CAIPORA - Comadre Fulozinha

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NASCIMENTO

Caipora Comadre Fulozinha

2011


Primeira Edição 2011 Proibida a reprodução total ou parcial sem permissão do autor. Copyright by Severino do Nascimento Pereira Editado pelo autor Revisado por Menelau Júnior Diagramação Fábio Vasconcelos (81) 9126.4415

Impresso no Brasil www.nascimentopereira.com.br


Agradecimentos

Nota do Autor

Agradecer é algo singular, principalmente quando reconhecemos a importância de pessoas que participaram para que este projeto acontecesse.

Tudo que vocês vão ler é ficção. Os personagens são criaturas imaginárias. Como toda história acontece no início do terceiro milênio d.C., o leitor poderá reconhecer alguns dos vultos citados que tiveram ou não presença marcante na história do Planeta Terra, Brasil, Pernambuco ou cidades deste Estado, em especial Bezerros e Caruaru. Todas as cidades citadas existem, talvez não existam algumas ruas, lojas e afins. O personagem principal desta história vem da mitologia e crendice do nosso povo nordestino.

Pessoas vão e vêm em nossas vidas, de maneira que muitas vezes não as percebemos na hora de demonstrarmos gratidão pelo rumo bom que a vida tomou. Não existe ciclismo sem bicicleta. Não existiria a pouca tranquilidade – situação financeira – de escrever este conto sem a intercessão de Pedro Carlos Tabosa do Nascimento, que me indicou a Francisco de Assis Amâncio e a uma vaga no Bonanza Supermercados Ltda. Denivaldo Farias Cintra, gerente contábil, sócio da empresa em que trabalho, foi um dos que viram a primeira revisão do livro e me incentivou a terminá-lo. Não poderia esquecer Djalma Farias Cintra, que participa desse conto, e sua filha Rita de Cássia Ramos Cintra, que teve presença marcante na conclusão deste sonho. Àqueles que, na sua simplicidade, me ajudaram a construir os personagens, não tenho nem palavras para demonstrar minha gratidão. Agradeço a todos de maneira igual, pois se, Deus não os colocasse na minha vida, não teria conseguido.


Dedicatória É comum, e até chato, ler uma dedicatória à pessoa que vou citar. Você pode até concordar comigo no final, até porque essa pessoa, no meu caso, é especial como deveria ser. Falo de um ser humano que não só esteve comigo desde o princípio de minha existência, mas que contribuiu em muito no talento dado por Deus. Essa mulher não é de alisar, pois acredita que o amor é sincero, e não mentiroso. Essa mulher era cúmplice na minha adolescência, e é até hoje. Essa mulher é Celina. Uma mulher simples, no entanto sábia. Essa mulher é a primeira mulher por quem me apaixonei. Essa mulher, fragilizada pelo cansaço da vida, e principalmente pela falta de conforto, é justa e verdadeira. Essa mulher é minha mãe, Celina, o grande amor da minha vida. Falo agora não só entre nós dois, mas para que todos saibam que você é especial. Perdoe-me se até agora não consegui ser aquele homem que a senhora queria que eu fosse. Esse livro eu dedico a você, mãe.

Sumário I. O Início II. Uma Sombra Na Noite

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III. O Encontro Debaixo Das Águas Do Medo 13 IV. O Inferno Conspira E Ri... V. Uma Noite De Amor

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VI. Os Dias Seguintes À Tormenta

34

VII. A Procura Daqueles Que Amam

36

VIII. O Fim Da Procura IX. Lembranças Do Agora X. O Pacto XI. A Ofertada XII. A Prisão

39 43 50 58 67

XIII. Conhecendo-se (Dia A Dia)

82

XIV. A Primeira Visita À Fazenda

94

XV. A Viagem

99

XVI. A Cigana

103

XVII. A Volta Da Viagem XVIII. Reencontrando A Cigana

123 128

XIX. Certeza Do Amor

133

XX. Visita Indesejada

137

XXI. A Praga XXII. Abatedor De Cobras

155 165


XXIII. A Morte Faz Uma Visita À Fazenda

185

XXIV. A Visita Da Cigana

190

XXV. Desespero

202

XXVI. A Verdade

215

XXVII. A Hora De Pagar

239

XXVIII. Minha Verdadeira Cara

248

XXIX. Minha Descendência

256

XXX. De Volta Pra Casa XXXI. O Retorno XXXII. Socorrendo A Rainha

281 289 301

O Início Se você acredita em espíritos, acredita em anjos e demônios. Se você acredita em anjos e demônios, acredita no bem e no mal. Se você acredita no bem e no mal, acredita em DEUS e no diabo. Se você acredita, acredita. Estava no princípio logo após a criação. Sua beleza era grandiosa, cobria toda a terra de sorte e verde. Um anjo chamado natureza. Uma fonte de energia inesgotável. Amou... Amou primeiro seu Criador, depois se perdeu com um amor que não conhecia. Tristeza, conhecimento e agonia o carregam. Caiu do céu, de perto do meu DEUS. Não era tão importante quanto aquele que conspirou. Não era seu preferido, pois era menor diante dele que conquistou um poder maior. Pagou um preço tão alto por amor que pensou ter aprendido. JAVÉ lhe deu uma chance logo após ter sido banido. Disse-lhe que teria uma eternidade humana para provar que merecia voltar para seu lado. Foi encarregado de tomar conta das matas, das águas, dos rios e dos animais da floresta. No juízo final seria cobrado por suas ações em ajudar o homem. Àquele que odiou teria que amar. Está agora condenado mais uma vez por amar. O ódio cresce numa velocidade dentro dele que talvez não tenha mais a misericórdia de DEUS. Nascimento

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Seu pensamento é destruir aquele que levou a quem pensava que amava. Amou Jasmim, uma índia que fora carregada para distante, onde não conseguiu encontrar. Desde então sua sede de vingança vem crescendo. Tentou falar com DEUS voltando ao ÉDEM para saber onde Jasmim estava. Foi repreendido. Cheio de ódio blasfemou. Voltou para as matas e vem procurando sua amada desde então em todas as florestas do mundo, num desespero que se esqueceu do tempo, tempo este que não conhecia até então. Lembrava o rosto do homem que amarrara Jasmim e a colocara numa coisa enorme que, hoje sabe, era um veículo. Naquele dia, nada podia fazer. Estava impotente diante das horas. Estava sem forças, não tinha forças para sair das matas. O ódio o levou ao inferno para procurar aquele que fora causador de sua queda. A tristeza o colocou diante de Lúcifer para pedir ajuda. A solidão o levou a pedir poder àquele que fora causador de sua desgraça.

Parte I

Uma Sombra Na Noite

A rua estava deserta. Eram mais ou menos duas horas da madrugada. Algo se movia no céu como quem procura algo sobre as ruas. A noite estava fria. A lua não queria aparecer. Parecia estar com medo de alguma coisa. Seria coisa ou a lua, por conhecer a noite, ainda não tinha visto nada igual. Era uma ave de rapina. Se alguém estivesse olhando-a, diria ser um urubu, no entanto suas manchas nas asas o entregariam. Seu peito imponente, riscado e iluminado pelo clarão da lua, mostrava o que era. Deveria estar procurando por alguém. A neblina deixava a rua com aspecto espectral, medonho. Nada se movia. Ele olhou para a praça... Ela deveria estar lá. Só que não estava... Onde estaria? O tempo estava acabando. Era hora de ir embora. Poderia voltar depois? Um carcará enorme, quase um monstro... Olha à sua direita, fita uma rua. Sentia que aquele era o caminho... Seus olhos sabiam o que estava escrito na placa que indicava o nome da rua. Teria que ir. Tinha prometido. Levaria ela de qualquer jeito. Não poderia mais voltar atrás.

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Bateu as asas. Como um fleche, tudo o que deveria fazer lhe foi reservado diante de seus olhos medonhos. Não sabia como fazer, só sabia que tinha que resgatála. Não poderia falhar. Tudo estava escrito, estava se cumprindo. Pensou na mata. Pensou no que passou para poder estar voando, caçando como antes. Agora estava planando... Resolveu que iria. Não tinha alternativa. Teria de ir de encontro ao seu destino. Que destino? O que o aguardava? Bateu novamente as asas. Olhou novamente para a rua. Subiu, subiu, mergulhou no nada de encontro ao seu objetivo. Voou, parecia ver tudo com seus olhos vermelhos de fogo. A única espécie animal que o viu foi um rato que tratou logo de se esconder. Não gostaria de ser devorado por aquele carcará enorme, apavorante, que parecia estar procurando alguma coisa, coisa esta não seria ele, um pobre rato minúsculo diante daquelas garras, daquele bico. Muitas coisas aconteceram. Não poderiam, mas aconteceram. Estes eram os pensamentos, no entanto a pergunta continuava. Por quê? Por que acontecera logo com a princesa? Por que questionar, se agora seu único propósito era salvá-la? Enquanto voava desesperado em busca do seu destino - destino este do qual não poderia se esquivar -, sua mente voava em direção ao passado, passado esse que não poderia ser mais modificado.

