

318

ELA

ELE

Faz diferença, sim. Vai se matar sozinho mas quem perderá com o escândalo não

Afinal, no fim da vida, ouvi uma frase honesta... de significação para mim...

sou eu, isto lhe garanto. É você mesmo, depois de morto, quem vai se prejudicar com o

(Silêncio. Ele reflete, põe o toca-discos em funcionamento; música solene, a mesma do

escândalo!

início.)

ELE

ELA

Está totalmente maluca.

Linda, esta música, me lembra não sei o que da infância.

ELA

ELE

Maluca? É aí que se engana redondamente. O meu mal é também saber raciocinar.

A infância... é o cúmulo eu não poder nem ter saudade da infância...

Vou tirar toda a roupa e sair daqui nua gritando pela estrada. Há de passar um carro para

ELA

me recolher nua em pelo e levar a notícia aos jornais. Sua morte terá realmente enorme

Foi uma criança infeliz?

repercussão, é pena que não lhe sobre tempo para ler a manchete: O SUICÍDIO DO ATOR

ELE

TARADO...

Não sei... Tudo o que me recordo é que estava olhando pela janela do avião as

ELE

nuvens lá embaixo... brancas como ondas de neve... De repente o clarão do fogo... O

Com esse golpe não me impressiona. Sei que não teria a audácia de realizar tal

barulho.. O hospital... Os braços e pernas no gesso... A operação na cabeça... O sorriso

proeza.

forçado da enfermeira, escondendo piedade, quando disse que eu já era um rapazinho e por ELA

isso podia saber que os meus pais haviam morrido no desastre...

Ah! Duvida que eu tenha coragem? Pois muda já de opinião... (Começa a se

ELA

despir, ele a impede, vexadíssimo.)

Que horrível!

ELE

ELE

Enlouqueceu mesmo?

Tem razão, sou um doente mental...

ELA

ELA

Arrede, me solte, seu puritano carola!

Não diga isto. Você sofreu um trauma mas ficou bom, faz tanto tempo.

ELE

ELE

Por DEUS, que diabo é isto? (Ela se recompõe.)

Não... o choque, a operação na cabeça, sei lá! Alguma coisa dividiu a minha

ELA

personalidade, fragmentou o meu íntimo... Não consigo unir os pedaços do eu... Numa

Com que facilidade você fala ao mesmo tempo no nome de DEUS e do diabo!

hora me sinto uma pessoa, noutra hora me sinto como se fosse outra pessoa... Entende?

Você é um anjo ou um demônio, hein? Responda! (Pausa)

ELA

ELE Por que esta pergunta?

Entendo. Todo artista, principalmente todo ator, tem mais ou menos este problema.

ELA

ELE

(Calma) Porque há momentos em que vejo no seu rosto a figura de Satanás... e há

Eu sei, até certo ponto é normal em qualquer criatura humana, porém em mim

momentos em que vejo a imagem de Cristo... (Pausa)

sempre passou do limite máximo... E a cada dia vai piorando... É terrível, não aguento mais!...


319

320

ELA

ELA

É possível que tenha de fato um problema psíquico mas isso não é motivo para

Eu disse que acho que já o amo. Olhe dentro dos meus olhos. Não tenha medo. A

suicídio. Existe muita gente neurótica e esquizofrênica que suporta o peso da vida. O que

menina dos meus olhos também não é virgem... (Ele a fita demoradamente.)

talvez esteja agravando o seu caso é o excesso de trabalho, estafa, esgotamento. A

ELE

profissão de ator acarreta um grande desgaste de energia nervosa. A técnica da criação

É desconcertante. Você não está mentindo...

dramática, o processo de interiorização do personagem...

ELA

ELE

E então? Vamos?

Espere aí, está falando como quem possui uma cultura...

ELE

ELA

Vamos. (Ele segura a mão dela e dirige-se para o abismo.)

Talvez eu não seja tão ignorante quanto supõe.

ELA

ELE

Ué! Vamos para onde?

É, bem notei que alguma coisa em você soava falso...

ELE

ELA

Para a morte. Morrer abraçados.

(Rindo) Soava? Não soa mais?

ELA

ELE

Morrer???

Vai ver que não é Diretora da instituição antisuicida, é a Psicóloga.

ELE

ELA Você está precisando tirar mas férias para repousar a mente, antes de mais nada. E está precisando de alguém que lhe dê amor, um amor capaz de ser correspondido. ELE Amor? Agora quem ri sou eu. ELA Por quê? Quem sabe se não surgirá em seu caminho uma mulher que lhe ofereça um grande amor, com a compreensão profunda de que tanto necessita?

Sim. Você realmente está me amando. E o seu sentimento é tão verdadeiro que me toca, me contagia. Por mais incrível que pareça neste instante eu estou me sentindo atraído por você. Física, intelectual e emocionalmente. ELA E isto não é formidável? É isto que é o amor, não tenha vergonha de dizer! Vamos embora. Vamos viver! ELE Como, sua imbecil? Não percebe que agora complicou tudo de uma vez por

ELE

todas? Você jamais poderia me dar a compreensão de que tanto preciso. É uma mulher

É impossível. Um doente mental só pode ser compreendido profundamente por

culta, certamente especialista em doenças mentais, inteligente, generosa, altruísta, porém

outro doente mental...(Pausa) ELA Quando eu cheguei aqui trazia apenas simpatia... Mas nós vivemos em comum

todas essas qualidades o que fazem é separá-la de mim. Não entende isto? (Ele dá uma gargalhada.) ELA

uma experiência tão imprevista e tão autêntica, e vivemos tão intensamente, tão

Que engraçado!

espontaneamente, que acho... acho que já o amo... (Silêncio)

ELE

ELE

Por que ri assim, Meu DEUS, será que estou ficando mais louco?

Sabe o que está dizendo? (Ela aproxima-se dele.)

ELA Vê este anel de brilhante? (Atira fora o anel, no abismo.)


321

322

ELE

Vamos, vamos que são horas, o carvalho de Herne nos espera!”

O louco serei eu ou será ela?...

ELE

ELA Não se preocupe que não era brilhante, era vidro. Vê estes cabelos? Estas

Confesso que em momento algum me ocorreu que você fosse uma atriz. Também já representou Shakespeare, hein?

sobrancelhas, os cílios, o batom?... É peruca, pintura... (Despoja-se de todos os elementos

ELA

de maquilagem, revelando outra expressão fisionômica.)

Ex-atriz. Talvez atriz novamente se você quiser juntar sua loucura com a minha...

ELE

ELE

Tenho a impressão que lhe conheço de algum lugar...

Valeria a pena tentar.

ELA

ELA

Conhece. Embora jamais tenhamos tido sequer um diálogo, embora eu tenha sumido do ambiente artístico há anos, depois que desequilibrei e tentei o suicídio.

Puxa! Que alegria!

Quando o pessoal souber vai ser uma festa. Você não

imagina, foi todo o elenco na minha casa, não sei como descobriram o endereço. Ninguém

ELE

tinha mais esperanças de ver a peça estrear no dia marcado, aí um que me conhecia e sabia

Eu bem que desconfiava...

da minha experiência em matéria de suicídio, resolveu me procurar.

ELA

ELE

Agora, sente-se ali, quieto. (Ele obedece intrigado e curioso.) “Você é uma pessoa

E quem lhe disse que a peça vai estrear no dia marcado? Comigo não estreia.

adorável, encantadora, sua presença para mim é muito simpática, extremamente honsora”.

ELA

Caladinho, hien? (Ela concentra-se. Transfigura-se. E começa a interpretar, em poses

Como??? Não vai voltar???

diversas, com ar descontraído e coquete, trechos da comédia AS ALEGRES COMADRES

ELE

DE WINDSOR, de Shakespeare, falas da Sra. Ford.)

Não!

“Está aí, meu querido Frank? Que melancolia é essa?... (Ele começa a refletir no semblante, acentuada transformação psicológica.)

ELA Não???

Juro que tens na cabeça algumas minhocas... (Ele sorri.)

ELE

Então, meu passarinho, que notícias há?... (Ele balança a cabeça.)

De maneira nenhuma.

Eu, vossa esposa!? Pobre de mim! O que era eu senão uma simples burguesa?...

ELA

(Ele demonstra mais vivo interesse.) Só DEUS sabe como vos amo e vós haveis de sabe-lo um dia... (Ele baixa a fronte.)

Mas... ELE Vou sair daqui direto para uma estação de repouso. E não vou sozinho. (Olham-

Que hei de fazer? É certo que está aqui um cavalheiro que me é querido; eu não tenho tanto medo à minha própria vergonha como ao perigo que ele corre... (Ele reflete.) DEUS vos faça melhor do que são os vossos pensamentos... (Ele olha fixamente para ela.) Tomo o céu por testemunha em como as vossas desconfianças são falsas... (Ele vai até à beira do abismo, contempla o horizonte.) É impossível que não tenha um grande medo... (Ele vira-se para ela.)

se. Ele a beija na testa.) ELA Graças a DEUS. Graças a DEUS que de fato existe e não esquece da gente, embora a gente esqueça Dele. ELE Acha que dará certo?


323

324

ELA

ELE

Acho. Tenho certeza. Conseguiremos viver. Viver muito. (Ele livra-se da

DEUS existe, já sei, a esta altura não duvido de coisíssima nenhuma.

indumentária teatral que guarda na pequena maleta juntamente com o toca-discos.)

ELA

ELE

O probleminha é que o meu carro furou mesmo um pneu...

Você é sempre assim, doidinha?

ELE

ELA

Fica aí na estrada, depois a gente manda buscar.

Não, em época de lua cheia costumo piorar...

ELA

ELE

Talvez não seja necessário deixar o carro abandonado.

Não haverá para nós lua cheia, nem vazia. Haverá somente lua nova...

ELE

ELA Então vamos de vez? (Ele pega a maleta.)

Como não? Você é uma mentirosa incorrigível mas eu falo a verdade. Jamais peguei em qualquer ferramenta para mexer em automóvel.

ELE

ELA

Vamos.

A turma do elenco, que veio noutro carro atrás de mim, já deve ter trocado o

ELA

pneu... (Ele volta a largar a maleta no chão.)

De mãos dadas, poeticamente.

ELE

ELE

O pessoal também veio???

De corações dados, malucamente.

ELA

ELA

(Sorrindo) Apenas todo mundo...

Sabe da maior?

ELE

ELE

Bolas! E meu repouso?

Não quero saber de mais nada, vamos embora antes que me apareça com outra

ELA

novidade. ELA Talvez tenha ainda um probleminha desagradável para solucionar... ELE Não me diga que é casada?! (Ele larga a maleta, na expectativa da resposta.)

Depois da estreia você tira férias, um colega se prepara e lhe substitui dentro de uma ou duas semanas. (Pausa) ELE Pensando bem é melhor... Podemos fazer uma estação de águas com a consciência lavada...(Ele apanha a maleta.)

ELA

ELA

Que bobagem! Nunca fui nem noiva, muito menos casada. (Ele pega novamente a

Estação de águas, não. Lua... ELE

maleta.) ELE

Cheia?

Vamos e não dê mais uma única palavra nas próximas duas horas.

ELA

ELA

Não...

O probleminha é que, embora pareça incrível...

ELE Nova?


325

326

ELA Não... ELE Então o quê? ELA Lua de mel... ELE É, tudo muito bonitinho, mas acontece que eu estou arrasado de esgotamento nervoso, como você disse. Talvez não aguente mais nem a metade de uma semana.

FOGO

ELA Aguenta, sim! ELE Por que afirma com tanta segurança? (Ela reproduz o gesto dele, tomando a iniciativa em beijá-lo na testa, carinhosamente.)

CRUEL EM

ELA Por isto. ELE Você está certa de que este amor vai durar, sua maluca?... ELA Estou! E sabe por quê? Porque AMOR DE LOUCO NUNCA É POUCO!!! (Dão-se as mãos. Saem lentamente enquanto a lua vai aparecendo no céu claro.)

FIM

LUA DE MEL


327

328

Esta peça foi encenada pela primeira vez em janeiro de 1976, no Teatro da Paz,

PRIMEIRO ATO

em Belém. Dois anos depois, em 1978, estreou em São Paulo, sob a direção de Wolf Maya, da TV Globo, tendo no elenco Vic Militello, que trabalhou na novela “Estúpido Cúpido”.

GIL, de camisa social e gravata desatada, mexe em uma maleta, no divã; para, examina o guarda-roupa vazio onde somente o paletó aparece; coloca o rádio-eletrola em

PERSONAGENS

funcionamento com um disco de música popular; começa então a retirar peças de homem da maleta e arrumá-las em uma das filas de gavetas do guarda-roupa; durante esta

GIL. Um poeta recém-casado, boêmio, irreverente.

operação tem o cuidado de esconder uma garrafa embrulhada; quando acaba não resiste

ELZA. A esposa, uma Assistente Social ultra-religiosa.

a tentação de olhar o conteúdo da outra maleta que se encontra em cima da cama, semiaberta, mas, tão logo abre a tampa da mesma, ouve-se o ranger de um trinco; ele

CENÁRIO

afasta-se disfarçando. ELZA sai do banheiro ostentando uma camisola de cetim branco, extremamente sóbria; seus gestos são retraídos e cerimoniosos.

Apartamento de hotel. Dormitório. Cama de casal, abajur de cabeceira, guardaroupa, com duas filas de gavetas, um divã, mesinha e telefone, revistas, duas cadeiras, rádio-eletrola. Janela comunicando com o exterior, porta de saída a uma lado e, do outro, porta para o banheiro. De forma saliente predomina, em toda a decoração e no mobiliário, a cor branca. Tanto quanto o possível os detalhes de cena sugerem ambiente de cidade pequena.

ELZA Enfim... GIL Em fim não, em começo... ELZA Estou bem? GIL Está linda, meu amor. Exuberante. Esplendorosa como diria Olavo Bilac... ELZA Obrigada. Pena é que nunca saiba quando fala sério ou quando faz troça. Você vive rindo, Gil. GIL Até disso me acusa? ELZA Não estou acusando. GIL Nem pode, hein? A partir de hoje acabaram-se as “retaliações mútuas, só haverá lugar para união e afeto”. Foi você quem fez a proposta, tem de cumprir a sua parte. ELZA É claro que cumprirei.


329

330

GIL

GIL

Faço votos de que assim seja, “pelos séculos e séculos, amém”...

Notei que você está linda.

ELZA

ELZA

(Repreensiva) Gil!

E eu notei que até no dia de hoje estamos discutindo.

GIL

GIL

O que foi, eu disse algo errado?

Discutindo não, papeando, dialogando. Comecei elogiando a tua beleza, você

ELZA

achou que eu queria fazer troça, desviou ao assunto. Ponto final no mal entendido. Já

Nós combinamos que você terminaria, de uma vez por todas, com as suas

bastam as sete discussões por semana em cinco anos de namoro e quatro por dia em seis

indiretas à religião.

anos de noivado...

GIL

ELZA

Eu pixei a tua religião.

Esta é outra característica da sua personalidade: gostar de discutir. No fundo, sabe

ELZA

o que é isto? Necessidade de afirmação, necessidade de contradizer os outros para se

Esta expressão “pelos séculos e séculos, amém” é católica e você empregou por

mostrar superior. Falta de maturidade, de amadurecimento do Ego. GIL

ironia. GIL

Falta de amadurecimento, ou excesso de apodrecimento, quem tem é aquele teu

Bobagem, eu nem pensei em catolicismo.

professor. Aquele cara ou é muito infantil ou já está gagá; é por isso que não embarco na

ELZA

canoa furada da Psicologia de vocês. Imagina que hoje, depois de comer oito empadas e

A gente pode ser irônico sem ter consciência disso. É o seu caso, você é

beber uns oitenta copos de vinho, durante a recepção, ele quis me convencer de que o

instintivamente irônico, precisa superar esta tendência e isto me prometeu, fora outras

Diabo existe...

coisas. Não esqueça que, além de ter prometido solenemente – até jurou em nome de

ELZA

DEUS, apesar de ser ateu...

Gil, você discutiu com o padre Florêncio???

GIL

GIL

Naquele dia eu estava bêbado.

Que jeito? Ele me encheu o saco...

ELZA

ELZA

Além de ter prometido solenemente levar avante um trabalho de reforma do seu

Gil, que termos são esses?!

caráter, precisa mesmo disso para o seu próprio bem, inclusive para o bem da sua obra

GIL

literária.

Desculpa o “encheu o saco”. GIL

ELZA

Elza, meu amor, espera aí, sinal fechado. Para espinafrar o meu caráter você tem

Ainda repete.

competência, mas de literatura não entende patavina. Aliás ficou acertado em nosso acordo

GIL

que você respeitaria os meus versos como eu vou respeitar as suas rezas; amor, amor,

Mas que ele foi um chato, foi. Está certo que na cerimônia da Igreja eu ouvisse

manias à parte... ELZA Notou uma coisa?

com paciência todo aquele sermão quadrado sobre Adão e Eva para justificar o casamento. Está certo. O outro estava na função de padre, tinha o direito de doutrinar à moda da casa.


331

332

O teu professor porém não estava na função de padre, nem de batina estava, foi na

do primeiro noivado foi a maior bobeira tua; eu me envolvi naquela arruaça na zona por

recepção apenas para comer empada e beber vinho...

mero acaso: um amigo me levou até lá a fim de que desse uns conselhos para a irmã dele...

ELZA

ELZA

Que injustiça! Ele não foi lá para isto.

Eu sei!

GIL

GIL

Ah, não? Então foi para me converter? Você mandou? Que ingenuidade!... Já se

Sabe nada, meu amor, você vê pecado em tudo com essa sua mania de religião.

ver que ele pode ser muito bom como padre, mas como professor de Psicologia é um

ELZA

debilóide. Bem que eu te aconselhei a estudar na capital. ELZA

Vai começar de novo? A única coisa que eu não admito é que espezinhe a minha fé. E você...

É, se houve ingenuidade não foi dele, foi minha.

GIL

GIL

Eu prometo, sei, e não estou espezinhando. Só acho que não havia necessidade de

Positivo. Sabe, meu amor, você também pode ser espetacular como filha de

enxergar tanto.

Maria, mas como Assistente Social não vai conseguir recuperar ninguém. Eu, pelo menos,

ELZA

vai ser difícil...

Não exagero. Apenas...

ELZA

GIL

Gil, você pretende me desgostar até neste dia? Pois eu vou me arrumar as minhas

Não exagera? Sempre ameaçou entrar para um convento se eu não me

coisas, dormir, e não falo mais uma palavra.

regenerasse. Esta expressão, regenerar, é tua: eu nunca entendi exatamente o que ela

GIL

significa no meu caso; afinal de contas não sou nenhum degenerado, sou simplesmente um

Duvido...

sujeito que se mistura com os outros e faz o que os outros fazem porque não se julga

ELZA

melhor do que ninguém. Escuta, meu amor, me explica agora uma coisa. Nunca entendi

Pois vamos ver.

porque toda vez que a gente terminava o namoro, e depois o noivado, você se preparava

GIL

para entrar no convento. No princípio eu pensava que era uma espécie de chantagem

Não vamos ver não. Desta vez eu prometo, não só solenemente, sacramente, que

sentimental. Raciocinava: assim como algumas dizem “vou me suicidar”, ela diz “vou ser

não discutiremos mais esta noite. Contudo não vamos dormir... Afinal, esperamos quase

feira”, que é muito pior... depois pensei que, se fosse chantagem, você teria desistido do

uma dúzia de anos por esta noite.

recurso ao ver que ele não dava resultado. Então cheguei à conclusão de que, no fundo,

ELZA

você não tinha vocação para esposa e sim para freira, que no fundo não me amava

Quase doze anos... Não se envergonha disso?

bastante.

GIL

ELZA

Não. Até achei gozado quando tua vizinha disse que o nosso namoro tinha

Gil, você chegou a pensar um minuto sequer que eu não o amasse bastante?

“encroado”. Também se deve dar um bom desconto nesses anos todos de romance: tirando

GIL

o tempo que passamos brigados não sobra nem dois anos. Cada pileque que eu pegava

Pensar, pensei.

você ficava uns oito meses sem falar comigo. Somente porque publiquei aquele poema

ELZA

sobre a beleza do sexo amarrou a cara dez semanas. Os dois anos que durou o rompimento

Que bobinho!


333

334

GIL

ELZA

Isto foi o que retardou a minha decisão fatal, digo, final...

Mas esquecer logo a fundamental?

ELZA

GIL

Pois eu jamais duvidei do seu amor, apesar de todas as suas loucuras. Sempre que nós estávamos brigados eu lia antes de dormir, sem falhar uma noite, aquele poema que

Todas as razões do meu amor são fundamentais... Agora eu devo ter escolhido uma como metáfora, compreende? ELZA

você fez pra mim. GIL

Não, Gil, isto eu não perdoo.

Qual?

GIL

ELZA

Pois vou escrever um soneto – soneto, ouviu? – somente para dizer que todas as

Gil, não lembra? Mas como é leviano!

razões do meu amor são fundamentais.

GIL

ELZA

Ora, meu amor, eu fiz tantos poemas para você... Ah! Já sei. (Recita em tom

Quando? GIL

pausado e meio chistoso.) “Os pássaros

Amanhã.

Descendo das árvores verdes, inocentemente verdes

ELZA

Pousarão sem sustos, inocentemente pássaros

Não, hoje.

No teu seio...

GIL

E com os pássaros também eu

Hoje nós vamos fazer um programa lírico mas não na base da literatura...

Sugarei em ti o leite da inocência...

ELZA

Foi este ou não foi?”

Hoje sim. Quero rimado e metrificado. Vou até dormir logo para facilitar.

ELZA

GIL

Não.

(Alegre, bonachão.) Está pensando que entrou para o convento? Não entrou não,

GIL

ouviu? Em convento é que se dorme cedo; quem casa dorme tarde, pelo menos na primeira

Foi sim. Se errei diz qual foi.

noite...

ELZA

ELZA

Foi aquele em que você descreve todas as razões pelas quais me ama e termina

Você falou, falou e não recordou a razão fundamental do seu amor. Que pena!

revelando a razão fundamental. GIL Qual era mesmo a razão fundamental?

uma?

GIL Toda memória tem limite. Sou capaz de apostar que você também não acerta dizer a tal razão usando as mesmas palavras por mim escritas.

ELZA

ELZA

Gil! Tem a coragem de confessar que esqueceu até este detalhe?

Acerto, sim senhor.

GIL

GIL

Não são tantas as razões que figuram no poema? Como eu não poderia esquecer

Acerta nada.


335

336

ELZA

GIL

Se eu acertar você faz uma coisa para mim?

De acordo. Até certo ponto...

GIL

ELZA

Faço, o que é?

(Ao transferir as peças da maleta para o guarda-roupa passa escondido um

ELZA

pequeno volume, distraindo a atenção dele com a fala que segue.) Já reparou como este

Digo depois.

quarto é interessante?

GIL

GIL

Aposta fechada.

Meio fajuto, não acha?

ELZA

ELZA

Você escreveu assim: “Amo-te sobretudo porque és o outro lado de mim mesmo”.

Depois que você fez a reserva eu telefonei para o gerente...

GIL

GIL

(Batendo palmas zombeteiro.) Parabéns a você pela memória e parabéns ao poeta

Ah! Então foi isso...

pela falta de talento... ELZA Perdeu a aposta e vai ter que fazer uma coisa para mim: não somente me levar à igreja domingo, mas... assistir a missa comigo.

ELZA Telefonei, me identifiquei como a futura esposa e pedi que a decoração do quarto fosse toda branca, se possível. GIL

GIL

E não me falou nada.

Negativo. Disso, meu amor, perde as esperanças. Francamente, é incrível que

ELZA

você se conserve tão beata numa época em que todo mundo está mandando brasa. ELZA Gil! Pelo amor de DEUS, não recomeça. Bem, vou arrumar as minhas coisas e dormir. (Remexe a maleta em cima da cama, dirige-se ao guarda-roupa para alojar

Surpresa. GIL Meu amor, não me leva a mal, mas em matéria de decoração você também anda desatualizada, pelo menos uns duzentos anos.

algumas peças; GIL vendo que ela vai abrir a gaveta onde ele escondeu a garrafa

ELZA

apressa-se em evitar isto.)

Gil, não percebe a significação?

GIL

GIL

Olha, guarda as tuas roupas na outra fila de gavetas que aqui eu pus as minhas.

Que significação? Psicológica?

ELZA

ELZA

É melhor. Não quer que eu arrume as suas coisas?

O simbolismo...

GIL

GIL

Não, não, pode deixar, já arrumei tudo bem arrumadinho, guarda os teus

Que simbolismo? Teológico?

bagulhos. Quer que eu ajude? ELZA Não, obrigada, uma das lições que aprendi em Psicologia é que o marido não deve tomar conhecimento dos objetos íntimos da esposa.

ELZA Poético, Gil, onde está a sua sensibilidade? O branco não é a cor da pureza?


337

338

GIL

Segundo: este pijama foi um presente que a minha mãe me deu justamente para ser usado

Não, não é. A pureza não tem cor. A pureza é transparente como a água. E como o

hoje. Ela é tua fã, no duro. Imagina o que me disse quando entregou o embrulho de manhã:

vidro, que um dia se quebra... ELZA Você nasceu mesmo para ser do contra em tudo. Sempre ouvi dizer que o branco representa a pureza. GIL

“meu filho, não esqueça de vestir isto hoje; agora acabou-se o costume feio de dormir nu”... ELZA Gil, tenha modos. GIL

E daí?

(Encosta-se à janela e aponta para o exterior.) A paisagem é uma curtição mas a

ELZA

gente podia ter ficado pelo menos no terceiro andar. Quando fiz a reserva pedi no segundo

Daí ter sido natural que eu escolhesse para a noite nupcial uma decoração branca

andar. Amanhã reclamo e se troca de apartamento. Hotel mixuruca.

como o meu ideal. GIL Rimou, hein? É, o teu negócio é mesmo rima. E eu digo que isto é muito mal e pouco legal. E com tanto “al” só há um jeito deu engolir este mingau: trocar de roupa para o cerimonial de nossa primeira noite como casal... Tchau. (Abre uma das suas gavetas, tira algo e se tranca no banheiro.)

ELZA Não adianta reclamar. O gerente me explicou que dormitório com decoração branca só tinha no quinto andar, eu concordei. GIL Então não se fala mais no assunto. Você tem toda a sua razão e eu ainda lhe dou a minha. Satisfeita? No último andar estamos mais perto do céu..

ELZA

ELZA

É um maluquinho... (Sorri, enlevada; coloca no rádio-eletrola um disco de

Vai começar outra vez com a ironia?

música clássica; mira-se no espelho da penteadeira; a seguir abre a janela e se demora

GIL

olhando para fora; GIL sai do banheiro sem fazer barulho, metido desajeitadamente em

(Rindo) Absolutamente. As homenagens da noite pertencem à pulcra donzela e eu

um pijama vermelho berrante, aproxima-se dela sorrateiro a fim de assustá-la; ela vira-

me ajoelho em doce submissão. Esta noite tenho o sacossanto dever de ser gentil com

se.)

você, na medida de todas as minhas possibilidades... GIL

ELZA

Que tal eu?

Pois não está cumprindo com esse dever.

ELZA

GIL

Gil, você não tinha um pijama doutra cor?

Não? Não estou sendo gentil? Cometi alguma falta?

GIL

ELZA

Não, não tinha. Infelizmente não combina muito com a tua decoração. Quem

Cometeu.

mandou fazer segredo, não me avisar.

GIL

ELZA

Alguma indelicadeza?

Tem sim outro pijama. Vou ver.

ELZA

GIL

Várias. Um delas imperdoável.

(Impedindo-a de abrir as gavetas.) Nada disso, meu amor. Primeiro, eu não tenho

GIL

mesmo outro pijama; me perdoa a informação, mas até ontem eu sempre dormi de cueca.

Uai! Nossa lua de mel ainda nem começou e será que já dei alguma mancada?


339

340

ELZA

ELZA

Gil, que linguagem!

Eu não digo que você faz piada de tudo?

GIL

GIL

Mancada não é palavrão, é gíria. Qual foi a indelicadeza imperdoável que eu cometi?

Elza, meu amor, esta estória de noivo carregara noiva para entrar no quarto no dia do casamento é um troco ultrapassado, cocoroca, cafoníssimo, coisa do século quinze.

ELZA

ELZA

Não digo.

Mas me agradaria. E não teria custado tão grande esforço a você.

GIL

GIL

Diz sim.

Como é que eu ia adivinhar que você esperava isso de mim? Depois de onze anos

ELZA

de namoro...

Não.

ELZA

GIL

É no que dá o seu desprezo pela Psicologia.

Vamos, fala senão vou ficar chateado, encabulado, complexado como você

GIL

costuma dizer.

Como você é romântica, Elza. É bacana isto, sabe? Porém, se não tivesse sido

ELZA

educada num meio tão fechado... Escuta, meu erro será reparado automaticamente – se não

É preferível esquecer.

carreguei você na entrada do quarto vou carrega-la, em compensação, a vida toda...

GIL

ELZA

De jeito nenhum. Fala. Estou preocupado com a monstruosidade cometida.

Olha, a ironia, Gil. Será possível que quando você não está discutindo nem

ELZA Você não se preocupa com nada, Gil, leva tudo na brincadeira. GIL

fazendo troça está sempre ironizando? GIL O que eu posso fazer? Nasci assim, não tenho culpa. (O telefone toca, ele atende)

Desta vez não estou levando. Por favor, Elza!

Alô... é o Gil... (Larga o fone.) Desligaram novamente. Eu conheço essa voz. Da próxima

ELZA

vez vou mandar a...

Bem, vou dizer. Quando entramos no quarto você... (O telefone toca, Gil atende.)

ELZA

GIL

Da próxima vez deixa que eu atendo.

Alô... é... do apartamento da Elza, sim... noivo não, marido... é ele mesmo, está na

GIL

cara, quem a senhora queria que fosse?... (Larga o fone.) Desligou. Um trote. Mulher. A voz não me é desconhecida. Vamos, continua.

Quer saber duma coisa? Somos uns bobocas, estamos agindo como duas crianças. Será que todo casal, nos primeiros momentos da lua de mel, fica assim baratinado?

ELZA

ELZA

Quando entramos no quarto você não me carregou...

Você é mesmo um meninão.

GIL

GIL

(Gargalhada) Está é boa!

Eu não, nós. Estamos agindo como duas crianças. A prova disso é que, sozinhos aqui há quase uma hora, ainda não fizemos uma coisa que somente as crianças não fazem...


341

342

ELZA

GIL

Gil!

Puxa vida! Como você é tímida. Às vezes penso que não sente atração física por

GIL

mim.

Não é isto que você pensou... Quero dizer que ainda não nos beijamos.

ELZA

ELZA

Não é isso.

Gil...

GIL

GIL

Sei o que é, você emprega muito o nome: inibição.

Sim?

ELZA

ELZA

Vamos conversar.

Tenha...

GIL

GIL

Conversar mais do que já conversamos? Precisamos é passar da teoria para a

Modos? Daqui em diante é proibido dizer: “Gil, tenha modos”. Já ouvi esta frase

ação...

oitocentas e noventa vezes. É pecado beijar depois de casado? Ora, meu amor, tem dó.

ELZA

ELZA

Você viu como a sua prima estava com uma saia escandalosa, acima do joelho?

Você fala de uma forma tão direta, tão rude... Quando o amor é espiritualizado as

GIL

suas manifestações não chocam, tudo nasce naturalmente... um beijo não é um cigarro, que

Deixa de mão a minha prima que falar mal dos outros é que é pecado, e pecado

se queima sem qualquer finalidade, sem qualquer motivação, sem qualquer impulso da

mortal, porque quando a gente se habitua a malhar o próximo morre se intrometendo na

alma...

vida alheia. No momento eu me acho interessado exclusivamente num beijo. GIL

ELZA

Vá lá que seja, vamos ser sutis, refinados. Mas agora eu vou ganhar um beijo, não

Já viu quantos discos tem aí? Até Chopin.

vou? (Tenta beijá-la, ela se esquiva.)

GIL

ELZA

Um beijo, meu amor, se não for por afeição seja ao menos por compaixão.

Gil...

ELZA

GIL

Viu as revistas? Se houver alguma pornográfica joga fora.

Elza, meu amor, o próprio recato tem um limite, mesmo para uma dirigente de

GIL

Congregação Mariana.

Um beijo, Elzinha.

ELZA

ELZA

Gil, eu...

Mais tarde, temos uma vida inteira pela frente.

GIL

GIL

Compreendo o teu acanhamento, mas que diabo. ELZA Não é acanhamento.

Meu amor, seja razoável. Quantas vezes nós nos beijamos nesse tempão de namoro? ELZA Duas...


343

344

GIL

GIL

Duas não, quatro. Mas também se pode reduzir este número para zero. Da

Às vezes eu penso que você não gosta de mim.

primeira vez você fechou os olhos para adivinhar o título do livro, eu aproveitei, porém o

ELZA

teu pulo estragou a festa. Da segunda vez eu apelei para a ignorância, porém o teu grito

Se não gostasse me casava?

acordou quase todos os vizinhos. Da terceira vez você ficou tão trêmula que eu desisti no

GIL

meio com medo que desmaiasse. Da quarta vez, a única que deve ter sido quente, eu

Existe tanta gente que casa por...

confesso que estava completamente embriagado...

ELZA

ELZA

Por interesse?

O meu soneto, começa logo a escrever, anda.

GIL

GIL

Não insinuei isto. Existe tanta gente que casa por...

O tema deste instante é um beijo na boca e não no papel.

ELZA

ELZA

Curiosidade? Solidão?

No dia em que nós sairmos daqui minha primeira providência será encomendar

GIL

uma dúzia de pijamas para você. GIL É... Sabe, Elza, vez por outra me ponho a refletir... como a gente pode se amar

Sei lá... Por tudo isso, menos por amor... Eu quero dizer que a maioria das pessoas casa sem saber por que... Casa para não deixar de casar... ELZA

verdadeiramente sendo você tão pura e eu tão despudorado... Como podemos voltar o

Gil, você percebe que está sendo grosseiro comigo?

namoro tantas vezes, eu sempre querendo beijar, você nunca querendo beijar... Você tem

GIL

alguma prevenção contra o beijo?

Percebo. O que não consigo perceber é se... (O telefone toca.)

ELZA

ELZA

Prevenção?

Deixa que eu atendo.

GIL

GIL

Algum escrúpulo?

(Antecipando-se a ela.) Alô... é ele... tudo bem... tudo magnífico... quem fala?...

ELZA

ah! É a senhora?... sim... estamos conversando... muito... conversa agradável, deliciosa, nós

Não é isso, Gil.

nos entendemos perfeitamente, maravilhosamente, a senhora sabe... pois não, boa noite...

GIL

vou entregar o fone a ela... boa noite. (Larga o fone.)

Sei, não é mesmo. Se fosse escrúpulo a tua recusa seria apenas em relação ao beijo. Mas você jamais deixou que eu pegasse nas suas coxas...

ELZA É mamãe?

ELZA

GIL

Gil!

Eu devia ter desconfiado.

GIL

ELZA

É mentira? Nos peitos eu peguei uma vez à pulso... ELZA Gil, se comporte como um cavalheiro...

(Ao telefone.) Mamãe?... sim... ainda não... não se preocupe... não disse, não... fique tranquila... é... um beijo. (Desliga)


345

346

GIL

ELZA

Ainda não disse o quê?

(Sentando-se na beira da cama, cuidadosamente.) Gil, olha a decência.

ELZA

GIL

Nada. GIL

Elza, meu amor, se não te conhecesse há mais de dez anos não acreditava. Como pode existir uma mulher cheia de...?

Não disse a quem?

ELZA

ELZA

Por favor, basta de me criticar.

A ninguém, Gil, que insistência! Quando você cisma com uma coisa não larga

GIL

mais. Este seu problema de fixação é uma característica de insegurança. GIL

(Tentando puxá-la.) Vem logo, deixa de charminho. Para você, neste momento, pudor não é virtude, é doença...

Bom, já que eu tenho um problema de insegurança e você tem segurança

ELZA

suficiente, vamos deitar...

(Retraindo-se) Você me desnorteia com esses seus gestos inconvenientes.

ELZA

GIL

E o soneto, não escreve mesmo? GIL

Os meus gestos não são inconvenientes, eles convém, depois você me dará razão...

Amanhã. Agora vou tratar de fazer algo mais prático: pagar a luz. (Executa)

ELZA

ELZA

Gestos quase agressivos.

Gil, está escuro.

GIL

GIL

Não exagera, Santa Terezinha dos pobres...

Claro...

ELZA

ELZA

Continua debochando, continua me ofendendo até cansar. Tudo cansa.

Detesto escuridão, tenho fobia.

GIL

GIL

É, tudo cansa...

(Atirando-se na cama.) Eu já estou no meu posto de comando...

ELZA

ELZA (Acende a luz do abajur.) Tenha paciência, nós vamos dormir com esta luz acesa. É fraquinha, não vê?

Por falar nisso eu estou cansada, extenuada, o dia hoje foi tão agitado, tão fatigante! Vamos repousar de vez? GIL

GIL

Eu já estou repousando. E você, por que não deita?

A luz do abajur pode ficar acesa. Porém se nós vamos dormir eu não garanto...

ELZA

ELZA

Promete ficar quietinho?

Você se deita como se fosse um homem primitivo, um índio, um selvagem.

GIL

GIL

Prometo.

Esta censura eu não aceito. Índio deita pelado e eu, por obra e graça da minha

ELZA

mãe, estou vestido à rigor. Pelo menos por enquanto...

Promete mesmo?


347

348

GIL

ELZA

Pode confiar.

Não se preocupe, mamãe... ele é bonzinho... insistiu... continua insistindo... não,

ELZA

não... sim... outro para a senhora. (Desliga)

Promete dormir logo?

GIL

GIL

Meu amor, você não acha que os cuidados da sua mãe estão sendo demasiados?

Juro. Pela minha honra. Aliás, pela sua...

Eu reconheço que gozo de péssima fama nesta aldeia mas não me consta que alguém tenha

ELZA

motivos para me julgar um tarado.

Então vamos dormir que eu estou exausta. (Demora-se ajeitando a colcha, o travesseiro; Gil ri da hesitação dela.) GIL Pode deitar que não corre nenhum perigo. Já jurei, torno a jurar. Juro por esta luz que me alumia... (Apaga a luz.)

ELZA Não é isto, Gil, mãe tem dessas coisas. Vamos dormir que amanhã é outro dia. (Senta-se na cama, facha os olhos em postura de concentração interior.) GIL O que foi? Está se sentindo mal?

ELZA

ELZA

Gil sem vergonha! (Acende o abaju.r)

Estou rezando. Não quer rezar comigo?

GIL

GIL

Até amanhã, um sono luminoso. Seja feita a vossa santa vontade, assim na cama

Brincadeira tem hora. O que eu quero é outra coisa.

como em tudo o mais. (Deita-se de costas para ela; Elza espera; Gil simula iniciar o sono;

ELZA

ela então prepara-se para deitar, ele a observa veladamente com ar de satisfação; o

Reza comigo, Gil, o que custa?

telefone toca.)

GIL

ELZA

O meu programa hoje não tem nada de místico.

É mamãe.

ELZA

GIL

Só uma Ave Maria.

Mas que aporrinhação!

GIL

ELZA

Reza por mim que eu quebro teu galho noutro sentido...

Gil! O que você disse?

ELZA

GIL Desculpa, eu ia pegando no sono, o barulho me perturbou.

DEUS tenha piedade de você. (Reza, Gil acende um cigarro; ela acaba e deita-se cautelosamente.)

ELZA

GIL

(Ao telefone.) Mãe?... sim... ainda não... sim... não...

Enfim à sós e deitados...

GIL

ELZA

Pensando bem esta velha está fazendo uma ligeira safadeza com a gente. Será que

Está fumando? Não ia dormir logo?

ela vai querer acompanhar por telefone?

GIL O cigarro chama o sono.


349

350

ELZA

ELZA

Vamos dormir logo que estamos muito tensos, precisamos relaxar.

Gil, por favor, não bebe mais.

GIL

GIL

Eu, como você não ignora, sempre fui extraordinariamente relaxado...

Uai! Você estava acordada?

ELZA

ELZA

Boa noite. (Acomoda-se para dormir, enrolando-se no lençol. Pausa. Gil vacila,

Não...

acende outro cigarro, passeia pelo quarto, vai à janela, senta no divã, levanta, pega o

GIL

telefone, larga-o sem discar, folheia uma revista, bota a mão na testa em pose de

E como sabe que eu bebi?

meditação, dirige-se à cama. Elza começa a respirar profundamente, como quem dorme;

ELZA

ele faz um giro, tira da gaveta do guarda-roupa a garrafa que escondera, destampa-a,

Vamos dormir. Amanhã nos divertiremos como você deseja.

bebe um trago, outro, mais outro; caminha lentamente até a penteadeira e, contemplando

GIL

a sua imagem refletida no espelho que ela tem, passa a dialogar consigo mesmo, sempre intercalando as frases com mais alguns tragos de bebida.) GIL

Ouvindo tudo caladinha, hein? Traindo a minha boa fé. Enganadora. Elza, sinceramente, você me decepcionou. ELZA

Gil, sujeitinho vil, que rima com imbecil... E agora?... Fala bicho, e agora?... O

Seja compreensivo. É natural que eu me sinta contrangida... e também

que é que tu vais fazer?... Sai dessa... Hein? O que é que tu vais fazer?... Agarrar a força?...

decepcionada: nunca pensei que você fosse capaz de trazer uma garrafa de bebida para a

Resolver a parada de qualquer maneira?... Ou dormir como um carneirinho?... Não, dormir,

nossa lua de mel...

não dá... Esvaziar a garrafa? Beber tudo, te embriagar?... É o cúmulo, Gil, teres que encher

GIL

a cara na primeira noite de casado... Bonito para ti... Ela dormindo, tu aí feito um

Eu não ia beber hoje, você é que me obrigou. (Gagueja as últimas sílabas.)

palhaço.... Sugestionado pela pureza dela... Acreditas nisso? Acreditas, sim... Acreditas,

ELZA

nada... Mas acreditando ou desacreditando aceitas a situação... É, aceitas e estás disposto a

Parece que já se encontra meio embriagado...

fugir do problema te embebedando, burramente, como se um pileque a mais fosse a

GIL

solução... Vais dar uma de moço educado, pela milésima vez... Que fingimento! Teu ou

É, parece. E uma vez que você, fingindo dormir, descobriu que tomei uns goles

dela? Escuta, Gil, tu tens ou não tens tutano para resolver a parada?... Se tu tens sai para a

posso beber mais. (Volta ao guarda-roupa em busca da garrafa e, por equívoco, abre a

apelação e descasca o abacaxi na base da violência... Se ela espernear que se dane... Deixa

gaveta onde Elza igualmente escondeu o seu volume; pega-o e verifica que se trata de uma

de ser besta, quem sabe não é isto que ela está querendo?... Como é, decide ou não

imagem de santo; Elza pula da cama, acende a luz do teto.)

decide?... Não, é melhor esperar... Ela é muito sensível... Pode até chorar... Fazer uma

ELZA

tolice... Telefonar para a mãe... A velha com certeza ainda não dormiu, está de olho em

Gil! Por que mexeu nas minhas coisas?

nós, grudada no telefone aguardando qualquer comunicação... Velha cínica... Gil, só há

GIL

uma saída, a de sempre... Ela não tem culpa, ninguém tem culpa de ser como é... A vida é

Não reparei que a gaveta era tua. Que troço é este?

que faz cada um... A educação... O ambiente... Coitadinha, despejaram na consciência dela

ELZA

uma tonelada de falso pudor... (Elza vira-se na cama, ele apressa-se em esconder a

Um santo, não está vendo?

garrafa e o faz sem muita firmeza: já sente os efeitos iniciais da bebedeira.)

GIL Que santo?


351

352

ELZA

ELZA

Santo Antônio.

Prossiga com a ironia, Gil, é a sua especialidade...

GIL

GIL

E você traz isso para a nossa lua de mel?

Você acende uma dúzia de velas e a gente reza uma ladainha...

ELZA

ELZA

Que mal faz?

O melhor que eu faço é mesmo dormir. Boa noite. (Apaga a luz do teto deixando

GIL

acesa a do abajur; acomoda-se na cama, cobrindo-se; Gil sorve mais bebida, detém-se

Encabula. Ora bolas, onde já se viu tamanha pieguice.

diante do Santo Antônio, fitando-o.)

ELZA Herege.

GIL Sabe?... Este teu Santo Antônio parece um charuto... É quase do tamanho de um

GIL

charuto... Tem quase a cor de um charuto... E eu acho que a cor do pijama dele também

Herege não. Afinal, isto aqui é um quarto de casal, não é um oratório. É ou não é?

não está de acordo com a decoração do quarto...

Responde!

ELZA

ELZA

Gil, pelo amor de DEUS, vamos dormir.

Não precisa se exaltar.

GIL

GIL

Vamos, só que eu vou dormir no divã. Desde que você me recusa como esposo a

Estou começando a engrossar, ouviu? Vou beber mais uma dose para acalmar...

gente dorme separado. Pelo menos assim eu posso apagar a luz e você não fica com medo

ELZA

de ser comida pelo bicho-papão.

Gil, a bebida transtorna você.

(Apaga a luz do abajur, deita no divã. Pausa. Gil, começa a respirar de forma

GIL

acentuada e irregular; sobre a porta branca do guarda-roupa, ao fundo da cena escura,

(Coloca a imagem na gaveta dela e apanha a garrafa na sua.) Não é a bebida que

um projetor de slides lança figuras coloridas que se sucedem acompanhadas de sons

está me transtornando, é outra coisa. Acho que o jeito é sair dando canelada...

metálicos sugerindo delírio sonambúlico de Gil. Aparecem as seguintes figuras: Elza

ELZA

vestida de noiva com véu e grinalda, um padre abençoando, alegoria de Adão e Eva no

Gil, pelo amor de DEUS.

paraíso, Elza em traje de passeio tentando afastar do seu busto as mãos de Gil, a imagem

GIL

de Santo Antônio em relevo, Elza com a roupa de dormir que ora veste, Elza somete de

Não mete DEUS neste negócio, já basta o Santo Antônio... (Engole mais um trago

calcinha e sutiã, Elza em pose de oração, uma senhora parecida com Gil entregando-lhe

e deposita a garrafa em lugar destacado na penteadeira; Elza pega a garrafa, guarda-a

um embrulho, ele retirando do embrulho um pijama vermelho, Elza envolta no lençol,

na gaveta dele e no lugar da garrafa coloca a sua imagem.)

apenas a face de Santo Antônio inclinada, um padre à paisana segurando um copo de

ELZA

vinho e uma empada, Elza quase despida, Santo Antonio em corpo inteiro, Elza

Não se aborreça, o seu juízo está um pouco afetado pela ação do álcool, você vai

inocentemente despida. Esta última figura some como um relâmpago sob ruídos

dormir e neste lugar fica o Santo Antônio, já que também descobriu o que não devia.

estridentes. Gil acorda assustado e acende a luz do teto; Elza senta-se na cama.)

GIL

ELZA

Esta é boa... Não que fazer a coisa completa? Acende logo uma dúzia de velas...

O que foi?


353

354

GIL

ELZA

Pesadelo.

Gil, o que é isto?

ELZA

GIL

Bebeu demais. Não quer deitar aqui? GIL

Chega, meu amor, chega! Se você está apavorada pode correr e se trancar no banheiro porque eu... (Apaga a luz do teto, Elza acende imediatamente a do abajur.)

Não aguento ficar ao lado de você como uma estátua.

ELZA

ELZA

Gil, você ficou com o pensamento conturbado?

De amanhã em diante, Gil...

GIL

GIL

Eu já nem tenho pensamento para ser conturbado. Eu já nem tenho cérebro, só

O meu caso é hoje. Estou indócil.

tenho nervos, nervos excitados, compreende? É como se todo o meu sistema nervoso

ELZA

estivesse carregado de eletricidade, compreende? Você precisa compreender, o homem é

Pensa noutra coisa.

diferente da mulher, há momentos em que não pode se conter, compreende?

GIL

ELZA

Nem dormindo eu consegui.

Compreendo sim.

ELZA

GIL

Não custa esperar um dia.

Então por que não cede?

GIL

ELZA

Não custa uma ova! Eu não aguento esperar mais nem uma hora.

Você está se mostrando tão áspero. Nunca pensei...

ELZA

GIL

Com um pequenino esforço...

Eu é que nunca pensei, meu amor, que você levasse tão longe esta tua

GIL

anormalidade.

Nem meia hora. (Acerca-se dela, resoluto.)

ELZA

ELZA

Anormalidade? O que está querendo dizer, Gil?

Gil...

GIL

GIL Nem dez minutos.

Eu já não sei o que estou querendo dizer, já não sei nem se estou querendo dizer. Mas que o teu comportamento não é normal, não é.

ELZA

ELZA

Mas...

Amanhã eu explico; amanhã.

GIL

GIL

Nem três minutos.

Você tem alguma aversão física por mim?

ELZA

ELZA

Por favor...

Aversão?

GIL

GIL

Nem um minuto.

Só pode ser.


355

356

ELZA

GIL

Que absurdo!

E por que amanhã? Estou farto de ouvir você dizer amanhã, amanhã. Eu não vivo

GIL

em função do amanhã, compreende? O amanhã é um saco sem fundo que as pessoas

Então você se sente feliz em me maltratar.

procuram encher de fantasia para se consolar. Eu existo agora e isto é o que me interessa.

ELZA

ELZA

Gil!

Você me desconcerta com esta impaciência.

GIL

GIL

Sente prazer em me torturar. ELZA

E você me irrita. Vamos, bota pra fora a justificativa. Elza, por amor de DEUS, já que você não tem amor em mim, fala! Por acaso é algum motivo de saúde?

Gil, isto é sadismo.

ELZA

GIL

Não é isso.

Lógico que é sadismo.

GIL

ELZA

Você tem algum defeito?

Está me chamando de sádica?

ELZA

GIL

Gil, não me humilha.

Talvez não seja bem sádica, seja...

GIL

ELZA

Elza, te coloca na minha posição. Afinal de contas eu tenho o direito de saber o

O que, Gil?

que ocorre. Basta de mistério temperado com telefonemas da mamãezinha. Se me encobriu

GIL

alguma coisa trágica chegou a hora de revelar.

Mais ou menos masoquista.

ELZA

ELZA

Não é nada trágico, você achará até engraçado.

Quanta brutalidade.

GIL

GIL

Engraçado???

Brutalidade uma joça! Ou você gosta de me fazer sofrer ou gosta de fazer sofrer a

ELZA

si mesma. Das duas, uma, não há justificativa para a tua conduta.

Achará cômico. Vai rir com certeza.

ELZA

GIL

Há, sim. Amanhã eu explico, não disse?

Duvido muito que tenha disposição para rir depois de todo esse vexame.

GIL

ELZA

Que justificativa pode haver? Se realmente há, fala, não fica me cozinhando em

Vai rir, sim.

caldo morno. ELZA Gil, eu juro por Nosso Senhor Jesus Cristo como há uma justificativa que você amanhã entenderá.

GIL Elza, se você não me aceita como marido, nem me esclarece o motivo, daqui a pouco eu tenho uma crise não sei de que. Será que... será que é uma dessas mulheres geladas para homem?


357

358

ELZA

ELZA

Gil!

Pois é, você demorou tanto a tomar uma iniciativa... O tempo passando... Cada

GIL

ano eu ficando mais velha...

Só sendo.

GIL

ELZA

E daí?

Bem, não adianta discutir mais.

ELZA

GIL

Quando a gente faz uma promessa oferece algo em troca da graça que pretende

Correto. Porém uma coisa eu devo te informar neste exato momento: a minha

alcançar...

conclusão de toda essa lenga-lenga é que, em teu próprio benefício e para o meu alívio, a

GIL

solução é... (Abre a blusa do pijama, apaga a luz e parte ao encontro dela; Elza agilmente

Sim?

acende a luz.)

ELZA

ELZA Você não tem este direito.

A graça foi alcançada, Gil, nós casamos e você devia estar muito agradecido a Santo Antônio.

GIL

GIL

Como não? Este direito, meu amor, é na realidade o único direito que o homem

E então?

tem depois que casa... (Agarra os braços dela obrigando-a a deitar.) ELZA

ELZA Agora tenho de pagar a promessa. Prometi a Santo Antônio que, se nós

Hoje não, Gil, amanhã.

casássemos, durante toda a minha primeira noite eu permaneceria virgem, em sinal de

GIL

devoção.

Fecha os olhos e conta até dez, deixa o resto por minha conta...

GIL

ELZA

(Entre surpreso e resignado.) Esta não!...

Eu explico, Gil, eu explico. Fiz uma promessa. (Desvencilha-se dele, corre para a imagem na penteadeira.) GIL Promessa??? ELZA Para Santo Antônio. GIL Promessa de quê? ELZA Para casar. GIL Que estória é essa?


359

SEGUNDO ATO

360

GIL Claro. Uma pessoa de juízo perfeito, uma pessoa que tivesse cinquenta gramas de

Horas depois. Elza está dormindo na cama e Gil no divã. A respiração de Gil é ofegante; ele desperta, ergue-se com dificuldade, ensaia uns passos, junta a garrafa do

bom senso não ia fazer uma promessa tão estúpida. Onde já se viu prometer a virgindade a santo sem consultar o noivo...

chão, bebe, põe a garrafa na penteadeira ao lado da imagem de Santo Antônio; a seguir

ELZA

acende a luz do teto. Elza desperta.

Você concordaria?

ELZA Ahn!... GIL

GIL Concordaria uma... (Diz um palavrão que não se ouve, percebe-se pelo movimento mudo dos lábios.)

Ahn o quê?

ELZA

ELZA

Gil! O que você disse?

Você me chamou?

GIL

GIL

Disse que concordaria uma... (Mesmo jogo.)

Chamar para quê? Para rezar um terço no quarto do quinto andar?...

ELZA

ELZA

Gil! Você bebeu ainda mais?

Que horas são?

GIL

GIL

Bebi. E daí?

Interessa a hora?

ELZA

ELZA

E eu que durante onze anos suspirei por esta noite conjugal.

Já é madrugada?

GIL

GIL

Isto não é uma noite conjugal: é uma noite celestial...

Acha que é?

ELZA

ELZA

Ironiza, Gil, ironiza.

Não sei, estou perguntando.

GIL

GIL

Não é mesmo? Você não fez da cama um altar?

Eu também.

ELZA

ELZA

Gil, olha o teu rosto no espelho.

Continua bebendo?

GIL

GIL

Já olhei até demais.

E você, continua com a cuca avariada?

ELZA

ELZA

Observa em que estado lastimável você se encontra.

Avariada?

GIL É, me encontro. Mas a causa do meu estado lastimável não é a bebida...


361

362

ELZA

administração da justiça divina... O que representa para você a virgindade dela na noite de

Como você se transforma quando bebe.

hoje, hein, Santo Antônio?... Você está desfrutando essa virgindade?... Se está temos aí um

GIL

caso de adultério... Se não está o que adianta o sacrifício dela?... E sobretudo o meu

Todo mundo se transforma, bebendo ou não bebendo. Você é a única pessoa na

sacrifício, o sacrifício aqui do Gil, Santo Antônio, do Gil que não tem nada a ver com a

face da terra que nunca mudou. A única mulher que de livre e espontânea vontade depois

transação de vocês?... É por isso, Santo Antônio, que o povo diz que de tanto fazer milagre

de casada se conserva igualzinha, com o selo de fábrica.

você ficou careca... Não... não... me perdoa, Santo Antônio, me perdoa... Estou falando

ELZA

asneira... Sou um sujeito desregrado... Desequilibrado... Neurótico, ela já disse... Você é

Amanhã, Gil, amanhã terá o que deseja.

boa praça, Santo Antônio, me perdoa... me perdoa que eu não presto, sou igual a todo

GIL

homem... Bom, Santo Antônio, como eu não acredito em você, e você certamente não

É aí que você se engana, é aí que comete um erro desastroso. Vou pegar hoje um

acredita em mim, chega de papo... (Afasta-se até a janela, olha para fora.) Ih! Que porre...

pileque tão grande, tão grande que durante uns quinze dias não terei força nem para dar um

(Esfrega as pálpebras e olha de novo para fora.) Já estou enxergando tudo esfumaçado...

espirro... (Aproxima-se da penteadeira onde estão a imagem e a garrafa, bebe mais.)

com mais duas doses só vejo fumaça... (Sai da janela, acende um cigarro; escuta-se um

ELZA

rumor de vozes.) Uai! Barulho? Que pileque! Já estou vendo fumaça e ouvindo vozes (O

Chega, Gil.

telefone toca.) Chi! Até o telefone... Daqui a pouco sou capaz de ouvir novamente aquele

GIL

sermão sobre Adão e Eva, vai ser de roer... (Senta-se no divã, o telefone volta a tocar, Elza

Sim senhor, quem diria!

ronca.) De novo?... É alucinação... Se não fosse ela acordava com a zuada... O jeito é

ELZA

tentar dormir senão acabo bilé... (Entra um pouco de fumaça pela janela, ele a fecha.)

De fato, quem diria, vendo você afiançar que jamais botaria na boca um pingo de

Estou completamente aluado... (O telefone toca outra vez, ele arranca o fio do telefone.) Que zonzeira... (Soa forte uma sirene, Elza desperta.)

álcool. GIL

ELZA

(Encosta a garrafa na imagem.) Eis aí dois símbolos, para você que admira

Quem me chamou?

simbolismos: o santo e a garrafa de uisque ... a virtude e o vício... a pureza e o pecado... o

GIL

céu e a terra... O teu santo e a minha garrafa... juntos, nos separando.....

Chamaram, é?

ELZA

ELZA

Gil, eu esgotei a minha capacidade de tolerância. Desta vez vou dormir um sono

Não foi você?

só. Até amanhã. (Apaga a luz do teto, deixando acesa a do abajur, toma posição definitiva

GIL

para o sono; Gil permanece diante da imagem, bebendo, indiferente a Elza que logo

Não, se alguém neste quarto te chamou deve ter sido o Santo Antônio...

adormece.)

ELZA

GIL

Tive a impressão de que me chamavam. Não era uma... um apito...

Amanhã... por que esperar o amanhã?... O amanhã é sempre duvidoso... Para

GIL

você, não, Santo Antônio felizardo... Mas para nós mortais é duvidoso sim... Estou sendo roubado, Santo Antônio... E você é o culpado de todo este drama... De toda esta comédia... Por que você ajuda a mulherada, Santo Antônio, usando o prestígio que tem para fazer milagre e receber em troca bons presentes?... Isto é corrupção ativa, crie contra a

Você está mais embriagada do que eu. Embriagada de ilusão. É a pior embriaguez, ouviu? A tua velhice toda vai ser uma enorme ressaca...


363

364

ELZA

GIL

Uma pena eu acordar. Estava sonhando. Um sono tão formoso. Imagina, Gil, no

Fechou o tempo lá embaixo.

sonho tinha nuvens.

ELZA

GIL Nuvens cinzentas anunciando tempestade ou nuvens brancas “decorando” o

Não é desordem. (Vai à janela, abre-a porém logo a fecha porque a fumaça ameaça invadir.)

firmamento?...

GIL

ELZA

Você também?...

Não lembro. Havia estrelas...

ELZA

GIL

É fumaça, Gil.

Estrelas de cinco pontas ou estrelas desapontadas?...

GIL

ELZA

Sim, é fumaça, pensei que não, mas é, não viu?

Havia flores. Rosas vermelhas que pareciam pedaços do teu pijama. Havia um

ELZA

coro de vozes... (Ressurge o rumor de vozes.) Que barulho é este? GIL

Deve ser incêndio. Telefona para a portaria e indaga. (Gil coloca o fone no ouvido.)

Você ouviu?

GIL

ELZA

Se for incêndio é um incendiozinho de araque.

Por que não haveria de ouvir?

ELZA

GIL

Liga, Gil.

Então, eu não estou delirando... (O rumor aumenta e diminui.)

GIL

ELZA

Não dá sinal. Mixou.

Será que da janela dá para ver?

ELZA

GIL

Não brinca com coisa séria, liga.

Deve ser confusão na rua. O pau está comendo... (Os ruídos crescem.)

GIL

ELZA

É certo, não dá sinal.

Ainda bem que não ficamos no segundo andar. (Toca a sirene.)

ELZA

GIL

Você me deixa nervosa.

Ouviu?

GIL

ELZA

É justo. Você não me deixou nervoso todo esse tempo? (Som de sirene.)

É uma sirene. Foi esta sirene que me acordou.

ELZA

GIL

Olha a sirene, ouve. Ai! Meu DEUS, me dá este aparelho. (Toma o telefone dele.)

Deve ser ambulância. Alguém pifou.

GIL

ELZA

Deu sinal?

Gil, tive um pressentimento.

ELZA Não, por quê?


365

366

GIL

GIL

Ah!...

(Movimentando-se) Estou indo.

ELZA

ELZA

O que é?

De pijama?

GIL

GIL

Eu arranquei o fio.

O que tem?

ELZA

ELZA

O fio? Você arrancou o fio do telefone?

Veste ao menos uma calça por cima. Não, vai assim mesmo.

GIL

GIL

Foi... ELZA

Nesta lua de mel e de fel está acontecendo tudo. Também, começou acontecendo o impossível...

Mas por que, Gil?

ELZA

GIL

Gil, com pressa.

Esta droga não parava de tocar, você não acordava, eu estou mais ou menos

GIL

bêbado, pensei que fosse alucinação alcoólica. ELZA Gil, você sabe o que você fez? GIL

Não demoro. (Sai) ELZA Meu DEUS... (Fica sem saber o que fazer, liga o rádio-eletrola, aumenta o volume, ouve-se uma voz de locutor, à princípio confusa.)

É...

LOCUTOR

ELZA

Alô estúdio... alô estúdio... alô estúdio... técnica.. alô técnica...

OK... OK...

Com certeza estavam telefonando da portaria para avisar ...

Atenção, ouvintes, muita atenção... Sensacional furo de reportagem. Nossa emissora entra

GIL

no ar, esta hora, numa edição extra a fim de noticiar, em absoluta primeira mão, o incêndio

Dei uma mancada, já sei, não precisa me responsabilizar pela catástrofe.

de proporções ainda ignoradas que irrompeu há poucos momentos no Hotel Central.

ELZA

ELZA

Minha Nossa Senhora, Gil...

Minha Nossa Senhora, o incêndio é aqui!

GIL

LOCUTOR

Sou um estúpido, estou de pleno acordo.

Estamos fazendo esta transmissão diretamente do local do sinistro, isto é, quer

ELZA

dizer, da loja que fica defronte, a tradicional Casa da Paz, aquela que vende mais barato e

Faz alguma coisa.

só vende o que é bom. O fogo, caríssimos ouvintes, lavra no quarto andar de maneira

GIL

impressionante.

Faço, vou dar uma olhada lá embaixo.

ELZA

ELZA

Quarto andar? Minha Santa Mãe do Céu!

Vai e volta já-já.


367

368

LOCUTOR

GIL

Até o presente minuto, salvo erro, lapso ou omissão, não há vítimas registrar,

Não se pode, está ralado.

entretanto a situação é caótica.

ELZA

ELZA

Vamos de qualquer maneira.

Ai! Meu Santo Antônio, valei-me!

GIL

LOCUTOR

Não podemos.

Existem três apartamentos no quinto andar e, segundo informações da gerência do

ELZA

hotel, todos estão ocupados. Os prejuízos são... já foram ou deverão ser, incalculáveis.

Anda, vamos.

(Breve pausa.) Atenção ouvintes, segundo dados que acabamos de colher apenas uma das

GIL

famílias do quinto andar, somente uma, conseguiu descer antes do elevador enguiçar.

Não dá pé.

ELZA

ELZA

Enguiçou, meu DEUS, e Gil não chega.

Vamos, Gil.

LOCUTOR

GIL

Os bombeiros, nossos bravos soldados do fogo, lutam heroicamente, no entanto,

O elevador engatou. E o fogo bloqueou inteiramente a escada.

as chamas se alastram cada vez amis como lobas famintas... é um espetáculo tenebroso,

ELZA

ouvintes, e o pior é que o carro-tanque dos bombeiros não tem capacidade para muita água.

Não!

Nós bem que temos chamado atenção para o fato, nós bem que temos verberado a

GIL

inoperância da Prefeitura, nós bem que temos sustentado uma campanha patriótica contra o

Infelizmente estamos de azar.

descalabro administrativo que impera em nossa cidade, cujo atraso é fruto da incúria de

ELZA

seus dirigentes. (Gil invade a cena tossindo, cabelos desgrenhados; Elza desliga o rádio;

E agora?

clarões avermelhados surgem por trás da vidraça da janela; daqui para frente os clarões,

GIL

rumores de vozes e soar da sirene quase não cessam mais, alternam-se e se misturam, ora

O incêndio é no andar abaixo do nosso.

alto, ora baixo.)

ELZA

ELZA

Sei. Ouvi pelo rádio.

Gil!

GIL

GIL

Pois é.

Elza, meu amor.

ELZA

ELZA

O rádio disse que o carro dos bombeiros não tem água.

Vamos embora.

GIL

GIL

Deve ter, você ouviu mal.

Não se pode.

ELZA

ELZA

O que a gente faz, Gil?

Vamos sim.

GIL Confia nos bombeiros. Em cada dez incêndios eles conseguem apagar uns três...


369

370

ELZA

ELZA

E se eles não conseguirem vencer o fogo?

Vamos arriscar descer, Gil.

GIL

GIL

Estamos fritos...

Se a gente arriscar descer chega lá embaixo como galeto de restaurante ...

ELZA

ELZA

Se não conseguirem apagar o incêndio, Gil?

Estamos perdidos.

GIL

GIL

Vai ser de morte...

Os bombeiros não vão nos achar...

ELZA

ELZA

Precisamos fazer alguma coisa.

A gente desce ligeiro, nem que se queime as pernas é melhor.

GIL

GIL

Não se pode fazer nada.

E a fumaça, Elza, e a fumaça?

ELZA

ELZA

Vamos tentar descer pela escada. (Faz menção de sair, Gil a detém.)

O que é que tem a fumaça?

GIL

GIL

Está louca?

Sufoca. Mata sufocado.

ELZA

ELZA

Por quê?

Não mata. Tapa-se o nariz.

GIL

GIL

A escada virou um fogareiro. E o fogo já atingiu nosso corredor. Só em me

Puxa! Como você é tola. Não sabe que a maioria das pessoas que se acabam em

aproximar meio metro quase me torno um churrasco...

incêndio morrem sufocados pela fumaça?

ELZA

ELZA

A gente tenta descer correndo.

É?

GIL

GIL

Não dá, meu amor.

Claro que é.

ELZA

ELZA

E o que a gente faz?

Que horror.

GIL

GIL

Espera um pouco, os bombeiros estão trabalhando, eles tem experiência.

Tem calma.

ELZA

ELZA

Mas não tem água.

Estou aflita.

GIL

GIL

Arranjam.

Aflição não resolve.


371

372

ELZA

ELZA

Não posso ficar parada.

E como você faz eu desmaiar?

GIL

GIL

Pode.

Um murro na testa...

ELZA

ELZA

Tenho que fazer alguma coisa.

Não, Gil, não faça isto.

GIL

GIL

Não adianta fazer nada.

Então se comporte como uma pessoa adulta.

ELZA

ELZA

Mas eu preciso, Gil, eu preciso fazer alguma coisa. O que é que eu faço, Gil?

Ai, meu DEUS, que angústia!

GIL

GIL

Não sei. Reza... se bem que ainda não é hora de rezar. ELZA

É questão de mais alguns minutos e tudo terminará em paz. Em paz ou em cinzas...

Gil, eu estou nervosa demais.

ELZA

GIL

Gil, você me ama?

Por favor, Elza.

GIL

ELZA

Claro que amo.

Eu estou uma pilha de nervos.

ELZA

GIL

Gil você... me ama mesmo?

Não perde o controle. O negócio é se controlar. Você começou tão bem,

GIL

controlando a natalidade...

Elza, o que é isto?

ELZA

ELZA

Acho que vou entrar em crise.

Gil, me abraça...

GIL

GIL

Atrapalha tudo. ELZA

Não deixa que o nervosismo te domine senão a gente vai para o beleléo mais cedo.

Acho que vou ter uma crise de choro.

ELZA

GIL

Gil, a nossa vida está em perigo, não percebe? A nossa vida está em perigo!

Se perder o controle eu sou obrigado a fazer como s faz com náufrago.

GIL

ELZA

Está.

Fazer o quê?

ELZA

GIL

Vamos tentar sair, Gil.

Fazer você desmaiar para não cometer uma imprudência.

GIL Não! Não e não!!!


373

374

ELZA

ELZA

A minha cabeça está rodando com este calor.

Gil, meu querido, o fogo chegou aqui.

GIL

GIL

Senta um instante.

O fogo não, a fumaça, não exagera.

ELZA

ELZA

Creio que vou ter um passamento.

O fogo vem atrás, Gil.

GIL

GIL

Isto passa...

Calma, meu amor, calma.

ELZA

ELZA

Liga o rádio, Gil... Não, não liga... Liga, estão irradiando... Não, é preferível não

Gil eu vou chorar... Eu vou gritar... Eu preciso, eu preciso chorar e gritar.

ouvir...

GIL GIL

Elza, você me contagia com este teu nervosismo.

Enquanto você resolve se liga ou não liga eu vou ao banheiro... (Entra no

ELZA

banheiro, Elza liga o rádio.)

Você está apavorado, não está?

LOCUTOR

GIL

A situação, ouvintes, é cada vez mais escabrosa... quero dizer, calamitosa. Da

Não...

janela de um apartamento do quinto andar surgem jatos de fumaça preta, aliás preta não,

ELZA

negra. O cidadão que se jogou do quinto andar teve morte horrível.

Está sim, não finge.

ELZA

GIL

(Gritando) Gil, vem escutar.

Apavorado não é bem o termo. Estou começando a ficar meio desequilibrado...

LOCUTOR

ELZA

O corpo ficou irreconhecível e já foi levado para o necrotério público que, como

Gil, eu não suporto mais fazer nada... O que faço?

os senhores e as senhoras sabem, encontra-se em péssimo estado de conservação, não

GIL

oferecendo o mínimo de conforto aos seus usuários...

Vai ao banheiro...

ELZA

ELZA

(Alto) Gil, não aguento mais nem um minuto, vamos embora de qualquer maneira.

Gil, tem pena de mim, me ajuda a fazer alguma coisa.

GIL

GIL

(Saindo do banheiro.) O que foi?

Reza... Reza, meu amor, faz uma promessa...

ELZA

ELZA

Temos de sair. (Desliga o rádio, abre a porta de saída, solta um grito de terror; Gil tranca a porta por onde também penetra fumaça sob clarões vermelhos.)

É, só se for... (Segura a imagem, ajoelha-se, balbucia uma prece; Gil liga o rádio.)

GIL

LOCUTOR

Eu não disse?

Ao que tudo indica, ouvintes, são remotas as possibilidades de serem evitados maiores danos, inclusive novas vítimas. Os encurralados hóspedes, digo, infortunados


375

376

hóspedes do quinto andar... Atenção, atenção... Alguém vai saltar novamente por uma das

ELZA

janelas do quinto andar... Uma cena dantesca, ouvintes indescritível. (Ouve-se uma

Não há salvação, Gil, não vê que não há salvação?

explosão.)

GIL

ELZA

Há, para você há, pelo menos na outra vida. Eu é que estou liquidado,

Explosão?

definitivamente liquidado, eu e o meu livro.

GIL

ELZA

É... explodiu.

E eu, Gil? E eu? Morrer logo hoje?

ELZA

GIL

O que terá sido?

Se você morrer irá para o céu, meu amor, te lembre disso, já é um consolo. E eu

GIL

que irei para o nada? E o meu livro que não irá para parte alguma?...

Como se pode saber? Vai ver que alguém pulou pela janela montado num barril de pólvora...

ELZA Gil, em uma hora como esta você tem coragem de se preocupar mais com seu

ELZA

livro do que comigo?

Gil, é o fim, querido, você também não acha que é o fim?

GIL

GIL

Esta é uma hora muito especial, Elza, talvez a gente esteja diante da morte.

Não sei, já não sei mais de nada...

ELZA

ELZA

E é hora de pensar em livro?

É o fim, eu sinto que é o fim. Diga que é, Gil.

GIL

GIL

É hora de pensar naquilo que se ama...

Talvez.

ELZA

ELZA

E você não me ama, Gil?

É o fim... é o fim... é a morte, Gil... é o fim da nossa vida...

GIL

GIL

Amo, Elza, amo.

(Começando a perder

domínio dos nervos.) Meu amor, me ajuda a não

desesperar. Tem fé, cadê tua fé?

ELZA E como não concentra em mim a sua preocupação?

ELZA

GIL

Nós vamos morrer, Gil, é o fim de tudo, é a fatalidade...

Você tem DEUS por você. O meu livro só tinha eu por ele.

GIL

ELZA

Pensa em DEUS. Pede. Suplica. Implora. Ele te atenderá.

Gil, deixa de dizer bobagem, isto não é hora de ficar pensando em coisas indignas.

ELZA

Quem sabe se o que está acontecendo não é um castigo pelas blasfêmias que você escreveu

Não vai atender, Gil, não vai atender.

naquele livro?!

GIL

GIL

Vai sim, você merece, é devota, DEUS não abandonará você.

Você acha?


377

378

ELZA

GIL

Acho. Com uma literatura tão imunda, com uns poemas tão sujos, cheios de

Eu não quero “projetar” coisa nenhuma, sua Assistente Social beata e pretenciosa.

sacrilégios, você não podia esperar um futuro feliz.

O fato é que tua carolice estragou por completo a nossa lua de mel, com essa besteirada de

GIL

virgindade oferecida a Santo Antônio. Estragou a nossa lua de mel como estragou o nosso

É? E se você sabia disso por que amarrou o teu futuro ao meu?

namoro e o nosso noivado, como estragou a minha obra poética que já podia estar sendo

ELZA

lida por toda a cidade se você não exigisse que eu somente a publicasse depois do

Não sei, sei que estamos sendo castigados por sua causa. Você escreveu naquele

casamento para não provocar escândalo na paróquia. Elza, quer saber mais o quê? Nós

livro que uma aula podia ser mais importante que uma procissão, que um hospital podia

estamos à beira da morte, é a ocasião de lavar a alma, de mandar para o inferno o

valer mais do que uma igreja.

fingimento, de rasgar o manto de mentira que a vida vestiu em nós. Nem eu amo mais a

GIL

você do que a minha poesia, nem você me ama mais do que a tua religião. E porque somos

Elza, você me ama ou me odeia? Hein? Ama ou odeia? Você me odeia, Elza, no

duas criaturas frustradas, eu porque não me realizei como escritor, você porque não se

fundo me odeia porque ninguém acusa uma pessoa que ama diante da morte ...

realizou como freira, e porque somos duas criaturas desencontradas consigo mesmas,

ELZA

estamos em contradição uma com a outra, compreende? É possível que este incêndio seja

E você, que prova de amor de amor me dá nesta hora esquecendo o meu destino

mesmo providencial. É possível que a morte seja para nós a melhor alternativa.

para se preocupar com a porcaria do seu livro? Quem sabe se este incêndio não foi

ELZA

mandado pela Providência Divina para queimar o que você escreveu antes de ser publicado

Você disse tudo o que desejava? Pois então...

e envenenar muitos corações? A única coisa que eu lamento é não ter seguido a minha

GIL

vocação.

Não, ainda não disse tudo. Eu agora sei que você nunca me amou. Você jamais GIL

me fez um carinho, jamais teve um gesto meigo comigo, e ninguém ama sem ternura.

Eu também lamento isso ...

Sempre me olhou como um transviado, um pecador necessitado de absolvição. Casou para

ELZA

operar a minha recuperação moral como esposa entendida em Psicologia, para fazer como

Ironiza, você é mesquinho, mas do sentimento de culpa não se livra.

leiga aquilo que gostaria de fazer como religiosa e assim se justificar perante a si própria se

GIL

perdoando por não ter entrado para o convento. Porque não entrou de vez no convento, é

(Perdendo afinal o domínio dos nervos e mergulhando, emocionalmente, na faixa

que não consigo compreender... Eu fui o seu eleito, Elza, mas eleito não para ser amado e

histérica de Elza.) Olha, eu ia ficar calado, porém você me massacrou tanto que vou

sim para ser purificado pelo toque mágico da sua virtude. E o triste é que isto me agradava.

desabafar. Se alguém tem culpa desta situação trágica é você, ouviu? É você!!!

Agradava até a pouco, quando eu ainda tinha esperança de viver.

ELZA

ELZA

Eu???

É bom que você desabafe porque eu...

GIL

GIL

Sim!!! Você mesma!!! Foi você quem escolheu o quinto andar, eu queria o segundo. Pode começar a sentir arrependimento ou remorso.

Porque você também vai desabafar, eu sei. É o que nos resta: desabafar, neste terrível abafamento de calor e fumaça. Somos duas ilhas humanas: duas porções de

ELZA

desespero cercadas de fogo por todos os lados. Observa os clarões na vidraça: as labaredas

Eu não disse que você é mesquinho? Agora quer se libertar do sentimento de

vem se aproximando como línguas de serpente.

culpa projetando a responsabilidade para mim.


379

380

ELZA

frigideira no fogão aceso. Enlouquece você também, enlouquecer é sublime. Enlouquece

Você é um ingrato. Se a gente se salvar vou desfazer o nosso casamento.

comigo, faz um esforço – rebenta! Quer que eu ajude você? Repara, o fogo vem vindo, o

GIL

fogo é implacável, o fogo dilacera, o fogo consome ... (Ouve-se um grito.) Ouviste? Talvez

É tarde. Não haverá a menor possibilidade de termos esta satisfação...

seja uma criança que está sendo assada na brasa para que eu seja castigado... Olha, os

ELZA

clarões do fogo, olha como o fogo é vermelho, é vivo, olha as faíscas, parecem pássaros do

Você é tão indigno quanto o seu livro.

Inferno voando... E nós também podemos voar, podemos sair daqui voando nas asas da

GIL

loucura...

Sou. Conscientemente. E assumo a minha indignidade enquanto você não assume

ELZA

a sua santidade... há uma diferença básica entre nós, compreende? Uma diferença

Por DEUS, você ficou mesmo louco?

essencial.

GIL

ELZA Eu sabia que você era um canalha. O que nunca julguei é que pudesse me maltratar em uma hora como esta. Sou uma desgraçada. (Chora sem muita disposição.) GIL Não adianta se derramar em lágrimas. Continua me acusando, é isto que você precisa. Berra o teu ódio, berra. Chama nome, diz palavrão, rebenta em fúria sagrada.

Enlouquece também. Olha, louco a gente pode fazer milagre, em vez de ficar pedindo... (Ouve-se mais explosões por entre o tumulto de vozes e os clarões rubros.) Escutaste? Trovões... Gargalhadas celestes... O Santo não aceitou o pagamento da tua promessa... O céu está rindo da tua virgindade... ELZA Gil, você está me contaminando com essa maluquice, você está me destruindo.

ELZA

GIL

Você é um cretino. Não é um homem, é um moleque.

Vês? Santo Antônio começa a vir em teu auxílio. A mim, que sou impuro, ele já

GIL

amparou. Faz um esforço, não há outra saída – rebenta! Você sempre viveu coberta de

Isto, começa a rebentar.

gelo, petrificada no gelo do misticismo, do preconceito. Quebra esse gelo com o martelo da

ELZA

loucura, quebra que esse gelo jamais se dissolve, nem no calor de mil incêndios... Vamos,

É um patife!

rebenta essa crosta fria que te envolve, que te aprisiona, rebenta e te liberta... Não é

GIL

possível esmagarmos a própria natureza, não é possível sermos o que não somos

Continua. Vomita tudo.

eternamente, rebenta neste momento antes que seja tarde. Elza, rebenta como um vulcão e

ELZA

atira para fora de tudo o que ferve dentro de ti – rebenta!!!

Vomito, sim, porque tenho nojo de você. Nojo.

ELZA

GIL

Por favor, Gil, chega! Já estou a ponto de sair correndo doida.

Obrigado pelo elogio.

GIL

ELZA

Se enlouqueceres não precisarás sair correndo, os loucos nunca correm... Que

Você é um maluco, ouviu? Um maluco!

maravilha, Elza, os loucos nunca fogem...

GIL

ELZA

Sou. Mas a minha loucura é mais honesta que a tua impostura. Experimenta você

Gil, para! Para!!!

também enlouquecer, experimenta. A loucura é uma revelação. Este calor não esquenta o teu cérebro, os teus miolos, o teu crânio? A minha cabeça eu já sinto como se fosse uma


381

382

GIL

(Explosões)

Vamos, já estás quase no ponto, acredita em mim, não resiste, não recua, vamos,

Ouviste?

um pouco mais, somente um pouco. Depois do primeiro passo tudo é fácil, basta seguir em

Sou um general de Napoleão no campo de batalha.

frente de olhos fechados e imaginação aberta ... A imaginação, usa a imaginação, despreza

O troar dos canhões saúda a minha bravura.

o raciocínio, o raciocínio é traiçoeiro, só serve para enredar a gente da teia do artificial, do

Fazendo estremecer bandeiras e cadáveres.

calculado, não conduz a nada de grande e de belo... a imaginação é diferente. Elza, a

O triunfo se aproxima e a glória me espera.

imaginação corta as correntes do impossível e nos solta no espaço azul do horizonte... Abre

A morte me rodeia e o futuro-me chama.

a porta da imaginação com chave da loucura, rebenta, Elza, rebenta!!!

O troar dos canhões saúda minha bravura.

ELZA

(Clarões avermelhados.)

Meu DEUS eu acabo louca, não aguento mais! Não aguento mais!!! (Tenta abrir

Viste?

a porta de saída e outra vez a fecha para impedir a penetração da fumaça e do fogo; corre

Sou um mártir que vai ser imolado em circo romano.

até a janela e executa o mesmo jogo.)

A fogueira está acesa e crepitante.

GIL

Fanáticos se comprimem em febril expectativa.

Enlouquece, te mira no meu exemplo, vê como me sinto, observa a minha lucidez.

Do alto da tribuna oficial César me contempla.

Eu ainda estou raciocinando. Mas entre as sombras de um raciocínio e outro a minha

Seus olhos brilham como duas tochas flamejantes.

imaginação lança fagulhas resplandecentes. Eu me sinto como Gil e como Santo Antônio...

A fogueira está acesa e crepitante ...

Numa fração de segundo, mais do que isto, ao mesmo tempo, eu te odeio e te amo, eu

ELZA

estou aqui encarcerado, neste quarto, e estou lá fora flutuando, no infinito... presta atenção

Gil, eu estou sentindo uma coisa estranha dentro de mim.

para mim, me olha por dentro... Eu sou o que, um marido?... Sim e não... Eu sou um

GIL

poeta?... Não e sim... (Som de sirene.)

Rebenta, Elza!

Ouves?

ELZA

Sou um mendigo vagabundo, sangrando ferido, e vão me levando para o hospital.

Eu estou sentindo vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo.

A sirene da ambulância soa como um gemido de dor chorando por mim.

GIL

Talvez eu não seja internado por falta de documentos.

É um bom sinal. Faz as duas coisas juntas.

E pela notícia de jornal ninguém saberá o meu nome.

ELZA

A sirene da ambulância soa como um gemido de dor chorando por mim ...

Não zomba, Gil, até em relação a você eu estou sentindo duas coisas diferentes...

(Rumor de vozes.)

GIL

Estás ouvindo?

Ótimo, é o princípio da tua redenção.

Sou um orador político discursando em praça pública.

ELZA

Vozes estimulantes me fazem continuar. Já sequei todas as fontes da eloquência.

Alguma coisa está acontecendo dentro de mim. Alguma coisa está se partindo dentro de mim...

Meu verbo se arrasta como vento sem direção.

GIL

Erguendo a poeira de ideais utópicos.

Deixa partir, deixa rebentar.

E vozes estimulantes me fazem continuar ...


383

384

ELZA

GIL

Alguma coisa está surgindo na raiz do meu íntimo...

De que modo?

GIL

ELZA

Deixa surgir, deixa tomar conta de ti.

Não sei dizer...

ELZA

GIL

(Cerra os olhos) É esquisito.

Tem de saber.

GIL

ELZA

O quê?

Não sei...

ELZA

GIL

(Mantendo os olhos fechados.) Estou me recordando de tudo...

Continua falando.

GIL

ELZA

Tudo o quê?

É difícil explicar...

ELZA

GIL

Tudo que fui...

Não tenta explicar nada, continua falando.

GIL

ELZA

Quando?

Falando como?...

ELZA

GIL

Desde menina...

Com a boca.

GIL

ELZA

É?

Estou indo para longe...

ELZA

GIL

Não apenas recordando... Estou revivendo...

Vai.

GIL

ELZA

Como?

Cada vez mais distante...

ELZA

GIL

Não sei... Estou revivendo o passado...

Vai.

GIL

ELZA

Todo o passado?

Você está me ouvindo?...

ELZA

GIL

Todo...

Estou.

GIL

ELZA

Duma vez?

Está me entendendo?...

ELZA

GIL

Mais ou menos...

Não, mas não importa. Continua falando.


385

386

ELZA

GIL

Falando o quê?...

Não.

GIL

ELZA

Palavras.

Não me critica?...

ELZA

GIL

É uma espécie de viagem que estou fazendo...

Não.

GIL

ELZA

Viagem?

Não me força seu quiser voltar?...

ELZA

GIL

Uma viagem ao contrário...

Não.

GIL

ELZA

Sim...

Estou revivendo...

ELZA

GIL

Do avesso.

Revivendo o quê?

GIL

ELZA

Sim.

Ideias...

ELZA

GIL

Você entende?

E o que mais?...

GIL

ELZA

Continua.

Fatos... Emoções...

ELZA

GIL

Você está perto de mim?...

Desenterra do esquecimento todas as tuas lembranças. Desenterra todas as

GIL

sementes.

Estou.

ELZA

ELZA

Estou desenterrando...

Está me acompanhando?...

GIL

GIL

Cava o chão da memória. Cava com a enxada da loucura. Cava sofridamente.

Estou.

Cava fundo.

ELZA

ELZA

Está me protegendo?...

Estou cavando...

GIL

GIL

Estou.

Cava sem medo!

ELZA

ELZA

Não me larga?...

O medo... o medo... eu tenho medo...


387

388

GIL

ELZA

Enfrenta o medo.

Estou me sentindo mocinha...

ELZA

GIL

Não posso enfrentar...

Segue.

GIL

ELZA

Pode. Enfrenta.

Estou me sentindo no colégio...

ELZA

GIL

Não posso. Está crescendo...

Continua.

GIL

ELZA

O quê?

Fazendo um bilhete...

ELZA

GIL

O medo...

Para quem?

GIL

ELZA

Medo de quê?

Para você...

ELZA

GIL

Do medo...

Obrigado. Continua.

