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PREFÁCIO

As páginas do livro Do Norte ao Sul das Américas - PDPI e ETA: eixos combinatórios da hegemonia estadunidense na Educação Brasileira nos oferecem uma análise consistente e bem urdida de dois programas que resultaram de acordos entre Brasil e Estados Unidos: o Programa de Desenvolvimento Profissional para Professores de Língua Inglesa nos EUA (PDPI) e o English Teaching Assistant (ETA). Neste estudo, o objetivo de Darllen Silva e Norma-Iracema Ferreira consiste em compreender de que modo tais programas contribuíram para o fortalecimento da hegemonia estadunidense sobre o Brasil. Pela leitura desta obra somos levados a perceber o ensino do Inglês como um as pecto do imperialismo cultural norte-americano e a problematizar as artimanhas da razão imperialista. Uma destas artimanhas é projetar o que é uma particularidade local como dever ser para o restante do mundo. O livro aponta que, dentro do espaço escolar, o ensino da Língua Inglesa é concebido com uma resposta a imperativos criados por processos históri cos mundiais supostamente inexoráveis e irreversíveis: modernização e “globalização”. Como destacam os autores Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, na obra Sobre as artimanhas da razão imperialista (1998, p. 19): “A remodelagem das relações sociais e das práticas culturais das sociedades avançadas em conformidade com o padrão norte-americano, apoiado na pauperização do Estado, mercantilização dos bens públicos e generalização da insegurança social, é aceita atualmente com resignação como desfecho obrigatório das evoluções nacionais”. Como é produzida tal aceitação? Essa é uma das questões cruciais que o livro de Darllen Silva e Norma-Iracema Ferreira ajuda a responder. Por baixo do termo-slogan “globalização” o que vemos ocorrer é uma americanização do mundo. Desde meados do século XX, o American way of live foi propagado na América Latina por meio dos mass media, mas igualmente através da criação de programas de cooperação internacional em diversas frentes. O Brasil alinhou-se aos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria. Com o Golpe de 1964 teve início uma maior abertura à influência estadunidense. De um lado, ocorreu a fragilização de setores nacionalistas do bloco no po der. De outro, houve a celebração dos ambiciosos acordos MEC-USAID que objetivavam, dentre outras coisas, a formação de capital humano nacional. Neste atinente, as autoras destacam: “O governo militar abriu espaço não somente para o capital internacional, mas especialmente para a interferência estrangeira nas políticas educacionais”.

Darllen Silva e Norma-Iracema Ferreira destacam que Organismos Multilaterais, como o Banco Mundial, foram agentes importantes da sustentação da hegemonia dos Estados Unidos em âmbito global. No Brasil, ainda segundo as autoras, estes organismos passaram a ditar os rumos a serem seguidos, inclusive na seara educacional. No quadro da crise do modelo fordista de acumulação de capital, iniciada nos anos de 1970, ocorreu um exponencial aumento da pressão dos agentes do grande capital pela instituição de um Estado mínimo. Nas décadas seguintes ganhou força o discurso de que o Estado brasileiro era um paquiderme excessivamente pesado e ineficiente, o que dava azo a “uma presença cada vez mais intensa do capital estrangeiro, por meio do caminho traçado pela onda de privatizações”, arrematam as autoras. Com base em farta bibliografia especializada, Darllen Silva e NormaIracema elucidam que as reformas dos governos Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso aceleraram a marcha privatizante ditada pelos Organismos Multilaterais. Quais as consequências disto? Na segunda metade do século XX, a taxa de crescimento da riqueza produzida nacionalmente chegou a atingir picos de 7%. Mas, o País também acumulava miséria. Na América Latina em geral, a adoção do receituário neoliberal se desdobrou num brutal empobrecimento dos trabalhadores. Como assevera Gaudêncio Frigotto, em Educação e a crise do capitalismo real (2010), a realidade econômico-social que se produzia neste subcontinente confirmava uma das teses basilares da doutrina neoliberal de Friedrich Hayek: que a desigualdade é fator fundamental para que a produtividade capitalista seja eficiente. Na perspectiva neoliberal, a mercadização da Educação seria o antídoto adequado para as escolas públicas, que fracassavam ou faziam fracassar seus alunos. Segundo tal ótica, como instituições ineficientes, as escolas públicas deveriam ceder espaço para a atuação de educandários privados, ajustados aos modernos preceitos de gestão e ensino. Nessa vertente, a entusiasmada defesa da “globalização” pelos Organismos Multilaterais tinha como cerne a apologia à modernização do Estado (desidratação por meio de privatizações) e da sociedade (remoção das forças que freavam a integração desigual nos circuitos da produção e do consumo). A fé no tirocínio das agências internacionais com dominância estadunidense era algo vital para a aceitação da implementação de novos rumos nas economias latino-americanas. Isso se confundia com o fomento à crença na superioridade dos EUA em termos políticos, mas também sociais e culturais. Do Norte ao Sul das Américas - PDPI e ETA: eixos combinatórios da hegemonia estadunidense na Educação Brasileira é um livro que reforça em nós a