Parte II

O Encontro Debaixo Das Águas Do Medo

Aquela manhã não era das melhores, até porque o tempo não ajudava muito aqueles que tinham o que fazer. Era final de fevereiro de 2004. A cidade estava cheia de pessoas circulando de um lado para o outro, numa tentativa frenética de comprarem o que necessitavam para viajar e passar o carnaval fora. Como se não bastasse, chovia, chovia, chovia... Não era de se aborrecer, no entanto estava com raiva – não conseguira ainda estacionar o carro, precisava comprar coisas para a fazenda. Circulou nas ruas do centro da cidade até que encontrou um estacionamento próximo de onde faria suas compras. Já tinha passado por inúmeras vezes na frente da loja onde compraria as ferramentas, um motor... – nenhuma vaga. - Não acredito! Parece castigo... Bem que Antônio disse que deixasse para amanhã, que a cidade hoje estaria um inferno – falou Carlos sozinho. Não era de se espantar. Caruaru tem a fama de fazer o maior e melhor São João do Mundo – se é que comemoram esta festa no resto do mundo –, no entanto nessa época a cidade fica vazia Quando saiu pela manhã, o tempo estava bonito. O

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sol parecia travar uma batalha com as nuvens, no entanto as nuvens, de tanta insistência, no final venceram a batalha. Saiu de casa bem cedo. Antônio até que achou estranho. Não que Carlos fosse do tipo de homem que dormisse até tarde, mas sabia que ele não gostava de ir pra cidade principalmente Caruaru. Antônio era um homem quase raquítico, mas seu jeito de tratar as pessoas parecia deixá-lo enorme. Era um matuto e, como dizem, “são sábios, muitas vezes mais fortes do que aparentam”. Tinha pouco mais de um metro e sessenta, cabelos escuros, feito visão de cego. Suas mãos eram grandes para seu tamanho, sem contar que calçava 43. Seria difícil classificá-lo em sua cor – estava mais pra moreno desbotado do que branco. Seu sorriso clareava o dia daqueles que estivessem dispostos ou não a ser contagiados pela alegria. Muitas vezes sabedoria é comparada a inteligência, no entanto não é! Antônio, além de ser um homem simples, na sua simplicidade também era sábio. Foi justamente isso que agradou Carlos. Cuidava da fazenda como se fosse sua. Entendia de tudo, fazia por prazer. Não lembrava a quanto tempo que o conhecia, só sabia que parecida conhecê-lo há décadas. Algumas coisas acontecem sem sabermos por quê. Gostando ou não, Antônio foi uma dessas coisas que aconteceram na vida de Carlos e de que ele gostou. Já estava entrando na cozinha para fazer sua refeição matinal, quando Antônio falou, num ar de quem diz “não vá à cidade”. 14 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Não acredito que o senhor vai a Caruaru hoje. - Claro que vou, Antônio! – respondeu Carlos sem dar muita atenção. A esposa de Antônio estava preparando o café. Olhou para os dois como quem olha para o marido e filho conversando. Maria era uma mulher não das mais belas. Como Antônio tinha um ar de tranquilidade – não se sabe dizer quem pegou a simpatia de quem –, era bela, mesmo sendo uma mulher gorda e atarracada. - Entre, Carlos! Vamos, sente-se à mesa! Preparei o que o senhor mais gosta... – falou Maria para Carlos, convidando-o com as mãos e com um sorriso no rosto. Independente de qualquer coisa, Maria estava sempre a sorrir, tratava Carlos como a um filho. Carlos para muitos parecia orgulhoso, como dizem aqui no nordeste de pessoas que não dão muita atenção ou não falam com qualquer um, no entanto gostava muito de Maria e, principalmente, de sua maneira de falar. Maria, na sua juventude, terminara o magistério. Por alguns anos, foi professora do primário até conhecer Antônio e sentir-se apaixonada. Não se sabe se foi bem o caso, até porque seu aspecto não era dos mais bonitos. Antônio, ao contrário do que muitos diziam, a amava pela mulher que era, apesar de ser quase analfabeto. O começo foi difícil, pois Antônio era muito novo. Não tinha profissão ainda definida e também não queria que sua mulher trabalhasse. Maria estava decidida na época e acreditava que, se o escolhesse, tudo estaria bem. Nascimento

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Antônio era carinhoso, tratava-a com respeito. Para ela, era o que bastava até descobrir que escolhera um homem que não negava fogo. Isso era o que mais gostava, apesar daquele jeito calado de ser.

- Bom dia, senhor! – falou chamando a atenção de Carlos.

Como as coisas têm que ser, já estavam juntos a mais ou menos uns trinta anos.

Estava na frente da porta da guarita, como quem vai perguntar se iria deixar o carro ali. Carlos o olhou, perdoou-lhe mesmo sem escutar a pergunta que acharia absurda.

Uma das poucas coisas da vida de que ela não se agradou foi o fato de não poder ter filhos. Esse era o desejo de Deus, foi o que seu marido lhe disse quando descobriu que não dariam frutos.

- Bom dia! Não me pergunte se vou passar muito tempo. Passarei o tempo que for necessário. Outra coisa: não vou deixar minha chave. Agora me diga rápido o que preciso fazer para deixar meu carro.

O dia estava bonito. Carlos acordara disposto, bemhumorado. Lá fora, às 6h, o sol parecia gritar que o dia era seu, apesar de ter como companheira a brisa, sempre disposta a soprar aliviando o fogo daqueles dias mais quentes.

Às vezes, Carlos sem querer era grosseiro, até com que não tinha nada a ver com suas dificuldades ou preocupações.

- Vamos fazer o desjejum, Antônio. Aproveito e passo o que quero que faça antes de minha volta da cidade. Se é que preciso dizer o que deve fazer – falou Carlos para Antônio, dando-lhe tapa nas costas e rindo.

- Não precisa deixar nada, senhor! Basta que assine aqui a hora que chegou. Pegue um comprovante que seu carro está protegido. Vou lembrar que nós não temos seguro de espécie alguma. O patrão falou que lembrasse a todos que fechamos às 18h, não mais do que isso. Perdoe meu jeito, mas o patrão sempre me lembra para falar alto e em bom tom – respondeu o garoto quase gritando.

- Lá vem o senhor me deixando encabulado – respondeu Antônio, baixando a cabeça com as faces rubras.

O rapaz, que parecia já acostumado com esse tipo de tratamento, sequer estranhou. Simplesmente respondeu.

Antes de sair, como sempre, mesmo sabendo que seu amigo era capaz de fazer até melhor do que ele, lembrou que a Márcia precisava de cuidados, pois parira havia dois dias; que não se esquecesse de vacinar os carneiros etc., etc., etc.

- Tudo certo! Onde assino? – perguntou Carlos se dirigindo até a guarita.

Entrou no estacionamento. Estacionou o carro. Quando ia saindo, um rapaz que aparentava uns dezesseis anos o parou.

- Desculpe meu jeito. É que estou chateado por não conseguir estacionar antes, ok? – Falou Carlos,

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- Aqui, senhor – respondeu o garoto, apontando para um talão em cima de um balcão de madeira escurecido pela sujeira.

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envergonhado por tratar o que ele achava um criança. Carlos sempre se desculpava depois de ser grosseiro. Desta vez, ficou chateado por ter tratado uma criança com ignorância, principalmente depois de ter levado uma tapa de pelica, pelo tratamento que recebera. - Nada, senhor – respondeu o jovem – Não se preocupe comigo. Um bom dia. - Bom-dia! – respondeu Carlos, saindo meio que sem jeito. Olhou para um lado e outro sem saber se subia ou descia. Resolver não com muita disposição. Subiu, pois era o caminho mais curto. Estava próximo à SRF (Secretaria da Receita Federal), onde havia alguns dias passara para resolver complicações de uma declaração de IRPF (Imposto de Renda Pessoa Jurídica), pois não declarara ter ganhado há um ano um prêmio de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais) na loteria, que na época o ajudou muito, só que no ano seguinte lhe causaria alguns aborrecimentos. Não que precisasse omitir. Esquecera realmente. Só que o Leão não conseguiu entender como comprara trator, carro e ainda uma casa no litoral. É claro que só com aquele prêmio seria impossível fazer tudo isso, mas Carlos tinha crédito e algumas economias. O local onde iria, uma loja de materiais agrícolas, ficava do outro lado da rua – na rua dos correios, como muitos a travavam. Atravessou pelo farol sem a preocupação de olhar um lado e outro. 18 | Caipora - Comadre Fulozinha

Saiu caminhando agora despreocupado, sem pensar em nada que o afligira havia pouco na tentativa de estacionar. De fato, naquele dia a cidade estava um inferno. Pessoas de um lado para outro na tentativa de comprarem alguma coisa. Carros buzinando como quem pede desesperado para que saiam da frente, pois já está atrasado. Passou em frente à LAFEP, entrou à esquerda descendo na rua dos correios. Lembrou que, quando foi a Caruaru pela primeira vez, a cidade não tinha tantos carros, o movimento não era tão grande. Parou. Olhou. Lá estava a loja. Atravessou a rua, desta vez olhando para cima, como quem espera uma chuva de meteoros e aguardando que não acerte. Entrou na loja. - Bom dia, senhor! O que deseja? – perguntou o balconista. Carlos não conhecia aquele vendedor. Deveria ser novato, pensou. - Bom-dia! O Sérgio está? – perguntou em seguida Carlos. - Não, Senhor! Posso ajudá-lo em alguma coisa? – respondeu o jovem. - Sim! – respondeu Carlos meio que decepcionado. – Preciso de... O que Carlos foi comprar comprou. Tinha uma relação feita por ele, Antônio e Maria, que, mesmo sem fazer parte dos trabalhos da fazenda, escuta Antônio sempre reclamando do que faltava. Nascimento