GIL

ELZA

Enfrenta, o medo é a tua algema – rompe a algema!

Estou me sentindo menor...

ELZA

GIL

Não posso.

Segue.

GIL

ELZA

O medo é a tua grade – arromba a grade!

Na aula...

ELZA

GIL

Não posso...

Sim.

GIL

ELZA

Pode, Elza, rebenta!

De catecismo...

ELZA

GIL

Gil...

Sai logo dessa aula.

GIL

ELZA

Fala.

Não...

ELZA

GIL

Estou me sentindo mais nova...

Sai!

GIL

ELZA

Sim?

Eu gosto...


389

390

GIL

ELZA

Por quê?

Estou me sentindo criança...

ELZA

GIL

Porque... ele me perdoa... sempre me perdoa...

Prossegue.

GIL

ELZA

Perdoa o quê?

No bosque...

ELZA

GIL

Uma coisa grave... um pecado mortal...

Sim.

GIL

ELZA

Que pecado?

Correndo...

ELZA

GIL

Não sei... não posso saber... não quero saber...

Corre.

GIL

ELZA

Tem que saber.

Árvores...

ELZA

GIL

Não quero!...

Sim.

GIL

ELZA

Tem de querer.

Minha irmã...

ELZA

GIL

Não!...

Sim.

GIL

ELZA

Sim!

Linda...

ELZA

GIL

É horrível!...

Sim. Você também.

GIL

ELZA

O quê?

Não, ela é mais linda do que eu...

ELZA

GIL

Não sei, mas é horrível...

Continua.

GIL

ELZA

Continua.

Ela é mais inteligente do que eu...

ELZA

GIL

Estou diminuindo...

Continua.

GIL

ELZA

Prossegue.

Graciosa... Ela é mais querida do que eu...


391

392

GIL

ELZA

Continua.

Estamos bem alto...

ELZA

GIL

As pedras...

Sim.

GIL

ELZA

Sim.

Gil!!!

ELZA

GIL

Estamos subindo pelas pedras...

O que foi?

GIL

ELZA

Sobe.

Ela escapuliu!... Meu DEUS, ela caiu lá embaixo!...

ELZA

GIL

É muito alto... estamos subindo...

Hein?

GIL

ELZA

Sobe.

Escapuliu da minha mão... Eu não empurrei!... Não empurrei!...

ELZA

GIL

Escorrega...

Que desastre.

GIL

ELZA

Cuidado.

Gil...

ELZA

GIL

Tirei o sapato, está liso...

Diz.

GIL

ELZA

Sim.

Acabou a viagem...

ELZA

GIL

Ela não quer...

Não acabou.

GIL

ELZA

Deixa.

Tenho de voltar...

ELZA

GIL

Não deixo não... Ela tem que ir lá em cima comigo... ela não é melhor que eu...

Não.

GIL

ELZA

Continua.

Tenho sim...

ELZA

GIL

Ela está indo contra a vontade...

Não!

GIL

ELZA

Sim.

Você prometeu não me forçar...


393

394

GIL

ELZA

É para o teu bem. Prossegue. Prossegue até rebentar com o teu medo.

Não ouço nada, só passarinho cantando...

ELZA

GIL

Você está do meu lado?...

Sim.

GIL

ELZA

Estou.

Tem árvores de novo... Perto tem árvores...

ELZA

GIL

Não está, não...

Sim.

GIL

ELZA

Estou sim.

Mas vejo...

ELZA

GIL

Eu não sinto...

O quê?

GIL

ELZA

Presta atenção.

Um portão de ferro...

ELZA

GIL

Eu estou me sentindo ao lado do meu pai...

Entra.

GIL

ELZA

É?

Não posso...

ELZA

GIL

Estou me sentindo em companhia de minha mãe...

Pode.

GIL

ELZA

Sim.

Não...

ELZA

GIL

Caminhando...

É uma ordem: entra!!!

GIL

ELZA

Então caminha.

É o portão do cemitério!...

ELZA

GIL

Muita gente andando atrás de nós... devagar...

Avança. Firme.

GIL

ELZA

Sim.

Gil, tem compaixão de mim!...

ELZA

GIL

Todo mundo calado... GIL Sim.

(Pousa as mãos em cima dos olhos dela que ainda se conservam fechados.) Segue e olha tudo de frente! Sem tremer!


395

396

ELZA

GIL

Uma sepultura... para minha irmã... minha única irmã... parece uma boneca

Elza...

loura... sorrindo em silêncio... pálida como cera... os bracinhos cruzados sobre o peito...

ELZA

vestida de anjo... no caixão todo branco...

Acredita, Gil... eu te amo.. eu te amo...

GIL

GIL

(Afasta-se, sensibilizado.) É trágico demais...

Sim.... Compreendo...

ELZA

ELZA

(Abre os olhos desmesuradamente com ar de espanto, deixando transparecer que

Eu te amo mais do que tudo na vida...

toda a estrutura do seu caráter oscila nos alicerces; por um instante ainda tenta

GIL

equilibrar-se num supremos esforço mas já é tarde para recompor as bases da

Eu sei... Eu creio...

personalidade; afunda então em pranto compulsivo, avassalador.) Eu vou morrer... nós

ELZA

vamos morrer... vamos morrer... nós vamos morrer... eu vou morrer... você vai morrer... me

Não sabe não, Gil, eu te amo mais do que a religião...

perdoa, Gil... me perdoa tudo o que eu fiz... me perdoa, Gil, me perdoa...

GIL

GIL

Meu amor, eu...

Não há nada para perdoar.

ELZA

ELZA

Eu te amo mais do que todas as igrejas... Eu juro, Gil, eu juro...

Não, me perdoa... me perdoa por não ter deixado você publicar o livro...

GIL

GIL

Não precisa jurar.

Esquece isto.

ELZA

ELZA

Gil, acredita, eu sempre fui apaixonada por você.

Gil, me perdoa por ter feito aquela promessa ...

GIL

GIL

Sim, Elza.

Calma, te acalma.

ELZA

ELZA

Eu sempre achei você genial, Gil... Eu adoro as poesias que você escreve, todas

Gil, meu amor, me perdoa por ter escolhido este apartamento no quinto andar...

elas...

GIL

GIL

Nada há para ser perdoado, você não fez por mal.

Obrigado, meu amor, muito obrigado.

ELZA

ELZA

Gil, meu querido, você tem razão... manda por mim tudo para o inferno...

Gil, você me ama? Nós vamos morrer, não me engana.

GIL

GIL

Elza, o que é isto?

Amo sim, Elza, amo.

ELZA

ELZA

Gil, me perdoa por não ter sabido te amar...

Gil, nós vamos morrer, não vamos?


397

398

GIL

ELZA

A menos que aconteça um milagre, vamos morrer sim, meu amor.

(No auge do desespero.) É bonito para você que viveu a sua vida. Eu não vivi a

ELZA

minha. Você se divertiu, você bebeu, você brincou. Você fez tudo o que quis. Eu não, eu

Se depender de milagre nós morreremos. Já não acredito em mais nada.

diz mais jejuns do que passeios, eu deixei para depois as minhas alegrias, eu me

GIL

mortifiquei com penitências para resistir a tentação das coisas boas, eu gastei a minha sorte

É preciso acreditar, é preciso...

sem comprar nada, eu me esqueci de mim na vida.

ELZA

GIL

Não, já não acredito, já não posso acreditar.

Vamos rezar, eu rezo com você.

GIL

ELZA

Elza, meu amor, reúne as tuas energias e reza. Quem sabe se DEUS não existe

Não, eu já rezei de sobra, eu agora estou é revoltada, revoltada contra tudo!

mesmo?...

GIL

ELZA Se existisse não tinha nos abandonado... Você tem razão, Gil, a vida é um

Elza, vamos rezar... Eu confesso que... Estou sentindo uma vontade imensa... Uma necessidade imensa de rezar...

absurdo, a vida não tem sentido.

ELZA

GIL É... Talvez a vida não tenha sentido... mas a morte tem sentido... DEUS deve

E eu estou sentindo uma necessidade imensa de mandar tudo a... (Pelo movimento mudo dos lábios percebe-se o palavrão.)

existir...

GIL ELZA

Elza! Pelo amor de DEUS!

Não existe, é tudo invenção.

ELZA

GIL

Gil, chegou a minha vez, você enlouqueceu de propósito mas eu estou

Elza, não estou te reconhecendo. Reza, busca a tua fé e reza. Não deixa escapar a esperança, ainda estamos respirando, não deixa a esperança sumir...

enlouquecendo sem querer, você enlouqueceu de mentira mas eu estou enlouquecendo de verdade.

ELZA

GIL

Já não há lugar para a esperança.

Olha, meu amor, você está perturbada, eu acho que vou começar a rezar sozinho...

GIL

ELZA

Então não há lugar para mais nada...

Chegou a minha vez de rebentar, Gil, de REBENTAR!!!

ELZA

GIL

Gil, nós vamos morrer. Nós vamos morrer!

Elza, você...

GIL

ELZA

Pelo menos vamos morrer rezando...

Gil, você me ama, não ama?

ELZA

GIL

É inútil. GIL Mas é bonito... pelo menos é bonito...

Claro, eu sempre fui também apaixonado por você, eu sempre adorei o teu espírito religioso, vamos rezar...


399

400

ELZA

GIL

Gil, me beija!!!

Toma o teu Santo Antônio, te ajoelha com ele e oferece tua alma a DEUS... eu

GIL

não sei rezar ajoelhado olhando para santo, vou rezar em pé olhando para mim mesmo...

Sim, mas agora?...

(Posta-se diante do espelho, fitando a própria imagem.)

ELZA Gil, me beija!!! GIL Elza, o momento não é próprio... (Ele fica sem jeito; os rumores e clarões atingem maior intensidade.)

ELZA (Arranca do corpo a camisola branca e ajoelha-se em cima da cama.) Vem, Gil, vem! Vem que eu sou tua! Vem que eu sou tua! Vem me possuir toda, inteira! Vem logo! GIL (Em êxtase.) Não interrompe, meu amor... Eu... Eu estou vendo DEUS em mim...

ELZA

ELZA

É a morte. Chegou o fim.

Gil, por piedade, vem! O meu corpo está incendiado! O meu corpo está ardendo!

GIL

O meu corpo está em fogo! Vem!

Chegou. Já não é mais possível qualquer ilusão...

GIL

ELZA

Não posso...

Gil me BEIJA!!! (Gil a beija ligeiramente.)

ELZA

GIL

Gil!

Pronto, meu amor, agora vamos rezar.

GIL

ELZA

(Olhar fixo no espelho.) Elza, DEUS existe... Agora eu compreendo... agora eu

Assim não, Gil, me beija com fervor. Com fervor não, com instinto, com toda a força do teu instinto, com toda a brutalidade do instinto. GIL Elza, dessa vez você é que deve me perdoar... eu não tenho a menor condição de

sinto... DEUS existe. ELZA Vem, Gil, vem me possuir! Vem que eu não posso mais esperar, vem que eu estou desvairada! Eu estou DESVAIRADA!!!

beijar você de outra maneira... Nós estamos diante da morte... eu só sinto o desejo de

GIL

rezar...

Impossível, meu amor, já não me pertenço... (Olhando-se ainda no espelho.) ELZA

DEUS existe... Por mais incrível que pareça, DEUS existe!!!

(Puxando-o para a cama.) Vem, querido eu sou tua, me possui, eu sou tua, me possui!... (Gil livra-se dela, desloca-se para a penteadeira, imobiliza-se em frente ao espelho, num arroubo místico.) GIL Olha para mim, meu amor, eu estou transfigurado... ELZA Vem, Gil, deita comigo vem buscar o que eu guardei para ti tanto tempo. (Gil vai até ela levando a imagem.)

FIM


401

402

Esta peça estreou em outubro de 1968, no Teatro da Paz, em Belém do Pará.

PERSONAGENS Mendigo Policial Prostituta

LEI É LEI

Uma voz de play-boy ou o próprio play-boy aparecendo em cena.

CENÁRIO Esquina de uma bela avenida, fachada de lojas em perspectiva, letreiros

E ESTÁ

comerciais luminosos com reflexos coloridos que mudam de tonalidade a cada momento, incidindo sobre os personagens da cena. NOTA Pouco antes de abrir o pano serão projetados para a plateia os seguintes dizeres,

ACABADO

de forma visual ou auditiva: FOLHA VESPERTINA, jornal de Belém, Pará, Brasil, América Latina. Dia 22 de abril de 1968. Notícia banal “Há vários dias um pobre mendigo jaz enfermo na calçada da Presidente Vargas... Ontem à noite o infeliz dava indícios de que ia falecer, o que levou um guarda noturno a telefonar para o “Mário Pinotti” de onde disseram não haver no momento ambulância disponível para recolher o doente. Ligando para a permanência da central dali informaram ao vigilante que o assunto era da alçada do “Mário Pinotti”. A finalidade da Polícia era outra. O certo é que até tarde o moribundo mendigo se achava abandonado naquele local, sem que surgisse uma providência.”


403

404

AÇÃO PROSTITUTA Mendigo dormindo na calçada, coberto com jornais. Noite alta, silêncio

Infelizmente a noite hoje está ruim.

interrompido de quando em vez por barulho de carros em movimento e música de “boite”,

MENDIGO

distante.

Péssima. Surge a prostituta, andar lânguido de “trottoir”, bolsa pendurada na mão,

PROSTITUTA

aparência sofrida que a maquilagem algo berrante não consegue esconder; para, consulta o

Quando há falta de navio no porto é assim: uma lástima, a gente fica penando pela

relógio, acende um cigarro. Ouvem-se vozes que se aproximam. Ela apruma-se em atitude

madrugada a dentro e às vezes volta pra casa a pé, gastando a sola do sapato. Ainda nos

um tanto forçada de “mulher fatal”, porém as vozes emudecem abafadas por uma

chamam de “mulheres de vida fácil”. Pois sim. Fácil...

gargalhada e rumor de passos cada vez mais sumidos. O mendigo mexe-se, descobre o rosto, tenta erguer-se mas desiste, fatigado. A prostituta desloca-se até a extremidade do palco de onde retorna em seu lento e solitário passeio; quando cruza com o Mendigo novamente este deixa escapar um gemido.

MENDIGO Esta noite é mesmo de azar. Hoje não é sexta-feira? Aposto que é. Imagine que revirei quatro latas de lixo sem encontrar um restinho de comida. PROSTITUTA

PROSTITUTA

Quatro latas de lixo?

Está doente?

MENDIGO

MENDIGO

Foi. Quatro. E nenhum farelo de comida.

(Sentando-se com dificuldade.) Mais morto do que vivo...

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Que coisa!

Qual é a sua doença?

MENDIGO

MENDIGO

Pois é. E olhe que aqui é o centro da cidade, quase não tem gatos. (Solta um

Fome...

gemido agudo, mais longo.)

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Só?

O seu mal não é somente a fome. Alguma dor?

MENDIGO

MENDIGO

Acha que é pouco?

(Respiração ofegante.) Não... dor não ... uma tonteira ...

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Eu queria saber o que o senhor sente além da fome.

Vai ver que isto é de andar catando latas de lixo. Comida estragada, podre, é um

MENDIGO

perigo, adoece.

Tanta coisa no corpo... dentro da cabeça... Mas o ruim mesmo é a fome.

MENDIGO

PROSTITUTA

Ai de nós se não fossem as migalhas que os outros jogam fora...

Se eu arrumar um homem lhe compro um pedaço de pão com queijo.

PROSTITUTA

MENDIGO

E os seus trocados?

Queijo? Pra que essa extravagância? Chega o pão. Não precisa nem manteiga.

MENDIGO Dinheiro?


405

406

PROSTITUTA

MEDIGO

Não pede esmolas?

Que casa?...

MENDIGO

POLICIAL

Pedir bem que eu peço... pensa que sem ser aleijado ou cego ainda se pode viver

Não tem moradia certa?

de esmolas, como antigamente? Agora as pessoas não tem tempo nem de olhar para nós: andam apressadas que só vendo. PROSTITUTA

MENDIGO Nem certa nem errada. Demoro umas horinhas aqui, umas horinhas acolá, e de atraso em atraso vou vivendo...

Isto é verdade: agora todo mundo anda afobado e ninguém repara nada.

POLICIAL

MENDIGO

Acontece que neste quarteirão você não fica mais um minuto.

Todos tem de chegar logo em um lugar qualquer e vão indo numa ligeireza

MENDIGO

medonha, que dá pena.

Por que não?

PROSTITUTA

POLICIAL

É isso mesmo.

Porque eu não deixo.

MENDIGO

MENDIGO

Sabe que às vezes eu tenho pena desse pessoal, embora quem mereça pena seja

A rua é pública. Tenho o direito de ficar aqui. POLICIAL

eu? PROSTITUTA Realmente dá pena.

Uma ova! Não fica porque eu, como responsável por este quarteirão, não permito vagabundagem nele.

MENDIGO

MENDIGO

Antigamente não era assim, o povo não andava às carreiras.

Vagabundo é ladrão, não ofenda que sou mendigo.

PROSTITUTA

POLICIAL

A vida mudou muito. Piorou muito. E por incrível que pareça piorou até pros

Levante-se e desapareça senão lhe prendo como vadio.

mendigos... Sabe que também piorou pra nós? Os mendigos pelo menos dormem onde

MENDIGO

desejam, sozinhos ou acompanhados, sem pagar aluguel...

(Sem força para obedecer.) Não posso... a fraqueza tomou conta de mim... o jeito

POLICIAL (Entra segurando um cassetete: traja à paisana; paletó surrado; gravata e

é cochilar aqui mesmo. POLICIAL

chapéu idem; de maneiras rudes, transpira boçalidade por todos os poros; ao vislumbrá-

O quê? Não ouviu o que eu disse?

lo a prostituta afasta-se um pouco, disfarçando.) Se eu descubro o animal que espalhou o

MENDIGO

lixo daquelas latas... foi você?

(Cobrindo-se totalmente com os jornais.) Boa noite, até amanhã...

MENDIGO

POLICIAL

Não sou animal. (Deita-se molemente.)

(Despeja um pontapé no Mendigo.) Quer abusar de mim, velho cínico? Saia daí.

POLICIAL Não? Com certeza? Pois bicho é que dorme pelas calçadas. Por que não vai pra casa, hein?

PROSTITUTA (Testemunha a violência, revolta-se e interpela o policial.) O senhor é um policial ou um cavalo?


407

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MENDIGO

POLICIAL

Um cavalo. E doido, porque cavalo normal não dá patada à-toa.

Você afrontou a lei e minha obrigação é lhe prender.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Não enxerga o estado deste pobre homem? Magro como cachorro de subúrbio, a

E a minha obrigação é não ir. Eu não afrontei a lei, afrontei a sua ignorância.

pele em cima dos ossos, faz uma porção de dias que não come, ainda hoje vasculhou em

POLICIAL

vão quatro latas de lixo...

Sou um representante da lei e tenho autoridade de sobra pra lhe prender.

POLICIAL

PROSTITUTA

Ah! Então foi ele que derramou o lixo das latas? Descarado! (Lança-se contra o

E eu tenho coragem de sobra pra não aceitar essa prisão.

mendigo, a Prostituta o detém.)

POLICIAL

PROSTITUTA

Que arrogância!

É o cúmulo da covardia agredir alguém nestas condições. Não se envergonha

PROSTITUTA Não aceito porque ela é injusta.

disso? POLICIAL

POLICIAL

Vergonha devia ter você de caçar macho, sua cadela.

Mas que desaforo! Em que se fia? Será que é amante de algum deputado?...

PROSTITUTA

MENDIGO

Cadela é a...

Eu só saio daqui se for carregado. (Deita-se novamente, cobre-se.)

MENDIGO

POLICIAL

Não se aflija por minha causa, filha.

Como rapariga você é muito atrevida.

POLICIAL

PROSTITUTA

Se considerem presos os dois, em nome da Lei! Comigo é no duro: lei é lei e está

E o senhor, como policial, é muito cretino. POLICIAL

acabado. PROSTITUTA

Se der mais um pio eu lhe espoco com um murro. Duvida?

Eu me considero em absoluta liberdade.

PROSTITUTA

POLICIAL

Não. O senhor é bastante valente pra espancar uma mulher... Parabéns pela

Vamos decidir esta questão na Permanência da Central.

bravura. Porém uma coisa eu exijo: diga porque me prende.

MENDIGO

POLICIAL

Eu não vou porque não posso andar, de tão vazio...

Primeiro: desacato à autoridade.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

E eu não vou porque já ando cheia da burrice dessa espécie.

É falso. Não desacatei o senhor.

POLICIAL

POLICIAL

Que burrice?

Segundo: prática do lenocínio.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

A sua, é claro, me prendendo sem motivo. Não vê que não pode fazer isso?

Eu não tenho o direito de andar pela rua?


409

410

POLICIAL

PROSTITUTA

Rebolar pela rua se oferecendo pra homem é proibido.

Tem coração de pedra? Não se compadece de um trapo humano como este? Não

PROSTITUTA

teme um castigo de Deus? No futuro o mendigo poderá ser o senhor.

Qual a lei que proíbe?

POLICIAL

POLICIAL

A única coisa que eu temo é não ser nomeado Investigador efetivo. E ficarei no

Não sei mas não importa. É imoral e pronto.

que sou se não zelar por este quarteirão com o máximo rigor. Entende?

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Imoralidade é a polícia... deixa eu me calar. Pensa que me mete medo com essa

É fácil de entender...

ameaça de prisão? Está muito enganado. Sei que não pode me prender, sou esclarecida. Costumo ler os jornais, em vez de escutar novelas. Julga que toda prostituta é analfabeta, sem instrução? Eu estudei, se estou nessa vida miserável é por que fiquei viúva de repente com seis filhos. POLICIAL Ora vejam! Sabe que, pra falar a verdade, estou admirando a sua sapiência? E

POLICIAL Preciso conservar este pedaço elegante da cidade limpo de Mendigos e Raparigas. Aliás, raparigas não: Prostitutas como diz a lei. PROSTITUTA E com essa finalidade, a fim de tirar-me daqui, foi que me convidou pra ir satisfazer os seus instintos?

sabe que, assim zangada, você fica bonitona? Acho que vou lhe prestigiar... (Encosta-se

POLICIAL

nela, sensual.) Tem quarto perto?

Bom, eu...

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Não. E se tivesse não botaria o senhor na minha cama.

E finalmente me levando pro quarto o senhor ia ganhar merecimento pra ser

POLICIAL

promovido... Que beleza de carreira profissional.

Tudo isso é gênio? Ódio?

POLICIAL

PROSTITUTA

Você complica tudo, é inteligente ...

Acha que não temos a nossa moral? Eu me entrego pra um leproso, porém jamais

PROSTITUTA

pra um policial da sua marca. POLICIAL

Obrigada. E agora o senhor pode continuar a sua ronda. Dê uma voltinha, por favor não prejudique o meu trabalho.

Eu pago...

POLICIAL

MENDIGO

O seu o quê? Você chama o que faz de trabalho?

(Descobrindo-se.) Esta troca de insultos custa a terminar?

PROSTITUTA

POLICIAL Já avisei que não fica aí, seu nojento. Enquanto eu for encarregado da vigilância deste quarteirão sacrista nenhum dorme nele. Lei é lei e está acabado.

Por que não? O senhor julga que suportar homem desconhecido na cama é diversão? POLICIAL

MENDIGO

Ora se é.

Sono é sono e está acabado... (Boceja, recobre-se com os jornais.)

PROSTITUTA Já experimentou?


411

MENDIGO

PROSTITUTA

(Põe a cabeça de fora.) Vão descambar pra imoralidade? Me respeitem.

Estou vendo...

POLICIAL

POLICIAL

Cala a boca, velho canalha.

Como é? Vai ou não vai dar uma chegadinha comigo ali?

MENDIGO

PROSTITUTA

Canalha é quem chama, eu sou mendigo mas sou honrado.

Não.

PROSTITUTA

POLICIAL

(Para o mendigo.) Entre nós o único desonrado é ele, porque não tem sentimento. A honra nada mais é do que um sentimento.

Então, sua vaca, ou me acompanha agorinha pro xadrez ou entra na borracha. (Agarra a Prostituta que reage, safando-se.)

POLICIAL

PROSTITUTA

Parece piada. Eu sou a autoridade e vocês é que esculhambam.

Não ponha essas mãos sujas em cima de mim.

PROSTITUTA

MENDIGO

(Para o Policial.) Vá embora. Dê uma folguinha. Tenho necessidade de pegar um

(Em repentinas contorções e espasmos.) Ai! Ai! Ai!

homem hoje, estou em situação precária.

PROSTITUTA

POLICIAL

(Voltando-se para o mendigo.) O que foi?

Dou uma folguinha se você cooperar... Vamos ali comigo, é só meia hora...

MENDIGO

PROSTITUTA

Ai!... me acudam depressa...

Não vou, me deixe em paz.

POLICIAL

POLICIAL

Ainda mais este velho gouguento.

Vamos e depois eu não lhe aperreio mais.

MENDIGO

PROSTITUTA

Ai... Ai...

Não insista por favor.

PROSTITUTA

POLICIAL

O que o senhor tem? Diga.

E por quê?

MENDIGO

PROSTITUTA

Falta de ar... falta... de... ar...

Não adianta. Não gosto de ir pra cama com polícia...

POLICIAL

POLICIAL

É manha.

Eu sei, é que a gente tem mania de não pagar mulher, como não paga cinema nem

PROSTITUTA

ônibus. Porém pra você eu pago, não disse? Quanto? PROSTITUTA

fêmea?

412

(Examina o Mendigo, demoradamente, enquanto persiste os seus gemidos cada vez mais fracos.) Ele está com febre alta.

Pro senhor não tenho preço. Basta, não me aborreça.

POLICIAL

POLICIAL

E eu com isso?

Ora veja! Eu fazendo papel de besta diante de você. Sabe que não gosto de adular

MENDIGO Ai! Ai!... Está... me dando... uma coisa ...


413

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PROSTITUTA

MENDIGO

Coitado. A respiração dele vai sumindo, sumindo; será o princípio da morte?

Ai! Ai!... Estou nas últimas ... (Sofre um brusco desmaio.)

POLICIAL

PROSTITUTA

O que ele tem é indigestão. Gulodice. Quem mandou comer porcaria de lata de

Meu Deus, ele morreu.

lixo?

POLICIAL MENDIGO

(Ar de espanto ) Vôte! Morreu? Não é possível.

(Gemidos cada vez mais desesperados.) Ai! Ai! Minha Nossa Senhora, Valei-

PROSTITUTA

me...

(Lagrimando) Viu o castigo? Não queria escândalo, nos enxotou pra que tudo PROSTITUTA

neste quarteirão permanecesse tranqüilo, o resultado foi esse. (Soluça) Tadinho do velho...

(Para o policial, angustiada.) Ele precisa ser internado no Pronto Socorro

tão humilde... tão bonzinho...

Municipal. Ajude o infeliz, ele não está implorando?

POLICIAL

POLICIAL

Estou arruinado. Não se pode tocar no cadáver antes do médico legista chegar, o

Pra mim não: por enquanto ainda está se valendo de Nossa Senhora ...

médico legista não vai chegar antes das nove ou dez horas da manhã, o ajuntamento dos

MENDIGO

curiosos vai aborrecer o dono da loja aí do lado, ele corta a minha gratificação no fim do

Ai! Ai! Ai! Ai! Ai! Ai!

mês e não me dá mais gorjeta, um verdadeiro desastre. E o meu chefe que ia me arrumar

PROSTITUTA

uma nomeação pra Investigador efetivo? Nem quero lembrar a cara do meu chefe. Adeus,

Faça alguma coisa.

nomeação. Mas eu me vingo!

POLICIAL

PROSTITUTA

O que você quer que eu faça?

Se vinga? De quem?

PROSTITUTA

POLICIAL De todos. De amanhã em diante nenhum velho vagabundo e nenhuma rapariga

Telefone. POLICIAL

pisa mais aqui.

A melhor solução é ele ir embora daqui.

PROSTITUTA

POLICIAL

O senhor é que não pisará mais aqui porque eu vou denunciar... (Faz menção de

Como, se o pobrezinho não tem família e não pode nem se levantar?

sair.)

POLICIAL

POLICIAL

Cada qual carrega a sua cruz. Não tenho nada com isso. “Quem pariu Mateus que

Espere. Que história é esta?

o embale...” PROSTITUTA Quem pariu você é que...

PROSTITUTA Vou dizer ao Delegado que o senhor é culpado deste mendigo ter morrido sem qualquer assistência de médico.

POLICIAL

POLICIAL

Que o quê?

Ora, ora se o delegado liga pra isso.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

(Reflete.) Bom, a sua mãe não tem culpa de ter feito nascer um jumento.

Liga, sim, porque vou dizer outra coisa muito grave.


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416

POLICIAL

PROSTITUTA

Vai dizer que lhe convidei pra ir pro quarto? Que besteira! Quando o Delegado

Nada de brincadeira, eu vou cumprir a promessa neste instante; aproveito que a

souber o que você faz mete-lhe nas grades.

esta hora a redação dos jornais está funcionando.

PROSTITUTA

POLICIAL

Não é isso. Vou acusar o senhor por ter agredido este mendigo.

(Obstando-lhe a saída, súplice.) Não faça isso pelo amor de Deus.

POLICIAL

PROSTITUTA

Agredido?

Ah! Já ficou manso? Pois agora é tarde.

PROSTITUTA

POLICIAL

Justamente. Não deu um pontapé nele?

Quer ver a minha desgraça?

POLICIAL

PROSTITUTA

Dei um e foi pouco, se tivesse dado três ou quatro ele tinha se arribado e morria

E o senhor, não quis ver a desgraça do velho?

noutra parte. Tolice minha. Agredido... acha que o Delegado leva a sério um simples

POLICIAL

pontapé que a gente dá em nome da lei. Lei é lei e está acabado.

Eu não persigo mais você. Juro.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

(Enigmática) É... Talvez não leve a sério ...

Lamento muito mas não posso me calar, dê licença.

POLICIAL

POLICIAL

(Desconfiado) Por que esse seu jeito esquisito?

Não tem pena de um pai de família?

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Porque se o Delegado não levar a sério os jornais levarão..

Nem sempre vale a pena se ter pena...

POLICIAL

POLICIAL

Como é isso?

Não expliquei porque agi daquela forma?... Pobre de mim, a nomeação pra

PROSTITUTA

investigador efetivo vai por águas abaixo... Parece que vejo o meu chefe de cara dura me

Com a imprensa é diferente, estou habituada a ver. Se eu disser em um jornal que

dizendo: “Por que se afastou do local de serviço?”. Nunca ele vai acreditar que eu estava

o senhor deu um pontapé no mendigo, minutos antes dele morrer, o mínimo que acontece é

aqui, pois a ordem é conservar esta avenida, a principal da cidade, limpa de mendigos e

o repórter falar em assassinato.

prostitutas, mesmo depois da meia-noite porque é quando os turistas granfinos voltam das

POLICIAL

farras. Será possível que você não tem um pingo de compaixão por mim?

Assassinato???

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Até que sua história me faz ter alguma compaixão...

Claro. De que maneira o senhor prova que o velho não morreu em consequência

POLICIAL

do pontapé? POLICIAL (Confuso) Você está brincando, não é? Se divertindo a minha custa.

Obrigado. PROSTITUTA E a minha história? Não lhe passou pela cabeça que tenho uma história, que cada uma das mulheres que passeiam pelas ruas, madrugada a dentro, tem uma história? E este mendigo morto, imagina que não teve uma história? Olhe pra ele, não sente nada? Quem


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418

sabe um dia este velho também não quis ser investigador da Polícia? Quem sabe não se

POLICIAL

tornou mendigo por causa de desgosto, de uma traição. Quem sabe não teve posses e não

Vá lá que seja. Foi forte. Mas o que você tem com isso? Ele morreu, está morrido,

foi enganado pelos amigos, pelos parentes? Quem sabe das humilhações que ele suportou?

não adianta criar caso.

Ninguém sabe. E ninguém mais saberá... Eu posso contar a minha história, o senhor pode

PROSTITUTA

me fazer ter piedade, falando da repreensão do seu chefe e da promoção perdida. Porém

Adiantar, adianta.

este mendigo morto já não tem história e nem sequer terá sepultura: seu destino é a vala

POLICIAL

comum do cemitério. E como não tem história não é ninguém, é apenas um cadáver que

O que vai lucrar com o escândalo você e ele? Nada, só a minha destruição.

vai dar trabalho pro médico legista e incomodar o dono da loja aí do lado...

PROSTITUTA

POLICIAL Puxa! Como você fala. Está nervosa.

O senhor se defende na polícia; o Delegado se interessando pela denúncia talvez eu não procure os jornais.

PROSTITUTA

POLICIAL

Estou furiosa. Então um homem – um homem, ouviu? – morre na sua frente,

Eu ...

desamparado, e o senhor pensa unicamente no prejuízo que poderá ter? Isto sim, é que é

PROSTITUTA

ser um animal, e não revirar lata de lixo pra saciar a fome. POLICIAL

Você merecia que eu procurasse os jornais, mas enfim... sou uma boba, não sei guardar rancor.

Está bem, sou um animal... Aliás você já me chamou de cavalo e de jumento.

POLICIAL

PROSTITUTA

Se não sabe guardar rancor por que então vai me denunciar pro Delegado?

E o senhor não me chamou de cadela?

PROSTITUTA

POLICIAL De fato, eu comecei a briga. Mas já pedi desculpa, já me rebaixei.

É um problema de consciência. Se eu não contar o que aconteceu fico com remorso.

PROSTITUTA

POLICIAL

Um pouco tarde, porque agora eu não posso esconder o que se passou. O velho

E por que o remorso se quem deu o pontapé fui eu?

morreu, o senhor deu o pontapé nele que eu vi, quem sabe não houve mesmo um crime?

PROSTITUTA

Quem sabe não matou o velho?

O senhor não compreende?

POLICIAL

POLICIAL

Deixe de graça.

Não, você é mesmo complicada.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Graça? Um pontapé daquele, no peito de uma pessoa fraca, é pior que um tiro...

Bem, é difícil explicar. (Novamente apresta-se para sair, ele a detém.)

POLICIAL

POLICIAL

Você está exagerando de propósito, pra me amedrontar. O pontapé não foi tão

Por favor, não arruíne a minha vida.

forte.

PROSTITUTA PROSTITUTA Foi. Fortíssimo.

Basta de conversa.


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POLICIAL

POLICIAL

(Com crescente aflição.) Não seja pirracenta, lembre que tenho família pra

Puxa! Como você é geniosa.

sustentar.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Dê licensa e boa sorte pro senhor.

Solte-me.

POLICIAL

POLICIAL

Não vá, espere. Tenho um negoção pra você. Já que não vai continuar fazendo

A minha mulher está grávida.

ponto aqui, podia... sabe, eu... uma conhecida minha é dona de uma casa... ambiente

PROSTITUTA

fechado... lá só entra homem escolhido, da alta sociedade: doutores, comerciantes... coisa

Eu também estou.

fina, uma mulher experimentada ali em duas semanas tira o é da lama.

POLICIAL

PROSTITUTA

Quando ela souber que me acusaram de assassino é capaz de abortar.

Não me interessa.

PROSTITUTA

POLICIAL

Eu também vou abortar, de vez em quando tenho de fazer um aborto, me largue,

Como? Prefere viver perambulando pela rua atrás de marinheiros, se arriscando a

preciso ir.

pegar esquentamento?

POLICIAL

PROSTITUTA

Vamos discutir o assunto como irmãos.

Prefiro.

PROSTITUTA

POLICIAL

Não há o que discutir.

Deixe de ser tola! Mulher de “randevu” ganha muito mais e não fica engalicada.

POLICIAL

PROSTITUTA

Pelo amor que você tem na sua mãe.

Dê licença...

PROSTITUTA

POLICIAL

É inútil.

Nessa casa que estou lhe falando não falta homem, a freguesia é grande. O difícil

POLICIAL

pra você é conseguir uma vaga lá. A madame não aceita qualquer uma, mas eu dou um

(Quase chorando.) Tenha pena de mim... se o Delegado me processar nunca mais

jeitinho, sou amigo dela, não se incomode. E tem uma coisa: se você se der bem não

vou ser nomeado Investigador efetivo. Na certa perco até o emprego que tenho... Não, não

precisa me pagar comissão nenhuma, que não sou gigolô, sou um representante da lei. A

faça isso comigo... Eu lhe juro que dagora pra frente não implico mais com esses velhos...

felicidade está nas suas mãos, esqueça o meu pontapé no velho...

e você pode fazer ponto aqui à noite inteira...

PROSTITUTA

PROSTITUTA

O senhor é surdo? Quantas vezes tenho se explicar que não posso ficar calada?

Não preciso fazer mais ponto aqui.

POLICIAL

POLICIAL É mesmo? Que besteira! Venha sempre dar uma voltinha por este quarteirão, não se preocupe comigo. Venha que é um prazer. PROSTITUTA Por aqui não há-de me ver.

(Mudando de atitude e partindo para a ofensiva.) Porra! Quer dizer que conta tudo pro Delegado, não é? PROSTITUTA É. Exatamente.


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POLICIAL

PROSTITUTA

(Subindo mais o tom da voz.) Eu já lhe implorei, não implorei?

Espere ai, o senhor não falou tanto em ser nomeado Investigador efetivo?

PROSTITUTA

POLICIAL

Não devia ter implorado.

E o que tem isto?

POLICIAL

PROSTITUTA

Já ofereci vantagem, não ofereci?

Mas... já não é investigador, então? Interino?

PROSTITUTA

POLICIAL

Também não devia ter oferecido.

E o que tem isto? Está pensando que vai me embrulhar novamente?

POLICIAL

PROSTITUTA

Nada disso adiantou, não foi?

O senhor é guarda noturno?

PROSTITUTA

POLICIAL

Nem adiantará.

Sou, e daí?

POLICIAL

PROSTITUTA

Pois então vou apelar pro Código.

É mesmo?

PROSTITUTA

POLICIAL

Código?

Sou. E daí???

POLICIAL

PROSTITUTA

Sim, vou apelar pro “código do cacete”.

Um simples guarda noturno?

PROSTITUTA

POLICIAL

O quê?

E daí???

POLICIAL

PROSTITUTA

Cacete. Sabe o que é cacete? Cacete de borracha? (Ergue o cassetete, no auge da

Esta é boa. Eu julguei que o senhor era Investigador, desses que chamam de

exaltação.) PROSTITUTA O senhor não tem o direito de me bater.

encostados, que trabalham de graça pra polícia a fim de comer mole. POLICIAL Pois não sou Investigador encostado nem desencostado. E o que tem isso? Vai se

POLICIAL

explicar logo ou está puxando assunto com a intenção de esfriar a minha raiva? Olhe que

Tenho, sua escrota. Eu também tenho direito. Você tem direito de caçar macho na

falta pouco pra eu explodir e se você se arrependeu e quer topar a parada diga logo, antes

rua, não tem? O velho teve o direito de estirar o corpo aqui, não teve? Pois eu não vou

que seja tarde.

perder o direito de ser nomeado Investigador. E por falar em direito, sendo guarda noturno

PROSTITUTA

eu sou um policial, sou autoridade, e sendo autoridade eu tenho o direito de baixar o pau

Ora essa... e eu com medo de ser presa...

em quem desrespeitar a lei. Lei é lei e está acabado. Você mijou fora do caco, vai apanhar.

POLICIAL

Se prometer esquecer o pontapé eu perdôo, se não prometer ficar caladinha agora mesmo

Vai ou não vai se explicar?

entra na porrada. Quer ver como entra na porrada, hein? Quer ver?

PROSTITUTA Eu com medo de ser presa e o senhor bancando o importante...


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POLICIAL

POLICIAL

Que palhaçada é essa?

(Interrompe a fala com gesto ameaçador.) Cale-se! Não sei onde estou que não

PROSTITUTA

lhe aplico uma boa sova. É o que eu digo sempre, mulher só presta apanhando ... (Pausa;

E tufando o peito com se realmente fosse autoridade...

ele espera que a prostituta diga algo.)

POLICIAL

PROSTITUTA

E eu não sou autoridade?

(Toma o jeito de quem vai falar mas se contém.) Hum...

PROSTITUTA

POLICIAL

É nada. Um simples guarda noturno.

Homem que é macho não deve ter contemplação com fêmea de rua.

POLICIAL

PROSTITUTA

E guarda noturno se calhar não é autoridade?

(Mesmo jogo.) Hum...

PROSTITUTA

POLICIAL

Não é, não. Absolutamente.

Mulher abusada a gente amansa com surra. É um santo remédio.

POLICIAL

PROSTITUTA

Como não? O guarda noturno é um policial, policial é da polícia e quem é da

(Conserva-se indiferente, com ar de solene desprezo.) Hum...

polícia é autoridade. Trabalho para uma Agência de vigilância noturna que é registrada na

POLICIAL

polícia.

Não adianta ser bom. PROSTITUTA

PROSTITUTA

Um dia desses li no jornal que muitos ladrões são registrados na polícia pra vigiar

Hum...

e denunciar outros ladrões.

POLICIAL

POLICIAL

Não adianta fazer o bem.

Ladrão não é registrado, sua burra, é fichado.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Hum...

E qual é a diferença entre uma coisa e outra?

POLICIAL

POLICIAL

Quanto mais se ajuda mais se recebe coice.

Sei lá...

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Hum...

Então o burro é o senhor.

POLICIAL

POLICIAL

(Suavizando o tom arrogante.) Coice, mordida, arranhão.

(Erguendo o cassetete.) Fecho já esta sua boca, atrevida.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Hum...

Eu...

POLICIAL (Intencionalmente) A gente quer prestigiar, convida pra cama, recebe desaforo em vez de receber agradecimento.


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PROSTITUTA

PROSTITUTA

Hum...

Faça o favor de guardar esta arma.

POLICIAL

POLICIAL

O que custa ir pro quarto? Meia hora com um sujeito que vive se sacrificando pela

Está com medo?

Lei, sem tirar nenhum vantagem.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Não gosto de exibição.

Hum...

POLICIAL

POLICIAL

(Examina o revólver.) Às vezes eu pergunto se uma bala dessas...

Um sujeito que nunca se aproveitou da sua autoridade pra explorar ninguém.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Cuidado. Não mexa nisso.

Hum...

POLICIAL

POLICIAL

Uma bala dessas talvez resolvesse minha aporrinhação.

Um sujeito de caráter, caridoso, que se oferece até pra conseguir vaga num

PROSTITUTA

“revendu” de primeira qualidade.

Não mexa...

PROSTITUTA

POLICIAL

Hum...

(Aponta o revólver para a sua própria testa.) Nunca usei este “brinquedo” de

POLICIAL “Randevu” soçaite, onde qualquer vagabunda não entra, onde só vai gente distinta, gente séria. PROSTITUTA Hum... POLICIAL

amansar valente. Podia usar agora ... PROSTITUTA (Começa a ficar nervosa.) Por favor, ponha esta arma na cintura. POLICIAL É tão fácil usar... (Desloca o cano do revólver para o ouvido, fecha os olhos, contrai o rosto.) Basta puxar o gatilho.

(Irritado com o comportamento da Prostituta.) Por que não fala, sua pirracenta?

PROSTITUTA

PROSTITUTA

(Angustiada) Pelo amor de Deus, largue essa arrma.

Por que você mandou que eu me calasse.

POLICIAL

POLICIAL

(Trágico) Por que se vexa? Já não tem um morto ai?

Pois agora estou mandando que abra o bico. Só não pode dizer que eu tenho culpa

PROSTITUTA

do velho ter esticado a canela. Aliás, a morte pra ele foi um prêmio de loteria, acabou com

Eu grito.

o sofrimento. Feliz dos que morrem hoje em dia. Morrer é tirar a sorte grande. Às vezes até

POLICIAL

eu tenho vontade de morrer, tanta gente sendo atropelada todo dia e nem pra isso eu sirvo.

Pra quê?

Já ando cheio de esperar a porcaria da nomeação que não sai. Já ando cheio, ouviu? Se essa

PROSTITUTA

nomeação não sair e eu não morrer, termino matando um. Às vezes tenho acesso de raiva e

Pra que o senhor de repente não faça uma arte.

penso em fazer uma loucura. (Tira o revólver da cintura.)


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POLICIAL

PROSTITUTA

(Baixa o revólver, reflete.) Então... você se importa que eu morra?... Você gosta

(Mais assustada.) Desta vez eu grito.

de mim?... PROSTITUTA Por que haveria de gostar? Acho o senhor muito antipático.

POLICIAL Grite. Berre. Estrebuche. O seu caso é fazer confusão, não é? Pois agora vai fazer no inferno.

POLICIAL

PROSTITUTA

E por que não deixa que eu me mate?

O senhor é que vai pro inferno, se me assassinar

PROSTITUTA

POLICIAL

Porque já fui testemunha de um assassinato e não desejo ser testemunha de um

Ótimo. É isto mesmo, vou pro inferno, devia ter ido a mais tempo. (Faz menção

suicídio.

de puxar o gatilho.) POLICIAL Mas se por acaso eu me matasse você não precisava ser testemunha de coisa

nenhuma. Desaparecia e pronto. Só ia ficar com remorso. PROSTITUTA

PROSTITUTA (Cobrindo o rosto com as mãos.) O senhor vai pras profundezas do inferno. POLICIAL Vou, sim, com muito prazer. Lá eu posso ser investigador efetivo do Diabo, lá eu

Remorso por quê?

posso ser Delegado de Satanaz, lá eu mando brasa, lá eu posso usar este revólver que

POLICIAL

nunca tive o gosto de usar, lá eu me satisfaço, o inferno é bacana, o inferno é fogo, tem

Você sabe que se for se queixar de mim pro Delegado e ainda por cima fizer

bagunça e tem polícia que pode baixar o cacete a torto e a direito, o inferno é o melhor

escândalo pelo jornal eu perco a minha nomeação de Investigador, não sabe? Pois se eu

lugar pra se viver. Quando às vezes eu perco a esperança de ser nomeado Investigador

meter uma bala na cabeça vai ser por causa dessa sua ruindade. Você podia evitar a minha

efetivo e penso em meter uma bala na cabeça, é porque tenho vontade de ir pro inferno.

morte.

Estou cansado de não fazer nada neste mundo, cansado de gastar a noite toda andando sem PROSTITUTA

proveito de um lado pro outro, vendo rua deserta e não escutando quase nenhum barulho,

Isto tudo é uma encenação sua. O senhor não se matará. E chega de conversa,

cansado de passar o dia dormindo e não sendo incomodado por ninguém, nem pela mulher

ponho já um ponto final nesta brincadeira de mau gosto. Dê licença.

e os filhos que não me ligam e não se preocupam nem ao menos em brigar comigo. Estou

POLICIAL

cansado, quero mesmo ir pro inferno, sempre quis ir pro inferno, vou estourar os seus

(Antepondo-se bruscamente em seu caminho.) Não, sua filha da puta, você não vai

miolos, depois estouro os meus.

sair daqui pra cavar a minha sepultura.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

(Desesperada) Socorro!

Vou apenas cumprir com a minha obrigação e não cavar a sua sepultura.

POLICIAL

POLICIAL

Você vai morrer, escutou? Pode começar a rezar, entregue sua alma a Deus que

(Aponta o revólver para ela.) Estou disposto a liquidar você, sua desgraçada!

não quero encontrar com você no inferno. No inferno gente como você não serve, é como

PROSTITUTA

se fosse mendigo, incapaz de cometer um crime. Vamos, reze.

(Recua) Guarde esta arma...

PROSTITUTA

POLICIAL

(Perplexa, hesitando em reagir de outra maneira, cerra os olhos como se fosse

Não, vou desenferrujá-la. Vou estourar os seus miolos.

orar, abre-os num assomo de dúvida, não acreditando na situação.) O senhor...


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430

POLICAL

POLICIAL

(Trágico.) Reze!

Tome conta dele, não deixe morrer.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

(Resoluta) Se quer matar atire logo. POLICIAL

O senhor é um idiota: eu posso impedir alguém de morrer? Não seja desumano, pense na situação do coitado e não na sua.

(Mais forte.) Reze!

POLICIAL

PROSTITUTA

Está certo, mas este sujeito não tem o direito de morrer aqui.

(Deslocando-se rapidamente.) Não rezo, corro...

MENDIGO

POLICIAL

(Levanta-se, trêmulo, olhos vidrados.) Tenho, sim... tenho o direito de morrer...

(Sai em seu encalço, logrando detê-la rente ao mendigo.) Ah! Você escolheu o lugar certo. Vai cair morta ao lado do cadáver do mendigo, vai morrer em companhia de um morto. PROSTITUTA Atire! POLICIAL

em qualquer lugar... em qualquer hora... POLICIAL (Para o mendigo, gritando.) Neste quarteirão sacana nenhum tem o direito de morrer, ouviu??? PROSTITUTA (Para o Policial.) O senhor é mesmo estúpido. Não vê que ele tem o direito de

Deixa eu experimentar se este troço ainda funciona.

morrer onde e quando quiser? É um direito sagrado, o de morrer, o único direito que não

PROSTITUTA

podem tirar dos pobres...

Atire logo!!!

POLICIAL

POLICIAL

Morrer aqui ele não morre porque eu não consinto. Lei é lei...

É pra já. (Experimenta o revólver atirando para o chão.)

PROSTITUTA

MENDIGO

Vá logo telefonar. Vá enquanto é tempo.

(Ergue-se subitamente.) Eu quero morrer... (O Policial e a prostituta espantam-se,

POLICIAL

ele mais do que ela.) POLICIAL Égua! Ressuscitou? MENDIGO (Ensaia uns passos desnorteados.) Eu quero morrer... quero... quero morrer...

Não demoro. Aguente ele vivo. (Sai, a prostituta segura o mendigo que tem dificuldade em se equilibrar.) MENDIGO (Continua com a expressão fisionômica alterada.) É meu direito... quero morrer... quero morrer... quero... só não quero ser enterrado como indigente... enrolado num pano...

PROSTITUTA

sem caixão... sem caixão... isso eu não quero... não... não... não concordo... comprem um

Está delirando. É a febre...

caixão pra mim... comprem um caixão pra mim... (Retira moedas do bolso.) Dinheiro...

MENDIGO

dinheiro... meu... eu guardei... economizei... pra comprarem um caixão... um caixão

Eu quero morrer... morrer... eu quero... quero morrer.. estou cansado... quero

forrado... macio... quentinho... preciso dele... o sono vai ser longo... o chão é frio.

dormir... dormir cem anos... mil anos... dormir e não acordar mais... (Senta-se, abatido.) PROSTITUTA Telefone. Pronto-Socorro Municipal. Diga que é urgente.

PROSTITUTA O médico já vem. O senhor vai ter alimento, remédio; ficará curado.


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MENDIGO

VOZ

Remédio... Não, não quero... não tenho mais cura... e não quero... cansei...

Se o caso é o “vil metal” não tem problema. Tou cheio da nota. Olha daí o tutu. Se

cansei... quero repouso... não chame o médico... não chame... deixe eu morrer em paz... é

não bancar a amiga da onça eu pago bem. Entra na charanga.

meu direito...

PROSTITUTA

PROSTITUTA Acalme-se. (O Mendigo atende, ela deita-o cuidadosamente; ouve-se o barulho

Espere um instante. Estou vigiando aquele velho que teve um ataque e quase morre enquanto o guarda noturno foi telefonar.

de um automóvel que freia e apita; a prostituta se recompõe, animada pela perspectiva de

VOZ

encontrar um freguês, dirige-se ao meio fio e começa a falar de frente para a plateia como

Larga o velho. Fazer caridade não dá pé. Entra na charanga e vamos nos mandar.

que se dirigindo a alguém instalado no interior do carro.) Boa noite.

PROSTITUTA

VOZ

Dois minutos, apenas.

Olá, belezoca. Dando sopa?

VOZ

PROSTITUTA

Olha, chega pra perto que vou te soltar um bizu.

Mais ou menos. Tem cigarro?

PROSTITUTA

VOZ

Pode falar, estou ouvindo.

De maconha serve?

VOZ

PROSTITUTA

Chega mais pra perto aqui do papai. Chega. Vai por mim.

Não, obrigada.

PROSTITUTA

VOZ

Parece que você bebeu demais...

Ainda tá naquela base de pureza? Deixa pra lá. Pureza é um troço chato, pacas. O

VOZ É, tou meio psicodélico, mora! Entra na charanga que a ordem é badalar na

negócio é botar pra jambrar. Quem não manda a sua brasinha entra pelo cano. Tou te dizendo. Vamos fazer um programa legal? Entra na charanga.

estrada.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Este carro é seu?

Já não me convém.

VOZ

VOZ

É do meu velho. O velho é boa praça. Tá me achando com pinta de puxador de

Que bronca é essa?

carro?

PROSTITUTA PROSTITUTA

Siga o seu caminho.

Não, desculpe. O seu jeito é de moço rico.

VOZ

VOZ

Uai! Não está paquerando um otário? Como é que me joga assim pra escanteio?

Como é? Topa a parada?

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Não simpatizei com você.

Talvez. Ainda não consegui um tostão hoje.

VOZ Que embalo é esse? Simpatia? Te manca.


433

434

PROSTITUTA

VOZ

Não simpatizei com você e pronto. Quer me obrigar?

Escuta, coroa, não enche.

VOZ

PROSTITUTA

Escuta, chega pra perto e manja a minha batida. Sou ou não sou gostosão? PROSTITUTA

Era só o que me faltava aparecer hoje: um bêbado, que nem barba no rosto ainda tem.

Não sei.

VOZ

VOZ

Vem cá, bacana. Põe de lado este teu parangolé e entra na charanga.

Mesmo chumbado sou barra limpa.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

É preciso ter muito estômago pra suportar tanto enjôo. (Afasta-se, o apito do

Não me interessa.

carro soa várias vezes.)

VOZ

VOZ

Deixa de onda. Entra ai e vamos dar um passeio federal.

Ei, gente boa: se não der uma colherzinha de chá faço bagunça. Vai ser pra valer.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

Até logo.

Pare com a zuada, não acorde o velho. Que imprudência!

VOZ

VOZ

Quer fazer sujeira comigo?

Imprudência é apelido. Se não me der bola eu não paro. Quero ver quando juntar

PROSTITUTA

gente quem vai entrar em fria.

Não simpatizei com você, já não disse?

PROSTITUTA

VOZ

Que situação.

Mas eu tou gamado por ti.

VOZ

PROSTITUTA

É, minha chapa. Tá ralado.

Ai meu Deus, que sina a nossa.

PROSTITUTA

VOZ

Moço, eu não aguento mais esta provocação.

Entra na charanga, entra. Larga desse teu baratinado e entra.

VOZ

PROSTITUTA

Eu também não agüento mais a sua cocorocagem, “moça”...

Moço, a minha paciência tem limite.

PROSTITUTA

VOZ

Estou pra perder a calma.

Que mancada! Taí, agora me invoquei. Será que vou perder essa parada?

VOZ

PROSTITUTA

E eu? Também estou pra perder a esportiva. Estou grosso às pampas.

Já perdeu.

PROSTITUTA

VOZ

(Exasperando-se) Sabe o que você é? Um canalha engravatado!

Esta não! Será que não sou de nada? Será que sou de fritar bolinhos? PROSTITUTA Quem sabe...


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VOZ

PROSTITUTA

(Mesmo tom exaltado.) E sabe o que você é? Uma puta chechelenta. (Ouve-se os

Sem ambulância? Esta é boa!

ruídos do carro que arranca e sai em disparada; há uma pausa; a prostituta fuma, refazendo-se.) POLICIAL

POLICIAL Pra você pode ser boa, pra mim não. Se este velhote morrer mesmo aqui eu estou frito em pouca banha.

(Retorna desapontado.) A coisa está encrencada.

PROSTIITUTA

PROSTITUTA

Incrível. Um Pronto-Socorro sem ambulância.

O que houve?

POLICIAL

POLICIAL

Eles têm ambulância. É que na certa deu o prego ou foi fazer algum serviço.

Telefonei pro Pronto Socorro Municipal. E sabe o que responderam do “Mário

MENDIGO

Pinotti”? PROSTITUTA

(Levanta-se, ainda dominado pelas alucinações e desloca-se tateando.) Venha cá... venha cá...

Sim!?...

PROSTITUTA

POLICIAL

(Para o mendigo, solícita.) Está chamando? O que é? Acomode-se, deite.

Imagine.

MENDIGO

PROSTITUTA

(Prossegue em passos trôpegos, alheio a Prostituta e ao Policial.) Venha cá...

O que responderam?

Quem é você... Como é o seu nome?... Vem do céu?... vestida de branco?... vestida de...

POLICIAL

nuvem... vestida de nuvem?... é a morte?... vem do céu?... me leve com você?... pro céu...

Eles não vêm.

pra cima... bem alto... bem alto... bem em cima... me leve... o céu é grande... grande e

PROSTITUTA

quieto... lá eu posso dormir... esquecer de tudo... lá eu me deito... em qualquer lugar... lá

Mas por quê?

não tem polícia... vigiando... não tem... não... Será que tem?... Os anjos... com espadas...

POLICIAL

Será que tem polícia?... No céu tem guardas?... Venha cá, me diga... no céu tem polícia?...

Adivinhe.

tem latas de lixo?... tem inverno? Tem noite fria?... tem comida pobre?... tem gatos?... tem

PROSTITUTA

gente apressada?... gente que vive fugindo?... fugindo ligeiro?... sempre fugindo?... Venha

Chega de falar a prestação. O que aconteceu? O senhor... o senhor disse que se

cá... escute.... no céu se dorme?... no céu se come?... Os Santos são felizes?... muito

tratava de um mendigo. É por isso que não vem? Que infâmia!

felizes?... eles olham pra nós?... olham pra baixo?... os santos nos enxergam? Sabem que

POLICIAL

mendigamos... que não temos pão?... nem agasalho?... os santos ouvem?... ouvem o que

Não foi por isso não.Você é do contra, leva tudo pro lado ruim, o seu caso é

rezamos?... ouvem o que pedimos?...

criticar todo mundo. PROSTITUTA E então por que eles não vem? O Pronto-Socorro do governo não existe pra isso?

PROSTITUTA (Para o policial percebendo que o Mendigo dirigia-se a uma visão.) Se a febre não cessar ele termina enlouquecendo.

POLICIAL

POLICIAL

Existe. Existir, existe. Mas está sem ambulância.

Sabe que era ótimo ele virar o juízo. Pelo menos, doido, saia correndo daqui e resolvia meu problema.


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PROSTITUTA

POLICIAL

Não sei como o senhor consegue ser tão egoísta, tão mesquinho.

O que você quer que eu faça? Não tem ambulância.

MENDIGO

PROSTITUTA

É mesmo a morte?... Mas tão linda!... se aproxime... me abrace... um abraço

Apanhe um táxi.

apertado... Não!... É você, Maria?... Maria, é você?... Não é a morte?.... Maria!... Maria!...

POLICIAL

cadê a nossa casinha?... me leve pra nossa casinha?... me leve, minha velha... Remendou a

Estou liso. Você paga?

rede?... tenho sono... como é bom dormir naquela rede... Tem alguma comida no fogão?...

PROSTITUTA

Nem farinha?... Faça mingau... sem leite mesmo, minha velha pra que luxo?... Maria!... que

Com que dinheiro?

é isto?... não chore... as coisas vão melhorar... este mês eu me emprego... tenho os

POLICIAL

documentos... eles prometeram... prometeram... já sabem da sua doença... eu disse que

Então nada feito. Entramos numa enrascada...

você escarrou sangue... muitas vezes...sangue vivo... escuro...sangue feio... Maria!... minha

PROSTITUTA Tem uma solução: o senhor se comunica com a Permanência da central de Polícia

velha... por que está chorando?... não chore... me entristece... não adianta chorar... não ajuda nada... Pare, Maria...por que este choro... Quem???... O nosso filho?.. preso?... o

e pede uma providência.

nosso querido filho? Prenderam... como a vizinha soube?... ela pode comprar jornal?...

POLICIAL

Não!... não foi o nosso filho... se enganaram com o nome... não, não foi ele.. é outro com o

Isso eu posso fazer.

nome parecido... tem tantos João da Silva... o quê?... Retrato?... saiu o retrato do

PROSTITUTA

Joãozinho?... você viu o jornal?... viu?... Então é verdade!?... O que ele fez? Já bebe?...

E deve, porque assim pode depois provar que não abandou o seu posto.

brigou?... Diga, Maria... vamos, diga logo... não demore que é pior... Não!!! Isto não!...

POLICIAL Que ideia formidável!! Eu não digo que você é inteligente? E desta vez, além de

Não acredito... Ele, o meu filho?... Roubou? ...Ladrão?!... É uma calúnia!... Não...não é possível... Meu Deus... o Joãozinho?... Maria... o Joãozinho?... nossa única riqueza...

não complicar nada, facilitou tudo.

Gatuno?... O Joãozinho?... uma criança... na cadeia?... Maria... por que ele não ouviu... os

PROSTITUTA

meus conselhos?... Tamanho sacrifício, Maria... pra ensinar... ele a ser honesto... que

Pois é. Ao menos pra salvar a pele, vá telefonar.

vergonha!... Ladrão... nunca mais... esta mancha negra... se apagará... Ladrão!...

POLICIAL

PROSTITUTA

Volto já-já. (Sai, entusiasmado.)

(Comovida, enxuga os olhos com um lenço que tira da bolsa.) Que história...

MENDIGO (Recobrando a lucidez.) Filha, o que aconteceu comigo? Estou zonzo, como quem

POLICIAL (Algo sensibilizado.) Puxa vida! Deve ter sofrido um bocado...

leva uma pancada na testa... parece que cheguei de uma viagem longa.

PROSTITUTA

PROSTITUTA

O senhor prestou atenção?

O que o senhor sente é resultado da febre alta.

POLICIAL

MENDIGO

Prestei.

Uma leseira... as coisas rodam... estou tonto... tonto... aposto que hoje é sexta-

PROSTITUTA E continua de braços cruzados?

feira. PROSTITUTA O senhor vai melhorar.


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MENDIGO

PROSTITUTA

Dia de azar. Estou tonto, filha, tonto... é muito azar – não bebi e me embriaguei...

A mim compararam com uma cadela... (Beija o Mendigo na dextra e na fronte,

PROSTITUTA

carinhosamente.)

Não é embriaguês.

MENDIGO

MENDIGO

Deus te recompense, minha filha...

Acho que morro hoje, filha. Posso lhe chamar de filha?

POLICIAL

PROSTITUTA

(Aparece em tempo de presenciar a parte final da cena, que interpreta

Por que não?

maliciosamente.) Que patifaria franciscana é esta? Se beijando os dois? (Empurra o

MENDIGO

mendigo, ele cai e bate com a cabeça na calçada.)

Como acho que morro esta noite vou lhe contar um segredo. Eu sempre quis ter

PROSTITUTA

uma filha. Minha finada mulher não sabia desse desejo. Coitadinha, quando ela ficou

Bandido! Não reparou que eu beijava o velho como filha?

barriguda o médico da Saúde disse que ia ser preciso fazer operação pra criança nascer.

POLICIAL

Depois daquele parto não podia ter outro, ele garantiu. E a Maria fez promessa pra ter

(Percebendo o equívoco.) É?... Como filha?... Então perdoe. (Noutro tom.)

homem... a maior vontade dela era que o filho fosse homem... Eu não, filha... Posso mesmo

Telefonei pra permanência da central e de lá informaram que o assunto era da competência

lhe chamar de filha?

do “Mário Pinotti”; quando eu falei do galho da falta de ambulância, e na necessidade do

PROSTITUTA

Mendigo ser internado no Pronto-Socorro Municipal com urgência, eles me explicaram

O que há de mais nisso? Não sou melhor do que o senhor. Ninguém é melhor do

que a finalidade da polícia é outra. MENDIGO

que o senhor.

(Levanta-se com a cabeça entre as mãos, olhos intumescidos, face congestionada,

MENDIGO Filha, o que você acabou de me dizer foi a melhor esmola que eu podia receber ao partir deste mundo...

estranhos esgares.) Afinal... afinal... (Avança ora na direção do Policial, ora rumo à Prostituta.) POLICIAL

PROSTITUTA

Ele ficou transtornado. Está doido varrido. (Esquiva-se para escapar de uma

Disse apenas o que veio do coração. MENDIGO

investida desvairada do mendigo.) MENDIGO

Você é um anjo. Deixe eu beijar as suas mãos. (Limpa os lábios em um retalho de

(Volta-se para o lado da Prostituta; seu aspecto é quase selvagem.) Afinal..

jornal.) PROSTITUTA Eu é que devo beijar a sua mão. Tomar a bênção como filha. Beijar a sua mão e o seu rosto. Não se importa em ver beijado no rosto por uma mulher da vida?...

afinal... POLICIAL (Para a Prostituta.) Dê o fora ou se arrepende. Eu vou ali beber uma cachaça e

MENDIGO

quando voltar, se ele ainda estiver fuçando por aqui, doido ou bom, baixo o pau e liquido

Ora, filha, por que havia de me importar? Nos últimos anos fui beijado apenas por

com a festa de uma vez por todas. Lei é lei e está acabado.

um cão...

MENDIGO Afinal... afinal... afinal... (A prostituta recua bastante e, quando vai sumir nos bastidores, vacila; o mendigo faz um giro, agarra as folhas de jornal com que se cobria e


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começa a dilacerá-las pondo pedaços na boca.) Afinal... afinal... encontrei um prato cheio... comida... comida... galinha... macarrão... batata... farofa... afinal... comida no prato... sem lata de lixo... comida boa... cheirosa... não está estragada, não está podre... comida... tudo isto pra mim... pra mim... Maria! Maria... coma comigo... coma... coma... tudinho... eu bebo mingau... coma... o pulmão... você engorda... não escarra mais sangue... coma... se sobrar leve pro Joãozinho... na cadeia... Ladrão!... ladrão... que vergonha!... preso... uma criança... na polícia... (Há uma pausa em que ele parece perder e buscar desesperadamente o fio das ideias.) Polícia... não me dê pontapé... não sou vagabundo... vagabundo... é... é... ladrão... me respeite que sou Mendigo... Mendigo... Não saio!... quero morrer... quero morrer aqui... agora... é meu direito... meu direito.... (Mais calmo, sem agressividade, ajoelha-se diante da prostituta que a esta altura tem o rosto úmido de lágrimas...) Minha filha... você é um anjo... um anjo do céu... um anjo sem espada.... espada... me diga... no céu tem Polícia?... (Num supremo esforço antes de cair morto.)

A GREVE DO

No céu tem Polícia???...

FIM

AMOR


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ÉPOCA

Esta peça foi encenada em fevereiro de 2006, no Teatro Gasômetro, em Belém do Pará, com o título de IMPUSTO DAS BARRIGA. Anteriormente, alguns trechos seus foram representados por um elenco da Universidade Popular (UNIPOP).

Primeiro quartel do século XX.

CENÁRIO PERSONAGENS Estilizado por força da fragmentação cênica, porém com traços naturalistas nos Velha-Fuxiqueira

elementos de expressão simbólica.

Orador Poeta-Boêmio

PRÓLOGO

Padre Curandeira

Antes do pano subir alguém, com um livro, dirige-se do palco à plateia,

Delegado de Polícia

dizendo o que segue.

Cabo Barbeiro

Minhas Senhoras e meus Senhores.

Promotor

A peça que ireis assistir brotou de uma semente colhida no campo da literatura

Comerciante

regional, ou seja, nasceu de um trecho da obra “OS IGARAÚNAS”, de Raimundo Moraes,

Tabelião

“romance amazônico de costumes paraenses” publicado em 1938 pela

Tiradeira de Ladainha

Civilização

Brasileira S/A Editora, do Rio de Janeiro.

Dona da Pensão

Eis o trecho, constante da página noventa da referida obra. (Abre o volume e lê.)

Prostitutas

“Compadre, já sabe da novidade?

Catimbozeiro

Que novidade? Daqui ou da Capital?

Anjo

Daqui. Espocou hoje, de tardinha.

Caboclos e Caboclas

Conte logo senão eu fico nervoso como quem tem bicho carpinteiro, disse o

A estrutura e a dinâmica do espetáculo permitirão que os atores desempenhem diversos papéis, em revezamento.

Coronel. Depois do caso da Anajatuba qualquer qualquer coisinha me parece estar subindo em taxizeiro... O Intendente de Cametá criou o imposto de trinta mil réis por mulher grávida que

AÇÃO

apareça no município. Não diga, compadre... Antão, um país sem gente, despovoado, permite uma coisa

Transcorre em Cametá, antiga e tradicional cidade do interior paraense.

dessa. É muita falta de visão, já não digo de civismo. Pobre lá pode pagar isso...” (Fecha o volume.) Pois é, senhores e senhoras, Raymundo Moraes escreveu e nós vamos mostrar. Preparai-vos para uma comédia de costumes ambientada em especial cidade do interior do Estado do Pará, com ação se desdobrando no tempo dos nossos avós, quando


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CENA 1 – A NOTÍCIA

tudo, ou quase tudo, no seio do povo humilde era diferente. Preparai-vos para uma estória regional, de sabor universal, dentro de um espetáculo ingênuo, que de ingenuidade este mundo está precisando, desesperadamente. Preparai-vos para um mergulho no antigamente e um banho nas águas lustrais do folclore. Deslizando pelo rio da recordação pesquemos algumas saudades... (Retira-se.)

Festa caipira em frente de uma residência modesta. Caboclos e caboclas se divertem dançando o Siriá. Quando a brincadeira está no auge chega a Velha-Fuxiqueira, retira uma cabocla da dança e lhe segreda algo. Esta volta para o grupo, puxa outra para fora e faz um cochicho; assim sucessivamente, cada cabocla transmite a novidade a uma companheira, até que os homens ficam dançando sozinhos, aparvalhados. As caboclas, reunidas, reagem à novidade com as exclamações abaixo. UMA CABOCLA Axi!... OUTRA Vôte!... OUTRA Ara-ara!... OUTRA Eita-pau!... OUTRA Eras!... OUTRA Vigie só!... OUTRA Mas quando!... OUTRA Sujeitinho ratuína!... OUTRA Duvi-de-o-dó!... OUTRA Que desgraceira!... As caboclas, então, voltam para os seus homens. A música cessa. Elas cochicham no ouvido deles, após o que, afastando-se em bloco compacto, os homens discutem o assunto.


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CENA 2 – PROBLEMA CONJUGAL

UM CABOCLO Impusto de trinta miréis por muié grávida? OUTRO

Casal de caboclos sentados na saleta do seu taperi, ele consertando uma tarrafa.

Qué dizê que agura tem de se pagá pra fazê filho? OUTRO

MULHER

Era só o que fartava.

Chandico...

OUTRO

HOMEM

Esse Intendente é um danisco!

Hum...

OUTRO

MULHER

Unde já se viu?

Eu tava matutando... matutando...

OUTRO

HOMEM

Trinta miréis por filho na barriga? Égua!

Matuta, Merandolina, matuta, mas porém me deixa assucegado.

OUTRO

MULHER

Eu não pago nem um mapará!

Tu tá muito nervuso.

OUTRO

HOMEM

Esse Intendente pro modo que não se enxerga!

Não é da tua conta.

OUTRO

MULHER

Pió do que ferrada de arraia!

Tu tá amurrinhado.

OUTRO

HOMEM

Eu não acredito, tem bui na linha.

Não é nada.

OUTRO

MULHER

Quero murrê de guta serena se pago um deréis!

Depuis que tu passô a drumir em rede tu ficô jururu.

OUTRO

HOMEM

Esse Intendente não gira bem da bola.

Besteira.

OUTRO

MULHER

Quero que ele vá pra caixa prego.

Tu não qué vurtá a drumir na esteira comigo?

OUTRO

HOMEM

Agura nós fiquemos em petição de miséria!...

De jeito nenhum. MULHER Antão fica de prua dereita. Ora tu tá aguniado, ora tu tá carmo demais. HOMEM Bubagem.


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CENA 3 – O COMÍCIO

MULHER Ora parece que tu tem cumichão, ora parece que tu tá com béri-béri. HOMEM

Os caboclos reunidos em uma esquina de rua. Um deles discursando.

Não te avexa cumigo. MULHER

ORADOR

Avexo sim, cumo antão hei-de não me avexar?

Puvo de Cametá. Puvo parrudo da terra dos Romualdos. Nós semos um puvo que

HOMEM

tem estória nesse oco do mundo do Tocantins.

Não percisa avexamento.

TODOS

MULHER

Muito bem. (Voz de um, destacada.) Adiscasca o piquiá, Zé Tijucão.

Vou fazê um chá de erva cidreira pra ti.

ORADOR

HOMEM

Cumo sempre diz o nusso pueta quando tá de porre, foi em Cametá que o

Não quero. Era só o que fartava!

cunquistadur Pedro Teixeira organizô sua expedição pra desbravá a Amazônia. Cumo fala

MULHER

o nusso pueta nós semos o único puvo que aderrotô a Cabanagem. Purisso é que nós se

Ai! minha Nussa Senhura de Nazaré, que consumição.

chamemos de “Cidade Invicta”. TODOS Muito bem, muito bem. (Outra voz se destaca.) Eita! Cabuco de pêia! ORADOR Nós butô pra currê a Cabanagem, guerra pajureba que abalu todo o Pará, guerra curajosa que tumô conta do guverno em Belém durante argum tempo. Nó semos um povo que não se acuvardemos, nós não tem sangue aguado, nós não tem medo de nada. TODOS Muito bem. ORADOR (Cada vez mais inflamado.) Esse Intendente filho de purco espinho com jacarôa não pode cubrá impusto das barriga de nossas muié, pruque as barriga de nossas muié não é cuisa pública! TODOS (Aplausos e gritos.) Apuiado, apuiado. ORADOR (Pede silêncio.) Prestem atenção: inquanto nós não aderrubá esse impusto tinhoso nós não ajunta os imbigos com as nossas muié, nós não monta em riba delas, pro causa de não inchá o bucho e nós tê que pagá trinta miréis de murta.


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UM CABOCLO

ORADOR

(Para outro.) Agura a cuisa cumeçô a fedê, cunhado.

Escute, seu Pueta, nós tá cumbinando a gleve do amur pruquê nós não tem trinta

O OUTRO

mil réis vadio pra pagá de impusto quando as barriga das nossa muié ingravidá. A gleve du

É... isso de nós não ajuntá o imbigo com o da muié, pra mode de não currê perigo

amur vai mustrá a valentia do cabuco de Cametá, cumo no tempo da Cabanagem. Vaçuncê

de emprenhá ela, vai dá pano pra manga.

mesmo escrevinhou um verso sobre isso.

ORADOR

POETA

Nós tem de drumir separado dos rabo de saia pra não fazê filho. Assim nós não

Alto lá! Eu já rasguei aquele poema. Hoje tenho dúvidas... Não sei se nós

paga o impusto das barrigas e banca os homens. Nós precisa fazê gleve desde huje. Nós

praticamos um ato de heroísmo ou de burrice oferecendo resistência à Cabanagem, uma

tem de guentá firme na GLEVE DO AMUR.

revolução cruel mas também um belo movimento nativista do povo oprimido, que pela

TODOS

primeira vez, em toda a nossa história, conseguiu tomar o Poder das mãos dos exploradores

Viva a gleve! Viva a gleve do Amur!!!

endinheirados, conterrâneos e estrangeiros.

(A esta altura aparece o Poeta-Boêmio, ligeiramente alcoolizado.)

UM CABOCLO

POETA

(Aludindo ao Poeta.) Ele huje tá com a macaca!...

(Notando a aglomeração dos caboclos.) O que vocês estão fazendo aqui? Esta

POETA

esquina defronte da praça é privativa de tocador de violão. UM CABOCLO

E tem mais. Vocês me informam que vão fazer greve do amor, o que é um absurdo porque o amor é lei da vida. Então eu pergunto: se o objetivo a ser atingido é

Seu coisinha, nós tá arquitetando a nossa gleve.

evitar a gravidez para não pagar o Imposto das Barrigas, por que não fazer a greve do

POETA

sexo? Quer me parecer que vocês precisam de uma greve sexual e não sentimental, não é

O que? Eu ouvi bem?

isso? UM CABOCLO

OUTRO CABOCLO

(Depois de confabular com os outros.) Agura nós se embananou todo... cumo é

Nós vai fazer a gleve do amur. POETA

mesmo?

Greve do amor??? Eu protesto!

POETA

ORADOR

Greve do sexo. Sexo. SEXO.

Cumo antão! Não é vaçuncê que fala puraí que este guverno é matreiro que nem

CABOCLO

jacamim e vive nos explurando? POETA Positivo. Este gorverno e todo governo. Em verdade, em verdade eu vos digo:

(Repete o jogo de confabulação.) Nós não acerta dizê essa palavra... nós prefere gleve do AMUR... OUTRO

todo governo é mais ou menos safado. Aliás, só ó fato de existir governo já é de certo

Nós quer, Pueta, o seu apuio pra nossa gleve.

modo uma safadeza.

POETA

UM CABOCLO (Para outro, referindo-se ao Poeta.) Quem havera de dizê que ele estudô na capitar pra ser padre, antes de se afugá na perdição da cachaça.

Podem deixar, contem comigo, não para entrar na greve, que não sou besta, mas sim para defendê-la com a minha inspiração. Vou escrever umas estrofes de exaltação a essa idiotice de vocês, que aliás nada tem de original. Em Atenas, quatrocentos e cinquenta anos antes de Cristo, foi feita uma greve do amor ou do sexo, só que lá quem promoveu e


453

454

sustentou a tal greve foram as mulheres, a fim de acabar com a guerra do Peloponeso. (Em

Aos compassos de valsa doce e calma,

outro tom, enfático.) Pelo sagrado ideal de fazer filho sem gastar nenhum tostão, eu

Descem atraídos pelo seu violino

declaro, solenemente, aos maridos cametaenses que não fugirei dessa luta. (Todos batem

Beijam-lhe a fronte e, arrebatando-lhe a alma,

palmas.)

Sobem levando-a pelo azul divino”. ORADOR Bunito, pueta paidégua! Diga logo uma puesia, agurinha, de acurdo com a nossa

situação.

TODOS (Entusiasmados) Muito bem. Muito bem, (Catam algum dinheiro no bolso e dão

POETA

para o poeta.) Esperem, eu ainda vou escrever. O que posso agora, neste instante, é falar sobre

UM CABOCLO

MINHA situação, que é crítica porque me encontro desempregado, como ninguém ignora,

Apusto que esse dinheiro nós não recebe mais de vorta.

e hoje é sábado, necessito beber mais uns aperitivos e estou liso que nem mussum. Quer

OUTRO CABOCLO

dizer... se vocês puderem apoiar a minha pobreza talvez eu possa ter inspiração para apoiar

Que cuisa esquisita essa de fazê gleve: nós nem ainda cumeçô e já tem prejuízo...

a greve ainda esta noite.. (Os caboclos se entreolham, desconfiados.) UM CABOCLO O Pueta ta pedindo um dinheirinho emprestado, é? POETA Mas como você é inteligente, meu irmão. Vou declamar, em sua homenagem, um soneto de Jônatas Fernandes, a fim de que todos vejam como não sou apenas um filósofo vagabundo, conforme propalam as más línguas invejosas, e sim, acima de tudo, um lírico que ama as coisas espirituais. Ouçam: SUBINDO AO CÉU “Nós acordes da valsa, enternecidos, Como se fora a música dos beijos, Era de vê-la assim vibrar sentidos Os mais suaves, límpidos lampejos. Feriu-a entanto a sorte dos vencidos, Quando mais divinais, em seus desejos, Arrancava das cordas os gemidos, Subindo ao céu... em mágicos adejos. Mas, os anjos, querendo dar-lhe a palma Coroando o talento peregrino


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CENA 4 – O SERMÃO

456

“Quem não te conhece que te compra...”) O que foi que falaram? (A mesma voz responde: “Eu disse Amém, seu Zinho...”) Obrigado, assim seja. Para seguirmos corretamente nossa

Igreja. Inicialmente ouve-se música sacra e vê-se o Padre gesticulando em ritual

religião não basta pendurarmos medalhas no pescoço, acendermos velas, rezarmos terços e

de Missa, com os fiéis ajoelhando-se e pondo-se de pé, benzendo-se etc. Quando a mímica

colocarmos esmolas na bandeja toda semana, o que é muitíssimo importante. Precisamos

e o som cessam começa a homilia.

vencer a tentação da carne porque a tentação da carne é a arma mais poderosa do Demônio. Eu vos afirmo com a maior convicção, em nome do Cristo Crucificado, que deveis

PADRE

aproveitar a bendita oportunidade desse Imposto das Barrigas para vos reconciliar com a

Meus queridos irmãos e irmãs em Nosso Senhor Jesus Cristo! Antes de subir eu

Lei Divina, que é superior à Lei da Natureza. Fazei, pois, um voto de castidade conjulgal e

ao santo altar para oficiar esta Missa, o Sacristão piedosamente me informou que ontem à

acabai com a triste atividade do sexo a partir de hoje. As mulheres deverão lembrar-se da

noite, na esquina da praça, com o incentivo irresponsável de um poeta anarquista e

virgindade de Maria. E os homens deverão recordar que São Pedro, depois de se tornar

alcoólatra, infeliz transviado que na juventude abandonou o Seminário para abraçar a

Apóstolo, não tocou mais nunca em sua esposa. (Vozes femininas de protesto.)

heresia, e que tantas dores de cabeça já me deu, foi decretada a GREVE DO AMOR em

UMA CABOCLA

Cametá, como reação ao Imposto das Barrigas. (Os assistentes se acotovelam em

Vôte! Desconjuro.

expectativas.)

OUTRA

Minha prédica deste domingo será sobre tão magno assunto. Sinceramente, acho que não

Égua! (Para o marido.) Vamos simbora.

se justifica a desastrosa repercussão que o Imposto das Barriga está tendo. O Intendente,

POETA

que aliás se acha ausente da cidade e por isso ainda não foi confirmada a veracidade de tal

(Cambaleando, sem lograr acender um cigarro, alheio ao que se passa no

imposto, o Intendente, repito, deve ter as suas razões administrativas para cobrar trinta mil

ambiente.) Santa Helena Magno, tu é que foste grande e eu te invejo. Vou declamar aqui

réis pela gravidez de cada mulher deste município. Afinal de contas, é através dos impostos

nesta budega o teu “ANJO CAÍDO”. Adoro anjo, detesto padre cretino como o desta

que todo Governo arrecada os recursos financeiros para realizar as obras de interesse da

igreja, mas adoro anjos...

comunidade: escolas, hospitais, estradas e tudo aquilo de que necessitamos. Não vos

UM CABOCLO

esqueçais de que toda autoridade vem dos Céus, e de que também a Mãe Santíssima teve

“Seu” Pueta, arrespeite a casa de Nusso Senhur.

de pagar o seu tributo por ter no ventre o Salvador da Humanidade, não tributo em moeda,

OUTRO

é verdade, mas o tributo da fuga e do sofrimento. (Murmúrios indistintos.) Se, porém,

Escapula já-já daqui, seu menino.

meus caríssimos irmãos, não quiserdes pagar o imposto sobre a gravidez, escutai o

POETA

conselho que neste instante vos darei, rigorosamente de acordo com a Doutrina da igreja

(Indiferente a tudo, recita com dificuldade.)

Católica, Apostólica e Romana, que é infalível, como sabeis, e, notai bem isto, dirigida não por simples Intendentes, e sim por Ministros, digo, Ministros de DEUS. Não podeis

“Caiste, arcanjo, caíste

ignorar que o sexo, pela sua origem representa o pecado. (Entra o Poeta-Boêmio, a esta

No abismo da perdição;

altura não mais ligeiramente, e sim COMPLETAMENTE embriagado.) As Escrituras

No teu céu escuro e triste

Sagradas ensinam que o homem perdeu a graça do Criador porque comeu o fruto proibido

Não brilha mais um clarão;

do sexo. A castidade, isto é, não praticar o sexo, é a mais celestial das virtudes e nós

Nas faces alvas, formosas,

mesmo, os padres, vos damos o bom exemplo nesse sentido. (Ouve-se alguém dizer:

Onde Deus abrira as rosas


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458

Da virgindade e do amor,

POETA

Gravou teu impuro vício,

Eu não sou sacrílego, muito ao contrário. Como escreveu um grande Espírito...

Como pungente cilício,

(Toma com imenso sacrifício uma postura de mais dignidade.)

Selo de opróbio e de dor. “Eu creio em ti, oh! Cristo verdadeiro, Eu fui teu escravo um dia!

Essência da bondade e do perdão.

Em solene adoração

Cristo que não se troca por dinheiro

Dei-te o incenso da poesia

Nem que fez dos Evangelhos ganha-pão.

Nas aras do coração;

Eu creio em ti que não tiveste templo,

De teus olhos aos fulgores,

Pois foste dele símbolo perfeito

Como ao sol desabrocham flores,

Na pureza sem par do teu exemplo. Não creio é nesse Cristo-Imitação

Minh’alma desabrochei;

Que a idolatria aperta contra o peito

E no regaço da esperança,

E leva pela rua em procissão”.

Risonha, incauta criança, PADRE

Meus sonhos acalentei!

Ponham pra fora esse cachaceiro senão eu cometo um ato de loucura. Hoje, não: desse passado

UM CABOCLO

Não há vestígio sequer;

“Seu” pueta, pelo amor de DEUS, se avue daqui.

Ei-lo o encanto quebrado...”

POETA Saio, em consideração a vocês. (Aponta o Padre.) Não com medo deste sepulcro

PADRE

coiado, mistificador, lobo disfarçado em pele de ovelha, sedutor de viúvas, vil enganador

(Parte furioso na direção do Poeta-Boêmio.) Vou quebrar o teu encanto e a tua

do povo. Pobre povo... Cristianismo, cristianismo, quantos crimes são cometidos em teu

cara, filho da... treva (Os presentes se espalham, uns segurando o Padre, outros tentando retirar o Poeta do recinto.) UMA CABOCLA Valei-me, minha Nussa Senhura das aflições. UM CABOCLO Agura a porca vai turcer o rabo. PADRE Ponham no olho da rua este canalha que não permito sacrilégio na minha paróquia.

nome!...


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CENA 5 – PROBLEMA CONJUGAL

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HOMEM Vucê sempre disse que ninguém perde por esperá.

(Um casal de caboclos, caminhando vagarosamente com paradas cerimoniosas.)

MULHER Pru que vocês não vão falá com o Intendente.

HOMEM

HOMEM

O que te deu na cabeça, Cherubina, pra querê passiá uma hura desta?...

Não adianta, é malhá em ferro fruo.

MULHER

MULHER

Precisamos assuntá longe das criança...

Inquanto nós padece vucês nem seu-Souza...

HOMEM

HOMEM

Já sei o que tu vai dizê...

Isso vai passá mais ligeiro do que chuva com sol.

MULHER

MULHER

Puis é...

Não custava falar com o intendente, fazê uma imploração, quem sabe?...

HOMEM

HOMEM

Tá na casa do sem-jeito...

Ele é opinioso, não vai mudá de idéia, é mais fácil a baía do Guajará secá.