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certeza de que os discursos não flutuam descolados das disputas sociais. As au toras mobilizam consistente instrumental teórico para descortinar e analisar as conexões entre práticas discursivas e dominação. A Análise de Discurso Crítica, do linguista britânico Norman Fairclough, é utilizada por Darllen Silva e NormaIracema Ferreira visando ao desnudamento das ideologias embutidas em discursos pretensamente imparciais. Por meio da teoria fairclougheriana as pesquisadoras puderam reconhecer os conteúdos ideológicos presentes nas falas de organizadores e participantes do PDPI e do ETA. A análise apresentada evidencia como a valorização da Língua Inglesa (como objeto cultural) participa de um campo semântico que naturaliza e exalta a “globalização”, a modernização e a integração acrítica no capitalismo – não raramente confundido com o American way of life. Os programas abordados funcionam como aparelhos de hegemonia, ou como Aparelhos Ideológicos do Estado, conceito-chave da teoria de Louis Althusser. Isso quer dizer que os discursos ideológicos ganham materialidade nas práticas de enunciação, mas igualmente nas instituições que se engajam no enquadramento das percepções sociais. Acertadamente, as autoras usam postulados de Fairclough para remediar os exageros de Althusser, admitindo que os sujeitos podem ser insubmissos diante do chamamento ao compromis so com as ideologias. Elas destacam que “a pesquisa em apreço diverge da unilateralidade althusseriana e partilha da concepção fairclougheriana de sujeito constituído ideologicamente, uma vez que concebe um sujeito capaz de transcender e opor-se às ideologias dominantes”. Trata-se de uma reafirmação da agência de homens e mulheres, que vai na contramão de determinismos estruturalistas. O livro também se baseia teoricamente na tese de Antonio Gramsci sobre a hegemonia. Nascido na Sardenha em 1891, Gramsci cedo se lançou na vida política da classe operária de Turim, tornando-se articulista de jornais socialistas e membro-fundador do Partido Comunista Italiano, do qual viera a ser secretário-geral, em 1924. Sua trajetória intelectual estava a serviço das lutas políticas dos trabalhadores. Uma questão central de seus escritos era a compreensão das causas do fracasso da revolução socialista no Ocidente. Isso o levou a escrever aquilo que Michael Burawoy, no livro O marxismo encontra Bourdieu (2010, p. 55) caracterizou como “a mais criativa teoria marxista do século XX”. Formulada na prisão, esta teoria, cujo conceito-chave é a hegemonia, mostra sua fecundidade em estudos como este que ora apresento. Como ocorre em Cadernos do Cárcere, o livro Do Norte ao Sul das Américas - PDPI e ETA: eixos combinatórios da hegemonia estadunidense na Educação Brasileira

que devota suas páginas à elucidação das engenharias da dominação. Trata-se, portanto, de uma leitura que nos insere numa tradição crítica, mas que também amplia o questionário desta para dialogar corajosamente com os desafios do tempo presente.

Sidney Lobato Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Professor da Universidade Federal do Amapá

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