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Eram 11h quando Carlos ia saindo da loja, e Bento falou com ele de maneira diferente. Bento estava na loja havia uns vinte dias. Era de estatura baixa, falava manso. Seus cabelos eram castanho-claros. Poderia ter uns vinte anos – pelo menos na aparência. Era do tipo comum, nem forte nem raquítico. Parecia que desde que se entendera por gente trabalhara naquele ramo. Carlos gostou do atendimento do rapaz, até que ele o olhou de maneira diferente, como quem está em transe, começando a falar coisas que Carlos a princípio não entendia muito. - Senhor... Senhor... Não vá por este caminho. Senhor... Senhor... Não vá por este caminho. Ela o está esperando. Ela o está esperando. Não vá senhor – falou o balconista revirando os olhos para Carlos. Carlos o olhou meio que aturdido, sem entender por que Bento estava falando daquele jeito. Por que estava se dirigindo a ele? Seus olhos estavam brancos sem a menina. Sua voz não parecia ter mudado, mudou! Assumiu naquele momento não uma voz espectral, mas sim sinistra, de quem não fala o que realmente deveria falar. Ele falava de um jeito que Carlos não gostou, não querendo ouvir de novo. - Obrigado! – respondeu o jovem com um olhar desconfiado. - O que você falou? O que disse? – perguntou Carlos sem medir o timbre de voz. - O senhor vai saber! Perdoe-me. Sou sensitivo, não deveria falar nada. Por favor, fale baixo. Peço-lhe, fale baixo. Esqueça o que falei. Acho que estou ficando doido. Quando Bento voltou do seu transe, olhou para a 20 | Caipora - Comadre Fulozinha

porta da loja e viu o que jamais esqueceria. Viu sua mãe nas garras de uma coisa, mandando-o calar-se. Naquela hora, tudo o que lhe era de mais digno faltou, o que não faltaria mais tarde. No futuro, pensou que deveria ter dito tudo, no entanto no futuro seria tarde, agora era o momento crucial. Carlos, quando viu o rosto de Bento, sentiu um calafrio que invadiu sua alma. Não soube o que realmente estava se passando. Tentou imaginar tudo o que era possível de acreditar, mas não conseguiu. Ficou paralisado por instantes, olhando sem querer o rosto desfigurado de Bento, que parecia estar vendo ou sentindo a pior das visões ou dores. Carlos não lembraria aquilo por um bom tempo. Foi arrancado de sua morbidez por um som que rasgou a tranquilidade até das formigas que estariam alojadas a quilômetros abaixa da terra. Olhou pro céu que escurecia numa velocidade incrível. Saiu da loja. Tomou a direção esquerda, subindo. Pensou que seria bom tomar uma cerveja. Procuraria algum lugar. Dobrou a esquerda novamente antes de cruzar a rua. Viu uma lanchonete. Reparou o nome – Lanchonete Bela Vista – e decidiu que mataria sua sede lá. Olhou do seu lado direito e atravessou. Dirigiu-se até a lanchonete. Entrou. O ambiente estava cheio. Pessoas comendo, outras bebendo. Garotos, velhos – pedintes – parados na porta não deixavam ninguém entrar sem pedir alguma coisa. Carlos ignorou. Foi até o balcão, perguntou se tinha Boêmia.

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- Boa tarde! Gostaria de tomar uma cerveja. Qual você tem? – Perguntou com sua maneira polida de falar. Foi atendido por uma moça que parecia mais menina do que mulher. Tinha um olhar esperto. Atenta a tudo que acontecia. Era branca. Seus cabelos lisos acastanhados mais para claro. Seus olhos esverdeados o fitaram com certa indiferença. - Claro, senhor – respondeu como que automática. Virou-se, abriu a geladeira que marcava a temperatura. Pegou a cerveja, abrindo-a em seguida e a colocando no balcão. Apontou para uma fileira de copos em cima de uma bandeja de alumínio e se virou para atender a outro cliente. Para que saber a temperatura, perguntou-se Carlos. O importante é que a cerveja esteja gelada. O marcador poderia estar quebrado ou adulterado, pensou. Esse foi o tempo, o de seus pensamentos, que aquela mocinha, aparentando mais um graveto, levou para pegar sua cerveja, um copo e servir-lhe. - Mais alguma coisa senhor? - perguntou ela com a mesma agilidade, enquanto pegava no balcão de pedra que ficava logo atrás pratos cheios de refeições de todos os tipos. - Não! Obrigado! Só isso mesmo! – respondeu Carlos a observando. Lá fora o tempo fechou. As nuvens negras pareciam lençóis, cobriram não só suas irmãs brancas, como o céu e o sol. Ouviram-se trovões. Thor estaria com raiva ou comemorando alguma coisa, pensou Carlos. 22 | Caipora - Comadre Fulozinha

O céu parecia desabar. A chuva e o vento tomaram conta da cidade. Pessoas pareciam correr de um lado para outro tentando em vão escapar. Algumas procuravam onde se amparar. Para o desgosto de alguns comerciantes e principalmente de seus funcionários, a loja ficaria cheia, mas não de clientes e sim de fugitivos metralhados por pingos de água que mais pareciam pedras, sem contar que teriam de limpar tudo depois. No outro dia, ouviríamos noticiários do caos que provocou toda aquela água. Não só em Caruaru, mas em toda a região. Carlos não era muito de bebedeiras. Gostava de vez em quando de tomar alguma coisa. Nesse dia sentiu vontade. Era do tipo de homem que não deixava a vontade passar. Fazia sempre o que queria, independentemente de qualquer coisa ou consequência. Esse era seu lema. Tomou o primeiro gole e seus pensamentos o levaram ao passado, passado esse não muito distante. Estava agora no município de Seropédica, no Estado do Rio de Janeiro, na casa de seus pais. Sua mãe chorava parada à sua frente, pedia que não fosse. As lágrimas escorriam como cachoeira na sua face branca enrugada. Seu pai estava de pé, olhando pela janela o céu com aquele olhar interrogador. Parecia frio, estava triste. Olhava, não entendia. Não conseguia chorar como sua esposa. Pensou que chorar não era pra homens. Não sentia culpa, sequer pensava se era machista ou não. Que sua mulher chorasse, foi o que pensou friamente. Seu filho se arrependeria e voltaria pra casa. Dessa vez Nascimento

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- Meu filho querido, não se vá. Você tem de tudo aqui. Não me deixe. Não vou conseguir viver sem você.

Janeiro. Seu pai, quando a construiu, sonhava com uma família enorme, por isso tudo na casa era em tamanho e quantidades além do normal para um homem com suas posses. Além de salas e quartos enormes, a casa era servida por duas cozinhas. No entanto, a parte de que Carlos mais gostava era o quintal dos fundos da casa. Lá podia brincar, pois havia escorrego e balanço, além de árvores frutíferas e uma horta. O jardim era lindo, no entanto ele não podia correr, pois sua mãe sempre estava de olho com ciúmes de suas rosas...

Sentiu um enorme desprezo por si mesmo vendo sua mãe chorando e implorando que não fosse.

- Não, mãe! Tenho de ir. – Essas foram suas últimas palavras.

Sua mãe era branca, no entanto rosada. Nesse momento, todo o sangue lhe fugira das faces. Seu rosto ficara totalmente branco. Seus olhos verdes estavam avermelhados e cobertos de lágrimas. Seu aspecto alegre fugira totalmente naquele momento, e Carlos só enxergava tristeza.

Tornou de seu passado com um estalo que parecia mais um chicote. Esse chicote talvez fosse de Jorge em sua peleja com o dragão, defendendo uma donzela no meio da tormenta. Não era chicote, e sim um relâmpago, que iluminou toda a cidade, seguido do seu comparsa, o trovão.

seria como ele queria. Não iria se importar com o tempo, ele voltaria. Naquele momento, sentia tristeza, porque a impotência diante daquela situação era grande demais. Já estava velho, cansado, não iria entrar em confronto com seu filho. Sabia que voltaria pra casa. As palavras de sua mãe ecoavam não nos ouvidos, mas sim em sua cabeça.

Seu pai esbravejou: - Pare com essa choradeira, mulher! Ele já não disse que resolveu ir? Para com isso! Ajude-o a arrumar as coisas. Seu pai era engenheiro agrônomo. Gostava de jogar xadrez. Era inteligente. Conseguiu tudo o que desejara na vida. Era bem sucedido. Casara com a mulher que escolhera. Gostava dela. Só sentia de vez em quando tristeza de ela não lhe ter dado mais filhos. Carlos era o único. Esse era seu calcanhar de aquiles. A casa onde morava desde seu nascimento era enorme. Seis quartos num bairro nobre do Rio de 24 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte III

O Inferno Conspira E Ri...

- Posso ajudá-la? – perguntou sem saber o que estava fazendo. No entanto, a resposta foi rápida. - Não! Obrigada! – respondeu sem pestanejar. - Deixe-me ajudar. - Carlos foi logo segurando uma das sacolas. - Conseguiu se molhar um bocado.

- Assustou-se, amigo? – Perguntou o proprietário da lanchonete. - Sim! Não! Estava desligado. Pegou-me de surpresa.

- Gosto da água. Não me importo com isso. Já vi que você está seco. Não gosta de água? – seu jeito de falar aparentava estar certa das palavras que iria dizer. Seu sorriso meio que encabulado deixava no ar sedução. Seria sedução, ou seria certeza de falar as palavras certas?

Era branco. Nem careca, nem cabeludo. Seu aspecto era acolhedor.

Carlos a olhou com carinho. Parecia estar sonhando. Era linda. Naquele momento, não prestava muita atenção no que ela falava, no entanto entendia tudo. Os pensamentos foram além daquilo que se imagina. Carlos estava flutuando, só não sabia onde. Foi quando respondeu:

Virou-se e foi atender a uma mulherzinha de aspecto enfadonho que demonstrava impaciência na demora.

- Até gosto, só que cheguei antes de a chuva me pegar. – Estava meio que displicente quando respondeu.

Carlos parou para olhar a rua, quando o que lhe pareceu a coisa mais linda que já virá em sua vida atravessou a rua em direção à lanchonete. Seria a donzela que após ser salva do dragão fugira dos braços de Jorge? “Não!”, disseram seus pensamentos.