MULHER

MULHER

Será?...

Nós, muié é que já tá secando...

HOMEM

HOMEM

Tem a santa paciência, nós não vai se esfregá inquanto continuá esse marfadado

Te alembra do conselho do Padre.

Impusto das Barriga.

MULHER

MULHER

Aquele-um é uma vasilha ordinária!...

Seje o que DEUS quiser...

HOMEM

HOMEM

Cherubina, tu tem de cumpreendê, minha bichinha.

Inda bem que tu compreende.

MULHER

MULHER

Eu já disse que cumpreendo, mas inté quando?...

É... cumpreendo... mas que dói, dói...

HOMEM

HOMEM

Não se pode sabê.

Nós, os home, não pode dá o braço a turcer.

MULHER

MULHER

Inté quando muié honrada em Cametá vai ficar roendo uma pupunha?...

Mas nós, Paquito...

HOMEM

HOMEM

Nós, home, tem de sê pulítico.

Vocês não deve nos aperreá.

MULHER

MULHER Não é justo tirarem a nussa única alegria...

E nós, muié, tem de vivê de canto churado?...(Põe-se a soluçar e termina em pranto convulsivo.)


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CENA 6 – O RECURSO MEDICINAL

HOMEM Tem cada uma que parece duas!...

Uma falsa curandeira faz o seu pregão no mercado, para os caboclos e caboclas. CURANDEIRA Pode acreditar, minha gente. Pode acreditar que nunca decepcionei ninguém, não sou de fazer lambança com esta boca que a terra há-de comer. Eu só estou nesta terra há cinco anos mas vocês me conhecem de sobra. UM CABOCLO (Para outro.) Esta coerona não chegu em Cametá ano passado? CABOCLO (Respondendo) Paresque... Dizem os filhos de Candinha que ela se meteu numa atrapaiada do diacho, com a pulícia da capitar. CURANDEIRA Chorei na barriga da minha mãe, antes de me mudar de Belém para esta cidade, fui coroada pelo Pajé Procópio da vigia, porisso tenho vibração forte e tino apurado. (Exibe um garrafão.) Esta garrafada que preparei custa baratinho porém é garantida, dou o meu pescoço à cutelo se ela falhar. Mulher que tomar meia cuia desta garrafada, de três em três dias, no luar da madrugada, jamais ficará grávida. JAMAIS. Com esta milagrosa garrafada barriga de mulher não cresce nem a peso de gordura, quanto mais de filho. UM CABOCLO Puis sim, duvido que não cresce... (Risos) CURANDEIRA Cresce uma osga! Me respeite, me Mapinguari, não admito mangação, vamos acabar com a presepada. Já provei a todo mundo daqui que entendo do riscado. Não viram o que eu fiz nos últimos tempos? Não curei toda espécie de malefício, de espinhela caída à tuberculose? UMA CABOCLA É a pura veldade, ela curô mesmo. CURANDEIRA Fazendo sempre minha oração secreta, que não esqueci de rezar quando estava preparando esta garrafada, não curei mau olhado com galho de alecrim batido na testa e na nuca?


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OUTRA CABOCLA

OUTRA

Isso eu vi.

Quebradura do corpo...

CURANDEIRA

OUTRA

Não curei rasgadura de carne costurando um pedaço de pano benzido? Não curei

Encosto...

torcedura com uma faca virgem? Não curei terçol esfregando uma aliança de ouro e pondo

OUTRA

em cima do olho doente?

Barriga d’água...

OUTRA CABOCLA

OUTRA

É veldade, foi num curumim lá de casa.

Puxado...

CURANDEIRA

OUTRA

Não curei verruga jogando sal no fogo? Não curei ferida com sebo de Holanda e

Curô tudo o que foi tangurumango. CURANDEIRA

copaíba? Não curei erisipela com ramo de arruda?

Pois então por que não haveria de inventar um remédio contra a gravidez? A

OUTRA CABOCLA Sim senhora.

minha garrafada é um prodígio, gente. Foi feita com uma mistura de puxari, paricá,

CURANDEIRA

verônica, mucura-caá, marapuama e mais umas coisas que não revelo porque não sou

Não curei com benzedura, friccção, emplastro, linhaça, grelo de malvarisco, todo

besta, o segredo é a alma do negócio. Como é, ninguém compra? UM CABOCLO

tipo de enfermidade? UMA CABOCLA

O dinheiro anda vasqueiro...

É veldade. Curô ramo de ar...

OUTRO

OUTRA

Nós vai arresolvê, adespuis vorta...

Campainha arriada...

CURANDEIRA Quer dizer que não botam confiança na minha sapiência? Hein? Ninguém se

OUTRA Unheiro...

aventura? Ninguém vai experimentar? Vai ficar todo mundo aí de cara lambida?

OUTRA

UM CABOCLO

Nó na tripa...

Nós percisa primeiro pensá, dona menina.

OUTRA

CURANDEIRA

Panariço

Vá bugiar. E vocês outros, não se decidem?

OUTRA

UM CABOCLO

Mãe do corpo...

Nós tá de gleve do amur, não carece garrafada não.

OUTRA

OUTRO É isso mesmo, nós guenta firme sem triscá em muié inté aderribá o Impusto das

Chicote... OUTRA

Barriga.

Dor de madre...

OUTRO

OUTRA

Nós semos gente de vergunha na cara...

Farta de ar...


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CENA 7 – A SEGURANÇA PÚBLICA

CURANDEIRA Vocês são é uns lesos. E eu vou é voltar para Belém porque quem com os porcos se mistura farelo come!

Posto policial. O Delegado caminha preocupado de um lado para o outro.

UM CABOCLO (Para todos os outros.) Vamos se arribá daqui, pessoá, que essa mulherzinha acaba nos engabelando.

DELEGADO (Chamando) Cabo valente! (Pausa, voz mais alta.) Cabo Valente!!! Cabo VALENTE!!! CABO (Entra todo estropiado, mancando, com esparadrapo no rosto etc.) Desculpe, Delegado, eu estava bicorando lá fora uma novidade: parece que vão fazer uma baita reunião contra o Imposto das Barrigas. DELEGADO Você já está em forma, não está? CABO Mais ou menos, assim-assim. Esta noite dormi todo ensopado de andiroba, a inflamação diminuiu. DELEGADO Escute, você sabe que eu sou um homem educado e gosto de tudo dentro do figurino da lei, não é? CABO Perfeitamente. O senhor é um homem fino. DELEGADO Repita então para mim, mais uma vez, com todos os pormenores, e respeitosamente, sem usar palavras de baixo calão, sem falar nome feio, pois um policial deve saber se expressar, como foi que a briga começou? CABO Ah! Delegado, a pororoca estourou quando a última puta que estava no salão foi para o quarto com o homem. O senhor não imagina como está enchendo aquela pensão depois que os homens casados resolveram fazer a greve do amor com as esposas. A maioria deles passou a frequentar a pensão e o problema é que, infelizmente, aqui em Cametá nós temos poucas putas para atender esse estado de emergência. DELEGADO Pensando bem, a situação é difícil.


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468

CABO

DELEGADO

Difícil não, Delegado, é crítica. O senhor tem de cooperar como autoridade,

Não há dúvida.

permitindo que a dona da pensão resolva o problema da segurança na cidade, contratando

CABO

da Capital mais algumas putas.

Nossa cidade tem avançado, tem tido prosperidade. Tem... se desenvolvido.

DELEGADO

DELEGADO

Cabo, veja se você fala de maneira mais decente.

Concordo.

CABO

CABO

Sim senhor, eu só queria dizer que, por falta de mulher naquela pensão, nós

E então?

estamos entrando em uma situação de calamidade pública.

DELEGADO

DELEGADO

Então o quê?

Eu não posso consentir, pelo menos oficialmente, que tragam para cá mais

CABO

prostitutas. É contra os meus princípios morais e pode desencadear uma repercussão

Já é hora da gente ter aqui uma zona do meretrício.

política negativa para o governo.

DELEGADO

CABO

Você está louco?

Mas Delegado, o senhor que é um homem tão ilustrado, raciocine comigo: se o

CABO

problema todo é... DELEGADO Você desviou o assunto. O que desejo saber não é nada disso, o que me interessa saber, minuciosamente, é como a briga teve início. Conte outra vez.

Ora, Delegado, quanto mais uma cidade se deselvolve, progride, mais o pessoal quer trepar... DELEGADO Cabo, você não é capaz de mudar esse seu palavreado de beira de praia?

CABO

CABO

Foi o seguinte, como já disse: quando dei entrada no salão para manter a ordem

Não leve a mal, Chefe, eu falo certas palavras sem sentir.

tinha uns oito agarrados, aos tabefes, e uns quatro ou cinco nus. Aí a solução foi baixar o

DELEGADO

pau. O que me falaram depois que acordei do desmaio, foi que tudo começou porque faltou

Não estou disposto a continuar ouvindo esta sua linguagem despudorada.

mulher e a dona da pensão se recusou a ir para o quarto com um sujeito, alegando ter mais

CABO

de sessenta anos e sofrer de reumatismo. Coitada da velha. E coitado de nós se não aparecerem mais... (Olha para o Delegado.) raparigas... DELEGADO

Sim senhor, me perdoe mais uma vez. É que eu estava acostumado com o outro Delegado, e como o senhor sabe, o outro Delegado não tinha muita escola nem crença religiosa firme, como a sua. Aliás, por aqui é uma raridade gente da sua seita.

De fato o caso é sério. Seríssimo. Pior do que isso, só eleição.

DELEGADO

CABO

Lastimavelmente isso é verdade. Por tal motivo é que estamos enfrentando essa

Delegado, eu posso falar com o senhor de homem pra homem? DELEGADO Pode. CABO Eu acho que Cametá tem progredido muito ultimamente.

devassidão. CABO Delegado, eu lhe confesso uma coisa. Não sei como um homem como o senhor pode ser autoridade policial.


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CENA 8 – COLÓQUIO

DELEGADO Nesse ponto você tem toda razão, nem eu sei... O povo é que sabe, quando diz que a necessidade é que faz o ladrão. CABO

Caboclos pescando em pequenas canoas (O diálogo desloca-se de uma para outro.)

Esse negócio de necessidade é que fode com tudo. DELEGADO

UM CABOCLO

(Ríspido) Cabo, você não me diz uma frase sem chamar nome feio?!

Rema, Reimundo.

CABO

OUTRO CABOCLO

Perdão, perdão.

Guenta firme no jacumã, Zé Piramutaba.

DELEGADO

OUTRO

Ou você limpa esta boca suja ou eu peço a sua transferência.

Eita pau! Nós huje vai enchê a pança de tambaqui gurdo.

CABO

OUTRO

Sim senhor, fique tranquilo que vou fazer um esforço para me corrigir. Afinal de

Vai nada, o lago tá sarú.

contas isto aqui é uma delegacia de polícia, não é um puteiro.

OUTRO

DELEGADO

É mesmo, só tem pirambóia.

Chega!!! Pode se retirar. Vá lá dentro, abra o xadrez e veja se o Poeta já acordou.

OUTRO

CABO

Joga a tarrafa que aqui costuma aparecê muita tainha e jandiá.

Perfeitamente. Mas... não esqueça, Delegado, que zona de meretrício é o lugar

OUTRO

mais bem organizado que existe, uma verdadeira democracia: todo mundo se entende,

Cuidado, sumano, que neste remanso já levei choque de puraqué.

colabora, a gente passa lá somente para fazer a coleta das taxas e das gorjetas,

OUTRO

demonstrando que cumprimos com o nosso dever de zelar pelos bons costumes.

A mãe d’água vai nos dá sorte, cumo vai azará o Intendente. UM CABOCLO Cumpadre, vaçuncê tá firme na gleve do amur? OUTRO Ora si-si! OUTRO Eu também não dô meu braço a turcê. OUTRO Da minha parte, juro que não vô avacalhá a gleve. OUTRO Jura pela fé da mucura? OUTRO Olhe lá, cumpadre, quem jura falso vira carcunda pro ar.


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UM CABOCLO

OUTRO

Esse Intendente tem o tino do Capeta.

Com a ajuda do pueta.

OUTRO

OUTRO

Se nós ameaçá ele de morte matada vai sê água fria na fervura.

Não adianta, é chuvê no molhado.

OUTRO

OUTRO

Precisamos mustrá que quem tem nariz furado é índio.

O Guvernador mata, o Intendente esfola.

OUTRO

OUTRO

Nós tem de prutestá, mas com braveza. Quando não se pode com o pote não se

Todos dois são umas buas biscas.

pega na rudilha.

UM CABOCLO

UM CABOCLO

Também nós não percisava fazê dessa gleve um bicho de sete cabeças.

Ninguém vai desanimá na gleve.

OUTRO

OUTRO Aquele que fraquejá leva uns supapos.

Não percisava uma ova! Vucê não dizia isso se a sua muié fusse espuletada cumo a minha.

OUTRO

OUTRO

A minha muié não tá se cunfurmando, anda dando pinote que nem piranha duida.

E a minha? É de lascá...

OUTRO

OUTRO

A minha tá mais murcha do que pinto gouguento.

A minha anda cuíra pra me dá o laço.

UM CABOCLO

UM CABOCLO

Sabe, a minha vida mudô depuis dessa gleve. Antigamente era uma vida carma, ia escurregando de mansinho, cumo mururé de bubuia na curva do rio...

Cunhado, o João Lambança me falô que viu vucê ante-onte de tardinha entrando no mato com a Maria Piaçoca.

OUTRO

OUTRO

Essa gleve precisa acabá logo pra nós tirá o pé da lama.

Deixe de mardade que sô homem caseiro.

OUTRO

OUTRO

É, estemos passando uma bicheira.

Eu cunfesso que, se a gleve não minguá logo, vô me arrumá pur trás da bomba

OUTRO

com a Juana Pataqueira.

Más nós guenta, inté quebrá a castanha na buca do Intendente.

OUTRO

OUTRO

Deixa o Mané Tralhoto te pegá com ela!...

Se a gente fizé um cumício esbudegado na purta da casa dele, apusto que vai sê

OUTRO

pá-casca.

Vaçuncê não tá com vuntade de dá uma espremidela na sua muié?

UM CABOCLO

OUTRO

O macaco-suim desse Intendente tá empiriquitando o nosso vivê, mas porém

Tô. Na minha ou na muié de arguém...

ainda acaba estrebuchando. OUTRO Nós devia escrevê pro Guvernador, butando os podres dele pra fora.


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CENA 9 – PROBLEMA CONJUGAL

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MULHER Só uma trisca.

Casal de caboclos deitados em uma esteira porém separados por paneiros

HOMEM Nós não pode incustá barriga. Gleve é gleve.

. MULHER

MULHER

Marido, tu tá drumindo?

Mas eu não sei drumir desse jeito e qualidade.

HOMEM

HOMEM

Ahn...

Não me tenta, pequena.

MULHER

MULHER

Já tá drumindo? HOMEM

(Depois de uma pausa em que procura se acomodar em várias posições e não consegue.) Marido...

Quase-quase, só farta um tiquinho.

HOMEM

MULHER

Danou-se!

Tu não tem sunhado cuisa feia?

MULHER

HOMEM

Tu não tem um pingo de pena desta pobre cuitada?

Puça! Que sugigação, me deixa em paz.

HOMEM

MULHER

Me deixa sussegá pelo amur de DEUS.

Eu não sei drumi assim.

MULHER

HOMEM

Quem diria!

Paciença...

HOMEM

MULHER

Te alembra a Virge Maria.

Não acha milhor arretirá esses paneiros de riba de nós?

MULHER

HOMEM

Tu parece que tumô abuso de mim...

Macaco velho não mete a mão em cumbuca...

HOMEM

MULHER

Que bicho te murdeu?

Eu queria me esquentá um pouquinho na tua ilharga.

MULHER

HOMEM

Eu não sô nenhuma fedorenta, ouviu? Cheirando a pitiú de cascudo.

Não tá fazendo frio.

HOMEM

MULHER

É a gleve, muié, aunde eu desencavo trinta miréis quando o teu bucho impiná?

Mas eu queria pra mode o sono chegá.

MULHER

HOMEM

Não impina, eu afianço.

Te aquieta, apaga o fugo.

HOMEM Puis sim!


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MULHER

HOMEM

Deixa de ruindade.

Faz uma prumessa pra Nussa Senhura de Nazaré que te alevo em Belém pra

HOMEM

acumpanhá o Círio.

Ruindade não, farta de grana pra enchê a pança do Intendente.

MULHER

MULHER

Eu acabo é perdendo a cabeça...

E se eu pagá o impusto? Posso arrebanhá um dinheirinho fazendo beijus. Uma vez

HOMEM

já não fiquei baluda vendendo tapioca? (Levanta-se entusiasmada.)

Basta sabê esperá. Mais dia menos dia nós faz o Intendente metê a viola no saco.

HOMEM

MULHER

(Sentando-se) Estô canço de te dizê, essa menina, que nós não pode se agarrá

Isso parece cuisa do tempo do trancoso.

inquanto a gleve continuá. O causo é este.

HOMEM

MULHER

Tá na casa do sem-jeito.

Mas inté quando?

MULHER

HOMEM

Nunca te vi tão cheio de éfes e erres.

Isso só Nusso Senhur sabe.

HOMEM

MULHER

Puis tá vendo. Cabuco também tem direito de fazê gleve e sê impurtante.

A situação fica cada vez mais preta e essa gleve não ata nem desata.

MULHER

HOMEM É...

Se vucês home, que tem a vara do diabo entre as pernas, não fizé nada pra butá abaixo esse impusto misererê, nós, as muié, vai tomá as providença.

MULHER

HOMEM

Que pissica!

Que providença?

HOMEM

MULHER

E tu acha que fica bem pra um cabuco maneiro cumo eu, um cabuco de palavra,

Nós já se cumbinemos. Vamos fazê uma que parece duas.

um cabuco que não tem sangue de barata, furá gleve?

HOMEM

MULHER

É?

Escuta, se eu ingravidá o puvo só vai sabê depuis de quatro meses.

MULHER

HOMEM

Vão se fiando...

Podem adescubrirem a nussa manha quando te verem com enjuo.

HOMEM

MULHER

(Curioso) Vucês, muié, tão maquindando fazê alguma embuança?

Nós nega, não se dá pur achado.

MULHER

HOMEM

Estemos.

A tua cara não treme?

HOMEM

MULHER

É mesmo?

Não tô suportando mais...

MULHER Na batata!


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CENA 10 – A ANÁLISE DA SITUAÇÃO

HOMEM Deixa de lorota. MULHER

Em uma barbeari.

Não acredita? Pensa que nós já não se arreuniu na casa da Dica Jabá? HOMEM E o que vucês cumbinaram? MULHER Vamos pintá a saracura. HOMEM Sim senhur, quem diria!... MULHER Pur inquanto nós tá se fazendo de besta pra ir passando, mas vai butá tudo em pratos limpos. HOMEM Vão aperreá nós ou o Intendente? MULHER Não sei, quem for pudre que se quebre... HOMEM Era só o que fartava! MULHER O pau vai chinchá! HOMEM Mas é mesmo? MULHER E nós qué vê o tremelique de vucês na hora da meleca. HOMEM Nós arrecunhece que vucês tem carradas de razão. MULHER Puis antão parem com essa gleve chinfrim que mal e porcamente selve pra nos amufiná. Façam arguma coisa. HOMEM Fazê o que? MULHER Sei lá, cobra que não anda não engole sapo. Se mexam, seus pamonhas.

BARBEIRO (Enquanto vai cortando o cabelo do cliente.) Mas doutor, o que o senhor me diz do Imposto das Barrigas? PROMOTOR Prefiro não dar opinião sobre o assunto antes de consultar a jurisprudência dos Tribunais. BARBEIRO Espere aí, doutor, o senhor não pode se negar a meter sua colher na maniçoba desse caso. Afinal de contas o nosso Juiz é um “boa vida”, sem noção de responsabilidade, passa a maior parte do tempo em Belém e não aqui, e o senhor, cá pra nós, como Promotor da Comarca, é o único homem neste município que conhece a lei a fundo. Sua opinião é preciosa. Eu penso que trinta mil réis por gravidez é uma exploração. Aliás, que ninguém nos ouça, o Intendente é um ladrão, além de corno. Dizem que a mulher dele quando vai à Capital dorme com um figurão de lá. Mas o que o senhor acha? PROMOTOR O que eu acho de QUE e de QUEM? BARBEIRO O que o senhor acha do novo Imposto. É legal ou ilegal? PROMOTOR Em primeiro lugar é preciso saber se é real. BARBEIRO Como assim? PROMOTOR É possível que a notícia da instituição do Imposto das Barrigas, para mim suspeita, não passe de uma intriga política. É possível que tenham aproveitado a viagem do Intendente para articular contra ele um faccioso processo de incompatibilização com o povo, ou talvez até com o próprio Governador. Mesquinharia da oposição.


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BARBEIRO

BARBEIRO

Mas doutor, a população pobre já está em plena greve do amor. O que acha da

É, dá pena... Como diz o Promotor, democracia é um regime complicado.

greve?

COMERCIANTE PROMOTOR

Claro. Nos tempos de Monarquia tudo era mais fácil e com a lei da chibata havia

Bom, quanto à greve, o que eu posso declarar, com amparo na experiência, é que

compostura. Você não vê que hoje ninguém leva as coisas a sério e poucos pagam dívida?!

do ponto de vista jurídico ela é quase sempre legal, e do ponto de vista político é sempre

Se soubesse quanto já perdi somente em fiado ia se espantar. Aliás, a sua filha fez uma

ilegal.

conta lá no armazém e ainda não pagou. BARBEIRO

BARBEIRO

Agora o senhor me enrolou. Qual é o ponto de vista que vale?

Pode confiar que se ela não pagar, eu pago. Felizmente a greve que se espalhou

PROMOTOR Aí depende. Democracia é um regime muito bonito porém meio complicado. Na

por aí é a greve do amor, não é a greve da barba e do corte do cabelo. COMERCIANTE

prática, historicamente, o ponto de vista que prevalece é aquele que interessa ao Governo...

Sabe que essa greve está me deixando preocupado?

(A luz apaga e quando acende já é outro cliente que se encontra na cadeira.)

BARBEIRO

BARBEIRO

É? Mas por quê? O senhor não tem nada com ela.

Como vão os negócios?

COMERCIANTE

COMERCIANTE

Como não tenho? E as consequências dessa greve, se ela for em frente?

De mal a pior. A pindaíba do povo é grande.

BARBEIRO

BARBEIRO

Que consequências, “seu” Moreira?

Ainda mais agora com esse Imposto de trinta mil réis por mulher barriguda. É o

COMERCIANTE

fim do mundo. COMERCIANTE

Você é mesmo um tapado. Não vê que, se não nascer gente nova, a população vai acabar, porque os velhos vão morrendo e não tem outros pra ficar no lugar deles?

Bem feito, quando a gente se queixa dos impostos ninguém concorda.

BARBEIRO

BARBEIRO

Ora, isso ia demorar muito.

Espere ai, “seu” Moreira, o senhor é um comerciante riquíssimo, não tem o direito

COMERCIANTE

de reclamar.

O meu prejuízo não vai demorar não, começa daqui a nove meses. Cada criança

COMERCIANTE

que deixa de nascer é menos um pipo que eu vendo, menos mamadeira e uma porção de

É, mas se eu fosse pagar todos os impostos já tinha ido à falência.

latas de leite. Isso sem contar depois as fazendas para roupa, os sapatos...

BARBEIRO

BARBEIRO

Tinha nada, “seu” Moreira. Além dos seringais o senhor tem casas e mais casas no

Sabe que o senhor é um homem inteligente?! Muitíssimo mais inteligente do que

Rio de Janeiro. É ou não é?

o Promotor, que não entende patavina do cargo. Cá pra nós, em vez de me dizer se a greve

COMERCIANTE

é legal ou ilegal, ele consumiu o tempo todo querendo me provar que o Intendente é corno.

E as minhas despesas particulares? Você sabe quanto me sai por mês um filho

COMERCIANTE

estudando Medicina em Paris e uma filha se formando em balé e canto lírico na Itália? Sou

E você acreditou?

um sacrificado, meu amigo, um sacrificado.


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482

BARBEIRO

COMERCIANTE

Absolutamente. Defendi como pude a mulher do Intendente que, como o senhor

Você é mesmo ignorante. O primeiro dever de um governante é continuar

sabe, é uma mulher honrada.

governando, homem. O resto é potoca!

COMERCIANTE

BARBEIRO

Honradíssima. Estudou no mesmo Colégio de freira da minha mulher. Dizem que

O senhor tem toda a razão. Eu sempre digo que em todo este município a única

ela casou atrás da porta, com cinco meses de grávida, mas isso foi por culpa da própria

pessoa que entende à fundo de política é o senhor. Mas cá pra nós: não acha que se pelo

família.

menos uma vez ou outra a oposição ganhasse... BARBEIRO

COMERCIANTE

Vai ver que por causa disso é que o Intendente empinimou agora com a mulher

Você é comunista???

barriguda.

BARBEIRO

COMERCIANTE

Quem, eu? Que disparate!

Não, não, o intuito dele deve ser ganhar para o Governo a próxima eleição em

COMERCIANTE

Cametá.

Tome cuidado com essas ideias, hein?! Não se esqueça de que a liberdade atual do BARBEIRO

País é para inglês ver. Se o povo mijar fora do caco o Governo dá o aperto.

Não entendi. O que tem isso a ver com mulher grávida?

BARBEIRO

COMERCIANTE

De fato, “seu” Moreira, de fato. Graças a DEUS a época não é de apertura...

Que burrice a sua, homem. Então não sabe que eleição só se ganha com bastante

COMERCIANTE

dinheiro?

Vá se fiando, vá. O Partido “Mamanãomama” está cada vez mais se

BARBEIRO

enfraquecendo, e se as coisas não mudarem, anote isso, essa brincadeira de Democracia

E daí?

acaba indo por águas abaixo.

COMERCIANTE

BARBEIRO

Daí que ele tem de arrecadar mais imposto para gastar na marmelada eleitoral.

Será possível?

BARBEIRO

COMERCIANTE

Ah! Sim, bispei. O Intendente é contra mulher prenha mas é a favor de emprenhar

Ainda pergunta?! O que não é possível neste País, homem?!... (Levanta-se, com o

a urna...

término do corte de cabelo, e vai saindo.) COMERCIANTE

BARBEIRO

Essa qualidade de patriota ninguém pode negar a ele.

O senhor esqueceu de pagar, “seu” Moreira.

BARBEIRO

COMERCIANTE

O senhor falou PATRIOTA?...

A sua filha também esqueceu de pagar o armazém. Depois a gente acerta as

COMERCIANTE Como não? “O Brasil espera que casa um cumpra o seu dever”, não espera? E qual é o primeiro dever de um governante, seja Intendente ou lá o que for?

contas. (A luz apaga. Ao acender, outro cliente.) BARBEIRO Quem diria! Daqui a pouco temos que pagar imposto até para catar piolho. Todo

BARBEIRO

mundo está desgostoso. Imagine o senhor que até o “seu” Moreira, nosso maior capitalista,

Trabalhar em benefício do povo.

virou contra o Governo.


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TABELIÃO

com a sua competência. Eu sempre digo que nenhuma outra pessoa conhece a fundo os

Nessa eu não creio. O “seu” Moreira contra o Governo? Qual foi o mentiroso que

nossos problemas como o senhor.

lhe falou tamanho absurdo?

TABELIÃO

BARBEIRO

Bondade.

Ele mesmo. Mas, pelo amor de DEUS, não conte a ninguém senão estou frito.

BARBEIRO

TABELIÃO

Não é não, é justiça. Por esse motivo é que o senhor não pode deixar de colocar o

O “seu” Moreira voltou-se contra o Intendente???

seu jambu em qualquer tacacá que apareça. Por exemplo: quem melhor do que o senhor

BARBEIRO

para dar um parecer sobre o Imposto das Barrigas? É legal ou ilegal? O promotor não sabe.

Não é bem assim. Contra o Intendente ele não tem nada. Os dois continuam como

Mas também o Promotor, como ninguém ignora, é uma besta quadrada... (A luz se apaga.

grandes amigos, apenas o “seu” Moreira acha que é uma vergonha a mulher do Intendente

Ao acender, o último cliente.)

dormir com tudo quanto é homem em Belém e ele se fazer de inocente. O busilis é que por

BARBEIRO

causa de todos esses impostos, inclusive o das Barrigas, porém principalmente os outros, o

Não se zanga se eu lhe perguntar uma coisa?

“seu” Moreira chegou à conclusão de que é mais vantagem os comerciantes eleger os

POETA

candidatos da oposição. TABELIÃO

(Inteiramente sóbrio.) A esta altura da vida não me aborreço por mais nada, irmão. O que tu queres saber?

Mas não é possível!...

BARBEIRO

BARBEIRO

É verdade que o Delegado mandou lhe prender e lhe espancou?

O que não é possível neste País, meu caro?

POETA

TABELIÃO É uma incoerência da parte do “seu” Moreira.

É mentira. Pelo contrário, eu estava caído de embriaguês e ele somente evitou que eu dormisse ao relento.

BARBEIRO

BARBEIRO

Por favor, não espalhe: ele está disposto a financiar a campanha da oposição;

Esse Delegado é um cínico de marca maior. Imagine que o sonho dele é abrir aqui

garantiu que vai comprar votos com a finalidade de derrubar o Governo do Estado, a fim

uma zona do meretrício...

de poder atacar o Governo Federal, porque a democracia brasileira, na sua opinião, já está

POETA

tão forte que ninguém mais conseguirá implantar uma ditadura nesta nação.

Deixa de ser venenoso.

TABELIÃO

BARBEIRO

Morrendo e aprendendo...

Não acredita? Pois fique ciente de que, ontem, o salafrário autorizou a dona da

BARBEIRO E o senhor, o que acha? Cá pra nós. TABELIÃO

pensão a mandar buscar em Belém uma penca de prostitutas. Um escândalo. POETA Escândalo por quê? Não existe prostituição em toda parte? Não existiu sempre a

Eu só entendo de Cartório.

prostituição, desde que inventaram o dinheiro a fim de que os mais espertos enganassem os

BARBEIRO

mais tolos e os mais fortes explorassem os mais fracos?

Ora, o senhor é quem registra todos os documentos da cidade e por isso sabe de tudo. Além do que é um homem inteligentíssimo; nunca este município teve um Tabelião

BARBEIRO Desculpe, mas acho uma afronta às pessoas distintas da sociedade.


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POETA E a maioria dessas pessoas distintas da sociedade não são moralmente prostituídas? Não vendem a consciência, o que é muito pior do que alugar o corpo para sobreviver? BARBEIRO Não precisa se queimar, Poeta. Você quando está coçado é uma flor de sujeito, porém quando não bebe vira espinho... POETA Está bom, corta o cabelo e não chateia mais que hoje, de ressaca, não quero conversa fiada. Ando farto de tanta hipocrisia. Tu sabes o que é tédio? BARBEIRO Não. POETA Então não tens a menor condição de me compreender. (Pausa; o Barbeiro tem dificuldade de prosseguir seu trabalho sem tagarelar.) BARBEIRO Eu admiro você. Sempre digo que em todo este município ninguém conhece a mais fundo a sociedade do que você. É uma pena que não tenha se formado em Padre. Se tivesse a gente não estava agora tendo de suportar esse Vigário que, cá pra nós, é um grandíssissimo patife. Quem sabe se, um dia, você volta para a religião? POETA A poesia é a verdadeira religião, meu velho, a religião do amor universal, exatamente aquela que Cristo pregou. BARBEIRO Não vá querer me dizer que Jesus foi um poeta... POETA Como não foi? Tu já leste os Evangelhos? O sermão da montanha é um poema, o mais belo que alguém declamou em todos os tempos. BARBEIRO Mas os Evangelhos não são apenas o Sermão da Montanha. Tem outros Sermões. POETA Tem. Em todos eles a mesma beleza verbal ao lado da mesma mensagem de humanismo. (Com inflexão alterada, mas serena.) “Amai-vos uns aos outros, assim como vos amei...

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Olhai os lírios do campo; eles não semeiam nem tecem, entretanto eu vos digo: nem Salomão com toda sua realeza se vestiu como um deles... Não deis aos cães as coisas santas, nem atirai aos porcos as vossas pérolas... Os olhos são as candeias do corpo; se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz... Não acumuleis tesouros na terra, onde a traça rói e o ferrugem consome...” BARBEIRO (Conclui o corte de cabelo um tanto sensibilizado.) Não precisa pagar, Poeta, é uma cortesia da casa. POETA Ainda bem, porque hoje estou sem um vintém no bolso.


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CENA 11 – O APELO PARA O CÉU

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Ânios Dei Tiráti Pecata Múndi... Saúde dos enfermos.

Sobre tosca mesa coberta com toalha branca vê-se a Coroa do Divino, uma coroa de latão com friso prateado, encimada por uma pomba representando o Espírito Santo. Junto uma bandeira vermelha tendo ao centro, recortada em pano igualmente branco, a mesma alegoria, isto é, a Pomba do Divino Espírito-Santo. Uma mulher idosa, a Tiradeira de Ladainha, dá retoques finais no ambiente iluminado por velas em profusão. As caboclas vão chegando; uma de cada vez se ajoelha ante a Coroa do Divino, segura-a com as duas mãos, beija-a, ajusta-a na cabeça cuidadosamente, depois repõe no lugar, levantando-se contrita de genuflexão e posicionando-se no recinto para a reza. Quando todas se encontram arrumadas tem início a ladainha, que tanto pode ser recitada como cantada. Começada a ladainha a cena se conserva muda por um breve tempo, observando-se unicamente a gesticulação dos participantes.

Refúgio dos Pecadores... (A critério da direção do espetáculo alguns trechos podem ser suprimidos para não tornar a cena cansativa, sempre empregando-se o recurso de sugerir corte da ação. Fundo musical, se for utilizado, deverá ser de flauta e rebeca.) TIRADEIRA DA LADAINHA Oh! Mãe Santíssima que concebeste sem pecado. CABOCLAS EM CORO Orai por nós. TIRADEIRA DE LADAINHA Em nome do Pai, do Filho e do Espírito-Santo. CABOCLAS EM CORO Amém.

TIRADEIRA DE LADAINHA Estela matutina... CABOCLAS EM CORO Orá pro Nóbis. Orá pro Nóbis. Orá pro Nóbis. Orá pro Nóbis. TIRADEIRA DE LADAINHA Virgo Veneranda... CABOCLAS EM CORO Orá pro Nóbis. (Repetem mais três vezes como anteriormente e, a partir de então, todas as diversas falas da tiradeira de ladainha que seguem suscitam a mesma resposta das caboclas em coro.) TIRADEIRA DE LADAINHA Virgo Prudentíssima... Estela de Davi... Torre de Marfim... Arca da Aliança... Porta do Céu...

TIRADEIRA DE LADAINHA Pronto, agora tenham confiança, não esmoreçam. UMA CABOCLA Madrinha, nós não suportemos mais a urucubaca dessa gleve. TIRADEIRA DA LADAINHA Não se desespere, minha filha. Eu aposto meu oratório inteiro por um crucifixo de madeira bichada como o Intendente, se não chegar de hoje para amanhã, manda um telgrama desfazendo o Imposto das Barrigas. OUTRA CABOCLA Será, cumadre? TIRADEIRA DE LADAINHA Pode escrever. OUTRA CABOCLA Tô vendo a situação ficá cada vez mais embuletada. OUTRA Nós estemos no mato sem cachorro. OUTRA Na pió caipora.


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CENA 12 – PROBLEMA CONJUGAL

OUTRA (Para a Tiradeira da Ladainha.) Dona Menina, a senhura que tem sabença de prufessura nos diga uma cuisa: se nós, a cabucada arreunida de Cametá, mandá um paper assinado pro Guvernador, ele não se apiada da nussa padecença e não faz esse Intendente

Casal de caboclos à mesa de refeição. Ela muito insinuante, ele extremamente desconfiado.

curubento dá um passo atrás? TIRADEIRA DE LADAINHA Minha filha, é mais fácil uma de vocês dar um passo em falso... UMA CABOCLA É, estemos num beco sem saída. OUTRA Só nos resta a Pomba do Divino Espírito-Santo!...

HOMEM (Depois de esvaziar o prato.) O que foi que tu butaste nesta supa de aviú? MULHER Sapequei um puquito de tucupi pro gusto ficá deferente. HOMEM E não é que fico mais gustoso do que bóia de rico? MULHER Muito ubrigado pelos elugius, eu não sô merecendente. HOMEM Escuta aqui, pequena, tu não mete prego sem estupa!... MULHER (Há uma pausa em que os dois se entreolham significativamente.) Pru que tu tá cheio de nove horas? HOMEM Tu é matreira que nem carará. MULHER O que te deu na caixola? HOMEM Tu tá querendo me butá a perdê, mas isso é puro iludimento teu. Eu não vô me escapá da gleve! MULHER Não te avexa, meu passarinho verde. (Acaricia a cabeça dele.) HOMEM (Afastando-se) Não vem com dengo que tu não me faz quebrá o juramento. MULHER E quem te disse que tô querendo chamego? HOMEM Tu tá me tentando sim.


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MULHER

MULHER

Cumo antão?

Tu prefere de huje pra frente passa à caribé? Eu não pusso deixá tu adoecê de

HOMEM

fraqueza, meu xerimbabo de estimação. Tu tem de cumpreendê isso, meu buto formuso.

Tu onte tava plantando um tamba-tajá.

(Aproximando-se de novo dele dengosamente.)

MULHER

HOMEM

E o que tem isso?

(Empurrando-a) Murde aqui que te dô trela!

HOMEM

MULHER

Tu huje parece que tumô banho de cheiro.

Puis de agura em diante eu quero que tu se lixe.

MULHER

HOMEM

Menas veldade. HOMEM Tu tá, sim, cheirando a cumaru e priprioca. Cunfessa, cabuca sapeca, tu tá querendo me fazê buliná em ti. MULHER Que pavulagem! HOMEM Magina que sô bubo? Eu te cunheço. MULHER Pela luz divina que esta-uma aqui não qué que tu bula com ela. HOMEM Puis sim, santinha do pau uco!... MULHER Deixa de sê gabola. HOMEM Antão pru que tu anda tuda cheia de quindim? MULHER Mas que mal agradecido! Tu devia era ficá cuntente por tê uma espusa cumo eu, que perdua tudas as traquinage e ainda cuida de fazê petisco pra tu não emagrecê. HOMEM É, mas aqueles uvos de tracajá que tu fez pra mim onte não foi com bua intenção...

Se calhá eu vô atraiçoá os meus cumpanheiros de gleve? Murro tísico e não farto com a minha prumessa. MULHER Pensa que me impurta? Axi! Porcaria...


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CENA 13 – A FARRA

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MULHER Ainda não tive tempo de conhecer a cidade. Você é um moreno simpático.

Pensão das prostitutas. Clientes amesendados, mulheres “fazemdo salão” bem e mal vestidas, casais dançando etc. Música de gafieira regional. Luz vermelha.

CABOCLO (Encabulado) Vucê, sim, é que é uma cunhantã de mais buniteza do que pluma de arara-piranga.

POETA

MULHER

(Meio embriagado, para a dona da Pensão.) Por favor, traga mais uma

Obrigada, benzinho.

gengibirra, dose dupla. DONA DA PENSÃO Pois não, mas escute aqui: hoje você vai pagar ou passar o calote? POETA O que é isso, minha tia?! Não confia mais no seu fiel amigo? Onde está a grandeza da sua alma generosa? DONA DA PENSÃO

CABOCLO Vai gustá de Cametá. O puvo daqui é curdeiro. Nós semos cabuco de pensamento cariduso. MULHER Quer dizer que vai me pagar bem?... Desculpe perguntar logo de cara, queridinho, mas você tem como me pagar bem? CABOCLO

Ah, meu uirapuru no choco, você fala muito lindo, eu adoro ouvir o seu

Mais ou menos, assim-assim, não quero me gabá pruque quem tem buca dura é

palavreado domingueiro, porém preciso é de angariar mais uns cobres. Estou endividada

charéu. Uma cuisa eu lhe afianço: o meu sítio não tem coivara e se vucê cuncurdá em tê

com as despesas destas meninas que mandei buscar em Belém. Só para o Delegado eu tive

um xodó cumigo, inquanto durá a gleve du amur, eu posso lhe presenteá um curdão de uro.

que dar um conto de réis de mole. E ainda molhei a mão do Cabo. POETA Até o Delegado já se corrompeu? Minha tia, a senhora é a única pessoa honesta nesta terra. DONA DA PENSÃO E o pior é que uma das meninas achou de engravidar. Lá se vai mais despesa... (Sai para apanhar mais bebida.)

OUTRA MULHER (Para uma colega que “faz salão”, ambas mal vestidas.) Estas serigaitas que chegaram da Capital vão tomar todos os nossos homens. COLEGA Vão tomar somente por uns dias, enquanto forem novidade. Tudo cansa, não liga que mais cedo do que tarde torna a chover no nosso roçado. MULHER

UM CLIENTE

Sabe de uma coisa? Eu tenho a impressão de que uma delas está toda engalicada.

(Para o companheiro da mesa.) Estas novatas são do arromba. Eu vou pegar

COLEGA

aquela ali. (Aponta) Olha só os peitos que ela tem. O OUTRO É um peixão. UM CABOCLO (Para uma das mulheres mais bem vestidas.) Está gustando de Cametá, essazinha?

Isto é que é péssimo. A freguesia diminui da noite para o dia quando algum homem se queixa de ter pegado esquentamento. UM CLIENTE (Para a dona da Pensão.) Mais um licor de genipapo. (Para o parceiro de mesa.) Estou estranhando te ver aqui. PARCEIRO Aderi, com armas e bagagens, à greve do amor.


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CLIENTE

POETA

Essa greve é uma piada, rapaz, somente a caboclada está levando a sério.

(A dona da pensão chega com a bebida, ele sorve um trago.) Já que exigem...

PARCEIRO Pode ser, isso não me interessa muito. O que eu desejo mesmo é sair da coleira de marido. São quase dez anos de casado...

preferem algo alegre ou romântico? OUTROS Qualquer coisa! Alegre! Romântico! O que quiser!

UMA MULHER

POETA

(Para uma colega, designando outra que se encontra distanciada, todas três

(Erguendo-se) Então tapem os ouvidos que lá vai bomba. (Canta uma canção

vestidas pobremente.) Repara aquela tipa, como é enxerida. COLEGA Parece que tem o rei na barriga. MULHER

dolente, que tanto pode ser um tango argentino como uma modinha brasileira.) TODOS (Aplaudindo no fim da interpretação.) Muito bem! Maravilhoso! Você é grande! Bis! Mais uma!

O que ela tem na barriga é o baita dum filho.

POETA

COLEGA

Não, chega. (Bebe o resto da cachaça.) Vamos é balançar os esqueletos. (A

De novo? Esta uma pare que nem preá.

música para dança retorna e os pares se espalham euforicamente pela sala; nota-se que o

MULHER

poeta conversa mais do que dança com a sua dama, a qual pela roupa pobre, identifica-se

Dessa vez não vai parir não, vai abortar.

como uma das prostitutas veteranas da pensão; à medida em que conversa ele vai

COLEGA

mudando de postura, sobretudo de expressão facial até ficar transfigurado.)

Fazendo aborto pelo menos ela economiza os trinta mil réis do Imposto das Barrigas. (Toca uma música mais envolvente e a maioria sai para dançar. Encerrado o

UM CASAL (Interrompendo a dança e trocando observações relativamente ao Poeta.) O que

número musical, sentam.)

há com ele? É um ataque...

POETA

POETA

(Para a dona da Pensão.) Minha tia, doce tia, traz outra dose reforçada que estou

(Solta um grito singular, misto de dor e fúria.) Parem!!! Parem que há um

começando a chegar em ponto de bala. Agora, uma cachaça pura de Abaeté. Meio copo! UM CLIENTE

prenúncio de tragédia enlutando a festa!!! (Todos se apartam e recuam espantados, ao meso tempo em que cessa a música.)

(Em voz alta.) Poeta, diz uns versos aí para melhorar o ambiente.

UM CLIENTE

OUTROS

O que deu nele?

É sim. Diz! Vamos lá! Diz logo! Despeja o verbo!

UMA MULHER

POETA O que é isso, gente. O ambiente não é de poesia, é de melodia.

(Bem vestida.) Nós ainda nem bem chegamos na cidade e já damos de cara com um maluco...

UM CLIENTE

DONA DA PENSÃO

Então canta.

(Para ela.) Psiu!... Se cale que ele não é doido varrido não; às vezes tem uns

OUTROS Canta! Canta! Não te faz de rogado! Canta!

delírios mas quando isso acontece só diz coisas que vale a pena a gente ouvir.


497

OUTRA MULHER (Mal vestida, com ar de censura para aquela que chamou o Poeta de maluco.)

498

Mandando que sobre ela atirasse a primeira pedra aquele que estivesse sem pecado...

Você não conhece ele. É o único freguês que nos trata com todo respeito, tanto aqui como

Esta mulher

na rua e em qualquer lugar.

Em quem a natureza opera o milagre da fecundação

OUTRA

Acaba de me dizer que vai abortar

É o único que nos beija na boca!...

Para não passar fome durante a gravidez.

POETA

A mão assassina que arrancará de seu ventre a promessa de vida

Silêncio!!! (Todos sentam e se encolhem; o Poeta fica no centro da cena junto à mulher com a qual dançava; a luz, não mais vermelha e sim azul, desce em foco apenas sobre os dois.) Senhores e Senhoras, escutai. VOZ MASCULINA Aqui ninguém é Senhora!... VOZ FEMININA Para ele é muito mais do que isto! POETA Escutai como eu escuto a cólera divina. Cametá, Cametá... Que matas os profetas da liberdade E apedrejas os que te são enviados por DEUS... Quantas vezes eu quis juntar os teus filhos e filhas nesta casa Para ensinar a lição eterna do amor físico e espiritual E tu me desprezaste! Eu te deploro, Cametá... Pela blasfêmia do teu sórdido puritanismo. Eu amaldiçoo a tua moral calhorda. E lanço anátema sobre a tua justiça cretina Ai de ti, adúltera da fraternidade! Devias, nesta hora sagrada pela minha indignação, Estar toda aqui, inteira e nua, neste local santificado pela fantasia Para testemunhar em lágrimas de vergonha O drama desta mulher... (Põe a mão na cabeça da prostituta a seu lado, como se a abençoasse.) Esta mulher A quem Cristo perdoaria novamente em praça pública

É sustentada pelo braço de tua hipocrisia e impiedade, Cametá – símbolo de todas as cidades preconceituosas... (Desliza ternamente a destra pela barriga da mulher.) A humanidade perderá mais um novo ser que já palpita, ansiando pela luz do sol . O intendente perderá mais trinta mil réis de imposto. E eu perderei mais um pouco do quase nada que me resta de esperança na humanidade... (Leva as mãos à testa, curva-se lentamente e cai.)


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CENA 14 – O APELO PARA O INFERNO

500

OUTRA Vamos e venhamos: nós estemos dispustas a fazê o Intendente ficá taliqual a

Cerimônia de feitiçaria realizada ao pé de uma grande árvore, no meio do mato, à noite. Em ação ao Catimbozeiro e numerosas caboclas. Sobre um fogareiro aceso, crepitante, uma enorme panela de barro. Luz negra. Efeitos sonoros sugerindo a solidão da floresta (assovios, estrídulos, roncos de animais etc.) a princípio; depois clima de assombração. Enquanto o oficiante da cerimônia cuida dos preparativos, abalando o fogo

Madalena arrependida mas, porém, mesmo assim nós não devia se metê nessa enrascada de feitiço, com um sujeitinho ordinário que ninguém conhece. OUTRA Nós nem sabe se ele é Catimbozeiro de veldade, ou se tá nos passando a perna. De fato, nós não devia se metê nessa enrascada.

em ritual mudo e misterioso, as caboclas, de cócoras, parlamentam muito, temerosas do

OUTRA

que possa acontecer.

Não devia uma pinoia! Se nós não se apegá com tudo o que for Catimbozeiro e seus caruanas, o filho da mãe do Intendente não entrega os pontos.

UMA CABOCLA Eu tô com um medo danado, sumana.

OUTRA Eu tô aqui na fiúza de que essa arrumação vai sê um santo remédio pra fazê o

OUTRA

Intendente caí cumo jaca madura no arrependimento; porém não tô intentando a disgraça

E eu? Tô tremendo que nem vara verde.

cumpleta dele não. DEUS me perdue.

OUTRA

OUTRA

Nós pudia tê incumendando isso nutro lugá, não precisava se embrenhá nesses

Eu quero que ele se dane. Se praga matasse!...

cafundós, onde o diabo perdeu o cachimbo. OUTRA Por falá nisso, eu acho que esse Catimbozeiro tá nos enganando. Nós não devia tê

VELHA (Apaga o cachimbo e se aproxima.) Calem a buca. Não truxe vaçuncês aqui pra relambórios. Puça! Cumo são faladeiras. Se uma é linguaruda, a utra diz arreda.

ido atrás do lero-lero daquela jararaca... (Aponta para uma velha que se mantém um pouco

UMA CABOCLA

afastada do grupo, fumando cachimbo.)

Não carece passá carão que não levo desafuro pra casa.

OUTRA

VELHA

E se nesse breu aparecê de repente um guariba ou uma visagem?...

Também, pudera! Não é mais que uma anarfabeta.

OUTRA

CABOCLA

Vôte! Desconjuro.

Velha caróca, nariz de taboca!

OUTRA

OUTRA

Não contem mais cumigo pra uma tramoia desta. Quero murrê de guta serena se

(Sussurando) Esta velha vira matinta-perera.

me meto nutra. Quem de uma escapa, cem anos vive. Eras!...

OUTRA

OUTRA

Se acarmem, gente. Manerem. Pru que se enfezá agura?

A gente pudia tê feito uma mandinga quarqué pra a derribá o impusto das barriga

OUTRA

sem arredá o pé de casa e se intocá neste matagal medonho.

Grandes cuisas! OUTRA Dá uma banana pra ela.


501

502

OUTRA

OUTRA

Vamos mudá de assunto?!

Eu truxe as patas de aranha caranguejeira, pra ele ficá todinho encarangado se

OUTRA Mudá de assunto cuisa nenhuma, não te intrumete, quando um burro fala o utro murcha as orelha.

tumá trinta miréis de nós, pobres cuitadas que semos. OUTRA Fulhas de jurubeba, pra ele ficá ardido.

OUTRA

OUTRA

(A que propôs mudança de assunto.) Eu também tenho o direito de vendê meu

Rabo de arraia, pra ele não pudê se sentá.

peixe.

OUTRA DUAS CABOCLAS

Suvaco de mucura, pra ficá fedorento.

(Em diálogo à parte.) Maninha, inquanto elas discutemme diz uma cuisa: ainda

OUTRA

não te passo pela telha que o teu espuso tá caindo na gandaia?

Baba de jibóia, pra ficá enjuado de tudo.

– Ando com a purga atrás da urelha.

OUTRA

– Buta o cavalo em cima que tu pega.

Dente de preguiça, pra ficá com mufineza.

– Vô abri o ulho...

OUTRA

(A esta altura o Catimbozeiro moviementa-se como se estivesse ultimando os preparativos.)

Furmigas tucandeiras, pra ficá com o curpo cheio de ferruadas. CATIMBOZEIRO

UMA CABOCLA

(Depois de consultar o papel.) Muito bem, mas está faltando o principal...

Ele já vai coisá?

VELHA

VELHA

É cumigo. (Cospe para o lado, faz o sinal da cruz com a mão direita e com a

Paresque.

esquerda uma figa, levanta espalhafatosamente a saia, pega entre as pernas o seu

CATIMBOZEIRO

embrulho e o atira na panela.) Taí o que fartava: uma pimba dura de macaco prego pro

Ninguém esqueceu nada? (As caboclas se agitam retirando de baixo da blusa

sacrista do Intendente perdê a sustança de home e nunca mais levantá a piroca pra fazê

pequenos embrulhos.) VELHA O pessoá truxe tudinho. CATIMBOZEIRO Antes que o Curupira pule na sapopema desta samaumeira, vamos trabalhar. Cada uma põe aqui na panela de barro o que tiver trazido, e diz bem alto o que foi. Vou conferir pela lista. (Tira um papel do bolso; as caboclas fazem fila na direção do fogareiro e, uma por uma, depositam na panela o conteúdo dos embrulhos.) UMA CABOCLA Taqui a pele de cobra, pro Intendente tê um cobreiro se não quisé por fim no impusto das barriga.

filho em muié nenhuma!...


503

CENA 15 – PROBLEMA CONJUGAL

504

MULHER Mas tu já se serviu de mim um tempão, malagradecido.

Casal de caboclos na saleta da sua barraca.

HOMEM Deixa de sê faroleira.

MULHER Ulha aqui, seu urubu-malandro, quando tu casô cumigo eu já tinha dado com os burro nágua...

MULHER Tu qué sabê duma coisa? Tô a pique de arrumá home no barranco. Pensa que me arreceio? Já fui da rede rasgada!

HOMEM

HOMEM

O que tu qué dizê com isso?

O que tu é, desavergunhada, eu sei.

MULHER

MULHER

Não te faz de esquerdo. A mim ninguém toma por truxa!

Ainda bem.

HOMEM

HOMEM

Pela luz eu me alumia, muié, fala logo o que tu tem de falá.

O que tu qué é ganhá o que Maria ganhô na capoeira.

MULHER

MULHER

Falo mesmo, e de frente, não sô pau de dois bico. Esta gleve tem de acabá, senão mais dia menos dia a casa cai.

Vai te fiando, vai. Daqui a puco é tarde, Inês é morta. Sô muito muié pra te butá um par de chifre.

HOMEM

HOMEM

Vucês tão fazendo desavença sem a menó necessidade.

Faz isso que tu vai vê a cóssa que te dô.

MULHER

MULHER

Vigie! Cumo antão sem a menó necessidade? Vucês querem que a gente fique o

Duvida? Dô um duce se não te curneá.

tempo todo pirangando a custela de vucês e vucês fazendo gato e sapato da gente com

HOMEM

desprezo. É escruteá demais!

Tu não vê, anta fugosa, que não tenho eira nem beira pra pagá trinta miréis se tu

HOMEM

imprenhá?

Cala a buca, muié.

MULHER

MULHER

E quem disse que uma cabuca ladina cumo eu vai pegá filho?

Calo uma droga. Nunca tive papa na língua.

HOMEM

HOMEM

De quarqué maneira eu não pusso abandonar a gleve.

Fecha esta latrina.

MULHER

MULHER

Puis eu vô caçá uma perna de calça por aí. Ura se vô.

Puis vai esperando que eu me acachape, vai... pensa que sô da tua igualha?

HOMEM

HOMEM

O que tu qué é sê uma rapariga de ralé.

Não, não é, tu é uma imprestáver.

MULHER Pruque tu não tem a menó consciença, tá me furçando a fazê besteira. Homenzinho chué!...


505

506

CENA 16 – O SONHO REVELADO

ANJO Os que muito amam tudo merecem! POETA

O poeta caminha aos tombos pela tua, amparado pela mulher da Pensão com a

Eu sou um pecador impenitente... esqueci a vocação religiosa para levar uma vida

qual realizou sua última cena.

dissoluta, com farras e mulheres... MULHER

ANJO

Onde é a sua casa?

Santo Agostinho também levou, até que foi despertado pela nossa voz!

POETA

POETA

Está perto, irmanzinha, pode voltar.

Não costumo pagar dívidas e já cometi outras desonestidades... aliás, bem

MULHER

brasileiras...

Levo você até lá.

ANJO

POETA

São Jorge, Padroeiro da Inglaterra, foi um contrabandista de toucinho!

Não é necessário, moro logo ali. Boa noite.

POETA

MULHER

Você é anjo mesmo???

Não quer mais mesmo a minha ajuda?

ANJO

POETA

Claro, Poeta, o que é que há? Eu vim visitá-lo na certeza de me comunicar com

Obrigado, vá embora. (Beija-a nos lábios.) DEUS faça de você a criatura mais feliz do mundo.

um sujeito esclarecido e agora você me vem com uma crise de misticismo?! Que pieguice é esta?

MULHER

POETA

Que os Anjos digam amém! (Sai)

É que não estou entendendo a visita...

POETA

ANJO

Anjos... (Cambaleia; leva as mãos à testa outra vez, o corpo dobra-se

Então vou explicá-la e justificá-la. Vejamos: em primeiro lugar ela se explica

vagarosamente e se estende no chão; breve pausa; de repente explodem trovões e

porque você tem a sorte de acreditar mais na imaginação do que no raciocínio; em segundo

relâmpagos; ele se põe em pé com dificuldade; os trovões e relâmpagos se multiplicam

lugar ela se justifica porque você foi realmente digno da gratidão celeste – da

com maior intensidade; e também mais se desenha em sua fisionomia os traços de

ADMIRAÇÃO, digamos, GRATIDÃO talvez seja um pouco de exagero – quando

alucinação; um Anjo surge do alto, envolto em nuvem; ouve-se cânticos de Aleluia na

protestou contra aquele aborto! POETA

mágica atmosfera que domina a cena, logicamente preparada com os melhores recursos

Quer dizer que no paraíso tudo o que a gente faz aqui na Terra é mesmo

técnicos da carpintaria teatral.) ANJO

conhecido!...

Salve o Poeta, imolado na cruz da sua humana paixão! O senhor é contigo!

ANJO

POETA

Mais ou menos. De tudo-tudo só o criador sabe. Nós, os Anjos, ignoramos certas

(Em êxtase.) Mas... mas... eu não mereço esta graça...

coisas. Felizmente. Eu, por exemplo, tomei conhecimento do seu caso ouvindo uma conversa do João Batista. Ele ficou satisfeitíssimo com as palavras que você pronunciou na Pensão!


507

508

POETA

POETA

São João Batista se interessa pessoalmente por mim?

Perdido...sem orientação...

ANJO

ANJO

Por que não? POETA

Você não precisa ser orientado. Como Poeta já está no Caminho, na Verdade e na Vida.

Se interessa pelas outras pessoas existentes em Cametá?...

POETA

ANJO

Por favor, peça a DEUS que me perdoe...

É evidente. Desde o ano de 1635, quando foi feito Padroeiro deste município,

ANJO

cuida de todos vocês, em sentido individual e coletivo. Foi o João Batista que trouxe o

De quê?!

Padre Antônio Vieira até aqui e o inspirou a escrever aquelas célebres cartas à Corte!

POETA

POETA

De tudo... dos meus versos...

Foi também ele que inspirou o Padre Prudêncio a lutar contra a invasão dos

ANJO

Cabanos?... ANJO Ah! Não me fale nisso, O Padre Prudêncio pegou seis meses de Purgatório por ter derrotado os Cabanos quando eles tentaram ocupar a sua cidade.

Eles são bons, simples e úteis como a água e o pão. Você escreve com sentimento e espontaneidade. POETA O meu vício da bebida...

POETA

ANJO

DEUS então era a favor da cabanagem?...

Quanto a isto o que necessita não é o perdão divino, é remédio para o fígado!

ANJO

POETA

DEUS, nós não sabemos, porque em sua suprema sabedoria Ele jamais dá opinião

A minha convivência com prostitutas...

sobre problemas políticos. Mas Jesus, que vocês chamam de Cristo e confundem com o

ANJO

próprio CRIADOR, Jesus, que tem ideias socialistas e toma sempre o partido dos pobres e

(Entre surpreso e compassivo.) Engraçado: nós, os Anjos, que somos assexuados,

dos oprimidos, realmente torceu pela Cabanagem, embora desaprovando as atrocidades de

nunca conseguimos compreender porque vocês, os habitantes deste planeta, desvalorizam a

alguns cabanos. Tanto assim que auxiliou Dom Romualdo Coelho a evitar o incêndio de

doutrina da solidariedade ensinada por Jesus e colocaram a virtude entre as pernas!!!

Belém.

(Desaparece suavemente, ao som de harpa.) POETA Mas que revelação!... ANJO Já transmiti a mensagem, agora vou regressar. A paz sem acomodação seja

contigo! POETA Espere... não vá ainda... não me largue assim... ANJO Assim como?!


509

CENA 17 – A DECISÃO POLÍTICA

510

OUTRA Aquele Intendente, se for esprimido num tipiti depuis de pingá o sumo da

Caboclos e caboclas em um terreiro fazendo putirum (reunião de muitos para

mardade sumente resta bagaço.

trabalho gratuito em benefício de um vizinho). Alguns descascam mandioca, outros ralam,

UM HOMEM

mexem farinha em tachos de metal ou carregam jamaxis (cestos), cantarolando.

Pra essa cuisa de enfrentá o Intendente ainda tô sem sabê se me arrisco. UMA MULHER

UM HOMEM

Se quisé, seu molongó, eu lhe empresto a minha saia!... (Durante o decorrer desta

Eita! Rucinha graúda. Tem de um-tudo, além de mandioca. Inté jirimum.

ação um Caboclo se conserva isolado, em postura de concentrada meditação. Notando

OUTRO

isso um outro dirige-se até ele e trava-se então , à parte, o seguinte diálogo):

Vô vê a farinhada no furno.

INQUIRIDOR

OUTRO

Cumpadre, vucê não diz nada?

Mês que vem o putirum é pra alevantá o meu tijupá, vaçuncês todos tão

MEDITADOR

cunvidados.

Tô maginando...

OUTRO

INQUIRIDOR

Cuidado quando ralá a macaxêra.

Fica aí de buca pregada, cumo quem cumeu abiu.

UMA MULHER

MEDITADOR

Cuidado quando ralá a macaxêra.

Tô maginando o que é mais mió nos fazê com o Intendente..

OUTRA

INQUIRIDOR

Eu perciso ainda amassá o açaí.

E o que vucê acha?

UM HOMEM

MEDITADOR

O Intendente vortá atrás? Só se for dia de São-Nunca!...

Tô maginando...

OUTRO

INQUIRIDOR

Nós tem é de fazê um escarcéu.

Diacho! É só o que vucê sabe dizê? Magina purém fala arguma cuisa.

OUTRO

MEDITADOR

De minha parte quero vê a unça bebê água.

Em buca fechada não entra musca...

OUTRO

INQUIRIDOR

Eu ainda não sei se vô me amisturá com vaçuncês no causo de fazerem um

Vucê tá é com medo que se pela! (A ação retorna para o grupo.)

fundunço.

UM HOMEM

OUTRO

Antão tá cumbinado, nós vai peitá o Intendente.

Nem eu.

OUTRO

UMA MULHER

Se ele nos disfeiteá que atitude nós toma?

(Aludindo aos dois últimos homens que falaram, ostensivo desprezo.) Se um é

OUTRO

fruxo, o utro diz arreda.

Faz um cumício do arromba.


511

OUTRO E se ele mandá o Delegado nos meter no xilindró?

512

(Pausa. Expectativa angustiosa das mulheres. Os caboclos vacilam. Então, o “Meditador” fala imperativamente.)

UMA MULHER

MEDITADOR

Deixe de sê marica, seu tio bimba!

Já maginei. Nós capa o Intendente!

OUTRA

TODOS

Se tá de tremedeira puxe já daqui! UM HOMEM Nós tem de tê no juízo o que nós vai fazê se o Intendente disse que não abre mão do impusto. UMA MULHER Ara-ara, se calhá ele é capaz de nos dispachá sem mais aquela?! HOMEM Tudo é possíver. O que nós faz se ele não arretirá o impusto? MULHER Não se avexe. Nós, os rabo de saia, não arreda o pé de lá. OUTRA MULHER É, sim, nós fica atucanando ele. OUTRO HOMEM Se precisá nós faz o maió estrupício. MULHER (Para o homem que acabou de falar, cheio de pose.) Deixa de lambança que tu é um palerma!... UM HOMEM (Em voz alta, de cara fechada.) Vamos arresorver a questão. Todo mundo aqui. (Os outros se aproximam, inclusive o “Meditador” que no entanto ainda se destaca dos demais; as mulheres se aglomeram por trás, ansiosas.) Nós vai ou não vai enfrentá o Intendente??? TODOS Vai. (Alguns não falam com suficiente firmeza; as mulheres vibram de contentamento.) HOMEM Antão agura vem o mais impurtante: o que a gente faz com o Intendente se ele continuá nos azucrinando pra não ingravidá nussas muié? Hein? O que agente faz com o intendente, pessoá???

(Aos gritos.) Muito bem! É isso mesmo! Acertou! Vamos capá o coirão! Capá! Cortá inté o saco dele. Capá! Capá! Capá! Capá!


513

CENA 18 – O FIM DA ESTÓRIA

514

UM CABOCLO Antão nunca existiu impusto nenhum???

Mesmo local da Cena 1, em frente de uma modesta residência. O ambiente,

VELHA-FUXIQUEIRA

todavia, antes festivo, transformou-se em “praça de guerra”. Os caboclos e caboclas

Pode acreditá, nunca existiu impusto argum, tudo foi mentira, artimanha pulítica

estão furiosos, armados de facas, terçados e tesouras. Até duas prostitutas aparecem,

pra inredá o Intendente com o puvo de Cametá. Ele não vai cubra nadainha por muié

empunhando navalhas. Depois de prolongado bate-boca, abafado por um som de hino

barriguda.

marcial que vem de dentro da casa, o Poeta discursa em tom candente.

(Todos se fitam matutamente, desestruturados com a inesperada informação. O clima emocional beira o tragicômico pela nítida divisão do grupo: enquanto os homens

POETA

mostram frustração diante do imprevisto, as mulheres não escondem o íntimo

Meus irmãos e minhas irmãs:

contentamento.)

Eu não vos aconselhei a tomar esta decisão, mas já que vão adotá-la por conta própria, e já que me suplicaram apoio, contem comigo. (Palmas)

OUTRO CABOCLO (Para a Velha-Fuxiqueira.) Dona coisinha, arrepita o que a senhura disse. VELHA-FUXIQUEIRA

Capar o Intendente, esse ditador que vos prejudica no mais sagrado dos vossos

Juro por tudo que é mais sagrado: nunca existiu o impusto das barriga. Foi um

direitos, aliás dos vossos deveres, o de fazer filho, é uma medida de certa forma oportuna e

sujeitinho de Belém quem invento o buato, eu espalhei na fiúza de alaertar vucês, sem sabê

justa.

que tinha pegado o bonde errado. Oportuna porque ele chegou hoje de volta a este desditoso município, depois de

UMA CABOCLA

mais uma viagem custeada pelos cofres públicos para puxa-saquismo das autoridades que

Qué dizê que nós?...

lhe deram o emprego. E justa porque talvez ele mereça mesmo ser castrado, pois

VELHA-FUXIQUEIRA

indiretamente castrou a todos vocês que não podem pagar o Imposto das Barrigas.

Vucês podem butá curumim no mundo à vuntade, suas espivitadas, que não carece

(Novos aplausos.)

pagá nada pro Intendente. Podem ingravidá inté o demônio dizê basta, se é que a pimba

Quem sabe se, com esta providência, vocês não estarão redimindo a História de

dos home de vocês não murchô de vez cumo minhoca.

Cametá, reparando o erro de termos lutado, no século passado, contra os revolucionários cabanos e começando em boa hora uma outra Cabanagem?! TODOS

(As caboclas largam as armas e, descontraídas, vão trocar ideias afastadas dos caboclos. Estes, também querendo depor as armas mas acanhados perante as duas prostitutas e o Poeta, dirigem-se ao mesmo.)

Viva a cabanagem!!!

UM CABOCLO

POETA

E agura, “seu” Pueta?...

Eu só peço uma coisa: pelo amor de Deus, depois de aplicarem a lição no

OUTRO

Intendente, não capem mais ninguém!... (Neste instante chega, desconfiada, a Velha-Fuxiqueira do início da peça e

O que nós faz?... ou nós não faz?... OUTRO

cochicha algo no ouvido de uma cabocla. Reproduz-se o mesmo jogo da cena introdutória

Essa foi bua e foi ruim...

e a novidade circula primeiro por cada uma das caboclas, antes de chegar aos caboclos.

OUTRO

Quando tal acontece, um deles fala.)

Nós não sabe o que pensá...


515

516

OUTRO Nem o que dizê... OUTRO Estemos embatucado... POETA Eu sei o que se passa, ninguém precisa se explicar. O que acontece é que, no fundo, vocês sentem que não deviam sentir o que estão sentindo. UM CABOCLO Êpa! Agura mesmo é que fico tudo cumplicado. OUTRO É isso... nós estemos sentindo que devia dá uma bua pisa no Intendente, mas porém nós não pode pruque ele não fez o que disseram... nós tá alegre e tá triste... POETA Eu entendo. (Sorri com bondade.) Fiquem na paz de DEUS. A paz sem acomodação!... (Enlaça as duas prostitutas e afetuosamente abraçado com elas, uma de csda lado, sai.) (As caboclas se reaproximam com trejeitos maliciosos e zombateiros.) UM CABOCLO (Erguendo o terçado e falando para todas elas.) Viram cumo, se fusse perciso, nós tinha tutano pra fazê uma Cabanagem? Nós semos é macho!!! UMA CABOCLA (Respondendo pelas outras.) Puis antão vamos simbora pra vucês pruvarem que são homem sem rupa, que nós não guenta mais a esticada. VELHA-FUXIQUEIRA Não se avuem ainda não, cambada de senvergonhas. Vamos festejá. (Grita para dentro da modesta residência em cuja frente se encontram.) Liguem a vitrola, gente de fé, e vamos arrastá o pé inquanto não baixa a maré... Toca o “Samba do Cacete”, ritmo consagrado pelos cametaenses. Todos dançam.

FIM

PAI ANTONIO


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519

520

Esta peça, apesar de ter sido publicada em 1989 pela Editora CEJUP, depois de ser premiada em concurso de dramaturgia fora do Brasil, nunca foi encenada até o lançamento deste livro.

PERSONAGENS Pai Antonio Estátua homem Estátua mulher Escravo acorrentado Escravo amarrado Escravos no tronco Escravos soltos Feitor Juiz Promotor Advogado de defesa Frade Figurantes: escrivão, soldados etc. Elementos adicionais: Coro masculino Coro feminino Voz da Senhora República Uma voz metálica, impessoal.


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CENÁRIO Espaço vertical do palco dividido em dois planos distintos. Ambos se demoram sem qualquer iluminação depois que o pano sobe. Quando a plateia começa a revelar sinais de impaciência ouve-se uma voz metálica, impessoal. VOZ Calma, calma, calma. É cedo para vos sentirdes incomodados, pois a representação ainda nem teve início... Sabei logo o seguinte: a peça que ireis assistir é diferente, não se encaixa no modelo de teatro convencional, aliás tem uma ação dramática “esquizoflâmica”, isto é, esquizofrênica inflamada. Melhor dizendo: uma ação dramática incoerente e contraditória, ora densa, ora rarefeita, sempre pontilhada de quebras e curvas, nunca linear, por motivos brechtianos, confessadamente panfletários. Ostentando um caráter documental tão minucioso quanto crÍtico, com sabor jornalístico-livresco, não devia talvez ser encenada por que o palco, diz-se e pensa-se, não é o lugar para literatura. Mas o que se há de fazer se a arte cênica, como todas as outras, esta permanentemente renascendo para novas formas??? Bem, chega de explicação, prestai atenção. (No plano superior do palco é projetada, sobre uma tela, a imagem nº 1, já conhecida. Ouve-se a mesma voz.) VOZ Belém do Pará, ano de 1984. Amazônia, Brasil. A praça mais importante da cidade. Na sua área central, o símbolo. Ei-lo em muda eloquência, urge decifrá-lo. Obra de arte imponente, de vinte metros de altura, em bronze e mármore de carrara, inalgurada em 1897. De autoria do escultor genovês Michele Sansebastiano. Se é obra de arte tem um significado qualquer, convém desvendá-lo com a imaginação. Um tanto mais por que se trata de um MONUMENTO À REPÚBLICA. Olhai. Vede como é belo e como fala. Aquela mulher na parte de cima, cheia de augusta nobreza, representa a nossa república. Na mão, uma espada... Aquele homem embaixo, apesar de possuir asas e dominar o leão, precisa empunhar uma bandeira e ajoelhar-se... Esses artistas são mesmo terríveis... Contemplemos o monumento por trás da Praça da República, tão famosa para os belenenses. (Na tela é projetada a imagem nº2.)


523

Aí está. Esquecei as crianças, de um lado e outro. Outra mulher, de asas, não ao nível da senhora República, que aliás se conserva de costas para ela, e sim ao nível do

524

A negritude rebentou as entranhas da caverna e já começa a sombrear o rosto claro da planície.

homem... Observai com especial interesse a dignidade desta mulher. Em vez de uma

Silêncio...

espada, ou uma bandeira, os dois peitos de fora... Notai como demonstra sabedoria:

O instante é sumamente sério embora talvez o sério não faça mais sentido.

primeiro assentou-se sobre uma pilha de livros que merecem o desprezo dos olhos, e só

Silêncio...

depois considerou um para o qual aponta... Vamos examiná-lo. Pela lógica é a HISTÓRIA DO PARÁ. Obra muito conceituada, escrita por

A negritude subiu o talo da flor, esta pousando em suas pétalas e se evolará para o bico dos pássaros.

Ernesto Cruz. Esta aberta às páginas 461 e 462. Leiamos: “o último enforcamento de que

Silêncio...

há notícias nos anais judiciários da província, data de 1851. Em fevereiro desse ano, foi

A menor vibração poderá ser fatal. Contudo não vos apavoreis, senhores fidalgos

supliciado na cidade de Santarém, o escravo conhecido por Pai Antônio, acusado de haver

da Casa Imperial moderna.

assassinado o feitor, que azorragara, apesar das suas súplicas e doenças. Pai Antônio viera

O pastor da madrugada não vos cobrará moedas de arrependimento ou remorso

da África num dos muitos navios negreiros que faziam o infame comércio com a província.

cobrará apenas uma lágrima seca de vergonha pois só estamos arranhando levemente o

Muito embora fosse velho sexagenário, trabalhava desde que o sol raiava até o anoitecer.

ventre inviolado da história.

Um dia alegou doença. O feitor respondeu-lhe com uma chicotada. E como o negro não se

Entre Zumbi e Luther King:

levantasse, zurziu-o implacavelmente. Deu-se, então, o crime. Pai Antônio foi condenado à

Pai Antônio!

morte. Na forca erguida na praça de Imperatriz, entre as ruas de Santa Cruz e Mercadores,

A senzala.

terminou os seus dias. Com as formalidades costumeiras”.

A velhice.

(A imagem esmaece. O foco de luz é lançado para o plano inferior do palco.

A doença.

Aparece, em destaque, na lateral esquerda, o Coro Masculino, constituído por negros

A impossibilidade.

vestindo apenas meia-calça esfarrapada.)

O castigo.

CORO MASCULINO (declamando).

A reação.

Entre Zumbi e Luther King:

A forca.

Pai Antônio!

E uma verdade que ainda não foi contada nem cantada.

Deixai-nos capturar a semente da tragédia no húmus amazônico.

(O jato de luz transporta-se para o outro lado do plano inferior do palco, onde

Onde, em cada lua, ela é replantada para novos frutos do ontem...

aparece em relevo o Coro Feminino, integrado por mulheres negras também vestindo

Entre Zumbi e Luther King:

somente meia-saia esfarrapada.)

Pai Antônio!

CORO FEMININO

Sem metáfora.

A pele.

Sem saravá.

A cor.

Sem samba.

A pele.

Por que ponta de faca não reza nem dança.

Curtida na dor.

Senhores fidalgos da Casa Imperial moderna: silêncio!

Vertida em amor.

A hora é grave, estamos mexendo com a memória.

É emblema. Salgada ao relento.


525

526

Queimada no vento.

Pai Antônio, um negro envelhecido de aspecto enfermo mas porte solene,

É pasto, não poema.

encontra-se sentado em um toco de árvore tendo ao redor outros negros. Chega uma escrava adolescente.)

Anjos de alvas plumas

ESCRAVA

Ruminando

(Para o Pai Antônio.) Avô, vamos dormir, já é tarde. O seu chá esfriou. (Encosta

O arco-íris. Por que, oh estrelas do céu. A identidade-solidão? Por que, oh profetas da terra A milenar segregação?

a destra na testa dele.) A febre continua. PAI ANTÔNIO Filha, não te vexa por minha causa, não é doença que mata negro no cativeiro, é maltrato e desgosto... ESCRAVA Vou fazer um caribé. tem que beber todinho, ouviu? (Sai)

Os porros de todos os corpos humanos

UM ESCRAVO

se abrem e se fecham

(Bastante jovem.) Conte o resto Pai Antônio, conte logo.

em sístoles semelhantes.

OUTRO

Todos respiram o mesmo oxigênio

(Idem) É, conte que nós temos que saber, Pai Antônio.

sustentando e nutrindo moléculas iguais.

OUTRO

O barro é um só

(Meia idade.) Na fazenda onde eu me criei ninguém nunca falou disso.

na estrutura dos esqueletos

OUTRO

absolutamente indiferenciados.

(Uns cinquenta anos.) Ouvi dizer que tudo foi invenção... OUTRO

Então por quê?

Aconteceu sim.

Onde está o bisturi da inteligência

OUTRO

Que não corta a placenta do

Será?

horizonte

PAI ANTÔNIO

para o nascer da aurora tardia?

Foi filho, pode acreditar. Escutei do meu pai, que escutou do pai dele. Faz um tempão, porém aconteceu, juro por está luz que me alumia. Aconteceu e não deve ser

Senhores Fidalgos da Casa Imperial moderna: Tudo o que tem começo tem fim!

esquecido, vocês têm de botar tudo o que eu disse na cabeça dos filhos que tiverem. OUTRO ESCRAVO E por que não chamavam Palmares de Aruanda?

(Extingue-se o foco de luz sobre o Coro. Cena mergulhada em treva, fundo

PAI ANTÔNIO

musical de instrumentos de corda e atabaques. Ao centro do mesmo plano inferior do

Não sei, filho. Só sei que Palmares era um reino, um reino do negro, o reino da

palco brota, do chão, chamas crepitantes de uma fogueira; com o gradativo aumento do

liberdade. No quilombo principal, a Cerca Real do Macaco, o Ganga Zumba morava em

fogo vão aparecendo perfis de escravos na senzala.

um palácio, tinha Ministros, guardas e tudo o que tem qualquer rei poderoso.


527

528

UM ESCRAVO

avançando, uma multidão de brancos matando, matando, matando, e avançando para

Era muita gente que vivia lá?

prender Zumbi... e o rei Zumbi recuando, recuando, mas queimando bala em cima dos

PAI ANTÔNIO

brancos malditos... E os brancos morrendo, morrendo na frente do Zumbi, com os olhos

Uma verdadeira cidade, mais de mil casas somente na Cerca Real do Macaco. E

arregalados de espanto... E a terra toda molhada com sangue do negro e do branco... E os

os outros mocambos da vizinhança, que obedeciam as ordens do Ganga Zumba? Tinha um

demônios chegando mais perto, mais perto, pra pegar Zumbi e fazer o nosso rei virar

montão deles, sempre crescendo por que os negros não paravam de fugir para lá, filho. Era

escravo... e Zumbi se afastando, se afastando, e furando de bala a barriga dos brancos...

negro fugindo de todo lugar e capitão-de-mato bufando de raiva sem conseguir agarrar nosso povo fugido. UM ESCRAVO Palmares custou a se acabar, Pai Antônio?

(Some a luz, paulatinamente, escurecendo a cena com o fundo musical; quando este cessa, ouve-se a voz metálica, impessoal.) VOZ Se o chamavam de PAI, e não apenas de Antônio, “seu” Antônio, “mestre”

PAI ANTÔNIO

Antônio ou “tio” Antônio, é porque alguma liderança ele tinha independente de inspirar

Durou quase cem anos, filho, eu não disse que era um reino? Um reino não se

respeito pela idade.

acaba cedo. Os brancos bem que combatiam Palmares sem dó nem piedade, porém os

Sejamos fieis à História, embora raramente ela seja fiel aos fatos; a do Pará,

negros, unidos, eram mais fortes. Ponham isso no coração dos filhos de vocês: os negros,

escrita por Ernesto Cruz, tudo o que diz sobre o assunto já foi reproduzido no fundamental.

unidos podem vencer a maldade dos brancos.

Nada mais informa relativamente à personalidade de Pai Antônio. Compreende-se. Foi um

UM ESCRAVO Unidos...

negro enforcado, não um colonizador estrangeiro... Todavia, prestai ainda um pouco de atenção: nós pesquisamos o tema e podemos

PAI ANTÔNIO

vos fornecer relevantes esclarecimentos em torno do mesmo. Como artista, manejando

Os brancos atacavam de vez em quando, querendo incendiar tudo, mas os negros

uma tecnologia inacessível ao entendimento vulgar, por prazer e por dever filmamos lances

não deixavam. Negro que é negro não desanima na fé da liberdade

paranormais da existência das estátuas que ornamentam a Praça da República, em Belém

UM ESCRAVO

do Pará. Desculpem esta providência que a época justifica: quando os lábios humanos

(Moço) E como acabou o reino de palmares, Pai Antônio?

calam as verdades mínimas, resta o diálogo das pedras...

PAI ANTÔNIO

(O plano superior do palco é palidamente iluminado. Vê-se dentro de uma grande

Ah, filho, um dia se juntou tanto branco cheio de arma, tanto branco atirando que

moldura equivalente à tela, uma singular mulher de asas, peitos de fora, sentada em uma

os negros não puderam escapar da desgraça. Mais de cinco mil brancos com espingardas,

pilha de livros, tendo sobre os joelhos um aberto para o qual aponta. percebe-se que tal

um exército inteiro. Cercaram Palmares e invadiram matando mulheres e crianças. Uma

mulher, apesar de permanecer rigorosamente imóvel, é uma pessoa viva; guarda, porém, a

crueldade.

maior semelhança possível com a imagem da fotografia, assim como os detalhes da cena

ESCRAVO (O mesmo.) Foi triste. PAI ANTÔNIO

em que pese a falta de crianças, árvores e edifícios ao fundo.) A luz apaga. Escuta-se, distante, o hino de homenagem à Proclamação da República. A seguir

É... e também foi bonito... os negros morreram lutando, não fugindo... Lutando

explodem relâmpagos que terminam fixando intensa luminosidade verde no plano

peito a peito... Lutando cara a cara... Vendo o sangue do branco escorrer do lado do sangue

superior. A mulher ainda se conserva inerte. Aproxima-se, desnorteado e vagaroso, vindo

do negro... Zumbi já era rei, tinha destronado o Ganga Zumba... Zumbi comandava... Os

do lado de trás, um homem de asas (o mais parecido possível com a imagem da fotografia,

brancos destruindo Palmares e Zumbi largando fogo neles... Os brancos avançando,

segurando a bandeira).


529

530

HOMEM-ESTÁTUA

VOZ FEMININA

Onde estão as crianças, onde estão?... Sei que as crianças foram embora, já não

Ah! Que tédio, que tédio! Tudo sempre igual, sempre igual. A mesma rotina, a

sinto o perfume da inocência... (Deparando a mulher.) Alô irmã, pelo menos você ficou...

mesma paisagem. Nada muda neste país. Nos últimos anos nem sequer mudam as

Há quanto tempo não nos vemos!...

aparências!...

MULHER-ESTÁTUA

HOMEM-ESTÁTUA

Quase um século de separação desde que nos fabricaram. Aliás, desde que nos esculpiram...

(Olha para cima.) É a senhora República. Vou para o meu lugar antes que me veja aqui.

HOMEM-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA

Quando nos tiraram dos caixotes nesta praça julguei que iam nos colocar juntos

Bobagem, ela nunca se dá o trabalho de ver os que estão embaixo. Quanto a isso,

por causa das asas. Infelizmente puseram-me no outro lado para subjugar o leão. MULHER-ESTÁTUA

pode ficar em paz. O que temos a fazer é falar com certo cuidado, por que falar muito alto realmente é um perigo.

(Assustada) E cadê o leão, deixou fugir?

HOMEM-ESTÁTUA

HOMEM-ESTÁTUA

Já que não deseja me presentear uns livros desses por que não me empresta?

(Impassível) Deixei. O Governo Federal estava precisando dele como garoto-

MULHER-ESTÁTUA

propaganda do Imposto de Renda. MULHER-ESTÁTUA

(Exibindo o livro aberto para o qual apontava quando imóvel.) Desde que não seja este, empresto. E desde de que depois não me culpe.

(Tranquilizada) Ainda não cansou de carregar a bandeira? Poderia rasgá-la e me

HOMEM-ESTÁTUA

dar os retalhos de presente para eu cobrir os peitos; assim ela se tornaria útil...

E por que não me empresta este?

HOMEM-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA

Bandeiras não são feitas para isso. E por que a preocupação com os seios de fora

Porque preciso consultá-lo a cada minuto.

se não é um ser humano?

HOMEM-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA

E por que só consulta este?

Tem razão. É engraçado como essa tolice de pudor atinge até as mulheres de

MULHER-ESTÁTUA

bronze...

Porque ele além de conter verdades, não contem mentiras nem devaneios. HOMEM-ESTÁTUA

HOMEM-ESTÁTUA

Você é que deveria me dar de presente alguns livros desses, para me fazer

E por que é tão diferente?

descobrir o mundo e a vida. O único livro lá da frente tem as páginas em branco.

MULHER-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA

Porque se compõe de trechos esparsos de outros livros, jornais e publicações

A maioria dos livros é assim mesmo, não diz nada sobre coisa nenhuma...

diversas. Por exemplo: nestas duas páginas consta um recorte da História do Pará que

A luz estremece com novos relâmpagos. Ouve-se uma voz nitidamente feminina,

existe nas bibliotecas, referente ao Pai Antônio. Mas a verdade está incompleta e

algo retumbante.

distorcida. Nas páginas seguintes novos recortes colocam o fato no seu devido lugar. E o pior é que tais recortes suplementares não existem em nenhuma biblioteca pública de Belém.


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532

HOMEM-ESTÁTUA

José Coelho da Gama Abreu, Barão do Marajó”, oferece um detalhe altamente sugestivo

Santo Deus! Como este povo pode viver com tantos monumentos sem

ao afirmar, quando relata a origem da tragédia, precisamente isto: “Entre os escravos havia

memória?!... (Larga a bandeira.)

um velho africano, maior de 60 anos, conhecido por Pai Antônio. Este infeliz foi, numa

A luz apaga. Durante o black-out volta a voz metálica, impessoal.

madrugada, despertado pelo raivoso feitor, a chicotadas, multiplicando este as

VOZ

vergastadas...”

Perdoai novamente, senhores e senhoras, esta cansativa e desconfortável

Eis aí o apontamento que vale por uma revelação! Será crível que o raivoso feitor

escuridão, contrária aos princípios técnicos da arte cênica. Ela é necessária por dois

tenha resolvido abandonar o seu bom sono da madrugada a fim de chicotear Pai Antônio,

motivos: um é que não se pode compreender a negritude sem conviver sensorialmente com

simplesmente porque ele no dia anterior não pudera trabalhar, doente???

ela; outro é que o bloqueio da visão física favorece o raciocínio, sempre mais límpido, e mais honesto, sem os enganosos estímulos e condicionamentos ambientais.

