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Sexualidade na vida clandestina
Mas a relação com a teoria se encontraria em muitos espaços, e é sabido que as próprias prisões acabariam se tornando espaço de aprendizado e estudos também. O próprio Paiva revela que isso estava presente:
Seu Luiz, o mais velho dos presos – devia ter uns 60 anos de bondade – e também o mais atencioso, solidário e otimista, passava todo o tempo lendo, repartindo sua simpatia com os companheiros que se sentavam ao seu lado e esforçando-se por infundir-lhes a inabalável convicção de que o Brasil em cinco anos seria socialista – no máximo!6
Há muitos fatores a ponderar, a idade é ressaltada como uma certeza de que a paixão revolucionária não é apenas coisas daqueles jovens que “descartavam teorias”. A projeção política era uma desgraça, mas o ânimo interno era melhorado com uma fala dessas.
Sexualidade na vida clandestina
As questões de gênero aparecem também quando falamos de militantes homossexuais da VPR, que entretanto tiveram que ocultar publicamente essa condição. Era assunto vedado, mesmo tendo sido tema de conflitos. Durante seu treinamento em Cuba, Anselmo passou por um julgamento moral por ter realizado uma tentativa de aproximação sexual com um outro militante, “ele andou agarrando o Evaldo”. Ou seja, não parece ter se tratado de uma tentativa de assédio, e sim uma manifestação de um desejo sexual. Ele foi obrigado a realizar uma autocrítica sobre isso. Na entrevista de Angelo Pezzuti ao Pasquim, que julgo ser a primeira a divulgar essa questão no Brasil, o tema é tratado. A entrevista foi realizada ainda em 1974, em Paris, por Herbert Daniel, de quem logo falaremos. Segundo Angelo, Anselmo
Fez autocrítica de ter cometido aquele ‘lapso’. Agora você imagine o que significa para esse cara dizer isso, poxa, diante do grupo todo. Enfim, você sabe, não houve quem dissesse: ‘escuta, cara, você não é melhor nem pior do que eu porque você gosta de homem e eu gosto de mulher’. Não era exatamente esse tipo de ambiente que prevalecia por lá. Os caras olharam aquilo como se fosse um espanto,
6 Idem, op cit. p. 59.
como se fosse o cúmulo da tara. Ele teve que fazer autocrítica, humilhar-se. Ele fez. Prometeu nunca mais fazer uma coisa dessas.7
Nessa mesma entrevista Angelo indica que havia uma relação de muita proximidade entre Onofre e Anselmo e que o primeiro tinha acesso a forte indícios de comportamento “estranho”, como perder dinheiro da organização, e mesmo assim perdoar Anselmo. Ele indica que quando estava em Recife Anselmo ligou várias vezes para Onofre no Chile, isso é muito arriscado do ponto de vista da segurança. É possível inferir que havia um relacionamento entre eles. Ainda na mesma entrevista:
[Onofre] era muito semelhante, mas com menos recursos. Anselmo era mais bonito. Fisicamente, tinha uma cara diferente, uns olhos expressivos, um sorriso muito sedutor. O Onofre é horroroso. Como homossexual... Daniel: Onofre era homossexual? Tipicamente. É que o homossexual é um cara que erotiza o próprio corpo. Ele não pode ser tão feio como o Onofre. Não estou ‘xingando’ ele não, entende? [...] Daniel: O Onofre tinha consciência de sua feiura? Falava? Tinha. Tanto assim que as identificações amorosas dele eram com louros altos de olhos azuis.8
Esse assunto merece comentário por dois motivos. Primeiro, para mostrar que havia preconceitos entre os militantes, que a orientação sexual era velada, não era abertamente colocada. E segundo porque uma possível relação se não amorosa, mas de cumplicidade entre Onofre e Anselmo existia, como parece, isso se torna um sério problema quando Onofre banca Anselmo em uma situação de alta traição à VPR, que levaria a morte de vários companheiros, tema que abordaremos no próximo capítulo. Entre os militantes com quem conversamos nessa pesquisa, o caso de Onofre Pinto é comentado “fora do microfone”. Contam pequenas histórias, sempre tentativas de Onofre estabelecer alguma relação com
7 Angelo Pezzutti, entrevistado por Herbert Daniel, 14/10/1974. Pasquim, p. 11 8 Idem. Há um desvio linguístico ai: Daniel pode ter editado a entrevista ao perguntar “Onofre era”, pois a entrevista veio a público em 1984. Certamente Angelo se refere a Onofre como “é” porque acreditava que ele estivesse ainda vivo. O relato oficial o dá como assassinado em julho de 1974.
algum companheiro. Mas talvez o silêncio também se relacione ao vínculo de Onofre com o cabo Anselmo, que teria trágicas consequências. O relato de Herbert Daniel é bastante chocante, triste, quando ele fala da necessidade de ocultar sua sexualidade para se manter na luta. Ele usava os tempos de militância para estudar e ficar longe de qualquer expressão que “desse bandeira”. Relatam os amigos que ele chegava a exagerar, contando piadas pejorativa sobre gays, o que podia ser uma forma de “desviar qualquer insinuação sobre sua própria homossexualidade, ao contar piadas sobre gays parecia afirmar uma heterossexualidade”9. Ele dizia sobre si que vivia em “celibato”, ocultando a todo custo o que sentia, inclusive quando esteve apaixonado por alguns de seus companheiros. Valente, um homem que abandonou o curso de medicina quase formado para militar, foi para o treino de guerrilha no Vale da Ribeira, participou de sequestros, foi do comando nacional. Mas, reprimia seus desejos, “decerto era difícil para outros membros do grupo lidar com as próprias necessidades sexuais”, inclusive para os casais heterossexuais não era tarefa simples. Embora compreendesse que o problema atingisse aos demais, seu relato pessoal é comovente:
Entendia que seu celibato era parte constituinte do seu comprometimento revolucionário. ‘Sentia como todos deviam sentir, que a ausência do sexo era uma necessidade da luta, assim como os desconfortos que sofríamos, a falta de comida, por exemplo, para mim a repressão existia nas cidades, porque a ausência de relações sexuais não era nenhuma condição da luta. Era um silêncio. Um exílio [...] eu não era exatamente um militante homossexual, era um homossexual exilado.10
Quando finalmente ele saiu da VPR, exilou-se em Paris, engajou-se na luta na França e seria um dos fundadores do movimento pela liberdade gay no Brasil. Contribuiu com o jornal Lampião da Esquina e posteriormente com a luta contra o preconceito com relação à AIDS. Quando participou do jornal Pasquim, Daniel falou sobre isso de forma mais descontraída:
Anselmo não é bicha. Eu sou. Optei por enfrentar todas as formas de preconceito. Inclusive o meu, que me fazia temer ser chamado de bicha. Durante os anos de clandestinidade vivi uma castidade
9 GREEN, op cit. p. 142. 10 Idem, citando o próprio Herbert.