O tempo passou, como que por encanto, enquanto Carlos a olhava sem ter ideia do que acontecia ao seu redor.

O proprietário do restaurante era grande, não gordo. Usava óculos, não desses de quem não enxerga nada, mas daqueles que protegem da claridade.

Estava totalmente molhada. Seu sorriso parecia de menina quando está tomando banho na chuva. Naquela hora não observou se era branca ou preta, gorda ou magra, bonita ou feia. A única coisa que observou foi seu sorriso. Além de molhada, estava carregada de sacolas. Correu até ela, que estava entrando na lanchonete, e perguntou se precisava de ajuda. 26 | Caipora - Comadre Fulozinha

Sandra era morena, alta e seus cabelos pareciam escorregar nos ombros. Olhos verde-claros. Parecia uma cabocla. Seu jeito sensual inundava o ar, tomando conta de todos os olhos que a vissem. Seu andar era uma valsa escorregadia. Algumas mulheres a invejariam, outras a odiariam. “Como uma mulher conseguia ser tão linda?”, pensariam algumas. Nascimento

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Seu semblante era desconfiado e angelical. Seu olhar enfeitiçaria até o mais sério dos homens. Bastava que quisesse. No restaurante, tudo estava como de costume. O mundo não parou para aquele encontro. O que parou foram os anjos do inferno, que estavam à espreita, esperando aquele momento. O inferno realmente conspira. Nesse dia, o mal fez festa. As águas caíram com tanta força em Caruaru que a cidade ficou parada. “Os danos causados pelas chuvas em Caruaru já deixaram pelo menos 250 famílias desabrigadas e caos em todo o perímetro urbano, principalmente às margens de córregos, riachos e do rio Ipojuca. As águas do Riacho do Mocó inundaram dezenas de casas nos bairros Jardim Panorama, João Mota e Caiucá.” Na segunda-feira, uma mulher foi arrastada pela correnteza no João Mota. O corpo de Maria Luiza Cavalcante de Lima, 67 anos, só foi encontrado no dia seguinte, a cinco quilômetros de distância.” Não foi só em Caruaru. Foi chuva que caiu por toda a região. “Nos quatro distritos, todas as estradas ficaram com o acesso comprometido. Em Brejo das Palmeiras (1° Distrito), residências foram destruídas pela força das águas.” Reservas de água que nunca encheram transbordaram. “A situação piorou com o sangramento da Barragem Pedro Moura, em Belo Jardim”, que ajudou em muito a encher o velho Ipojuca, que contestou, a princípio, diante 28 | Caipora - Comadre Fulozinha

de tanta água. Era impotente. Não conseguiu suportar tamanho volume. Pensou em pedir ajuda a Deus para proteger aqueles que viviam à sua ribeirinha. Não deu tempo. Chorou a princípio, depois tomou força, e essa força o dominou. Sentiu-se revigorado e falou pra si mesmo. Agora vou reclamar o que é meu. O velho Ipojuca desceu sorridente, como um jovem, não olhando mais com aqueles olhos tristonhos de outrora. Dessa vez, seu sorriso era desafiador. À noite lhe deu mais energia. Em cada beirinha de Tacaimbó, São Caetano, até chegar a Caruaru, arrastava tudo que estava à sua frente. Dava gargalhadas quando sentia em suas entranhas a mobília. Sentia prazer no desespero das pessoas tentando em vão arrastarem suas preciosidades. Era delicioso... Seu poder aumentava a cada segundo. Pensou revigorado: “Agora tenho forças pra chegar em casa”. Logo estaria perto do seu pai, o mar. Ouviram-se no outro dia os comentários nas rádios do estrago que a chuva fizera. O prefeito foi cobrado. Tinha de fazer alguma coisa e fez. A cidade se juntou para dar abrigo àqueles que até o dia anterior tinham sua casa e seus pertences. É interessante quando se vê um pobre falando que perdeu tudo. Como perder alguma coisa – muitos pensaram – se até o dia anterior não tinham nada, a não ser sua vida miserável e mesquinha? Como perder o que nunca tiveram? Até aqueles que pensavam assim não quiseram saber... Foram convidados pela mídia a doar e ajudar. Foi justamente o que fizeram.

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Uma Noite De Amor

Abriu a porta do quarto com tanto cuidado para não acordar Sandra que mais parecia um ladrão adentrando para furtar alguma coisa.

Carlos acordou, eram 5h. Teve certeza quando olhou o relógio, que parecia mais uma cabra remoendo cada segundo. O relógio estava grudado na parede. Por alguns segundos, teve a impressão de que ele balançava.

A porta do quarto dava para sala, mobiliada com dois sofás, uma mesa redonda, um televisor de 29 polegadas sobre uma estante. Nas paredes tinham dois quadros. Um arredondado e outro retangular. O quadro redondo, pintado a óleo, mostrava a imagem de um rio com uma sereia na sua ribeira. O retangular, também a óleo, mostrava um vulto que parecia ser humano, mas não se identificava por ser noite e estar na floresta.

Parte IV

O apartamento era pequeno, percebeu pelo tamanho do quarto, no entanto era acolhedor. Foi o que descobriu quando saiu vagando pelos cômodos. Sandra ainda dormia. Olhou pra ela com um ar de satisfação. O quarto estava frio, o ar-condicionado estava ligado. Lembrou a noite anterior, sorriu sozinho. Desde que chegara do Rio de Janeiro, não tinha ficado com ninguém. Parecia meio afastado de tudo e de todos que lhe pudessem comprometer ou amarrá-lo a qualquer coisa. Sentia-se mesquinho e, outras vezes, impotente. Sua vida estava naquela fazenda. Muitas vezes perguntava-se onde estava aquele Carlos de noitadas embaladas por garotas e bebedeira. Seu corpo reclamava o ardor da juventude, encarcerada e desprezada. Sua porta de saída era cavalgar, cuidar dos animais, da plantação, tomar algumas cervejas e jogar conversa fora com Antônio. 30 | Caipora - Comadre Fulozinha

Saiu caminhando em direção à cozinha. Lembrou de não ter prestado atenção em nada que agora observava. Quando olhou para um dos sofás, recordou Sandra o puxando pelo braço para cima dela. Olhou para a janela, que ficava atrás da televisão, viu uma lua maravilhosamente cheia velando o sono da cidade. Sentiu uma sensação de prazer, relembrando o beijo dado com tanto desejo e adoçado pelo vinho que Ela pegou logo que entraram. Amor, pensou Carlos, foi o que fizemos. Quando Carlos caiu sobre ela, como estava linda. Seu abraço parecia envolvê-lo, dando segurança. Suas mãos o tocavam de maneira que jamais fora tocado. Seu cheiro inundava sua mente. Só conseguia respirar Sandra. Entrou na cozinha olhando para trás, fitando a lua que o espiava pela janela. Quase bateu na mesa. Pensou que, se tivesse se chocado, até os vizinhos escutariam o barulho. Iria acordar Sandra, não adiantando de nada todo o cuidado que tivera até aquele momento. Abriu a geladeira, pegou uma garrafa com água. Virou-se para o armário, abriu, pegou um copo. Encheu-o e bebeu, Nascimento

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bebeu, bebeu com tanta vontade que se espantou. Quando ia fechando a geladeira, escutou Sandra chamar seu nome. Até aquele momento parecia não estar sequer ali. Assustou-se a princípio, voltando de seu estado desprendido da alma. - Carlos? – perguntou Sandra com voz meio sonolenta. - Oi! – retrucou, voltando para o quarto quase que automático. - Carlos? Pensei que tivesse fugido! – sussurrou Sandra quando Carlos entrou no quarto. Deu um sorriso. Nenhuma palavra de Carlos. Em resposta foi outro sorriso nem tanto inocente. - Tava fazendo o quê? – pergunta ela, assentando-se na cama. - Sede... Sede... Fui matar minha sede! - Por que não vem matar a minha sede? – indagou com displicência e indecência, passando a língua na boca, rindo com sorriso que deixou Carlos ainda mais excitado e meio envergonhado. - Posso!? – sugeriu e perguntou ao mesmo tempo, sorrindo e sentando-se ao mesmo tempo na cama. A cama era do tipo boxe. Além de ter uns 70cm de altura, era enorme. De cada lado ficavam aqueles velhos criados que não falam nada. O encosto mostrava tudo o que acontecesse, pois um espelho estava grudado como numa face, observando como olhos gigantes. Estava forrada com esses lençóis com elástico, num tom rosa choque. Um cobertor rosa cobria toda a cama e ainda 32 | Caipora - Comadre Fulozinha

encostava ao chão. A cama era guarnecida por quatro travesseiros recheados de penas. Sandra levantou-se e o abraçou. Naquele momento, Carlos sentiu seu corpo como que flutuar. Aceitou não só um beijo que Sandra lhe dera após o abraço, mas todos os beijos e abraços seguidos de mãos flutuando no corpo um do outro. Pensamentos vão e vêm, no entanto naquela noite os únicos pensamentos que envolveram aquele quarto, aquela cama, foram pensamentos de desejos. O quarto estava meio escuro. A cortina meio aberta era cúmplice pra que Carlos a olhasse com olhos de lobo, achando cada curva, cada saliência, cada pelo. Sandra era linda, morena, peitos fartos; não grandes, perfeitos, afirmava Carlos como resposta ao que estava vendo. Sua pele clareava o quarto numa penumbra. Suas pernas eram perfeitas. Não lembrava ter visto pernas tão..., naquelas com quem já ficara. Seu beijo ardia em sua boca feito brasa. Seu corpo queimava. Queimava e acendia um orgasmo que jamais tinha sentido. Era doido por pelos e Sandra era peluda, daquelas peludas que enfeitiçam, dão desejos animalescos. Foi o que aconteceu quando Sandra abriu os olhos e disse: “Estou perdida”. O que se seguiu depois foram gemidos. Não de agonia, mas de prazeres, de desejos, de loucuras... - Perdida por quê? – sussurrou Carlos ao seu ouvido. - Perdida por você!