Ora, senhores cronistas do passado, tenham um mínimo de consideração pela inteligência alheia!

Daqui a pouco pararemos com este exercício desagradável. Não duvideis que cumpriremos esta promessa. Vede bem, se é que estais preparado para tanto, como são as coisas. No trecho da

(A luz acende no plano inferior. Escravos em atividade no campo, cortando cana. Acionam os terçados em ritmo cadenciado. Um, ainda jovem, maneja a ferramenta sem a necessária habilidade.)

História do Pará já lido figuram exatamente estas palavras:

PAI ANTÔNIO

“Um dia alegou doença. O feitor respondeu-lhe com uma chicotada. E como o

(Dirige-se ao escravo jovem.) O que é, filho?

negro não se levantasse, zurziu-o implacavelmente. Deu-se, então, o crime. Pai Antônio foi

ESCRAVO JOVEM

condenado à morte.” Como fonte da informação o autor cita o artigo intitulado “Uma Execução Capital”, de João Victor G. Campos, inserido no volume II, páginas 39 a 41, da

Eu sempre me ocupei da colheita do cacau, Pai Antônio; não tenho prática de cortar cana e este terçado enferrujou todo, nem adianta amolar.

Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Não existindo o referido volume em

PAI ANTÔNIO

nenhuma das bibliotecas públicas em Belém, incluindo-se entre elas, por mais incrível que

Fica com o meu. (Troca o seu terçado pelo do rapaz.) Trabalha mais depressa,

pareça, a do mencionado Instituto, foi com grande sacrifício, e aliás por mero acaso ou

filho, senão o feitor te mete chibata.

sorte, que localizamos, em uma estante particular, o Fascículo n° 1, correspondente ao ano

ESCRAVO JOVEM

de 1917, da revista em apreço, onde, efetivamente, às páginas 39 a 41, encontra-se o artigo

E o senhor?

“Uma Execução Capital”, de João Victor G. Campos, do qual tiramos cópia xerox para

PAI ANTÔNIO

garantir a defesa, em prova documental, da seguinte tese: Pai Antônio não se comportou covardemente ao ser espancado pelo feitor, nem foi espancado por ser um velho enfermo que não podia trabalhar. Outra razão houve para o

Eu tenho a desculpa da doença. E depois de apanhar tanto, filho, aprendi a me defender de um jeito que mais tarde vou te ensinar... (Sai de cena, alquebrado pela fadiga.)

brutal castigo a ele imposto, provavelmente a de favorecer a fuga de escravos, muito

OUTRO ESCRAVO

comum na época em toda Província, máxime em Santarém onde vivia, pela proximidade

(Para o companheiro do lado.) Este trabalho é uma danação, com o feitor atrás da

dos numerosos e heróicos quilombos do Rio Trombetas. O artigo de onde o autor da história do Pará pinçou, descuidadamente, os dados que nos transmite, afora estampar esclarecimentos adicionais até hoje desprezados, anunciando que Pai Antônio serviu-se, para liquidar o feitor, “de uma ponta de terçado ferrugento”, que a ocorrência deu-se no “sítio Cacaual-grande, então pertencente ao sr. dr.

gente exigindo mais do que se pode fazer. COMPANHEIRO E tu sabe que se a produção for pequena o nosso lombo padece. Vamos apressar.


533

534

ESCRAVO

OUTRO

Nós ainda tem saúde. E o Pai Antônio? Coitado, foi uma ruindade retirarem ele da

Perverso por natureza. Tu não viste como o miserável se ria na hora em que o

plantação de café.

Macário começou a implorar compaixão?

COMPANHEIRO

OUTRO

É, foi uma malvadeza.

Alguém precisa rebentar com ele.

ESCRAVO

OUTRO

O feitor quer ele aqui para ser vigiado.

Neste sítio não há ninguém com tanta braveza.

COMPANHEIRO

OUTRO

Eu sei.

Nunca se sabe...

ESCRAVO Tu ainda não desconfiou de nada?

(Aparece um negro jovem com pesada corrente em volta do corpo, da cabeça aos pés, locomovendo-se com extrema dificuldade.)

COMPANHEIRO

UM ESCRAVO

Escutei um zum-zum-zum. Será?...

(Pressuroso, para com o acorrentado.) Alguma novidade???

ESCRAVO

ACORRENTADO

Não sei não, mas parece...

Cadê o Pai Antônio?

OUTRO ESCRAVO

OUTRO ESCRAVO

(Em um grupo à parte.) A febre do Pai Antônio não passou.

Vou chamar, o que tu queres?

OUTRO

ACORRENTADO

E se for febre amarela?

Vai logo. (O outro sai.)

OUTRO

UM ESCRAVO

Dizem que ela vem chegando em Santarém.

O que houve?

OUTRO

ACORRENTADO

E dizem que quando a febre amarela acerta um não tem escapatória.

O feitor não demora a chegar.

OUTRO

OUTRO ESCRAVO

Pior do que bexiga.

Desta vez não pega nenhum de nós preguiçando no trabalho.

OUTRO

OUTRO

Se o Pai Antônio morrer, quem vai nos aconselhar?

(Para o acorrentado.) Como está a coisa?...

OUTRO

OUTRO

Ele é o nosso único arrimo...

(Idem) Diz logo, como está a coisa?...

OUTRO

ACORRENTADO

O feitor, ultimamente, vive farejando o rastro do Pai Antônio.

Vai indo... vai indo...

OUTRO

OUTRO ESCRAVO

Esse feitor é uma peste.

É melhor a gente conversar à noite, na senzala. Vamos dar um chega no serviço, pessoal, senão o feitor lasca a peia no nosso couro.


535

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(Retomam a tarefa. O negro acorrentado senta no chão e tira do bolso um

ACORRENTADO

embrulho.)

Não me chateia mais que não tenho gosto de suportar negro burro.

ACORRENTADO

ESCRAVO

Enquanto vocês se esbandalham no serviço enriquecendo o Barão eu vou é comer

Burro é tu, desatinado. Vê se o meu corpo está cheio de ferro como o teu.

a minha ração, que não sou besta...

ACORRENTADO

UM ESCRAVO (De idade avançada, embora menos idoso que o Pai Antônio.) Tu não tem mesmo

É o que te vale. Porque se não fosse isso eu me levantava agorinha e sapecava a mão na tua cara.

juízo.

ESCRAVO ACORRENTADO

Na minha?

E adianta ter?...

ACORRENTADO

ESCRAVO

Na tua e na cara do qualquer um da tua igualha.

Adianta, sim.

ESCRAVO

ACORRENTADO

Coitado de ti.

Adianta nada.

ACORRENTADO

ESCRAVO

Não tem mais conversa.

Com juízo se lucra mais.

ESCRAVO

ACORRENTADO

Pensa que não sei que andas servindo de moleque pro Pai Antônio?

Lucra o quê?

ACORRENTADO

ESCRAVO

Tu é um bestalhão.

Pelo menos não se leva pancada do feitor.

ESCRAVO

ACORRENTADO Tu é um leso.

Pensa que não sei que vocês estão desencabeçando os outros pra escapulir daqui no fim de semana?

ESCRAVO

ACORRENTADO

Mas não me meto em enrascada.

Já disse que não tem mais conversa.

ACORRENTADO

ESCRAVO

Não se mete por que é um frouxo. ESCRAVO

Era bom ter, porque vocês arrumam a confusão e depois nós padece sem entrar nela.

Nem ponho ninguém a perder.

ACORRENTADO

ACORRENTADO

Quem manda serem lambaios?! Vocês podiam se arribar com agente.

Chega de presepada, vai te coçar.

ESCRAVO

ESCRAVO

Tu não enxerga mesmo um palmo diante da venta. Essa tramóia toda é uma

Olha, no dia que tu nasceu eu já era homem feito, o que aprendi até hoje posso ensinar; garanto...

doidide, o Pai Antônio está cavando ruina de vocês. Abram o olho enquanto é tempo. ACORRENTADO Não me chateia mais, já pedi, senão acabo perdendo a paciência.


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ESCRAVO

PAI ANTÔNIO

Mal agradecido.

(Para o acorrentado, com visível preocupação.) Filho, o que é que te deu na

ACORRENTADO

cabeça? Teu lugar não é este.

Vai logo trabalhar pra encher a pança do Barão. E quando o feitor chegar lambe a

ACORRENTADO

sola do pé fedorento dele.

Tinha de falar com o senhor.

ESCRAVO

PAI ANTÔNIO

Eu devia era desmascarar o Pai Antônio.

E não podia esperar um pouquinho, até anoitecer?

ACORRENTADO

ACORRENTADO

Faz isso e nós te esfola vivo.

Não, não podia.

ESCRAVO

PAI ANTÔNIO

Ele é o culpado de tudo.

Mesmo?

ACORRENTADO

ACORRENTADO

Tu tem uma inveja danada do Pai Antônio, não é?

Temos um perigo pela frente.

ESCRAVO

PAI ANTÔNIO

Eu?

Alguma coisa saiu errada?

ACORRENTADO

ACORRENTADO

Tem. Tem inveja porque nós só respeita ele e não liga pra ti. No Pai Antônio nós

Não imagina?...

confia, ele não é da tua laia.

PAI ANTÔNIO

ESCRAVO

(Sugerindo contato reservado.) Vamos ali.

Um dia vão se arrepender e me dar razão... Um dia vão ver que eu mostrei o

ACORRENTADO

caminho certo, que eu sempre aconselhei pro bem...

Coma este resto do jabá comigo.

ACORRENTADO

PAI ANTÔNIO

E tu acha que na tua leseira que o nosso bem é não fazer nada pra ser livre? ESCRAVO

A febre me arrancou a fome da barriga, filho; me arrancou a força do braço; só não arrancou a vontade de ajudar vocês...

Pensa direito, afoito, pensa direito. Pior do que ser cativo é se aventurar a ser morto no meio do mato, pelas espingardas ou pelas cobras. Aqui todo mundo está

Apaga a luz clara no plano inferior e acende a verde no plano superior (a luz do plano superior será de cor verde carregada, sempre, até a cena final.

protegido, e aqueles que se esforçam no trabalho podem até pedir a benção do Barão que

MULHER-ESTÁTUA

ele abençoa.

Agora que você jogou fora a bandeira, adquiriu condição de ler este livro da

ACORRENTADO

verdade completa sem mentiras e devaneios. O problema é que eu não devo me apartar

Tu sempre quis manobrar a gente, eu sei, mas te desilude porque o nosso guia é só

dele.

o Pai Antônio. Nós sente é nojo de irmão como tu, que vive se babando pra agradar o

HOMEM-ESTÁTUA

Senhor. Nem parece que tu saiu do bucho de uma escrava, negro ordinário!

Podemos então ler juntos.

(Pai Antônio entra com o escravo que o foi buscar.)


539

540

MULHER-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA

Ótima ideia. Encoste. (Ele tenta encostar nela, porém as asas não deixam; olham-

Experimente fechar os olhos. (Ele obedece, ela o imita; um sorriso tímido se

se significativamente.) HOMEM-ESTÁTUA

esboça pela primeira vez nas duas faces.) A luz apaga. Ouve-se uma melodia de amor. Quando a luz retorna ambos de

Se vamos agir como seres humanos, para que as asas?...

acham deitados, ternamente, sobre os livros antes empilhados, tendo como travesseiros as

MULHER-ESTÁTUA

asas quebradas.

Cuidado. A bandeira você largou mas, arrependendo-se, torna a segurá-la ou se agarra em uma outra. As asas, não. Depois de se livrar delas, nunca mais será capaz de recuperá-las... HOMEM-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA Agora, sim, estamos preparados para partilhar o conteúdo do livro da verdade. (Pega-o) Veja, leia comigo, este capítulo todo trata de uma escravidão algo semelhante a nossa, porque a escravidão das correntes tem muito a ver com a escravidão das asas.

Elas estão começando a me atrapalhar. as suas não?

HOMEM-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA

É para ler em silêncio ou em voz baixa?

As minhas também. Ainda não me livrei delas por ser impossível fazer isso

MULHER-ESTÁTUA

sozinha... veja como não dá jeito (Busca, sem êxito, despregar as asas das costas.) HOMEM-ESTÁTUA Eu liberto você. MULHER-ESTÁTUA Só aceito se igualmente se libertar das suas asas. Seria uma loucura ficarmos diferentes um do outro. (Ele hesita.) HOMEM-ESTÁTUA Não é fácil tomar esta decisão... MULHER-ESTÁTUA Realmente não é. Lembre-se, contudo, de que um dia, cedo ou tarde, até as estátuas serão obrigadas a tomar uma decisão definitiva para conquistar a liberdade plena.

Este capítulo é para ler gritando, a fim de despertar as estátuas de carne desta terra e de outras... (Levantam e, abraçados, fazem a leitura intercaladamente.) HOMEM-ESTÁTUA Extratos do livro O NEGRO DO PARÁ, de Vicente Salles. Colação Amazônica Série José Veríssimo. Editado em 1971 pela Fundação Getúlio Vargas em convênio com a Universidade Federal do Pará. Pagina 41: “Numerosos mocambos havia entre o Pará e o Maranhão e as autoridades paraenses se esmeravam na captura dos negros”. MULHER-ESTÁTUA – Página 52: “A imprensa de Belém, ainda em meados do século passado, espelhava a situação da lavoura, reclamando a falta de braços... As consequências da Cabanagem ainda

HOMEM-ESTÁTUA

perduravam, por volta de 1850, havendo muitos mocambos e carestia de vida em virtude

O que não consigo esquecer é que não temos o direito de ser humanos porque nos

da baixa produção agrícola.”

cabe permanecer como guardiães daquela dama lá de cima. MULHER-ESTÁTUA Não se preocupe com a Senhora República. Pense em mim que posso auxiliá-lo

HOMEM-ESTÁTUA – Página 220: “Aos mocambos dessa região se refere o presidente Jerônimo Francisco Coelho no relatório que apresentou à Assembleia Legislativa da Província do Pará no dia 15 de Junho

porque estou no mesmo plano.

de 1848: “De outros pontos da província tenho recebido semelhantes representações a

HOMEM-ESTÁTUA

respeito de escravos fugidos, que vivem nos quilombos ou mocambos, donde fazem

É tão difícil de pensar...

sortidas para cometerem roubo, e furtos, e aliciarem a outros a fugirem. Isso principalmente tem acontecido nos distritos de Santarém e Turiaçu”.


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MULHER-ESTÁTUA – Página 233:

A estrela do teu sonho ainda brilha

“Com o correr do tempo, o quilombo do Trombetas, localizado nas proximidades

A luta não foi em vão

de Óbidos, contava mais de duas mil almas entre negros e mestiços; e, guardadas as

Pois um dia os negros reconstruirão

devidas proporções, tornou-se tão celebrado, na Amazônia, quanto o de Palmares, no

A Cidade Maravilha!

nordeste. Em 1822 ou 1823, o tenente Francisco Rodrigues Vieira, por antonomásia Cativo, investiu contra Trombetas, destroçando-o, e prendendo Atanásio; este, mais tarde,

Atanásio, Atanásio

conseguiu fugir e tornou a erguer novo quilombo. E o Trombetas renasceu”.

As cachoeiras do rio trombetas

HOMEM-ESTÁTUA – Página 234:

Na solidão da floresta

“Por ocasião da Cabanagem, esses negros se colocaram ao lado dos revoltosos,

Como no céu os cometas

auxiliando-os. A Revolução de 1835 foi extraordinariamente propícia aos mocambeiros.

Ainda choram em festa

Os negros, aproveitando-se da morte ou fuga dos senhores, reorganizaram-se e fundaram

A tua saudade!

acima da décima-quinta cachoeira, denominada esta de Caspacura, uma povoação por eles mesmo denominada “Cidade maravilha”.

Atanásio, Atanásio

MULHER-ESTÁTUA – Página 235:

A estrela do teu sonho ainda brilha

“....o problema dos mocambos do Trombetas só teve solução com o Decreto

E é sagrado o seu clarão

Imperial de 13 de Maio de 1888...” HOMEM-ESTÁTUA – Página 236:

Para os negros que um dia seguirão A mesma trilha!

“Escreve José Alípio Goulart: “De tal forma celebrizou-se o mocambo do Trombetas que os proprietários de escravos viviam sobressaltados.”

Atanásio, Atanásio

MULHER-ESTÁTUA– Página 238:

Da cozinha dos ricos

“As aldeias dispersas, estrategicamente localizadas, não só dificultavam o acesso

Um dia sairemos

das tropas do governo, como facilitavam o rápido deslocamento da população

No pátio da fábricas

quilombola...

Um dia gritaremos

Os negros compreenderam que uma forte nucleação, o estabelecimento de uma

E de mãos dadas

verdadeira cidade, não teria condições de resistir às investidas dos inimigos, como

Guiados pela estrela do teu sonho

aconteceu nos Palmares...

Caminharemos!

A história guardou apenas o nome de um chefe, o cafuz Anatásio”. HOMEM-ESTÁTUA – Página 269:

Atanásio, Atanásio

“No baixo-Amazonas surgiram outras lideranças negras, tal como o preto Belisário,

De quilombo em quilombo

que comandou uma força de trezentos rebeldes, em maioria negros e que se apresentava

Passo a passo, tombo a tombo

como libertador da raça”.

Abriste a vereda

Luz e ação transferidas para a lateral esquerda do plano inferior.

Fugindo do algoz.

CORO MASCULINO

Ainda que sejas

Atanásio, Anatásio

De sangue cafuzo


543

Onde quer que estejas

544

ao comandante militar da vila

Espera por nós! (Luz e ação na outra lateral do plano inferior).

rebelou-se valentemente; o negro Félix

CORO FEMININO

brotado no quilombo de Caxiú

Belisário, Belisário

bravo no apoio à Cabanagem;

Preto retinto na pele e na fé Na fé do exemplo sem missa e sem templo!

a negra Maria Felipa Aranha sublime em sua paixão

Belisário, Belisário

Rainha-Chefa do mocambo de Alcobaça

Preto retinto na pele e na fé

no lendário Tocantins;

As contas do teu rosário Lagrimejadas da maré

o negro José Sapateiro

Fizeram o heroísmo

amigo ladino

Ser mais que o batismo

sedutor de irmãos para a fuga

Virando a galé! Belisário, Belisário

o negro José Marques

Preto retinto na pele e na fé

preso em seu sítio Ribeira

As hóstias do teu sacrário

como acoutador de escravos,

Amassadas com o trigo da Guiné Transformaram a heresia

e outros negros

Em sol de novo dia

aguerridos

Com o negro de pé!

mortos e morridos sem

Belisário, Belisário

vintém

Preto retinto na pele e na fé

nem

Na fé da justiça pisando na graça

amém

Na fé de ser livre em nome da raça!

porém

(Luz e ação simultânea nas duas laterais do plano inferior. Fundo musical.

jamais esquecidos.

Todos os elementos dos coros masculino e feminino recitam e uníssono.) TODOS

Nunca perderemos tal memória

Além de Atanásio e Belisário,

Pode o tempo passar!

o negro Cirilo que no rio Moju

Um dia faremos a História

em uma fazenda pertence

Custe o que custar!


545

546

fala na gíria para dar impressão de que é totalmente diferente da sua rival, a Dona Nisso temos nossa glória Nossa vida, nosso amar!

Monarquia. VOZ FEMININA (Sempre tonitroante.) Basta de subversão da ordem!!!

Senhores Fidalgos da Casa Imperial Paraense

MULHER-ESTÁTUA Eu não disse que era ela?!

E senhores Príncipes das múltiplas Castas

HOMEM-ESTÁTUA

sociais brasileiras:

O que agente faz? MULHER-ESTÁTUA

Sabei que cedo ou tarde

Talvez seja preferível não fazer... HOMEM-ESTÁTUA

O vento sopra as cinzas de

Como assim?

Todas as fogueiras

MULHER-ESTÁTUA

E o fogo arde. (Volta a ação para o plano superior.)

Se o livro da verdade não me enganou, estamos em uma situação delicada, dentro da qual convém agirmos de cabeça fria, sem precipitação. HOMEM-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA – Página 130, que nós pulamos; leia berrando, mas berrando mesmo, com toda a energia dos seus pulmões. HOMEM-ESTÁTUA (Cumprindo a determinação, entusiasmado.) “Os senhores de escravos do Pará ficaram famosos, na crônica da escravidão, pelo rigor com que castigavam e maltratavam os escravos... para os negros das províncias do sul não havia ameaça mais eficaz do que a de serem vendidos para o Pará”. VOZ FEMININA TROVEJANTE

E daí? MULHER-ESTÁTUA Vamos raciocinar, meu anjo desasado, temos diversas alternativas. Uma é reassumir nossas antigas posições e permanecer imóveis, fingindo ausência de vida. Outra é fazer justamente o contrário e derrubar lá de cima a Senhora República. HOMEM-ESTÁTUA Como podemos derrubá-la se não temos força, sequer, para balançar a coluna de cimento que a sustenta? É cimento armado...

Que bagunça é essa ai embaixo???

MULHER-ESTÁTUA

HOMEM-ESTÁTUA

Se conseguirmos despertar as estátuas de carne teremos força para tudo.

(Apavorado.) Será a Senhora República?

HOMEM-ESTÁTUA

MULHER-ESTÁTUA

E o que acontecerá se a Senhora República cair? Quem irá substituí-la?

Sim, é. Não tenha a menor dúvida.

MULHER-ESTÁTUA

HOMEM-ESTÁTUA

Bem, sejamos realistas. No momento não dispomos de recursos para prever quem

Como sabe com tanta certeza?

tomaria o lugar da Senhora República: se a jovem Democracia Socialista ou a velha

MULHER-ESTÁTUA

Ditadura Militar...

Pelo tipo de linguagem, pelo vocabulário “bagunça”. A Senhora República é distintíssima, fina, polida, aristocrática, porém adora parecer popular. De vez em quando

HOMEM-ESTÁTUA Que dilema!


547

548

MULHER-ESTÁTUA

social. E ficou demonstrado e está cada dia mais visível através desse estudos, que a

Há uma terceira opção, o meio-termo: nem agressão, nem sujeição. Nem

escravidão no Brasil foi tão brutal e desumana como em qualquer parte do mundo.”

liquidamos a Senhora República, nem consentimos que ela liquide conosco, mantendo-nos inanimados na inércia e silêncio. HOMEM-ESTÁTUA

Outro recorte é um breve trecho do volume O TIGRE DA ABOLIÇÃO, de Osvaldo Orico, publicado em 1953, pela Gráfica Olímpica Editora, do Rio de Janeiro. Diz isto:

(Exultante) Parabéns, você resolveu a questão, é maravilhoso raciocinar. Eis a

“Ainda em 1840, segundo o depoimento de Ferdinando Denis, eram bárbaros os

solução ideal: “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Afinal, tudo o que desejamos é

castigos infligidos nas roças e fazendas, por ordem do feitor. O escravo era atado a um

realizar o nosso destino, e se já não somos apenas estátuas, também ainda não somos seres

mourão, ou, sendo no meio do campo, amarrado do modo mais singular e cruel ao mesmo

humanos.

tempo: um pau curto, passado entre as pernas, e ao qual se atavam ligadura, entregava o

MULHER-ESTÁTUA É isto. HOMEM-ESTÁTUA

paciente ao algoz.” A ação retorna para o plano inferior. Um grupo de negros está aprisionado. Três no tronco, um afastado dos demais,

E a leitura?

especialmente amarrado (Conforme desenhos já conhecidos, de autoria de Debret,

MULHER-ESTÁTUA

existentes na Secção de Microfilme da Biblioteca Nacional).

Vamos continuar. Com as devidas precauções, é claro.

PAI ANTÔNIO

HOMEM-ESTÁTUA

(Entra furtivamente e sussurra para os escravos no tronco.) Filhos, logo mais o

(Vira uma folha do livro e fala a meio tom.) Aqui tem dois recortes. Um é da página 13 da obra O NEGRO E A VIOLÊNCIA DO BRANCO, de Ariosvaldo Figueredo, publicado em 1977 por José Álvaro Editores S/A, do Rio de Janeiro. Foi extraído do prefacio de Clóvis Moura e diz o seguinte: “Durante muito tempo pontificou com status de infalibilidade uma sociologia que

cão danado vai aparecer e começar a trezena do inferno. UM ESCRAVO (No tronco.) Tenho sentido uma dor no peito horrível, Pai Antônio, não sei se vou aguentar treze noites seguidas de castigo. SEGUNDO ESCRAVO

mistificava as relações entre senhores e escravos, querendo fazer crer que a essência dessas

(Idem) Alguém precisa estrangular esse feitor.

relações era diferente, no Brasil, daquela onde imperou o escravismo em outras partes do

TERCEIRO ESCRAVO

mundo. O mito do “bom senhor”, como o classificou Marvin Harris, era tido como verdade

(Idem) Ele falou que vai espremer os nossos dedos nos “anjinhos” até agente

histórica inapelável e os estudiosos repetiam, sem filtrar, aquilo que os livros mais

confessar, ou até esfarelar os ossos...

prestigiados expressavam nas suas páginas. Foi a época na qual diziam que o português

PRIMEIRO ESCRAVO

adoçara as relações entre senhores e cativos através da miscigenação, um termo mágico

Já estou escaldado no “vira mundo” e da “gargalheira”. Se eu não aguentar...

através do qual procurava-se escamotear o antagonismo das classes, escondendo-se o fato

SEGUNDO ESCRAVO

fundamental de que essa miscigenação processava-se na base da mais brutal exploração

Tem de aguentar, sim. Pode confiar, Pai Antônio, que ninguém dá com a língua

sexual da mulher negra escrava que era transformada em simples animal sexual, da mesma

nos dentes. (Para o companheiro lamentoso.) Se tu cair na frouxura e contar alguma coisa

forma que homens eram considerados animais de tração.

eu te quebro todo.

“No entanto, da década de cinquenta para cá, vários estudos já colocaram criticamente essas posições, procurando, através de novas fontes, a verdade histórico-

PRIMEIRO ESCRAVO Quero ver a tua valentia quando o feitor chegar.


549

550

SEGUNDO ESCRAVO

SEGUNDO ESCRAVO

Cala esta boca, senão...

É grande a Cidade Maravilha, Pai Antônio?

PAI ANTÔNIO

PAI ANTÔNIO

(Interferindo) Calma! Se fizerem zuada me descobrem aqui. (Vai até onde se

Tem que ser, pra caber tanta gente. Gente fugida desde a revolução da

encontra o negro amarrado e fala para ele.) Filho, por que te contentas em ficar roubando

Cabanagem, gente que nasceu lá e gente que continua fugindo de todos os lados. A Cidade

besteiras? Não seria mais bonito te juntares com os irmãos de sofrimento no risco da fuga?

Maravilha, filho, com a nossa luta pela liberdade vai crescer até ficar do tamanho do céu...

ESCRAVO AMARRADO

Ação no plano superior. O Homem-Estátua apresta-se para dar continuidade à

Não sou louco!

leitura, porém olha para a Mulher-Estátua.)

PAI ANTÔNIO

HOMEM-ESTÁTUA

Juízo é tu que não tem. Não foi o teu pai que morreu no pelourinho depois de ser

O que você acha disso?

marcado com ferro em brasa? Tua prima não tinha só doze anos quando foi emprenhada

MULHER-ESTÁTUA

por aquele branco sem-vergonha? Tu não viste a pobre da Joana ser arrebatada do marido e vendida como ama-de-leite?

(Depois de consultar a folha do livro.) É... não sei... O dia que lermos este capítulo, na íntegra, talvez todo este monumento vá abaixo...

ESCRAVO AMARRADO

HOMEM-ESTÁTUA

Pai Antônio, me deixe sossegado. Eu ainda hei de ser negro de aluguel ou negro

Seria prudente rasgarmos estas folhas e lançarmos os pedaços ao vento.

de ganho.

MULHER-ESTÁTUA

PAI ANTÔNIO

Não adianta, surge sempre alguém para juntar e colar tudo direitinho.

Tu vai é acabar no “sumidouro”. Tenho pena de ti, filho, tu não tem jeito. (Volta

HOMEM-ESTÁTUA

para os negros no tronco.) Não posso demorar, um pouquinho mais e o feitor aparece. TERCEIRO ESCRAVO Reze por nós, Pai Antônio.

E se queimarmos? MULHER-ESTÁTUA É inútil. Todos os relatos nestas folhas estão registrados na consciência dos seres

PAI ANTÔNIO

humanos que foram vítimas deles. Cada pessoa que sofreu uma dessas torturas... (Estronda

O padecimento é só hoje, filhos, só hoje. Amanhã o pessoal vem soltar vocês

com mais vitalidade a voz da Senhora República, os dois estremecem.)

deste tronco pra se arribarem todos juntos. Não desanimem.

VOZ DA SENHORA REPÚBLICA

SEGUNDO ESCRAVO

Quem falou em TORTURA???

Nós não há de fraquejar.

HOMEM-ESTÁTUA

PAI ANTÔNIO

Ninguém!...

Pensem na Cidade Maravilha. Tem cinco canoas escondidas, esperando. A

MULHER-ESTÁTUA

cachoeira Caspadura é longe mas o rio Trombetas é manso, nele é fácil remar. Vocês vão

Eu disse tortura!... Estava me queixando de sentir tontura depois de tanta leitura...

conseguir a salvação... (Seus olhos se iluminam.) Quando estiverem na Cidade Maravilha

Ação no plano inferior. Pai Antônio saiu, os escravos adormeceram aprisionados.

cantem o banzo por mim... Brinquem com as crianças que lá elas são alegres... Plantem

Entra o feitor com o “bacalhau” chicote de couro cru e os “anjinhos” (dois anéis de ferro

todo dia até o sol sumir, principalmente o tabaco que os regatões trocam por armas.

que diminuíam de diâmetro à medida em que se torcia um pequeno parafuso provocando o

Trabalhem muito, trabalhem sempre com amor pela terra, façam a Cidade Maravilha ficar

aperto dos polegares.)

como Palmares...


551

552

FEITOR

VOZ DO ESCRAVO

(Para negro amarrado.) A tua surra pode esperar, ladrão vagabundo. Vou cuidar

Ai!... Ai!... Ai!...

logo daqueles patifes. (Avança na direção dos negros no tronco ostentando o instrumento

VOZ DO FEITOR

de tortura.)

Está gostando?

A luz apaga, palco em completa escuridão.

VOZ DO ESCRAVO

VOZ DO FEITOR

Ai!... Ai!... Ai!...

O primeiro és tu.

VOZ DO FEITOR

VOZ DE UM ESCRAVO

Como é?

Não... não... por caridade...

VOZ DO ESCRAVO

VOZ DO FEITOR

Não! Não! Não!...

Vais ver já o que é bom.

VOZ DO FEITOR

VOZ DO ESCRAVO

E agora?

Eu não fiz nada, não fiz nada, juro que não fiz nada.

VOZ DO ESCRAVO

VOZ DE OUTRO ESCRAVO

Ai!... Ai!... Ai!... Ai!...

Nós não fez nada.

VOZ DO FEITOR

VOZ DO FEITOR

Tu é que sabes até quando aguentas.

Cala a boca, pirento, que tua vez não demora.

VOZ DO ESCRAVO

VOZ DO ESCRAVO

Eu não aguento mais! Ai!...

Por caridade, estou doente do peito...

VOZ DO FEITOR

VOZ DO FEITOR

Então bota pra fora toda a verdade.

Ou tu confessas, canalha, ou deixo tua mão em frangalho!

VOZ DO ESCRAVO

VOZ DO ESCRAVO

Ai!... Ai!... Ai!...

Não, não...

VOZ DO FEITOR

VOZ DO FEITOR

Não adianta se mijar todo.

Vou fazer cada osso dos teus dedos virar bagaço.

VOZ DO ESCRAVO

VOZ DO ESCRAVO

Ai! Ai! Eu vou ficar maluco!...

Caridade... caridade...

VOZ DO FEITOR

VOZ DO FEITOR

Como é, fala ou não fala?

Se puxar de novo a mão eu te racho o focinho a bofetada. Duvida?!

VOZ DO ESCRAVO

VOZ DO ESCRAVO

Ai!... Ai!... Eu não fiz nada...

(Depois de curtíssima pausa.) Ai! Ai!...

VOZ DO FEITOR

VOZ DO FEITOR

Ah! precisa sofrer mesmo pra dizer a verdade, não é? Então lá vai.

Já doeu? Ainda nem comecei a apertar.

VOZ DO ESCRAVO Ai! Ai! Ai! Eu... eu...


553

554

VOZ DO FEITOR

“RACISMO EM PLENA COPACABANA

Quer mais?

“Negro só entra pelo elevador de serviço.”

VOZ DO ESCRAVO

“Ao saber que sua filha adotiva, de sete anos, ouviu esse argumento ao tentar

Ai! Ai! Ai!... Ai! Ai!... Ai! Ai!...

subir no nono andar do prédio 66 da Rua Domingos Ferreira em Copacabana, pela entrada

(Os gritos de dor se multiplicam e são cada vez mais agudos e desesperados.)

Social, o empresário artístico Wilde Gibson decidiu “radicalizar”. Foi a 13ª DP apresentar

VOZ DO FEITOR

queixa-crime contra o síndico do prédio, brigadeiro Milanez.

Se tu não disseres a verdade, filho duma égua, eu te mato!

“ – Só desisti da ideia porque ele veio aqui em casa me pedir desculpa – assegurou

VOZ DO ESCRAVO

Gibson na tarde de ontem – um dia depois da menina Ana Paula de Sá Gibson ter sido

(No auge do desespero.) Ai!!! Ai!!! Ai!!! Ai!!!... Ai!!! Ai!!! Ai!!!...

barrada na entrada principal do edifício.”

A ação passa para o plano superior.

os dias, mas acham que não existe nenhuma atitude a tomar.”

“ – Que isso sirva de alerta para os negros que sofrem essas discriminações todos MULHER-ESTÁTUA HOMEM-ESTÁTUA

Jornal O LIBERAL, edição do dia 12 de julho de 1983:

(Depois de fechar o livro.) Sabe, é mais garantido voltarmos a ser exclusivamente

“UM RACISMO MUITO CAMUFLADO”

estátuas...

“A professora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo

MULHER-ESTÁTUA

denunciou ontem a reunião da SBPC que no Brasil há um racismo camuflado que atende

Impossível. Quem faz um único contato com a verdade pura jamais torna a ser

aos interesses econômicos e sociais do grupo dominante.”

como era. HOMEM-ESTÁTUA Então, pelo menos eu vou ler este livro de trás para a frente, a fim de não irritar a Senhora República e também a fim de tomarmos conhecimento de coisas agradáveis. Este povo negro foi tão injustiçado que certamente, depois de séculos de escravidão, recebeu dos brancos arrependidos o mais honroso tratamento. MULHER-ESTÁTUA (Ironicamente) Experimente fazer isso. HOMEM-ESTÁTUA (Abre o livro na parte final e põe-se a examinar as derradeiras folhas.) Encoste a cabeça na minha, eu leio uma você lê outra.

“Segundo ela, negros, índios, ciganos e mulatos tem dificuldades de acesso a cargos públicos e a funções de chefia. “Em São Paulo há casos de clubes que apesar de não fazerem constar a proibição de seus estatutos, não permitem a associação de negros.” HOMEM-ESTÁTUA Esta notícia é longa, vou ler somente uma parte. Jornal O LIBERAL, dia 15 de dezembro de 1982: “FILHOS DE ESCRAVOS ABSOLVIDOS DE UM CRIME EM SOROCABA” “Sorocaba (AE) – Numa sessão que durou mais de 15 horas, o Tribunal do Júri de Sorocaba absolveu ontem os negros Marcos Roberto Rosa de Almeida e Noel Rosa de Almenida, descendentes de escravos do bairro do Cafundo, município de Salto de

MULHER-ESTÁTUA

Pirapoca, acusados de terem matado a facadas Benedito Moreira de Souza. O júri, acatando

(Executa) Vamos lá.

tese do advogado Antônio Santana Marcondes Guimarães, entendeu que os negros agiram

HOMEM-ESTÁTUA

em legítima defesa pessoal e de seu patrimônio, pois, a mando do fazendeiro Abdala

Aqui tem vários recortes de noticias publicadas na imprensa de Belém do Pará.

Marum, Benedito estava cercando um pedaço de terra que lhes pertencia.

Dia 26 de janeiro de 1984, jornal O LIBERAL:

“O advogado lembrou que a comunidade negra, que ainda hoje fala o dialeto africano Kimbundu, vive isolada naquelas terras há mais de cem anos. “Eles eram


555

556

legítimos proprietários e senhores de mais de cem alqueires de terreno que lhes foram

nossos irmãozinhos não aguentarem o castigo no tronco é possível que tudo vá por águas

legados pelo seu antigo dono. No entanto, pouco a pouco, foram sendo espoliados pelos

abaixo...

brancos e hoje ocupam nada mais que dez alqueires, porção que ainda desperta a cobiça de

UM ESCRAVO

ricos fazendeiros, como aquele que mandou a vítima erguer a cerca”, disse o advogado.”

Eles não vão falar, prometeram pra gente.

MULHER-ESTÁTUA

OUTRO

Se é para economizar tempo leio somente o último parágrafo desta nota que saiu

Todos fizeram juramento sagrado.

dia 3 de novembro de 1982, no jornal A PROVÍNCIA DO PARÁ: “Até agora, só ocorreu um incidente racista a lembrar a cor do deputado Alceu

OUTRO Acha que não guardarão segredo, Pai Antônio?

Colares: desconhecidos, até hoje não identificados, picharam no início do ano, cartazes de

OUTRO

Colares com palavrões e expressões como “isso é coisa de negro”. Os cartazes estavam

Nem só por está noite?

fixados no 14º andar da Assembleia Legislativa gaúcha, junto do Diretório do PDT, mas

PAI ANTÔNIO

não se descobriu os responsáveis pela pichação.”

Devemos nos preparar pro que der e vier.

Ação no plano inferior. Pai Antônio, no seu humilde quarto de dormir, sentado no

OUTRO

chão sobre uma esteira, tendo ao lado alguns objetos de uso pessoal, inclusive um terçado

Será?...

enferrujado, conversa com diversos escravos.

OUTRO

PAI ANTÔNIO

Eles sabem que amanhã, de qualquer maneira, nós solta eles, não sabem?

Esta noite meu coração está batendo apertado.

PAI ANTÔNIO

UM ESCRAVO

Eu avisei.

É a febre que aumentou.

UM ESCRAVO

OUTRO

Então eles vão aguentar.

Precisa se tratar melhor, Pai Antônio, tem que se cuidar.

OUTRO

PAI ANTÔNIO

Por mais que apanhem até sangrar ficam calados.

A quentura da carne não me incomoda, filho, ruim é uma quentura diferente que

PAI ANTÔNIO

pela primeira vez eu estou sentindo.

Suportar chicotadas é o de menos, filhos, mas ter os dedos esmigalhados aos

UM ESCRAVO

poucos, devagarzinho, é de enlouquecer. O feitor vai fazer isso durante a noite toda:

Como é ela?

primeiro ele não consegue nada, vai embora, dorme um pedaço, acorda e volta, faz de

PAI ANTÔNIO

novo. Se não conseguir nada, torna a ir dormir, depois aparece e continua fazendo,

Não sei explicar, só sei que não é coisa que eu já tenha sentido algum dia. Talvez

madrugada a dentro. Ele usa deste expediente quando cisma que tem uma revolta

seja resultado da situação...

combinada, ou uma fugida maior. Vocês sabem disso.

UM ESCRAVO

UM ESCRAVO

Não se preocupe tanto, deite logo pra repousar.

Sabemos, Pai Antônio, porém os irmãos que estão no tronco são tão decididos!...

PAI ANTÔNIO

PAI ANTÔNIO

Conheço a esperteza do feitor, aposto que ele desconfia de mim desde muito

Um está tremendo de medo.

tempo, não me pegou até hoje porque sou matreiro, mas bem que sempre tentou. Se os


557

558

UM ESCRAVO

OUTRO

É?

Tem que tomar remédio e descansar mais, Pai Antônio.

OUTRO

OUTRO

Qual?

O que nós pode fazer, Pai Antônio, pra lhe ver curado?

OUTRO

PAI ANTÔNIO

Pode ter medo mas não fala, não é?

Não se vexem por minha causa.

PAI ANTÔNIO

UM ESCRAVO

Um homem com medo não vale nada, filhos. Um homem com medo corre de

Por que não foge junto com a gente?

sombra, chora na frente de mulher e faz traição pro melhor amigo. Um homem com medo

PAI ANTÔNIO

morre vivo. Ouçam o conselho que não me canso de dar pra vocês: nunca tenham medo.

Ah, filho, assim velho e doente ia atrapalhar.

Não esqueçam que o medo mata tudo de bom no homem, mata até o desejo de ser livre.

UM ESCRAVO

UM ESCRAVO

Que nada!

Isso é verdade, Pai Antônio.

OUTRO

PAI ANTÔNIO

Por que não? Vamos, Pai Antônio.

Quem quer ir pra Cidade Maravilha não pode ter medo. Tem que pensar só em

PAI ANTÔNIO

fugir, só em fugir. Fugir. Fugir. Fugir, custe o que custar. E eu dou a minha palavra a

Pra cair na metade do caminho, de fraqueza nas pernas?

vocês, essa fugida que nós tramou ninguém estraga, aconteça o que acontecer.

UM ESCRAVO

UM ESCRAVO

Não cai não, e se cair nós carrega.

Todos nós acredita.

OUTRO

OUTRO

É sim, Pai Antônio, dê essa felicidade pra gente.

E ninguém tem medo.

PAI ANTÔNIO

OUTRO

O meu lugar é aqui, filhos. Tenho de ficar pra ajudar os irmãos no cativeiro. E

Nem volta atrás.

ainda vou botar na cabeça de muitos o gosto pela liberdade. Ainda vou fazer muitos

PAI ANTÔNIO

vencerem o medo e fugirem.

Só precisamos nos preparar pra alguma surpresa, porque meu coração está palpitando novidade... UM ESCRAVO

UM ESCRAVO Vai ser uma pena nós chegar na Cidade Maravilha sem o guia do nosso pensamento.

Que novidade, Pai Antônio?

PAI ANTÔNIO

PAI ANTÔNIO

Parece que eu estou vendo vocês chegarem lá... a festa, os abraços... depois o

Não sei, filho, não sei. Não sei se é de tristeza ou de alegria. Quando digo que meu coração está batendo apertado é por que sinto o aperto chegar na garganta e se espalhar pelo corpo todo... UM ESCRAVO É a febre, com certeza.

trabalho livre, gostoso... as amizades... as estórias... os passeis... os namoros... as pescarias no rio Trombetas... as cantorias... as saudades... (Tem a voz embargada pela emoção.) UM ESCRAVO Está na hora, Pai Antônio, nós sai pra lhe deixar dormir. (Ensaiam todos a retirada.)


559

560

PAI ANTÔNIO

nas suas colônias. Não houve um genocídio maior na história da humanidade, nem em

(Recompondo-se) Peço uma coisa a vocês: quando se encontrarem com Atanásio

numero nem em brutalidade, de que o cometido contra os negros africanos – incluídos ai os

digam que enquanto Pai Antônio viver ele tem um soldado no sítio Cacaual-grande, arrebanhando povo na luta pela liberdade.

fornos crematórios do nazismo. “Uma das decorrências desse massacre contra os negros foi o escudo

Ação no plano superior.

preconceituoso que as ideologias cristães adotaram para esconder o crime. O mais grave

HOMEM-ESTÁTUA

deles – o da “inferioridade racial do negro” – funciona como anestesia para que raramente

(Com o livro ainda na mão, aberto.) Tanto faz ler atrás como na frente, é a mesma

se trate do problema da escravidão além da superfície. É preciso não esquecer que a

coisa. (Retrocede algumas folhas.) Vamos ver o que diz aqui, estes recortes. Título da

escravidão do negro africano foi abonada pela Igreja Católica, que chegou a justificá-la

obra: O NEGRO NO BRASIL DA SENZALA À GUERRA DO PARAGUAI. Autor: Júlio

afirmando que o negro não tinha alma”. (Devolve o livro.)

José Chiavento. Publicação da Livraria Brasiliense Editora S.A., de São Paulo. Página 11:

HOMEM-ESTÁTUA – Página 128:

“Quando começou a guerra do Paraguai o Brasil tinha mais de 2,5 milhões de

“Ao contrário do que fala um dos modernos ideólogos da escravidão, Gilberto

escravos; quando a guerra acabou, eles não chegavam a 1,5 milhão – em apenas seis anos

Freyre, nada aqui chegou a “adocicar-se em transigências” para o escravo negro. Tudo foi

(1864/1870) “desapareceram” 1 milhão de negros. A sociedade que foi capaz de tão rápido

sangue e chibatas, sempre. Jogado nas senzalas imundas, dormindo no chão ou arranjando-

consumo de negros, transformando-os em bucha de canhão, tem seus herdeiros ainda hoje,

se em cima de folhas, trabalhando de 14 a 18 horas por dia, indo ao tronco pelas menores

ignorando estes simples dados estatísticos. Simples na sua denúncia irrespondível, que não

faltas, a vida dos escravos é uma crônica de crueldades, onde não faltam as manifestações

se atenua sequer com a diminuição natural de escravos depois do fim do tráfico.

sádicas dos seus senhores e sinhazinhas.”

“Para se encontrar as causas da escravidão no Brasil, com seus múltiplos aspectos de irracionalismo e crueldade, não basta apenas a denúncia do genocídio que se praticou abusiva e impunemente contra os negros. Não basta... É preciso penetrar neste fatos,

Ação no plano inferior, onde Pai Antônio já dorme, profundamente estirado ao chão na esteira. Entra o feitor acionando desvairadamente o chicote sobre ele.

geralmente relegados pela historiografia oficial – de forma completa no que se refere à Guerra do Paraguai, por exemplo –, e ir buscar as causas fundamentais que conformaram a

FEITOR

escravidão brasileira, que nos deixou uma trágica herança no maldisfarçado racismo que

Velho safado, vou fazer te arrependeres do dia em que foste parido!!!

esmaga os negros até hoje.”

PAI ANTÔNIO

MULHER-ESTÁTUA

(Acorda zonzo, rola no chão tentando se defender das chicotadas, consegue

Um milhão de negros transformados em bucha de canhão...

apanhar o terçado e se levantar.) Cão leproso, eu estou caindo de velho e de doente, mas

HOMEM-ESTÁTUA

vou te mostrar quanto vale um negro de Angola! (Trava-se uma luta feroz; Pai Antônio,

Tem mais. (Entrega a ela o livro.)

embora sem a necessária destreza, ensaia uma capoeira; por fim, em golpe de sorte, crava

MULHER-ESTÁTUA - Páginas 44 e 45:

a ponta do terçado no feitor que rola abatido.)

“A África foi o único continente do mundo que teve sua população estagnada nos últimos quatrocentos anos. Matou-se um continente, cometeu-se um genocídio ao longo de trezentos e cinquenta anos que vitimou o equivalente à população total do Brasil contemporâneo. A África negra foi condenada à estagnação demográfica e econômica, seus homens, mulheres e crianças foram escravizados, mortos, torturados, violentados culturalmente para que os portugueses, espanhóis e ingleses pudessem produzir riquezas

A luz apaga. Durante a escuridão no palco ouve-se a voz metálica, impessoal, bem pausadamente.


561

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VOZ

que mais da metade dos nossos escravos encontraram-se nos quilombos do rio Trombetas.

“Sabemos através de experiência dolorosa, que a liberdade jamais é dada

Onde iremos parar se não enforcarmos o Pai Antônio para intimidar os negros fujões?

voluntariamente pelos opressores; ela deve ser exigida pelos oprimidos”. Martin Luther

ADVOGADO DE DEFESA

King. Página 83 do livro NÃO PODEMOS ESPERAR. Editora Senzala Ltda., São Paulo.

O insigne colega me permite agora um aparte?

(Antes que a luz reacenda, no mesmo plano inferior, ressurge o fundo musical

JUIZ

dando tempo para a rápida mudança dos petrechos da cena que a seguir representará o

(Martelada na mesa.) Ele já não disse que não permite?!

Tribunal do Júri responsável pelo julgamento do Pai Antônio.

PROMOTOR

JUIZ

Como podemos sair da calamitosa situação econômica que nos esmaga se não

(Dando a clássica martelada sobre a sua mesa.) Dou a palavra à promotoria.

cumprirmos, nos tribunais, o espirito das Ordenações do Reino? Como os engenhos vão

ADVOGADO DE DEFESA

recuperar a produção com a falta, cada vez maior, do braço negro? O Código de Posturas

Mas Meritíssimo, eu ainda não terminei o meu arrazoado. O velho escravo

Municipais, de 29 de novembro de 1848, pune até com pena de prisão toda pessoa que

Antônio foi espancado barbaramente pelo sádico feitor e o direito de defesa não deve ser

souber da existência de um mocambo e não denunciar para a autoridade competente mais

negado nem aos animais.

próxima; todavia, onde estão as denúncias? Quase ninguém se dá conta da gravidade do

JUIZ

momento que atravessamos e só nós, os representantes da justiça, podemos salvar o futuro

(Nova martelada.) Basta! Volta a falar a Promotoria para desenvolver o seu

desta província. A lei nº 99, de 3 de julho de 1841, que autoriza as Câmaras Municipais a

oportuno libelo acusatório.

nomear em cada distrito dois capitães-de-mato para prender escravos fugidos, por

PROMOTOR

solicitação dos seus senhores, até hoje não deu qualquer resultado. E para o cúmulo da

Obrigado, Meritíssimo, pela imparcialidade. O nobre colega da defesa estava

desmoralização, alguns indivíduos inescrupulosos estão fazendo prosperar a compra e

exagerando em suas prerrogativas e só faltou insinuar que negro tem alma e é filho de

venda de escravos fugidos, sem que tenhamos meios de coibir tal comércio ilícito. O que

Deus. Que absurdo! Onde já se viu preto que mata branco ser perdoado? Um tanto mais em

fazer, então, neste quadro sombrio de desrespeito aos sagrados interesses da sociedade?

uma conjuntura como esta que enfrentamos?! Ninguém ignora a crise atual, decorrente da

ADVOGADO DE DEFESA

baixa produção agrícola. O que será da nossa lavoura se os escravos continuarem fugindo?

Eu digo o que fazer.

Sabem todos que o último carregamento de negros diretamente da África deu-se há quase

JUIZ

vinte anos, em 1834.

(Martelada mais forte.) Não diz coisa nenhuma, a sentença vai ser lavrada!...

ADVOGADO DE DEFESA O colega me concede o privilégio de um aparte?

Ação no plano superior.

PROMOTOR Não, não concedo. (Retira papéis de uma pasta.) Aqui está o relatório que o insigne Dr. Jeronimo Francisco Coelho exibiu em Belém na sessão ordinária da 6ª

HOMEM-ESTÁTUA Escute só as poucas palavras com que Abdias do Nascimento abre sua importante

Legislatura, a 1º de dezembro de 1848; por ele se vê como é impressionante a queda

obra O QUILOMBISMO, publicada pela editora Vozes Ltda., do Rio de Janeiro, em 1980:

quantitativa e percentual da população escrava, desde 1822. (Pega outro papel.) Eis uma

“Em memória dos 300 milhões de africanos assassinados por escravistas,

estatística da população escrava do Grão-Pará por Comarca, feito em 1849; por ela somos

invasores, opressores, racistas, estupradores, saqueadores, torturadores e supremacistas

cientificados de que em toda Santarém existem apenas 3.883 negros cativos. Isto quer dizer

brancos...”


563

564

MULHER-ESTÁTUA

Das penas do pavão

(Toma delicadamente dele o livro da verdade, dobra uma folha, ou duas.) Aqui,

Porque sois cegos por dentro e por fora

um outro recorte da página 15 da mesma obra diz:

Por que sois cegos do ontem e do agora.

“A história do Brasil é uma versão concebida por brancos, para os brancos, e pelos brancos, exatamente como toda a sua estrutura econômica, sócio-cultural, policial e

Respondei sem refletir

militar tem sido usurpada da maioria da população para o benefício exclusivo de uma elite

E sem mentira

branca-brancóide, supostamente de origem ário-europeia”. (Devolve o livro.)

Batendo no peito:

HOMEM-ESTÁTUA

Que água benta

(Dobra diversas folhas.) Ainda tem mais, desse mesmo autor. Ouça o que ele

Ou água barrenta

escreveu na página 101 do volume O NEGRO REVOLTADO, publicado pela Editora

Lavará vossa alma do preconceito?

Nova Fronteira S/A, do Rio de Janeiro, em 1982: “Oprimido e esfolado permanece o negro. Os sofrimentos que ele padece têm origem na cor da sua pele. Não basta um negro – excepcional ou sob proteção paternalista

“Preto quando não suja na entrada Suja na Saida”

– galgar um lugar de projeção, elevar-se do nível geral médio de seu povo. Importa, sim, é lutarem todos e conquistar oportunidades de elevação para todos. Pois enquanto um negro

É o que as vezes dizeis

for tolhido em sua liberdade por ser negro, enquanto um negro tiver obstaculizada sua

Mesmo negando o racismo.

realização pelo fato de sua cor epidérmica, todos nós – os negros – estamos implicitamente

O que prova que a sujeira pressentida

sendo atingidos em nossa dignidade de homens e de brasileiros.”

Não está na vossa tez Ou no vosso cinismo?

Ação nas duas laterais do plano inferior, onde os coros masculino e feminino declamam afinados.

O tempo caminha a passos virgulados Mas caminha

COROS

Riscando os espaços curvados

Senhores fidalgos da Casa Imperial Moderna

Linha a linha.

Por que achais que o cisne é mais belo que o urubu?

Em cada ponto Apaga-se uma reticência

Tendes uma estética

E um hífen faz encontro

Com noção real da beleza

Na essência.

Ou apenas uma ética Mesquinha em falsa grandeza?

Então por que a discriminação racial Senhores Fidalgos da Casa Imperial???

Nas negras asas da graúna Que voa no agreste sertão Jamais vereis as cores uma a uma


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Escurecem as laterais e a área central do plano inferior é iluminada. Aparece o Pai Antônio no “oratório”, cubículo de prisão que alojava o condenado a morte na véspera da execução. Entra um frade capuchinho com uma sacola.

566

FRADE Por que não se confessa? Não tem mesmo um pingo de arrependimento, velho Antônio?

FRADE

PAI ANTÔNIO

Estou aqui com a incumbência que me foi dada pela Irmandade da Misericórdia a

Eu posso te chamar de filho, padre?

fim de lhe prodigalizar os benefícios da religião. PAI ANTÔNIO O que quer dizer isso, seu padre? FRADE Quer dizer que antes de mais nada estou pronto pra ouvir a confissão do seu pecado.

FRADE Pode. As últimas vontades de quem vai morrer em suplício público devem ser respeitadas. PAI ANTÔNIO Olha, filho, tu é muito bonzinho mas estás perdendo o teu tempo. Leva de volta tudo o que trouxeste e deixa eu ficar só que tenho o coração feliz.

PAI ANTÔNIO

FRADE

Que pecado?

Ah! Velho Antônio, se você soubesse como é o inferno...

FRADE

PAI ANTÔNIO

Não assassinou friamente um filho de Deus?

Quem te disse, filho, que eu vou pro inferno quando me matarem? Amanhã eu

PAI ANTÔNIO

durmo na forca e acordo na Cidade Maravilha... junto do Atanásio... vendo as crianças que

E o que ele fez comigo era da lei de Deus?

nasceram na terra da liberdade...

FRADE Não vamos discutir sobre isso que você é ignorante. O que importa é que a sua

Ação no plano superior, onde a luz verde acende com uma tonalidade mais fraca.

morte está marcada para amanhã cedo, o préstito sai às oito horas. Precisa se preparar. PAI ANTÔNIO

MULHER-ESTÁTUA

Eu sempre estive preparado, padre.

O que está acontecendo?

FRADE

HOMEM-ESTÁTUA

Não é o que me disseram.

Esquisito.

PAI ANTÔNIO

MULHER-ESTÁTUA

Estou em paz.

Não entendo, o que será?

FRADE (Tira da sacola velas, acende-as e as coloca em castiçais defronte de um grande

A luz vai aumentando e, ao mesmo tempo, a tonalidade verde diminuindo.

crucifixo existente no fundo da cela.) A Santa Igreja nunca nega conforto espiritual aos condenados. Ficarei aqui para ampará-lo. Tenha firmeza de ânimo que não sofrerá muito, o

HOMEM-ESTÁTUA

carrasco Domingos Pixuna possui bastante prática de enforcar ligeiro.

A claridade parece mais clara...

medo.

PAI ANTÔNIO

MULHER-ESTÁTUA

Sim, padre, sim, mas pode ir embora, não se preocupe comigo que não tenho

Sem dúvida. Como explicar o fenômeno? HOMEM-ESTÁTUA


567

Talvez uma bela manhã esteja prestes a nascer para a História do Povo Negro desta região...

568

“História escrita não existe. Mas a tradição persiste e os negros moradores do trombetas sabem que a luta de seus ancestrais foi das mais árduas e cruentas...”

MULHER-ESTÁTUA A minha visão começa a ser afetada. HOMEM-ESTÁTUA

Ação no plano inferior, onde há uma forca armada. Um homem de balandrau azul percorre em diagonal toda a cena deserta, agitando uma campa (pequeno sino.)

Também a minha. Não vamos poder terminar de ler o livro da verdade... MULHER-ESTÁTUA Engraçado como esta luz branca me faz mal. HOMEM-ESTÁTUA E a mim? Acho que acabaremos cegos. MULHER-ESTÁTUA É provável. Aproveitemos então o tempo. A Senhora República que se dane, mas pelo menos uma folha deste livro nós leremos juntos, gritando, gritando, gritando! (Põe-se a folhear o livro da verdade na parte final.)

HOMEM DE BALANDRAU Povo de Santarém, orai pelo nosso irmão penitente!... Povo de Santarém, orai pelo nosso irmão penitente!... Povo de Santarém, orai pelo nosso irmão penitente!... Após a saída do homem de balandrau ouve-se a batida compassada de tambores sugerindo marcha fúnebre. Aparecem os principais membros de uma procissão que se aproxima lentamente da forca, sob gritos delirantes do povaréu. Pai Antônio, conforme o ritual da época para tal solenidade, caminha na frente,

HOMEM-ESTÁTUA

vestindo alva túnica e tendo em volta do pescoço um laço de corda simbolizando a pena

De acordo, porém vê se encontra por aí um texto que não fale em tortura... (A

capital. Seus passos são firmes, a fronte erguida e o olhar fixo no horizonte.

tonalidade verde se atenua ainda mais.) MULHER-ESTÁTUA Depressa, estamos quase mergulhando na cegueira humana. (Esfrega os olhos, ele idem; juntam as cabeças e procedem a leitura fazendo um supremo esforço, tendo a altura

Logo atrás dele um Juiz, vistosamente paramentado, e o Frade capuchinho. A seguir um sujeito portando grosso livro do cartório (Escrivão), soldados e pessoas outras. A cena se desdobra em pompa e emoção superlativas, envolvendo os espectadores na sua atmosfera trágica sem necessidade de qualquer diálogo.

da voz gradativamente reduzida à proporção em que se dilui o verde da claridade, até

Pai Antônio sobe o patíbulo com serenidade e altivez.

desaparecer de todo.)

Fundo musical crescente, à medida em que ele é preparado pelo carrasco para a

OS DOIS

execução.

Jornal paraense FOLHA DO NORTE, fora de circulação na Capital do Estado,

Quando os preparativos se completam, a música e a gritaria da turba se

edição impressa especialmente para o município de Santarém em 3 de janeiro de 1981,

avolumam, cobrindo a voz do Escrivão que faz a leitura da sentença com pose

matéria transcrita em uma publicação avulsa da Comissão Pastoral da Terra, sediada em

empertigada. Finda esta providência o Frade toma posição saliente, cessam todos os

Belém na Praça D. Frei Caetano Brandão nº17:

rumores e sons e ele reza o “Creio em Deus Padre”, depois ensaia uma benção.

“A recente expulsão de dezenas de famílias negras da localidade de Jacaré, no

Ressurge o fundo musical, todas as luzes apagam e, quando acendem, o corpo de

Trombetas, e a ameaça que paira sobre as restantes 24 no lago Abuhy, localidades hoje

Pai Antônio balança na forca.

dentro da reserva biológica criada pelo Governo Federal e entregue à administração do

Há um breve silêncio.

IBDF é, na opinião de algumas pessoas, apenas a continuação de uma longa história de

Então o elenco, compactado, dirige-se a plateia.

cruel perseguição a que foram submetidos os chamados negros do Trombetas, ao longo dos anos, desde o século passado.


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ELENCO Senhores Fidalgos da Casa Imperial Imperiais Senhores da Casa Fidalga O Espetáculo chegou ao seu final Pedindo reflexão em vez de palmas. (Todos os atores apontam para o corpo do Pai Antônio.) TODOS

A ESTRANHA

Na forca a imagem Na forca a coragem

LOUCURA DE

Na forca a mensagem. Os tempos passaram Os ventos sopraram E mil flores murcharam

LORENA

Sobre o seu martírio. Mas tal destemor Germinado na dor E orvalhado de amor Ainda é negro lírio!

FIM

MARTINEZ


571

572

PAOLA Esta peça foi encenada pela primeira vez pelo Instituto Arte e Vida, da cidade de Franca, São Paulo, em 2006.

Filha: uns 20 anos, também solteira, estudante. JÉSSICA Antiga governanta e cozinheira da casa: uns 65 anos, personalidade vulgar,

CENÁRIO

presunçosa e beata. TERTO

Interior de uma residência burguesa, confortável e elegante, luxuosa mesmo. Sala de visitas decorada em estilo clássico, embora não espelhando refinado bom

Empregado para serviços gerais: uns 75 anos, homem simples e de bons sentimentos, paupérrimo e iletrado, frequentador de um Centro Espírita.

gosto, onde se destaca um piano de calda. No prolongamento, depois de meia parede em

ROSEMARY

arco, uma ante-sala tendo ao fundo pequeno escritório e ao lado vistosa escada de ligação

Grande amiga de Lorena; uns 40 anos.

com o segundo pavimento. A seguir, ampla varanda contendo, afora outras peças,

JEFFERSON

cristaleira, bar, mesa para jogo de cartas e saída comunicante com supostas dependências

Esposo de Rosemary; uns 50 anos, advogado.

complementares.

Dr. ALCOLOMBRE Médico psicanalista, uns 40 anos bem conservados.

PERSONAGENS LORENA Figura central do enredo: uns 50 anos de idade, possuidora de cultura apenas mediana mas bastante inteligente e dotada de um temperamento alegre, generoso, extremamente saudável. No início da representação encontra-se bastante feliz como sempre foi, porém aos poucos vai se revelando vítima de cruel obsessão espiritual que acaba quase levando-a à completa loucura, apesar dos melhores tratamentos médicos especializados. BERTOLO O marido: uns 55 anos, intelectualmente ainda menos ilustrado do que ela, tipo comum do comerciante interessado apenas em ganhar dinheiro. BRUNO Filho: uns 25 anos, poeta, jornalista lúcido comprometido com a luta pela justiça social, solteiro, ex-namorado de uma talentosa artista de caráter leviano, escrava de bebidas alcoólicas que morreu há pouco tempo, aparentemente de suicídio, depois de ser rejeitada pela família de Bruno, de um modo mais saliente pelo seu pai, e por causa disso resolveu se vingar como espírito.


573

574

PRIMEIRO ATO

LORENA Tive a impressão de que alguém me chamou pelo nome. BERTOLO

O palco demora no escuro por breves minutos depois que o pano sobe, enquanto se ouve um trecho de partitura clássica executada ao piano. A luz acende gradativamente,

Estavas sonhando...

em resistência. É noite, um tanto avançada. Na sala o piano está sendo tocado por Paola,

LORENA

uma bela moça de gestos delicados. Bertolo examina com indisfarçada irritação uma pilha

Não sei se era voz de homem ou de mulher.

de documentos no escritório; é um homem cheio de vitalidade porém apresenta rugas de

BERTOLO

envelhecimento prematuro na fisionomia de traços rudes. Bruno chega da rua

Não me atrapalhes agora que já é tarde, tenho de conferir todos os recibos e notas

ligeiramente ébrio, atravessa a sala e a ante-sala em cuidadoso silêncio, sem ser notado;

antes de dormir, ando desconfiado do novo Contador da filial, vou terminar fechando o

na varanda enche um copo de gelo e uísque, senta-se e começa a beber com o olhar

diabo daquela loja

perdido na fumaça do cigarro; sua aparência física é a imagem da irreverência: barba

LORENA

crescida, roupa desleixada etc. De repente Lorena surge no topo da escada com ar de

Não quer um cafezinho quente?

susto, vestindo um robe; desce os degraus hesitantes como se, tendo acordado naquele

BERTOLO Vai te deitar e diz pra tua filha parar com essa música enjoada. (Lorena dirige-se

momento, ainda estivesse espantando o sono; tão bonita quanto a filha, talvez mais, tem um porte esbelto, algo solene, que reflete segurança, equilíbrio, maturidade, e um

à Paola na sala interrompendo-a no piano.)

semblante que irradia invejável bom humor; penetra no escritório já calma, refeita de

LORENA

emoção.

Minha filha, é quase meia-noite, ou mais. PAOLA

LORENA

Preciso me exercitar, amanhã no Conservatório a barra será pesada, a professora é

O que é? BERTOLO

uma onça. LORENA

(Sem lhe dar atenção, absorvido em esmiuçar seus papéis.) O que é o quê?...

Não fostes tu que gritaste pelo meu nome, não? Acordei ouvindo alguém me

LORENA Chamaste-me?

chamar.

BERTOLO

PAOLA

Eu?...

Pesadelo?

LORENA

LORENA

Sim.

Não sei...

BERTOLO

PAOLA

Por que iria te chamar?

A música está incomodando?

LORENA

LORENA

Não mesmo?

A mim não, teu pai é que mandou parar.

BERTOLO

PAOLA

É claro...

Papai é um chato, reclama de tudo. Não ligue pra ele, suba e aproveite sua cama que daqui a pouco eu acabo (Ligeira Pausa.)


575

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LORENA

JÉSSICA

Teu irmão chegou?

Ponha junto da pia. E tome logo seu café porque antes de ir para o jardim temos

PAOLA

que fazer uma limpeza em regra na cozinha. Hoje é sexta-feira, dia de serviço puxado.

Acho que ainda não, quer dizer: para falar a verdade nem reparei se ele entrou

TERTO

(outra curta pausa.) O que há, mãe?

E desgosto.

LORENA

JÉSSICA

Nada, nada...

Por que desgosto?

PAOLA

TERTO

Desde quando a senhora passou a se preocupar com a hora em que o Bruno

Quando vinha entrando dei de cara com o patrão na porta da garagem. Criei

chega?

coragem e falei com ele sobre aquele assunto.

LORENA

JÉSSICA

Não é isso, perguntei por perguntar... (Retira-se, intrigada, e retorna pela escada

Deu certo?

para o andar superior.)

TERTO

A luz se apaga. Ao clarear é manhã do dia seguinte. Jéssica ocupava-se em recompor a mesa de refeição onde já foi servido o “breakfast”; baixa, gorda e ruiva, de pele branca descorada, ostenta um jeito afetado em todas as coisas que

Não, me arrependi. Assim é preferível eu procurar outro emprego, nem que seja como vigia de construção, onde posso atar minha rede e comer com os operários. JÉSSICA

faz. Toca a campainha, ela vai à sala, abre a porta, entra Terto carregando

Você devia era não esquecer da boa vida que tem aqui há quase um ano. Come do

pesados embrulhos de mercado; deslocam-se os dois para a varanda; Terto, um

bom e do melhor, mora no quintal mas em um quarto do tamanho do meu e, afinal de

mulato bastante idoso, de cabelos encarapinhados e postura humilde, caminha

contas, não ganha tão pouco, dá para os seus gastos.

com dificuldade por ter uma perna aleijada. JÉSSICA Comprou tudo?

TERTO Tenho necessidade de um dinheirinho a mais, não lhe mostrei a carta da minha neta? Doença é doença.

TERTO

JÉSSICA

Tudinho.

Quem é culpado do seu filho ser um estabanado? Ele que largue a vagabundagem.

JÉSSICA

TERTO

Os dois filés?

Não gosto que fale dessa maneira do meu filho, não tem o direito, ouviu?

TERTO

JÉSSICA

Comprei.

Então não me venha chorar miséria.

JÉSSICA

TERTO

E as verduras?

É melhor ficar calada.

TERTO

JÉSSICA

Vieram todas, só não tinha couve.

Mal agradecido. Você devia era dar mil graças aos céus por ter uma pessoa com quem conversar. Se eu fosse outra não lhe permitia discutir comigo, porque estou com dona Lorena há trinta e três anos, idade do Nosso Senhor Jesus-Cristo. Ajudei a criar os


577

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meninos que hoje até me consideram como fazendo parte da família. Você devia era me

JÉSSICA

respeitar e eu devia era obrigá-lo a trabalhar duro. Enfim, como é um pobre coitado que

Engula pelo menos o leite.

não tem onde cair morto...

LORENA

TERTO

(Bebe apenas uma xícara de café.) Depois como qualquer coisa. Paola desceu?

(Saindo com os embrulhos do mercado para a copa-cozinha fora de cena.) Triste

JÉSSICA

sina, a minha...

Até agora não.

LORENA

LORENA

(Desce a escada, ingressa na varanda descontraidamente.) Bertolo já saiu?

Hoje ela tem prova. E Bruno?

JÉSSICA

JÉSSICA

Faz meia hora.

Acho que esse, se ninguém atirar um balde de água fria nele, vai levantar somente

LORENA

ao meio-dia. Pela quantidade de baganas que juntei do chão, e pela garrafa de uísque

Não falou nada?

vazia...

JÉSSICA

LORENA

Comigo não, parece que deu uma descompostura no Terto.

(Sorri. Boceja. Sorri de novo.) Pois é.

LORENA

JÉSSICA

Puxa, há muito tempo que eu não dormia um sono tão esquisito. Acordei

Está rindo do quê? Não me diga que é do pileque do Bruno.

indisposta. JÉSSICA Enxaqueca? LORENA Não.

LORENA Estou rindo da minha ressaca de repouso. Não, esta não, me recuso a aceitar isso. Frita dois ovos nadando na manteiga, que vou começar a reagir. JÉSSICA Assim é que se fala. Nunca vi a senhora amofinada em toda a vida. Lembra do

JÉSSICA

que dizia a sua mãe? “O dia em que Lorena perder a graça é porque o mundo está se

Corpo mole...

acabando...”

LORENA Também não. JÉSSICA

LORENA Gostei de ouvir esta frase. Sabe de uma coisa, Jéssica? Além de uma grande governanta você é uma mulher inteligente, muito inteligente.

Ué!... então o quê?

JÉSSICA

LORENA

Obrigada, sua mãe também dizia.

Por incrível que pareça não dá para explicar. Uma espécie de... Sei lá!

LORENA

JÉSSICA (Servindo o “breakfast”.) Chocolate?

Se não fosse tão agarrada na batina dos padres aposto que teria arranjando um ótimo casamento. Talvez ainda dê para arrumar algum viúvo bem situado...

LORENA

JÉSSICA

Cadê a fome?

DEUS me livre!


579

580

TERTO

LORENA

(Voltando, para Jéssica.) Pronto...

E ele, o que respondeu?

JÉSSICA

TERTO

(Saindo na mesma direção.) Deixe eu providenciar os ovos.

Não deu e me xingou...

TERTO

LORENA

Bom dia, dona Lorena. LORENA Bom dia, Terto, tenho uma tarefa especial para você, venha cá. (Leva-o à sala,

(Esforçando-se para conter o riso.) Você foi ingênuo, devia ter falado primeiro comigo. Quanto deseja de aumento? TERTO

recosta-se em uma janela e aponta para o exterior.) Que tal uma melhorada no jardim?

Desejar eu não desejo. Preciso...

Outro canteiro ali não ficaria uma beleza? Precisamos de mais flores nesta casa, onde os

LORENA

problemas começam a aparecer.

Quanto?

TERTO

TERTO

Sim senhora...

Não sei...

LORENA

LORENA

Sim senhora, o quê? Pode dar sua opinião sem receio.

Diga que estou interessada em ajudá-lo por detrás das bombas: você continua

TERTO

recebendo o mesmo ordenado e, todo mês, eu lhe dou escondido a quantia de que

Eu estou com um bruto problema.

necessitar. Só não admito que permaneça com esta cara de velório. Combinado?

LORENA

TERTO

(Risonha) Também?

DEUS recompense a senhora.

TERTO

LORENA

É, um problemão...

(Apontando para o exterior.) O que é aquilo?

LORENA

TERTO

Mas Terto, você era a pessoa mais feliz de todos nós e agora vem me confessar,

(Debruçando-se na janela.) Aquilo o quê?

sem mais nem menos, que entrou para o clube dos acabrunhados? TERTO Feliz, mesmo, só a senhora, nunca vi ninguém mais satisfeita com a vida; DEUS a conserve sempre como é.

LORENA (Fixando os olhos.) Nada... deve ter sido uma sombra... de avião ou de pássaros voando baixo... (Toca o telefone, ela atende.) TERTO

LORENA

(Saindo para o jardim.) Não demoro.

Qual é o seu problema? Se me contar talvez eu possa auxiliá-lo a resolver. Desde

LORENA

que você, é claro, prepare o canteiro, levantando um caramanchão com violetas, begônias e brincos de princesa.

(Ao telefone.) Alô... Sim... não reconhece a minha voz?... luta, minha irmã, quem esmorece atrai a derrota... e desanimar adianta?... é difícil acreditar... Não estou querendo

TERTO

insinuar que exageras... nem que é ridículo... desculpa... eu sei que nessas horas a gente

É que eu... eu... pedi ao seu marido... um aumento de salário.

não mente, pelo menos sem necessidade... presta atenção, deixa eu falar... homem nenhum é anjo: o meu, quando aparece de asas, fico logo com a orelha em pé... porém ao contrário


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do que se diz, convém desconfiar confiando... nada é mais perigoso do que a precipitação...

PAOLA

tu não és tão entendida em psicologia?... põe em prática os teus conhecimentos... olha,

Ai de mim!

experimenta fazer o seguinte durante um certo tempo: trata o Jefferson como tratas as

LORENA

crianças do Abrigo em que colaboras... eu, se tivesse me formado em uma Universidade,

Tenta. Talvez ele aprove...

principalmente se tivesse curso de Assistente Social como o teu, não deixaria de exercer a

PAOLA

profissão em casa... Claro, todo marido é como velho ou como criança... tens mais sorte: o

Papai é um quadrado, só aprova o que faz crescer seus lucros. Por

falar nisso,

Bertolo vale por um velho... e um velho ranzinza, imagina quando chegar a época do

enquanto ele não atualiza a minha mesada a senhora vai ter que quebrar o galho. Este mês

reumatismo... o quê?... (Gargalhada) Criança se reconquista com carinho, doida, pancada

tenho a necessidade de uma grana extra para pagar a coleção de discos e dar um presente

estraga tudo... e daí?... ouve um instante... o divórcio está na moda, mas já não pensaste no

de aniversário à minha futura sogra. Posso contar com a sua tradicional solidariedade?

que é ser esposa de segunda mão?... por que vocês não vem jogar biriba hoje conosco?...

(Beija-a Intencionalmente.)

vamos esperar... sem falta, hein... não importa, amanhã é sábado... até a noite. (Desliga, vai

LORENA

sentar-se à mesa na varanda, Paola desce e assume lugar ao seu lado.)

É à custa desses beijos insossos que consegues me explorar, interesseira!...

PAOLA

PAOLA

Mãe, estou com medo da prova de hoje.

Mãe, você está um pouco pálida, reparou?

LORENA

JÉSSICA

Devias ter dormido mais cedo.

(Entrando) A coalhada estragou.

JÉSSICA

PAOLA

(Entra, serve Lorena, fita Paola.) Ovos?

Não tem importância. (Serve-se do que há na mesa, Bruno desce a escada, entra

PAOLA

na varanda, senta-se ao lado de Lorena.)

Coalhada . (Jéssica vai buscar.)

LORENA

LORENA

Tudo bem?

És uma boba com esse teu pessimismo. Afirmas que sairás mal em todas as

BRUNO

provas e sempre tiras nove ou dez. PAOLA Uma novidade, mãe.

Comigo sim, com meu fígado é que não. LORENA

Ivens foi promovido, agora será o chefe de todo o

departamento. LORENA O que eu e teu pai gostaríamos de saber é quantos anos ele ainda vai demorar para decidir o casamento.

Também , filhote, duas garrafas de uísques vazias em cima da mesa... (Bruno mira Jéssica, agastado.) JÉSSICA (Escapando para a cozinha.) Eu falei uma... PAOLA

PAOLA

Tu estás bebendo muito, mano, o que se passa contigo? O que há?

Por que vocês dão tanto valor a casamento? Ninguém liga mais a isso não.

BRUNO

LORENA

Simplesmente não há...

(Com jovialidade.) Comunica a teu pai esta ideia a respeito da inutilidade do

LORENA

casamento...

Esta eu não entendi.


583

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PAOLA

domingos é porque precisam mascarar o jogo político que fazem durante o resto da

Nem eu.

semana, a fim de iludir o povo.

BRUNO Por isso é que vocês nunca bebem.

LORENA Meu filho, sou ignorante nessas coisas, porém de coração eu entendo. Creio que

LORENA

ainda estás abalado pela tragédia, e o teu ressentimento, a tua mágoa, te fazem ver tudo

Agora eu compreendi ainda menos.

pelo lado negativo.

PAOLA

BRUNO

E eu idem.

Minha vida intelectual não tem nada a ver com a sentimental.

BRUNO

LORENA

(Gritando) Jéssica, a minha papa!

Conversa fiada... Só espero que, no fundo da alma, não guardes rancor do teu pai.

JÉSSICA

Tudo o que ele fez foi dizer aquilo que pensava; não podia imaginar que uma simples briga

(Alto, fora de cena.) Pensei que não ia acordar cedo, estou fazendo.

em família acabaria incentivando um suicídio. Aquela mulher, Bruno, com todo o seu

BRUNO

charme, sua cultura realmente finíssima, com todo o seu talento de artista, infelizmente não

Preguiçosa.

tinha um pingo de juízo, disseram até para nós que era viciada em drogas.

LORENA

PAOLA

Ela não podia adivinhar que te levantarias hoje às nove horas da madrugada...

Precisas reagir, mano, precisas no mínimo te apaixonar de novo, sair para um

(Sorri)

outro romance em vez de ficar querendo reformar o mundo. BRUNO

BRUNO

Esta noite fiz uma reflexão sobre a minha angústia existencial. Cheguei à

Não foi sem motivo que alguém já classificou a mulher como um animal de

conclusão de que ultimamente venho recorrendo ao álcool porque tenho um complexo de

cabelos longos e inteligência curta... vocês só pensam em termos de afetividade pessoal,

culpa, em virtude de não ter assumido, na prática, uma posição coerente com a minha

egoisticamente, sem visualizar a perspectiva sociológica da existência que tem uma

ideologia.

dimensão universal. Jamais ocorreu a vocês que atualmente, enquanto os casais felizes se

LORENA

deleitam na festa do amor, dentro das quatro paredes do chamado “lar, doce lar”, o mundo

Continuo sem entender patavina.

lá fora apodrece e ninguém faz nada sequer para evitar o mal cheiro? Sabem quantos

PAOLA

milhões de crianças morrem de fome por ano na América Latina e na África, e quantos

Eu já comecei a entender, segue em frente.

bilhões de dólares são investidos em armamentos pelas grandes potências?

BRUNO (Para Lorena.) Estou querendo dizer que, a despeito de você ser contra, vou pedir demissão do jornal. LORENA Acho que te arrependerás. BRUNO Saturei. São uns calhordas, manipulam a gente na razão direta dos interesses escusos que defendem. Se ainda não me tiraram a página sem censura aos

LORENA (Zombeteira para Paola.) Vamos mudar de assunto porque neste terreno o rapaz é uma sumidade. (As duas riem; Bruno esfria quase se deixando contaminar pelo bom humor delas.) BRUNO É por isso que não costumo abrir o diálogo franco com vocês: levam tudo para o deboche. (Entre conformado e irônico.) Quem não possui formação dialética é assim mesmo...


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586

LORENA

na frente de todo mundo, foi mais do que um gesto de falta de educação, foi um ato de

(Para ele, com a mesma inflexão trocista.) Esta indireta atinge apenas a sua irmã,

extrema burrice. Custava cumprimentá-la ou pelo menos ficar calado?

porque eu sou uma pobre analfabeta que somente completou o ginásio, mas para saber pensar direito nunca tive necessidade de formação... formação o quê?... DIETÉTICA?... (Bruno não resiste, acaba rindo.) PAOLA Deixem eu ir me preparar para pegar pela frente a “fera” do Conservatório. (Levanta-se e vai para o andar superior; Bruno afasta-se um pouco, Lorena carinhosamente leva-o para a sala.)

LORENA Neste ponto tens toda razão. Mas por causa de uma simples desfeita ela não necessitava se embriagar e fazer o que fez. Havia outras formas de se vingar; e quem sabe se, com paciência, não terminaria nos conquistando? BRUNO Você está por fora de tudo, mãe, já disse que pode ficar tranqüila. Minha ligação com a Beth não era romântica, conforme imagina; na verdade eu não gostava dela o

LORENA

bastante para me amarrar, se gostasse não daria bola à opinião do velho, sairia de casa e

Filho, precisamos ter uma conversa a dois em segredo, muito sincera.

assumiria concretamente o nosso relacionamento, como amante, desse no que desse.

BRUNO

LORENA

A respeito de quê?

Então por que te transformaste tanto com a sua morte?

LORENA

BRUNO

Do teu comportamento de uns tempos para cá.

Pelas circunstânicas em que morreu. A senhora queria que eu não sentisse nada?

BRUNO

LORENA

Eu não mudei nada. LORENA

Todos nós sentimos, ficamos abalados. Acontece que a tua tristeza está demorando demais a passar...

Não te faças de inocente, meu passarinho travesso.

BRUNO

BRUNO

Aí é que você se engana, passou há uns quinze dias.

Onde quer chegar?

LORENA

LORENA

Como?

Desde que... ela morreu...

BRUNO

BRUNO

Na semana retrasada conheci uma garota linda, mais culta e mais talentosa que a

Mãe, não vamos mais falar sobre isso.

Beth, sem os defeitos dela, inclusive sem vícios. Na primeira oportunidade vou lhe

LORENA

apresentar, agora por favor não comente esta novidade com ninguém.

Tens algum sentimento de culpa martelando a tua consciência?

LORENA

BRUNO

Isso me tranqüiliza um pouco, porém só um pouco.

Não.

BRUNO

LORENA

Por que não totalmente?

Juras?

LORENA

BRUNO

Porque sei que alguma coisa desagradável lateja no teu íntimo.

Pode ficar tranqüila. Eu não era apaixonado pela Beth como vocês julgam, nem

BRUNO

tinha qualquer projeto de viver sempre ao seu lado. A indelicadeza que o pai fez com ela,

Bobagem.


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588

LORENA

BRUNO

Confessa.

Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, a senhora ia me cobrar isso. Depois fica

BRUNO

posando de mãe moderna, liberal.

Realmente ando meio deprimido, mas todos os meus desgostos são de ordem

LORENA

intelectual.

E de fato sou. Desde que completaste vinte e um anos que brigo com o Bertolo

LORENA

defendendo o direito que tens de viveres a tua vida sem a nossa interferência. Não me

Por exemplo...

arrependo disso, nem pretendo te impor nada; somente não consigo compreender a

BRUNO

situação porque a bebida jamais foi o teu fraco, costumavas até criticar os amigos por

É inútil dizer, a senhora nunca entende, mãe. Sou uma pessoa que pensa em nível

jogarem fora nos bares o tempo que poderiam aproveitar lendo. De repente te puseste a

social, não pessoal. As minhas aspirações não são bem domésticas, o que me interessa é o

fazer o mesmo...

bem comum, a sorte da multidão dos pobres e marginalizados. A política deste país, para

BRUNO

mim, é uma tragédia mil vezes maior do que o provável suicídio de uma namorada. Sabe

Não exagere.

qual a última notícia que redigi ontem no jornal? Não foi que o Governo vai combater o

LORENA

desemprego e desenvolver a agricultura, tirando da miséria os trabalhadores urbanos e

(Afetuosa.) Bruno, olha firme nos meus olhos. O que há contigo?

doando terras aos lavradores escravizados: foi que a nossa indústria bélica, além de se

BRUNO

encontrar fabricando tanques e mísseis, começou a produzir uma bomba “constelação” que

Não sei, mãe.

ao explodir lança duzentos e cinquenta e duas granadas capazes de detonar

LORENA

simultaneamente, em um processo de cobertura de área terrivelmente destruidor. E para

Tens que te esforçar para esquecer...

negociar a venda de tal bomba já fechamos um contrato com o Iraque e a Arábia Saudita

BRUNO

no valor de dez milhões de dólares. Quer dizer: a fim de multiplicar os barris de petróleo

Já esqueci, acredite em mim.

que importa o Brasil agora vai ajudar os árabes em guerra a se matarem mais rápida e

LORENA

brutalmente. Estas coisas me deixam psicologicamente destroçado!

Então por que continuas a beber se começaste logo depois que ela morreu ou se

LORENA Mas, meu filho, só por isso?... BRUNO E a senhora ainda acha que é pouco?

matou? BRUNO Honestamente não sei como lhe responder. Sinto vontade de

LORENA

LORENA

Não, apenas acho que, quando a gente fica moralmente desmantelado, deve

Um calafrio.

procurar uma compensação que não seja prejudicial...

BRUNO

BRUNO

Calafrio?

O que está querendo insinuar?

LORENA

LORENA Estou querendo te aconselhar a procura de consolo nos livros, ou nos divertimentos sadios, não no álcool.

beber, e só. Uma

vontade persistente, constante, dominadora. (Lorena sofre um leve tremor.) O que foi?

Sim. (Coloca uma das mãos nas costas.) Parece que me subiu um vento gelado aqui pela espinha e veio bater na nuca.


589

590

BRUNO

BRUNO

(Depois de uma pausa.) Passou?

(Aprestando-se para deixar o recinto.) Isto é o início de uma gripe violenta, se

LORENA

cuide.

Mais ou menos. (Mostrando-lhe os braços.) Vê como estou toda arrepiada.

LORENA

BRUNO

Espera aí, respira fundo.

É.

BRUNO

LORENA

(Após fazê-lo.) Pronto, já respirei.

Engraçado...

LORENA

BRUNO

Não percebeste nada?

O quê?

BRUNO

LORENA

O que haveria de perceber?

Será o Terto queimando alguma planta seca aí fora? Mas não há fumaça?! (Vai

LORENA O ar... está... abafado...

observar na janela.)

BRUNO

BRUNO

(Com uma dose de carinho.) Absolutamente, minha velha, o seu nariz está

Não. E daí? LORENA

entupido. É gripe galopante que se anuncia.

O ar... meio carregado... não estás sentido?

LORENA

BRUNO

(Esfrega o nariz, o rosto.) E o vento frio?

Carregado de quê?

BRUNO

LORENA

Frio na espinha vem de dentro, não de fora.

Não dá para explicar.

LORENA

BRUNO

Tem alguma diferença no ar, tem que ter...

Como assim?

BRUNO

LORENA

Tolice.

Parece que o ar tem... uma espécie de eletricidade...

LORENA

BRUNO

(Respirando com dificuldade.) Tenho certeza de que tem...

Sim, e daí?

BRUNO

LORENA

(Notando que ela não está bem.) Mãe, o que há com você?

Que coisa mais incomodativa! Não estás mesmo sentido?

LORENA (Ofegante) Não sei dizer, o meu nariz não entupiu, o ar é que não quer entrar

BRUNO Sentindo o que, a eletrecidade do ar? Ora, mãe, eu não sou lâmpada.

nele...

LORENA

BRUNO

Interessante...

Que coisa mais absurda!


591

592

LORENA

PAOLA

Ai, meu DEUS, eu não vou agüentar esta sufocação.

Telefona para o pai...

BRUNO

JÉSSICA

Relaxe, respire com força. LORENA

Amoníaco. Cheirar amoníaco é bom, tenho um vidro, vou apanhar. (Sai apressada.)

Não posso.

BRUNO

BRUNO

(Ao telefone, enquanto Paola prossegue abanando e acariciando Lorena.) Alô...

Pode sim.

de onde é?... chame o dono... é urgente, diga que a mulher dele teve um desmaio... um

LORENA

pequeno desmaio, também não vá alarmar... é o filho dele... (Para Paola.) Abriu os olhos?

A minha consciência está apagando...

PAOLA

BRUNO

Não. Estou vexada, será que ela demora a despertar?

(Aflito, vendo o corpo de Lorena balançar.) Reaja, mamãe, desde quando perdeu

BRUNO

sua fibra?

(Ainda ao telefone.) Pai?... a mãe teve um pequeno desmaio, ainda não voltou a

LORENA

si... eu acho que não é nada grave, contudo... faz menos de dois minutos... que médico?...

(Quase desfalecida.) Não posso... não posso...

não precisa se exasperar, poderia ser outro...venha imediatamente que a Paola está quase

BRUNO

entrando em pânico. (Desliga e consulta uma agenda telefônica.)

(Gritando) Paola! Jéssica! Corram depressa aqui!

JÉSSICA

LORENA

(Chegando com o amoníaco que derrama em algodão e leva ao nariz de Lorena.)

Eu... eu... eu... (Desmaia)

É um santo remédio, se ela não acordar já-já só éter ou injeção.

BRUNO

PAOLA

(Acomoda-a no sofá, ausculta-lhe os batimentos cardíacos, examina o seu pulso,

Como aconteceu isso com a mamãe? Não me conformo!

pega uma revista e põe-se a abaná-la; chegam Jéssica e Paola.) JÉSSICA

BRUNO (Disca o telefone.) É do consultório do Dr Begot?... desejo falar com ele, uma

Minha Nossa Senhora da Conceição!

emergência... a que horas chega?... diga que venha aqui no mesmo instante... casa da

PAOLA

família Martinez, ele sabe o endereço... obrigado. (Desliga)

Como isto aconteceu, mano???

PAOLA

BRUNO

(Exultante) Abriu os olhos.

Não deve ser nada grave.

JÉSSICA

PAOLA

Viu? Foi o meu amoníaco.

(Tomando o lugar de Bruno.).Que horrível, temos que fazer alguma coisa, o que

BRUNO (Corre para perto de Lorena.) Está bem?

se faz? BRUNO

PAOLA

Creio que é somente um desmaio, mas vamos tomar as providências.

Responda, mãe, você está bem?


593

594

LORENA

BRUNO

O que houve comigo?

Em assunto de sino quem é especialista é a Jéssica.

PAOLA

LORENA

Salve, mãe, você é formidável.

Sons que espalham no ar uma...

LORENA

PAOLA

Eu dormi? Muito?

Vibração?

BRUNO

LORENA

Apenas por uns cinco minutos esteve fora do ar. LORENA

Isto mesmo! Vibração. Esta é a palavra! Havia como que uma vibração no ar que me atingia... (Levanta-se)

O ar... lembro que o ar não ficou sufocante, eu é que fiquei sufocada...

BRUNO

JÉSSICA

Chamei o pai, ele vem vindo aí a duzentos quilômetros por hora. E deixei recado

Não dá pra entender. PAOLA (Com graciosa ternura.) Eu também não compreendi. Agora, mãe, a senhora está falando tão complicado quanto o Bruno.

para o Dr. Begot lhe fazer uma visita urgente. LORENA (Refazendo-se plenamente ao impacto da informação.) Por que fizeste isso? Que disparate!

LORENA

PAOLA

É que o ar, em redor de mim, ficou assim como se estivesse...

Não podíamos ficar de braços cruzados.

BRUNO

BRUNO

Carregado de eletricidade.

(Para Paola.) Ela pensa que não é de carne e osso, só porque sempre teve uma

LORENA

saúde de ferro; depois o orgulhoso e cabeçudo sou eu. (Para Lorena.) Crie juízo e conte

Sim... aliás, sim e não.

direitinho ao médico essa estória da sufocação vibratória...

BRUNO Você é que disse.

LORENA Eu vou já desmarcar a visita do Dr. Begot, ele é muito útil para o teu pai mas eu

LORENA

dispenso seus préstimos. (Dirige-se ao telefone, antes de ligar vira-se para Paola.) Não

Falei em eletricidade porque não encontrei a palavra correta. O ar tinha aquilo que

tens uma prova agora?

a gente percebe no ambiente quando... soam certas músicas...

PAOLA

PAOLA

Tinha...

Harmonia?

LORENA

LORENA

Tinha não, tens.

Não...

BRUNO

PAOLA

Ela prefere ficar um pouco mais com a senhora, mãe.

Música melodiosa ou música estridente? LORENA Nem uma, nem outra... sons... sons de metal... como se fossem de sino...


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596

LORENA

ROSEMARY

Negativo. Vão cuidar da vida que estou boa, nova em folha. (Com bom humor.)

(Para Bertolo.) Eu estou perseguindo a batida, já avisei, não quero ouvir

Jéssica, depois me empresta este vidro de amoníaco que descobri como acordar quem amanhecer de pileque nesta casa... A luz se apaga. Ao clarear a cena são onze horas da noite do mesmo dia. Lorena

reclamação. BERTOLO É só o que você sabe fazer, mas sempre com uma penca de coringas (Joga uma

e Bertolo jogam baralho animadamente na varanda com Jefferson e Rosemary, um casal

carta que Rosemarry despreza.)

de amigos. Jefferson, que como advogado zela por interesses comerciais de Bertolo, tem o

ROSEMARY

singular aspecto físico de quem mistura pose de galã de cinema com a postura superficialmente compenetrada de juiz em fim de carreira, aureolado de auto-

Vai ter que descontar mais de quinhentos pontos agorinha, duvida? (Não logra bater com carta tirada do baralho, deposita-a na mesa.)

respeitabilidade; de compleição musculosa, veste-se com o apuro da moda. Rosemary, ao

LORENA

contrário, faz o gênero esportivo; de estatura média, é desinibida e simpática.

(É a sua vez de jogar, porém encontra-se inteiramente distraída, com o olhar

ROSEMARY

traduzindo pensamento vago; Jefferson e Rosemary fitam Bertolo, este mira a esposa

(Para Lorena.) Vamos lá, manda uma daquelas.

franzindo a testa entre zangado e interrogativo; os três trocam um silêncio de apreensão

LORENA

diante da fria impassividade de Lorena; conservam-se assim até que ela cai em si.)

(Descartando) Hoje é meu dia de azar.

Hein?... o que é? Já sou eu?...

BERTOLO Pior do que o azar é a falta de atenção. Bolas, se não queres jogar certo diz, que se bota um ponto final na partida.

ROSEMARY É você, querida, desta vez bota uma que preste como aquele valete de copas da primeira rodada.

JEFFERSON

BERTOLO

(Sentencioso, para Bertolo, pegando uma carta do baralho.) Não te aborreças por

Onde estás com a cabeça?

tamanha insignificância, meu caro. Todo aborrecimento oblitera o raciocínio além de afetar

LORENA

o fígado, já prelecionava um eminente tratadista da filosofia do Direito no apogeu da

Desculpem...

Renascença. Como sabes, o raciocínio obliterado não tem grande inconveniente, às vezes

JEFFERSON

até representa um bom negócio, mas o fígado vale a pena economizarmos após os 40 anos.

Talvez convenha fazermos logo o intervalo do lanche.

ROSEMARY

LORENA

(Para Jefferson.) Vamos tu também, vê se joga em vez de ficar fazendo

Já estão com fome?

conferência.

ROSEMARY

JEFFERSON

Não, para você se espertar.

(Desfazendo-se de uma carta, para Bertolo.) Comigo a marcação é cerrada,

BERTOLO

implacável, espartana. BERTOLO (Depois de vacilar apanha a carta, junto com todas as outras que estão na mesa.) Já que ela não pega nada, tenho de encher a mão.

Isso mesmo, é melhor darmos uma parada, para ela descansar; ontem dormiu aos pedaços e hoje de manhã teve um chilique de fraqueza. ROSEMARY Chilique?


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598

LORENA

BERTOLO

Mentira dele.

Não deixa atrasar, ele é um cretino que merece a lição.

BERTOLO

JEFFERSON

É, desmaio. Desmaiou sim. LORENA

Não te preocupes, ontem tive uma conversinha ao pé do ouvido com o escrivão do cartório.

Foi só um passamento-relâmpago, durou menos de dois minutos.

BRUNO

BERTOLO

Olá, pessoal.

Tive que me largar do trabalho para cá.

ROSEMARY

LORENA

Boa noite, Bruno.

Precipitação do Bruno que telefonou avisando sem necessidade.

JEFFERSON

ROSEMARY

Como vai a literatura?

Foi antes ou depois do telefonema?

BRUNO

LORENA

Como tudo neste país: deitada em berço esplêndido...

Momentos depois.

JEFFERSON

ROSEMARY

E a política?

Parecias tão bem disposta.

BRUNO

BERTOLO

Também deitada, não em berço esplêndido: em uma cama de prostituição.

Então interrompemos para comer?

ROSEMARY

JEFFERSON

(Provando o lanche.) Uma delícia, este pudim.

Excelente ideia.

LORENA

LORENA

Obrigada. Por acaso fui eu que fiz.

Bom, se preferem, cumpra-se a vontade de vocês e não a minha. (Abandonam a

JEFFERSON

mesa de jogo e se acomodam na outra, de refeição; Lorena assume a função de servi-los.) BERTOLO Ainda não é meia-noite, podias acordar Jéssica. LORENA O que me custa fazer isso? Deixa a coitada dormir, hoje foi dia de faxina.

(Para Bruno.) Tenho notado a falta dos seus artigos e até de um ou outro poema que às vezes você publicava. BRUNO Resolvi não assinar mais nenhuma matéria no jornal, só edito a página. Para quê? Não se pode dizer a verdade.

ROSEMARY

LORENA

Mas sim, conta como é que se deu o teu desmaio. (Bruno chega da rua, sóbrio,

Comes alguma coisa, filho?

caminha para a varanda.)

BRUNO

LORENA

Aceito. (Senta-se e é servido.) Como a senhora está?

Não foi nada de mais, esqueçam.

LORENA

JEFFERSON

Ótima.

(Para Bertolo.) Segunda-feira faço o protesto daqueles títulos.


599

600

BRUNO

estremecimento corporal; os outros observam, ela disfarça e prossegue jogando, porém de

O ar continua puro, sem corrente vibratória?...

modo maquinal como se estivesse entregue a sucessivas ausências.)

LORENA

BERTOLO

Puríssimo.

É melhor pararmos.

BERTOLO

ROSEMARY

(Para Jeferson.) Gostaria que me conseguisse umas informações sobre o novo

Eu concordo.

contador da firma, ele não me parece flor que se cheire.

JEFFERSON

LORENA

Nada a opor. (Lorena rebenta em convulsiva crise de choro.)

(Para Bruno em voz baixa.) Queres um uisquinho? Só um, no máximo dois, e isto

ROSEMARY

porque estás de cara limpa.

Nossa mãe! O que houve?

BRUNO

BERTOLO

Não, não quero. Sabe que saí da redação com a turma do meu horário, entramos

Ela não está bem, desde esta manhã que não está bem.

no barzinho da esquina para discutir uma atitude velhaca do editor de política

ROSEMARY

internacional, todos beliscaram o corpo e eu fui o único que não tocou em álcool? Aquela

(Afagando Lorena.) O que é isto, minha querida?

vontade compulsiva de beber sumiu como por encanto.

BERTOLO

ROSEMARY

Eu devia ter trazido o médico de qualquer maneira, eu devia. Ela não quis.

(Para Lorena.) Qual é o teu programa amanhã?

JEFFERSON

LORENA

É de se lamentar.

O de costume.

ROSEMARY

ROSEMARY

Quem diria que ainda iríamos ver Lorena em lágrimas.

Então reserva meia hora para mim lá no clube que ainda preciso desabafar, não te

JEFFERSON

disse nem a metade pelo telefone.

Realmente... (Lorena continua em pranto.)

LORENA

ROSEMARY

Estarei a tua disposição.

Lorena, minha querida, ouve, escuta, fala comigo, o que é que você tem?

BERTOLO

BERTOLO

Como é, recomeçamos o jogo?

Acho que vou chamar o Dr. Begot agora mesmo.

ROSEMARY

JEFFERSON

A gente termina a partida outro dia, Lorena deseja repousar.

Não me parece que ele seja o clínico mais indicado para casos dessa natureza.

LORENA

BERTOLO

Quem, eu? Estou inteira, pronta para a luta e podem ir anotando, agora vou

Então quem eu chamo?

ganhar. (Desloca-se até a mesa do jogo, os demais a acompanham exceto Bruno, que dá

JEFFERSON

um “boa noite” formal e ruma para o andar superior; Rosemary toma iniciativa de

Aguardemos um instante para ver de que modo ela se comporta.

preparar o baralho, distribui as cartas, o jogo é reiniciado; todos nele se concentram,

ROSEMARY

expressando-se somente por interjeição nos primeiros minutos; súbito, Lorena tem um

(Para Lorena que apresenta tênue sinal de melhora.) Aliviou um pouquinho?


601

602

JEFFERSON

LORENA

Não te afobes, a pressa é só inimiga da perfeição, é também inimiga do próprio

E eu sei?

apressado.

BERTOLO

ROSEMARY

Como não sabe?

Querida, por favor, me conceda um pouco de atenção: você pode sair desse

LORENA

estado, basta se esforçar. (Lenta e gradativamente Lorena vai se recompondo.)

Não sei não.

BERTOLO

BERTOLO

Felizmente...

Esta é boa!...

JEFFERSON

JEFFERSON

É o que te disse, não devemos agir nunca com açodamento.

Original, não há dúvida.

BERTOLO

ROSEMARY

Mas que trago amanhã cedo um médico a esta casa, trago, ainda que ela não

Lorena, você teve uma violenta crise de choro em nossa frente, qual foi o motivo?

queira.

LORENA JEFFERSON

Nenhum...

Por enquanto, salvo melhor juízo, é suficiente dares um calmante para fazê-la

JEFFERSON

dormir.

Chora-se por algum motivo, é evidente. BERTOLO

LORENA

Ontem ela dormiu pessimamente, levantou no meio da noite com um pesadelo.

Eu sei que chorei sem motivo. A verdade é esta. (Os três se entreolham,

JEFFERSON Depois de um sono profundo, reparador das energias perdidas, acordará fortalecida; amanhã se diverte um pouco conosco no clube e segunda-feira vai ao consultório médico, se voltar a se sentir mal. BERTOLO Talvez tenhas razão. JEFFERSON Seguramente. LORENA (Refeita) Passou. ROSEMARY Passou o quê? Diz para a gente. LORENA O choro, não viste? ROSEMARY Sim, mas o que fez você chorar?

perplexos.)


603

SEGUNDO ATO

604

JÉSSICA Ai, meu Jesus Crucificado, que desdita.

Seis meses depois.

BRUNO

Cena deserta com alguma mudança na arrumação do mobiliário denunciando o

Por que fez isso, mãe?

tempo transcorrido. É madrugada, Lorena desce a escada lentamente em transe sonambúlico, de olhos abertos, vítreos, cabelos em desalinho e face congestionada, seus passos são

PAOLA Fale, mãezinha. BERTOLO

claudicantes, os pés descalços; veste uma camisola branca de seda, dirige-se ao

Responde. Não está em ti? (Lorena retoma o esforço para se libertar.)

escritório, abre todas as gavetas da escrivaninha de Bertolo, rasga os papéis nelas

BRUNO

existentes e atira os pedaços ao chão, fazendo o mesmo com o conteúdo das pastas da

Perdoe, não vamos largar de jeito nenhum.

estante; concluída esta tarefa brilha em seu rosto um sorriso faiscante de ódio saciado;

BERTOLO

desloca-se para a sala, coloca um disco na eletrola, música de jazz, som baixo; dança, a

(Sacudindo-a) Para com esta loucura!

princípio contraída, a seguir com crescente desenvoltura; troca o disco por outro de

PAOLA

música erudita, ainda em tom baixo, ensaia um bailado e à medida em que vai soltando os

(Repreensiva) Pai!...

movimentos também os interrompe para aumentar cada vez mais o volume do som, até

BRUNO

uma altura suficiente para acordar os familiares e Jéssica que, em roupa de dormir,

(Idem) Veja como fala...

acorrem à sala, estupefatos.

BERTOLO

BERTOLO

Desculpem, é que agora parece que ela ficou de vez transtornada.

Não é possível!!!

JÉSSICA

PAOLA

Temos todos que fazer promessa, só um milagre...

Mãezinha da minha alma, o que é isto???

BERTOLO

JÉSSICA

(Para Jéssica.) Cala esta boca estúpida. (Obrigam Lorena a sentar-se em uma

Valha-me Maria Santíssima!!! BRUNO Não posso crer no que estou vendo!!! BERTOLO É o cúmulo. (Segura Lorena que tenta vigorosamente se desvencilhar enquanto Paola desliga a eletrola.)

poltrona.) PAOLA Olhem, reparem o rosto dela. (A face de Lorena permanece congestionada e os seus olhos, depois de focalizarem Bertolo com desprezo, fixam-se em Bruno.) BRUNO Este olhar me recorda não sei o que...

BRUNO

BERTOLO

(Auxiliando o pai.) Agarre assim.

Temos que falar outra vez com o médico agora mesmo.

PAOLA

BRUNO

Cuidado para não machucar. (Finalmente Lorena é imobilizada>)

Não há outra alternativa. PAOLA Ele não vai gostar de ser acordado a esta hora.


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BRUNO

PAOLA

Se não gostar a gente manda ele às favas. Afinal de contas, esse cara vem tratando

(Ao telefone.) Ninguém atende.

da mamãe há um mês e não vimos qualquer melhora.

BRUNO

PAOLA

Insiste (Paola liga novamente.)

Não sei se devemos continuar trocando de médico com tanta facilidade; este é o

BERTOLO

quinto que chamamos em seis meses.

Quer que eu fale?

BRUNO

BRUNO

É um incompetente.

Deixe comigo.

BERTOLO

PAOLA

E os outros mostraram mais competência?

Alô... de onde é?...

BRUNO

BRUNO

Seria uma atitude sensata de nossa parte experimentar o tal médico que o Dr.

Ora viva, vejamos no que dá.

Jefferson nos recomendou. Ele é famoso, fez vários cursos de especialização em Psiquiatria nos Estados Unidos. PAOLA Eu anotei o endereço dele, inclusive o telefone da residência. Está na agenda. BRUNO

JÉSSICA (Fazendo figa com os dedos.) É torcer para esse médico não ser mal educado como o outro. BRUNO (Substituindo Paola ao telefone.) Alô... quem fala?... doutor, tenha a bondade de

Podíamos então ligar agora.

relevar esta ligação tão imprópria, é que estamos em apuros... Bruno, Bruno Martinez, o

PAOLA

senhor não me conhece... um amigo, Dr. Jefferson, advogado... pois é, ele sugeriu que o

Mas nem conhecemos o homem e vamos logo atacando de madrugada? Não é

procurássemos para dar assistência à minha mãe... o caso dela é difícil, de inícios supomos

distinto...

que fosse apenas esgotamento nervoso, mas já admitimos que o problema em parte é

BRUNO

mental... ela acaba de nos acordar fazendo uma extravagância inconcebível... estamos

Não é distinto uma droga. Quando chegam as necessidades os costumes

arrasados... sim, para ser sincero lhe informo que já recorremos a cinco médicos, apesar de

desaparecem, já dizia Sófocles há mais de dois mil anos. Liga para esse sujeito.

tudo ter começado há seis meses atrás... nenhum resultado positivo, somente piora... tem

PAOLA

cinquenta anos... neste instante deparamos com ela dançando sozinha, foi um sacrifício

Você fala?

para contê-la... está sentada, semelhante a uma estátua de pedra sem pronunciar uma

BRUNO

palavra... queremos que o senhor venha vê-la o mais depressa, se possível agora, e assuma

Falo. (Paola vai ao telefone e disca, após consultar a agenda.)

todo o tratamento... o primeiro foi um clínico, os três seguintes neurologistas e o último

JÉSSICA

psiquiatra... um momento...(pega caneta e papel.) pode dizer... (Escreve) Nós moramos na

Por que será que ela não diz uma única palavra?

avenida General Gonzalez número doze... um “bungalow” perto da praça... ficamos

BERTOLO

bastante agradecidos.. até logo mais.

(Para ela.) Já disse para calar a boca!

BERTOLO

BRUNO

Ele vem?

Este olhar da mãe me corta como se fosse uma lâmina afiada.


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608

BRUNO

BRUNO

Depois do café estará aqui.

Não é para menos. E pensar que a mãe sempre teve tanta saúde, tanto bom senso e

PAOLA

tanta alegria de vover!...(Lorena repõe o olhar fuzilante em Bruno.)

Parabéns.

PAOLA

JÉSSICA

Quem diria!...

Não demora a amanhecer.

BERTOLO

PAOLA

(Para Bruno.) Pelo que se nota a discórdia é comigo e contigo.

E o que fazemos enquanto ele não chega?

PAOLA

BRUNO

E eu, Bruno, que às vezes tinha ciúme porque achava que ela amava mais a ti do

É ára damos a ela um comprimido desse remédio. (Mostra a anotação a Bertolo.)

que a mim...

BERTOLO

BRUNO

Precisamos comprar, não temos aqui.

Bobagem tua.

JÉSSICA

PAOLA Mas ainda te adora e te admira como a nenhuma outra pessoa, disso tenho toda

Vou acordar o Terto. (Retira-se) BRUNO

convicção. JÉSSICA

O que mais me confunde é essa mudez da mãe: por que será que ela não fala? Observem como parece que raciocina, como parece que conserva a sua lucidez embora

(Chega com Terto.) Cadê o papel com o nome do remédio? (Bruno entrega-o.)

esteja com a consciência alterada. (Lorena não tira os olhos dele.) Este olhar me fere como

BERTOLO (Dando dinheiro a Terto.) Vê se não vai como uma palerma, quero isto em dez

um punhal de acusação, esbraseado em cólera. PAOLA (Para Bruno.) Ela só olha assim para ti... (Demonstrando ter registrado o que

minutos. TERTO

Paola disse, Lorena desvia o olhar de Bruno e o centraliza em Bertolo com o mesmo

Sim senhor. O que deu nela?

acento de agressividade.)

BERTOLO

BRUNO

Não é da tua conta.

(Para Paola.) Viu?

JÉSSICA

PAOLA

(Para Terto.) Ponha-se no seu lugar, intrometido.

É inacreditável.

TERTO

BERTOLO (Para Lorena.) Está com raiva de mim?

“Seu” Bertolo, me dê permissão para um conselho de velho, nessa atribulação de dona Lorena. Tenho pena dela e não posso mais ficar de boca pregada.

PAOLA

BERTOLO

(Para Bruno.) Quando ela sair do fundo desse poço eu é que tenho de procurar um

Sai logo.

médico; sinto-me emocionalmente arrebentada.

PAOLA Deixe ele falar, pai, não custa ouvir.


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TERTO

E ainda podem escrever o seguinte: aquele que comentar na vizinhança o que aconteceu

(Apontando Jéssica.) Já cansei de suplicar a ela para dizer ao senhor e aos

esta noite eu boto no olho da rua; com menos de um ano ou com mais de trinta anos de

meninos que dona Lorena carece...(Faz uma pausa cautelosa.)

serviço, mando pro inferno.

PAOLA

BRUNO

O que? Diga, não tenha medo.

Calma, pai, calma.

TERTO

PAOLA

Tomar uns passes.

(Para Bertolo.) Não esqueça da pressão alta, basta um enfermo.

JÉSSICA

BERTOLO

Era só o que faltava!

Quem pode se controlar com tanta azucrinação? Eu não sei mais o que fazer para

TERTO

livrar a mãe de vocês desse sofrimento.

(Para ela.) Você desfeiteia porque é carola de igreja.

PAOLA

JÉSSICA

Nem eu.

(Exaltada) Velho macumbeiro, me respeita.

BERTOLO

BERTOLO

O que vamos fazer se esse novo médico não resolver nada?

Que atrevimento é este? Vocês têm a petulância de brigar na minha frente?!

PAOLA

JÉSSICA

É... o que faremos?

Ele se encostou aqui há menos de um ano e já tem o desplante de meter o bedelho

BRUNO

na vida da família.

Dolorosa interrogação.

BERTOLO

BERTOLO

(Para Bruno e Paola.) É no que dá a mania que a mãe de vocês tem de permitir

Já não tenho paz de espírito para trabalhar. Esta noite fiquei um tempão

intimidades com empregados. PAOLA

organizando a papelada aí no escritório porque estava atrasada desde o mês passado. (Lorena olha para Bertolo e deixa escapar uma gargalhada sarcástica.)

Obrigada, Terto, mas outros já nos ofereceram o seu conselho e não aceitamos.

PAOLA

BERTOLO

Ela riu!

(Para ele.) Vai logo comprar o remédio.

BRUNO

JÉSSICA

Riu...

(Idem) Vai logo, presunçoso. (Terto sai para a rua.)

BERTOLO

BERTOLO

Pelo menos isso. (Lorena volta-se para Bruno.)

Essa gentinha ignorante é pretensiosa.

BRUNO

JÉSSICA

Riu não é bem o termo...

E herege.

PAOLA

BERTOLO

Como não?

Também não estou interessado na tua opinião. E tem mais: de hoje em diante

BRUNO

todos os dois ficam proibidos de dar palpites sobre o que devemos ou não devemos fazer.

O olhar dela tem algo de... sarcasmo.


611

612

BERTOLO

BERTOLO

Do que teria rido?

E ele não chega, só demitindo esse idiota. (Depois de uma pausa Lorena renova

PAOLA Ela riu quando você, pai, disse que consumiu um tempão para por em ordem os

as gargalhadas com tal intensidade que desmaia.) JÉSSICA

seus documentos. (Lorena olha outra vez para Bertolo e desata uma gargalhada mais

Tenham paciência, mas vou trazer o amoníaco. (Sai)

longa do mesmo teor.)

BRUNO

BERTOLO

Jéssica só quer ajudar.

O que significa isso?

BERTOLO

BRUNO

Uma grande imbecil, é o que ela sempre foi. E esse velho aleijado não aparece

Se pudéssemos adivinhar as ideias e os sentimentos que povoam o seu íntimo...

com o remédio...

(Lorena emenda as gargalhadas com características crescentes de escárnio, fitando ora

PAOLA

Bertolo, ora Bruno.)

Talvez tenha encontrado fechada a farmácia de plantão mais perto. (Lorena

PAOLA

desperta abruptamente, os três ficam atônitos pela forma como ela retorna à

A encrenca é mesmo com vocês, pra mim ela não dá a menor atenção.

normalidade.)

BRUNO

BRUNO

Se houvesse um meio de fazê-la falar...

Mãe, o que houve?

BERTOLO

PAOLA

Não é isso que chamam de histeria?

Mãezinha, acordou?

BRUNO

BERTOLO

Parece.

Lorena, estás bem?

BERTOLO

LORENA

Ouvi dizer que uma bofetada... liquida a fatura.

O que aconteceu?

BRUNO

BERTOLO

Quem tem coragem de aplicar?

Nada... quer dizer...

BERTOLO

LORENA

Eu, se não existir outro recurso.

(Perpassa o olhar pelo recinto.) Estamos na sala...

PAOLA

BRUNO

Ninguém vai bater na mãe!

Sim...

JÉSSICA

PAOLA

Amoníaco não adianta quando ela piora...

É a sala...

BERTOLO

BERTOLO

(Para ela.) Continua calada ou some daqui. (Jéssica encolhe-se.)

Claro que é a sala...

BRUNO

LORENA

O medicamento que Terto foi comprar provavelmente vai arrancá-la desse delírio.

Eu dormi na sala?


613

614

BERTOLO

LORENA

Isso mesmo...

Bem, apenas um pouco zonza.

PAOLA

BERTOLO

Dormiu...

Lembra de alguma coisa?

LORENA

LORENA

Que horas são?

De quê?

BERTOLO

BERTOLO

Umas cinco horas da madrugada.

Qualquer coisa?

LORENA

LORENA

Como dormi aqui? Eu não estava deitada no quarto?

Não, não lembro.

BERTOLO

BRUNO

É, estava... (Lança a vista para Bruno e Paola.)

É melhor subirmos para ela repousar.

BRUNO

PAOLA

Lógico que estava.

É melhor, sim.

LORENA

LORENA

E por que me trouxeram para cá?

Vocês não responderam a minha pergunta.

BERTOLO

BRUNO

Nós não trouxemos.

Qual pergunta?

PAOLA

LORENA

Pai...

Se eu me deitei lá em cima, como vim parar aqui?

JÉSSICA

BERTOLO

(Surge com o vidro de amoníaco e algodão.) Pronto...

Bom... é que...

BERTOLO

BRUNO

Pode jogar fora esta porcaria.

Simples... muito simples... você veio abrir a porta para mim...

JÉSSICA

LORENA

(Encabulada, embora satisfeita com o estado de Lorena.) Nosso senhor seja

Tens a chave.

louvado.

BRUNO BERTOLO E pode também ir dormir que a nossa conversa agora é particular.

Perdi.. toquei a campainha várias vezes... você se levantou e desceu com tanto sono que... depois da minha entrada, caiu dormindo na poltrona...

JÉSSICA

LORENA

Boa noite. (Sai contrafeita.)

Esta estória está me soando falsa.

PAOLA

BRUNO

Como você se sente, mãe?

Foi precisamente o que ocorreu.


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616

BERTOLO

BERTOLO

Nem mais nem menos.

Não estamos não.

PAOLA

BRUNO

Exato. (Toca a campainha, Bruno abre a porta.) TERTO

Por que haveríamos de esconder? A senhora sempre foi mais amadurecida do que todos nós juntos.

Demorei?

BERTOLO

BERTOLO

O teu mal é ser desconfiada.

Ainda pergunta, seu irresponsável!

LORENA

TERTO

O que me aconteceu durante a crise?

Com esta perna só posso andar me arrastando, porém lhe afianço que corri como

BERTOLO

um condenado. (Entrega a Bertolo o embrulho de remédio e o troco.)

Já dissemos tudo sem tirar nem por.

LORENA

LORENA

O que é isto?

Pois sim!...

TERTO

BRUNO

Seu remédio.

Vamos subir? Eu estou com sono.

LORENA

PAOLA

Mas os vidros do meu remédio não estão nem pela metade.

Eu também.

BERTOLO

BERTOLO

(Embaraçado) De fato... é que nós escolhemos um outro remédio... mais

Ainda pegamos um bom descanso até o novo médico chegar.

poderoso, como se diz...

LORENA

BRUNO

Não sei se vou querer trocar de médico outra vez.

Mais eficiente, mãe. Você teve uma pequena crise daquelas, telefonamos para o

BERTOLO

médico recomendado pelo Dr. Jefferson e ele receitou, prometendo que ainda hoje de manhã vem visitá-la.

Depois se discute isso. (Deixam a sala, Lorena na frente amparada por Paola, Bruno em seguida, Bertolo por último; quando os três primeiros começam a subir os

LORENA

degraus da escada, Bertolo, da ante-sala, divisa papéis no chão do seu escritório, corre

E precisava tirar da cama o pobre do Terto a esta hora?

para lá, toma ciência instantaneamente do estrago que Lorena em transe fez com seus

TERTO

preciosos documentos, espreme a cabeça com as mãos, desesperado.)

Eu acordei com prazer, dona Lorena, a senhora merece.

A luz se apaga.

BERTOLO

Ao clarear cena são sete horas da noite, um mês depois.

(Para ele.) Chega de conversa fiada, pode ir embora.

Jéssica, de avental na varanda, prepara a mesa para o jantar. Toca a campainha,

TERTO

ela vai à sala, abre a porta e faz entrar o Dr. Alcolombre, um médico vestido a rigor, com

Com licença. (Retira-se.)

jaleco, calça e sapatos brancos, que fala manobrando uma entonação de voz professoral e

LORENA

gesticula com finura calculada.

Vocês estão me escondendo alguma novidade muito ruim.


617

618

Dr. ALCOLOMBRE

JÉSSICA

É a residência da família Martinez?

O último era bonzinho, sabe? Colega de infância do Dr. Jefferson, muito escolado,

JÉSSICA

fez curso na América do Norte, não se aborreceu quando foi acordado cinco horas da

Justamente.

madrugada na primeira vez que chamamos e até receitou pelo telefone; tivemos que

Dr. ALCOLOMBRE

mandar comprar o remédio em farmácia de plantão...

Sou o médico com quem a filha da senhora Lorena esteve ontem no consultório, vim visitá-la.

Dr. ALCOLOMBRE Você é parenta da paciente?

JÉSSICA

JÉSSICA

Estão todos lá em cima, sente que vou avisar.

(Ajustando o avental.) Sou empregada, mas é como se pertencesse à família,

Dr. ALCOLOMBRE

ajudei a criar os meninos, todos me estimam, a não ser o “seu” Bertolo que não estima

Chame apenas o esposo, por obséquio.

ninguém. Vou avisar a ele que o senhor chegou.

JÉSSICA

Dr. ALCOLOMBRE

Não quer o resto?

Espere um momento, o que afirmou a respeito do Sr. Bertolo?

Dr. ALCOLOMBRE

JÉSSICA

Primeiro desejo ter uma entrevista só com o doutor Bertolo; este é seu nome,

Nada não... Dr. ALCOLOMBRE

não? JÉSSICA

Não se constranja, tudo o que me informar será útil para o diagnóstico.

O nome é, mas ele nunca foi doutor, é comerciante.

JÉSSICA

Dr. ALCOLOMBRE

Não é que eu tenha intenção de tesourar o patrão, Nosso Senhor castiga quem fala

Grato pela retificação.

mal dos seus semelhantes, mas a verdade não posso negar: ele é um homem bruto demais,

JÉSSICA

vive xingando todo mundo.

Chamo já o patrão. O senhor, para médico, ainda é bastante moço.

Dr. ALCOLOMBRE

Dr. ALCOLOMBRE

Inclusive a esposa?

Tenho quase quinze anos de formado.

JÉSSICA

JÉSSICA

Ela não.

Mas em comparação com os outros é jovem.

Dr. ALCOLOMBRE

Dr. ALCOLOMBRE

A senhora é alguém altamente importante para me prestar um depoimento

Outros? Quantos?

meticuloso sobre os antecedentes do caso.

JÉSSICA

JÉSSICA

O senhor é o sétimo. Coitada... seis médicos para nada.

Não seria capaz de pensar... eu sou mesmo importante?

Dr. ALCOLOMBRE

Dr. ALCOLOMBRE

Eu lamento.

É. Preciso palestrar demoradamente com uma por uma das pessoas que cercam a senhora Lorena, a fim de coletar dados com os quais identificarei a causa da sua


619

620

enfermidade. A não ser assim qualquer tratamento produzirá resultados meramente

BERTOLO

paliativos.

Vamos sentar.

JÉSSICA Já estou fazendo fé no senhor. Dr. ALCOLOMBRE Sou um médico diferente dos tradicionais, o meu método é psicanalítico. Dá para a senhora compreender?

Dr. ALCOLOMBRE Não pude vir mais cedo, ia saindo do consultório quando surgiu uma cliente em situação de desespero. BRUNO Isso é comum, a gente entende.

JÉSSICA

Dr. ALCOLOMBRE

Não senhor.

Se vão jantar eu...

Dr. ALCOLOMBRE

BERTOLO

É evidente.

Não se preocupe com a nossa refeição; chegou na hora certa.

JÉSSICA

PAOLA

Nesta casa quem compreende tudo é o filho dela; posso chamá-lo também?

Foi realmente providencial a sua chegada, há poucos minutos ela teve uma crise

Dr. ALCOLOMBRE

como aquela que lhe relatei. Não rasgou os documentos do pai mas espatifou um quadro

Minha opção é conversar apenas com um de cada vez. Inicialmente com o Sr.

com o Retrato de Bruno.

Bertolo. (Paola, Bruno e Bertolo descem a escada.)

BRUNO

BRUNO

Agora está dormindo.

(Gritando) Jéssica, o jantar está na mesa?

BERTOLO

PAOLA

Pode ir vê-la, isso não é problema.

Vamos aproveitar enquanto ela cochila.

Dr. ALCOLOMBRE

BERTOLO

Não, não, antes de qualquer contato com ela eu prefiro me inteirar das

Não tenho fome.

circunstâncias em que a perturbação começou e de uma série de elementos relacionados

JÉSSICA

com a sua vida desde a pré-adolescência.

(Desloca-se para a ante-sala.) Tem um médico ai.

BRUNO

PAOLA

Este cuidado é muito inteligente.

O Dr. Alcolombre?

Dr. ALCOLOMBRE

JÉSSICA

(Contente com a observação de Bruno,) Não adoto o modelo terapêutico

Nem tive tempo de perguntar o nome dele...(Dirigem-se os três para a sala, Jéssica para a varanda.)

convencional. BRUNO

PAOLA

Temos conhecimento desse detalhe, aliás, por isso é que Paola foi procurá-lo.

Olá, doutor.

Dr. ALCOLOMBRE

Dr. ALCOLOMBRE Boa noite. (Cumprimentam-se com apresentação.)

(Mais entusiasmado.) Utilizo um receituário parcimonioso, minha abordagem da patologia psíquica é preponderantemente freudiana, embora empregue às vezes os maravilhosos recursos da Parapsicologia.


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BRUNO

Dr. ALCOLOMBRE

Isso também é inteligente. Eu suspeito que as últimas pioras dela resultaram de

A confusão que o senhor cita são os desdobramentos de personalidade?

intoxicação medicamentosa.

BRUNO

Dr. ALCOLOMBRE

(Interferindo ponderadamente.) Deixe eu explicar, pai. Até esta data, ela só teve,

Você estudou psicologia?

na verdade, dois ataques nos quais expressou dupla personalidade, um há cinco semanas

BRUNO

atrás quando rasgou documentos, outro hoje. No entanto, por mais de seis meses vem

Não, sou jornalista, leio sobre tudo.

sendo acometida de toda sorte de perturbações emocionais, e mentais mesmo, menos

Dr. ALCOLOMBRE

graves.

Seu preparo cultural funcionará como suporte de apoio para a minha atuação.

Dr. ALCOLOMBRE

BRUNO

Pode enumerá-las pela ordem em que surgiram?

Folgo em saber.

BRUNO

Dr. ALCOLOMBRE Necessitarei da credibilidade e da colaboração total dos membros da família.

Sono bruscamente interrompido por uma voz gritando seu nome. Tudo teve início com esse episódio.

BERTOLO

BERTOLO

Terá.

Choro sem motivo.

PAOLA

PAOLA

O senhor representa praticamente a nossa derradeira esperança para evitar o

Sufocamentos, palpitações.

internamento.

BRUNO

Dr. ALCOLOMBRE

Fobias, ausências.

É bom que pensem assim, a tendência de paciente internado é converter neurose

PAOLA

dissociativa em psicose irremissível.

Impressão de ver uma sombra por perto.

BERTOLO

BERTOLO

É...(Olha para Bruno e Paola sentindo todo o peso de sua ignorância.)

E vontade de beber que ela resiste porque sempre detestou álcool...

Dr. ALCOLOMBRE

Dr. ALCOLOMBRE

Antes de me comprometer com o caso preciso de uns esclarecimentos genéricos. Ela fez tomografia cerebral computadorizada?

No momento tenho especial interesse pelo seu procedimento durante as duas crises de agressividade. Posteriormente, deverei efetuar um levantamento dos fatores

BRUNO

traumáticos através de entrevistas isoladas com ela e com cada membro da família. Para

Todos os exames radiológicos, e os outros de praxe, foram criteriosamente

não perderem o apetite do jantar, e como ainda quero vê-la, digam-me apenas uma coisa

realizados. Podemos lhe garantir que ela não possui nenhuma lesão no cérebro e nenhuma

sumamente relevante: o que ela falou no instante em que destruiu os objetos. (Os três se

disfunção orgânica.

olham, frustrados.)

BERTOLO

BRUNO

O que nos deixa desnorteados, doutor, é que além dela não ter nada no organismo

Aí é que está o “xis” da questão, ela não falou nada.

a crise aparece quando menos se espera. Às vezes passa oito, dez dias lépida e faceira, de

BERTOLO

repente a confusão estoura.

Não disse uma única palavra.


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PAOLA

LORENA

Somente fitava com rancor o pai e o Bruno.

(Transfigurada, em tom imperativo.) Não é necessário o doutorzinho pedante

Dr. ALCOLOMBRE

subir para me ver, eu desço por conta própria. Guerra é guerra! (Todos ficam pasmos de

Foi? (Jefferson desce a escada.)

surpresa.)

PAOLA

BRUNO

Parecia que desejava devorar os dois.

Ela falou!!!

Dr. ALCOLOMBRE Este pormenor é digno de acurada consideração. JEFFERSON (Que ia para a varanda mas percebeu a conversação na sala e para lá se dirigiu.) Já jantaram? BERTOLO Não, desculpa o atraso. (Apresenta-o ao Dr. Alcolombre.) Um amigo nosso,

LORENA (Para ele.) Falei, canalha, porém “não acende o facho da tua glória porque ele se apagará na fumaça do arrependimento tardio”. BRUNO É fantástico! O fim da frase é de um poema que escrevi e nunca foi lido por ninguém. Escrevi e rasguei cinco minutos depois. Dr.ALCOLOMBRE

advogado da minha firma, veio nos visitar com a esposa e ficaram lá em cima vigiando a

Vamos ouvi-la com atenção.

Lorena a fim de descermos para comer.

PAOLA

JEFFERSON

Que coisa espetacular. (Jéssica vem da varanda.)

Ela despertou e não está nada bem.

LORENA

BERTOLO

(Mais contundente.) Quietos, raça de víboras! (Jéssica se benze.)

A crise de novo?

JÉSSICA

JEFFERSON

Até que enfim ela falou...

Não sei, os olhos dela parecem despejar fogo.

LORENA

PAOLA

Quietos!!!

Não me diga!

Dr. ALCOLOMBRE

BERTOLO

Obedeçam. Só façam o que eu mandar.

Barbaridade!...

LORENA

Dr. ALCOLOMBRE Eu posso vê-la agora?

(Para Rosemary, com rispidez.) Larga e desce! (Ela solta Lorena e desce a escada apavorada.)

BRUNO

ROSEMARY

Por que não?

Jefferson, me acode.

BERTOLO

Dr. ALCOLOMBRE

Vamos. (Ao penetrarem na ante-sala, Lorena desponta no topo da escada,

Conservem-se calados, não estraguem esta rara oportunidade de sondarmos os

trazendo de roldão Rosemary, que busca detê-la.)

depósitos inconscientes dela.


625

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LORENA

LORENA

(Ainda do alto da escada, cruel, majestosa.) Aqui estou para vingança neste corpo

Hipócrita. A única coisa que respeitas é o preço elevado que cobras pelas

que não me pertence, como fera sedenta de sangue! Quem se habilita a me enfrentar? BERTOLO

consultas. Quantas vezes planejas voltar aqui por semana para engordar a tua conta bancária, com a promessa de me afastar deste corpo? Estás muito enganado.

Lorena...

JÉSSICA

LORENA

(Chega trazendo uma bandeja, a garrafa de uísque e o copo.) A bebida...

Eu não sou Lorena Martinez!!! E não me dirige a tua palavra de negociante

LORENA

safado, inescrupuloso. Sobre ti, miserável, ainda derramarei toneladas de chumbo fervente

(Enche o copo e de um trago bebe a metade.) Quero fumar.

em minha ira sagrada.

BRUNO

BRUNO (Murmurando) Não é possível, a mãe jamais falaria deste modo...

(Adianta-se na oferta do cigarro; ela crava-lhe um olhar feroz e se aproxima de Jeferson.) Tudo bem...

LORENA

JEFFERSON

Cala-te também, covarde! Não baba as tuas ideias nojentas que para mim destilam

O meu não tem filtro. (Entrega um cigarro a Lorena, acende-o.)

o veneno da traição! (Desce a escada.) Todos na sala, sentados e inertes. Dr. ALCOLOMBRE (Diligenciando para que a determinação seja cumprida.) Vamos, não percam a calma, saberei conduzir tecnicamente a situação, sou também parapsicólogo.

LORENA Bebe a outra metade de uísque do copo, enche-o novamente: põe-se a circular pela sala fumando e bebendo sem proferir qualquer palavra, e assim consome quase todo o uísque da garrafa, apresentando progressivamente sinais de embriaguez diante do grupo

PAOLA

que, a princípio atônito e depois curioso, por fim impacienta-se; quando ela percebe, já

É assombroso...

cambaleante pela ação do álcool, que alguns se inclinam para uma reação enégica, então

LORENA

fala. A festa acabou, vou deixá-los em paz. Porém apenas por uns dias.

(Para Jéssica.) Exceto tu, aranha fanática de confessionário paroquial. Vai me

Dr. ALCOLOMBRE

buscar um copo e uma garrafa de uísque. (Jéssica mira Bertolo, que fita o Dr. Alcolombre;

Não faça isso, eu esperei tanto para lhe fazer umas perguntas

este faz um aceno afirmativo, ela desloca-se para a varanda, apalermada; os outros se

LORENA

acomodam nos acentos da sala.)

Consintam que eu dê um adeus ao meu modo. (Cruza a sala, para em frente de

JEFFERSON

Bruno e, imponente, cospe-lhe no rosto; logo a seguir tomba desfalecida.)

(Baixinho para Rosemary.) Que coisa espantosa!

PAOLA

LORENA

Mãezinha! (Todos se acercam no afã de ampará-la.)

Não sei se vale a pena dizer o que vocês merecem ouvir...(Passeia na sala de um

LORENA

lado a outro, sem nada falar, aumentando propositadamente a expectativa.) Dr. ALCOLOMBRE (Para ela.) Estamos dispostos a ouvi-la respeitosamente.

(Despertando) O que foi?... Onde estou?... Por que isso?... Que cheiro de bebida é esse?... (Para Bertolo, constatando a presença do Dr. Alcolombre.) Quem é ele?... BERTOLO Um médico. BRUNO Está bem, mãe?


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LORENA

TERTO

Sim...

Sim, não deviam.

PAOLA

JÉSSICA

Não minta. Está bem mesmo?

E deviam o quê?

JEFFERSON

TERTO

Com certeza?

Seguir meu conselho.

LORENA

JÉSSICA

(Inteiramente reanimada.) Que horas são? Vocês já jantaram! A crise veio de novo, não foi? ROSEMARY

Deixe de ser burro. Se o padre, que é representante de Nosso Senhor Jesus-Cristo, benzeu toda a casa, fez exorcismo nela, e não adiantou nada, como é que o Espiritismo desse tal de Allan Kardec pode resolver o problema sendo obra do demônio?!

É... não está meio embriagada?

TERTO

LORENA

Já despediram o médico?

Eu embriagada? Vocês ficaram malucos!...

JÉSSICA

A luz se apaga. Quando a cena clareia são dez horas da manhã, dois meses

Vão despedir daqui a pouco quando ele chegar.

depois. Jéssica e Terto encontram-se na varanda; estão tensos; a seguir todos os diálogos

TERTO

se desdobram em uma atmosfera saturada de emoção.

Eu me agonio em ver dona Lorena internada. Um desastre, se ela for embora...

TERTO

JÉSSICA

Vão internar a dona Lorena?

Quem falou que ela irá embora? É só por umas semanas; faz o tratamento, fica

JÉSSICA

curada e volta.

O que há de se fazer?

TERTO

TERTO

Acredita mesmo que se ela for, volta curada?...

Quando?

JÉSSICA

JÉSSICA

Não seja agourento! Depois, quando eu espinafro, você se queixa de ser

Parece que é hoje...

humilhado. Anteontem, para comungar eu prometi ao confessor que não brigaria mais com

TERTO

você; porém se não põe fim nas suas asneiras, como posso cumprir o mandamento do

Onde?

catecismo cristão?

JÉSSICA

TERTO

Isso eu ignoro. Sei que ela não vai para hospital de doido não, a Paola me disse

Não se preocupe que não demoro muito a mudar de emprego.

que é um lugar de descanso, com todo luxo e conforto, até bosque e piscina tem. TERTO

JÉSSICA Se quiser ir cantar em outra freguesia não faz a menor falta. Pensa que faz? Se

Não deviam internar dona Lorena.

enxergue, velho imprestável... (Toca a campainha, Terto movimenta-se para abrir a porta

JÉSSICA

da casa, Jéssica antecipa-se a ele; entram Jefferson e Rosemary.)

Na situação em que ela se acha?

ROSEMARY (Denotando profundo pesar.) Nenhuma melhora de Lorena, não é?


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JÉSSICA

ROSEMARY

Nenhuma.

Bruno, você já ouviu falar em parapsicologia?

JEFFERSON

BRUNO

Estão no quarto?

Já. E peguei o Dr. Alcolombre um dia, depois daquele ataque de dupla

JÉSSICA

personalidade da mãe que vocês viram, e que nos custou, no mínimo, uma garrafa de

Ainda não desceram, tive de levar o café lá em cima.

uísque, para discutir o assunto. Ele por acaso é entendido na matéria, justiça se faça, me

BRUNO

deu uma aula de parapsicologia. Provou por “A” mais “B” que, assim como há um

(Em voz alta, descendo a escada.) Quem chegou, o Dr. Alcolombre? (Dirige-se

inconsciente individual, onde se agasalham os nossos impulsos instintivos, traumas e

para a sala.) Olá.

complexos, existe um inconsciente coletivo que guarda toda a memória da Humanidade.

JEFFERSON

Quando mergulha em uma desagregação mental aguda, o esquizofrênico tem a

Bom dia, Bruno.

possibilidade não apenas de vivenciar uma personalidade fantasiosa, diversa da sua, mas

BRUNO

também de extrair do inconsciente coletivo as lembranças de pessoas mortas. Tal

Bom dia, vamos sentar. (Assentam-se.)

fenômeno, porém, é precisamente o que constitui a enfermidade, não é nada de

ROSEMARY

sobrenatural.

Ela piorou?

JEFFERSON

BRUNO

O sobrenatural é uma balela.

(Desalentado) Não dá para piorar mais, não é?

ROSEMARY

JEFFERSON

Eu não sei. Até hoje não me conformo em ter ouvido Lorena falar daquela

De fato... ROSEMARY Quem diria que ela chegaria a esse grau...

maneira, sem possuir tamanha cultura. BRUNO Tudo é fruto do inconsciente individual em conexão com o inconsciente coletivo.

BRUNO

É tudo fisiológico, nada é transcendente. Na exposição que fez sobre a química do cérebro,

Fizemos tudo o que poderia ser feito.

o Dr. Alcolombre demonstrou o mecanismo funcional do sistema nervoso; veja bem:

JEFFERSON

temos nele mais de vinte bilhões de células, e cada uma delas tem mais de cinquenta mil

(Solidário) Disso somos testemunhas. E com que dedicação, com que desvelo!

comunicações eletromagnéticas com as suas vizinhas. Não é monumental? Por isso é que a

ROSEMARY

mente desgovernada do esquizofrênico pode produzir os mais impressionantes fenômenos.

Mas ainda há possibilidade dela sarar. BRUNO Temos esperança... se não tivéssemos não tomaríamos a decisão de interná-la.

ROSEMARY Dá gosto escutar você, Bruno, sempre o considerei um gênio; se não tivesse se entranhado na política talvez fosse um grande cientista.

JEFFERSON

JEFFERSON

Medida acertada.

Tanto quanto Rosemary, eu igualmente admiro e invejo seu brilho intelectual.

BRUNO

(Lorena, encurvada e estampando uma palidez cadavérica, desce a escada

É a única coisa que nos resta, agora que ela perdeu de vez a consciência...

vagarosamente, sustentada por Paula e Bertolo.)


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632

ROSEMARY

JEFFERSON

(Antes que os três vejam os que vêm pela escada.) Bruno, só mais um detalhe:

Não é a justiça que é cega, a justiça é apenas vesga, o destino, sim, é que é cego.

como o Dr. Alcolombre justificou o fato de Lorena ter saído em fração de minuto da

(Paola retorna com Terto.)

embriaguez, naquele dia?

PAOLA

BRUNO Efeito de auto-sugestão; a mente comanda todo o metabolismo corporal, os faquires dão exemplo disso. Você sabe como Freud estruturou a teoria da psicanálise? Foi

Vamos lá. (Dirige-se para fora, com Terto e Lorena; esta estanca, vira-se para Terto e se demora fitando-o; todos se surpreendem agradavelmente com a atitude de Lorena.)

com base em uma cliente, por ele curada, que deixou de ser paralítica quando liberou do

BERTOLO

inconsciente um dilacerante sentimento de culpa. (Lorena, Paola e Bertolo ingressam na

(Para Jefferson e Rosemary.) Ela sempre gostou muito dele.

sala; o clima ganha maior intensidade dramática.)

TERTO

PAOLA

E eu dela, não é, dona Lorena?

Alô...

PAOLA

ROSEMARY

Tenho me perguntado se não teria sido melhor, no início, seguir o conselho de

(Para Lorena.) Como está, querida?

Terto.

JEFFERSON

TERTO

(Idem) Como vai? (Lorena, apática, indiferente, não responde.)

(Animado) Nunca é tarde, nunca é tarde. (Desenha-se no canto da boca de Lorena

PAOLA Tive a idéia de trazê-la para tomar um pouco de sol no jardim. Cadê o Terto? Vou buscá-lo, quero que ele exiba as flores que incluiu entre as begônias e violetas. (Afasta-se)

um leve traço de sorriso) BRUNO Parece que uma fagulha de consciência está acendendo dentro dela.

BERTOLO

PAOLA

Convocamos o médico para acertar as contas com ele; é um bestalhão como os

Que bom. ROSEMARY

outros. JEFFERSON

Vamos ajudar. Porém, como?

Iniciativa correta, nós faríamos a mesmíssima coisa.

BERTOLO

BERTOLO (Com a voz quase embargada.) É doloroso termos de interná-la... (Desliza a mão pela cabeça de Lorena, em um gesto de desajeitada mas sincera ternura.)

(Gritando para a varanda.) Jéssica, providencia uma xícara de café bem quente! (Para os outros.) Quem sabe se ela, depois de todos esses dias inconsciente, não está querendo despertar?

ROSEMARY

JEFFERSON

(Com os olhos úmidos.) Você é um marido exemplar, Bertolo.

É possível.

JEFFERSON

ROSEMARY

(Comovido) Tem um imenso coração.

E um estimulante ajuda.

ROSEMARY

PAOLA

A vida é que às vezes maltrata quem menos merece sofrer.

Mas café? (Um olha para o outro, indagativamente.)


633

634

BRUNO

de fraqueza física, quando eu partir ela estará na plena posse de todas as suas faculdades

Para o que mais poderíamos apelar?

mentais porque neste momento uma potente energização dos seus neurônios acaba de ser

TERTO

feita por um Espírito de grande evolução que me acompanha. Deem graças a DEUS.

Uma prece... (Todos se olham de novo; Jéssica chega.)

ROSEMARY

JÉSSICA

Você é por acaso um ser divino? Os Espíritos de luz são como os Santos? Ou os

Café quente?

Anjos?

PAOLA

JÉSSICA

Tive outra idéia. (Acomoda Lorena em uma poltrona sob os cuidados de Bertolo e

Heresia!...

senta-se ao piano.) A mãe nunca deixou de ser apaixonada por esta música. (Executa o 2º

LORENA Somos individualidades humanas e não seres distintos dentro da criação. Apenas

movimento do Concerto de Aranjuez: ADÁGIO, do compositor espanhol Joaquim Rodriguez.) TERTO

nos movemos nas faixas ondulatórias de um universo paralelo ainda inacessíveis às percepções sensoriais de vocês.

(Para Bertolo.) Peço permissão ao senhor para fazer uma prece... (Fecha os olhos,

BRUNO Admitindo a hipótese de que quem está falando não é a minha mãe, eu apreciaria

põe as mãos espalmadas próximas à cabeça de Lorena e fica em tal postura enquanto Paola toca; os demais se limitam a observar.)

formular uns questionamentos. JEFFERSON

ROSEMARY Estou sentindo uma enorme paz. (A música prossegue, Terto imóvel em sua

De minha parte gostaria de levantar umas premissas, não para dirimir dúvidas,

posição; Lorena respira fundo e, paulatinamente, vai se transfigurando, até que seu rosto

pois não as tenho em minha sólida conviccção materialista, mas para que os presentes se

passa a refletir fulgurante serenidade; então ergue-se e fala com inflexão límpida.)

ilustrem.

LORENA

JÉSSICA

DEUS nos abençoe e proteja! (Paola faz cessar a música.)

Eu prefiro me retirar. (Para Bertolo.) Posso?

ROSEMARY

LORENA

(Ante o mudo espanto de todos.) Assim seja...

Meus irmãos, não vim aqui para polêmica, vim para socorrer Lorena em virtude

LORENA

dos seus méritos pessoais. Não desejo estabelecer conflito com a opinião de ninguém; se

Sou um amigo invisível. A prece deste homem (Aponta Terto.) e os harmoniosos

por enquanto vocês não depositam fé em nosso mundo, de natureza espiritual, cabe-nos

acordes musicais, ajudaram-me a entrar em sintonia com o ambiente. Estou aqui em

lamentar sem nos preocupar, já que cedo ou tarde todos morrem e veem a grande verdade

missão de amparo a esta irmã que me serve de médium; o padecimento foi causado pela

do Além com seus próprios olhos. Apenas, para não me julgarem descaridoso, disponho-

falecida namorada do rapaz (Aponta Bruno.) que não se suicidou, como vocês pensam,

me, com o devido respeito ao livre arbítrio de casa um, a deixar alguns avisos. Aceitam?

teve morte acidental, mas apesar disso continua alucinada de ódio. Vou transportar esse Espírito para uma dimensão de espaço onde ele será doutrinado e esclarecido, a fim de se libertar dos seus vícios e dos seus rancores. Quando eu partir, Lorena estará livre do processo obsessivo que a martirizou até hoje. Naturalmente, terá de ser submetida a um tratamento para revitalização do organismo debilitado, porém deverá fazê-lo sobretudo com repouso, distrações amenas e alimentos substanciosos. Repito que, apesar do estado

ROSEMARY Aceitamos. Falo em nome de todos. (Os outros, depois de uma pausa, balançam com a cabeça concordando.)


635

636

LORENA

BRUNO

(Para ela.) Você será largamente recompensada no futuro se adorar o menino do

Eu confesso que...

Abrigo que tem quatro anos. Ele é um espírito superior reencarnado e lhe dará, na velhice,

LORENA

amparo e carinho, tornando-a venturosa como jamais foi.

(Interrompendo) Perdoem, preciso partir. (Bate no ombro de Terto que somente

ROSEMARY

agora abre os olhos). Obrigado, amigo. (Encarando todos, um por um). Se lhes posso

Fabuloso! Juro que nunca falei, nem ao Jefferson, que sinto vontade de adotar

fazer um pedido, não digam que foram vítimas de uma alucinação!... Adeus. (Lorena cerra

aquele garoto.

as pálpebras e transmuda sua expressão facial, saindo do transe.)

LORENA

PAOLA

(Para Jefferson.) Convém não protocolar logo a petição que redigiu ontem à

Mamãe!

tarde, na hora em que a secretária derramou o refrigerante em sua mesa; o texto

BERTOLO

aparentemente está bem arrazoado, contudo você falseou a interpretação da jurisprudência

Lorena!

e citou uma lei com o número errado.

BRUNO

JEFFERSON

Mamãe!

(Pasmo) Como ele soube do incidente do refrigerante???

ROSEMARY

LORENA

Querida...

(Para Bertolo.) Não demita o contador, que é um homem honesto, se quiser

LORENA (Em um misto de surpresa e contentamento.) Gente, eu me sinto magnificamente

expulsar alguém da firma escolha aquela faturista que teve coragem de convidá-lo uma vez para ir ao cinema.

bem.

BERTOLO

PAOLA

(Desconcertado) Que coisa, hein?...

(Pulando) Que bom, mamãezinha!

LORENA

BRUNO

(Para Jéssica.) Não adianta rezar de manhã e jogar praga à noite. Reconheça que

Você é uma heroína, mãe! BERTOLO

foi culpada da desavença e pague o dinheiro emprestado da sua comadre.

Agora tu terás que repousar, comer bastante e te distrair. Vamos tirar umas férias

JÉSSICA Te desconjuro, Satanás!...

e viajar.

LORENA

ROSEMARY

(Para Paola.) Fui eu que, manipulando a técnica da hipótese, fiz você ter a ideia

Lorena, você é sensacional.

de trazê-la ao jardim e depois tocar a música de sua predileção.

JEFFERSON

PAOLA

Estou muitíssimo satisfeito por esta auspiciosa recuperação.

Obrigada.

TERTO

LORENA

(Com voz sumida.) DEUS seja louvado!...

(Para Bruno.) Você é um idealista. Parabéns. Continue sua luta pela nobre causa

JÉSSICA

da justiça social. Mas não se esqueça que “nem só de pão vive o homem”...

(Saliente) Eu sabia que não estava acendendo em vão minhas velas! (Toca a campainha, ela abre a porta).


637

638

Dr. ALCOLOMBRE (Entra deparando com a esfuziante alegria de todos.) Bom dia, isto é uma festa? BERTOLO Ela ficou boa, doutor, agora despertou. Dr. ALCOLOMBRE Mesmo??? LORENA (Categórica) Sim, acho que sim. Não sei explicar o que aconteceu comigo, na

CAPRICHOSA

realidade. Chega a ser engraçado, de tão esquisito: enquanto meu corpo está fraco a minha mente está forte, enquanto minhas pernas estão moles o meu pensamento está firme como uma rocha. Dá para vocês entenderem? E o melhor de tudo é isto: alguma coisa dentro de mim me garante que nunca mais terei nada de mal na cabeça. Que sensação maravilhosa! Parece que renasci e voltei a ser eu mesma. (Sorridente, com o bom humor.) Terto, se você

LIÇÃO DOS

preparou como recomendei o caramanchão no jardim, vou encher esta casa de flores e o primeiro que aparecer com problema leva uma surra para aprender a ser feliz. Dr. ALCOLOMBRE (Tufando o peito.) Não disse que, com o apoio da família, eu ia salvá-la?! No campo das doenças nervosas e mentais a Medicina moderna, exercida competentemente, com a ajuda da ciência parapsicológica, opera verdadeiros milagres!... (Todos olham para ele e logo começam a rir de sua tola presunção.)

FIM

ESPÍRITOS


639

640

Esta peça, ainda não encenada, quando foi lançada ao público em livro recebeu do

iluminador, sonoplasta etc. Para os que não conhecem a estrutura interna do fazer teatral,

Doutor em Arces Cênicas pela USP Hamilton Saraiva, residente em São Paulo, o seguinte

todas as funções aqui relatadas talvez assustem, mas podem crer: quando lemos um texto, o

Prefácio:

nosso cérebro automaticamente supre todos esses componentes com muita criatividade e

Diante do um texto teatral, sempre me coloco na expectativa de encontrar aquela

maestria.

surpreendente peça pela qual me apaixonarei. Foi assim que conheci o autor, ainda na

Esboça-se, atualmente, no meio espírita, um potente movimento teatral que

década de 60, ao ler de uma só “golada”, enquanto voltava do centro da cidade de São

necessita de munição e subsídios de porte que Nazareno oferece, para a sua concretização

Paulo, até o distante bairro da Penha, a peça “Nó de quatro pernas”, de sua autoria. Desta

como decisivo processo de divulgação da doutrina sem, entretanto, repetir o velho ranso de

forma conheci Nazareno Tourinho, como autor de teatro, e logo me apaixonei pelo seu

proselitismo. Como doutrina racional, o Espiritismo, creio, recomenda um cuidado especial

modo de escrever. Na ocasião eu nem sabia que o autor era espírita. Levei sua peça ao

com o trato da arte teatral, milenar forma de expressividade do ser humano e que sempre

palco e conseguimos muitos prêmios e sucessos de 1964 a 66, com o grupo Teatral Jambaí.

fracassou ao se escravizar, sectariamente, às ideias religiosas ou políticas.

Dizem que uma peça de teatro não é para ser lida e sim representada no palco. Da mesma forma, um conto não se presta à montagem teatral e se destina ao desfrute da leitura. Algumas exceções existem, é claro, e Nazareno faz parte delas juntamente com Machado de Assis, em situação poética diametralmente oposta. As peças de Nazareno Tourinho se prestam também à leitura e são vazadas num linguajar dinâmico, criativo e encantador. Por seu turno, os contos de Machado de Assis são teatrais, por excelência e servem, portanto, ao teatro, com alguns reparos de adaptação. Daí a minha comparação inicial entre Nazareno e o “imortal” Machado. Nazareno Tourinho, dentro da Doutrina Espírita, é muito conhecido, quer pelos livros polêmicos e esclarecedores, quer pelos relatos de pesquisas da mediunidade, como também pelos numerosos artigos na imprensa espírita. Há um outro lado pouco conhecido do nosso Nazareno que é o de um especialista em relações humanas e teórico de administração de empresas. Nesse aspecto, da mesma forma, o autor tem vários sucessos em livros editados e cursos ministrados. Mas voltemos ao teatro, motivo de muitas paixões, prêmios e oportunidades que Nazareno não perdeu. No seu currículo, prenhe de láureas nas artes cênicas e literárias, há uns tempos atrás, estava faltando essa embrenhada com o enfoque da temática espírita que o autor iniciou com a peça “A estranha loucura de Lorena Martinez” (também premiada), com o livro teórico “Dramaturgia espírita” (editado pela FEB) e que ora se manifesta com a (ainda premiada) presente peça teatral. Trata-se de mais uma apetitosa produção literária do Teatro Naturalista que poderá ser lida como se fosse um gostoso romance, mas que deverá (espero que aconteça muitas vezes) ser levada ao palco, pelas mãos de um encenador sensível, atores e atrizes talentosos e de toda uma equipe competente de cenógrafo, figurinista, maquiador,

Deixo agora ao leitor a oportunidade de encontrar-se com a deliciosa peça de Nazareno Tourinho.


641

CENÁRIO

642

FRANCESCA Velha governanta da família.

Interior de vetusta residência erguida na encosta de um morro. Sala, varanda, gabinete de trabalho e um corredor comunicando com outros aposentos. Saída à esquerda para o exterior da casa e à direita para a copa-cozinha. Na sala, sofá estilo colonial de características diferentes de todos os outros

PABLO CALDERON O discípulo predileto do Dr. Nicholas Urbinati, que muito o admira e estima apesar de ter um temperamento diferente e idéias próprias, inclinadas ao materialismo ortodoxo.

móveis; poltronas, banquetas e almofadas dispostas com intenção estética; um cravo,

CARMENCITA CALDERON

cortinas de veludo; grosso tapete estampando desenhos orientais; quadros com pinturas

Simpática mulher de Pablo.

diversas, um deles maior, imponente, de moldura dourada fazendo realçar o vulto de um

CAMILO DE LA TORRE

ancião trajando fraque; eletrola sem as modernas caixas acústicas: junto a ela graciosa estatueta de marfim em um pedestal. Na varanda, comprida mesa de carvalho guarnecida com cadeiras de espaldar saliente e assento de palhinha; cristaleira entalhada em linhas barrocas; armário do mesmo feitio mostrando nas prateleiras, pelas portas envidraçadas, louças de porcelana; solitária chapeleira; do lado uma canastra que dá a impressão de ser de bronze pela cor marrom luzidia; aparelho telefônico sobre a aba de um canapé. O gabinete de trabalho, em plano mais elevado, é uma mistura de escritório e laboratório, equipado com todo o instrumental de um cientista que, apesar de profissionalmente aposentado, continua a pesquisar com paixão os domínios da Física.

PERSONAGENS Dr. NICHOLAS URBINATI Eminente físico que trabalha no mais completo isolamento em um projeto científico sobre o qual mantém segredo. Ainda saudável, a despeito da idade provecta, e possuidor de temperamento bem humorado, é o tipo de homem a quem se pode chamar de sábio, pela inteligência e pelo caráter. Sra. MAGALI URBINATI Sua dedicada esposa. ILMA Uma jovem empregada doméstica contratada recentemente pelo casal, médium inconsciente de extraordinários poderes para produzir fenômenos de efeitos físicos.

Vizinho e amigo do Dr. Urbinati, artista plástico, um sujeito erudito e superlativamente vaidoso que não acredita em Espíritos. Padre GIORDANO Sacerdote fiel aos dogmas da Igreja Católica.


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PRIMEIRO ATO

644

mais. Até agora, nestes sete dias, estou satisfeita com o seu serviço. Quando completar um mês talvez aumente o salário que combinamos.

Entardecer de um sábado. A Sra. MAGALI URBINATI ocupa-se em fazer crochê

ILMA

no sofá da sala onde ILMA, utilizando uma escada dessas que abre e fecha, limpa com

DEUS lhe pague.

uma flanela a moldura do quadro que retrata o ancião. No gabinete vê-se o Dr.

Sra.MAGALI

NICHOLAS URBINATI e PABLO CALDERON em cena muda.

Hoje e amanhã desejo que se esmere no atendimento aos nossos dois hóspedes. O professor Pablo Calderon, apesar de relativamente jovem, é um cientista consumado

Sra. MAGALI (Superlativamente conservada para os setenta e cinco anos que carrega com a

que o meu marido há anos tem em conta como o melhor dos seus discípulos. ILMA

preocupação de disfarçar, ostenta uma pose empertigada, formalista, comum às pessoas

Sim senhora.

que se comprazem em cultuar tradições sociais e familiares; veste-se de forma vitoriana

Sra. MAGALI

e só eventualmente recorre aos óculos que porta com as alças presas ao vistoso colar em

A Francesca está sendo amável com você?

torno do pescoço; é o que se poderia chamar com propriedade de grande dama

ILMA

aristocrática, pela origem e educação.) Eu já lhe disse que este aí é meu falecido pai?

Está, sim senhora.

(Aponta o quadro maior da parede.)

Sra. MAGALI

ILMA

É indispensável que se entenda com ela sem a menor incompatibilidade.

(Morena, simpática e robusta, mas de aspecto geral sofrido, reflete nas feições

ILMA

um certo ar de resignação e medo.) Não...

Sim senhora.

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Esta pintura é uma herança de família de valor inestimável, artístico e

Sabe o que significa incompatibilidade?

sentimental.

ILMA

ILMA

Não senhora.

Sim senhora.

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

(Põe de lado os apretechos do crochê e levanta-se) Depois passe o pano na

Deve ter reparado que nesta casa a maioria dos objetos não são apenas bonitos, sobretudo são finos.

estatueta. (Vai à eletrola, coloca para tocar uma música executada em violino; a seguir senta-se pensativa e esfrega as mãos em gesto que denota contido nervosismo, antes de

ILMA

pegar o rolo de fio e a agulha para prosseguir no crochê; neste ínterim CARMENCITA

Reparei, sim senhora.

CALDERON desponta no corredor.)

Sra. MAGALI

CARMENCITA

Alguns são autênticas relíquias, merecem ser mantidos rigorosamente limpos,

(Espontânea, elegante sem afetação.) Eles permanecem no gabinete?

mas não se atemorize: sou exigente porém não tenho a mania de limpeza. O que quero

Sra. MAGALI

acima de tudo é que você ajude a Francesca na cozinha e na lavagem da roupa um pouco

Ainda. O que estarão falando? CARMENCITA Talvez estejam planejando um passeio conosco...


645

646

Sra. MAGALI

CARMENCITA

Quanto a isto, minha filha, perca as esperanças: a derradeira vez que desci este

As pesquisas do Dr. Urbinati ainda são da maior importância.

morro para ir a um teatro já nem me recodo. Também, não teria valido a pena; o teatro,

Sra MAGALI

atualmente, é pura vulgaridade, a coisa mais difícil de se encontrar é um espetáculo digno

Acha?

de ser assistido. Que saudade das viagens que fiz!... Aliás, para mim, unicamente uma

CARMENCITA

ópera merece que a gente fique por duas horas presa em uma cadeira desconfortável, às

Sem dúvida. É o que Pablo me diz sempre.

vezes até enfrentando pulgas e tendo que suportar comentários em surdina e risadinhas.

Sra. MAGALI

(Torna a levantar, desliga a eletrola e puxa CARMENCITA para a varanda.) Venha cá.

Obrigada. É justamente por esta razão que a cada dia mais me angustio...

(Antes de acomodar-se diante dela em uma das cadeiras de palhinha que guarnecem a

CARMENCITA

mesa de carvalho, a fim de fugir do raio de observação de ILMA, aponta para o

O que há?

armário.) Estas porcelanas são lindas, não são? Comprei-as há uns quarenta anos, na

Sra MAGALI

Suiça, em uma loja de antiquidades. (Há uma pausa.) Já fez um ano que vocês casaram?

Comigo ou com ele?

CARMENCITA Mês retrasado. Sra. MAGALI Desculpe não termos ido ao seu casamento. Tínhamos o dever para com Pablo

CARMENCITA Com a situação... Essa nossa visita tão apressada para passar o fim de semana aqui sem nenhum motivo... Sra MAGALI

de praticar esse ato de cortesia, embora nossas cidades não fiquem tão perto uma da

Motivo há.

outra. Infelizmente, o Nicholas é um comodista com precária noção de fidalguia.

CARMENCITA

CARMENCITA

Qual é?

Eu é que devo pedir desculpas por não ter feito antes uma visita à senhora.

Sra MAGALI

Sra. MAGALI

Eu ignoro.

Você trabalha?

CARMENCITA

CARMENCITA

Estranho...

Dou aulas.

Sra MAGALI

Sra MAGALI Na universidade.

Estranhíssimo. Tudo o que sei é que nunca o Nicholas ficou como anda nestes últimos dias.

CARMENCITA

CARMENCITA

Não, em uma escola para crianças excepcionais.

Seria algum problema de ordem pessoal?

Sra MAGALI

Sra MAGALI

Meus parabéns. Eu é que não tive sorte sendo obrigada a abandonar o magistério

Se fosse ele seria incapaz de esconder de mim.

logo no início da carreira. Mas não me arrependo, as pesquisas do Nicholas eram de

CARMENCITA

enorme importância naquela época e eu não podia deixar de acompanhá-lo em suas

Então só pode ser novidade relacionada com as experiências científicas.

frequentes viagens ao exterior.


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Sra MAGALI

alegou que estava com febre alta; fiquei vexadíssima mas, ao colocar o termômetro nele,

É o que suponho. Ele ter dado um passo inesperado no desdobramento da sua

constatei que a temperatura não apresentava alteração nenhuma.

equação. O Pablo lhe contou a história dessa equação?

CARMENCITA

CARMENCITA

Foi?

Contou, porém me faltou base matemática para entender.

Sra MAGALI

Sra MAGALI

Será que ele está esclerosado?

E quem possui cabeça para compreender, minha filha? É uma complicação

CARMENCITA

terrível. (Torce as mãos, nervosa.)

Que ideia, dona Magali!...

CARMENCITA

Sra MAGALI

(Procurando descontraí-la.) Talvez ele esteja próximo de uma descoberta de

Idade para uma catástrofe como essa nós temos. Ele principalmente.

excepcional benefício para a Humanidade e a srenhora, como sua esposa, haverá de se

CARMENCITA Afaste da mente tal preocupação. Se fosse um problema de tamanha gravidade, o

tornar famosa! Sra MAGALI

Pablo saberia e me teria dito. Sra MAGALI

E se a descoberta acabar resultando em uma invenção mais devastadora do que a

O que o Pablo lhe informou?

bomba atômica?

CARMENCITA

CARMENCITA

Bem, praticamente nada. Só que o Dr. Urbinati estava com um problema que

(Sorrindo) Que exagero, dona Magali. Sra. MAGALI

não dava para expor por telefone e precisava, urgentemente, palestrar com ele pelo menos

Sei lá.... Em matéria de ciência tudo é possível... Se o Nicholas não estivesse

dez horas... Em virtude do que nos convidava para passar este fim de semana em sua

metido em algo muito especial já teria feito para mim um relatório... Teria sim, tenho

casa. Como, para atendermos o convite, Pablo teve de adiar uma conferência e cancelar o

certeza... Ele jamais foi tão reservado.

almoço domingueiro com a mãe, infalível e sagrado para ele, desde o nosso casamento,

CARMENCITA

admito que o problema seja de alta relevância, porém não creio tratar-se de nada trágico.

A realidade é que o segredo a respeito desta visita nos deixou tensas. Relaxemos.

(Tentando reanimá-la.) As suas porcelanas... Sra. MAGALI

Conversemos sobre outras coisas: as suas porcelanas, por esemplo.

Tenho predileção por estas porcelanas; comprei-as porque a casa de antiguidades

Sra MAGALI Julga que eu estou dizendo tolices?

me forneceu um certificado de que elas são chinesas do século dezessete e fizeram parte

CARMENCITA

de uma coleção imperial. Estas porcelanas, o retrato do meu pai e aquele sofá da sala, que

Absolutamente.

pertenceu à minha avó, são as três coisas que mais amo na vida. Fora o Nicholas, é

Sra MAGALI

claro...

Tenho os nervos à flor da pele desde o primeiro dia desta semana, quando surpreendi o Nicholas se apalpando todo em diversas partes do corpo, no gabinete, tarde da noite; botou a mão na testa, depois nas costas, na barriga e até no calcanhar; com toda aquela sua calma, no entanto parecendo uma criança a brincar consigo mesma, ou, para ser mais honesta, parecendo um débil mental; ao me ver perdeu a graça e, desconcertado,

CARMENCITA A sua casa é toda maravilhosa, somente a vista para o mar que se tem do jardim já é um sonho.


649

650

Sra. MAGALI

CARMENCITA

Minha mãe também dizia que é uma paisagem de sonho, foi ela quem teve a

Ah, dona Magali, quem ainda tem condição de admirar o por do sol morando na

coragem de levantar essa construção na encosta do morro. Minha mãe nasceu em berço

minha cidade?... A gente vive correndo de um lado para o outro, dentro de uma floresta e

de ouro, mas não foi apenas uma mulher rica, foi, sobretudo, uma mulher de cultura e

edifícios saturada de poluição, sem direito de olhar o horizonte...

sensibilidade. Devo mais a ela do que ao Conservatório minha aprimorada formação musical. Você gosta de música?

Sra. MAGALI Eu e o Nicholas somos uns bem-aventurados, residindo não somente em um

CARMENCITA

município pequeno, mas, ainda, em um lugar como este. Aqui temos raríssimos vizinhos,

Gosto.

o que constitui uma vantagem, e desfrutamos da natureza, fonte de paz. Cultivamos a paz,

Sra. MAGALI

sabe? Nesse ponto somos conscientemente egoístas: antes de mais nada, e acima de tudo,

Quer ouvir a orquestra sinfônica de Berlim? (Torce as mãos.) É o recurso que nos resta para acalmar os nervos. Dá lincença. (Desloca-se para a sala.)

a nossa paz. Não seja ela jamais perturbada, eis a aspiração suprema que nutrimos. (Com diferente inflexão de voz, fitando o gabinete de trabalho.) Será necessário irmos lá?

ILMA

CARMENCITA

Estou acabando.

Para interromper os dois?

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Não se esqueça de limpar depois a estatueta.

Sim.

ILMA

CARMENCITA

Sim senhora.

Não sei...

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Na semana que vem, quando for tirar o pó das porcelanas, terá minha orientação

Estou temerosa.

direta. Não toque em nenhuma peça do jogo de porcelanas no armário estando eu ausente.

CARMENCITA

Não é falta de confiança, é uma questão de zelo porque de maneira alguma consentirei

Eu somente curiosa.

que uma única daquelas porcelanas se quebre. Outra recomendação, antes que esqueça:

Sra. MAGALI

quando for retirar a poeira deste sofá não use qualquer escova, fale comigo primeiro, a

Se eles demorarem mais dez minutos para sair...

fazenda dele não pode sofrer o mínimo arranhão. (Coloca na eletrola um disco da música

CARMENCITA

oferecida, volta para a varanda.)

Talvez seja preferível nos contentarmos com a música. (Ligeira pausa.)

CARMENCITA

Sra. MAGALI

A música, efetivamente, nos dá tranquilidade.

Qual o autor que prefere escutar?

Sra. MAGALI

CARMENCITA

E enlevo, minha filha, e deleite espiritual. A música é a mais sublime de todas as

De música clássica?

artes, sua essência exala perfume celestial, como salientou um notável maestro florentino.

Sra. MAGALI

Já experimentou ouvir Chopin admirando o por do sol?

É evidente. Não venha me dizer que desperdiça o tempo com o som dessas guitarras malucas e desses cantores desafinados que imbecilizam a nova geração. CARMENCITA Bem, eu... não sou muito radical no meu gosto.


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Sra. MAGALI

CARMENCITA

Se desejar poderemos ouvir uma das sinfonias de Beethoven; a quinta em Dó

Conte com meu apoio moral.

menor, seguramente é a mais exuberante, porém para o instante que enfrentamos a mais

Sra. MAGALI

apropriada é a sexta, célebre por transmitir “uma doce paz”, lembrando o caminhar

Pois é...

vagaroso dos camponeses pela relva dos bosques, entre o murmúrio dos riachos, o pipilar

CARMENCITA

dos passarinhos e o arpejo de flautas. Caso você aprecie como eu órgão e cravo, escutaremos Bach; disponho inclusive dos seus mais inspirados motetes, salmos e

É... (As duas demonstram uma certa inibição mesclada de constragimento; na sala ILMA conclui a limpeza do quadro e aplica a flanela na estatueta.)

antífones; prestando atenção para os efeitos das oitavas e quintas de Bach, jamais

Sra. MAGALI

dissonantes, notará como ele foi magnífico, inigualável na técnica de compor;

Vida dura... Ser mulher de cientista não é fácil... o seu marido tem mania de

frequentemente duplicava com sustenidos as notas da gama acidental e as mitonia modi ou

levantar de madrugada para escrever?

os meios tons da gama diatônica. Não querendo Beethoven nem Bach há outras opções,

CARMENCITA

por exemplo: as árias Care Compagne, Ah, non credeamirarti e Ah, non guingge da ópera

Não. Escrever o quê?

A sonâmbula, de Bellini; a cantata fúnebre Requiem Alemão de Brahms; A Sonata em Dó

Sra. MAGALI

maior, opus 140, de Schubert; o segundo ato de La Vestala, de Spontini; o Messias ou

Números. Fórmulas.

Israel no Egito, de Haendel; a Patética, Canto de Cisne de Tchaicovsky; o Allegro

CARMENCITA

giocoso, de Mendelssohn. De Wagner tenho, gravada, Tristão e Isolda; de Puccini, A

O defeito do Pablo, de madrugada, é roncar; às vezes ronca tão forte que me

Andorinha, sóror Angélica, La Franciulla Del West e, naturalmente, a Tosca e Madame Butterfly; de Verdi, a Traviata e... Falei demais? É que a música me empolga. CARMENCITA A senhora possui uma cultura musical de fazer inveja.

acorda, parece um trem resfolegando. Sra. MAGALI Nesse ponto não me queixo, o Nicholas dorme com um anjo e até reclama porque me viro demasiadamente na cama.

Sra. MAGALI

FRANCESCA

Apenas para o gasto caseiro, não chego a ser uma erudita. (Pausa) Eu falo,

(Aparece à direita saindo da copa-cozinha: é branca, sardenta, magra e pálida:

contudo não adianta negar, estou muito nervosa. Repito que a partir de agora, se eles não

traz sobre a parte frontal de sua saia um avental que de quando em quando ajeita, ciosa

saírem do gabinete em dez minutos, vou lá.

de sua função no serviço doméstico.) O jantar hoje é na hora costumeira?

CARMENCITA

Sra. MAGALI

Eu a acompanho.

(Para CARMENCITA.) Vocês jantam tarde?

Sra. MAGALI

CARMENCITA

A gente entra levando um cafezinho quente...

No geral umas oito e meia.

CARMENCITA

Sra. MAGALI

Ótima justificativa. Sra. MAGALI Dependendo de como eles reagirem nós pomos as cartas na mesa, exigimos que nos revelem o mistério.

Que pena! Se jantassem cedo, eu teria um excelente pretexto para arrancar o Nicholas daquele gabinete. CARMENCITA Não pretendemos mudar os horários da sua casa, dona Magali; por favor, mantenha a rotina.


653

654

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

(Para FRANCESCA.) Será oito e meia o jantar, não precisa correr. Veja se o Sr.

Os dois são físicos e nós não passamos de duas ignorantes, isto é, ignorantes

La Torre ainda está pintando aí fora; se estiver... (Para Carmencita, hesitante.) Seria incômodo para vocês terem na mesa do jantar um vizinho nosso?

naquilo que se refere à ciência deles, justo? CARMENCITA

CARMENCITA

Siga...

Não, de forma alguma.

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Se o Nicholas, depositando toda confiança em mim e nunca tendo me escondido

(Para FRANCESCA.) Avise a ele que jantaremos hoje às oito e meia.

nada, até vocês chegarem não me contou a verdade, agora é que não vai contar, depois de

FRANCESCA

ter a solidariedade do Pablo, correto?

Aviso já. (Sai à esquerda, depois de atravessar a sala)

CARMENCITA

Sra. MAGALI

Esta dedução pode ser falsa... Talvez, desabafando para Pablo, o Dr. Urbinati

O Sr. La Torre, Camilo de La Torre, é um dos poucos vizinhos que possuímos;

sinta-se encorajado a lhe expor o seu problema pessoal.

artista plástico de reais méritos, premiado em Paris, elogiado por críticos internacionais,

Sra. MAGALI

ele esbanja talento e é uma verdadeira enciclopédia, capaz de comentar qualquer assunto.