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Parte V

Os Dias Seguintes À Tormenta

As nuvens aos poucos foram se dissipando. No dia seguinte, um sol meio que encabulado raiou e foi ganhando força aos poucos. Para muitos, aquela madrugada, sem saberem o que aconteceu realmente, foi de choro e desespero com aquelas perguntas mesquinhas e hipócritas: O que aconteceu? Meu Deus, merecemos isso? Por que os políticos não fizeram nada? Será que merecemos tal castigo de Deus? Alguns amanheceram nos bairros que ficavam à margem do rio tentando salvar seus pertences, outros ajudavam a salvar os pertences alheios. Pessoas que não precisavam estar ali, naquela madrugada chuvosa, estavam como cães protegendo u dono. Não era esse o caso, no entanto. Há pessoas que sentem prazer em ajudar, compartilhar a tristeza, muitas vezes sentindo um prazer mórbido por se compadecerem com desespero dos outros, independentemente de as conhecerem. A Secretaria de Defesa Social fez seu papel, não do jeito que deveria, mas fez. Durante aquela noite, o secretário da Defesa Social deu entrevista a jornais, rádios e televisão. Anunciou que a população não precisava entrar em pânico, pois tudo estava sob controle. Disse ainda que não haveria rompimento de nenhuma represa, que o que se estava sendo comentado era mera 34 | Caipora - Comadre Fulozinha

especulação, que engenheiros garantiam. Em entrevista ao Jornal Vanguarda, na edição semanal de 7 a 13 de fevereiro de 2004, em trecho da matéria “Chuvas deixam mais de 1.000 desabrigados em Caruaru”, “o prefeito decretou estado de emergência na cidade desde o último dia 29. Na quinta-feira (05) ele foi ao Palácio das Princesas pedir recursos ao governador. Segundo o prefeito, os prejuízos na cidade estão em torno de R$ 1,4 milhão. “Fui falar com o governador para agilizar a liberação de recursos. Agora só nos resta esperar e continuar trabalhando”, argumentou o prefeito. Ele disse que entregou ao governador um relatório completo dos danos provocados pelas chuvas nas últimas semanas. “Não temos condições de arcar com esse prejuízo sem a ajuda dos governos Federal e Estadual”, comentou. O prefeito falou que não será necessário ir a Brasília solicitar recursos, porque o governador já está “Conduzindo este processo junto ao presidente”. As coisas acontecem como era previsto! As rádios de Caruaru e região anunciaram, algumas com sensacionalismo, outras de maneira responsável e digna do jornalismo, o que realmente estava acontecendo. Independentemente das reportagens espalhafatosas ou verdadeiras, no final foi bom para a cidade. Tendo a mídia no seu calcanhar de Aquiles o poder público anunciou alguns benefícios que poderiam de imediato atender às classes mais carentes.

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Parte VI

A Procura Daqueles Que Amam

- Antônio, você ligou para Carlos? – Perguntou Maria, sua esposa, com aquele ar de preocupação de quem está prestes a chorar. - Você já me perguntou umas mil vezes! Está querendo me deixar louco? – Respondeu Antônio de maneira como jamais tinha falado com sua esposa. Estava sentado à mesa com o telefone na mãe. Só DEUS sabia quantas vezes Antônio tinha tentado entrar em contato com Carlos. Aquela noite não foi nada boa. Carlos jamais dormiu fora de casa sem avisar. Antônio tentou lembrar alguma coisa que justificasse aquela noite, sem saber onde Carlos estava. Maria, sua esposa, não conseguiu dormir. Durante a madrugada que parecia não terminar, cochilou algumas vezes apenas. Sonhos nada bons a perturbaram. Um desses a pegou quando Antônio, seu esposo, foi à cozinha pela milésima vez. - Carlos? – Perguntou Maria quando viu um vulto passar da sala para a cozinha. A noite parecia mais escura. Todas as lâmpadas pareciam estar apagadas ou embrulhadas com algum plástico escuro. O silêncio era de congelar qualquer um 36 | Caipora - Comadre Fulozinha

que passasse um segundo parado. Maria olhou o vulto e o seguiu, chamando-o. - Carlos? Carlos? Cadê você? Queres alguma coisa? Pode deixar que preparo! Não ouviu nenhuma resposta. Olhou para a porta da cozinha e estranhou. Nunca vira a casa tão escura. Lembrou que, quando ia escurecendo, a primeira coisa que fazia era acender as lâmpadas, desde a frente até os fundos. Insistiu e perguntou mais vezes enquanto se deslocava para a cozinha. - Carlos? Carlos? Vais aonde nesse escuro? Queres alguma coisa? Por que não acende esta luz? Perguntou a si mesma por que não acendia a luz da sala. Por que ficar no escuro? Foi quando esbarrou no sofá, perdeu o equilíbrio e despencou como quem mergulha num poço sem fundo. Viu uma luz acima de sua cabeça. Esqueceu que estava em casa e começou a gritar. - Quem colocou este buraco aqui? Quem fez esse buraco, Antônio? Seu rosto estava desfigurado. Seus gritos pareciam não sair. Estava gritando e não escutava nada. Suas mãos e pernas balançavam freneticamente num desespero de quem espera voar ou agarrar-se a alguma coisa. Viu seu rosto, o de seu marido, Carlos e uma mulher que não conhecia. Viu pássaros e animais selvagens que jamais conhecera. Viu uma besta com três cabeças que iam devorando as cabeças com ares de tristeza. A besta foi Nascimento

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crescendo ao passo que devorava cada cabeça. Quando as cabeças acabaram, aquela besta começou a devorar cada animal e ave que flutuava ao seu redor. Continuou caindo, caindo... Agora a besta estava em sua direção cuspindo fogo. Sentiu um odor terrível, seguido das bocas da besta a devorá-la quando... - Maria. Maria. Maria. Acorde, mulher. Acorde pelo amor de Deus. Acorde... Abriu os olhos num desespero e viu seu marido em pé, ao lado da cama, a balançá-la como quem sacode uma criança histérica com o objetivo de fazê-la calar a boca.

Parte VII

O Fim Da Procura

Eram 16h quando Antônio conseguiu falar com Carlos através do mesmo celular que tentara desde as 18h do dia anterior. O que Carlos ouviu foi um berro do outro lado, com desespero de quem consegue escapar de uma perseguição, ou acorda de um daqueles pesadelos que parecem não terminar. Acabara de sair do elevador e estava se dirigindo ao carro com as chaves nas mãos. Tinha perdido a noção do tempo. Olhava para os lados e teve a sensação de estar flutuando. Quando colocou a chave para entrar no carro, escutou a primeira chamada do telefone. A segunda, a terceira, e só atendeu depois que entrou e sentou-se. - Carlos, pelo amor de Deus, onde você está? Eu e Maria estamos quase loucos! Você perdeu o senso de responsabilidade? Pelo amor de Deus, fale alguma coisa! Você está bem? Aconteceu alguma coisa? Onde você está? Fale alguma coisa! Está querendo me enlouquecer? Carlos ficou atônito do outro lado. Nunca tinha escutado Antônio falar daquele jeito. Sentiu-se desapontado. Não sabia o que falar. Pasmou por alguns instantes e respondeu timidamente, feito criança que está sendo repreendida. - Fique calmo, Antônio.

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- Como ficar calmo, Sr. Carlos! Responda, como vou ficar calmo? – Antônio repedia e repetia de maneira agressiva, esquecendo que Carlos não era seu filho. Nessa hora, esqueceu que era seu funcionário. Nada mais do que isso. - Já estou chegando! Daqui a pouco conversamos. Tudo bem? Tenha calma! Já estou chegando. Quando chegar, conversamos. – Essas foram as palavras usadas num tom de aconselhador. Do outro lado, o que se escutou foi o silêncio. Carlos parou, esperando mais alguma palavra. Palavra essa que não veio. O que veio foi o barulho da linha sem conexão. Do outro lado, Antônio, enfurecido, deu um murro na mesa que o vaso balançou como um bêbado que desce a ladeira. Balançou novamente, pendeu e, quando ia caindo, Maria segurou como um gato que pula em cima do rato e o abraça com as patas. Olhou meio atônita para seu marido e disse: - Que é isso, Antônio? Tenha calma! O que está acontecendo com você? – Foi falando e dirigindo-se ao seu marido com aquele jeito acolhedor e compreensivo de quem quer consolar. Maria era incrível nessas horas. Sabia como lidar com seu homem. Até que gostava de acalentá-lo. Sentia-se mãe. Sua criança era seu marido. Colocou sua mão direita sobre o ombro esquerdo de Antônio e disse: - Meu velho, meu velho... – parou alguns instantes. O beijou na testa – Antônio, ele não é nosso filho. Sem contar que Carlos já é bem crescidinho. Ele disse que estava chegando, certo? Deve ter encontrado alguma 40 | Caipora - Comadre Fulozinha

mulher. Esqueceu? Ele é homem! Vive sozinho, mas é homem. Antônio baixou a cabeça meio que desapontado. Por que ela foi lembrar que Carlos não era seu filho? Sentia carinho por aquele homem como se fosse sangue do seu sangue. Por que lembrar que ele não passava de um empregado? Por que lembrar que não tinha filho? Levantou a cabeça. Não disse nada. Parecia estar dopado. Tentou falar alguma coisa. Não tinha o que falar. Sua esposa tinha palavras que calavam qualquer um. Ajeitouse e saiu andando em direção à porta da cozinha. Quando ia atravessando, olhou pra trás, meio que desapontado. Virou a cabeça pra frente e continuou, até sair de casa. Quando chegou à porta que dava acesso à saída da casa, sussurrou tão baixo que sua esposa quase não escuta. - Vou trabalhar, Maria! É pra isso que estou aqui. Não teve resposta. Já estava no terreiro desapeando seu cavalo quando falou a última palavra. - Vá, meu velho. Vá trabalhar – falou sua esposa com certa piedade. Uma tristeza imensa a tomou. Por que Deus não lhe deu um filho? Por que não teve direito? Não gostava de questionar a vontade de Deus. Mas por que não? Este era seu “Calcanhar de Aquiles”. Esse era seu maior desgosto: não ter dado um filho a seu marido. Tudo deu certo entre eles dois. A única coisa que faltava era uma criança. Criança essa que não viria nunca. Parou quando as lágrimas estavam escorrendo no seu rosto. Perguntou-se por que estava chorando. Disse a si mesma que já sabia daquilo havia tempo. Falou como Nascimento

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quem conversa com outros, no entanto falava consigo mesma. - Pare de besteira e vá trabalhar. Daqui a pouco é hora do jantar e você não preparou nada.