E se, em vez de pessoal, o problema for científico?

Como da sua casa não tem vista para o mar, às vezes vem fazer pinturas aqui em nosso

CARMENCITA

jardim. A mania dele não é escrever nem roncar de madrugada, é transferir para telas as

Aí... não sei.

paisagens marinhas da hora do crepúsculo; com facilidade tornou-se amigo do Nicholas e,

Sra. MAGALI

todo sábado, janta conosco. (Transição) Sabe o que me ocorreu neste minuto?

Eu aposto que é científico. Conheço o Nicholas, minha filha, já disse que ele

CARMENCITA

jamais deixaria de me comunicar qualquer coisa errada consigo.

Sim?

CARMENCITA

Sra. MAGALI

Acredito.

Os dois podem estar tramando uma forma de nos enganar, quero dizer, de nos

Sra. MAGALI

iludir na estória desse segredo.

Olhe, relatarei apenas dois fatos íntimos para você tirar a sua conclusão sobre o

CARMENCITA

relacionamento que existe entre o Nicholas e eu fora das questões científicas. Quando

Como?

éramos noivos, um dia o pai dele lhe confidenciou um segredo pedindo que não falasse

Sra. MAGALI

nada a ninguém, nem a sua própria mãe; ele falou para mim. De outra feita, quando já

Não percebe?

carregávamos uns vinte anos de casamento, uma secretária que o Nicholas teve antes de se

CARMENCITA

afastar do Instituto de Pesquisas Nucleares, mulher grandemente ilustrada, charmosa e

Por que fariam isso?

mais moça do que eu, caiu na tolice de se apaixonar por ele e declarar a estúpida paixão em

Sra. MAGALI

uma carta melodramática, rogando-lhe segredo sob ameaça de suicídio, porque também era

Reflita comigo: o assunto que estão camuflando deve ser mesmo muito especial,

casada e mãe de quatro filhos. Sabe o que o Nicholas fez antes de queimar a carta?

concordamos plenamente neste detalhe, certo?

Mostrou-a para mim, que tive um ataque de ódio daquela cretina e por pouco não perdi a

CARMENCITA

compostura, por pouco não desci da minha dignidade a fim de dar umas bordoadas na cara

Temos o direito de imaginar que não se trata de uma banalidade...

da cínica.


655

656

CARMENCITA

o mesmo movimento é executado por FRANCESCA ao reaparecer à esquerda, retornando

(Contendo-se para não deixar escapar uma gargalhada.) Parabéns à senhora

do jardim.

porque tal atitude de um marido vale como formidável prova de amor. Sra. MAGALI

PABLO (De estatura elevada, porte sóbrio, é lento no falar como quem pensa tudo o que

O Pablo não procede assim com você?

diz, deixando transparecer um temperamento frio e uma inteligência pragmática; pelo

CARMENCITA

vestuário moderno, mas displicente identifica-se como homem inteiramente devotado à

Só temos pouco tempo de casados, ainda não houve oportunidade dele receber

ciência, não obstante a idade pouco avançada.) É?...

nenhuma carta romântica de secretária... Sra. MAGALI

Dr. URBINATI (Aos oitenta anos ainda transpira por todos os poros energia vital e bom humor;

O Nicholas não mede sacrifício para me agradar em tudo; no entanto, quando se

tem a pele rosada, o rosto de traços bem definidos apesar das rugas, denunciando uma

põe a aprofundar essa sua equação fica tão distante... Tenho um pressentimento de que

constituição nervosa sólida e saudavelmente estruturada, os cabelos brancos mal

desta vez ele descobriu algo terrível... O segredo deve ser esse, o Nicholas já se negou a

cortados, a barba espessa; veste-se à moda de antigamente, não dispensando os

colaborar com o Governo em um programa bélico sigiloso e por causa disso até antecipou

suspensórios.) Sim, meu caro Pablo.

a sua aposentadoria. (Pausa) Há em mim uma tendência para falar demais, perdoe... daqui

PABLO

para frente você fala e eu escuto. Fale da sua vida, dos seus projetos, dos seus ideais... Ou

Hum...

acha melhor a gente invadir logo o gabinete, sem levar cafezinho nem nada, e participar

Dr. URBINATI

aos dois que não aguentamos mais o mistério deles?

O que me diz?

CARMENCITA

PABLO

Eu não sei, o que a senhora decidir tem a minha aprovação.

Incrível...

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI

Para lhe ser franca, também não sei!...

E rigorosamente verídico.

CARMENCITA

PABLO

A solução talvez seja ouvirmos mais música para distrair, até que os nervos se

Sei...

acalmem por completo. Sra. MAGALI Tem razão... (Mudando de tom.) Não lhe mostrei toda a casa; quer ver a copa e a cozinha?

Dr. URBINATI Concedo-lhe o direito de duvidar da minha sanidade psíquica, mas insisto em que procurei descrever o que aconteceu precisamente como aconteceu. PABLO

CARMENCITA

Eu jamais duvidaria do senhor, mestre.

Quero.

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

Seria razoável que duvidasse.

Então vamos. (Saem à direita.)

PABLO

A ação verbal é transplantada para o gabinete de trabalho; na sala permanece

Não, de jeito nenhum.

apenas ILMA, que depois dirige-se igualmente para a copa-cozinha conduzindo a escada;

Dr. URBINATI Na minha idade os sentidos costumam falhar...


657

658

PABLO

PABLO

Para mim o comprometimento da sua lucidez está fora de cogitação.

Aí não sei mais nada...

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Obrigado. PABLO Eu disse que é incrível por força de expressão, nunca deixaria de acreditar em um depoimento seu, nem que tivesse mais de cem anos de idade.

Eu tinha certeza de que você iria dizer isso. Pedi que viesse até aqui porque não mascara a sua honestidade. PABLO Desculpe, mestre.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Mais uma vez, obrigado.

Não há o que desculpar, pelo contrário.

PABLO

PABLO

Por que divida de si mesmo?

É que... o fato se choca com tudo o que sabemos sobre as composições

Dr. URBINATI

atmosféricas...

Por uma questão de princípio, somente por uma questão de princípio.

Dr. URBINATI

PABLO

Vá em frente.

Sente-se bem?

PABLO

Dr. URBINATI

E agride, derruba, anula as leis conhecidas da Física. O senhor entende a minha

Perfeitamente bem. Otimamente. PABLO Tem trabalhado em excesso? Dr. URBINATI

dificuldade? Dr. URBINATI Entendo. Recorri a você mais em busca de apoio afetivo do que de adesão intelectual.

Não.

PABLO

PABLO

Quanto a isto conte comigo, que o senhor merece.

Algum sintoma de estafa, cansaço, esgotamento?

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Não posso ventilar esse assunto com ninguém mais, sob pena de ser dado como

Também não. Estou seguro de ter boa saúde mental, apenas quero deixá-lo à

louco, ou pelo menos como senil.

vontade para admitir que a causa eficiente do fenômeno reside na minha massa encefálica e

PABLO

não fora dela, no meio ambiente. Afinal de contas, os neurônios não se renovam e os que

Contou para a sua esposa.

vibram na tessitura do meu cérebro já fizeram aniversário oitenta vezes...

Dr. URBINATI

PABLO

Não. Ela viu quando eu me tocava, aqui nesta cadeira, em diversas partes do

Não se preocupe com isso. Sei que uma pessoa tão fisicamente saudável, como o

corpo; perguntou o que era; aleguei febre, ela foi buscar o termômetro; quando chegou o

senhor, e tão amadurecida psicologicamente, não iria se equivocar com suas próprias

calor havia desaparecido e verificamos que a minha temperatura estava normal;

impressões sensoriais.

naturalmente fiquei sem ter como me justificar. A Magali, meio espantada, a partir daí

Dr. URBINATI E então?...

começou a me olhar com desconfiança, a indagar quase todo dia se não quero ir ao médico.


659

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PABLO

Dr. URBINATI

E por que não vai?

Claro. Por que acha que o convidei para passar o fim de semana comigo?

Dr. URBINATI

PABLO

Pablo, até você?

Presenciar quando? Como?

PABLO

Dr. URBINATI

Por favor, não me interprete mal. Sugeri a ida ao médico para satisfazer a sua esposa.

Desde segunda-feira todo dia a coisa se repete, tarde da noite, aqui no gabinete, na hora em que costumo trabalhar na minha equação... Você também não aceita as premissas

Dr. URBINATI

da equação, porém ainda lhe provarei que está errado. Amanhã a gente discute isso; hoje

Compreendo...

depois do jantar voltamos sozinhos para cá, e ficamos aguardando o surgimento do bloco

PABLO

ou bolha de calor coagulado...

Faz uns exames, comprova o excelente estado de saúde e assim a Dona Magali se tranqüiliza. Dr. URBINATI Não era este o conselho que eu esperava de você. PABLO

PABLO O senhor acha mesmo que vamos nos defrontar antes de dormir com uma bolha de calor coagulado??? Dr. URBINATI Sim. Aqui neste gabinete, que é o lugar onde ela costuma bailar no espaço depois

O que mais eu posso lhe dizer, mestre?

das dez horas da noite. Na primeira vez que deu o ar da sua graça, segunda-feira desta

Dr. URBINATI

semana, chegou a penetrar no meu corpo, e a Magali, tendo acordado e vindo me

Meu menino, preste mais atenção: quando a Magali saiu deste gabinete, tive a

bisbilhotar, espantou-se ao ver como eu me comportava... Pablo, vamos ser francos um

ideia de colocar o termômetro a um metro de distância porque pareceu-me que o calor

com o outro: você não pode, devido a sua formação científica, depositar fé naquilo que

entrava no meu corpo e dele se afastava como se fosse uma bolha dançando no espaço;

terminei de lhe dizer; eu, de igual modo, em que pese a noção de que estou às voltas com

fiquei de olho no termômetro a um metro de distância; de repente ele acusou quarenta

um fenômeno real, necessito também, em face da minha formação científica, submeter o

graus; arredei o termômetro para perto de mim: incontinente o mercúrio condensou

fato a um teste confiável, a fim de aferir-lhe a autenticidade e avaliar o seu caráter objetivo,

marcando dezoito graus que era a temperatura de toda a casa fechada na ocasião; reproduzi

material, concreto. Você é o único instrumento de que disponho para esse teste; se

tal providência meia dúzia de vezes para me convencer de que não era vítima de uma

testemunhar o fenômeno ele ficará confirmado para mim, com a vantagem disso ajudar a

ilusão de ótica: sempre o mesmo resultado. Só então deduzi que tinha na minha frente um

Magali a não pensar que fiquei perturbado mentalmente.

bloco ou bolha de calor coagulado... (Os dois se olham, oscilam emocionalmente e acabam

PABLO

rindo.)

Entendo. PABLO

Dr. URBINATI

Convenhamos que o fato chega a ser engraçado.

Pois é.

Dr. URBINATI

PABLO

Quando você presenciar...

E depois?

PABLO

Dr. URBINATI

Eu presenciar?

O problema mais urgente a resolver é o da Magali, em razão do seu nervosismo. Se você lhe afirmar que o fenômeno existe ela se acalmará. Daremos uma explicação


661

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qualquer alegando ser uma nuvem de radioatividade inofensiva. Vencida esta primeira

Dr. URBINATI

etapa, se o fenômeno continuar se reproduzindo, buscarei documentá-lo.

E daí?

PABLO

PABLO

Como? Dr. URBINATI

Se

Ainda não tenho a menor ideia. Entretanto, se me faltarem meios para isso, talvez

senhor

demonstrar

teoricamente,

ou

documentar

Escute. Em um clima de total compensação térmica um bloco de gelo não se conserva intacto, sem se dissolver?

invisível dos raios infravermelhos?

PABLO

PABLO

É evidente.

Esta hipótese é uma heresia científica.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI Mais do que isto, é um crasso primarismo de estudante de curso ginasial, eu sei.

conseguisse

Dr. URBINATI

eu possa, pelo menos, retificar ou ratificar algumas formulações teóricas da minha equação. Quem sabe, por exemplo, se o calor não é meramente um subproduto do espectro

o

satisfatoriamente, a possibilidade de existência de um bloco de calor estático...

Então por que aquilo que se processa com o frio não pode se processar com o calor?

Todavia, desde quando o conhecimento acadêmico tem a última palavra a respeito da

PABLO

natureza corpuscular ou ondulatória da luz? E mesmo a respeito do que chamamos

Porque é inevitável a propagação do calor por irradiação, condução ou conversão.

“matéria”? Os cíclotrons aperfeiçoados para devassar a intimidade das partículas atômicas

Dr. URBINATI Para que ela se realize tem de haver em torno moléculas eletromagnéticas, não

não estão se tornando obsoletos? Lembre-se de que os nossos colegas de outros tempos acreditavam no éter e não há muito se ufanavam de ter atingido o derradeiro grupo de

tem?

elementos da série estequiogenética. A realidade é que, apesar de todo o portentoso

PABLO

progresso da Ciência, ainda não sabemos quase nada sobre coisa nenhuma...

Lógico.

PABLO

Dr. URBINATI

Eu não tenho autoridade para refutar a sua opinião, mestre, contudo a teoria da

E se não houver?

Relatividade...

PABLO

Dr. URBINATI

Não pode deixar de haver.

Pablo, não me venha com essa! Deixe o Einstein no seu glorioso repouso em

Dr. URBINATI

companhia do Max Plank. Porque o espaço é curvo, porque o Universo tem forma

É o que supomos com base no que sabemos. Mas sabemos tudo? Não estamos

cilíndrica e não esférica, e é finito embora ilimitado, porque um corpo em movimento

sendo surpreendidos a cada dia com novas descobertas nos domínios do microcosmo?

diminui de volume e aumenta de massa, somos obrigados a crer que o princípio da

Quem já esmiuçou toda a contextura de um Quark? Quem já mensurou a potencialidade da

repulsão eletrostática entre os elétrons em interação à distancia está estabelecido de

antimatéria? Se as partículas dos átomos da antimatéria giram em posição inversa às

maneira absoluta para toda a eternidade? E se tal princípio não funcionar em determinadas

partículas dos átomos da matéria, podem, obviamente, produzir as mais fantásticas

condições ou circunstâncias? Se não for sempre válido, em suma, se não se aplicar ao calor

ocorrências de fenômenos ainda inexplicáveis.

coagulado que desde segunda-feira vem me azucrinando a paciência? PABLO A existência desse calor coagulado promoveria uma revolução na Física...

PABLO Hum...


663

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Dr. URBINATI

direita, saindo da copa-cozinha, tomam o rumo do gabinete, vacilantes, a primera levando

Temos de ser humildes. Quando consideramos que a luz saída da Terra, para

uma bandeja com duas xícaras de café; a luz se apaga.)

chegar na galáxia de Andrômeda, que se localiza logo ali, viaja dois milhões de anos...

Quando a Luz reacende transcorreram umas duas horas. FRANCESCA e ILMA

PABLO

ocupam-se em desfazer a mesa do jantar; os demais personagens, na varanda, sentados

Nesta ordem de raciocínio acabaremos sem os pés no chão.

em torno da mesa, embora dela já um pouco afastados, palestram animadamente.

Dr. URBINATI

LA TORRE

Positivo. E eu lhe pergunto: convém termos os pés no chão? Em que chão estamos

(Baixo, calvo, de olhos miúdos e vivazes, exibe uma imagem meio excêntrica que

pisando? Ele é fixo ou móvel? Sólido ou vaporoso?

se destaca no grupo pela roupa extravagante no talhe e no colorido.) Dona Magali, elogiar

PABLO

sobremesa quando se faz refeição em casa de amigo é um lugar-comum. Como cultor da

Os seus argumentos me confundem.

Arte eu detesto toda espécie de lugar-comum, porém não posso deixar de declarar,

Dr. URBINATI

solenemente, que acabei de comer o mais delicioso pudim preparado neste país depois da

Não tive a intenção...

última grande guerra. Receba, portanto, as minhas efusivas congratulações.

PABLO

Sra. MAGALI

De qualquer modo, não me sinto culpado dessa pequena divergência, mestre. O

Quem fez o pudim foi a Francesca; de qualquer maneira, muito obrigada. Dr. URBINATI

senhor mesmo incutiu na minha mente o espírito científico, a dúvida sistemática.

(Brincalhão, para LA TORRE.) Meu caro vizinho, cultor da Arte, orador

Dr. URBINATI Mas o espírito científico não é o que você está sustentando, Pablo. Não é só duvidar sistematicamente, é ir mais longe duvidando da própria dúvida... (Amistoso) Bem,

eloqüente até para elogiar sobremesa, mesmo quando se trata de um pudim com três dias de geladeira... Sra. MAGALI

devemos encerrar o debate. PABLO

É mentira, o pudim foi feito hoje!

Talvez eu mude de parecer depois de assistir o fenômeno.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

(Dando seguimento à fala dirigida a LA TORRE.) Cumpro o doloroso dever de

Aposto que mudará. Como ressaltou Boirac, em ciência nada é mais crucial do que um fato. Por enquanto, você ainda não conseguiu acreditar no meu bloco ou bolha de

informar-lhe que, por motivo de força maior, esta noite não jogaremos a nossa partida de xadrez e, assim, você poderá dormir um sábado sem amargar a costumeira derrota. LA TORRE

calor coagulado. Ora, viva! Não perde por esperar. Se ele não aparecer esta noite, ou

Mentira. Agora quem lhe desmente sou eu. Este mês ainda não ganhou uma só

amanhã, dou-lhe todo o direito de voltar segunda-feira para sua casa julgando que o coágulo não é de calor, é de sangue em alguma artéria do meu cérebro...

partida.

PABLO

CARMENCITA

Ainda bem que o senhor não perde o seu senso de humor.

Jogam xadrez, é?

Dr. URBINATI

PABLO

O que há de se fazer?... A vida, como ensinava um barbeiro filósofo que tive nos

Uma boa distração.

áureos tempos da mocidade, nos oferece uma banana atrás da outra: temos que descascálas alegremente, como os macacos... (A Sra. MAGALI e CARMENCITA aparecem à


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LA TORRE

Sra. MAGALI

(Para o Dr. URBINATI.) Não me oponho a transferir a aula de xadrez que lhe

O que acha? Tenho motivo?...

daria, desde que me permita também fazer as honras da casa para o insigne casal de

LA TORRE

visitantes. Dr. URBINATI

Eu dou a palmatória não apenas as duas mãos, também os pés: adoro falar, embora não ignore que o velho Platão, já na Grécia antiga, advertia os indivíduos loquazes

Como não?

com este trocadilho: “Os sábios falam porque precisam dizer alguma coisa, os tolos dizem

LA TORRE

uma porção de coisas porque precisam falar”...

A menos que não gostem de parolar.

Sra. MAGALI

CARMENCITA

Bela citação.

Parolar?

LA TORRE

LA TORRE

Grato.

Sim.

Dr. URBINATI

CARMENCITA

(Para a esposa, espirituosamente.) Você não quis insinuar que o nosso vizinho é

Não conheço esse termo...

um tolo, quis?

PABLO

Sra. MAGALI

Nem eu. O que significa parolar?

Absolutamente. Até porque eu não iria me condenar.

LA TORRE

LA TORRE

Significa falar muito, tagarelar, parolear, enfim, parlar, vem do italiano “parola”,

Meu preclaro Dr. Urbinati, e meu educado Dr. Pablo, perdoem a crítica respeitosa,

sinônimo de “palavra”, mas por extensão aplica-se a conversa sem compromisso, ou seja,

mas os cientistas necessitam aprender a viver como os artistas. Os senhores são

“conversa fiada”, em linguajar chulo.

demasiadamente circunspectos, fechados, falam pouco com medo de serem tomados por

Sra. MAGALI

tolos. No entanto, isto é que é tolice.

(Para CARMENCITA.) Eu não avisei que ele é uma autêntica enciclopédia?

Sra. MAGALI

PABLO

Apoiado.

De conversar nós gostamos. Eu quase não falo, porém a Carmencita fala por três

LA TORRE

ou quatro... CARMENCITA Mentira. Afinal chegou a minha vez de desmentir. Ele realmente quase não fala mas, nem por isso, eu falo tanto. Sra. MAGALI De minha parte, dou a mão à palmatória: sou uma metralhadora, principalmente se estou nervosa. Dr. URBINATI (Para ela, carinhosamente e intencional.) Hoje você não está nervosa, está?

(Entusiasmado) Nós, os artistas, é que somos sábios, assumindo a condição de rolos. Dr. URBINATI (Revidando, com ar trocista.) O seu trocadilho ficou melhor do que o de Platão... LA TORRE Seja. Digo-lhe, todavia, que não é mau negócio ser tolo. E o digo arrimado em Boileau que asseverou, certa feita: “Um tolo sempre encontra outros ainda mais tolos para o admirarem”. CARMENCITA (Com leve malícia.) Outra bela citação.


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Dr. URBINATI

PABLO

(Prosseguindo com o chiste.) Neste caso os tolos então somos nós, porque é

Não, não estou, e lamento não ter a mesma desenvoltura para participar do

evidente que estamos admirando o seu brilho verbal.

diálogo.

Sra. MAGALI

CARMENCITA

Ele tem toda a razão, vale a pena ser tolo.

(Para Dr. URBINATI.) Eu faço votos para o Pablo ser assim tão extrovertido

LA TORRE

como o senhor, quando atingir a sua idade. Se possível antes... Por que todo cientista tem

“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, já prelecionava o eminente bardo

de ser reservado, sisudo? (Para LA TORRE.) A sua crítica é inteiramente válida. Dr. URBINATI

português Fernando Pessoa. Dr. URBINATI

Não no que se refere à minha extrovertida pessoa...

Mais uma bela citação! Você é uma torrente inesgotável de cultura...

PABLO

LA TORRE

Sou meio calado, não por ser cientista; é uma questão de temperamento.

O meu conspícuo vizinho acaba de me exaltar ou me fez uma censura sub-

Sra. MAGALI Eu também sempre fui meio linguaruda por mera questão de temperamento.

reptícia?

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Você não é linguaruda, minha velha.... oh, desculpe, o velho sou apenas eu...

(Rindo) Opa! Este “sub-reptícia” é um preciosismo que humilha a minha pobre formação linguística.

Você simplesmente procede como todo artista, uma vez que também é cultora da música.

LA TORRE

O nosso prezado vizinho disse a verdade, artista que se preza não deixa de ser falador: de

Trata-se de uma expressão muito utilizada na terminologia da processualística

todos aqueles com que travei contato até esta data, o único que não falava muito era gago...

judicial. Por acaso vocês sabem que eu sou advogado, aliás, fui? Sra. MAGALI Nunca nos disse. LA TORRE Bacharelei-me em Direito, exerci a profissão por uns dois anos e logo distanciei-

(Risos) LA TORRE (Dirigindo-se aos outros.) Sou compelido a reconhecer que, como cientista, ele fala até em excesso. CARMENCITA

me Del apara exercer a única atividade que dá sentido ao destino do ser humano, a Arte é

E bem. Estou deslumbranda com a espirituosidade dele.

claro.

LA TORRE Dr. URBINATI

Com a sua verve, você quer dizer? ...

Quer dizer que a nossa Ciência não vale nada?

CARMENCITA

Sra. MAGALI

O que é verve?

Não foi isso que ele pretendeu afirmar.

LA TORRE

Dr. URBINATI (Bonachão) E nem poderia, uma vez que tudo vale a pena se a alma não é pequena.... (Para Pablo.) Você deve estar estranhando este nosso jeito de conversar.

Em linguagem castiça é a capacidade imaginativa e criadora que nos torna capazes de agradar os ouvintes. CARMENCITA Ahn... Pois é, o Dr. Urbinati tem bastante verve, como, aliás, o senhor também. Estamos encantados em assistir este tão elevado... colóquio. Não é, Pablo?


669

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PABLO

PABLO

Colóquio?... É, estamos encantados.

Deixem que eu junto. (Apanha o quadro do chão.)

LA TORRE

Sra. MAGALI

(Para CARMENCITA.) Os meus cumprimentos pelo emprego do termo “colóquio”, pouco usual; por causa dele, certo dia tive ácido entrevero com um sujeito

Mas este quadro sempre esteve mais do que seguro na parede. (Examinam minuciosamente o quadro.)

ignorante do vernáculo; ele achou que eu me comprazia em manejar um vocabulário assaz

Dr. URBINATI

hermético e em sinonímia rebuscada durante determinada conferência. Ora, se eu

Não sofreu nenhum dano.

dissertava na tal conferência sobre o currículum-vitae dos luminares da pintura universal,

Sra. MAGALI

como poderia deslustrar o meu padrão de oralidade?

Graças a DEUS.

CARMENCITA

PABLO

É...

Antes assim.

PABLO

CARMENCITA

É...

É, podia ter sido pior.

Sra. MAGALI

FRANCESCA

É...

Foi uma sorte.

Dr. URBINATI

LA TORRE

(Provocador) Embora os luminares da pintura universal talvez não mereçam

Os numes protegem as obras de arte. PABLO

tanto. LA TORRE Como não merecem? Por acaso o meu dileto vizinho já se deteve na sutil

(Examinando a parte detrás do quadro.) O fio de sustentação está intacto. (Todos olham para a parede em cima, a Sra. MAGALI pondo os óculos.) O gancho não sacou.

apreciação de toda a grandeza expressional de uma obra como a “Mona Lisa”? De toda a

Sra. MAGALI

majestosidade cromática de uma tela de... (Despenca da parede, na sala, o grande quadro

(Para ILMA.) Traga a escada. (Ela vai buscar.)

que retrata o pai da Sra. MAGALI; todos acorrem até lá, assustados, inclusive ILMA E

Dr. URBINATI

FRANCESCA.)

O gancho deve ter afrouxado.

ILMA

Sra. MAGALI

Pronto, começou tudo de novo!...

Será que afrouxou?

Dr. URBINATI

LA TORRE

Como aconteceu isto?

Se o gancho não tivesse afrouxado o quadro não teria caído: isso é elementar,

Sra. MAGALI

como enfatizaria Sherlock Holmes. Por falar em Sherlock Holmes, já leram as magistrais

Um desastre...

estórias de Conan Doyle?

LA TORRE

Dr. URBINATI

Deveras lamentável.

Eu não, meu caro Dom Camilo de La Torre.

CARMENCITA

PABLO

Uma pena se ele se quebrou.

Nem eu.


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Sra. MAGALI

embevecido diante de tanta sugestividade. Este quadro é uma joia de inspiração visual. O

Eu, igualmente não.

autor foi, inquestionavelmente, um figurativista de escol. (ILMA chega, arma a escada

CARMENCITA

para repor o quadro em seu lugar.)

Eu idem.

ILMA

LA TORRE

Por favor, me ajudem.

Incomparável mestre da contística, o Conan Doyle. Ninguém jamais o suplantou

Dr. URBINATI

no enredo de suspense. Vejam o que é o milagre da Arte: um escritor se lança a um gênero

Um momento. (Sobe na escada e inspeciona a estabilidade do gancho.)

tão banalizado como a novela policial e termina imortalizado na literatura.

PABLO

PABLO

Afrouxou?

(Aproximando-se da parede e fixando com o olhar mais de perto o gancho,

Dr. URBINATI

favorecido pela elevada estatura.) É possível que eu esteja enganado mas o gancho não

Não. Está firme.

afrouxou.

LA TORRE

Dr. URBINATI

Mesmo?

(Após verificar o fio de sustentação do quadro.) Ele teria de afrouxar...

Dr. URBINATI

LA TORRE

Firmíssimo, não afrouxou nem um pouco.

Afrouxar ou não afrouxar, eis a questão como dizia Shakespeare, o monumental

PABLO

vate e exímio autor teatral que construiu a glória da dramaturgia inglesa na Idade Média,

Eu não disse?

fazendo esquecer os maiores vultos da tragédia grega, ou seja, Ésquilo, Sófocles e

Sra. MAGALI

Eurípedes.

(Encarando ILMA.) O que você fez?

CARMENCITA

LA TORRE

(Para a Sra. MAGALI, referindo-se a LA TORRE.) Ele de fato é uma

Como, então, este quadro caiu de forma tão abrupta?

enciclopédia. Sra. MAGALI Não falei? Dr. URBINATI

Dr. URBINATI (Para LA TORRE, mais fraternalmente do que com ironia.) Imagine se os numes não protegessem as obras de arte... PABLO

Vamos providenciar a recolocação do quadro.

(Erguendo o quadro.) Pomos no lugar?

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI

A escada não demora.

Vamos lá. (Ajusta o quadro na parede com auxílio de PABLO e LA TORRE.)

PABLO

Sra. MAGALI

É pesado.

(Para ILMA.) Mexeu na posição dele?

LA TORRE

ILMA

É uma obra-prima, do ponto de vista estritamente pictórico. Notem a fluidez das

Não senhora.

sombras, o meio-tom das cores que dominam o conjunto e o detalhamento dos traços. Na

Sra. MAGALI

primeira vez que tive a subida honra de transpor os umbrais da porta desta casa fiquei

No mínimo balançou demais.


673

674

ILMA

Sra. MAGALI

Juro que passei a flanela devagarinho.

Os célebres, que são clássicos como os grandes músicos eruditos.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

(Descendo da escada.) Retornamos para a varanda?

(Para ela.) O nosso querido vizinho, que já é célebre, um dia haverá de ser

ILMA

também um clássico da pintura. Infelizmente, na Arte, para alguém ser clássico precisa

(Apressando-se para fugir de qualquer interrogatório.) Posso levar a escada?

morrer...

Sra. MAGALI Espere aí, por que falou aquilo? ILMA

LA TORRE E na ciência, a regra é diferente? Em todas as esferas da genialidade humana o pedestal da consagração se levanta sobre os tijolos dos séculos transcorridos!

Aquilo o que, madame?

Sra. MAGALI

Sra. MAGALAI

Mais uma bela frase. Esta é de sua autoria.

Quando o quadro caiu você disse: “Pronto, começou tudo de novo”.

LA TORRE

ILMA

É. Eventualmente sou acometido de veleidades estilísticas porque, nos idos

Não me lembro....

longíquos da mocidade, fui poeta; cheguei a publicar um livro de versos que jamais

Dr. URBINATI

reeditei para não prejudicar minha reputação de artista plástico; aliás, espero não vê-lo

(Conciliador) Esses acidentes acontecem.

incluído na minha biografia. Fui também jornalista, tradutor juramentado e professor de

Sra. MAGALI

História. Tudo abandonei, porém, sem pesar nem saudade, quando identifiquei na pintura a

Com os meus objetos de estimação não vão acontecer mais. Este quadro, aquele

minha suprema vocação. Do pretérito remoto conservo exclusivamente o gosto pela sã

sofá e as porcelanas não serão prejudicados pelo desleixo de nenhuma empregada. (Para

leitura porque o artista, de qualquer gênero, torna-se mais sensível e mais criativo na

ILMA.) Se não tiver mais cuidado daqui para a frente será despedida antes de completar um

medida em que dilata a sua visão do mundo. (Ouvem-se uns ruídos secos como

mês, entendeu?

arranhaduras mescladas de suaves batidas.)

ILMA

PABLO

Entendi, sim senhora. (Afasta-se para um canto onde está FRANCESCA,

O que é isto?

enquanto os outros vão para a varanda, reocupando suas cadeiras.)

CARMENCITA

FRANCESCA

Você ouviu?

Amanhã lhe darei uns conselhos.

Dr. URBINATI

ILMA

(Para a Sra. Magali e LA TORRE.) E vocês?

(Em voz baixa.) Que sina, a minha...(As duas levam a escada para a copa-

Sra. MAGALI

cozinha, pegando-a pelas extremidades.)

Eu ouvi.

LA TORRE

LA TORRE

Em que ponto interrompemos a nossa tertúlia?

Ouvimos.

CARMENCITA

CARMENCITA

O senhor estava fazendo um comentário sobre as obras dos seus colegas pintores.

Teria sido um rato?


675

676

Dr. URBINATI

LA TORRE

Não, com certeza.

Singularíssimo.

Sra. MAGALI

PABLO

Nesta área não existem ratos. (Repetem-se os ruídos.)

Vamos ver lá fora.

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

Ouçam... (Os ruídos param, eles permanecem mudos em expectativa.)

(Em voz alta.) Francesca!

PABLO

Dr. URBINATI

Estancaram.

Ver lá fora o quê?

CARMENCITA

CARMENCITA

Tive a sensação nítida de ser aqui dentro de casa.

(Para PABLO.) Não deu para você perceber que foi aqui dentro?

LA TORRE

Sra. MAGALI

Eu também. E minha percepção auditiva é agudíssima.

É próximo de nós.

CARMENCITA

LA TORRE

Seria uma barata? Sra. MAGALI

Quanto a este pormenor o meu convencimento é pleno e absoluto. (Surge Francesca da copa-cozinha; junto com ela vem ILMA, um tanto desconfiada.)

Minha filha, nesta casa nunca apareceu uma barata.

PABLO

CARMENCITA

Pode ser o eco de algo, provindo do lado de fora.

Talvez um grilo ou um inseto maior roçando em... por que não procuramos? (O

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI toma iniciativa, vasculhando a varanda e olhando atrás dos móveis.)

(Para Francesca.) Dê um giro aí do lado de fora e veja o que encontra.

Dr. URBINATI

ILMA

Bicho, grande, pequeno ou médio não tem nenhum.

Vou com ela?

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

É incrível.

Não há necessidade. (Francesca sai pela porta da sala à esquerda.)

LA TORRE

ILMA

Sem dúvida.

Aconteceu alguma coisa?

PABLO

Sra. MAGALI

Se me permitem um apontamento... (Suas palavras são interrompidas por ruídos

Por que pergunta?

mais fores e prolongados.)

ILMA

CARMENCITA

Por nada não...

Ouviram?

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

É só, pode ir.

Meu DEUS, o que pode ser isto?!

ILMA

Dr. URBINATI

Sim senhora. (Recolhe-se à copa-cozinha.)

Interessante...


677

678

PABLO

Dr. URBINATI

Aguardemos.

O que quer ouvir?

CARMENCITA

Sra. MAGALI

Será que passou de vez?

A explicação.

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI

(Para o Dr. Urbinat.i) Estou começando a antipatizar com essa empregada.

(Risonho) Peça para o Pablo... (Pausa) CARMENCITA

(Recomeçam os ruídos com a intensidade anterior.) Dr. URBINATI

(A Pablo.) Eles estão esperando pela sua opinião.

É aqui dentro da varanda.

PABLO

Sra. MAGALI É.

Bom, eu... acho que devemos formar uma opinião sobre o fato depois de pesquisálo exaustivamente, digo, adequadamente.

CARMENCITA

Dr. URBINATI

É.

Como?

LA TORRE

PABLO

Iniludivelmente. (Fitam PABLO.)

O método necessariamente será o da observação...

PABLO

Dr. URBINATI

É... CARMENCITA

É o que estamos fazendo. Eu desde o início da semana em relação ao bloco ou bolha de calor coagulado.

E afinal de contas o que poderá ser isto?

PABLO

Sra. MAGALI

A observação terá de ser sistemática.

Estou ficando cada vez mais nervosa.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

(Para os outros.) Traduzindo a opinião de Pablo, esclareço a vocês que ele, por

Calma.

enquanto, não vai explicar nada.

PABLO

Sra. MAGALI (Para o Dr. URBINATI.) Que negócio é esse de calor coagulado desde o início da

Haverá uma explicação. LA TORRE É óbvio. Sra. MAGALI

semana? Dr. URBINATI Agora complicou... (Virando-se para PABLO.) Você, já que não se dispõe a

Que explicação?

explicar os ruídos daqui da varanda, poderia explicar a ela o calor coagulado em meu

PABLO

gabinete?

Uma explicação natural, lógica. Sra. MAGALI (Para o Dr. URBINATI.) Não diz nada?

PABLO Ainda não travei contato com tal calor. (Ressurgem os ruídos.) Apenas ouvi estes estalos faiscantes.


679

680

LA TORRE

PABLO

Cuja explicação plausível estimaríamos receber do sapiente amigo.

Eu não disse?

PABLO

Sra. MAGALI

Já que insistem vou aventar uma possível causa para estes ruídos...

Santo DEUS, começou a hecatombe!!

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Fenômeno atmosférico?

Calma, calma, calma.

PABLO

CARMENCITA

Não, nem chegaria a tanto. O senhor mesmo não me ensinou que a formulação de

Horrível...

hipóteses deve, invariavelmente, partir do mais simples para o mais complexo? Por que,

Sra. MAGALI

então, não pensarmos nas instalações elétricas?

Nicholas, onde você está?

LA TORRE

Dr. URBINATI

Bem lembrado.

Aqui, não entre em pânico.

PABLO

LA TORRE

Sinais ou efeitos de um pré-curto-circuito... Sra. MAGALI

É em uma ocasião como esta que compreendemos o sentimento de Goethe no leito da morte, clamando: “Luz, mais luz”.

Ai! Minha mão do Céu, tenho pavor de incêndio. (Entra FRANCESCA.)

ILMA

FRANCESCA

(Com voz trêmula.) Meu senhor, não fale em morte!!!...

Olhei tudo, não tem ninguém, animal, nadinha. (Para a Sra. MAGALI.) Por que a

LA TORRE

senhora quis saber? (Ouvem-se ruídos, ela se espanta.) O que é isto??? Virgem!..

Quem acaba de me repreender com voz tão lúgubre?

Sra. MAGALI

FRANCESCA

Obrigada, pode ir. (Francesca recolhe-se à copa-cozinha.)

Foi a nova empregada que saiu correndo da cozinha, eu atrás dela....

LA TORRE

CARMENCITA

Não sei se concordam comigo, entretanto ouso declarar que aos poucos estamos

Não se vê um palmo adiante, como pode esta escuridão ser tão grande?

nos envolvendo em um clima sui-generis.

PABLO

Sra. MAGALI

Estamos no alto de um morro, não no centro da cidade. E a noite é de inverno.

(Torcendo as mãos exageradamente.) Eu estou é ficando com os nervos em

Sra. MAGALI

frangalhos.

Francesca, vá buscar velas se tiver, ou pelo menos uma caixa de fósforos.

CARMENCITA

CARMENCITA

Não é para menos.

Pablo, onde você está?

Sra. MAGALI

PABLO

Primeiro o Nicholas se comporta de maneira extravagante nos últimos dias, agora

Aqui. E você?

esta ameaça da casa pegar fogo... não há quem aguente! (As luzes apagam, a cena

CARMENCITA

mergulha em total escuridão, presumindo-se, pelo ranger das cadeiras, que todos se

Aqui...

levantaram.)


681

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PABLO

FRANCESCA

Mestre, o senhor tem fusível?

Deixei a caixa de fósforos na cozinha.

Dr. URBINATI

CARMENCITA

Não, a nossa rede elétrica nunca deu defeito.

Mas que coisa!

Sra. MAGALI

PABLO

Nicholas, o que eu faço?

Desta vez foi coincidência.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Nada, aguardem chegarem as velas.

A teoria do curto circuito já não faz sentido.

Sra. MAGALI

LA TORRE

(Dá um grito apavorada.) Ai!!!

Ainda bem que as lâmpadas não queimaram...

LA TORRE

CARMENCITA

O que houve de insólito?

O que será isso, Pablo?

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Alguém me apalpou.

Nicholas, vem para junto de mim.

Dr. URBINATI

CARMENCITA

Foi você que esbarrou na minha mão, Magali, controle-se. (Surge à direita a luz

Alguém bateu em mim?

de uma vela, no mesmo instante as lâmpadas acendem.) CARMENCITA Salve!

LA TORRE Eu não saí do lugar, permaneço inerte, imóvel como uma fria múmia em seu sarcófago.

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI

Graças.

Petrificado pelo medo?

PABLO

LA TORRE

Voltou...

Por precaução, apenas.

LA TORRE

Sra. MAGALI

Enfim, a sublime claridade. FRANCESCA

Nicholas, vem logo para perto de mim. (Ouve-se o barulho de uma pessoa que tropeça e de outra que cai.)

(Com cara de boba tendo a vela acesa na mão.) Apago?

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

Que descuidado eu sou!

Claro, é cega? (Ela apaga a vela; imediatamente a luz volta a desaparecer

Sra. MAGALI

retornando a completa escuridão.)

Você caiu, Nicholas?

FRANCESCA

Dr. URBINATI

E agora?

Não.

Sra. MAGALI

Sta. MAGALI

Acende, burra!

Caiu, sim.


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PABLO

LA TORRE

Machucou-se, mestre?

Mexendo não, tocando.

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

Não. E já estou de pé, refeito.

E tocando no meu cravo modinha vagabunda.

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI

Ah, meu Jesus, eu não vou suportar mais tempo esta escuridão.

Mas quem está na sala dedilhando o cravo?

Dr. URBINATI

PABLO

É você, Magali?

Sim, quem?

Sra. MAGALI

LA TORRE

Sou.

Eu não me arredei do lugar um milímetro.

Dr. URBINATI

CARMENCITA

Pode se agarrar em mim.

Quem será?

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

(Ofegante) Sinto-me arrasada, Nicholas. Dr. URBINATI Não precisa me apertar tanto. LA TORRE

Francesca, onde você se meteu? (Silêncio; ela aumenta o tom de voz.) Onde você se meteu, Francesca? FRANCESCA (Ainda longe.) Estou na cozinha, procurando a caixa de fósforos. Tinha posto em

A situação está se tornando periclitante.

cima da geladeira, sumiu. As caixas do armário da copa também sumiram. Não é

Sra. MAGALI

possível!...

(Gritando) Francesca!

Dr. URBINATI

FRANCESCA

E a empregada nova?

(De longe.) Diga...

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI Por que não acende a porcaria dessa vela?

(Alto) Ilma! (Ninguém responde, ela grita com todas as forças.) Ilma!!! (Mais silêncio.)

FRANCESCA

Dr. URBINATI

Não consigo achar a caixa de fósforos. (Ouvem-se sons do cravo que se encontra

Esta agora foi de roer...

na sala, a princípio em notas soltas, depois interpretando fielmente uma melodia do

Sra. MAGALI

folclore popular.)

Por que ela não responde?

CARMENCITA

LA TORRE

Música...

Será que se escafedeu?

Sra. MAGALI

CARMENCITA

É do meu cravo.

O que é “escafedeu”?

PABLO

LA TORRE

Quem está mexendo nele?

Fugir às pressas, afastar-se, esgueirar-se.


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SEGUNDO ATO

CARMENCITA Está tocando o cravo? Sra. MAGALI

Manhã do dia seguinte, umas onze horas. A Sra. Magali e o padre Giordano

É uma analfabeta.

conversam na varanda, sentados, ele à cabeceira da mesa. Paralelamente, no Gabinete,

PABLO

cena muda entre o Dr. Urbinati e Pablo.

Há mais alguém em casa? Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

Não. Há, Magali?

Pois é...

Sra. MAGALI

Pe. GIORDANO

Não.

(É um homem um tanto quanto soturno, dentro de uma batina preta modelo

PABLO

ultrapassado; semblante austero e contraído.) Sim...

Então só pode ser ela.

Sra. MAGALI

LA TORRE

E então?

Esta dedução é mais que elementar.

Pe. GIORDANO

CARMENCITA

É um caso sumamente delicado.

Por que a gente não tenta ir até a sala e tirar a prova?

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Estou bastante agradecida por ter vindo logo.

Como, se não enxergamos nada?

Pe. GIORDANO

Dr. URBINATI

Podia ter chegado antes, a Missa acabou cedo, poucos quiseram comungar. O

Estou meditando sobre o que faremos se não aparecerem as caixas de fósforos... (Os acordes do cravo cessam de súbito e, instantaneamente, as luzes acendem; eles se dirigem celeremente para a sala onde não se vê qualquer pessoa.) Sra. MAGALI

problema foi descobrir um motorista disposto a subir este morro. A senhora sabe como são os carros de praça hoje em dia. Sra. MAGALI DEUS recompensará o seu sacrifício. E eu também recompensarei, além de pagar

(Estupefata) Como pode ter acontecido??? (Chega até a porta, obre-a, olha para

o táxi todo o tempo que for necessário ele ficar aí esperando. Porém, Padre Giordano, por

fora) Ninguém!... (Ouve-se um gemido na varanda, todos correm para lá e deparam com

favor, por tudo que é mais sagrado, não saia daqui sem fazer uma benzição completa na

ILMA estirada no chão, semidesmaiada.)

casa. O senhor não calcula como estou amedrontada. O eletricista que veio ver nossa instalação de luz faz meia hora inspecionou os fios de ponta a ponta, os registros, os interruptores, e foi embora com ar de riso, garantindo que nenhuma lâmpada podia ter apagado por si mesma como aconteceu ontem à noite. E o cravo, como é que o meu cravo tocou sozinho, Padre?


687

688

Pe. GIORDANO

Sra. MAGALI

Tem razão. Fatos como esses, quando não são fantasias da imaginação, têm que

Mas que coisa!

ser artes do Diabo. Que outra explicação mereceriam? Somente a incredulidade dos materialistas e ateus nega os poderes de Satanás.

Pe. GIORDANO Dê-me um momento. (Enfia a mão no largo bolso da batina, retira um Breviário

Sra. MAGALI

e passa a balbuciar uma prece caminhando de um lado para o outro; a Sra. Magali

Não seriam fenômenos provocados por almas do outro mundo? Pelos mortos,

gesticula para Francesca como quem diz: “nada temos a fazer” e afinal, senta-se de novo,

como alegam os espíritas?

desalentada.)

Pe. GIORDANO

FRANCESCA

A senhora anda lendo livros do Espiritismo?

(Depois de recolher na bandeja o que restou da xícara quebrada.) Vou buscar um

Sra. MAGALI Não, Padre, nunca li nem deposito a mínima fé neles. Pe. GIORDANO Se anda lendo me diga porque tudo fica esclarecido e não haverá reza que dê jeito. Aqueles que se ocupam em atrair os demônios têm de aturá-los e não devem se queixar. Sra. MAGALI Pelo amor de DEUS não faça tal juízo de mim, se eu o chamei com tamanho

novo café. Sra. MAGALI Um minuto, não arreda o pé daqui que ainda permaneço abalada. (Aguardam o término da oração do Padre Giordano, cada vez mais ressabiadas.) Pe. GIORDANO Pronto, já encomendei esta casa à misericórdia de Nosso Senhor Jesus-Cristo. Penso que por enquanto basta.

interesse é porque confio unicamente na palavra da Igreja. O senhor é que é autoridade no

Sra. MAGALI

assunto, eu e o Nicholas não entendemos absolutamente nada dessas questões ligadas ao

E se não bastar?

sobrenatural. Por falar no Nicholas, vou avisar a ele que temos o prazer da sua visita.

Pe. GIORDANO

Aceita almoçar conosco? (Francesca aparece com uma bandeja, serve cafezinho; o Padre

Veremos depois...

Giordano ergue-se, apanha a sua xícara e, justo no instante em que volta a sentar-se, a

Sra. MAGALI

cadeira arreda do lugar incompreensivelmente, sem ninguém puxá-la; ele cai

Se os ruídos recomeçarem, as lâmpadas se apagarem e o cravo tocar sozinho?

desastradamente.)

Pe. GIORDANO

Pe. GIORDNO

Aí... Talvez...

Arre!...

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Desculpe, Padre, mas por que o senhor não realiza logo um exorcismo?

Valha-me, minha Nossa Senhora!

Pe. GIORDANO

Pe. GIORDANO

O exorcismo é uma prática do ritual religioso que a Santa Igreja só executa

“Vade retro, Satanás!”... (Faz o sinal da cruz.)

através de alguns dos seus Ministros, especialmente treinados para lidar contra os Anjos do

Sra. MAGALI

Mal. Apesar de carregar nas costas tantos anos de sacerdócio católico, eu não sou

O senhor se feriu? (Ajuda-o a levantar-se, assessorada por Francesca.)

exorcista.

Pe. GIORDANO

Sra. MAGALI

Estou bem.

Ah, não?


689

690

Pe. GIORDANO

Pe. GIORDANO

Não.

Exorcismo se faz em pessoas, não em lugares. Se existisse nesta casa uma pessoa

Sra. MAGALI

endemoniada seria o caso de se providenciar um exorcismo sobre ela, mas como não existe

E o que faremos para conseguir um, se houver necessidade?

ninguém que...

Pe. GIORDANO Teremos de apelar para o Arcebispado.

Sra. MAGALI Pare! Quem sabe se não temos entre nós alguém sob a influência dos demônios?!

Sra. MAGALI

Estou me lembrando de que todas as coisas ruins, espantosas, acontecidas debaixo deste

Como? De que forma?

teto, tiveram início depois de contratarmos a nova empregada. E ela às vezes demonstra

Pe. GIORDANO

uma atitude tão estranha... Francesca, chama a Ilma.

Através de um relatório, documentando as ocorrências e as circunstâncias em que elas se verificaram. Convém descrever tudo minuciosamente, como se fosse um inquérito.

FRANCESCA Vou já. (Sai para a copa-cozinha.)

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

É assim tão complicado?

Essa empregada, que veio para cá semana passada, pode ser a causa de tudo...

Pe. GIORDANO

pode, sim... ora se pode!... meu DEUS, como não desconfiei há mais tempo?...

É.

Pe. GIORDANO

Sra. MAGALI

Por que suspeita dela?

Juguei que seria mais simples...

Sra. MAGALI

Pe. GIORDANO

Por inúmeros motivos. Para começar... (IlMA aparece, conduzida por

Porque ignora até onde vão os poderes do Príncipe do Inferno. O Diabo tem sob

FRANCESCA.)

suas ordens legiões de demônios, todos eles capazes de cometer as maiores crueldades, os

ILMA

mais horríveis crimes.

A senhora me chamou?

FRANCESCA

Sra. MAGALI

“Vôte”!...

Sim, vamos ter um entendimento seríssimo. Sente-se.

Sra. MAGALI

ILMA

(Tremendo) Minha Santa Mãe do Céu! (Ensaia um choro contido.) Eu vou acabar

(Acanhada) Eu falo mesmo em pé.

me desesperando, juro que vou.

Sra. MAGALI

Pe. GIORDANO

(Ríspida) Sente-se!

Acalme-se. A situação ainda não atingiu o ponto crítico.

ILMA

Sra. MAGALI

Sim senhora. (Obedece)

Por caridade, Padre Giordano, mesmo de maneira precária, extra-oficial, faça um

Sra. MAGALI

ligeiro exorcismo antes de ir embora, pelo menos aqui na varanda e na sala.

Por que você trouxe um verdadeiro pandemônio para a nossa casa? ILMA Pandemônio?


691

692

Sra. MAGALI

ILMA

Sim. Feitiçaria, tumulto, assombração, o diabo?

Não consigo ficar trabalhando muito tempo em lugar nenhum... me ajudem, senão

ILMA

acabo enlouquecendo... Tratem de mim, não me mandem embora...

Eu...

LA TORRE

Sra. MAGALI

(Surge à esquerda, na porta da sala que estava entreaberta.) Bom-dia, posso

Nós sempre vivemos na paz do Senhor, em quietude e harmonia. Você pôs os pés

entrar?

aqui, acabou-se! Acabou-se a tranquilidade que tanto cultivamos. Por acaso é alguma

Sra. MAGALI

macumbeira?

Chegou na melhor ocasião.

ILMA

LA TORRE

Não senhora, juro que não.

(Penetra até a varanda, cumprimenta o padre GIORDANO.) Tenho novidades.

Sra. MAGALI

Sra MAGALI

Tem parte com o Capeta? Mexe com almas penadas?

Nós também.

ILMA

LA TORRE

Dona, eu... eu... eu... Sra. MAGALI

Telefonei hoje cedinho para um amigo meu que é parapsicólogo e relatei as ocorrências de ontem à noite. Ele me explicou tudo com extrema facilidade.

Responda!!!

Sra. MAGALI

ILMA

Já sabemos que são artes do demônio. (Aponta para IlMA.) Ela é a culpada.

(Cobre o rosto com as mãos e chora.) Eu... eu não sei o que se passa comigo... me

ILMA

ajudem... eu não seu o que tenho... eu não sei... FRANCESCA

(Para o padre GIORDANO, com olhar súplice.) Padre, me salve, eu não tenho culpa de nada, não é pela minha vontade que acontece...

Esta, agora!

LA TORRE

Sra. MAGALI

Não são artes do demônio, Dona Magali, são prodígios do inconsciente. O

É ela Padre, com toda a certeza. É ela que atrai os demônios.

inconsciente é que produz os fenômenos de “poltergeist”, exatamente aqueles com os quais

Pe. GIORDANO

nos defrontamos ontem à noite.

(Para ILMA.) Minha filha, conte para nós como se entregou aos desígnios de Satanás.

Sra. MAGALI Inconsciente? Que inconsciente? (Volta a apontar para a ILMA.) Ela confessou

ILMA (Ainda soluçante, porém com firmeza de sinceridade na voz.) Eu não tenho nada a ver com Satanás... Sou uma boa católica, batizada e crismada... Não sei por que em todas as casas em que me emprego acontecem esses atropelos...

que os demônios se manifestam em todas as casas onde se emprega. LA TORRE Trata-se de uma sensitiva. Os fenômenos de “poltergeist”, para eclodirem, precisam de um epicentro, isto é, de uma pessoa dotada de poderes paranormais.

Pe. GIORDANO

Sra. MAGALI

Em todas as casas?

Os poderes dela são de atrair as maquinações do Diabo.

Sra. MAGALI

Pe. GIORDANO

Eu não disse?

Quanto a isso não há a menor dúvida.


693

694

FRANCESCA

LA TORRE

Quem diria!

E uma luneta?

LA TORRE

CARMENCITA

Se me permitem o questionamento analítico do assunto, discordo frontalmente.

Foi o que eu vi.

Segundo a abalizada teoria do meu amigo parapsicólogo, nem o Diabo, nem os Espíritos de

Sra. MAGALI

qualquer natureza têm participação nessa classe de fenômenos que resultam, estritamente,

Era só o que faltava!... (Saem os quatro para o jardim.)

de energias mentais liberadas pelo inconsciente de uma pessoa em estado de hiperestesia.

Passa-se a ouvir as falas da cena no gabinete de trabalho, até então muda.

No geral alguém com traumas, frustações e violentos desejos reprimidos.

Dr. URBINATI

Pe. GIORDANO

Quero agora lhe mostrar uns dados que sempre mantive em sigilo.

Está enganado juntamente com o seu amigo. A atuação demoníaca é responsável

PABLO

por todos os fatos.

Sobre a sua equação?

LA TORRE

Dr. URBINATI

Negativo, reverendo. Consoante os ensinos da Parapsicologia, a mente humana é

Sim.

capaz de produzir os fenômenos que na antiguidade eram atribuídos ao Diabo ou aos

PABLO

demônios e depois, sobretudo com o advento da Doutrina de um tal de Allan Kardec,

Estou curioso.

começaram a ser encarados como obra dos defuntos. A mente humana pode apagar e

Dr. URBINATI

acender luzes sem a interferência de corrente elétrica, pode fazer um cravo tocar sozinho, pode até fabricar fantasmas que conversam com supostos parentes na maior intimidade. Sra. MAGALI

Anteontem dei a maioria dos retoques finais, fiz as retificações básicas, já posso lhe expor o ponto central da minha teoria. (Tira do bolso um molho de chaves, abre a gaveta de uma escrivaninha; surpreende-se ao constatar que está vazia) Cadê???...

Mas pode como?

PABLO

LA TORRE

Procure em outro local.

Isto a Parapsicologia não sabe. Porém explicar, explica...

Dr. URBINATI

CARMENCITA

Que outro local?

(Entra pela porta da sala, que continua entreaberta.) Gente, que coisa

PABLO

estranhíssima! Em uma poça de lama, no jardim, tem uma pasta verde de documentos e

Guardou aí mesmo?

uma luneta. Achei tão esquisito que não quis nem tocar, venham ver.

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

Eu tranquei nesta gaveta uma pasta com as últimas notas sobre a equação.

(Para FRANCESCA e ILMA.) Cuidem do almoço.

Lembro-me perfeitamente, recordo até que coloquei ao lado minha luneta! Ninguém

ILMA

poderia ter tirado daqui aquela pasta e a luneta.

(Humildemente) A senhora vai me despedir?

PABLO

Sra. MAGALI

Quem sabe não pensou em guardar e esqueceu? Esses lapsos são comuns em

Ainda hoje decidirei. (As duas saem para a copa-cozinha.) Pe. GIORDANO Pasta de documentos em poça de lama?

gente como nós.


695

696

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Tenho a mais absoluta convicção de que tranquei nesta gaveta, em uma pasta

É claro que fez a emenda.

verde, todos os meus derradeiros cálculos, junto com a luneta. Como tiraram daqui? E por

PABLO

que tiraram?

Não. Não fiz.

PABLO

Dr. URBINATI

A sua esposa, ou as empregadas, não teriam aberto as gavetas para limpar?...

Ora não fez, Pablo, que gracinha...

Dr. URBINATI

PABLO

Jamais fariam isso.

Estou lhe garantindo que não me aproximei deste quadro-negro.

PABLO

Dr. URBINATI

O senhor me disse há pouco que iniciou os últimos cálculos no quadro-negro.

Como não? PABLO

Apagou? Dr. URBINATI

Dou-lhe a minha palavra de honra.

Não, venha olhar. (Leva-o para um canto do Gabinete, onde existe um quadro-

Dr. URBINATI Fala sério?

negro parcialmente encoberto; fita-o e recua um passo.) Mas o que é isto??? PABLO

PABLO

Isto o quê?

Eu não teria ousadia de alterar um trabalho seu, principalmente dentro da sua casa,

Dr. URBINATI

sem lhe pedir autorização. Seria uma falta injustificável, apesar da liberdade que o senhor

Você emendou sem me deixar ver?

me dá.

PABLO

Dr. URBINATI

Eu???

Pablo, não foi você mesmo que entrou aqui ontem à noite, depois que fui deitar, e

Dr. URBINATI Espere... (Pega giz, faz umas operações no quadro-negro; PABLO assiste intrigado.)

emendou ali? PABLO Não. De jeito nenhum. Não vê que eu não poderia ter feito isso?

PABLO

Dr. URBINATI

Mestre, eu lhe asseguro...

É... não teria como adivinhar... mas quem seria o autor desta emenda?

Dr. URBINATI

PABLO

Corretíssima, a sua emenda. Como é que não concebi tal hipótese?

Ignoro. Foi outra pessoa, não eu.

PABLO

Dr. URBINATI

Nem eu a concebi.

Outra pessoa daqui de casa? Você está brincando.

Dr. URBINATI

PABLO

Como você conseguiu entender o meu raciocínio, para corrigi-lo sem saber onde

Mestre, o senhor nunca...? Bobagem...

eu pretendia chegar? PABLO Mas eu não corrigi nada.

Dr. URBINATI (Refletindo) Bobagem, não... Eu também lhe faria a pergunta... (Olham-se)


697

698

PABLO

PABLO

É evidente que nenhum de nós dois é sonâmbulo.

Fale, mestre.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Uma vez mais lhe peço, seja franco comigo. Por acaso transita pela sua cabeça,

Não adianta escamotear mais a questão.

ainda que vagamente, a ideia de uma perturbação mental minha?

PABLO

PABLO

Qual?

Insisto em que admito qualquer explicação para esses fatos, menos sua

Dr. URBINATI

insanidade. Conheço-o o suficiente para saber que se encontra em plena posse de suas

Você já fez uma reflexão profunda sobre a teoria da antimatéria?

faculdades psíquicas.

PABLO

Dr. URBINATI

Não, sei apenas que depois da descoberta do antinêutron, pelo Dr. Léon

Obrigado.

Ledermam, outros colegas identificaram o antipróton e o antineutrino. Se estes elementos

PABLO

estão embutidos nas estruturas atômicas girando em posição inversa... (Faz uma pausa.)

Que conversa mais desapropriada, a nossa.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Que dedução tira daí?

É...

PABLO

PABLO

É difícil...

Troquemos de assunto.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Para mim, não. Deve existir um universo paralelo. Uma outra dimensão da vida,

Não posso esquecer meus cálculos. Das suas, uma: ou a Magali retirou da gaveta

oposta ou justaposta àquela que percebermos com as nossas limitações sensoriais. Deve

trancada os meus papéis e a luneta, hipótese sem o menor sentido, ou uma das empregadas

haver uma faixa de espaço-tempo transcendente, abrigando uma outra realidade...

os furtou, hipótese igualmente inaceitável. E a emenda do quadro-negro? Pablo, você não

Raciocine comigo: faça de conta que nos achamos diante de algumas estrelas; as reações

vê que isso tudo é terrivelmente absurdo?

termonucleares queimam todo o combustível dessas estrelas e elas se apagam, tornam-se

PABLO

anãs brancas; depois perdem calor, diminuem seu raio; com a redução do diâmetro o

Vejo.

movimento de rotação sobre si mesmas se acelera, a densidade se concentra e eis que as

Dr. URBINATI

estrelas se transformam em pulsares; somente são reconhecidas através dos sinais de

É fantástico.

radiação eletromagnética que emitem ; em dado momento há uma espécie de exaustão

PABLO

gravitacional e os pulsares diminuem seu raio rapidamente porque os próprios nêutrons,

Sim...

esmagados uns contra os outros, terminam por fundir-se em uma massa invisível de

Dr. URBINATI

colossal densidade; temos, assim, em lugar de estrelas, "buracos-negros”; a gravitação na

E o que me diz?

superfície da estrela morta vai aumentando sem cessar, pois as forças gravitacionais sobre

PABLO

a superfície variam com o inverso do quadrado do raio; como o espaço mais se curva

O que posso dizer?

quanto mais intensa é a gravitação, chega-se a um nível de achatamento em que ele se

Dr. URBINATI

curva sobre si mesmo, criando uma bolsa independente com um espaço-tempo próprio, isto

Meu rapaz...

é, formando um universo paralelo...


699

700

PABLO

PABLO

Onde o senhor quer chegar com essa elucubração, mestre?

Hum!...

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Na possibilidade teórica da existência de um outro mundo que faça conexão ou se

Magali, você abriu a gaveta em que a pasta e a luneta se encontravam trancadas?

interpenetre ocasionalmente com o nosso... Um outro mundo de onde brotem as bolhas de

Sra. MAGALI

calor coagulado... Um outro mundo de onde venham seres inteligentes, capazes de fazer

Eu nunca abro suas gavetas, não sabe disso?

ruídos, apagar luzes, tocar cravos, serem vistos... capazes até de retirarem pastas e lunetas

Dr. URBINATI

de gavetas trancadas...

(Novamente para PABLO.) Ouviu?

Retornam do jardim a Sra. Magali, La Torre, Carmencita e o Padre Giordano. A ação verbal volta a se concentrar na sala.

PABLO Hum!...

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI

(Com uma pasta verde e uma luneta nas mãos.) O Nicholas, quando souber que

(Para a Sra. MAGALI.) Chame a Francesca e a outra empregada.

alguém lançou na lama estas coisas dele, vai ficar furioso. Quem terá feito isso? Só pode

Sra. MAGALI

ter sido a endemoniada... Vou despedi-la agora.

(Afastando-se para a copa-cozinha.) Chamo as duas e mando uma já embora.

Pe. GIORDANO

LA TORRE

Não convém facilitar...

Meu caro Dr. Urbinati, os eventos que se verificam nesta aprazível residência são

LA TORRE

sobremodo originais. Dir-se-ia que os arcanos imperscrutáveis da Natureza escolheram

(Para CARMENCITA.) Dormiu tranquila ontem à noite depois daquilo tudo?

este ambiente para ilustrar a tese de um amigo meu, conceituado parapsicólogo. Se me

CARMENCITA

permite, aproveitando os esclarecimentos dele posso explicar os fenômenos que ontem

Acordei com pesadelo três vezes.

presenciamos sem recorrer a argumentos infantis, nascidos da crença no Diabo, demônios e

LA TORRE

espíritos.

Não foi para menos. (O grupo se dirige para a varanda; simultaneamente o Dr. URBINATI e PABLO saem do Gabinete; reúnem-se todos na varanda, apreensivos.) Dr. URBINATI

Pe. GIORDANO Eu protesto. (Encarando LA TORRE.) O senhor não tem o direito de menosprezar o ensinamento da Santa Igreja com essa sua ciência de meia tigela.

(Para a Sra. MAGALI.) Onde estava essa pasta e a luneta?

LA TORRE

Sra. MAGALI

Ter, tenho. Por que não? Sou um livre-pensador, não um beato.

Em uma poça de lama no jardim. (Entrega a ele.)

Pe. GIORDANO

Dr. URBINATI

Mas não possui qualificação para contestar as verdades divinas, contidas nas

(Limpando os objetos com um lenço.) Como foi possível acontecer isso?

Escrituras Sagradas. A Bíblia tem revelações que atestam os portentosos poderes do

Sra. MAGALI

Príncipe do Inferno para aterrorizar os pobres mortais e para jogá-los no abismo da

E eu sei?

perdição, fazendo-os abandonar a redentora fé católica.

Dr. URBINATI

LA TORRE

(Para PABLO.) Viu?

Eu não tive a intenção de desconsiderar a sua fé.


701

702

Pe. GIORDANO

Dr. URBINATI

Porém acaba de fazer isso.

(Para ILMA.) E você?

LA TORRE

ILMA

Perdoe-me. Contudo, não abdico da minha opinião.

Eu não, juro que não, doutor.

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

Parabéns por fazerem as pazes como bons cavalheiros. LA TORRE

(Para ILMA.) Desde a sua chegada, tudo de ruim vem nos acontecendo. Por obra e graça dos demônios que você atraiu para cá.

Eu somente queria demonstrar, de acordo com a Parapsicologia, como esses

LA TORRE

fenômenos são explicáveis à luz de forças que já são conhecidas.

Dos demônios não, do inconsciente dela.

Dr. URBINATI

Pe. GIORDANO

Meu queridíssimo Dom Camilo de La Torre, a esta altura começo a me interessar

Dos demônios, sim.

apenas por forças desconhecidas para explicar os fenômenos que nos acabrunham. Em se

PABLO

tratando de efeitos físicos só existem, cientificamente, quatro forças conhecidas: a

Talvez fosse prudente não fazermos um juízo apressado, sem observarmos os

eletromagnética, que liga os elétrons aos átomos e os átomos entre si; a nuclear forte, que

fatos mais detidamente.

liga os nêutrons, os prótons e os quarks; a nuclear fraca, que responde pela relação entre as

Sra. MAGALI

partículas leves e pesadas; e a gravitacional. Nenhuma destas quatro forças, nem os

Nicholas, antes de você chegar ela confessou que não consegue ficar empregada

devaneios da sua Parapsicologia, explicam de maneira convincente COMO uma pasta e

muito tempo em lugar nenhum, porque para onde vai provoca assombrações.

uma luneta podem sumir de dentro de uma gaveta trancada, COMO pode se formar um

FRANCESCA

bloco de calor coagulado, COMO os cálculos que eu deixei no quadro-negro puderam ser

É, confessou.

emendados e corrigidos sem ninguém conhecer os pontos-chaves do meu raciocínio. Os

Sra. MAGALI Só nos resta mandá-la embora imediatamente. O Padre Giordano não pode

fatos que você testemunhou ontem à noite constituem apenas uma fração do formidável enigma que tomou esta casa de assalto desde o início da semana.

expulsar os demônios sem um exorcismo completo, e não tem preparo nem autorização

LA TORRE

para fazê-lo; precisaria primeiro se comunicar com o Arcebispo e depois escrever um

Registraram-se outros fenômenos aqui além daqueles?

relatório que poderia se converter em inquérito, acarretando um escândalo para a nossa

PABLO

reputação, principalmente para a sua de cientista.

Seguramente.

Pe. GIORDANO

CARMENCITA

Quanto a tal detalhe nada há a temer, a Igreja não divulga os casos dessa

Foi?

categoria.

Sra. MAGALI

CARMENCITA

(Voltando com Francesca e ILMA.) Pronto, vamos colocar tudo em pratos limpos.

Haverá problema se a imprensa souber.

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI Cedo ou tarde saberá. E fará o alarido, até fotografia da nossa casa publicarão nos

Francesca, você abriu alguma gaveta trancada no meu gabinete? FRANCESCA Não senhor, DEUS me livre de tamanho desatino.

jornais.


703

704

Dr. URBINATI

apagaram a luz uma porção de vezes. Fizeram barulho e até tocaram o cravo sem auxílio

Bem, façamos um balanço geral da situação. O que você me diz disso tudo,

de ninguém; no entanto não estragaram, não danificaram um único objeto.

Pablo?

CARMENCITA PABLO

Isso é exato.

A possibilidade de ser um escândalo é preocupante; ele certamente afetaria seu

Sra. MAGALI

prestígio perante a comunidade científica.

É. Apenas nos assustaram

Dr. URBINATI

FRANCESCA

Eu pergunto o que me diz sobre o conjunto desses fatos chocantes para a nossa

E como assustaram!

formação acadêmica. PABLO Ainda acho prematura qualquer conclusão.

Pe. GIORDANO Provavelmente continuarão assustando, porém sem destruir nada de valor, podem ficar tranquilos.

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

E você, La Torre, o que me diz?

Já é um consolo...

LA TORRE

Ouve-se um estrondo dentro do armário de portas envidraçadas; as porcelanas

Reafirmo que o caso sob exame, “soi-disant” sobrenatural, resume-se em

todas se quebram. Pânico geral. ILMA cai, em transe. Francesca corre de um lado para o

fenômenos de “poltergeist” que não são causados nem por demônios nem por Espíritos, e

outro como uma barata tonta, até sentar-se com falta de ar. A Sra. MAGALI é acometida

sim por energias originárias do Inconsciente. (Designando ILMA.) Essa moçoila é uma

de uma crise de tremores. O Padre GIORDANO pega o seu Breviário no bolso e põe-se a

sensitiva, uma paranormal, pelos seus conteúdos emocionais não resolvidos e, sobretudo,

rezar. CARMENCITA agarra-se a PABLO. Este, apesar de controlar-se, demonstra não

pela mecânica do seu psiquismo, a desencadear as mais espetaculares ocorrências em

ter ficado totalmente imune ao impacto do imprevisto. LA TORRE tenta disfarçar o

qualquer meio ambiente que a rodeie. Eis tudo. O resto, como diria Shakespeare, é

nervosismo coçando a careca. O Dr. URBINATI, mais sereno do que todos os outros,

silêncio.

aproxima-se do armário para inspecioná-lo. Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Para o Padre GIORDANO.) Qual é o seu pronunciamento definitivo?

Que estrago!...

Pe. GIORDANO

Sra. MAGALI

Já o fiz. Andamos às voltas com uma atuação demoníaca. Não obstante, pensando

As minhas porcelanas chinesas!!!

bem... acho que não devem se apavorar, pois o Diabo e seus anjos perversos produzem

CARMENCITA

essas façanhas exclusivamente para desviar os cristãos do caminho reto da fé, não para lhes

(Para PABLO, murmurando.) Meu amor, vamos logo para a nossa casa.

impor prejuízos materiais. O que os demônios querem não é destruir nada de valor da casa,

LA TORRE

é simplesmente fazê-los desprezar os dogmas salvadores da Santa Igreja.

É o cúmulo do inusitado!...

Dr. URBINATI

FRANCESCA

E os meus cálculos, preciosíssimos, que foram parar na lama?...

(Para a Sra. Magali, indicando ILMA no chão.) O que a gente faz com ela?

Pe. GIORDANO

Pe. GIORDANO

Pura tentação, para levá-lo a acreditar no Espiritismo. O diabo é ladino. Não

Recorramos à oração.

reparou os resultados de ontem à noite? Pelo que a sua esposa me contou, os demônios


705

706

Dr. URBINATI

LA TORRE

Se são demônios mesmo, Padre, parecem muito interessados em desmenti-lo.

(Puxa uma cadeira até onde ILMA se encontra, suspende-a e senta-a, secundado

Sra. MAGALI

pelo Dr. URBINATI.) Está desacordada, mas se a Parapsicologia não tem método para

(Para Francesca, referindo-se à ILMA.) Não toque nela, neste instante está

despertar sensitiva, eu tenho. (Aplica uma bofetada nela.)

enfeitiçada e o Diabo pode passar para a sua pele.

CARMENCITA

FRANCESCA

(Penalizada) Não faça isto!

Desconjuro!

LA TORRE

Dr. URBINATI (Para LA TORRE.) E agora, o que nos cumpre fazer de acordo com a Parapsicologia?

Já fiz... Em nome da Arte, não da Ciência. Aposto que dá certo. (Aplica outra bofetada.) Dr. URBINATI

LA TORRE

Basta.

Nada...

CARMENCITA

Dr. URBINATI

Que brutalidade.

(Para PABLO.) Ainda acha cedo para tirarmos uma conclusão?

ILMA

PABLO

(Abre os olhos.) O que foi???

Não sei...

LA TORRE

Sra. MAGALI

(Vitorioso) Viram só como entendo do assunto?!

Ai, minha Nossa Senhora , esta tremedeira não tem fim!...

Sra. MAGALI

FRANCESCA

(Para ILMA.) Vá arrumar a sua maleta e suma daqui!

Nem a minha falta de ar!...

Dr. URBINATI

LA TORRE

Calma, Magali, calma, ela não tem culpa.

(Entre os dentes.) Por esta eu não esperava...

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI Será que vocês têm condições de se recompor psicologicamente e me ajudar a recolher estes cacos de porcelana? (Todos se movimentam.)

Como não tem culpa? Quem provocou esses transtornos, inclusive a verdadeira desgraça da liquidação das minhas porcelanas chinesas? Padre Giordano, convença o Nicholas de que o Diabo entrou nesta casa com ela e somente com ela sairá.

Sra. MAGALI

Pe. GIORDANO

Não em conformo com tamanha tragédia. Minhas porcelanas do século

Sou obrigado a admitir que a paz retornará a este lar se ela se mudar. Infelizmente,

dezessete!... Dr. URBINATI (Olhando para ILMA no chão.) Não é melhor benzê-la antes?

a nossa irmã está em vias de uma integral possessão demoníaca. LA TORRE Possessão demoníaca é algo estapafúrdio, todavia não padece dúvida de que a

Pe. GIORDANO

moça é o epicentro dos fenômenos, e com o seu afastamento do ambiente os mesmos

Por enquanto não precisa. (Dá proceguimento à sua oração.)

cessarão.


707

708

PABLO

Sra. MAGALI

Mestre, sem entrar no mérito da questão, sou também de parecer que o

Pode ter sido, não, Nicholas, foi! Ela foi responsável?

afastamento da moça seria uma medida oportuna.

Pe. GIORDANO

Dr. URBINATI

Aprovo tal ponto de vista.

(Para CARMENCITA.) Concorda com a opinião do seu ponderado marido?

LA TORRE

CARMENCITA

Eu, idem, desde que a figura fantasiosa do Diabo não entre em cena.

Inteiramente.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Porém se foi responsável não foi culpada, porque a sua vontade pessoal nada teve

(Para FRANCESCA.) E você, o que pensa?

a ver com os fenômenos. Em segundo lugar, esta infeliz moça necessita de urgente amparo

FRANCESCA

e nós faltaríamos com o dever de solidariedade humana se a entregássemos à própria sorte.

Eu?...

Em terceiro lugar, ela vai continuar trabalhando aqui porque, valendo-me de suas

Dr. URBINATI

faculdades, desejo pesquisar a fundo esses fenômenos que contrariam, aparentemente,

(Risonho) Sim. Estou promovendo uma eleição democrática sobre a permanência

todas as leis da Física.

ou a expulsão de sua colega.

PABLO

FRANCESCA

Isso é uma tolice, mestre, desculpe-me; é quase uma loucura.

(Após curta pausa.) Penso que a patroa tem razão. Sinto compaixão dela, uma

Dr. URBINATI

pobre coitada, mas não deve ficar aqui não.

Tolice, Pablo, é você se fechar no círculo estreito do conhecimento oficial. Quase

Dr. URBINATI

loucura, meu filho, é você desdenhar da hipótese do universo paralelo. Tem que existir

Bom, já que há unanimidade... ela vai continuar empregada nesta casa.

uma quarta dimensão! Como você ainda não percebeu intuitivamente tão grande

Sra. MAGALI

probabilidade?...

O quê???

Sra. MAGALI

LA TORRE

Nicholas, eu não sei o que pensar nem dizer.

Como?...

Dr. URBINATI

Pe. GIORDANO

Então não pense nem diga...

Tem coragem de desafiar a Providência Divina?

Sra. MAGALI

PABLO

Mas que ela sairá daqui já-já, sairá.

Talvez seja uma temeridade...

Dr. URBINATI

CARMENCITA

Desiluda-se, minha velha, a moça ficará.

Talvez, não, é...

Sra. MAGALI

FRANCESCA

Não ficará.

(Para a Sra. MAGALI.) Eu ouvi direito o que ele disse?

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Ficará, sim.

Meus amigos e minha amada esposa, prestem atenção: em primeiro lugar, esta

FRANCESCA

moça pode ter sido responsável por todas as nossas agruras...

(Para si mesma.) Que embrulhada.


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710

LA TORRE

CARMENCITA

Lamento se a nossa presença...

Meu pai afirmava que o vinho depura o sangue.

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

(Com bom humor.) Vocês estão tendo o privilégio de assistir à nossa primeira

Era médico?

briga em mais de cinquenta anos de casamento.

CARMENCITA

Pe. GIORDANO

Não, era dono de um bar. (Todos riem.)

É hora de ausentar-me...

LA TORRE

Dr. URBINATI

Se depura o sangue eu não sei, porém que apura a inspiração, tenho certeza.

Não, Padre, não irá sem almoçar conosco. Por favor.

Pe. GIORDANO

CAMENCITA

Jesus o repartiu com seus discípulos na última Ceia.

Depois do almoço nós iremos...

CARMECITA

Dr. URBINATI

(Para Sra. MAGALI.) Não consigo esquecer...

Que pressa é esta? Ainda necessito discutir uns assuntos com Pablo.

Sra. MAGALI

LA TORRE

Nem eu...

Eu...

LA TORRE

Dr. URBINATI

O vinho relaxa quando estamos tensos.

Você também não arreda do pé, almoça conosco. Um aborrecimento a mais não

Dr. URBINATI

faz diferença... (Para a Sra. MAGALI.) Que tal tomar as providências cabíveis para o

Mais um copo?

banquete não atrasar?

LA TORRE

Sra. MAGALI

Recuso-me a recusar. (A Sra. MAGALI serve.)

(Para FRANCESCA.) Vá cuidar do almoço. (Ela sai para a copa-cozinha; ILMA

PABLO

a acompanha.) Dr. URBINATI (Pondo a mão no ombro da Sra. MAGALI.) Minha velha, bonita e doce namorada; encerrada a nossa briga ligeira, mostre para os amigos como você costuma tratar aos domingos o seu marido apaixonado.

Agora que estamos refeitos da perplexidade, me pergunto se este recinto não se encontra imanado por cargas magnéticas sutis e inabordáveis... Dr. URBINATI Você não tem jeito, Pablo. É um caso perdido de fisiologismo cósmico. Quer me convencer de que correntes eletromagnéticas de qualquer ordem produziram os fenômenos

Sra. MAGALI

sem a contribuição de uma inteligência? E como justifica o caráter seletivo dos fatos? Por

(Sensibilizada) Vinho?

que despencou da parede o retrato do pai de Magali e não outro quadro? Por que

Dr. URBINATI

quebraram as porcelanas chinesas e não as outras louças? Por que transportaram para a

Para todos, inclusive para o Padre Giordano, que deve ter tomado a dose inicial

lama os meus cálculos e não outros papéis igualmente trancados? Por quê, quando as teclas

durante a Missa... (O vinho é servido.)

do cravo se moveram, tocaram uma melodia popular em vez de emitirem sons

LA TORRE

desordenados? Por que, afinal, tais fenômenos não poderiam ter sido causados por seres

Um trago de vinho vem a calhar.

inteligentes, embora invisíveis?


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PABLO

PABLO

Porque eles não existem.

Alguma coisa está queimando na sala!!!

Dr. URBINATI

CARMENCITA

E o que prova que não existem?

Um incêndio!!!

PABLO

LA TORRE

A Física mestre, a nossa Ciência que nunca detectou nenhum espírito no

Fogo!

Universo.

Pe. GIORDANO

Dr. URBINATI

Fogo do Inferno...

E se o Universo que a nossa Física tem estudado e devassado não for o único? Se,

Todos correm para a sala e se atrapalham sem saber como apagar o fogo.

conforme já comentei com você, houver um Universo paralelo, um espaço-tempo

Dr. URBINATI

diferente, habitado pelos indivíduos humanos que morreram? Não poderiam eles, em

(Gritando) Magali, traz depressa uma panela cheia de água!

determinadas circunstâncias vibratórias, exercer influência no mundo material? E até conviver conosco?

O Padre Giordano assume a postura de oração. LA TORRE o força a tirar a batina para tentar com ela abafar as chamas. CARMENCITA corre para a copa-cozinha.

PABLO

O Dr. URBINATI segura a estatueta e bate nas labaredas. PABLO desloca-se para a

Conviver conosco? Ora, mestre...

varanda em busca de alguma peça com a qual tenha meios de colaborar na tarefa. A

Neste instante, na sala, começa a sair fumaça do assento do sofá. A fumaça se

seguir aparece a Sra. MAGALI com uma panela transbordante de água. Na afobação, tropeça e derrama todo o conteúdo. Surge atrás dela FRANCESCA, informando que

espalha. Sra. MAGALI

ILMA entrou em transe na cozinha. Finalmente CARMENCITA desponta, conduzindo

Que discussão mais boba, esta de vocês.

duas panelas com água, graças à qual o fogo é debelado.

CARMENCITA

LA TORRE

Não estão sentindo um cheiro de queimado?

Ufa! Isto ultrapassa as raias do grotesco!...

LA TORRE

Sra. MAGALI

Eu só sinto o cheiro delicioso deste vinho.

Meu rico sofá! Mes rico sofá! (Afundo em um pranto histérico.)

PABLO

CARMENCITA

É... parece cheiro de algo queimando. Sra. MAGALI

(Arrasta PABLO para um canto da sala.) Não me demoro aqui mais cinco minutos.

Será na cozinha?

PABLO

Dr. URBINATI

Não há motivo para tamanha aflição.

Vai ver se estragaram nosso almoço. (A Sra, MAGALI sai para a copa-cozinha.)

CARMENCITA

O assento do sofá entra em combustão e o fogo se alastra rapidamente. A fumaça

O quê? Não há motivo? E se na próxima vez o fogo for na minha saia?...

invade a varanda. Dr. URBINATI O que é isto???

Pe. GIORDANO (Vestindo a batina chamuscada.) Vivendo e aprendendo...


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714

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

(Acariciando a Sra. MAGALI.) Minha velha, conforme-se. A gente manda

O Nicholas está obcecado por essa bruxa.

reconstituir e eu lhe prometo que em duas semanas este sofá estará tão lindo quanto era.

PABLO

Sra. MAGALI

Uma pena.

(Soluçando) Não devia ter acontecido, não devia. Foi uma perversidade, só

LA TORRE

mesmo o Cão do Inferno seria capaz dessa malvadeza.

Lastimável.

Dr. URBINATI

Pe. GIORDANO

Não adianta se desesperar.

Sintoma evidente de fascinação diabólica...

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

A culpa foi sua, eu queria despedir aquela miserável logo e você não deixou.

Pablo, será que o Nicholas sofreu alguma alteração do juízo?

Sr. URBINATI

PABLO

Tudo vai acabar bem.

Alteração do juízo, propriamente, não creio.

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Vai acabar bem... E se a casa toda virar um fogareiro? Gostaria de morrer torrado?

É normal esse comportamento dele?

Dr. URBINATI

PABLO

Há um limite para qualquer fenômeno. Confie em mim.

Sim. Só não posso afiançar que seja sensato.

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Confiar em você... Se o Padre, que é ministro de DEUS, não resolveu nada...

Como assim?

Pe. GIORDANO

PABLO

Realmente. E acho que não devo prolongar a minha visita, aguardando o almoço...

Esta semana o encontrei demais empolgado com certas premissas de sua equação,

LA TORRE

desenvolvendo um tipo de raciocínio lúcido, mas que não me parece positivo.

Eu também, apesar do vinho, perdi o apetite...

Sra. MAGALI

PABLO

Equilibrado, você quer dizer?

Se o senhor não se importa, mestre, a Carmencita, depois do almoço, deseja

PABLO

regressar...

Mais ou menos...

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

(Sobressaltada) Todos vão sair? Eu os acompanho. O Diabo é quem fica aqui.

Então ele está com o raciocínio desequilibrado?

Pe. GIORDANO

PABLO

Se a moça ficar, os demônios ficam...

Também não é isto. Está com o raciocínio mais especulativo do que objetivo. A

FRANCESCA

senhora compreendeu?

Ela está caída na copa.

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI

Não. Não compreendi.

Vamos socorrê-la. (Dirige-se para a copa-cozinha; apenas FRANCESCA o segue;

PABLO

os outros se detêm na varanda.)

É difícil eu me expressar.


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716

Sra. MAGALI

Dr. URBINATI

Tente outra vez porque me deixou mais agoniada.

(Entra à direita com ILMA.) Ela recuperou-se. E a Francesca avisa que o almoço

PABLO

não demora. Esqueçamos os dissabores para comer com satisfação.

É o seguinte: o professor, com suas ideias demasiadamente avançadas, penetrou

LA TORRE

em uma espiral conceptiva que contraria os parâmetros do pensamento científico clássico.

Precedentemente, bebamos.

Entendeu?

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

(Distribui mais vinho.) Aceita outro copo, Padre Giordano?

Agora sim, piorou.

Pe. GIORDANO

PABLO

Somente um pouco.

(Vencido) Não é fácil...

Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

(Fazendo ILMA sentar-se.) Tome um gole de vinho.

O que lhe indago é simples: ele está ou não está com o pensamento perfeito?

ILMA

PABLO

Não senhor, eu não bebo.

Depende do que a senhora considera pensamento perfeito. Sob o aspecto da saúde

Dr. URBINATI Experimente, não lhe fará mal.

sim, sob o aspecto da lógica talvez não. Sra. MAGALI

ILMA

Pablo, pelo amor de DEUS: o Nicholas está bom da cabeça ou está meio biruta?

(Encabulada) A Francesca deve precisar de mim, posso ir?

LA TORRE

Dr. URBINATI

(Para PABLO.) Julgo que posso explicitar para ela o que você quer dizer, com os

Se prefere... ILMA

meus despretensiosos recursos vernaculares. Concede-me o ensejo? PABLO

Sim senhor, com licença. (Vai para a copa-cozinha.)

Pois não.

Dr. URBINATI

LA TORRE

Tenho pena dessa pobre moça.

Dona Magali: o seu marido, como cientista, é um gênio, semelhante, aliás, a um

LA TORRE Nós também, meu generoso vizinho; mas que a convivência com ela é desastrosa,

grande artista, desses que deixam o nome na História. Sendo um gênio, atravessa uma fase genial, tida como pura tolice por aqueles que não possuem genialidade. Compreendeu?

é. Dr. URBINATI

Sra. MAGALI

Não recomecemos a polêmica superada. Mudemos de conversa, já que vocês logo

Compreendi. (Para PABLO.) Foi o que você falou? PABLO

vão nos deixar e eu não desfrutei o bastante de tão afável companhia. Pablo, deixe para ir

Foi mais ou menos, em termos relativos, naturalmente.

amanhã.

Sra. MAGALI

PABLO

(Aliviada) Graças a DEUS.

Temos um compromisso ainda hoje. Precisamos partir depois do almoço.


717

718

Dr. URBINATI

Dr. URBINATI

Dom Camilo de La Torre, concorda em perder uma partida de xadrez fazendo a

Como não?

digestão da sobremesa?

CARMENCITA

LA TORRE

Nem eu.

Não, necessito descer o morro sem tardança; vou até aproveitar o táxi do

Dr. URBINATI

reverendo, se ele me oferecer carona. Dr. URBINATI Mas se o Padre Giordano aceitar o meu convite para uma animada conversa, depois da refeição?

Vocês é que são teimosos... Neste momento, uma folha de papel cai do teto; o Dr. URBINATI apanha a folha, vira-se e lê um texto nela escrito; franze a testa e fita os demais. PABLO

Pe. GIORDANO

De onde caiu este papel?

Obrigado, tenho afazeres na Igreja no começo da tarde. (Para LA TORRE.) Será

CARMENCITA

um prazer levá-lo no carro.

Do teto, eu suponho.

LA TORRE

LA TORRE

Prometo que não pronunciarei na viagem uma só palavra contra a existência do

É...

Diabo e seus assessores...

Pe. GIORDANO

FRANCESCA

Foi, provavelmente...

(Surge à direita) Ela pa.rece que vai desmaiar novamente. (Recolhe-se à copa-

PABLO

cozinha.)

(Olha para o teto, no que é imitado pelos outros.) Não pode ter sido.

Sra. MAGALI

Sra. MAGALI

Temos de mandar embora essa moça, Nicholas; por que é que somente você não

É, não pode ter sido.

enxerga isso?

LA TORRE

Dr. URBINATI

Não pode mesmo.

Não vamos reiniciar a briga diante de nossos convidados. Mais tarde acertarei as

CARMENCITA

contas com você, minha adorável esposa.

Não pode.

Sra. MAGALI

Pe. GIORDANO

Não entendo tamanha teimosia.

Não.

LA TORRE

Dr. URBINATI

Se me permite a intromissão no assunto, nem eu.

O vento terá trazido da sala?

Pe. GIORDANO

Sra. MAGALI

Se me permite a advertência, nem eu.

Não há folha de papel nenhuma na sala, para ser trazida.

PABLO

PABLO

Se me permite a sinceridade, nem eu.

Pode ter vindo do Gabinete.

CARMENCITA Posso me manifestar?


719

720

Dr. URBINATI

Pe. GIORDANO

Se ela tivesse vindo do meu local de trabalho forçosamente teria caído no outro

De quem?

lado.

Dr. URBINATI Pe. GIORDANO

Não é do Diabo nem de nenhum demônio.

É...

LA TORRE

LA TORRE

Ainda bem...

É...

Dr. URBINATI

CARMENCITA

E não me parece que seja de um inconsciente.

É...

Pe. GIORDANO

Sra. MAGALI

Pelo menos isso...

É...

PABLO

PABLO

Uma mensagem para alguém?

Talvez uma corrente de ar a tenha deslocado para cima de nossas cabeças, sem

Dr. URBINATI

notarmos.

(Gravemente) Para você.

Dr. URBINATI

PABLO

E como não sentimos qualquer ventilação?

Está troçando, mestre.

LA TORRE

Dr. URBINATI

Não soprou sequer uma brisa.

Infelizmente, ou felizmente, não estou. (Entrega a folha de papel para LA

PABLO

TORRE, sentado ao seu lado; ele a lê, tem a mesma reação de surpresa do Dr. URBINATI,

Se esta folha de papel não veio da sala terá vindo do Gabinete: do teto é que não

franzindo a testa; pela ordem de proximidade passa-a para o Padre Giordano, este para a

poderia cair por encanto. CARMENCITA

Sra. MAGALI, esta para CARMENCITA, todos se surpreendendo com a leitura silenciosa, até chegar a vez de PABLO; este, no meio da leitura, emociona-se.)

Tem alguma coisa escrita nela?

PABLO

Dr. URBINATI

Não é possível!!! Não é possível!!!

Tem.

Dr. URBINATI

PABLO

(Paternal) Pablo, ninguém no mundo tem o direito de proferir esta sentença: NÃO

O quê?

É POSSÍVEL. Só sabemos, com nossa acanhada Ciência, O QUE É POSSÍVEL. E

Dr. URBINATI

sabemos muito pouco do que é possível.

Uma interessante mensagem. LA TORRE

PABLO É a letra do meu irmão. E somente ele me chamava pelo apelido. O que está aqui é

Sua?

um segredo que me contou antes de morrer, do qual ninguém mais, nem nossa mãe, tomou

Dr. URBINATI

conhecimento.

Não.


721

Dr. URBINATI E agora o que você me diz da teoria do Universo paralelo?... (Há uma prolongada pausa em que todos se entreolham, desestruturados.) PABLO

722

A folha de papel cai; PABLO apressa-se em juntá-la do chão e faz a sua leitura, com voz quase trêmula. PABLO Desta feita é para o senhor, mestre. No lugar da assinatura está escrito: UM

Não sei... Eu me sinto desnorteado...

ESPÍRITO AMIGO. Diz o seguinte: continue a desenvolver a sua equação sem medo do

Dr. URBINATI

ridículo e sem esperar o aplauso dos homens inteligentes, que na verdade ainda não

Como desnorteado? Não acabou de ter uma prova crucial da sobrevivência do seu

possuem bastante inteligência para perceber a própria ignorância. Um dia a humanidade

irmão?

compreenderá que o mundo físico é apenas uma das fases da natureza, dentro da qual PABLO

ninguém desaparece para sempre com a morte do corpo, e todos serão felizes quando

Preciso de tempo para pensar...

souberem se amar acreditando em DEUS, o supremo criador da vida.

Dr. URBINATI

As luzes se apagam com fundo musical solene.

Quem mais, além do seu irmão, poderia ter escrito a mensagem? Pe. GIORDANO O Diabo... LA TORRE Ou o inconsciente da empregada... Ouvem-se interruptos ruídos na varanda que vão aumentando de intensidade, até infundir em todos um estado de extrema excitação. Segue-se uma espécie de explosão. Dr. URBINATI (Olhando para o teto.) Vejam!!! Todos erguem a cabeça e contemplam uma folha de papel trespassando o teto de cor cinza-azulada. PABLO Incrível!!! Sra. MAGALI Como este papel pode vir atravessando o teto??? LA TORRE De acordo com a Parapsicologia, estamos sendo vítima de uma alucinação coletiva!... Pe. GIORDANO Mais uma façanha de Satanás!... Dr. URBINATI Maravilha!... A matéria interpenetrando a matéria!... Eu não estava errado!...

FIM


22 724

723

NOTA DO AUTOR Na História do Brasil a Cabanagem figura como a única revolução armada em que o povo pobre de uma região, no caso a Amazônia, derrubou o governo legalmente constituído e assumiu de fato o poder político. Esta peça teatral, publicada pela Editora Paka-Tatu em 2012, foi escrita com base em informações históricas contidas nas brochuras a seguir mencionadas, ainda que tenhamos consultado outras fontes, livrescas e jornalísticas, como, por exemplo, a edição de 30/31 de dezembro de 1984 de A PROVÍNCIA DO PARÁ, na qual o poeta Ruy Barata, após tecer brilhantes apreciações sobre o contexto sociológico, econômico e político da Cabanagem, demonstrando maior simpatia por Félix Malcher do que por Eduardo Angelim, situa Batista Campos como o cabano por excelência. Eis as brochuras: 1. HISTÓRIA DO PARÁ, de Ernesto Cruz, 1o volume, 2a edição a expensas do Governo do Estado em 1973; 2. CABANAGEM EPOPÉIA DE UM POVO, de Carlos Roque, 1o volume, 1a edição feita em Belém pela Imprensa Oficial no ano de 1984; 3. CABANAGEM A REVOLUÇÃO POPULAR DA AMAZÔNIA, de Pasquali Di Paolo, estudo premiado com o 1o Lugar no Concurso Nacional de Monografias instituído pelo Conselho Estadual de Cultura do Pará, em comemoração ao Sesquicentenário da Cabanagem, 1a edição (Belém, 1985);

CABANAGEM

4. CABANAGEM O POVO DO PODER, de Júlio José Chiavenato, Editora Brasiliense S.A., São Paulo, 1984; 5. CABANOS & CAMARADAS, de Alfredo Oliveira, 1a edição feita pelo autor e lançada em 2010.


725

Prefácio

726

maiorias. Da sombra do esquecimento, eis que surgem como se retirados de uma tela de Norfini, os homens do povo que foram os protagonistas daqueles dias que abalaram o

O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma autoestrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas6. (SARAMAGO, J. A Viagem do Elefante)

Um assalto aos céus, uma revolução popular no coração da Amazônia, quarenta anos antes da Comuna de Paris, a Cabanagem permanece sendo fonte de inspiração para os que não abrem mão do sonho de ver a face da Terra completamente livre de todas as formas de opressão e exploração. Mas, como se sabe, durante décadas essa extraordinária epopeia da resistência do povo amazônida foi coberta por um gigantesco manto de silêncio e de mentira. Os revolucionários passaram à história oficial como os “malvados”, “assassinos”, “bebedores de sangue”. Seus nomes foram quase todos banidos e não restaram gravados em placas alusivas a ruas e monumentos, enquanto os genocidas que exterminaram um em cada três homens adultos foram impostos como heróis e defensores da legalidade. Nada mais fácil e indigno. O fato concreto é que jamais houve Revolução tão autêntica, radical e profunda nas terras paroaras quanto a Cabanagem. Dentro dos limites históricos que eram postos – e, aliás, pressionando aquelas margens estreitras de baixo desenvolvimento das forças – os cabanos souberam ousar até o limite das suas forças e impuseram uma longa e penosa resistência que se estendeu de 1835 até 1840, quando os últimos bastiões de rebeldia tiveram de depor armas já nos mais distantes pontos do Amazonas e do Rio Negro, provando que a Revolução possuiu caráter bastante amplo e atingiu praticamente toda a calha do grande rio e seus principais afluentes. Resgatar essa saga é uma necessidade indispensável. E é esse trabalho, meticuloso e sensível, que Nazareno Tourinho, legítimo artista do povo, ajuda a realizar na bela e vibrante peça teatral “Cabanagem”, que tenho a honra de prefaciar. Como disse o grande José Saramago, o passado precisa ser revisto e as montanhas de pedras despejadas por séculos de dominação e opressão devem ser retiradas, uma a uma, com renovada paciência e radicalidade. É ali, onde ninguém imagina, que será descoberta a existência de uma história ímpar de heroísmo e de denotada devoção aos interesses das 6

A viagem do Elefante, São Paulo: Cia das Letras, 2008.

Brasil imperial. Diga-se que Nazareno Tourinho não apresenta os personagens cabanos – que na sua criação teatral adquirem verbo, carne e vibração humana – como meras vítimas do terror do Estado de então. Os cabanos estão de cabeça erguida, miram o horizonte, são destemidos e sabem o preço que terão de pagar para romper de uma vez por todas os grilhões que secularmente os reduziam a mais abjeta condição. Não é, assim, qualquer coincidência que a ação principal de “Cabanagem” transcorra durante um único dia: 7 de janeiro de 1835. Um dia especial que marca a tomada de Belém pelas forças insurgentes e a conquista do Palácio de Governo com o desbaratamento dos principais próceres do governo oligárquico que infelicitava o povo. É o dia da vitória que abriu o caminho para muitos outros que testemunharão avanços e recuos de um movimento que precisou assumir os riscos de romper com o status quo e abrir os senderos da mudança verdadeira. Na última cena, fechando o espetáculo Angelim discursa a seus companheiros de armas. Ele afirma que “a História provará para sempre que a nossa revolução foi vitoriosa, porque lutamos por uma ideia e, quando temos dignidade e estamos com a razão, “A IDEIA É SAGRADA...A IDEIA NÃO MORRE”. Que vivam os ideais eternos de justiça e liberdade encarnados pela Cabanagem! Que viva a cultura do povo tão belamente representada nas obras do genial Nazareno Tourinho!

Edmilson Brito Rodrigues Professor, arquiteto, deputado estadual


727

ÉPOCA E LUGAR

728

servir de exemplo a outros possivelmente rebeldes, e chegou a amarrar Batista Campos à boca de um canhão para reduzi-lo a farelo de carne e osso com um único tiro, só não fez

Primeira semana de janeiro de 1835. Belém do Pará.

isso graças a interferência de terceiros, inclusive membros da Junta Governativa da Província). INGLES

CENÁRIO Necessariamente composto com elementos simbólicos que levem em conta o tipo de espaço da representação, os recursos instrumentais do grupo encenador e as possibilidades inventivas do diretor do espetáculo. No fundo do palco um telão mostrará imagens sugestivas, referentes aos locais onde a ação estará sendo desenvolvida.

Guilherme James Ingles. Capitão de Fragata jamaicano, contratado pela Marinha Brasileira. Comandava a frota de navios da Armada Imperial, fundeados na baía do Guajará. JALES Joaquim Afonso Jales. Comerciante português. Era o braço civil dos governos que quisessem explorar e oprimir os nativos da região. Dirigente de Loja Maçônica e do Partido Caramuru, que reunia seus patrícios em oposição aos falangiários do Partido

PERSONAGENS

Filantrópico, pertencente aos brasileiros defensores da liberdade e da justiça social, e sobretudo da autonomia para os paraenses decidirem sobre o seu destino.

LOBO DE SOUZA

TENENTE ARAÚJO

Bernardo Lobo de Souza. Presidente da província do Grão-Pará, que abrangia

Joaquim Lúcio de Araújo. Oficial no comando do brigue Palhaço quando em seus

toda a região amazônica com sede em Belém. Tomou posse no cargo designado pela Carta

porões flutuantes foram mortos por envenamento e asfixia, em uma só noite, mais de

Imperial de 13/09/1833, quando o Brasil, tendo declarado sua independência de Portugal,

duzentos e cinquenta presos políticos.

encontrava-se no regime de Regência em face da abdicação de D. Pedro I e da menoridade

BATISTA CAMPOS

do seu sucessor. Era maçom graduado e, segundo Ernesto Cruz (brochura retrocitada,

João Batista Gonçalves de Campos. Mentor dos cabanos, que o seguiam e

página 254), um homem “assomado e colérico”. Por ter saliente mecha de cabelos brancos

amavam. Falecido dias antes de eclodir o levante que tomou o poder governamental em

na cabeça o povo o chamava de “Malhado”.

07/01/1835. Nascido no Acará, então distrito de Belém, em 1782, foi ordenado padre em

SILVA SANTIAGO

1805, dez anos depois tornou-se Cônego, depois Arcipreste da Catedral de Belém, mas se

Joaquim José da Silva Santiago. Comandante de Armas do governo de Lobo de

fez advogado, montou escritório para atuar nesta profissão e desenvolver atividades

Souza, Tenente-Coronel. Na mesma página citada da brochura referida, HISTÓRIA DO

políticas, sendo até proibido pelos superiores eclesiásticos de rezar missa na capital. Havia

PARÁ, Ernesto Cruz o define como militar “brusco e intratável”.

quem o chamasse de “benze cacetes”. Assumiu a direção do primeiro jornal paraense

GREENFELL

quando Felipe Patroni, seu fundador, foi aprisionado, e posteriormente editou outros por

John Pascoe Greenfell. Mercenário inglês a serviço da Armada Imperial

conta própria. Criou com a ajuda de companheiros de ideal o Partido Filantrópico, já

Brasileira, desembarcou em Belém logo após a proclamação da Independência do Brasil

aludido. Foi preso numerosas vezes e ao fim da vida teve de andar fugindo das forças do

comandando um navio de guerra, com a missão de conseguir do Pará adesão ao Império.

governo de Lobo de Souza. Morreu com 52 anos de idade, em 31/12/1834.

Tão violento quanto astucioso (enganou a população local para alcançar seu objetivo,

ANGELIM

anunciando mentirosamente que tinha cobertura da frota de Lord Cokhrane, disposta a

Eduardo Francisco Nogueira. Conquistou a alcunha de Angelim, árvore resistente

arrazar a cidade se fosse necessário), era capaz de cometer friamente qualquer crueldade

e de alto porte, pela valentia demonstrada nas brigas de adolescente no bairro da Campina,

para manter a ordem pública (mandou fuzilar cinco soldados inocentes e desarmados para

em Belém, onde chegou com pouco mais de dez anos, junto aos pais e irmãos, que fugiam


729

730

da seca no interior do Ceará. Foi o terceiro e último governante cabano, com apenas vinte e

ANTÔNIO VINAGRE

um anos de idade. Nasceu em 06/07/1814 e faleceu em 1882, com 68 anos. Não possuindo

Foi considerado por alguns cronistas como “o mais radical de todos os líderes

aptidão para as lides burocráticas ou comerciais arrendou terras de Félix Malcher e se

cabanos e o maior comandante de massas”. Comandou uma coluna na derrubada do

transformou em lavrador. Ouvinte atento das pregações cívicas de Batista Campos, aos

governo de Lobo de Souza. Também nasceu no Acará como seu irmão Francisco, de quem

dezoito anos alistou-se entre os filantrópicos, tendo comandado uma tropa que saiu do

foi Comadante de Armas, tendo feito tudo para que ele, então Presidente, não entregasse o

Acará para combater os caramurus, do comerciante português Jales. Era “muito vivaz,

governo ao Marechal português Manoel Jorge Rodrigues. Desatendido rebelou-se e,

altivo e insinuante”, segundo diz Ernesto Cruz na obra citada, arrimado no que consta no

desgostoso, retirou-se para o interior junto com seus liderados levando armas e munições.

livro Motins Políticos, de Domingos Rayol, o Barão de Guajará.

Morreu em 1835 abatido por um tiro mortal quando invadiu Belém e atacou o Arsenal de

GERALDO “GAVIÃO” Geraldo Nogueira. Irmão mais velho de Angelim, também conquistou pela

Guerra no governo do referido Marechal. LAVOR PAPAGAIO

valentia o apelido nas brigas de bairro. Comandou uma das tropas que tomaram o Palácio

Vicente Ferreira Lavor Papagaio. Mulato cearense, terrível panfletário que Batista

do Governo em 07/01/1835. Sempre esteve ao lado do seu irmão e ficou ao lado dos

Campos trouxe do Maranhão hospedando na sua residência, a fim de auxiliá-lo

irmãos Vinagre quando estes se voltaram contra Félix Malcher por acharem que ele,

jornalisticamente no auge de sua campanha contra os desmandos de Lobo de Souza. Há

primeiro governante cabano, estava traindo os companheiros. Nasceu no interior do Ceará

quem diga que ele tinha um caráter leviano e enfrentava problemas com a justiça na sua

(Aracati) em 1806.

terra natal. Celebrizou-se por escrever com a pena incendiária o periódico Sentinela

MANOEL NOGUEIRA

Maranhense na Guarita do Pará, atiçando o sentimento revoltoso dos cabanos, e por ter

Segundo irmão mais velho de Eduardo Angelim, e seu fiel parceiro de luta, ainda

tido a audácia de gritar de uma janela, defronte à qual Lobo de Souza desfilava

que muito menos exaltado. Às vezes era chamado de “Manoel mole” por ser “o mais flexível dos cabanos”. FÉLIX MALCHER

garbosamente a cavalo em solenidade cívica: “Abaixo o Malhado!”. MIGUEL ARANHA João Miguel de Souza Leal Aranha. Guarda-livros, durante cinco anos estudou

Félix Antônio Clemente Malcher. Grande proprietário rural, rico fazendeiro no

comércio nos Estados Unidos. Participou dos preparativos para a deposição de Lobo de

Acará. Estava preso na Fortaleza da Barra quando os cabanos tomaram o poder e foi logo

Souza, chefiou uma coluna que marchou para ocupar o Palácio do Governo e foi quem ali

solto para assumir a presidência da Província, já que se encontrava morto seu maior

reconheceu o caudilho quando ele chegava apressado, após ter dormido fora na casa da

concorrente, Batista Campos, com quem tivera um desentendimento que durou mais de dez

amante, exclamando: “Lá vai o Malhado!”.

anos, depois superado pelo interesse da luta em prol da causa comum. Nasceu em Monte Alegre no ano de 1782. Já deposto como primeiro governante cabano foi morto por um desafeto pessoal, Quintiliano Barbosa.

JOÃO GONÇALVES CAMPOS João Pedro Gonçalves Campos. Primo de Batista Campos e seu devotado colaborador. Alferes, em sua fazenda na ilha das Onças, de nome Nazaré da Boa Vista

FRANCISCO VINAGRE

(Belém, como se sabe, ficava em frente, do outro lado da baía), os cabanos se reuniram

Francisco Pedro Vinagre. Paraense, filho de português, nascido no Acará em

para planejar o grande ataque às forças do governo.

1812, e falecido em 1873, foi o segundo governante (presidente) cabano, tendo sucedido

DOMINGO “ONÇA”

Félix Malcher com 23 anos de idade. Jovem quase tanto quanto Angelim, como ele era

Tapuio (mestiço de índio). Matou Lobo de Souza.

lavrador foreiro de Malcher, juntamente com seu irmão Antônio. Tinha outros irmãos, um

FELIPE “MÃE DA CHUVA”

de nome Manoel, morto por gente de Lobo de Souza quando transportava nos ombros um

Negro. Matou Silva Santiago.

animal que havia caçado.


731

732

DOMINGOS “SAPATEIRO”

ATO ÚNICO

Curiboca (caboclo semibranco). Matou James Ingles. CABANOS O maior número que puder ser colocado no palco, alguns descalços e sem camisa.

No telão do fundo do palco aparece a fachada da Catedral de Belém. Ouve-se um

PESSOAS DIVERSAS

fúnebre dobrar de sinos. Pausa. A imagem no telão muda para a de um lugar ermo.

Muitos soldados, dois marinheiros e espectadores de uma peça teatral.

Lentamente os personagens vão surgindo e o diálogo dá início à ação. ANGELIM Devemos agora nos esconder dos soldados do goveno aqui e não fora de Belém. FELIPE “MÃE DA CHUVA” Escutei um badalar de sino. A esta hora do dia?... Santa Bárbara! Quem importante morreu? ANGELIM O Lavor Papagaio, que descobre tudo e sabe tanto dos boatos quanto das notícias verdadeiras, disse há pouco que foi o Cônego Batista Campos, mas eu não estou querendo acreditar. MIGUEL ARANHA Pela lógica dos derradeiros acontecimentos deve ter sido ele mesmo, espingardeado por alguém a serviço do governo. FRANCISCO VINAGRE Será que foi? ANTÔNIO VINAGRE Se foi chegou a hora de nos vingarmos de todas as infâmias. Inclusive o covarde assassinato do nosso irmão Manoel. DOMINGOS “ONÇA” Se o Batista Campos morreu estamos no mato sem cachorro. DOMINGOS “SAPATEIRO” Cachorro é o nojento do “Malhado” que está nos governando. JOÃO GONÇALVES CAMPOS (Entra chorando.) Meu primo João Batista faleceu no sítio Rosário, no furo de Atituba, às duas horas da tarde de ontem, antes da entrada do ano novo. GERALDO “GAVIÃO” Batista Campos morreu? Que tragédia! MANOEL NOGUEIRA


733

734

Por esta eu não esperava.

OUTRO

ANGELIM

Com o desaparecimento do Batista Campos eles vão ter mais força pra mandar no

Quem matou o nosso grande líder?

governo.

JOÃO GONÇALVES CAMPOS

OUTRO

Ninguém. Por incrível que pareça ele morreu devido a uma ferida debaixo do

Então temos que destruir o governo.

queixo, que fez quando se barbeava e virou tumor gangrenado. Se não estivesse no meio

MANOEL NOGUEIRA

do mato para se esconder das tropas do governo teria sido salvo por qualquer médico.

Destruir não, mudar...

UM CABANO

UM CABANO

Que DEUS abençoe a alma do nosso protetor.

Pra mudar temos de começar destruindo.

OUTRO

OUTRO

Nosso melhor amigo.

Tudo. Eu já sofri tanto que só penso em destruição.

OUTRO

OUTRO

(Negro) Acabou a esperança de fim da escravidão.

Eu também. Já padeci mais do que couro de pisar tabaco, quero botar pra fora a

OUTRO (Tapuio) E continuaremos sendo obrigados a trabalhar de sol a sol nas roças comunais. OUTRO Sendo vigiados por soldados. OUTRO Recebendo um salário de miséria.

raiva que sinto dentro de mim. Quero me vingar. OUTRO Eu só penso em mandar pro Inferno o “Malhado”, junto com os militares e maçons que desgraçam o nosso viver. OUTRO Agora vamos ter de tirar do governo essa gente ordinária porque sem o Cônego Batista Campos a nossa situação só pode piorar.

OUTRO

OUTRO

Pra comprar caro dos comerciantes portugueses tudo aquilo que precisamos.

Eu, depois do que sofri nestes anos todos, estou disposto a destripar o “Malhado”

OUTRO

com minha faca de abrir bucho de piramutaba.

E outras coisas que não precisamos, mas eles trazem de fora pra nos engabelar.

OUTRO

OUTRO

E eu quero estar perto pra beber o sangue.

(Que pode ser algum dos precedentes.) Portugueses safados, exploradores do

OUTRO

nosso suor. OUTRO Aproveitadores da nossa paciência. OUTRO Paciência não, mofineza, falta de tutano pra fazer o que tem de ser feito.

Eu se puder vou matar aquele demônio a pau bem devagarinho, pra ele sentir toda a dor das porradas. OUTRO Além de fazer isso temos de expulsar da nossa terra os estrangeiros. Não devemos nos iludir: eles vão querer sempre nos dominar.

OUTRO

OUTRO

Isso mesmo, há muito tempo já devíamos ter afogado em igarapé cheio de

E nos roubar, com cara de Satanaz ou de santo de pau oco.

piranhas todos os estrangeiros que nos dominam.


735

736

OUTRO

urgentemente, para planejar uma revolução e começá-la sem demora, a fim de pegarmos os

Chegou o momento de nós reagir, botando pra correr esses bandidos.

adversários de surpresa.

OUTRO (Dirigindo-se a Eduardo Angelim.) O que vosmecê nos diz sobre essa braveza, Angelim?

UM CABANO O Felipe “Mãe da Chuva” também pensa que a nossa revolução deve começar sem demora?

ANGELIM

FELIPE “MÃE DA CHUVA”

Eu compreendo perfeitamente o sentimento de vocês. Podem ficar certos de que, a

Penso, e penso que precisa ser feita sem dó nem piedade.

partir de hoje, nós vamos mostrar para essa gente arrogante e cretina com quantos paus se

UM CABANO

faz uma cangalha.

O que fala o Domingos “Sapateiro”?

UM CABANO

DOMINGOS “SAPATEIRO”

(Para Geraldo Nogueira.) E o nosso Geraldo “Gavião” o que diz?

Falo que estou doido pra ver a pororoca da nossa revolução estourar.

GERALDO “GAVIÃO”

UM CABANO

O que o meu irmão acabou de dizer será honrado. Confiem em nós.

E o que diz o Domingos que não é “Sapateiro”, é Domingos “Onça”?

UM CABANO

DOMINGOS “ONÇA”

E o que diz o Manoel Nogueira, também em nome da família que terminou de declarar guerra aos nossos inimigos?

Digo que vamos fazer com o “Malhado”, e todos os seus ajudantes, o que eles merecem. E vamos fazer de um jeito que nunca mais o povo paraense esquecerá.

MANOEL NOGUEIRA

UM CABANO

Confirmo o que meus dois irmãos falaram, porém acho que devemos evitar

Se for preciso tocamos fogo na cidade.

exageros...

MIGUEL ARANHA

DOMINGOS “ONÇA”

Certamente Dom Romualdo Coelho nos pedirá para não fazer tal coisa.

(Baixinho, para os outros não escutarem.) Este é o “Manoel mole”...

UM CABANO

UM CABANO

Pelo menos vamos arrebentar com a Loja Maçônica.

O que vosmecê nos diz, Francisco Vinagre?

GERALDO “GAVIÃO”

FRANCISCO VINAGRE

Isto Dom Romualdo Coelho não vai nos pedir para evitar.

Digo que partiremos para a luta.

FRANCISCO VINAGRE

UM CABANO Vosmecê também acha, Antônio Vinagre?

Vai até gostar, depois da Pastoral que ele assinou ano passado atacando a Maçonaria, e só não publicou porque foi ameaçado de prisão.

ANTÔNIO VINAGRE

UM CABANO

Acho. E se depender de mim a luta será logo e a ferro e fogo.

E então, vamos à luta?

UM CABANO

TODOS

Diz alguma coisa, Miguel Aranha.

Vamos!!!

MIGUEL ARANHA Pelo que aprendi de política nesta província, e nos Estados Unidos quando lá estive estudando comércio durante cinco anos, julgo que convém nos reunirmos,

(A luz apaga. Quando reacende está em cena o presidente Lobo de Souza com seus auxiliares. Na tela do fundo do palco vê-se a imagem de imponente salão palaciano.)


737

738

LOBO DE SOUZA

LOBO DE SOUZA

Depois de ter governado com a máxima competência, obtendo absoluto êxito,

Nossos espiões apuraram que antes de fechar os olhos para sempre, os olhos e

províncias como Goiás, Paraíba e Rio de Janeiro, eu deixaria de me chamar Bernardo Lobo

felizmente a boca, ele mandou chamar um padre seu amigo, vigário de Abaeté, com

de Souza se consentisse em me desmoralizar permitindo que essa gentinha insignificante,

certeza para a anotação de suas últimas vontades, porém tal padre cujo nome ainda

saída de cabanas, promovesse uma cabanagem perturbando a ordem pública em razão da

desconhecemos, provavelmente mais parceiro de conspiração do que irmão de fé, chegou

morte do Batista Campos, pela qual não temos nenhuma parcela de culpa. Aliás, é uma

tarde demais, e assim a ralé desta cidade, e do interior, ficará sem testamento escrito do seu

pena que ele não tenha virado defunto muito mais cedo. Jamais vi um membro da Santa

ídolo politiqueiro.

Igreja Católica com tanta vocação para arruaceiro. Todos sabem que ele não era bem um

JALES

padre, era o mais atrevido “benzedor de cacetes’’ que já apareceu no Grão-Pará. Tanto

Graças a DEUS, “Grande Arquiteto do Universo”.

assim que foi proibido de rezar missa em Belém. Onde se viu um sujeito que tem a

LOBO DE SOUZA

obrigação de usar batina, até porque é Cônego e Arcipreste da Catedral, trabalhar como

Por que te preocupas com o que o Lavor Papagaio vai daqui para a frente escrever

advogado com escritório montado? Grande bandalho!...

contra nós?

JALES

JALES

Vão trazer o cadáver dele para cá?

Porque a comoção pela morte do Batista Campos pode revoltar o povaréu.

LOBO DE SOUZA

LOBO DE SOUZA

Não, Jales, o Corpo de Agentes de Espionagem que tivemos a feliz idéia de

E daí?

montar, e que nos possibilitou pegar o Angelim para prendê-lo quase dez dias na corveta

JALES

Bertioga, descobriu que vinham trazendo o cadáver para Belém, mas voltaram da baía de

Muitos, não apenas poucos como tem acontecido, podem resolver pegar em

Carnapijó, aconselhados por um sacerdote que saiu daqui temeroso de uma profanação dos restos mortais.

armas. JAMIS INGLES

SILVA SANTIAGO

Que armas eles possuem para enfrentar os nossos canhões?

Vão certamente enterrar o corpo na igreja matriz de Barcarena.

SILVA SANTIAGO

JALES Deviam jogá-lo em um igapó cheio de jacarés.

Além do armamento pesado, devastador, temos bastante experiência para esmagar qualquer motim.

LOBO DE SOUZA

JALES

Se fizessem isto os anjos do céu diriam amém. Não diriam, Silva Santiago?

E se explodir mais do que uma simples rebelião?

SILVA SANTIAGO

LOBO DE SOUZA

Sem a menor dúvida. Não achas, James Ingles?

Como assim, o que queres dizer?

JAMES INGLES

JALES

É o que eu também penso.

Se desta vez o povo todo se juntar e decidir fazer uma revolução? Aqui para nós,

JALES

“entre colunas”: o clima é propício para uma revolução, neste momento, porque, tirando os

Ele deixou testamento? Se deixou será péssimo, porque o Lavor Papagaio vai dar

estrangeiros e as pessoas ligadas a eles por amizade e parentesco, ou ligados ao governo

um jeito de imprimir e espalhar.

por interesse, quase todo mundo está abalado com a morte do Batista Campos.


739

740

LOBO DE SOUZA

SILVA SANTIAGO

De certo modo isso é verdade... precisamos ficar atentos.

(Lendo com voz empostada.) Prontuário resumido. Nome: João Batista Gonçalves

SILVA SANTIAGO

de Campos. Nascido no Acará, distrito de Belém, em 1782, falecido de morte natural.

Atentos mas sem preocupação neste instante, porque qualquer revolta popular,

Elemento subversivo da mais alta periculosidade, porque embora sendo padre, é também

para ser realmente uma revolução, mais do que um simples motim, mais do que mera

advogado e jornalista. Com a prisão de Felipe Patroni, em 25/05/1822, assumiu a direção

rebelião, necessita de tempo para se articular, não se estrutura uma revolução em poucos

de O Paraense, tendo sido preso por transcrever nesse jornal o manifesto de D. Pedro I.

dias.

Editou por sua conta e risco, durante dois anos, o perigosíssimo jornal O Publicador JAMES INGLES

Amazoniense. Desde a festejada composição da primeira Câmara Municipal de Belém, em

Concordo, quem estudou tática de guerra não ignora isto.

27 de fevereiro de 1823, e da posse dos seus nove vereadores eleitos, quatro dias antes,

LOBO DE SOUZA

vem criando problemas para todos os governos locais. Em 1823 se refugiou no Moju para

Correto. Jales, não nos preocupemos demais pelo menos durante este resto de mês

não ser morto por corregilionários do General José Maria de Moura, Governador das

que está começando para nos trazer um ano novo feliz, um 1835 pleno de sucesso

Armas. Ainda em 1823, em outubro, houve um motim nesta capital, quando grupos

administrativo. (Entra um soldado e entrega uma pasta a Silva Santiago.)

armados arrombaram e saquearam casas de portugueses, e foi ele, sob os aplausos do povo,

LOBO DE SOUZA

quem conseguiu a abertura do Trem de Guerra a fim dos sediciosos terem armas e

(Para o soldado.) Diga para trazerem quatro taças com vinho do Porto. (O

munição. Por causa disso foi deportado para a Corte e trancafiado na Fortaleza de Santa

soldado retira-se.) Vamos erguer um brinde pela morte providencial do “benze cacetes”.

Cruz. Retornando a Belém em 1824 foi novamente preso pelo Coronel José de Araújo

SILVA SANTIAGO

Roso, primeiro presidente da província do Grão-Pará nomeado pelo Governo Imperial, que

(Tira da pasta um papel e o entrega a Lobo de Souza.) Presidente, aqui está a

o acusou de idéias republicanas, pois esteve em Pernambuco com o presidente da

ficha criminal do Cônego que o senhor mandou preparar, para publicação em nosso jornal

Confederação do Equador. No ano seguinte, já solto, foi desterrado para o Maranhão,

se o Lavor Papagaio conseguir fazer uma nova edição do seu, depois de termos ordenado

como suspeito de insuflar uma rebelião de soldados do Palácio do Governo. Em 1831 de

que os soldados quebrassem toda a oficina onde ele era impresso.

novo foi preso no governo do Visconde de Goiana, que não perturbou muito porque tal

JALES

governo só durou dezoito dias; depois da prisão foi deportado para São João de Crato,

Eu não duvido que agora, com a morte do Batista Campos, alguém ajude o Lavor

tendo lá fugido do presídio. Ainda em 1831 inventou em parceria com Jerônimo Pimental e

Papagaio a voltar a imprimir o Sentinela Maranhense na Guarita do Pará.

outros cúmplices a Sociedade Patriótica, Instrutiva e Filantrópica, que nada mais é do

SILVA SANTIAGO

que um Partido Político, o Partido Filantrópico, dos brasileiros, opositor do Partido

Se aquele pasquim voltar a circular vamos ter problemas.

Caramuru, dos portugueses. LOBO DE SOUZA

JAMES INGLES

Para aí, já é mais do que bastante. (Para James Ingles e Jales.) O que acham?

Muita dor de cabeça.

JAMES INGLES

LOBO DE SOUZA

Ótima biografia para a ralé lembrar que politiqueiro irresponsável foi o seu ilustre

(Devolvendo a Silva Santiago o papel dele recebido.) Isso é fato. E como medida preventiva dê esta ficha criminal para o Gaspar da Siqueira Queiroz estampar na primeira

morto.

página do Correio Oficial Paraense. Leia em voz alta para vermos se convém acrescentar

JALES

alguma coisa. Jales e Ingles, prestem atenção.

Excelente. Um sujeito que passa a vida entre prisões, desterros e fugas não merece, é claro, saudade dos “homens livres e de bons costumes”.


741

742

LOBO DE SOUZA

LOBO DE SOUZA

(Para Jales.) Os nossos irmãos maçons estão bem preparados para ajudar a

Eu concordo. Bom, encerremos o assunto. Vamos brindar a morte do famigerado

soldadesca no caso dos cabanos desejarem fazer homenagem ao Batista Campos com uma

Batista Campos. Que DEUS o castigue como ele merece, nas profundezas do Inferno.

revolução?

(Erguem os taças e bebem o vinho.)

JALES Quanto a isto tudo está “justo e perfeito”. E tem mais: independentemente da maçonaria já organizei uma falange de portugueses armados.

(A luz apaga, quando reacende Lavor Papagaio em cena movimenta-se de um lado para outro, cruzando com pessoas diversas. No telão do fundo do palco imagens sucessivas de ruas, esquinas etc.)

SILVA SANTIAGO

UM CABANO

Mesmo sem o apoio logístico dos maçons temos condição de reduzir a pó os

Alguma novidade, Lavor Papagaio?

cabanos e qualquer cabanagem.

LAVOR PAPAGAIO

JAMES INGLES

Várias, depois te conto, agora me ajuda a distribuir estes panfletos. (Entrega-os)

Não acredito que acontecerá confronto de grandes proporções, eles não são

OUTRO CABANO

malucos. JALES Mas necessitamos vigiar cuidadosamente o Lavor Papagaio, para não deixá-lo distribuir seus panfletos anarquistas e virulentos.

Tem algum aviso para nós? LAVOR PAPAGAIO Sim, me procura mais tarde, agora me ajuda na distribuição desses boletins. (Os papéis começam a ser dados pelos três às pessoas que vão passando.)

LOBO DE SOUZA

UMA VELHA ALEIJADA

Não me fale mais nesse forasteiro petulante. Ele não teve a audácia de me chamar

Eu não sei ler.

de “Malhado’’, quando eu desfilava trotando meu cavalo naquela solenidade pública?!

LAVOR PAPAGAIO

Cedo ou tarde, mais cedo do que tarde, teremos de dar um jeito definitivo nele...

Então leve mais e dê para os seus vizinhos. (Carinhosamente, sorrindo.) Se fizer

JALES

isso direitinho hoje e amanhã me procurar eu lhe presenteio com três cuias de açaí e cinco

Eu conto com capangas espertos e de confiança que podem enchê-lo de chumbo

dúzias de ovos de tracajá.

em noite escura, fingindo uma briga pessoal. SILVA SANTIAGO

UM CABANO (Cochichando nervoso.) Tenha cuidado que a situação pra vosmecê no futuro vai

Boa providência.

ficar preta. Ouvi um português falar pra outro em segredo que os maçons vão fazer uma

JAMES INGLES

tramóia pra lhe matar na surdina. Não saia de casa à noite.

Sem a menor sombra de dúvida. Depois basta a gente fazer o mesmo com os irmãos Nogueira e os irmãos Vinagre. (Entra alguém com a bebida solicitada.)

LAVOR PAPAGAIO É?... Vão me matar no escuro?... (Murmurando para outros não escutarem.)

SILVA SANTIAGO

Coitados, se estão pensando em fazer isso não só no escuro, mas também no futuro... Se

E com o Miguel Aranha, já que o Félix Malcher se encontra fora de combate,

soubessem o que vai acontecer com eles dentro de poucos dias já estariam tremendo com o

mofando na Fortaleza da Barra.

rabo entre as pernas.

JAMES INGLES

UM CABANO

Os outros são muitos, mas não passam de peixes pequenos para o nosso anzol.

(Tendo logrado ouvir o que Lavor Papagaio balbucionou.) O que acontecerá?


743

744

LAVOR PAPAGAIO

FÉLIX MALCHER

Por enquanto não posso dizer, embora seja papagaio devo manter o bico calado a

Estou bem, apenas um pouco triste. O que me dói não é tanto a prisão, é o

respeito do assunto. Você, do mesmo modo, não dê com a língua nos dentes.

julgamento errado que determinados companheiros de ideal fazem das minhas atitudes e do

CABANO

meu caráter dizendo: “o Félix Antônio Clemente Malcher é medroso”. Não o Angelim, o

Em mim vosmecê pode confiar sempre.

Antônio e o Francisco Vinagre, que são esclarecidos e me conhecem de perto como meus

LAVOR PAPAGAIO

foreiros, e sim outros ignorantes como o Quintiliano Barbosa, que criticam minhas

Sei disso, aguarde orientação caladinho. (Duas pessoas se aproximam.)

posições inteligentes e por isso, ponderadas, às vezes conciliatórias.

UMA PESSOA

UM CABANO

Eu não sei fazer leitura.

Não ligue pra quem fala coisa ruim de vosmecê.

OUTRA

OUTRO

Nem eu, o que diz este papel?

Eles têm inveja porque não são ricos.

LAVOR PAPAGAIO

FÉLIX MALCHER

Diz que qualquer um de nós, se em alguma ocasião e em qualquer lugar, tiver

E que culpa tenho eu por ser? Por ter tido a sorte de casar com a filha de um

oportunidade de chegar perto do presidente Lobo de Souza deve gritar bem alto, para o

homem que viveu nadando em dinheiro? Jamais enganei alguém, nunca explorei

“Malhado” ouvir, esta quadrinha que o nosso querido morto Batista Campos empregava

gananciosamente trabalhadores pobres, sempre combati, embora de maneira habilidosa, a

quando se referia a ele, a fim de classificá-lo como tirano e patife:

incompetência, a safadeza e o despotismo dos governos desta província, nunca deixei de militar na oposição, ocupando meu lugar na trincheira dos que lutam pela justiça, pela

“Eu de circunlóquios nada sei,

liberdade e pela autonomia dos paraenses para decidir sobre o seu destino em termos

conto o caso como o caso foi.

políticos, sempre prestigiei o Batista Campos com meu estilo moderado, mesmo sabendo

“Na minha frase de constante lei,

que ele não gostava de mim.

ladrão é ladrão, boi é boi.”

UM CABANO Mas nos últimos tempos vosmecês fizeram as pazes de coração, não foi?

Repitam três vezes para decorar. (Executam o exercício de memória, tendo as

FÉLIX MALCHER

duas pessoas dificuldade de pronunciar a palavra “circunlóquios”.) Muito bem, agora

É claro.

vejam se aprendem a ler porque o Sentinela Maranhanense na Guarita do Pará só saiu

UM CABANO

em dois números, infelizmente, porque teve sua oficina destruída a mando do governo,

E agora que o Cônego acaba de morrer, como vão ficar as coisas?

porém não morreu como o Cônego, ainda vai ressurgir, e muito mais breve do que a

FÉLIX MALCHER

portuguesada pode imaginar...

Enjaulados nesta fortaleza não podemos saber, mas com minha experiência posso

(A luz apaga e quando reacende vê-se no telão a imagem de uma cela com grades

prever que haverá uma violenta reação do povo. A esta altura como estarão procedendo os

em parede de pedras. Em cena Félix Antônio Clemente Malcher e alguns cabanos,

irmãos Nogueira e Vinagre, juntamente com o Miguel Aranha e outros? Se bem os

uniformizados como prisioneiros.)

conheço estão pensando em preparar uma chuva de balas para despejar na cabeça do Lobo

UM CABANO Parece que vosmecê está se sentido mal.

de Souza, do Silva Santiago, do Jamis Ingles e todos os seus comparsas. UM CABANO Tomara que não seja uma chuva, seja uma tempestade.


745

746

OUTRO

forma eloquente, conquistando corações e consciências. Segundo porque, queira eu ou não

De fogo, não de água.

queira, sou grande proprietário, endinheirado, dono de terras, e afora este detalhe tenho

FÉLIX MALCHER

uma visão política muito prática: acho que não adianta brigarmos feio com os portugueses

Apesar de calmo, pacifista às vezes, depois do que sofri recentemente acho que

porque precisamos deles para desenvolver o nosso comércio, sem o que não teremos o

seria capaz de pegar em armas, se pudesse fugir com vocês. Tenho formação militar:

crescimento econômico capaz de trazer para a região do Grão-Pará os benefícios da

comecei como Porta Bandeira, fui Tenente, Capitão e cheguei ao posto de Coronel de

civilização, dos quais o povo pobre tanto necessita: escolas, hospitais, construção de

Milícias.

residências melhores do que cabanas cobertas de palhas, e outras coisas indispensáveis a UM CABANO

uma existência humana digna. Os portugueses ainda mandam em nosso país e será difícil

Se conseguirmos escapar daqui, vamos cortar o pescoço do “Malhado’’.

acabarmos com isso usando balas, até porque contamos com poucas espingardas e eles têm

OUTRO

muitos canhões.

(Fitando Malcher.) Ele agora detesta vosmecê. O que fez com a sua fazenda Acará-Açu foi pura maldade. OUTRO Mas foi muito bonito vosmecê ter tido a coragem de abrigar o Cônego com os nossos outros chefes quando eles tiverem de fugir de Belém pra não serem presos.

UM CABANO É verdade. FÉLIX MALCHER Convém sermos honestos e realistas. A Independência do Brasil não resultou de uma luta heróica do seu povo nativo, já organizado socialmente, foi um negócio de pai

FÉLIX MALCHER

para filho entre portugueses. Dom João VI, espertamente, decidiu que D. Pedro I deveria

Somente cumpri com o meu dever.

colocar a coroa de Imperador do Brasil em sua cabeça, antes que algum aventureiro se

UM CABANO

apossasse dela. Assim, a dinastia dos Bragança continuaria firme e a família real luzitana

O “Malhado’’ não devia ter sido tão cruel quando atacou a fazenda de vosmecê.

poderia até se mudar para exercer o poder em nosso território, quando visse o seu

FÉLIX MACHER

ameaçado. Infelizmente, para nos livrarmos dos portugueses, expulsando-os, teremos de

Teve seus motivos. A primeira expedição que ele mandou para me prender junto

fazer uma revolução que talvez mate a metade da população, ou pelo menos um terço ou

com o Batista Campos, os irmãos Nogueira e os irmãos Vinagre, chefiada pelo sub-

um quinto, e se vencermos cairemos nas mãos dos franceses, ingleses ou holandeses,

comandante dos Municipais Permanentes Nabuco de Araújo, sofreu humilhante derrota

porque não poderemos viver isolados do resto do mundo, e as outras nações mais

diante da nossa resistência. A segunda expedição, maior e mais bem preparada, comandada

desenvolvidas enviarão seus representantes para cá, a fim de vender caro aquilo que

pelo Coronel Manoel Santiago Falcão, também foi destroçada no confronto com as nossas

produzem e comprar barato nossos produtos naturais. Essa gente sempre que puder nos

tropas. Aí ele, furioso, enviou o Ingles com o peso da força naval para nos esmagar. Como

governar, direta ou indiretamente, não abrirá mão disso.

lutar contra uma força tão poderosa seria suicídio, fugimos, e o Ingles encontrando ao

UM CABANO

chegar a fazenda deserta incendiou tudo, até as plantações, só respeitando a capela.

É complicado...

UM CABANO

OUTRO

Vosmecê, com esse seu jeitão tranquilo, provou que tem tupete pra enfrentar o

Não entendi nadinha.

Lobo de Souza. Então por que alguns dos nossos companheiros não confiam em vosmecê? FÉLIX MALCHER Por duas razões. Primeiro porque se apaixonaram pelo Batista Campos, que possuía um temperamento voluntarioso, simpático, prestativo, e sabia falar e escrever de

OUTRO Eu também não. O que já entendi há muito tempo é que temos de meter bala no peito de todo estrangeiro.


747

(A luz apaga e quando reacende exibe no telão do fundo do palco a imagem de um belo sítio. Em cena líderes da Cabanagem.) ANGELIM Vamos combinar tudo de cabeça fria, porque na hora de agir a cabeça precisa esquentar como brasa para ninguém tremer nem recuar. É matar ou morrer. ANTÔNIO VINAGRE Em guerra não se pode ter medo nem pena do inimigo. MANOEL NOGUEIRA

748

OUTRO Não vejo a hora de cortar o pescoço dos soldados do governo. Eles não dizem que a glória deles é colocar no pescoço um cordão feito com orelhas de cabanos?! OUTRO Eu já mandei minha mulher ferver o muruxi pra dar cor vermelha nas bandeiras que levaremos. MIGUEL ARANHA Logo que atravessarmos a baía e chegarmos a Belém temos obrigação de procurar

Tudo bem, mas não é necessário fazermos uma carnificina.

os companheiros, e também alguns amigos de confiança, que possam nos sugerir, com sua

GERALDO “GAVIÃO’’

experiência, alguma coisa. Eu já listei diversos nomes, com a ajuda do meu irmão

(Com ar de brincalhão.) Cala a boca, “Manoel mole’’...

Germano, para não serem esquecidos neste momento decisivo. (Tira do bolso um papel e

MIGUEL ARANHA

lê.) Tenente Diogo Vaz da Móia, Alferes Domingos Marreiros, Boaventura da Silva, padre

Bem, depois de tudo o que discutimos temos de planejar minuciosamente a

Jerônimo Pimentel, Antônio Barreto, Manoel Evaristo, José Pio, João Batista de

operação de tomada do poder. ANGELIM Acho que podemos logo acertar o seguinte: primeiro ocupamos o palácio do

Figueiredo Tenreiro Aranha, José Mariano de Oliveira Belo, Silvestre Antunes Pereira e o italiano João Balbi. GERALDO “GAVIÃO’’

governo, e lá nos reunimos todos, juntando as colunas que sairão de pontos diferentes;

Você não se lembrou do Joaquim Varjão.

então partimos para o Arsenal de Guerra, invadimos os depósitos de armas e munição e nos

ANTÔNIO VINAGRE

apossamos de tudo a fim de atacar todos os quartéis e os navios ancorados no porto com

E do Albino Rodrigues.

força total. Finalmente nos dirigiremos até a Fortaleza da Barra para soltarmos o Félix

MIGUEL ARANHA

Malcher e os companheiros presos junto com ele.

pegarmos as tropas do Lobo de Souza de surpresa, isto é fundamental, daí porque temos de

Bem pensado.

atacar ainda esta semana.

FRANCISCO VINAGRE

ANGELIM

Concordo.

Correto.

GERALDO “GAVIÃO’’

MANOEL NOGUEIRA

Não podia ser melhor.

De preferência no Dia de Reis, quando a cidade toda estará se divertindo com a

MIGUEL ARANHA Para nos estabelecermos em Belém de maneira eficiente é bom sairmos ainda hoje daqui da ilha das Onças, embora ela esteja defronte da cidade. UM CABANO É pena não ficarmos aqui no sítio Nazaré da Boa Vista mais um dia, o Alferes João Gonçalves Campos sabe tratar os companheiros, como o tio que morreu e nós vamos vingar.

O Albino é muito exaltado, pode falar demais antes da hora certa, convém

ANTÔNIO VINAGRE

festa de São Tomé, os pedidos de esmolas nas ruas e a saída do Sairé... FRANCISCO VINAGRE Com a procissão que vai do arraial do Bacuri até a igreja da Sé... ANTÔNIO VINAGRE Com as danças de terreiro que geralmente acabam em pancadaria de embriagados...


749

750

GERALDO “GAVIÃO’’

ANGELIM

Com a reunião da alta sociedade para assistir drama ou comédia no Teatro

Isso, lá a gente junta todas as colunas e marcha para o Arsenal de Guerra, depois

Providência, defronte do Arsenal de Guerra, no Largo das Mercês... ANGELIM Sendo assim, para evitar morte de inocentes atacaremos na madrugada do dia seis para o dia sete.

segue para a Fortaleza da Barra e liberta o Félix Malcher, sendo que o Miguel Aranha pode ir na frente. MIGUEL ARANHA Dividiremos cada coluna em grupos de assalto com tarefas específicas.

JOÃO GONÇALVES CAMPOS

ANTÔNIO VINAGRE

Ótimo, meu primo João Batista aprovaria com satisfação esta idéia generosa. E a

Impunharemos mosquetes e espadas.

surpresa será ainda maior.

JOÃO GONÇALVES CAMPOS

MANOEL NIGUEIRA

Vai ser uma mortandade horrível.

Perfeito, de madrugada.

ANGELIM

ANGELIM Precisamos também fazer contato com alguns companheiros humildes que são essenciais para a nossa luta.

É possível que seja porque, fora as forças do governo, os portugueses, com o Jales à frente e a Maçonaria por trás, possuem muita gente armada para nos enfrentar. Sei que será difícil controlarmos a situação depois de tomar o poder, mas não temos alternativa, o

FRANCISCO VINAGRE

povo está furioso com a morte do Cônego Batista Campos, está espumando de ódio do

Principalmente os negros João do Espírito Santo, o “Diamante’’, Pedro

“Malhado’’ que o perseguiu e dos portugueses, esta não será uma revolução nossa e sim

Figueiredo, o “Patriota’’, Manoel “Barbeiro’’ e o Félix, o “negro Félix’’, que é capaz de comandar centenas de revoltosos. ANGELIM Não podemos esquecer o escravo Joaquim Antônio, o mulato Fidélis e o carafuz Manoel Pedro dos Anjos.

dos pobres e oprimidos, se não estivermos à frente deles a carnificina vai ser maior. MIGUEL ARANHA Há quem diga que temos uma população de mais de cem mil pessoas entre brancos, negros, mestiços e índios. Por maior que seja o número de mortos ainda sobrará bastante gente para viver com dignidade.

ANTÔNIO VINAGRE

ANGELIM

Nem o caboclo “Coco do Muaná’’, o negro ‘’Ourives’’, e os tapuios “Piroca-

É o que eu penso.

cana’’, Saraiva, “Chico Veado’’ e “Pipira’’, além de outros.

GERALDO “GAVIÃO’’

MIGUEL ARANHA

E eu.

Certo, bem observado, porém neste instante o que mais precisamos é definir a

MANOEL NOGUEIRA

estratégia do grande ataque para a tomada do poder. Como faremos? Eu posso sair do

Eu também, embora, no fundo do coração, lamente muito...

Cacoalinho com uma coluna para ajudar na ocupação do Palácio do Governo.

FRANCISCO VINAGRE

ANGELIM

Não devemos lamentar nem podemos desistir.

Eu sairei com meus homens do sítio de Murucutu e dominaremos logo a tropa do

ANTÔNIO VINAGRE

quartel do Corpo de Caçadores e Artilharia, quando estivermos a caminho do Palácio. GERALDO “GAVIÃO’’ Então eu partirei do Largo da Memória também para o Palácio do Governo.

Não, não podemos, é questão de honra massacrarmos os opressores, recordando o que eles fizeram anos atrás valendo-se do bárbaro Greenfell.


751

752

ANGELIM

TENENTE ARAÚJO

Sim, devemos recordar o que esses canalhas fizeram no tempo do Greenfell com o

(Falando para subordinados fora de cena.) Colocaram na água da tina aquele

Batista Campos, com cinco soldados escolhidos a dedo por serem paraenses, e com

preparado?... Então abram a escotilha e entreguem a tina para eles. Que se danem, foi a

duzentos e cinquenta e seis infelizes presos, jogados nos porões de um navio de guerra, o

Junta Governativa a culpada: pediu por ofício para o comandante Greenfell alojá-los aqui,

brigue Diligente, depois chamado Palhaço. Devemos recordar...

por falta de espaço na cadeia, e não temos mais como acalmá-los.

(A luz apaga para reacender em cor esverdeada sugerindo ação evocada do pretérito. Na

(Sai de cena, aparecem do lado direito dois marinheiros simulando carregar uma tina

tela do fundo do palco a imagem da praça em frente ao Palácio do Governo. Em cena

cheia de água, gesticulam como quem levanta a tampa de uma escotilha e entregam a tina

John Pascoe Greenfell, Batista Campos amarrado à boca de um canhão e pessoas em

para os presos que estão embaixo, logo repondo em seu lugar a tampa. Do lado esquerdo

derredor.)

todos os presos, como se estivessem do lado direito abaixo do nível da escotilha,

GREENFELL

aparentam pegar a tina e disputar sua água, buscando bebê-la com as mãos ou colocá-la

(Para Batista Campos amarrado à boca do canhão.) Vou te matar agora com uma

em chapéus.)

descarga de morteiro. Diz alguma coisa antes que eu estraçalhe o teu corpo, te defende.

UM PRESO

(Batista Campos fica em silêncio.) Se admites tuas culpas pede perdão para não morrer. (O

Eu não suporto mais tanto sofrimento, vou enlouquecer.

Cônego permanece calado, Greenfell dirige-se a uma das pessoas presentes.) Vá chamar

OUTRO

um padre para ele se confessar. (Gritando para fora de cena.) Soldados, só esperem vinte

Estou me sentindo engasgado.

minutos, se o padre não chegar para a confissão podem disparar o morteiro com ele

OUTRO

amarrado.

Ai meu DEUS, tem compaixão de mim.

(A luz apaga e quando reacende ainda esverdeada se vê no telão a mesma imagem que ali estava. Em cena de novo Greenfell, um pelotão de fuzilamento preparado para cumprir sua função e cinco soldados com as mãos para trás atadas uma à outra, de olhos vendados, em fila.) GREENFELL Vocês são gentinha de pé rapado e não tem direito a defesa. Estão aqui porque nasceram nesta terra maldita, sei que são inocentes, mas vão morrer para servir de exemplo aos colegas que se insubordinaram e eu não consegui descobrir quem são. A partir de hoje, todos estarão cientes do que é capaz o Capitão naval inglês John Pascoe Greenfell, que se encontra a serviço da Armada Imperial Brasileira. (Para o pelotão de fuzilamento.)

OUTRO (Gritando na esperança de ser ouvido pela tripulação depois de ter bebido um pouco da água.) Tragam água limpa, que esta é barrenta e tem um gosto esquisito. OUTRO (Após sorver uns goles da água.) Será que eles puseram veneno nesta água? (Multiplicam-se as queixas e lamentos, ao ponto de, em determinados instantes, não poderem ser compreendidos em razão da simultaneidade.) OUTRO Parece que a minha cabeça está rachando. (Uns vão se amontoando e comprimindo, outros batem no que se supõe ser o casco do navio.)

Atenção!... Apontar armas!... Fogo!!! (O pelotão obedece, os cinco soldados são

OUTRO

executados, um de cada vez.)

(Berrando para ser ouvido.) A água da tina acabou, tragam mais, não aguentamos

(A luz apaga para de novo reacender pela última vez em cor esverdeada, agora se vendo no telão do fundo do palco a imagem de um antigo navio de guerra. Em cena seu

a secura da garganta. OUTRO

comandante, Tenente Joaquim Lúcio de Araújo, do lado direito, e do lado esquerdo o

Está me dando uma zonzeira. (Cai desfalecido.)

maior número possível das 256 pessoas que foram presas no porão fechado por uma

OUTRO

escotilha do mencionado navio, o brigue “Palhaço’’.)

Ai... ai... ai... (Desmaia)


753

754

OUTRO

LAVOR PAPAGAIO

Estou ficando tonto. (Cambaleia)

(Surgindo ofegante.) Puxa vida, vim correndo, pensei que ao chegar a reunião já

OUTRO

teria acabado. Espero que ainda possa ser útil. Se vocês quiserem eu preparo urgente um

Minha febre está piorando...

boletim conclamando o povo às armas. Talvez fosse interessante que o texto relembrasse

OUTRO

fatos políticos que muitos esqueceram, tais como estes que eu pesquisei e anotei como bom

Estou queimando por fora e por dentro.

jornalista. (Lê de uma folha de papel.)

OUTRO

1.

No dia 1º de março de 1823, seis meses depois da proclamação da

Vou ficar doido.

Independência do Brasil, um golpe militar colocou no poder da província do Pará o Partido

OUTRO

Português, não o Partido Brasileiro;

Eu também vou endoidecer. (Os dois marinheiros retornam e executam o mesmo jogo com mais uma tina de água que é do outro lado disputada. A partir de então alguns dos presos perdem completamente o controle e começam a se agredir, a dar pancadas no chão, murros no ar, uns mordendo a si mesmo, transtornados pelo desespero.) OUTRO Abanem os chapéus pra diminuir o calor insuportável.

2.

Ainda em 1823 a primeira vila da Amazônia que aderiu à Independência,

Cametá, foi bombardeada sob o comando de um português partidário de D. João VI; 3.

Em junho de 1831 o presidente Burgos, no seu segundo governo, deu um

golpe institucional para impedir que Batista Campos tomasse posse na presidência do Pará como tinha direito; 4.

Pouco depois, em 7 de agosto de 1831, o partido Caramuru, dos

OUTRO

portugueses, deu outro golpe depondo o presidente Visconde Goiana quando ele ordenou a

Quem não tiver chapéu tire a roupa e movimente ela ligeiro rodando como um

extinção das roças comunais onde índios, negros e caboclos eram conservados em regime de escravidão. Na ocasião os principais líderes do Partido Filantrópico, dos brasileiros,

corrupio. OUTRO Vamos gritar juntos com toda a força do pulmão que morremos logo-logo se não

foram mandados para o desterro. 5 Em seguida...

sairmos já daqui. (Fazem isso demoradamente até que os dois marinheiros reaparecem

ANTÔNIO VINAGRE

para repetir o jogo de simulação, um tendo no ombro um saco, outro segurando um fuzil.

(Interrompendo) Meu caro Lavor Papagaio, não temos mais tempo para qualquer

Levantam a tampa da escotilha.) UM MARINHEIRO Ordem é ordem. (Dá tiros de fuzil para baixo. Em cada estampido que se ouve tomba ferido alguém do outro lado.)

mensagem, vamos começar a revolução dentro de dois ou três dias, acabamos de combinar o plano de ação. Se você quiser ser útil tem que trocar a caneta pelo fuzil. MIGUEL ARANHA A realidade é esta.

OUTRO

MANOEL NOGUEIRA

Com ordem do tenente Joaquim Lúcio de Araújo não se brinca. Este pó de cal vai

Infelizmente é.

matar todos sufocados. (Simula derramar para o porão o conteúdo do saco e fecha a tampa da escotilha.)

(A luz apaga, quando reacende vê-se no telão a fachada de um prédio antigo com vistosa tabuleta onde se lê: TEATRO PROVIDÊNCIA. Em cena a plateia de um espetáculo

(A luz apaga e ao reacender sem tom esverdeado se contempla no telão a imagem

cênico, mostrando o presidente Lobo de Souza no camarote de honra acompanhado de

anterior do belo sítio. Em cena os mesmos personagens da ação que foi interrompida para

Silva Santiago, Jales em uma poltrona da primeira fila, casais vestidos elegantemente nas

a lembrança do passado.)

diversas cadeiras, oficiais fardados e dois cabanos disfarçados com roupa domingueira


755

756

que procuram ficar próximos de onde estão os mandatários do governo, para escutar o

ELA

que eles conversam.)

Um grande safadão que não tem pudor nem respeito à moral das famílias. Todo

LOBO DE SOUZA

mundo sabe que ele possui uma cínica amante.

Está demorando demais este intervalo.

ELE

SILVA SANTIAGO

Eu sei até o nome dela, é Maria Amália.

Não é falta de consideração ao senhor, Presidente. Acontece que muita gente tem

ELA

de trocar vestimenta de um ato para outro, porque se trata de uma representação dramática

Dizem que a sem vergonha mora perto do Palácio, para ele escapulir de lá quase

grandiosa, como convém a um dia de festejos memoráveis na cidade. Falam que o Dia de

toda noite e dormir com ela. (Dois espectadores sentados atrás do casal percebem o

Reis sempre foi comemorado em toda Belém com grande pompa e alegria. Não se lembra

comentário maledicente e igualmente dialogam sussurrando.)

do ano passado? (Ouve-se explosões de fogos de artifício, Lobo de Souza se espanta.) LOBO DE SOUZA O que foi isto? SILVA SANTIAGO Foguetes inofensivos que o povo solta para se divertir. LOBO DE SOUZA Você tem certeza de que não existe nenhuma conspiração pronta para se concretizar nestes dias? SILVA SANTIAGO Absoluta. LOBO DE SOUZA

UM É um escândalo criticado pela fina flor de toda a nossa alta sociedade esse romance do presidente. Será que ele dorme mesmo com a amante quase toda noite? OUTRO O que tu queres? O apelido do homem é “Malhado’’, não é “Capado’’... (Os dois cabanos disfarçados com roupa distinda confabulam baixinho para não serem ouvidos.) UM Será que eles não desconfiam de nada? OUTRO Não sabemos ainda, vamos continuar observando e informar o Miguel Aranha, eu sei onde ele está escondido.

Olhe que o Batista Campos morto pode ser pior do que vivo.

LOBO DE SOUZA

SILVA SANTIAGO

Ainda que os artistas tenham de trocar muitas roupas este intervalo não deveria

É fato, está fazendo apenas uma semana que ele morreu e o povo ainda se encontra cheio de ressentimento contra nós, mas o serviço de espionagem que implantamos

ser tão prolongado. Acho que sairei antes do fim do espetáculo, prometi para a Maria Amália visitá-la esta noite.

me informou ontem, e confirmou hoje, que ainda não há sinais de revolta. O Félix

SILVA SANTIAGO

Malcher, como sabemos, está trancado na Fortaleza da Barra, de máxima segurança, e os

Saindo durante a encenação e não no intervalo chamará menos atenção da plateia.

outros nossos principais inimigos continuam fugidos para não ser presos. Mesmo que

LOBO DE SOUZA

venham para Belém, o que eu duvido muito, e aqui se reúnam para tramar alguma revolução, em pouco tempo não conseguirão organizá-la de forma eficiente. (Um casal da plateia que não tira os olhos de Lobo de Souza dialoga cochichando.) ELE Repara só a pose orgulhosa do presidente.

E eu ligo para isso?... Pouco me importa o que essa gente daqui pense e diga de mim. (Um oficial fardado chega e segreda algo a Silva Santiago.) SILVA SANTIAGO (Para Lobo de Souza.) Presidente, por via das dúvidas eu preciso que ordene ao comandante das Guardas Municipais, Silva e Melo, verificar uns boatos.


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LOBO DE SOUZA

UM CABANO

Ele veio assistir a representação? Se está entre os espectadores chame-o que dou a

(Após tombar o último português.) Agora vamos invadir a Loja deles e quebrar

ordem aqui mesmo. SILVA SANTIAGO

tudo. (A luz apaga para reacender com a sonoplastia de tiroteios. No telão do fundo do

(Levantando-se) Vou ver.

palco as imagens se sucedem, indicando diversos lugares onde soldados estão em combate

LOBO DE SOUZA

contra cabanos, uma boa parte destes portando facões e porretes e mesmo assim levando

Algum problema grave?

vantagem.)

SILVA SANTIAGO Não, fique tranquilo. (A luz apaga, quando reacende vê-se no telão do fundo do palco a imagem de um

UM CABANO (Gritando para os portadores de cacetes.) Vão pegando as espingardas dos mortos. OUTRO

prédio construído com esmero arquitetônico, que exibe na fachada o desenho de um

E as cartucheiras.

esquadro e um compasso e as palavras: LOJA MAÇÔNICA. Jales encontra-se na frente do

OUTRO

prédio com um grupo de portugueses armados. Gritos e tiroteios são ouvidos.)

Os que ainda estiverem respirando devem levar mais um tiro na testa.

JALES Atirem para matar, vamos defender o nosso patrimônio que as tropas do governo farão o resto. (Surgem cabanos igualmente armados e o enfrentamento ocorre com tiros de ambos os lados.) UM PARTIDÁRIO DE JALES

OUTRO Se tiver cara de português cinco tiros. OUTRO (Depois de constatar que todo o grupo de soldados foi abatido.) Agora vamos caçar o resto dos inimigos.

Viva o presidente Lobo de Souza!

OUTRO

UM CABANO

E incendiar a casa deles como o Ingles fez com a fazenda do Félix Malcher.

Morra o “Malhado’’!

OUTRO

UM PARTIDÁRIO DE JALES

Vamos em frente.

Viva o partido dos Caramurus!

OUTRO

UM CABANO

Lembrando o que aconteceu com os nossos companheiros do passado, presos no

Viva o Partido dos Filantrópicos!

porão do brigue Palhaço.

UM PARTIDÁRIO DE JALES

OUTRO

Morte à plebe ignara deste fim de mundo!

Duzentos e cinquenta seis.

UM CABANO Morte aos estrangeiros dominadores!

OUTRO Só quatro conseguiram sobreviver.

JALES

OUTRO

(Vendo seus partidários caírem mortos em proporção muito maior do que os

Três pra logo morrer no hospital e um pra viver doente o resto da vida.

cabanos.) Minha Nossa Senhora, valei-me!... (Foge correndo.)

OUTRO Mortos com água envenenada.


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OUTRO

UM CABANO

E cheiro de cal pra sufocar.

Agora o miserável fala em DEUS, mas nunca se lembrou de falar quando nos

OUTRO

escorraçava. (Dá-lhe um ponta-pé.)

Enlouquecendo de dor e desespero.

OUTRO

OUTRO

(Fazendo o mesmo.) Cadê a tua valentia, covarde?!

Agora alguns de nós deve ir pegar os chefões. Vamos atrás deles.

OUTRO

(A luz apaga para reacender vendo-se no telão imagem do antigo Largo de São

(Aplicando uma coronhada.) Falou em DEUS, não foi? Pois Jesus disse: “quem

João. Em cena Silva Santiago, vestido como se tivesse saído apressado da cama, caminha

com ferro fere, com ferro será ferido’’!...

com dificuldade, mancando. Cabanos armados vão aparecendo, um se destacando dos

(A luz apaga para reacender monstrando no telão a imagem do antigo Largo do

demais.)

Quartel. Em cena James Ingles se deslocando com uma pistola em cada mão, SILVA SANTIAGO

perseguido por um grupo de cabanos entre os quais Domingos “Sapateiro’’.)

Aquele é o Felipe “Mãe da Chuva’’, estou perdido...

UM CABANO

FELIPE “MÃE DA CHUVA’’

Quem diria que a gente ia se encontrar com o comandante da Armada Imperial...

(Para os outros cabanos.) Olhem ali o Silva Santiago, comandante de Armas do

DOMINGOS “SAPATEIRO’’

“Malhado’’. UM CABANO Vai ver que o nosso pessoal já chegou no Palácio do Governo e ele escapuliu antes, tropeçando apavorado e quebrando o pé na carreira. OUTRO

Deixem o Ingles pra mim. INGLES (Atirando com as duas pistolas antes de ser alcançado.) Se eu morrer não morro sozinho. (Domingos “Sapateiro’’ dispara sua arma e “vara-lhe o corpo com uma bala de mosquete’’.)

Vou retalhar ele com o meu terçado.

DOMINGOS “SAPATEIRO’’

OUTRO

Este não nos maltrata mais.

E eu esmigalhar a sua cabeça com meu cacete.

(A luz apaga, quando reacende se vê no telão do fundo do palco a imagem do

OUTRO

Palácio do Governo. Ouve-se um vozerio crescente de mais cabanos que vão chegando

Pegamos um peixe grande.

com todo tipo de armamento: mosquetes, espadas, trabucos, espingardas, bacamartes,

FELIPE “MÃE DA CHUVA’’

punhais, facões, terçados e cacetes de vários formatos e tamanhos, alguns cabanos

Este tamuatá graúdo é meu. (Aponta o mosquete para Silva Santiago e dispara,

segurando bandeiras vermelhas. Cruzam a área atirando e gritando palavras de ordem.) UM CABANO

ele cai.) UM CABANO

Pela estrada de Nazaré vem vindo mais de quatro mil companheiros.

O teu tiro foi certeiro, “Mãe da Chuva’’, ele está sangrando e vai morrer.

OUTRO

OUTRO

Está quase para amanhecer e hoje será o nosso grande dia.

Vamos acabar de matar com porrada que sacia melhor o nosso ódio.

ANGELIM

(Chegam mais perto.)

(Em voz bem alta.) Prestem atenção, me obedeçam que estou no comando. Vamos

SILVA SANTIAGO

dominar a guarda do Palácio. Atirem contra ela. Agora! (A ordem é executada, não há

Tenham piedade, também sou cristão... Pelo amor de DEUS...

reação, mais tropas cabanas vão surgindo, o vozerio aumenta intercalado de explosões e


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claridades de incêndio.) Atenção! Cessar fogo! Aguardem um momento que preciso

TODOS

verificar uma coisa ali. (Sai de cena.)

Viva! Viva! Viva!

LOBO DE SOUZA

ANGELIM

(Aparecendo no fundo do palco, vindo de fora do Palácio na direção da sua

Viva o Pará dos paraenses!

porta, onde pára virando-se para os cabanos.) “Meus patrícios, se a pátria está em perigo aqui tendes mais um soldado para defendê-la.’’

TODOS Viva!

UM CABANO

UM CABANO

Quem é este bestalhão?

E morram os portugueses!

CABANO INTERROGADO

MUITOS

Não sei, moro em beira de rio, cheguei aqui de canoa ontem, não conheço

Morram!

ninguém na capital. (Surgem mais cabanos, entre eles o negro Domingos “Onça’’ e

ANGELIM

Miguel Aranha chefiando uma coluna de novos combatentes.)

Viva o nosso inesquecível Batista Campos!

MIGUEL ARANHA

TODOS

(Vendo Lobo de Souza na porta do Palácio.) “Aí está o “Malhado’’!’’

(Gritos mais fortes.) Viva!!! Viva!!! Viva!!!

UM CABANO (Armado com um porrete em cada mão.) Manda chumbo, Domingos “Onça”.

(A luz apaga para reacender sem a sonoplastia anterior. No telão a imagem do Largo de Palácio. Clima de festa, os cabanos se abraçam.)

DOMINGOS “ONÇA’’

JOÃO GONÇALVES CAMPOS

Minha pontaria nunca falhou. (“Sobraçando o clavicote faz a pontaria e puxa o

Faz um discurso, Angelim, mostra o que aprendeste com o professor Felipe Nery

gatinho’’. Lobo de Souza tomba, “o tiro foi tão certeiro que ele cai e não solta um

Pereira de Assis. Esta data será lembrada no futuro como um dia de glória, até porque, por

gemido’’.)

feliz coincidência, em 7 de janeiro, do ano de 1619, o índio guerreiro Guaimiaba, da tribo

ANGELIM

dos Tupinambás, morreu heroicamente atacando com arco e flechas o Forte do Castelo

(Reaparecendo) Vamos invadir o Palácio. (Todos se movimentam nesse sentido.)

para expulsar da nossa terra os portugueses.

MIGUEL ARANHA

GERALDO “GAVIÃO’’

A guarda se rendeu, demos o primeiro passo.

Fala pela família Nogueira, caçula.

ANGELIM

MANOEL NOGUEIRA

Parece que aqui já fizemos o que tinha de ser feito, agora é juntar as colunas e partir para ao Arsenal de Guerra, e de lá para a Fortaleza da Barra, a fim de libertar Félix Malcher.

É, fala pela família, meu irmão, porque eu sou o ‘’Manoel mole’’ e tu és o ‘’Eduardo duro’’. FRANCICO VINAGRE

MIGUEL ARANHA

Fala também pela família Vinagre.

Eu já estou indo.

ANTÔNIO VINAGRE

ANGELIM

Isso, estou de pleno acordo.

(Em voz bem alta.) Companheiros, tomamos o poder. Governaremos nossa terra.

DOMINGOS “ONÇA’’

Viva o Pará livre dos tiranos!

Fala pelos tapuios.


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FELIPE “MÃE DA CHUVA’’ Fala pelos negros. DOMINGOS “SAPATEIRO’’ Fala pelos curibocas. JOÃO GONÇALVES CAMPOS Este deverá ser o dia mais feliz do meu primo João Batista no céu. ANGELIM

QUINTINO

(Discursando) Companheiros, hoje damos o nosso Grito do Ipiranga, declarando Independência, não do Brasil, que amamos, e sim dos portugueses aqui encastelados, dominando na política para roubar e oprimir o povo pobre apesar do outro Grito do Ipiranga, o de D.Pedro I. Repito: hoje damos o nosso Grito do Ipiranga, grito de liberdade, grito de justiça, grito de autonomia para decidir sobre nosso destino sem dominação

BOM DE

estrangeira, grito de coragem que haverá de ser mensagem para as novas gerações de paraenses. Aconteça o que acontecer entre nós a partir de hoje, a História provará para sempre que a nossa revolução foi vitoriosa, porque lutamos por uma ideia e, quando temos dignidade e estamos com a razão, “A IDEIA É SAGRADA... A IDEIA NÃO MORRE’’

BRIGA

FIM

DEFENSOR DOS SEM TERRA


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PERSONAGENS

Esta peça, já foi publicada em livro como as anteriores, até a data da edição do presente data ainda não foi encenada. POETA-CANTADOR

Responsável pela apresentação do espetáculo. QUINTINO

NOTA DO AUTOR Os direitos patrimoniais do presente texto literário e dramático não pertencem a mim, que o escrevi, pertencem ao povo. Qualquer pessoa ou instituição pode mandar imprimi-lo para distribuição ao público, ou encená-lo, sem se preocupar em obter para isso autorização legal.

Protagonista da história. ABEL Parceiro de Quintino. ADVOGADO A serviço do suposto proprietário da terra onde Quintino fez a sua roça. CAPANGA Também a serviço do mencionado proprietário. ENTREVISTADOR Um velho escritor interessado na pesquisa de problemas sociais. FLORZINHO

CENÁRIO

Amigo de Quintino. SOLDADOS

Como esta peça se enquadra naquilo que chamam “teatro de rua”, tendo pretensão

Da Polícia Militar do Estado.

preponderantemente política, mais ética que estética, o cenário de cada uma das ações

LAVRADORES

representadas poderá ser apenas sugerido por palavras em uma tabuleta, caso não se queira

Vários.

ou não se possa utilizar recursos técnicos-instrumentais para melhor compor o ambiente.

PRÓLOGO ÉPOCA Década 1975-1985.

Antes de ter início a representação aparece o POETA-CANTADOR puxando uma cadeira com uma das mãos e, com a outra, segurando um violão. Gesticula

LOCAL Interior do Estado do Pará.

cumprimentando o público como apresentador da exibição que se vai assistir. POETA-CANTADOR (Senta na cadeira, dedilha o violão tirando melodia de suas cordas. Logo interrompe a execução musical e fala.) O meu nome é o do autor desta peça. Eu e ele somos a mesma pessoa, é claro, ou pelo menos deveríamos ser. Já me identifiquei, agora prestem bem atenção naquilo que vou informar. No dia 7 de janeiro de 1985, quando se


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comemorava em Belém com grande festa cívica o sesquicentenário da Cabanagem,

“Quintino, Quintino,

revolução que os caboclos pobres e oprimidos do Pará fizeram em busca de justiça social e

do rio Gurupi,

contra a dominação estrangeira, a manchete de primeira página do jornal O LIBERAL foi

coração de menino

esta:

da cor do açaí.” “PM LIQUIDA QUINTINO EM VIZEU”

“Não morreste, Quintino, ficaste encantado

Na mesma edição do referido jornal, junto com o noticiário sobre a morte de Quintino, assassinado com tiros nas costas quando se encontrava em visita fraterna na casa

tecendo o destino de um povo enganado.”

de um amigo cuja filha fazia aniversário, foram publicadas duas matérias surpreendentemente contraditórias: um artigo de famoso jurista papa-chibé, enaltecendo os

“Caboclo valente

matadores de Quintino, com o título HOSANAS À POLÍCIA MILITAR, e um poema

armado de fé,

escrito por mim intitulado CANTO-PRANTO PARA UM GATILHEIRO PARAOARA,

há um sol nascente

que tem estes versos: (Coloca o violão de lado, levanta e recita com emoção.)

para toda maré.

“Para a mesma mensagem abre-se o velho pano: festeja-se a Cabanagem fuzilando um cabano.” “Som em cada sino dos senhores da terra. Quintino, Quintino, acabou tua guerra.” “Lavradores sem nome na luta aguerrida, mais tempo com fome e a roça perdida.” “Até quando, até quando, gente sem memória, caminhareis pisando no ventre da História?”

Sossega e espera na paz de Tupã, pois a tua quimera é o nosso amanhã.” (Ainda emocionado senta e pega o violão.) Eu confesso que depois de produzir tal poema me senti inspirado e compus um hino para o agricultor. Vocês querem ouvir o meu Hino do Agricultor? (Canta, e dependendo da reação dos ouvintes repete pedindo que todos o acompanhem.) “Agricultor que se preza dorme tarde e acorda cedo. Tem fé em DEUS quando reza e de repressão não tem medo.” “Trabalha sempre com ardor lavrando a terra imatura. Colhe o fruto e olha a flor sentindo na alma ternura.”


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“Embora tendo firmeza em tudo aquilo que faz,

“Estou a serviço do povo,

comunga com a natureza

com ele aprendi a pensar.

em plena harmonia e paz.”

Sou pinto dentro do ovo, mas sei como galo cantar.”

“Mas se alguém o explora na sua nobre labuta,

“Canto toda madrugada,

ele reage na hora

pois nunca tenho preguiça.

enfrentando qualquer luta.”

Não canto a mulher amada, o que canto é a justiça.”

“Agricultor que se preza dorme tarde e acorda cedo.

(Volta a sentar, tira uns acordes do violão.) Eu terei o maior prazer em cantar, ou

Tem fé em DEUS quando reza

contar, aqui e agora, a vida, paixão e morte do Quintino justiceiro, defensor dos lavradores

e de repressão não tem medo.”

sem terra no Pará. Vocês querem que eu faça isto? Querem? Preferem apenas me ouvir como poeta e cantador ou ver a história do Quintino em termos teatrais? Preferem ver, não

Lindo, não é? Se vocês gostaram podem utilizar este hino, cantando ou gritando a

é? Então vamos lá, preparei tudo para mostrar, também dou os meus pulinhos como

última estrofe dele como palavra de ordem nas manifestações públicas do movimento dos

dramaturgo. Antes, porém, preciso dizer mais alguma coisa a vocês, a fim de que

sem terra, que jamais pensarei em cobrar direitos autorais. Confiem em mim, embora não

compreendam como, e porque, foi importante, absolutamente necessária, a luta heróica do

conheçam o meu passado. Eis como me identifico, sem mentir: (Novamente em pé.)

Quintino. Ouçam: (Retira do bolso um papel e lê.)

“Sou poeta popular e disso muito me orgulho. Se alguém quer me embrulhar saiba que eu o embrulho.”

“INFORMATIVO DO COMITÊ RIO MARIA, nº 80, Ano XIV, janeiro de 2004, editado em Xinguara, assinado por Luzia Canuto O. Pereira e pelo Frei Henri B. des Roziers, da Comissão Pastoral da Terra (CNBB): De 1971 a 2003 foram assassinados 726 trabalhadores rurais só no Estado do Pará.” Ouviram? Mais de setecentos trabalhadores rurais assassinados. Preciso dizer que

“Sou poeta vagabundo

os assassinos sempre foram pistoleiros de aluguel contratados por alguns grileiros,

escravo da liberdade.

fazendeiros, madeireiros e outros empresários, que jamais acabam na cadeia porque para os

Para melhorar o mundo

endinheirados, como garantia o governador paraense Magalhães Barata, “lei no Brasil é

digo somente a verdade.”

potoca”? Já escrevi e publiquei no livro VERSOS PARA OS POBRES e OPRIMIDOS estas rimas: (Levanta outra vez e fala em tom solene.)

“Tenho inteligência aberta para o lado do esquerdismo.

“Uma coisa ninguém nega

Não gosto e gente esperta,

nesta vida atormentada:

detesto o capitalismo.”

a Justiça além de cega


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quando anda é aleijada.

“É estarrecedor constatar um padrão de impunidade que caracteriza as ações do

Sempre caminha aos tropeços

sistema penal paraense no tratamento dos crimes agrários. Assim, outras mortes

e quem quiser verifica

por encomenda de trabalhadores rurais no Pará permanecem impunes na Justiça

que só chega em endereços

penal paraense.

onde mora gente rica.”

“Pesquisei a pistolagem e a impunidade no Pará entre os anos de 2006 e 2010. Analisei os autos de sete processos criminais, como os referentes aos casos de

“Assim foi e assim será a Justiça neste mundo, mas no interior do Pará o abismo é mais profundo. A Justiça é uma droga na veia do povo inteiro, pois raro é o juiz de toga que condena um fazendeiro.”

João Canuto de Oliveira, das chacinas da fazenda Ubá e Pastorisa, da morte de “Brasília”, entre outros. É a partir desse farto material que empreendo a reflexão aqui exposta. “Como explicar o padrão de impunidade nos crimes de pistolagem que é produzido e reproduzido pelo sistema penal paraense? Sabe-se que os matadores de aluguel são importantíssimos para a invisibilidade jurídica dos mandantes. A fragmentação das ações delituosas é fundamental para que a impunidade seja a pedra de toque quando se fala em pistolagem e de sua relação com a justiça penal no Pará. Daí a participação em muitos casos de intermediários ou “corretores” da

“Como tal fato acontece e a imprensa não encobre,

morte, cuja função é a de intermediar o contrato de morte entre o autor intelectual do crime e o pistoleiro.”

como jamais aparece a justiça para o pobre, não mais acredita na lei quem vive da mandioca, já disseram e eu bem sei: lei nesta terra é potoca.”