Parte VIII

Lembranças Do Agora

Carlos estava passando ao lado do HRA (Hospital Regional do Agreste – Caruaru – PE) quando seus pensamentos voltaram ao dia anterior, como se estivesse vivendo cada momento e escutando cada palavra de Sandra quando a encontrou. Começou a rir de si mesmo. Olhou para fora, pela janela da caminhonete, e sentiuse como criança. Acelerou. Acelerou. Debreou, passou quarta marcha e voou. Sandra morava no bairro Maurício de Nassau, na Rua Florescente, num prédio com dez andares, no apartamento 31. O condomínio era simples, no entanto acolhedor. Lembrou que Sandra parou, e um jovem abriu a janela da guarita para olhar a placa do carro, só abrindo quando notou que era morador. Em seguida, abriu o portão com o controle remoto. A guarita era alta, no entanto quando passaram o jovem deu boa noite, quase que gritando e pedindo para que parassem. Fechou o portão e se dirigiu ao encontro do carro. - Tudo bem, dona Sandra? – perguntou o porteiro com ar questionador. - Tudo bem, João! Esse é um amigo! Ele vai estacionar o carro na minha vaga! Tudo certo? – perguntou Sandra ao porteiro. 42 | Caipora - Comadre Fulozinha

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- Claro, dona Sandra! Fique à vontade. No entanto, peço que assine no livro de ocorrências que foi a senhora quem pediu para deixá-lo na sua vaga. – A voz do porteiro era acolhedora, porém era de quem tem o poder nas mãos. Carlos teve a impressão de o porteiro sentir certo prazer. Acreditou ao olhar nos olhos de João e imaginar o que pensava. A frase que surgiu em sua mente foi: “Vai comer a gostosa...” João abriu a porta do carro e Sandra saiu pegando ao mesmo tempo a prancheta e caneta para registrar no livro a sua permissão. Tudo foi rápido, até mesmo porque a demora com certeza provocaria o dono do veículo, que já estava buzinando, sem paciência, para que abrissem. Sandra preencheu a ocorrência, assinou, entrou no carro e disse: - Vamos! Acho isso um saco, mas é ruim e é bom! Logo que chegaram à vaga de Sandra, Carlos estacionou e saíram. Ele foi ao encontro dela, que pegou sua mão e dirigiu-se ao elevador que ficava próximo. - Bonito prédio! – Falou, logo que Sandra apertou o botão chamando o elevador. Esperaram pouco tempo. Carlos até pensou que parecia que o elevador estivesse esperando. Quando falou que o prédio era bonito, não esperava que a resposta fosse tão rápida. - Eu gosto! – Respondeu Sandra na hora em que a porta do elevador foi abrindo. Entraram e, quando a porta se fechou, Sandra o abraçou na ponta do pé direito e o beijou. Carlos não 44 | Caipora - Comadre Fulozinha

entendeu. Achou até estranho, no entanto gostou e a enroscou com a mão direita. Soltou as sacolas, que já estavam incomodando, e a abraçou. As mãos de Carlos procuravam por baixo da blusa qualquer sinal de pele que pudesse tocar. Sandra o beijava e o agarrava pela cintura, alisando seus quadris. Carlos sentia certo desconforto, pois não podia abraçá-la como gostaria. Tinha a obrigação de não ser flagrado quando, de repente, a porta do elevador se abrisse. Não queria que ninguém o visse naquele momento. O apartamento onde Sandra morava ficava perto do Bonanza Supermercados. Carlos, quando viu, teve até um alívio. Pensou que deveria comprar alguma coisa, até porque esperava não sair nem tão cedo da casa daquela gata. Quando entrou no mercado, olhou para cima procurando aquelas placas que indicam o que tem em cada corredor. Já sabia o que queria. Já tinha pensado em comprar alguma bebida, poderia ser uísque. Pensou em vodka. Pensou em vinho. Daí lembrou que até aquela hora estava tomando uísque. Não queria parecer um alcoólatra. - Sandra, o que vamos beber? – Perguntou, já sabendo a resposta. - Não estou muito a fim! Vamos pegar uísque! É o que bebemos até agora! – Respondeu quase que automático. Passearam no mercado por uns quarenta minutos. Carlos já conhecia o mercado. Era fornecedor de hortifrutigranjeiro havia uns seis meses. Toda semana Antônio fazia entregas. Nascimento

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Fazia uns quatro meses desde a última vez que fora lá. Lembrou-se até como começou a fornecer hortifrutigranjeiro ao Bonanza. A irmã de Maria era casada com um ortopedista conhecido e famoso em Caruaru, e Carlos a levara naquele dia para vê-la. Não era costume, no entanto nesse dia Carlos e Maria prepararam uma lista de compras antes de saírem da fazenda. Quando ele viu o mercado, disse pra si mesmo: “Vai ser aqui!” Falou com Maria que iria fazer as compras e quem terminasse primeiro iria ao encontro do outro. Carlos parou no estacionamento do mercado, logo após deixar Maria em frente ao prédio onde sua irmã morava. Logo que estacionou, viu um homem que lhe chamou a atenção. Era branco, ainda que um pouco bronzeado pelo sol. Demonstrava empolgação conversando com um rapaz que tomava conta dos veículos estacionados. Aquele homem parecia bem à vontade. Sua expressão era de quem presta atenção em alguma conversa que lhe interessa, muito. Isso o fez observar com interesse. Por alguns segundos, lembrou seu pai. Repreendeu-se, pois seu pai normalmente era um tanto carrancudo. Carlos foi na mesma direção dos dois, não porque queria, mas porque era caminho. Quando estava passando ao lado daquele homem, que pelo jeito acabara sua conversa e se dirigia no mesmo caminho que ele, falou: - O dia está bonito, não? 46 | Caipora - Comadre Fulozinha

- É! Está! – Respondeu, com um sorriso tímido e simples. - Ainda não tinha vindo por estas bandas. Achei muito bonito este supermercado. O estacionamento é muito bom! - Ainda bem que você gostou! - Você vem sempre aqui? – Perguntou Carlos. - Todos os dias! – Respondeu novamente, quase que automático. Carlos pensou, sem sequer se questionar. “O que vem fazer aqui todos os dias?” – Riu pra si mesmo e continuou andando. - Você mora por aqui? – Perguntou Carlos. - Moro! E você, parece que não é daqui, estou errado? – Dessa vez, a pergunta parecia de quem entende ou imagina o que seu interlocutor está pensando. – Acertei? – Questionou novamente. - Não! Não moro aqui em Caruaru! – Respondeu Carlos, meio confuso. - Não perguntei se você mora aqui, e sim se é de outro lugar. – Falou parecendo identificar o pouco caso que Carlos fizera dele. Enquanto subiam uma rampa suave e pequena um dos funcionários do supermercado se dirigiu até eles. Abrindo um sorriso, deu bom-dia, não pra Carlos, e sim para aquele que estava ao seu lado. - Bom-dia, Sr. Djalma! – falou todo sorridente e meio atrapalhado. Nascimento

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- Bom dia, João! – Respondeu cumprimentando-o com um aperto de mão.

Djalma,

- Não! Não sou daqui! – Falou Carlos sem ser notado. – “Aqui as pessoas já o conhecem. Agora acredito que você vem todos os dias aqui.” – pensou Carlos decepcionado. Quando Carlos se tocou que dera uma de doido, percebeu também que não podia voltar atrás e desfazer a má impressão que talvez causara, sem contar que ainda tinha de fazer as compras.

Não!”, respondeu a si mesmo. Ele não compra! Deve ter quem compre. Pensou novamente e disse: “Vou vender meu peixe. Se ele comprar, comprou! Se não, não tenho o que perder!” O relacionamento comercial prosperou e fez com que Carlos saísse do buraco em que se encontrava até então. Djalma era o único empresário com uma percepção extraordinária que Carlos conhecera até ali, mesmo vindo de um Estado como o do Rio.

Enquanto fazia as compras, empurrando seu carrinho de um lado para o outro, percebeu que Djalma falava com todos os funcionários do supermercado.

Assistira algumas vezes a entrevistas dos megaempresários norte-americanos e suas excentricidades.

A curiosidade foi aumentando, até que perguntou a um rapaz que estava arrumando as prateleiras.

Pensava como encontrara uma pessoa que sabia fazer dinheiro e conquistar pessoas fazendo-as crescer.

- Quem é aquele homem? - O senhor não o conhece? É o dono do Bonanza! Carlos, que a princípio já estava atrapalhado, mais atrapalhado ficou. Levantou a cabeça e questionou novamente, só que dessa vez com mais cuidado. - Você diz o dono da rede Bonanza? - Sim, senhor! – Respondeu o jovem, continuando a trabalhar e dando certa atenção ao que Carlos perguntava. Carlos tinha plantação muito boa e muitas vezes não gostava do destino que ela tomava. Seria o destino? Não era o destino, e sim o preço! Ficava triste quando Antônio, ou até ele mesmo, voltava da SEACA com um preço inferior àquele que realmente sua produção valia. Pensou rápido. “Será que posso vender meu produto? 48 | Caipora - Comadre Fulozinha

Não foi fácil fechar o primeiro pedido, até porque as exigências eram demais. Djalma falava que o mais importante era o cliente e, por isso ele exigia qualidade, sem contar que ele próprio consumia os produtos que vendia. Para Carlos, não era só mais um cliente, e sim um homem com quem ele, quando ia à central receber o pagamento, aproveitava para conversar e aprender um pouco mais. Num intervalo de tempo mínimo, Carlos conquistou tanto a amizade de Djalma, que chegou a dar consultoria em uma fazenda em que ele gostava de relaxar nos fins de semana.

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Parte IX

O Pacto

Corria pela mata – tinha assumido a forma de um porco espinho – quando um anjo negro surgiu na sua frente. Era medonho. Ela esquecera a aparência daqueles que não vivem na luz. Sua aparição foi seguida de trevas e gemidos. A mata pareceu tremer. Da terra surgiu como uma sombra negra em formato de aves, que não conseguiu identificar a princípio. As nuvens esconderam a lua, que agradeceu não presenciar nem ser testemunha. Não lembrava o que vira quando fora pela última vez ao inferno. Naquele dia, o ódio que sentia não o deixou ver, tampouco lembrar nada. - Pare! Pare, criatura nojenta! Quero falar como você! – Essas foram as palavras proferidas por aquela coisa que acabara de brotar da terra. Sua cabeça não tinha forma, sua voz parecia vir de todos os lados. Por instantes não se deu conta. Até que... - Como quer que lhe chame, criatura das matas?

Simplesmente a forma era alterada para aqueles que viviam longe da árvore da vida. Não conseguiu entender por que naquela hora sentiu medo do nada. Aquela fumaça negra a envolveu. Parecia estar sendo abraçada por corvos negros de fumaça. Teve a sensação de estar envolvida por braços que poderiam devorá-la. Gritou tão alto, não de desespero. Pessoas que passavam a quilômetros escutaram e não reconheceram que animal seria aquele. Seu berro foi seguido de uma metamorfose e seu aspecto de animal começou a lhe dar aparência humana. Rolou na terra como quem agoniza para a morte. Suas patas começaram a parecer braços humanos. Sua cabeça peluda começou a parecer alguma coisa que não era a cabeça de um porco. Seu corpo começou a esticar, sua curvatura foi se desfazendo dando espaço a uma coluna humana. Tudo foi se transformando até que uma linda mulher surgiu do meio de uma nuvem que a envolvia. Não estava vestida. Quando se levantou, seus cabelos cobriam suas nádegas e seus seios que ora eram cobertos ora descobertos pelo soprar do vento. Levantou a cabeça. - O que você quer comigo, criatura medonha? – perguntou a rainha das matas.

Foi aí que teve a certeza de que aquela figura estava falando com ela.

Uma risada de desdenho seguida de palavras gritantes a repreendeu.

Jamais sentira medo de alguma coisa, sequer quando foi expulsa de perto de DEUS. Não imaginava a morte. Este era um direito negado àqueles que foram esculpidos por DEUS. Não tinha visão de céu e inferno.

- Cale sua boca, criatura das matas. Ajoelhe-se e me peça perdão. Ajoelhe-se e me peça perdão.

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Estas eram palavras que não só eram ouvidas, mas sentidas por todo seu corpo. Levantou a cabeça e ordenou Nascimento

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ao vento que a levantasse.

rainha ordena...

- Vento do norte, vento do sul, venha até mim, pois sua rainha ordena.

Seu desespero não serviu de nada. Sua dor aumentava. Começou a flutuar novamente. Aquelas garras a levantaram e a arremessaram outra vez. Quando caiu no chão, suas forças desapareceram. Sentiu-se paralisada. Aquela criatura olhou-a, envolvendo-a e sussurrando ao seu ouvido.

Nada, nada aconteceu. Gritou novamente, desta vez com autoridade. Autoridade daqueles de quem pede socorro no meio de uma cruzada e sabe que vai ser morto por seu adversário. Autoridade esta que não serviu. A mata sequer balançava e não fugiu porque está enraizada na terra. Se não estivesse, com certeza teria corrido. O vento tinha fugido dali. Os animais e insetos desapareceram. Estava sozinha. Seu reino a abandonara. Seu poder desaparecera. Um braço enorme de fumaça negra com asas e cabeças gritantes envolveu-a apertando como se fossem de aço. Levantou-a. Seu desespero brotou de algum lugar que jamais conhecera. Sentiu dor pela primeira vez em sua existência. Contorceu-se. Já estava a uns cinco metros de altura quando foi arremessada ao chão. Uma risada medonha seguida de um berro a ordenou. - Criatura nojenta, ajoelhe-se diante de seu mestre. Ajoelhe-se ou a devoro. Estava no chão toda suja. A terra parecia não ser aquela que conhecia tão bem. Levantou a cabeça e sentiu dor. Não, não era uma simples dor! Sentia seu corpo arder. Sentia-se uma tocha humana. Não conseguia se levantar. Estava grudada no chão. Tentou inutilmente apoiar-se nos braços. Foi em vão. Seu corpo não respondia. Gritou novamente, desta vez ordenando às matas, animais, insetos, ventos que a atendessem. Foi em vão. - Sua rainha ordena! Venham ao meu socorro. Sua 52 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Lembra que você me procurou? Estou aqui! Por que você está reagindo? Não sou seu inimigo. Estou aqui para atender a um pedido seu! Esqueceu? Não acredito! Levante-se e ajoelhe-se, pois estou ordenando! Foi se levantando ao poucos. Seus braços empurravam seu tórax. Ia conseguindo levantar-se. Uma pressão enorme segurava suas pernas. Seus cabelos subiram, não pela brisa do vento, mas porque estavam seguros por alguma coisa que não via. Tentou não se ajoelhar. Fez tudo que podia, no entanto aquela força era demais pra ela. Estava agora de joelhos. - Sim, agora está bem melhor. Não consigo falar com súditos quando não se ajoelham diante de mim. – sussurrou novamente aos seus ouvidos. Levantou a cabeça e percebeu que não estava nas matas. Não podia estar, é claro. Suas forças desapareceram. Olhou para baixo e sentiu o calor da pedra feito brasa. Não reconheceu seu corpo. Estava todo queimada. Sentia um calor que tirava o fôlego. Uma mão repousou no seu ombro direito. Agora a voz parecia lhe tratar com carinho. - Minha criança! Quanto tempo. Estava com saudades de você. Porque você não me atendeu logo? Sabe que não gosto de machucar aqueles a quem conheço Nascimento

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há tempos e por quem tenho apreço. – Sua voz era suave, parecia aconselhar. Era delicado. Era amoroso. Ajoelhouse e a beijou. Pegou sua mão direita com a esquerda e a ajudou a levantar-se. Não estava mais envolvida pela fumaça negra. Estava em algum lugar que não conhecia e ele estava ali, ajudando-a a levantar-se. Lembrava seu rosto como quem lembra as próprias mãos. Por alguns minutos, ficou deslumbrada. Realmente ele era lindo. Não conseguiu falar, até que tentou; no entanto, as palavras desapareceram. Olhou ao seu redor e o que viu foi um mar de escuridão. Ele a envolveu nos braços, num balançar de cabeça para não reagir. Abraçou-a e beijou sua boca. Ela fechou os olhos e foi arrastada para o inferno. Quando abriu os olhos, estava num quarto. Ele a olhou com carinho e disse: - Diga o que você quer de mim! Teve a sensação de estar escutando uma música. Que canção seria aquela? Lembrava tê-la ouvido havia pouco tempo, ou seria muito tempo? Mas como medir o tempo? Jamais pensara sequer em segundos ou séculos. Levantou a cabeça e o viu deitado na cama. Ele gostava de fazer esse tipo de coisa. Aparecer, desaparecer e aparecer novamente. Olhou-o e viu que algo estranho o envolvia. Não podia ser nada diferente do que vira antes. Seu sorriso era o mesmo. Não conseguia decifrar o que era. Sentiu um pequeno calafrio, que foi cortado quando ele apareceu por trás e falou novamente. - Diga o que quer de mim! – Envolveu-a com seus braços e a beijou no pescoço. Mordeu sua orelha, alisando 54 | Caipora - Comadre Fulozinha

ao mesmo tempo seus seios. – Você não muda! Por que não vem morar comigo? Deixa dessa besteira de querer voltar. Ele não vai lhe dar o perdão! Você sabe disso! – enquanto falava, alisava suas pernas forçando com as mãos para que se abrissem. - Não! Não! Não! Pare com isso! Você esqueceu que o conheço? Esqueceu que sou igual a você? – Falou no mesmo tempo em que o empurrou para trás, dando um passo à frente e se virando pra fitá-lo. – Não quero falar sobre isso. Certo! – Retrucou, olhando-a de cima para baixo – O que você quer? Vamos, fale logo. Não tenho todo o tempo do mundo. – Era irônico falar em tempo, pensou ela. - Não entendo por que você insiste em me perguntar o que quero! Tenho de repetir tudo outra vez? Tenho de pedir? Seja direto! Fale o que quer! Eu deveria saber que você não iria fazer nada sem que tivesse alguma coisa em troca. Suas palavras saíam uma após a outra como quem interroga aquele que é culpado. A cada indagação, questionava-se se era aquilo que deveria falar. Pensava não como os humanos pensam. Imaginava também que ele já não era o mesmo. Tinha a pretensão de deixá-lo confuso? Questionou-se. Será que poderia deixá-lo sem resposta? Enganou-se, quando ele a pegou pelo pescoço que havia pouco beijava. Levantou-a e berrou. - Cale a boca, criatura sem valor! Foi você quem pediu ajuda! Pensas que podes me confundir, criatura nojenta? Você não sabe quem é, nem o que quer... – Por Nascimento

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alguns segundos pensou e pensou o que não se poderia pensar enquanto a segurava, erguida.