(Faz breve pausa.) Ouviram? Vejam a que ponto chegamos: no interior do Pará já existe até uma nova categoria profissional, a dos “corretores da morte”, especialistas em intermediar contrato de prestação de serviço entre pistoleiros e latifundiários, utilizando uma tabela que estipula o preço do assassinato em função da importância social da vitima. Bem, depois desta novidade acho que já falei o suficiente, agora vocês vão ver, relativamente ao Quintino bom de briga, para não dizer bom de bala, como as coisas

(Torna a sentar, põe a mão no queixo com um ar de reflexão.) Lei nesta terra é potoca ... Esta é a triste realidade que Quintino viu. E porque tinha idealismo e dignidade

devem ter acontecido segundo a minha imaginação, isto é, segundo a minha visão pessoal de artista, não de historiador. (Sai de cena como entrou, levando a cadeira e o violão, e só

fez o que fez, pelo que devemos honrar a sua memória com a maior admiração. Talvez

reaparece para colocar diante da plateia tabuletas com poucas palavras, indicativas de

alguns de vocês que estão me ouvindo pensem: a denúncia do assassinato de mais de

cada ação dramática.)

setecentos trabalhadores rurais em terras paraenses foi feita em Rio Maria no ano de 2004, vai ver que depois dela as coisas melhoraram... Pura ilusão! Pioraram. (Tira do bolso uma página de jornal.) Eis o que declara Ed Carlos de Souza Guimarães na edição de 8 de julho de 2010 do jornal O LIBERAL, em matéria publicada no Caderno POLÍCIA sob o título PISTOLAGEM NO PARÁ:


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ATO ÚNICO

LAVRADOR DOIS Também acho.

CENA 1

QUINTINO

Tabuleta: Doce esperança

Vocês dois são mais velhos do que eu, possuem mais experiência da vida, talvez

Quintino se ocupa em desmatar um terreno auxiliado por dois outros lavradores. QUINTINO Neste pedaço eu planto milho, arroz, mandioca e feijão, o bananal vai ser mais

tenham razão, talvez estejam certos, porém na minha maneira de pensar a gente deve sempre ser a favor da paz e não da desavença. LAVRADOR UM

adiante.

Eu confio somente naquilo que aprendi a custa de muito sofrimento. E,

LAVRADOR UM No município de Ourém a terra é boa. LAVRADOR DOIS Principalmente aqui em Broca, perto do quilômetro setenta da Pará-Maranhão.

infelizmente, o que aprendi foi que se não comprarmos com dinheiro, de papel passado, um lote de terra, não adianta ser posseiro porque cedo ou tarde vai surgir um safadão para nos tomar o terreno e nem sequer nos indenizar pelas benfeitorias que fizermos nele. QUINTINO

QUINTINO

E para que serve a Justiça?

Tomara que desta vez eu tenha acertado, o terreno seja do governo. Já tentei fazer

LAVRADOR UM

a minha roça em outros lugares, mas sempre, depois de muito trabalho, quando começo a

Para nada.

ter algum lucro com a colheita, aparece alguém para dizer que a terra lhe pertence. Antes

LAVRADOR DOIS

de eu vir para cá um fazendeiro me expulsou de um terreno perto do município de

Na minha opinião, serve para defender o interesse dos poderosos. Tão somente

Primavera. LAVRADOR UM Por que você concordou em ser expulso? LAVRADOR DOIS Devia ter peitado o tal fazendeiro. QUINTINO Detesto briga, sou de paz. Se não tivesse mulher e filhos para sustentar, se não precisasse garantir o futuro da família enquanto sou novo e tenho saúde, acho que não teimava mais em ser agricultor, na esperança de prosperar na vida. Voltava a ser amansador de touro e burro brabo. Sabe que às vezes tenho saudade do tempo em que amansava touro e burro brabo em São José do Piriá? Gostava disso, era muito bom olhar os bichos calmos e não enraivecidos, me dava prazer vendo eles se tornarem meus amigos, não sou de malquerença com ninguém, nem mesmo com os animais. LAVRADOR UM Você pensa bonito, Quintino, porém neste mundo quem deixa de ser esperto e valente acaba sendo ferrado pelos outros.

isto. LAVRADOR UM Você está enganado: serve também para mandar prender os pobres. LAVRADOR DOIS Concordo. QUINTINO Eu tenho confiança na Justiça. LAVRADOR UM De ilusão também se vive ... QUINTINO E confio que desta vez tudo vai dar certo para mim. Logo depois de acabarmos este desmatamento cercamos o terreno e começamos a semear. O serviço vai ser duro, mas eu pago bem a vocês, podem ficar tranquilos que tenho dinheiro guardado para isso, economizei durante mais de um ano. LAVRADOR UM Nós não estamos duvidando do seu pagamento.


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LAVRADOR DOIS

QUINTINO

Somos também pessoas confiantes, só não confiamos na justiça dos homens, pelo

Vocês precisam arranjar uma família para ganhar novo ânimo. Em breve vão

que já vimos e ouvimos os outros contarem. QUINTINO Vocês vão ver que tudo dará certo, e se quiserem continuar trabalhando comigo não vão se arrepender, logo que a nossa produção começar a dar lucro saberei recompensar quem me ajudou para que também se torne posseiro. Depois nos juntamos com os vizinhos e fundamos uma Cooperativa. Todos haveremos de ser ainda muito felizes, prosperando para dar conforto às nossas famílias. LAVRADOR UM Eu não tenho família. LAVRADOR DOIS Nem eu. LAVRADOR UM Nunca quis me casar nem tive irmãos, e meus pais já morreram. LAVRADOR DOIS Minha mulher me largou e levou os filhos, porque cansou de passar fome. Sumiu, não sei para onde ela foi. QUINTINO Que pena! Mas tenham fé em DEUS que às vezes o destino muda por completo. Quando a gente trabalha com afinco e não prejudica ninguém, não rouba nem mata, a sorte um dia melhora. Acreditem nisso, e como eu não percam a esperança. LAVRADOR UM Eu já perdi. LAVRADOR DOIS Eu nunca tive para perder. QUINTINO Puxa vida, vocês estão muito desanimados! LAVRADOR UM Como não estar depois de tudo o que já padecemos? LAVRADOR DOIS Por ter bondade no coração igual ao seu.

conhecer a minha, logo que eu construir neste terreno uma casa vou trazer para cá minha mulher e filhos.


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CENA 2 Tabuleta: Amargo despertar Ambiente festivo no terreiro em frente a casa de Quintino. UM LAVRADOR Quem diria que em menos de dois anos o Quintino conseguiria fazer no meio deste mato um sítio de tão boa produção, com uma bela casa.

778

Chegaram na hora errada. Agora estou reunido com os meus amigos e não posso atender ninguém em particular. CAPANGA (Pondo a mão no revólver.) Mas vai atender porque o doutor aqui veio de longe, mora em Belém. QUINTINO

OUTRO

Está me ameaçando?

Ele plantou de um tudo, vai ganhar muito dinheiro.

CAPANGA

OUTRO

Por enquanto não, só queremos ter uma conversa em particular.

E se nos convidou para este putirum certamente não foi só para fabricar farinha,

QUINTINO

vai anunciar alguma festa de inauguração.

Eu não faço nada escondido, comecem logo a dizer o que desejam.

OUTRO

CAPANGA

Conheço um sanfoneiro do arromba que pode ser contratado para a festança.

O assunto é complicado ... O meu patrão é o dono desta terra.

OUTRO

QUINTINO

Eu estou neste fim de mundo vindo do Ceará, forró é comigo mesmo. OUTRO Quintino não é de farra, é somente de trabalho, por isto é que progrediu tão

É? E por que só mandou me avisar agora? Estou plantando neste terreno há quase dois anos, gastei nele todas as minhas economias, além do meu suor. CAPANGA Esta parte do problema discuta com o advogado que me acompanha. Comigo tem

ligeiro. OUTRO E progrediu também porque é um homem sério e bondoso. Faz tudo dentro do que é direito e ajuda como irmão qualquer pessoa que precisa dele. QUINTINO (Aproximando-se do grupo.) Estão falando mal de mim? Daqui a

o seguinte: você deve sair daqui e vai sair por bem ou por mal. ADVOGADO Senhor Quintino, permita-me lhe dar as explicações que o caso requer. O meu cliente é o legítimo proprietário destas terras.

pouco vão mudar de opinião, quando provarem a maniçoba que a minha mulher está

QUINTINO

preparando para vocês. E antes vou mandar servir para todos meia cuia de cachaça de

Proprietário não, grileiro, pensa que eu sou bobo?

Abaeté. (Aparecem dois sujeitos, um de aparência distinta, outro com jeito de capanga,

ADVOGADO

revólver na cintura. Dirigem-se a Quintino.)

Ele possui documentos.

CAPANGA

QUINTINO

Precisamos ter uma conversa em particular.

Tudo falsificado.

QUINTINO

ADVOGADO

Sobre o que?

Absolutamente. Documentos reconhecidos por quem desfruta de fé pública.

CAPANGA

QUINTINO

Vim procurar você a mando do patrão, trazendo este advogado. QUINTINO

Olhe aqui, doutor, não tente me enrolar com o seu palavreado difícil. Quando chegou aos meus ouvidos pela primeira vez, semana passada, o zum-zum-zum da existência desse seu cliente, como sou um homem de boa fé mas não sou besta procurei


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CENA 3

imediatamente o Sindicato na cidade, e fui informado de toda a situação direitinho. Já sei como as coisas são tramadas contra nós, posseiros, por estas bandas. Já sei que as

Tabuleta: Primeiro tiro

bandalheiras dos fazendeiros são tantas que eles chegaram até a mandar incendiar um

Quintino está sozinho no mato, chega o Capanga.

Cartório em Vizeu, no ano de 1975. O que essa cambada de bandidos endinheirados deseja

QUINTINO

não é se dedicar à agricultura, aproveitando as estradas feitas pelo governo, é explorar os nossos minérios, principalmente ouro, e derrubar a floresta para criar bois.

Por que mandou recado marcando encontro comigo aqui? Por que não foi na minha casa?

ADVOGADO

CAPANGA

Sou obrigado a reconhecer que você pode não ter nenhuma cultura, pode ser até

Porque não quis.

analfabeto, mas é muito inteligente. Deve estar sendo orientado também pelos padres. Não

QUINTINO

esqueça que ainda estamos em uma ditadura militar. Em 1972, o bispo de São Félix do

Boa explicação... E por que não quis?

Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, acusado

CAPANGA

de insuflar posseiros contra proprietários de terras que estão promovendo o

Porque hoje vamos tratar do nosso assunto de homem para homem. O patrão não

desenvolvimento econômico da Amazônia. QUINTINO

está mais disposto a suportar cabra safado ocupando a terra dele. Como é, vou lhe perguntar pela última vez: vai embora daqui ou não vai?

Obrigada por reconhecer que sou inteligente.

QUINTINO

ADVOGADO Exatamente porque é muito inteligente decerto não vai querer enfrentar de peito aberto quem tem força para lhe obrigar a ir embora daqui.

Só saio se receber uma indenização justa pelas benfeitorias que fiz no terreno, inclusive pela casa por mim construída nele. O terreno estava abandonado, ninguém poderia imaginar que tinha dono.

QUINTINO

CAPANGA

O senhor, que possui anel de doutor no dedo, também está me ameaçando como

Então não vai sair mesmo daqui por bem, não é?

este aí que tem revólver na cintura? Saiba que a Justiça vai me dar razão e fazer a Polícia

QUINTINO

me proteger. Ninguém me tira daqui a não ser indenizando todas as benfeitorias que fiz neste terreno. E chega de conversa fiada, sem proveito.

É, já disse que não sairei sem uma indenização justa. E não me chame de safado, safado é o seu patrão. CAPANGA Pois se assim é, eu lhe mato logo, tenho ordem para isto. QUINTINO Eu bem desconfiei, achando que você tinha essa intenção quando marcou encontro comigo neste local. (Põe no bolso da calça a mão direita.) Pense no que está dizendo. CAPANGA Não tenho mais o que pensar, vou lhe mandar logo para o Inferno. (Busca impunhar o revólver que guarda na cintura, Quintino retira a mão do bolso segurando uma arma de fogo e atira primeiro. O Capanga cai morto.)


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CENA 4

CENA 5

Tabuleta: Outros tiros na floresta

Tabuleta: Conversa com o parceiro em pequena estrada

Quintino ora correndo, ora esgueirando-se dentro do mato, dá mais dois tiros.

Quintino conversa com Abel, caminhando vagarosamente.

QUINTINO

QUINTINO

Agora é matar ou morrer, seja o que DEUS quiser.

A notícia de que matei os três já se espalhou nas redondezas, estão me caçando como animal feroz. ABEL Quem diria! Sempre fostes tão conciliador, tão pacato... QUINTINO Todos nós temos um destino, não podemos fugir dele. ABEL É verdade. QUINTINO Já combinei com a minha mulher, tenho de abandonar ela e as crianças, se não fizer isto todos morrerão ao meu lado. ABEL Realmente é o que pode acontecer. QUINTINO Estou pensando em me mudar sozinho para qualquer outro lugar e trocar de nome, a fim de que ninguém descubra quem eu sou. Talvez tenha de passar o restante da vida fugindo. Talvez forme um bando de justiceiros para defender agricultores perseguidos por fazendeiros. Talvez... Não sei, daqui para a frente os meus passos serão guiados por DEUS. ABEL Se for para defender lavradores contra pistoleiros de aluguel eu te acompanho.


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CENA 6

CENA 7

Tabuleta: Anúncio de guerrilha em local ermo

Tabuleta: Desabafo em ambiente hospitaleiro

Quintino veste-se diferentemente portando na cintura revólver e cartucheira. Usa

Quintino está sendo entrevistado. Enquanto o entrevistador faz os seus registros

botas de cano longo, na cabeça tem um chapéu de feltro e no pescoço um grosso cordão

ele anda de um lado para outro, às vezes colocando forte carga de sentimento naquilo que

de ouro. No rosto ostenta vistoso bigode. Em sua companhia está Abel.

fala.

QUINTINO Já não sou um simples gatilheiro, estou começando uma guerrilha.

QUINTINO Esta roupa me deram, o cordão de ouro foi presente de um amigo garimpeiro que

ABEL

me pediu para eu não tirar do pescoço, o chapéu e as botas também foram presentes, o

Para ninguém botar defeito...

bigode é para disfarçar meu rosto.

QUINTINO Nossos irmãos perseguidos por fazendeiros estão nos pedindo ajuda de diversas localidades. Temos de ir a todas.

ENTREVISTADOR Eu li a entrevista que o repórter Paulo Roberto Ferreira teve a coragem de fazer com você, para publicar na imprensa de Belém. Como conheço a competência e a

ABEL

honestidade do Paulo Roberto Ferreira desde quando ele fazia parte do Jornal

Vamos.

RESISTÊNCIA, editado graças à Sociedade Paraense de Direitos Humanos para criticar a

QUINTINO

ditadura militar, pelo que foi demitido sumariamente da Caixa Econômica Federal onde era

Em cada município a gente aumenta o grupo de acordo com a necessidade.

funcionário concursado, acreditei no que li e passei a admirar a sua luta em favor dos sem terra. Porém falam que você é um assassino cruel, um novo Lampião. O que me diz em sua defesa? Por que mata tanta gente? Por que não volta a ser o que era no passado? QUINTINO Porque de onde eu cheguei ninguém volta. E jamais vou querer voltar enquanto não houver justiça neste Estado. ENTREVISTADOR Mas existe justiça no Pará, Quintino. QUINTINO De mentira, não de verdade. Já acreditei nela, confiei na Justiça e me arrependi. O senhor sabe o que foi a minha luta antes de matar o primeiro ser humano para não morrer? Procurei o Sindicato, consegui um bom advogado para defender o meu direito, ele fez tudo o que era certo e não deu em nada. Agora não luto mais por mim, luto por um ideal, o de proteger outros lavradores sem terra que sofrem a mesma perseguição. Eu não sou mau, continuo tendo bom coração, só mato pistoleiros de aluguel que se não morrerem vão matar pais de família. Já matei uns cem.


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ENTREVISTADOR

QUINTINO

Mas Quintino, existem as leis.

Acho. E estou tranquilo. Quem como eu já perdeu suas plantações, sua casa e sua

QUINTINO Que são feitas por deputados e senadores eleitos com ajuda financeira dos ricos para zelar pelos interesses deles mesmos, não do povo. ENTREVISTADOR Existem as autoridades que são responsáveis por aquilo que é correto. QUINTINO

família nada mais tem de importante a perder. ENTREVISTADOR Bem, para terminar, aliás bastante agradecido pela sua atenção e sinceridade, uma última pergunta: por falar em família, você tem saudade da sua? QUINTINO (Fica por um tempo silencioso e no seu rosto se desenha um esboço de pranto.

Eu, antes de dar o primeiro tiro para não levar bala no peito, procurei muitas

Esforça-se visivelmente para não chorar.) Ainda amo muito a família que tive. Minha

autoridades do governo, estadual e federal. Até para o Presidente da República escrevi uma

mulher foi para mim uma santa... As três meninas uns anjos... Eu queria tanto fazer delas

carta que ficou sem qualquer resposta. Tudo em vão, por isso agora somente recorro ao

professoras... Talvez pelo menos uma pudesse ser médica... E o menino? Ah! O menino...

gatilho do meu revólver, sou um gatilheiro.

Ele se parecia muito comigo no comportamento calmo... (coloca as duas mãos no rosto

ENTREVISTADOR Você não quer ver agricultores expulsos de suas roças. Tudo bem, é uma atitude nobre, acontece que frequentemente as terras possuem legítimos proprietários. QUINTINO Na grande maioria das vezes são donos de empresas de fora do Estado, que moram no sul do país e compram as terras por meio de negociatas, falsificação de documentos e outras safadezas que alguns advogados sabem muito bem fazer, ajudados por gente de Cartório e até por determinados juízes que se vendem ou se deixam levar por pressão de políticos. É tudo uma quadrilha da pior espécie. Quando um juiz não faz parte dela, e dá sentença favorável a nós, eles recorrem, os anos vão se passando e o processo não chega ao fim. E se chegar, junto com o fim do processo um pistoleiro dá fim no colono. ENTREVISTADOR Você argumenta com facilidade e lucidez. Se não estou do seu lado é porque sou adepto da não-violência. Contudo, no fundo, também não estou contra as suas ideias. Gostaria de lhe fazer outra pergunta: você já pensou que matando tantos pistoleiros cedo ou tarde também será morto por algum deles? QUINTINO A morte faz parte da vida. É preferível morrer enfrentando o inimigo do que correndo na frente dele. ENTREVISTADOR Você acha então que não existe a menor possibilidade de mudar de vida?

para não mostrar as lágrimas.)


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CENA 8

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QUINTINO

Tabuleta: Discussão sobre o governo

Depois de chegar onde chegamos não devemos recuar. Temos uma missão a

Em local doméstico

cumprir, vamos em frente, dê no que der.

Quintino discute a situação com Abel e outros membros do seu grupo. QUINTINO Ficamos famosos, até o governador está preocupado com a gente. ABEL Tu vais dar a trégua que ele pediu? QUINTINO Ainda não sei, acho que vou dar um prazo para o governo resolver de uma vez por todas o nosso problema. Se continuarem a não fazer nada de positivo, voltamos a atacar. UM MEMBRO DO GRUPO Talvez fosse bom sairmos daqui da Gleba CIDAPAR. OUTRO Até porque tem muitos lavradores perseguidos por fazendeiros em outros lugares. QUINTINO Não devemos dar sinal de fraqueza. ABEL É, não podemos dar o braço a torcer. OUTRO INTEGRANTE DO GRUPO Mas o governo é forte, ninguém vence o governo. QUINTINO Está com medo? O MESMO MEMBRO DO GRUPO De jeito nenhum, só estou lembrando que o governo tem muitos soldados e muito armamento. QUINTINO O governo não vai querer sair contra o povo para ajudar fazendeiros. E o povo está nos apoiando. OUTRO MEMBRO DO GRUPO Mas o governo não sabe disso porque os jornais só dão notícias contra nós.


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CENA 9

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é o nosso amanhã.”

Tabuleta: A morte em recinto familiar Quintino está na residência do seu amigo Florzinho, cuja filha faz aniversário.

Depois de ligeira pausa.

QUINTINO Eu não poderia deixar de te fazer hoje uma visita para dar parabéns pelo

“Agricultor que se preza dorme tarde e acorda cedo.

aniversário da tua menina. FLORZINHO

Tem fé em DEUS quando reza

Estás correndo enorme risco, chegaram na cidade dezenas de soldados da Polícia

e de repressão não tem medo.”

Militar do Estado, dizem que com ordem de te prender vivo ou morto. Eles estão sendo alimentados pelo dono de um posto de gasolina ligado a um fazendeiro que já comprou até

Todos repetem várias vezes estes versos, em tom cada vez mais alto e mais enérgico.

foguetes para festejar a tua morte. (Ouve-se uma voz vinda de força da casa.)

FIM

VOZ Quintino, sai com as mãos para cima sobre a cabeça, toda a casa está cercada por trinta soldados com fuzil engatilhado. FLORZINHO E agora? QUINTINO Alguém me traiu, informando que eu estava aqui. (Os soldados invadem a casa, Quintino tenta escapar pulando uma janela, é alvejado pelas costas, cai morto.)

CENA 10 Tabuleta: A mensagem no velório Quintino está no caixão, rodeado de velas acesas. Lavradores vão chegando cada vez mais, consternados. Reaparece o POETA-CANTADOR e puxa um coro. POETA-CANTADOR “Caboclo valente armado de fé, há um sol nascente para toda maré. Sossega e espera na paz de Tupã, pois a tua quimera


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Esta peça ainda não foi encenada nem publicada. Segundo nos disse o autor, um dos seus filhos acha que este é o seu melhor texto dramático. Ele mesmo, o autor, afirmou para nós que não tem preferência por nenhuma de suas obras escritas para o palco, gosta igualmente de todas.

SONHO DE

CENÁRIO De livre concepção surrealista. Apenas duas portas em lados opostos, uma representando entrada para o Céu, outra para o Inferno.

UMA NOITE

PERSONAGENS CARLOS Ator de idade avançada que tanto ama o teatro quanto a Igreja Católica, à qual

DE INVERNO

presta serviços na condição de Diácono. AUGUSTO Competente diretor de espetáculo cênico. MOREIRA Ator superlativamente culto. OSCAR Ator cômico irreverente. ANA Atriz idosa, séria e distinta. DICA Veterana atriz de humor escrachado. CLARA Atriz que teve formação artística em novelas de rádio. JULIETA Atriz apaixonada pelo teatro popular, folclórico. GABRIEL Anjo. BELZEBU Demônio.


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ATO ÚNICO

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pose de Greta Garbo morre de inveja do meu sucesso de público. JULIETA Eu igualmente estou feliz em estar contigo, Dica, e não com a Clara, que só sabe

Cena em completa escuridão. Ruídos de chuva forte, torrencial. Barulho de avião voando, interrompido por explosão. Ligeira pausa. Claridade

representar segurando microfone. A luz começa a piscar e apaga. Ao reacender todos, inteiramente recompostos,

intermitente de relâmpagos, seguida pelo som de trovões, mostra corpos estirados no chão. A iluminação natural do palco, ou espaço adequado a teatro de arena, começa a ser feita gradativamente. Os personagens do enredo da peça, menos o

encontram-se conversando no centro da área de representação, distanciados das duas portas laterais. CARLOS

Anjo e o Demônio, inertes como mortos, aos poucos vão se mexendo, levantam-se

Realmente estamos em uma situação inusitada.

com dificuldade e ensaiam passos trôpegos em duplas, cada um se apoiando no

MOREIRA

outro.

"Sui-generis". DICA

CARLOS

(Para Oscar.) O que significa “sui-generis”?

Graça a DEUS estou junto de ti, Oscar. Melhor assim do que me encontrar ao lado

OSCAR

do Augusto, que aprendeu teatro comigo e agora se julga superior a mim.

“Sui-generis” eu não sei, mas inusitada quer dizer diferente, fora do comum,

OSCAR Eu também me sinto satisfeito em estar perto de ti, Carlos, e não do pretensioso Moreira, que apesar de toda a sua cultura, e experiência teatral, como ator não passa de um canastrão. AUGUSTO Felizmente estou ao teu lado, Moreira. Não gostaria de me encontrar junto com o Carlos, que só porque me deu umas aulinhas sem valor no passado, pensa que, atualmente, é melhor do que eu em arte cênica. MOREIRA Digo o mesmo, Augusto, ainda bem que estou contigo e não com o Oscar, um mambembeiro, mero contador de piadas indecorosas. ANA Que bom eu estar em tua companhia, Clara, e não da Dica, que me incomoda sempre com sua falta de pudor. CLARA Também me alegro em estar contigo, Ana, não tendo de suportar a Julieta, que só sabe falar sobre bumba-meu-boi, cordão de pássaros de São João e pastorinha. DICA Estou bastante feliz em estar contigo, Julieta, e não com a Ana, que embora faça

burra! DICA Burra é a tua mãe, palhaço de circo mixuruca, piolho de minhoca! ANA Por favor, não briguem desse jeito, tenham classe. CLARA Falem sem gritar, como artista de rádio. AUGUSTO Tenham comportamento educado e postura cênica, nos achamos isolados, mas talvez estejam nos filmando. ANA Será que mergulhamos em um delírio. DICA Ou em uma alucinação? OSCAR Alucinação é a mesma coisa que delírio, analfabeta! ANA Pelo amor de DEUS, tenham um mínimo de elegância.


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AUGUSTO

ANA

Talvez nos encontremos drogados.

(Para Carlos.) Só porque somos velhos nos faltam com o respeito.

CARLOS

CARLOS

Eu nunca me drogaria. Não esqueçam que sou quase um sacerdote da Santa Madre Igreja, posso até ministrar alguns sacramentos.

Ignoram que chegará a vez deles. (Para Moreira.) Sou velho mas tenho saúde, não estou cheio de doenças como tu.

MOREIRA

MOREIRA

Uma possibilidade científica é a de nos acharmos sob hipnose.

Velho não precisa ficar doente porque a própria velhice já é uma doença.

ANA

ANA

Hipnose? Se estamos com a consciência alterada por sugestão de outra pessoa,

(Para ele.) Devias respeitar os velhos, pois falas muito em sabedoria. Eles

como não perdemos a noção de quem somos nem deixamos de raciocinar perfeitamente? CLARA (Para Moreira.) Responde esta pergunta, sábio de meia tigela.

tiveram mais tempo para aprender. MOREIRA Tiveram, contudo nem sempre· aproveitaram o tempo maior para realmente

AUGUSTO

aprender. Da forma como andam as coisas na sociedade moderna eu respeito mais as

É provável que estejamos vivenciando efeitos retardados dos exercícios

crianças do que os adultos de qualquer idade, elas possuem a sabedoria da inocência.

mentais que realizamos antes da estréia da peça para a criação interior dos

AUGUSTO

personagens.

(Para Moreira.) Afinal, o que faremos?

ANA

MOREIRA

Eis uma consideração técnica absolutamente aceitável.

O ponto crucial da nossa dificuldade é que nem sequer sabemos se devemos fazer

DICA

alguma coisa. Estamos naquilo que pode ser definido como insanável dilema.

Falou bonito, princesa...

DICA

AUGUSTO

(Para ele.) Não entendi patavina do que disseste.

Acabei de escutar uma ironia.

OSCAR

MOREIRA

(Para ela,) Eu te explico, idiota.

Ironia não, sarcasmo.

DICA

JULIETA

Então explica, veado.

(Para Dica.) Respeita a Ana que ela tem idade de ser tua mãe...

ANA

OSCAR

Será que estamos simplesmente sonhando?

Ou avó...

MOREIRA

ANA

Não. O sonho, tendo uma causa fisiológica, ou psicológica, é sempre um

(Para Carlos.) Eu não devia ter me enturmado com essa gente.

fenômeno individual, jamais coletivo.

CARLOS

ANA

Nem eu porque, como diz o povo, quem com porcos se mistura fareIo come.

Sendo assim...

(Moreira solta uma gargalhada.)

CARLOS Se não se trata de sonho...


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AUGUSTO

AUGUSTO

Nem efeito de exercício de pensamento criador...

Devemos proceder com realismo, esquecendo de fingir como atores.

OSCAR

DICA

Nem resultado de droga...

Se me baterem demais vou dar porrada sem dó nem piedade.

CLARA

CARLOS

Nem delírio...

Não me agrada o recurso, DEUS há de me perdoar por tê-lo proposto, porém é o

JULIETA

único de que dispomos. Vamos começar?! (Esbofeteiam-se. Quando caem exaustos

Nem qualquer outra ilusão...

acomodam-se sentados em círculo.)

Há um silêncio prolongado, angustiante.

DICA

DICA

Valeu, macacada, eu gostei.

Vocês não estão querendo achar que nós morremos, estão? ...

CARLOS

CARLOS

Alguém sentiu alguma dor ao contrário de mim?

Só existe um modo de sabermos: fazendo uma coisa que sempre tivemos vontade

AUGUSTO

de fazer e nunca fizemos. Vamos nos dar tapa na cara, uns nos outros. Se as bofetadas

Engraçado, eu não...

doerem é porque estamos vivos, se não doerem é porque morremos mesmo.

MOREIRA

DICA

Não, eu não...

E estamos todos fumados...

ANA

MOREIRA

Não, eu não...

A ideia de verificarmos nossa sensibilidade física com bofetadas é interessante.

CLARA

DICA

Não, eu não...

Mais interessante do que com bofetada é fazer a verificação com ponta-pé na

JULIETA

bunda.

Não, eu não... ANA

OSCAR

Estou no meio de malucos...

Vocês só sabem dizer “não, eu não”. Pois eu também não senti dor nenhuma, mas

JULIETA

senti coceira no sovaco.

Malucos não, doidos varridos.

DICA

CLARA

E eu senti coceira em outra parte do corpo... Muito excitante.

Com quem eu fui me meter, depois de tanto tempo sossegada no estúdio da minha

CARLOS

emissora radiofônica...

(Para ela.) Doida, enfrenta a realidade: nós morremos! MORREMOS!!!

CARLOS

DICA

Topam a experiência?

Estás chutando...

TODOS

AUGUSTO

(Depois de vacilarem.) Claro.

Não há dúvida, morremos.


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MOREIRA

MOREIRA

Admito a hipótese como plausível.

Aprendi contigo, jararaca.

CLARA

CARLOS

Sim, morremos. ANA

Não custa ouvirmos a idéia dela, ninguém desconhece que às vezes DEUS escreve certo por linhas tortas.

“Assim é se lhes parece”...

DICA

OSCAR

E se manifesta até por pessoas safadas. Sendo assim devemos também ouvir o

Morremos... JULIETA Morremos... DICA .. . (Transitando da incredulidade para o convencimento perturbador.) É??? Morremos mesmo, maninhos do meu coração???... Choram copiosamente, à exceção de Carlos que reza com fervor. No pranto convulsivo cada um diz algo diferente dos outros, recordando parentes e amigos, traições amorosas, dívidas a pagar, deslizes éticos, fraquezas etc., ficando isto, evidentemente, a

Oscar... CLARA (Para ela.) Não provoca, deixa de ser maldosa. Tens despeito do Oscar porque ele é mais engraçado do que tu. ANA Não comecem nova briga, vamos examinar a idéia supostamente genial da Julieta. OSCAR Se a idéia dela não servir para nos tirar dessa arapuca, anotem aí, eu vou dar uma que pode não ser genial mas é do cacete.

critério do diretor do espetáculo, tendo em vista sobretudo a duração desejada para o

JULIETA

mesmo.

Vocês me tratam como se eu fosse uma indigente mental, sem cultura, mas vou JULIETA

mostrar que estão redondamente enganados. A idéia que acabei de ter é realmente genial e

(De repente grita, pulando de contentamento.) Gente, eu tive uma ideia genial, eu

não bestial.

tive uma ideia, uma ideia genial! (Todos se espantam.)

MOREIRA

AUGUSTO

(Gargalhando outra vez, para Julieta.) Tu sabes o que significa o termo bestial.

(Para Moreira.) Os pulinhos que ela deu são cacoetes de quem faz teatro em

DICA

pássaros de São João e boi-bumbá. MOREIRA Se não for ataque de histeria devemos analisar a idéia dela, já que estamos em um impasse sem vislumbrar qualquer saída.

Não interrompe, bestalhão. JULIETA Vocês precisam saber que me dedico ao teatro folclórico não porque seja uma ignorante, e sim porque admiro o povo pobre, que não possuindo o saber da Universidade tem uma

CARLOS

sabedoria mais valiosa. Querem a prova disso? Pois lá vai: acabei de lembrar um ditado

(Tendo ouvido.) E não percamos as esperanças, podemos ser salvos por um

popular que diz: “pancada de amor não dói”. Então raciocinei e chequei à conclusão de que

milagre.

não sentimos dor das pancadas que nos demos uns nos outros porque, apesar dos pesares, MOREIRA

no fundo nos amamos muito, e não porque tenhamos morrido.

Somente o fato da Julieta ter tido uma idéia já é um milagre, seja ela boa ou má...

Todos se entreolham, surpresos. Por um instante refletem.

ANA

CARLOS

(Para ele.) Nem morto perdeste o veneno.

Sabem que talvez ela tenha razão?!


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MOREIRA

OSCAR

Embora a teoria da Julieta seja muito sentimental para o meu gosto, admito que

Assim seja, comigo ao lado d’Ele aproveitando as mordomias da Eternidade...

tem sua lógica...

DICA

AUGUSTO

(Para Ana.) Este cara parece ao mesmo tempo homem e mulher...

É lógico que tem lógica...

ANA

ANA

Acho que é um Anjo.

Tem...

DICA

CLARA Sim...

E daí? Vou saber em que time ele joga... (Dirigindo-se ao Anjo.) Prazer em conhecê-lo, eu me chamo Dica, como é o seu nome ou apelido?

DICA

ANJO

Não sentimos dor das porradas porque nos amamos?!... Por esta eu não esperava...

Gabriel, às suas ordens.

OSCAR

OSCAR

Quer dizer que nos amamos apesar de vivermos brigando e falando mal uns dos

Ou desordens...

outros, é?... Pensando bem, sabem que isto é a verdade?!...

DICA

Todos se abraçam afetuosamente, tranquilizados.

Por acaso você é Anjo?

CARLOS

ANJO

Depois de tamanho susto vamos festejar nossa descoberta auspiciosa de maneira

Costumam me tratar como tal.

correta: ajoelhemo-nos e rezemos! A luz apaga e quando volta a acender ostenta coloração azulada. Ouve-se música

JULIETA (Para Moreira.) Onde já se viu Anjo sem asas?

sacra. O grupo está em uma das áreas laterais do palco, defronte a porta do Céu que se

MOREIRA

abre, aparecendo um Anjo.

Anjo só tem asas nas tuas pastorinhas e no imaginário popular, apedeuta!

ANJO

JULIETA

Seja louvado o Supremo Criador da Vida e do Universo, nosso glorioso Pai

Obrigada, pela primeira vez te referiste a mim de maneira justa.

Celestial.

AUGUSTO

CARLOS

(Alertando-a) Ele não te elogiou, apedeuta quer dizer ignorante.

Para sempre seja louvado!

DICA

ANJO

(Para Julieta.) Eu já não te disse um milhão de vezes que o Moreira é um

Aleluia, o Senhor é convosco.

grandessíssimo filho da puta?!

CARLOS

AUGUSTO

Amém!

(Para Ana.) Se estamos diante de um Anjo eu não sei, mas a imagem dele tem

DICA

excepcional beleza. Eu jamais vi antes uma figura assim, nem mesmo em representação

Saravá!...

cênica da maior expressividade estética.

CARLOS

ANA

Que o santo nome de DEUS seja exaltado por todas as nações.

Sinto-me emocionada.


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804

DICA

de teatro sempre viveu lutando para interpretar um papel melhor, ou mais importante do

(Ouvindo) E eu mijada, agora de alegria e não de medo.

que todos os outros da sua carreira. Façam isto imediatamente para acabar com a frustração

ANJO

e podem entrar.

Irmãos, DEUS se compadeceu do vosso drama e me encarregou de vos preparar

Um de cada vez, ou simultaneamente, os atores e atrizes representam

para entrar no Céu.

determinado tipo humano, ou animal, com monólogo ou em linguagem gestual. Se o

ANA

diretor do elenco quiser suprimir esta cena para economizar tempo basta fazer a luz

Preparar?

apagar, reacendendo depois. No caso da ação ser mostrada ao público o personagem

MOREIRA

Augusto, diretor de espetáculo cênico, deve fazer a sua coordenação.

Claro, a nossa fama por aqui deve ser péssima. É no que dá termos na classe

TODOS

teatral alguns beócios.

Que alívio!...

OSCAR

ANJO

(Para Dica.) Sabes o que é beócio?

Agora estão prontos, podem entrar. (Nenhum dá o primeiro passo.) O que houve?

DICA

Querem outras informações?

Não.

DICA

OSCAR Nem eu.

(Para si mesma.) Eu não aguento mais a curiosidade. (Para o Anjo.) Seu coisinha, você é homem ou mulher?

DICA

OSCAR

Pela maneira como ele falou deve ser porra louca.

Bem lembrado. É macho ou fêmea?

CARLOS

ANJO

(Para o Anjo.) O senhor tem toda razão, precisamos ainda nos purificar com

(Sorrindo bondosamente.) É engraçado como vocês, seres humanos, se

penitência no Purgatório para podermos entrar no Céu.

preocupam tanto com a sexualidade, colocando nela, e não no sentimento, os valores da

ANJO

alma. Aqui no Céu cada um tem o corpo que prefere, masculino, feminino ou até

Não é bem assim. Se para serem acolhidos no Céu os seres humanos

andrógino, porém quanto mais se aperfeiçoa menos importância dá ao sexo. Vocês não

necessitassem ser puros estaríamos sozinhos... O Pai Supremo ama tanto as suas criaturas

dariam a importância que dão se já tivessem descoberto, como nós, o quanto o prazer da

que as aceita junto a si com imperfeições morais, quando as mesmas não decorrem da

ternura é maior do que o prazer do orgasmo.

crueldade e podem ser extintas por influência do meio.

MOREIRA

CARLOS

(Para o grupo.) A teoria dele pode não ser sedutora, mas faz sentido.

Como estávamos enganados sobre DEUS...

AUGUSTO

ANJO

Também acho.

Para ingressar no Céu vocês somente precisam resolver um probleminha, porque

OSCAR

aqui não desejamos ninguém frustrado. Se ainda não realizaram o grande sonho que

Para mim o que faz sentido é um quarto de motel e uma namorada nua...

tiveram na vida realizem logo, pois o Purgatório não é um lugar fechado, é um estado de

CLARA

consciência. Libertem-se da mágoa e do ressentimento contra o destino. Eu sei, porque

Eu confesso que ainda gosto de homem na cama, embora já tenha passado dos

aqui nada ignoramos, que estou me comunicando com artistas de teatro. Ora, todo artista

quarenta.


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806

JULIETA

AUGUSTO

Quarenta não, sessenta...

(Para Dica, baixinho.) O Moreira iria longe se tivesse talento artístico como tem

DICA

cultura e inteligência.

E a Ana, que já passou dos noventa?...

DICA

ANA

Guarda a tua tesoura que tu não tens nem inteligência e cultura e nem talento

(Para Carlos.) Que línguas! Como gente dessa qualidade pode merecer o Céu?

artístico.

CARLOS DEUS é misericordioso.

JULIETA (Para Clara.) Tu entendeste o que o representante do Criador quis nos dizer?

ANJO

CLARA

O que resolvem? Vão entrar para não mais sair?

Não. Nadinha.

MOREIRA

ANA

Calma, a prudência é um princípio de sabedoria.

Estamos envolvidos em uma trama melodramática sumamente embaraçosa.

AUGUSTO

JULIETA

(Para alguns integrantes do grupo.) O que ele quis dizer quando falou “entrar para não mais sair”? Mesmo que o espetáculo lá dentro seja maravilhoso poderemos nos

É por isso que gosto do enredo de pássaros de São João e boi bumbá, quase sempre igual e de fácil compreensão.

entediar e querer mudar de ambiente.

CARLOS

DICA

(Para o Anjo, com extrema humildade.) Espero ser perdoado por não ter ainda

Principalmente eu quando sentir saudade das minhas bandalheiras.

entrado no Céu, abandonando meus companheiros. Sabe, vivemos juntos uma vida inteira,

CLARA

com a mesma paixão pelo teatro... ANJO

Será que no Céu é como no Inferno, onde todos são trancados eternamente?

Fique tranquilo, a dificuldade toda é que vocês estão habituados à mentira em suas

OSCAR Se for eu só entro se me garantirem que serei hospedado junto com as onze mil virgens de que fala a Bíblia.

duas expressões, a verbal e a do silêncio, e eu tenho de dizer a verdade completa a respeito de qualquer assunto. Relativamente ao assunto do momento a verdade é esta: nunca um ser

ANA

humano saiu do Céu, nem sairá, não porque seja proibido de sair, pois o regime aqui é de

Eu não abro mão do meu direito de ir e vir.

liberdade total, e sim porque não terá a menor vontade de fazer isto.

JULIETA

CARLOS

O Moreira está certo, não vou decidir precipitadamente. A escola do povo me

(Para o grupo, eufórico.) Ouviram??? Se entrarmos jamais sairemos, não porque

ensinou que cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. ANJO Vocês não entenderam o que falei. Eu não disse que estarão proibidos de sair, disse que é impossível quererem sair.

fiquemos presos lá dentro, e sim porque não desejaremos deixar de gozar a felicidade eterna. OSCAR Gozar é comigo...

MOREIRA

MOREIRA

Em boa lógica aristotélica, socrática e cartesiana, é a mesma coisa, pelo menos na

Eu não sei se vou me adaptar à novidade de ser feliz o tempo todo.

essência.


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808

AUGUSTO

os fins, eu estimaria saber se no Céu tem bibliotecas com livros que são imorais, mas

E eu não sei se isso me convém, porque sou mais criativo nas minhas crises de

ostentam grande beleza literária.

depressão. MOREIRA Temos de levar em conta ainda o aspecto puramente subjetivo da questão: sem

ANJO De certo modo sim, nosso código de honra classifica a censura como crime hediondo.

exercer o livre arbítrio, fazendo escolha, o ser-em-si se massifica, transformando-se

AUGUSTO

individualmente em não ser. Vocês percebem o significado desta sutileza?

Apreciei tanto esta resposta que vou colaborar com o diálogo fazendo uma

DICA

pergunta: no Céu tem atriz como a Clara, que só foge da mediocridade quando se socorre

Eu não percebo porra nenhuma.

de microfone de rádio?

CLARA

CLARA

Nem eu.

(Para Ana.) Esta eu não engulo, com toda a minha educação vou reagir à altura.

ANA

(Para o Anjo.) E tem encenador de peças teatrais pedante como este sacana mafioso que

A mim se afigura razoável, e oportuno, indagar do representante de DEUS como é

acabou de me criticar?

a vida lá dentro.

ANJO

CLARA

De certo modo sim.

Isso mesmo.

DICA

JULIETA Então faço eu a primeira pergunta. (Para o Anjo.) Aí no Céu tem pastorinha, boi bumbá e pássaros de São João?

Tem diversão para gente da terceira e última idade? Pergunto isto porque interessa à minha colega Ana... ANJO

ANJO

De certo modo sim.

De certo modo sim.

ANA

OSCAR

E tem cirurgião plástico para reduzir a feiúra de gente como a invejosa que acabou

Tem cachaça, uísque e similares?

de me alfinetar?

ANJO

ANJO

De certo modo sim.

De certo modo sim.

CARLOS

MOREIRA

(Para o Anjo.) Perdoe-me se cometo uma heresia, mas acho que agora o divino

Se tem tudo o que se pergunta o Céu é uma Torre de Babel...

amigo deu uma escorregada e caiu no pecado venial de uma mentira caridosa, não foi?

CARLOS

ANJO

Agora quem não entende mais nada sou eu...

Você esqueceu de que nunca deixamos de dizer unicamente a verdade? Para nós

ANJO

os fins não justificam os meios, os meios é que justificam os fins.

Vou explicar. No Céu tem tudo o que o ser humano pode conceber para o seu bem

MOREIRA

estar. Aqui todos vivem de acordo com a sua imaginação, nada é impossível. O que faz

(Dirigindo-se ao Anjo, solene.) Sem pretender discutir o mérito, ou a

ninguém sair do Céu é o fato de não precisar afastar-se de onde se encontra para

substancialidade, da sua tese sobre a controvertida questão da prevalência dos meios sobre

concretizar as suas aspirações. Se alguém deseja alguma coisa basta pensar nela e estará


809

desfrutando-a sem fazer qualquer esforço.

810

Inferno, Satã se recusa a recebê-los.

TODOS

MOREIRA

Sendo assim o Céu é o Paraíso!

E quando tal coisa ocorre para onde eles vão?

ANJO

ANJO

E não é isto o que consta dos livros sagrados de todas as religiões? (Pausa)

Ficam vagando sem rumo como almas penadas até vencerem o orgulho e nos

Finalmente, entram ou não entram?

procurarem. Tenho ordem expressa de São Pedro para deixá-los entrar quando quiserem.

MOREIRA

OSCAR

Seria ótimo se pudéssemos consultar o Shakespeare: “entrar ou não entrar, eis a questão”... ANJO

Chegou a minha vez de perguntar. Maomé, que como o Cristo falou para a Humanidade em nome de DEUS, afiançou que o homem pode ter dezenas de mulheres. Achando que ele tinha toda razão, indago: aí dentro quantas mulheres eu posso ter?

Se quiser fazer a consulta entre e o procure, ele não poderia estar em outro lugar.

ANJO

Todavia, já avisei, se entrar não terá vontade de sair.

Todas.

MOREIRA

MOREIRA

Este pormenor, aliás “pormaior”, é que complica tudo... Antes de decidir cumpre-

É justo?

me lhe fazer mais umas perguntas que meus colegas não tiveram lucidez para formular.

ANJO

ANJO Pode fazer, não tenha o mínimo acanhamento.

É, porque igualmente no Céu cada mulher tem o direito de possuir todos os homens.

MOREIRA

MOREIRA

Aí dentro há espaço para comunista?

Essa realidade é um tanto complexa...

ANJO

ANJO

Mas que pergunta tola para quem se mostra tão sábio!... Aqui não existe propriedade privada, tudo pertence a todos, constituindo bem comum.

Pelo contrário, é tão simples que você não entende com sua ilustração cultural agnóstica. O verdadeiro amor anula o sentimento de posse. E quando ninguém é dono de

MOREIRA

ninguém todos se pertencem uns aos outros, e são venturosos porque, embora se amando,

Faço outra indagação que não poderá ser enquadrada como tola: no Céu há espaço

continuam livres. A infelicidade de vocês é consequência do egoísmo. Por que não trocá-lo

para ateu?

pelo altruísmo, substituindo o “meu” e o “teu” pelo “nosso”? Pensem nisso. Bem, a

ANJO

conversa está boa mas eu não devo fazer sermão, aqui no Céu temos tanto respeito pelo

Claro, aqui cada um tem o sagrado direito de pensar como lhe aprouver, já

livre arbítrio de cada pessoa que jamais doutrinamos alguém. (Ligeira pausa.) Chegou o

salientei isto. Nosso pai Supremo só expulsa do Céu quem, como o meu ex-companheiro Lúcifer, se rebela contra a lei do amor, a única que nos cumpre aceitar.

instante de resolverem se entram ou não entram. DICA

MOREIRA

Está na hora do dá ou desce...

Mas o território do Inferno não seria mais adequado para os ateus?

OSCAR

ANJO

Eu acho que desço...

Para uns sim, como, aliás, acontece também com muitos religiosos hipócritas,

ANA

porém para outros não, porque são tão honestos e generosos que, quando preferem ir para o

Eu ainda estou flutuando na indecisão...


811

812

JULIETA

vagas e assim teremos mais tempo para pensar melhor... (Outra vez todos se olham

Eu balançando...

surpresos e movimentam a cabeça como quem concorda.)

CLARA Sinto-me entre a cruz e a espada...

A luz apaga. Quando reacende sua coloração é avermelhada e o grupo se encontra na outra lateral do palco onde está a porta do Inferno.

MOREIRA

CLARA

Eu também me concedo o benefício da dúvida...

Esta não é a casa do autor da peça.

AUGUSTO

MOREIRA

Eu idem...

Nem uma casa portuguesa, com certeza.

CARLOS

AUGUSTO

(Encosta no Anjo e sussurra.) Eu resolvi entrar, porém como ainda não perdi a esperança de convencer meus queridos colegas de arte a fazerem o mesmo, peço-lhe cinco minutos para uma nova tentativa.

Pela cor avermelhada da iluminação, e pelo estilo barroco da fachada, desta vez parece que estamos na frente de uma boate antiga, do tipo barra pesada. DICA

ANJO

Então, por que não entramos logo para refrescar a goela e sacudir o esqueleto?

Quando tomarem a decisão batam na porta que abro. (Entra)

ANA

DICA

Não sou de farra.

O busílis é que se entrarmos não sairemos nunca. Moral da história: poderemos

DICA

nos estrepar...

Por falta de preparo físico...

OSCAR

CLARA

Situação cabreira...

Nem eu sou de farra.

CLARA

JULIETA

Pior que uma ferrada de arraia...

Eu ainda menos, fora de quadra junina.

MOREIRA

CLARA

Mais até: pior do que a fossa sartreana...

Aliás, além de não ser de farra sou tão recatada que estou até pensando em entrar

AUGUSTO

para um convento e me tornar freira, a fim de fazer jus à companhia do ilustre noviço que

Que dolorosa interrogação!...

temos como parceiro de trabalho...

JULIETA

MOREIRA

(Novamente gritando e pulando.) Gente, eu tive outra ideia, outra ideia genial!!!

Noviço não, Diácono.

CARLOS

DICA

Diz logo que só temos dois ou três minutos.

(Para Carlos.) Ela agora está querendo te sacanear...

JULIETA

CARLOS

É o seguinte: o autor da peça com a qual estamos viajando, embora segundo a

DEUS abençoe a megera.

Dica não seja flor que se cheire, é nosso velho amigo, também interessa a ele a felicidade

OSCAR

eterna, e nós por justiça, ou caridade, devemos ir procurá-lo antes de entrar no Céu, já que

Vocês são uns bobocas. Se isto aqui for o Inferno e abrirem a porta eu vou

de lá não vamos querer sair. Explicando isso para o Anjo Gabriel ele guardará as nossas

empurrar todos para dentro e sair correndo, que não sou bobo.


813

814

CLARA

CLARA

Inferno???

Brincadeiras não, molecagens.

DICA

MOREIRA

Égua!!!

Nunca pensei que vocês fossem tão corajosos...

JULIETA

AUGUSTO

Inferno???

Insisto em dizer que esta porta é de uma boate, um “inferninho”.

ANA

DICA

Inferno???

E se for o INFERNÃO?

MOREIRA

CARLOS

Se nos encontramos diante do Inferno o único em condições de nos proteger é o Carlos, especialista em salvação de pecadores...

Não gosto deste lugar e, se desejam saber mais, estou sentindo um cheiro de enxofre...

AUGUSTO

OSCAR

(Para Moreira, segredando.) Ele vai querer realizar a façanha, pois somente

(Para Clara.) Não seria cheiro de maconha?

assim demonstrará ser melhor do que eu em alguma coisa. CARLOS Não sei por que me deu agora uma imensa vontade de rezar chorando... Todos olham para Carlos e começam a se apavorar. Escutam gritos, imprecações e gemidos de dor. Entram em pânico. OSCAR Acho que me borrei todo... DICA

CLARA Não sei porque não conheço, só fumo cigarro de tabaco, e assim mesmo mentolado e com ponta de cortiça. ANA O Oscar, que leva tudo na graça, bem que poderia tirar a limpo a situação para nós, batendo na porta. OSCAR (Para ela.) Por que tu não bates? Se for o Inferno o Diabo não vai te querer, com

Aguenta firme que eu também...

esta tua cara de Santa Terezinha ou Madalena arrependida. A mim ele desejará para

CARLOS

exercer a função de Relações Públicas, e outras relações que nunca são públicas...

(Ajoelhando-se) Espero ser imitado por quem tiver juízo.

MOREIRA

JULIETA

Se ninguém se dispõe a bater na porta o melhor a fazermos é ir embora daqui.

Valei-me meu Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal!...

DICA

MOREIRA

Também acho, ou trepa ou sai de cima.

(Para ela.) Não aprecias tanto as fogueiras de São João? Daqui a pouco te verás

CLARA

em uma para ninguém botar defeito... Ouve-se música de gafieira. Escutando-a todos vão se refazendo emocionalmente, até ficarem calmos.

Não aprovo esta linguagem pornográfica. MOREIRA Pornofônica.

ANA

JULIETA

(Para Oscar.) Estás vendo no que dá as tuas brincadeiras?

(Para Clara.) Tu ainda não viste nada. Não foi por acaso que eu passei tanto tempo representando somente com o pessoal dos subúrbios.


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ANA

DEMÔNIO

Sejamos sensatos, precisamos fazer de comum acordo alguma coisa inteligente

Fecha a latrina desta boca que eu também detesto quem é puxa saco!!!

em vez de discutir sem proveito. DICA (Para ela.) E como, rainha mãe, poderemos chegar a um comum acordo sobre o que deveremos fazer? Tu já viste gente de teatro concordar plenamente sobre qualquer assunto?

DICA (Para Augusto.) Deixa comigo, vou empregar com ele a minha psicologia. (Dirigindo-se ao Demônio.) Escuta aqui, indecente, eu já vi que és um patife, um escrotão sanguinário, estou certa? DEMÔNIO

OSCAR

Certíssima. Agradeço-lhe a gentil observação.

Quem julga que estamos na porta do Inferno é o Carlos. Quem afirma que esta

DICA

porta pertence a uma boate é o Augusto. Ora, “quem pariu Mateus que o embale”, eu nada

Deixa eu te perguntar uma coisa, bandido: tu vais querer colocar à força todos nós

tenho com o problema, sou a pessoa menos indicada para resolvê-lo. E estamos

aí dentro, sabendo que com a bondade do nosso coração iremos esculhambar o teu reino de

conversados!

perversidade?!

Todos fitam Augusto e Carlos que, sem outra alternativa, batem muito

DEMÔNIO

timidamente na porta. Esta se abre e surge, revestido de aparência horrorosa, em tudo

Vejamos: qual é a profissão de vocês?

contrastante com a do Anjo, o demônio Belzebu.

TODOS

CARLOS (Tremendo e gaguejando, para o demônio.) Digníssimo senhor, peço permissão para perguntar quem é Vossa Excelência... DEMÔNIO Um demônio, não esta vendo? Meu nome é Belzebu, sou comandante de uma legião de Espíritos Maus, secretário adjunto do temido Satanás, o grande rei do Inferno. Uns desmaiam, outros tentam correr sem conseguir e, liderados por Carlos, ficam se benzendo.

Artistas de teatro. DEMÔNIO (Demonstrando desgosto.) Esta não!... Vão logo embora, pobres e oprimidos não entram aqui. CARLOS Agora eu é que agradeço a gentil observação. DEMÔNIO Antes de partirem me digam de que planeta vocês são.

ANA

MOREIRA

(Controlando-se a muito custo.) Prazer em conhecê-lo, o senhor é muito

Somos do planeta Terra.

simpático!... MOREIRA (Também se controlando com inaudito esforço.) O senhor parece boa pessoa, um homem santo.

DEMÔNIO Ele ainda não se desintegrou com guerra atômica? Pergunto por que deixei de andar por lá em visita de rotina. Não há nenhuma necessidade, a Humanidade terrena é tão cretina, corrompida e injusta que dispensa a nossa atuação. Para ser sincero confesso que

DEMÔNIO

ao transitar pelo mundo de vocês sempre aprendi mais do que ensinei, ficando, felizmente,

(Berrando furioso.) Não me chame de santo!!! Odeio santos!!!

muito pior do que já era. Uma maravilha, sou muito grato. Alguns dos presidentes,

AUGUSTO

governadores, ministros, senadores e deputados que vocês tiveram, e já morreram, depois

Não se zangue, ele só quis dizer, como aliás eu igualmente tenho o privilégio de

de serem rejeitados no Céu e recebidos com festa em nossos braseiros se revelaram tão

afirmar, que Vossa Majestade é alguém altamente respeitável.

competentes, em matéria de mentira e esperteza, que eu os estou aproveitando como


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assessores especiais. MOREIRA

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DICA (Gritando para o Demônio, com pausas para os outros repetirem suas palavras.)

Então o senhor gosta do nosso planeta por razões práticas, é?

Isto aqui... não é o Inferno... e tu, Belzebu... queiras ou não queiras... és mesmo um homem

DEMÔNIO

santo... com pinta de Virgem Maria!...

Adoro! E não só por razões práticas, também por motivos que servem à pura

DEMÔNIO

contemplação. Por exemplo: acho lindas as queimadas nas florestas, com o fogo

(Explodindo em fúria.) Miseráveis!!! Vou estrangular cada um de vocês!!! (Parte

transformando árvores em fumaça negra para completar a poluição dos rios... Acho lindas

rugindo como fera para cima do grupo, que sai correndo em desespero, desastradamente,

as cenas de tortura nos porões dos regimes políticos ditatoriais... Acho linda a poesia da

enquanto a luz escurece e surgem clarões de relâmpagos acompanhados da sonoplastia do

violência, cada vez maior em toda parte, com assassinatos, estrupos e tantas outras coisas

início da representação: barulho de chuva, trovões e desastre aéreo. Se o diretor do

deslumbrantes... Parabéns para vocês.

espetáculo preferir pode trocar tal recurso técnico por música de gafieira, ou algo de

JULIETA

efeito mais intenso para sugerir confusão, brincadeira, fantasia.)

(Repentinamente põe-se a gritar e pular pela terceira vez.) Eu tive outra ideia genial, eu tive outra ideia genial!!!... (Puxa todos pelos braços e os reúne longe do Demônio, falando baixo para ele não ouvir.) Este cara pode não ser demônio e sim segurança disfarçado de boate, o Augusto talvez esteja certo e nós podemos resolver de uma vez por todas o nosso problema de saber se morremos ou não. Vamos testá-lo, xingando-o de uma forma que ele se sinta profundamente ofendido. Dependendo da reação dele saberemos se estamos ou não dormindo, e se estivermos faremos um esforço maior para acordar. CARLOS Eu que acredito em milagre me sinto à vontade para admitir que tudo não passa de um pesadelo. ANA Sonho de uma noite de inverno... DICA ... que começou no Céu e vai acabar no Inferno. Deixem comigo, já provei que entendo desse riscado, sei como testar qualquer demônio, fui criada em terreiro de macumba. Todos me acompanhem e repitam o que eu disser, em voz bem alta e agressiva. O grupo se desloca postando-se frente ao demônio com desafiadora altivez. OSCAR Começa, coruja cega, manda bala.

FIM


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820

Esta peça não teve, até a edição do presente livro, nenhuma encenação nem publicação. Foi escrit apara atender reiterados apelos da atriz paraense Luiza de Abreu, desejosa de um monólogo do autor para representar.

PERSONAGEM

A LOUCURA

Uma Atriz de teatro

CENÁRIO

DE UMA

Nenhum

ÉPOCA Atual

ATRIZ


821

ATO ÚNICO

822

desprezada, e esse negócio de me chamarem de louca é uma injustiça, para não dizer uma patifaria. A menos que esteja com a verdade o autor da seguinte sentença: "louca é a

Aparece a Atriz para o público com absoluta simplicidade, portando uma bolsa que põe em qualquer lugar. Começa a sua fala.

pessoa que perdeu tudo, menos a razão”... Eu sou uma mulher mentalmente saudável, dotada de raciocínio lógico, e posso provar isto.

Logo no início deste meu contato com vocês, que espero seja edificante e prazeroso, devo fazer uma profissão de fé. Eu acredito unicamente em três coisas: na existência de Deus, na necessidade de amor no coração humano e na importância da luta pela justiça social. Somente por causa disso, e porque vejo Espíritos, acham que sou louca. Não estou nem aí para tal julgamento; o que me interessa é o que eu penso dos outros, não o que os outros pensam de mim. Não acredito nos valores, intelectuais e morais, que dominam a sociedade moderna, com seus princípios e seus paradigmas, com suas regras e suas normas de conduta, com suas convenções, protocolos, etiquetas e outros babados. Isto tudo para mim é lixo cultural... Vira-se para o espaço vazio à esquerda. O que tu queres comigo ainda, alma penada? Vai procurar o que fazer, deixa-me em paz, agora estou trabalhando. (Novamente para a plateia.) Preciso terminar minha apresentação a vocês. Sou uma atriz de teatro, embora não pareça: detesto palco, maquiagem, iluminação técnica, roupa de figurino e outros recursos tradicionais da arte cênica, necessários ao trabalho de representação em grupo; não porque seja uma vaidosa individualista, e sim porque prefiro representar contando apenas com os meus dotes pessoais, a começar pelo esbelto corpo que vocês estão vendo... (Pausa) Alguém fez um ar de riso, totalmente injustificado. Eu não sou louca e muito menos velha. Se o meu corpo encontra-se envelhecido o problema é dele: não tenho nada a ver com isto. Como ia dizendo, prefiro representar contando apenas comigo mesma porque tenho extrema dificuldade em aceitar o que no geral as pessoas aceitam. Em segundo lugar, se eu sou maluca é porque tenho excesso de juízo. Terceiro: com minha filosofia existencial aprendi muita coisa neste mundo cretino, safado, calhorda, cínico, e por isso tenho condição de ensinar a ser feliz quem quiser aproveitar os meus bons serviços. Vocês querem? (Pausa) Respondam senão vou embora, não aguento mais ser incompreendida e

Primeiro porque, como já salientei, não acredito em nada daquilo em que os outros acreditam. Segundo porque igualmente não acredito em mim mesma quando não estou acreditando na minha descrença. Terceiro porque, não acreditando em nada fora da existência de DEUS, da necessidade de amor no coração humano e da importância da luta pela justiça social, eu sou profundamente feliz. E desejo, como atriz de teatro, partilhar minha felicidade, que reside no saber pensar, com quem se interessar por ela. Vocês estão interessados? (Faz uma pausa, aguardando a reação maior ou menor da plateia. Vira-se novamente para o espaço vazio à esquerda.) Vai embora, cara de pau, já te falei que estou trabalhando, não me aporrinha! (Dirigindo-se à plateia.) Você aí que é mulher como eu, está completamente satisfeita com a vida e não precisa aprender a ser feliz? Duvido... Primeiro porque toda mulher sofre, no míninmo, o desconforto de três medos: medo de que o marido ou companheiro se torne alcoólatra (homem quando chega tarde da noite em casa embriagado não funciona, e no dia seguinte ainda temos de aturar a sua ressaca), medo de gordura com celulite e medo de vizinha fuxiqueira. Segundo porque, afora esses três medos, toda mulher, cedo ou tarde, de um modo ou de outro, sempre é enganada pelo seu parceiro. Terceiro porque as mulheres, no banquete festivo da vida neste mundo, alimentam-se somente com o que sobra no prato dos homens. Vocês já devem ter notado que eu tenho um vício, ou melhor, um cacoete psíquico: todas as minhas conceituações se dividem em três partes. Eu digo "primeiro porque"... "segundo porque"... "terceiro porque"... Confesso ignorar o "porquê" desse hábito, mas isso não quer dizer que sou louca, no máximo é uma compulsão neurótica. E quem, nos dias de hoje, não tem a sua neurose de estimação? Alguém já disse que, do jeito como a vida está, existem dois tipos de pessoas: os neuróticos e os de mau caráter... Eu não tenho transtorno bipolar, nem esquizofrenia, sou uma atriz competente, que, por ter conquistado a duras penas a sabedoria, resolveu exercer sua profissão de


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maneira útil aos semelhantes, ensinando-lhes a serem felizes.

824

Já que ainda não foram embora, e eu também não vou, começo minha aula. (Vira-se para o

Vocês estão mesmo interessados nos meus bons serviços? (Pausa) Se não estão

espaço vazio à esquerda.) Quem é você? Não o conheço. Jamais vi antes a sua cara, que

digam que vou embora. Quem vai sair perdendo com isso são vocês, jogando fora a

não é de pau porque parece de arame farpado... O que deseja de mim? (Pausa) Que

oportunidade de aprender com uma atriz a arte de ser feliz. Que, aliás, se baseia em três

gracinha! Olhe aqui para se consolar... (Gesticula como se estivesse "dando uma banana".)

coisas: saber pensar, saber sonhar e saber amar. Eu só ensino a primeira, porque quem sabe

Esta sua exigência é ridícula, você está me parecendo mais um demônio subdesenvolvido...

pensar sabe sonhar e sabe amar.

Por que eu iria deixar de ensinar o bem para lhe agradar? Crie vergonha e me respeite. Vá

Repito: vocês querem aprender comigo? Se não querem falem logo, vou

para o inferno!!! E transmita ao Diabo as minhas lembranças... (Dirige-se à plateia com

embora, prefiro ficar sozinha e não perder meu tempo com gente insensível à

um pequeno saco que tira da bolsa contendo pedaços de papel numerados, abrigando

racionalidade lógica. Já fui trancada meses seguidos em um quarto de hospício, não

pensamentos do autor da peça, e os distribui para os espectadores, conservando consigo

por loucura e sim vitimada por um erro médico; por que não posso depois disso me

cópia de cada pedaço de papel.) Quem recebeu a frase, ou frases, de número um, leia por

isolar na minha casa suburbana?...

favor. (Se o espectador se negar a isso, ou se efetuar a leitura em voz baixa, inaudível a

Vira-se para o espaço vazio à esquerda, começa a contrair os músculos do rosto como quem vai ficando crescentemente furiosa. Doida é a tua mãe, canalha nojento, bandido abominável, verme asqueroso,

todos os presentes, a Atriz executa a tarefa em tom enfático, solene.) 1. QUEM MUITO ANSEIA PELA FELICIDADE, SOMENTE PELO FATO DE SE PREOCUPAR DEMAIS CONSIGO MESMO JÁ NÃO MERECE SER FELIZ.

grandicíssimo filho da puta! (Para a platéia após refazer-se do descontrole

(Para a plateia.) Entenderam? A primeira lição é esta: devemos almejar a

emocional.) Como ia dizendo, se já fiquei trancada meses em um hospício, por que

felicidade, porém não de maneira ansiosa, aflitiva; devemos almejar com “serenitude". A

não posso me isolar em minha residência? Do jeito que estão as coisas será melhor

palavra SERENITUDE é um neologismo que eu criei, para definir uma espécie de

mesmo eu me afastar de tudo e de todos. Até porque, atualmente nesta cidade, ou

serenidade que é mais quietude, bastante comum nos governantes brasileiros diante dos

aldeia, em matéria de cultura jabuti anda de bicicleta e filhote de jacaré é peixe

problemas sociais. Tenho também o vício de inventar expressões verbais que não existem

ornamental... Estou acostumada a viver só, na minha casa, porque sou inteligente, não

nos dicionários da língua. Por exemplo: criei o termo "EXPLICACITE" para definir a

louca. Quando o dia é de sol evito sair, pois tenho medo que me pelo de ficar pelada

mania dos doutores universitários que sempre explicam tudo, inclusive o inexplicável...;

no meio da rua, depois de um assalto ... Quando chove forte também não saio porque

criei o vocábulo "IMBECIOTA", misturando imbecil com idiota, para definir os

moro na periferia de um subúrbio e não sei nadar ... Passear não passeio porque não

burocratas do serviço público que complicam nossa vida exigindo papelada inútil...; e

sou besta: se for jantar em algum restaurante distinto vou ter que fazer um

criei a palavra “TOLIGLOTA" para definir quem diz em vários idiomas as mesmas

empréstimo bancário para pagar a conta...

tolices que dizemos em um só. Vamos agora à frase número dois:

Que tragédia! E ainda dizem que a louca sou eu, não esta cidade. (Vira-se para o espaço vazio à direita.) Você, meu querido, pode permanecer aqui porque nunca me atrapalha, sempre ajuda. Mas pelo amor de DEUS, não fique me

2. ESTAR SEMPRE DE ACORDO COM SEUS SEMELHANTES É, SEGURAMENTE, O MELHOR MODO DE SE DAR BEM COM ELES. E O MENOS HONESTO.

dando conselho para ser boazinha. Deixe que eu desabafe, ironizando as coisas desta

(Para a plateia.) Frequentemente temos que escolher entre ser feliz e fazer

cidade. Toda crítica honesta é construtiva. (Para a plateia.) Mas sim, vocês querem ou não

sucesso. Quem jamais discorda dos outros, e só abre a boca para elogiar, descobriu a

querem que eu os ensine a serem felizes? O senhor aí que é homem, está completamente

fórmula infalível de vencer neste mundo; e ser derrotado perante a sua consciência,

satisfeito com a vida nesta cidade ou neste país? Dúvido... A menos que nunca tenha

cedo ou tarde. Vamos à frase número três:

votado cheio de esperança em uma eleição, ou seja banqueiro do jogo do bicho... (Pausa) Bem, não vou mais perguntar se vocês querem ou não querem aprender comigo a ser feliz.


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3. DESCONFIE DOS POETAS QUE ODEIAM OS BARES, DOS

via?! ... Por que deixaste de me aparecer? Como vão as coisas para ti no Além? (Breve

ELEITORES QUE NÃO VOTAM NA OPOSIÇÃO, DOS JUÍZES DE DIREITO

pausa.) Ah!, meu caro, este mundo material, e materialista, está cada vez pior, parece até

MUITO ELOGIADOS PELOS COLUNISTAS SOCIAIS, DOS MÉDICOS QUE

que seus habitantes perderam a noção do que é ser feliz; contentam-se com os prazeres

LOGO NA SEGUNDA CONSULTA ACONSELHAM CIRURGIA, DOS LÍDERES

eróticos, com os delírios da droga e as ilusões do poder, sobretudo do poder econômico e

RELIGIOSOS QUE PREGAM MORAL COM RIGORISMO, DOS POLÍTICOS

político. Por falar nisso, acabaram de destroçar a nação iraquiana. O que poderíamos

QUE SE DECLARAM POBRES, DOS VELHOS QUE EXIBEM PERFEITA

esperar? A indústria bélica não pára de funcionar a todo vapor, e as armas de destruição e

SAÚDE E ATÉ DAS CRIANÇAS OBEDIENTES, COMPORTADAS. MAS, PELO

morte precisam ser utilizadas, não podem ficar estocadas em armazéns, levando à falência

AMOR DE DEUS, NÃO DESCONFIE DE UMA PESSOA QUE NÃO DESCONFIA

as poderosas empresas das superpotências mundiais. (Pausa) Meu precioso amigo, não faz

DE NINGUÉM.

essa besteira de reencarnar, fica por aí mesmo que a vida por aqui está quase insuportável;

(Para a plateia.) Modernamente quem não desconfia de ninguém é tido como

mudou tanto para pior que não irás te adaptar a ela. Pensas que neste mundo ainda se pode

“filósofo", que antigamente significava sábio, e hoje significa bobo. Isso é fato,

desfrutar das doces alegrias de antigamente? Respirar o ar puro da Natureza?... Conversar

cumpre-nos reconhecer. Mas como agir diferente se a felicidade dorme na inocência e

com os vizinhos na porta da casa?... Comer alimentos saudáveis, sem agrotóxico?... Visitar

acorda na ingenuidade?

parentes para matar saudades?... Estás muito enganado. Agora, entre nós, a vida encontra-

Frase número quatro: 4. SEJA UMA PESSOA SOCIALMENTE DESAJUSTADA, MAS TÃO DESAJUSTADA QUE SE AJUSTE MUITO BEM AO SEU PRÓPRIO DESAJUSTAMENTO.

se tão tecnificada que até sexo já se faz por computador... (Volta-se para a plateia.) Frase número seis: 6. A PESSOA SÁBIA É A QUE NUNCA VAI CANSAR DE SER BOA, MAS JÁ CANSOU DE SER BOBA.

(Para a plateia.) Ao inverso da maioria, não flutue ao sabor das ondas, reme

(Comenta) Precisamos dar atenção a este detalhe a fim de sermos felizes:

contra maré, sabendo que tudo vale a pena se a alma não é pequena, como disse o poeta

devemos persistir na bondade mas sempre alerta para os seus perigos, como ensinou em

português Fernando Pessoa. Seja irreverente, questione a ordem estabelecida. Convém ser

uma peça de teatro o genial dramaturgo Bertold Brecht. Às vezes cumpre-nos dizer não

do contra porque, em qualquer lugar e qualquer época, a situação sempre pode, e deve,

podendo dizer sim, às vezes convém negarmos a alguém o favor que teríamos meios de

mudar para melhor. É claro que com tal atitude você vai se "ferrar", tendo de suportar

oferecer facilmente, enfim, às vezes uma bofetada vale mais do que um beijo. Tudo

prejuízos financeiros e morais, porém nada anulará o seu sentimento e a sua sensação de

depende das circunstâncias e tudo tem um limite. Sejamos equilibrados e realistas. Muita

felicidade por ser idealista.

gente é infeliz porque confunde humildade com subserviência, calma com comodismo,

Frase número cinco:

prudência com covardia, dignidade com orgulho, e por ai vai. Temos de associar ao

5. A BELEZA NÃO É FUNDAMENTAL, COMO DECLAROU O

sentimento a racionalidade. A vida neste mundo é uma viagem difícil em noite escura e

CONSAGRADO VINÍCIUS DE MORAES. O GAVIÃO TEM CARA DE CORUJA,

mar revolto; nela só atinge o porto da felicidade quem navega valendo-se tanto da bússola

PORÉM VOA SUPERLATIVAMENTE MAIS ALTO DO QUE O CISNE. E QUEM

do coração quanto do farol da inteligência.

VIVE UNS DUZENTOS ANOS É A TARTARUGA, NÃO O BELO PAVÃO. (Para a plateia.) Beleza é forma, e toda forma com o tempo se transforma e deforma; só a essência permanece. Se você deseja ser feliz, preocupe-se mais com seu conteúdo íntimo do que com sua aparência física, que pode ser bem cuidada sem ser embonecada... (Vira-se para o espaço vazio à direita.) Olá, Justino, há quantos anos eu não te

Frase número sete: 7. POR PIOR QUE SEJA O SEU DRAMA NÃO SE DESESPERE, POIS NESTE MUNDO SÓ NÃO TEM FIM O QUE NÃO COMEÇOU. (Para a plateia.) Alguém escreveu: "amanhã é o primeiro dia do resto da minha vida"... Saber esperar é uma grande virtude, não porque "quem espera sempre alcança", pois às vezes cansa e se arrepende de não ter tomado logo uma decisão, e sim porque o


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desespero não resolve nenhum problema, só complica a situação. Sejamos calmos e ponderados, lembrando o ensinamento de um pensador que disse: "a pressa só serve para nos fazer chegar ao fim da vida mais ligeiro"...

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9. A PESSOA SÁBIA NUNCA COMPRA BRIGA ALHEIA PORQUE ESTÁ QUERENDO VENDER AS SUAS. (Comenta) A arte de ser feliz, que decorre do saber pensar, exige o nosso respeito

Hoje em dia as pessoas vivem correndo, sem saber sequer para onde desejam ir...

aos semelhantes, quaisquer que sejam as características ou defeitos da sua personalidade.

Uma lástima! E depois julgam que podem extinguir a angústia existencial tomando pílulas

Viva e deixe os outros viver, já prelecionou alguém bastante sensato. Em termos de

para depressão. (Vira-se para o espaço vazio da direita.) Ainda está aqui? Continue me

verdade existencial cada um sabe de si e DEUS perdoa a todos... Não se envolvam em

inspirando até esta aula terminar... Obrigada... É muita gentileza sua... O quê??? ... Pelo

conflitos meramente pessoais, nem mesmo no seio da família, quando lidarem com pessoas

amor de DEUS, explique! (Gesticula demonstrando perplexidade.) Como não ficar

adultas que para sobreviver não dependem dos recursos de vocês, pois cada uma delas

nervosa?!...

possui opiniões próprias sobre os assuntos de seu interesse, e as opiniões, já diziam os

(Para a plateia.) Gente, por esta eu não esperava!... Necessito de um minuto para relaxar. (Acende um cigarro que tira da bolsa junto com isqueiro e cinzeiro.) Frase número oito:

chineses na Antiguidade, são como pregos: quanto mais a gente bate nelas, mais elas enterram na cabeça... Se um de vocês puder auxiliar quem briga a entrar em acordo, selando a paz, faça

8. A COLETIVIDADE MODERNA É CHAMADA DE SOCIEDADE DE

isto, porém jamais tome partido na contenda, ficando do lado de um contra o outro.

CONSUMO PORQUE, DENTRO DELA, CADA VEZ CONSUMIMOS MENOS E

Quando vemos duas pessoas em conflito logo pensamos: uma está certa, a outra errada.

SOMOS MAIS CONSUMIDOS.

Isso é que é uma atitude errada. Quando duas pessoas estão atritando é possível que uma

(Para a plateia.) Esta é a grande realidade, e acontece que ninguém consegue

tenha razão e a outra não tenha, mas também é possível que ambas tenham razão, esteja

realizar o seu destino sozinho. Fomos feitos para viver em comunhão uns com os outros, a

havendo um mal entendido, é possível ainda que cada uma tenha somente parte da razão ou

solidariedade é a lei da vida em todos os domínios da Natureza. Mas viver com espírito

nenhuma tenha qualquer razão, todas duas se encontrem completamente erradas.

comunitário não é se massificar. Temos o direito de preservar a nossa identidade, e

Complicado, não? Sejam cautelosos, aproveitando este ensino rimado:

devemos assumi-la na prática se quisermos ser felizes. Mais ainda: cumpre-nos gritar bem

(A Atriz declama a trova a seguir do autor da peça.)

alto a nossa indignação contra a hipocrisia dos costumes vigentes e contra as injustiças dos sistemas políticos dominantes nos diversos países. Somos responsáveis pela triste e trágica

CAUTELA

situação do mundo porque nos calamos diante dos fatos sociais, cuidando apenas no nosso

Reflita sobre este fato:

conforto e bem estar. Precisamos ser altruístas e não egoístas, porque no egoísmo está a

Porque nunca tem cautela,

raiz de toda infelicidade. Plena razão tinha Jean-Jaques Rousseau quando ressaltou que os

Diversos bichos do mato

seres humanos viviam em estado de graça, venturosos, até que um deles passou uma cerca

Acabam em uma panela...

ao redor da sua moradia e exclamou: "Isto é meu!"... (Para o espaço vazio do lado esquerdo.) Tu já não tinhas ido embora, cara de pau?! ... No teu lugar me apareceu

(Em outro tom.) Finalmente, vamos a décima frase:

instantes atrás um outro Espírito com aspecto horroroso. Eu o mandei para o Inferno e ele

10. PRECISAMOS NÃO SÓ SABER O QUE PENSAMOS, MAS TAMBÉM

saiu daqui furibundo, dizendo que ia, mas voltaria trazendo consigo o Diabo em pessoa,

PENSAR O QUE SABEMOS.

física e jurídica... E eis o pior: o meu Guia, logo depois, me avisou que devo estar

(Comenta) Aí está o principal. Para sermos felizes devemos não acreditar em nada

preparada para enfrentar sem a sua ajuda, ainda nesta aula, o mais terrível Espírito que vou

afora a existência de DEUS, a necessidade de amor no coração humano e a importância da

ver na presente encarnação. Agora desaparece com a tua chatice, me deixa em paz, estou

luta pela justiça social. Devemos não acreditar nem em nós mesmos, adotando permanente

trabalhando. (Para plateia.) Número nove por favor:

autocrítica. Sócrates, que foi considerado como o homem mais sábio em seu tempo, na


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Grécia pré-cristã, afirmava que a única coisa que sabia era que nada sabia... Depois dele

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quando um grande bem queremos.

um escritor inglês, cujo nome eu ignoro porque afinal de contas não sou uma Enciclopédia, garantiu que nem isto ele sabia, apenas imaginava... Com certeza o princípio da sabedoria

4. GRATIDÃO

reside na consciência da ignorância, inevitável na espécie humana, porquanto “o homem é

Assim como o ar e o chão

tão só um animal que pensa, pensa sobretudo que não é um animal"... O autor deste

nada cobram de uma flor,

judicioso pensamento eu também não sei quem é, li em uma revista. (A critério da

jamais cobra gratidão

direção do espetáculo a Atriz pode tirar da bolsa uma revista e mostrá-la, assim como

quem faz o bem por amor.

pode, em alguns outros momentos da sua interpretação, retirar da bolsa objetos que produzam efeitos cômicos na platéia, sem apelar para o exagero porque a peça não é

5. JOGO DA VIDA

uma “chanchada”.) Temos que ter a humildade de reconhecer que somos seres

A vida é jogo. Jogamos,

pequenos e limitados, dentro da criação. Somente na Via-Láctea existem

e assim todos vivemos.

aproximadamente, segundo os astrônomos, uns duzentos bilhões de sóis... O que

Ora perdendo ganhamos,

representa cada um de nós em face da grandeza do Universo? Menos que um piolho de

ora ganhando perdemos.

minhoca... Bom, pessoal, chega de prosa, vamos para o verso. Distribui para a platéia vinte pedaços de papel numerados, com trovas do autor

6. DÍVIDAS DE AMOR

da peça, e executa o mesmo jogo de leitura e declamação, todavia sem qualquer

Amor com amor se paga,

comentário.

diz o povo e tem razão: nenhuma borracha apaga

1. APRENDIZADO VALIOSO

tal dívida do coração.

Na escola do bem viver esta lição aprendemos:

7. PAIXÃO DESVAIRADA

quem nunca sabe perder

Toda paixão desvairada

acaba ganhando menos.

é onda que vira espuma; é ponte que leva à nada

2. AMOR ROMÂNTICO

e traz à coisa nenhuma.

Amando alguém com fervor é bom a gente lembrar:

8. PERDA DE AMOR

só quem ama o próprio amor

Neste mundo enganador

jamais sofre por amar.

ninguém queira se enganar: só não perde um grande amor

3. AUDÁCIA

quem sabe também amar.

A audácia é temerária, disto todos nós sabemos,

9- DIGNIDADE

mas pode ser necessária

Quem possui dignidade


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nunca a perde até morrer; o resto da realidade pouco importa se perder.

15. PRESSA

10. ECOLOGIA

A pressa que é inimiga,

Devastando a Natureza,

da perfeição no ditado,

o homem em grande loucura,

jamais será, há quem diga,

com a enxada da afoiteza

amiga de um apressado.

cava a sua sepultura. 16. PERDA DE SONHO 11. VANTAGEM

Do passado resgatamos

Sempre no mundo a mensagem

lembranças com emoção,

da vida vem nos dizer,

mas os sonhos que enterramos

que nunca leva vantagem

jamais ressuscitarão! ...

quem só vantagem quer ter. 17. POSSIBILIDADE 12. CAMINHO DIFÍCIL

Quem nasce em berço de ouro

Caminhando na neblina

pode viver na sarjeta,

jamais se fere em abrolhos,

voando como besouro

quem enfrenta a sua sina

com asas de borboleta.

sem ter neblina nos olhos. 18. ALERTA 13. UTILIDADE

Se queres o bem por divisa

Quem não sabe dizer sim,

guarda contigo esta crença:

e gosta de dizer não,

todo amor que escraviza

como trigo é tão ruim

não é virtude, é doença.

que nunca chega a ser pão. 19. ROMANTISMO EXAGERADO 14. CEGUEIRA

Quem só vive de quimera,

Em penumbra ou plena luz,

quando tem os seus amores,

não sabemos enxergar,

termina em uma tapera

o bem que o amor produz

ou fugindo de credores.

se bem sabemos amar.


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20. VIDA

papel com pensamentos e trovas.) Vá embora, se quiser encher o saco encha este aqui de

Todos nesta vida temos

idéias que ensinem a ser feliz. (Estremece, cai, levanta-se.) Não adianta me ameaçar!

que somente o bem fazer;

Enquanto fazia seu discurso de justiceiro pervertido, eu raciocinava com lógica: cheguei à

se isto não aprendemos

conclusão de que você simplesmente não existe, nem pode existir, Por quê? Por quê?...

precisamos aprender.

Vou lhe dizer o porquê:

(Dirigindo-se à plateia com ar professoral). É isto aí. Estes versos que vocês

infinitamente bom, não criaria um grande SACANA como você, destinado a arrastar as

Primeiro porque tudo que existe foi criado por DEUS, e DEUS, sendo acabaram de ouvir pertencem a um gênero popular de poesia chamado TROVA. Foram escritos sem pretensão literária, e eu os escolhi pelo seu valor didático. (Vira-se para o espaço vazio do lado direito.) O quê???... Uma criança?... Engraçado, até hoje eu nunca tinha visto Espírito de criança... Você é um anjo?... Não, não é?... É apenas uma criança igual as outras?... O que deseja de mim, meu filho?... Brincar de

pessoas para a perdição. Segundo porque DEUS, sendo sábio, se tivesse criado você por descuido já teria se arrependido. Terceiro porque DEUS, sendo todo-poderoso, com tal arrependimento já teria feito você deixar de existir.

que? Brincar como? Jogar peteca?... Soltar pipa?... Ping-Pong?... Tudo bem, vamos lá...

(Dirige-se para a platéia com pose vitoriosa.) Ele sumiu. Desfez-se como pura

(Comporta-se como se estivesse fazendo o jogo de brincadeira.) Agora fazer de conta que

alucinação. Viram como saber pensar resolve qualquer problema e nos torna felizes?

você é um gato e eu um cachorro? Esta não!... Mas como?... Não chore, se o problema é

Agora batam palmas para mim que o espetáculo acabou.

este vou tentar... (Imita o cão.) Agora devo ser uma criança, depois um pato, um passarinho e um macaco? (Imita tais animais.) O quê? Está não!!! Eu não sou cantora nem bailarina... Não chore de novo, vou ver se consigo. (Canta e dança como quiser e puder, até que, subitamente, vira-se para o outro lado, o esquerdo.) Não !!! Não !!! Não !!! Meu DEUS do céu, não é possível!!! Vade retro, Satanás!!! (Tenta correr, não consegue, tal a sua tremedeira.) O Senhor é mesmo o Diabo? Valei-me, meu DEUS, meu santíssimo Pai Eterno, meu Criador amado, meu supremo Senhor. (Ajoelha-se, reza.) Está rindo de que, da minha reza ou do meu pânico?... Não?... Está rindo de si mesmo porque perdeu a viagem? Esta eu não compreendi... Perdeu a viagem por quê?... Ah, é? No Inferno o senhor não deseja gente subversiva como eu?... Além dos que acumulam riqueza somente em benefício próprio, e dos perversos, só entra no Inferno os corruptos de toda espécie, menos os que são pobres, é?... Por que esse privilégio para os pobres?... Ah, sim, o senhor é muito esperto, realmente pobre só se torna corrupto quando é corrompido por quem possui dinheiro ou poder político. Gostei desse seu raciocínio, é lógico e justo, estou até começando a simpatizar consigo, apesar, me perdoe, da sua apavorante feiúra. Minutos atrás eu seria incapaz de imaginar que o senhor ria... Ri sempre, é?... Jamais chora?... Faz sentido: o riso é produto da inteligência que pode ser boa ou má, o pranto é que brota do sentimento... Bem, eu agradeço a sua visita, mas agora se mande daqui, me deixe em paz que estou trabalhando. (Pega o saco de pano utilizado para levar à plateia pedaços de

FIM


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