Pensou como agora ele podia ajudá-la. Depois de tanto tempo humano.

Jogou-a na cama como quem arremessa uma argola na tentativa de acertar uma garrafa. Caiu com a cara naquilo que parecia um colchão. Virou-se. Olho-o e riu. Riu novamente. Deu gargalhadas até que foi obrigada a calar-se. Ele a olhou e simplesmente num balançar de mãos, como quem diz basta, seus lábios colaram. Ela o olhou novamente, só que desta vez não riu. Olhou-o por alguns segundos, séria, com a cabeça erguida numa posição de um cão que fita seu dono.

- Você está mentindo! Como pode me ajudar? Aquele infeliz que me fez sofrer já deve ter morrido há muito tempo. Vai me dizer onde ele está enterrado para que eu possa quebrar a lápide de sua cova? – Foi tentando se levantar quando ele a segurou pelo braço com força.

- Diga-me o que quer. Estou aqui. – Sacudiu novamente as mãos e seus lábios descolaram. – Vamos, peça-me e eu a atenderei. - Por que você demorou tanto? Precisava encontrar alguém. Agora não sei onde encontrar! – Sua voz era ameaçadora. Seus olhos inquisidores. Seu semblante de frustração, ódio e rancor. - Você pensa que não tenho o que fazer? – respondeu com certo desdenho. – Você acha que estou à disposição?

- Você sabe que não minto pra você agora. Não teria todo este trabalho por nada. Sei onde achar o neto daquele que a fez sofrer. Você pode se vingar. – soltou o braço dela e aproximou-se encostando sua boca ao ouvido. Falou quase num sussurro. - Quer vingança? Dou-lhe! Uma cena surgiu à sua frente no dia da perda. Baixou a cabeça e chorou, chorou, chorou... Quando levantou a cabeça, seu aspecto era odioso. - Como faço? O que devo fazer? O que você quer em troca?

- Agora é tarde! Você não pode me ajudar em nada. – Foi levantando quando notou que ele já não estava de pé à sua frente, e sim sentado na cama. - Sei! Você quer vingança porque levaram sua indiazinha, correto? O que você achou naquela criaturazinha? Antes não podia fazer nada, mas agora posso. – Foi falando e alisando as costas dela, ao mesmo tempo em que a induzia a sentar-se do seu lado. – Basta que você me diga que ainda quer se vingar! Ela sentou-se ao lado, olhando-o interrogadora. 56 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte X

A Ofertada

Aquele ano de 2003 foi muito difícil e, principalmente, cansativo. Estava em novembro, tinha de terminar sua tese para o doutorado em Sismologia pela USP. Seus pais moravam em Los Angeles havia pelo menos dez anos. Eram músicos. Já não lembrava mais com nitidez o rosto de nenhum dos dois, desde que voltara para São Paulo, a não ser que olhasse suas fotos. Sua última lembrança é que pegara sua mãe falando com seu pai, que descobrira que sua filha era lésbica. O que mais a entristeceu não foi o desprezo que sua mãe vinha lhe dando, sim a maneira como contara a seu pai. Eram mais ou menos umas seis horas da manhã. Estava no meio da escada que dava acesso à sala quando escutou: “ - Mário! Mário! Mário! O que foi que fizemos? Nossa filha é uma puta duma sapatona!” Sua mãe falava quase que berrando, apontando para cima. Só lembra ter voltado na ponta dos pés para seu quarto, arrumado as coisas e ido morar com Fátima. Desse dia em diante, nada foi a mesma coisa.

seu grande amor num acidente com carro. Sentia-se promíscua. Lembrava com ódio até aquela que tanto amou. Culpava-a pelo jeito que vinha vivendo. Saía com qualquer uma, fosse lá quem fosse. Pensava por que Fátima resolveu deixá-la. Por que não estava do seu lado. Por que se permitiu morrer. Já passaram três meses desde que Fátima se fora. Não estava mais conseguindo estudar. Não tinha mais alegria. Em meados de outubro, faltando dois meses para entregar sua tese, seu pai ligou e perguntou como estava. Sentiu uma alegria tão grande que, ao escutar a voz de seu pai, começou a chorar. As palavras não saíam de sua boca. Aí ela descobriu o quanto faziam falta seus pais. - Alô? – Perguntou uma voz meio que distante do outro lado. - Alô? – Perguntou mais uma vez seu pai. Tentou por um momento responder. Não conseguiu. Tentou outra vez. Saiu uma voz rouca e fraca. Perguntou quem era quase sufocada. Já sabia. Só queria ter certeza. A voz respondeu do outro lado, como quem diz: “Liguei na hora certa”. - Sandra? Sandra? Sou eu! Seu pai! Esqueceu? Não lembra mais a minha voz? – Respondeu com aquela voz de quem entende tudo e disfarça para não chorar do outro lado. - Sandra, meu anjinho! Responda! Do outro lado, escutou um soluço acompanhado de choro quase que histérico. Parou. Respirou fundou. Pensou e disse:

Como se não bastasse, perdeu nesse mesmo ano 58 | Caipora - Comadre Fulozinha

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- Tenho todo o tempo do mundo. Estou aqui. Desculpas por não ter respondido seus emails. Tenha calma. Só desligo depois que falar com você. Seu pai sentia-se angustiado. Aqueles cinco minutos que Sandra tentava falar e não conseguia pareceram-lhe uma eternidade. Pensou e chegou à conclusão de que seu anjinho precisava dele. Perguntou-se o porquê do afastamento. Não quis responder. Esperou... Esperou... Até que, do outro lado, uma voz tímida e rouca de choro respondeu. - Pai... Pai... Pai... Que bom que você me ligou. Caiu de novo em pranto, e no meio do choro disse: - Pai, me ligue mais tarde. Não consigo parar de sentir tristeza. Perdoe-me. Perdoe-me. Não sei o que estou sentindo. Eram mais ou menos umas nove horas da noite. Seu pai não sabia o que dizer. Simplesmente respondeu: - Daqui a pouco ligo. Tenha calma. Tome alguma coisa para aliviar. Daqui a uma hora eu ligo. Beijos... Sandra estava em casa deitada desde que acordara. Naquele dia, não conseguiu levantar-se. Tentou por várias vezes. Perguntou-se por que não morrera no acidente. Perguntou-se por que tinha nascido. Perguntou o que era. Perguntou-se, perguntou-se e perguntou-se. Não quis tomar café da manhã. Não almoçou. Não jantou. Não fez nenhum lanche. Nem água bebeu. Cochilou algumas vezes durante aquele dia que parecia não acabar. Não lembrou nada quando atendeu à ligação de seu pai. Não lembrou que sonhou andando no meio da mata. 60 | Caipora - Comadre Fulozinha

Que um buraco enorme se abriu, sugando-a para dentro de um redemoinho. Não se lembrou dos espelhos ao seu redor com sua imagem distorcida e agonizante. Não se lembrou de nada. Simplesmente acordava e acordava e nada lembrava. Quando Sandra desligou o telefone, o mundo parecia ter desabado. O som do fone no gancho lhe pareceu estrondar a cabeça. O mundo estava reduzido à falta de comunicação com seu pai. Chorou... Chorou... Chorou e, finalmente, conseguir parar. Perguntou a si mesma por que chorava tanto. “Por que choras?” Adormeceu com o celular embaixo do travesseiro, acordando quando seu pai ligou novamente. Estava sonhando mais uma vez. Desta vez lembrou, quando acordou, tudo que sonhara. No seu rosto havia certo ar de tranquilidade. Percebeu quando se olhou no espelho. Pensou que sorriu por alguns instantes. - Oi, tudo bom? – Perguntou seu pai. - Estou melhor! – Respondeu Sandra. - Me desculpe por não ter respondido aos seus emails. Perdoe-me por não ter ligado. Sei que fui egoísta. Não sei o que falar. Não quero passar a noite me desculpando. Quero saber como você está. - Bem! – Respondeu Sandra, sabendo que não estava nada bem. Sua voz a denunciava. Não tinha como mentir. - Sei que você não está nada bem. – Retrucou seu pai com voz serena. – Fiquei sabendo do acidente. Deveria ter ido até aí. Não pude, estava no meio de uma turnê. – Nascimento

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A voz de seu pai agora era não só de quem está prestes a chorar, mas também de remorso. – Não posso ir para o Brasil agora, no entanto daqui a dois meses estarei de férias. Vou vê-la. Tenho falta de você, minha filha. Quero abraçá-la novamente. - Me desculpe. Não sei o que aconteceu comigo hoje. – Sandra já parecia estar bem melhor, sua voz era de tranquilidade. – Acho que estou cansada. Talvez precise de férias também.

sentia muito bem do lado de Sandra. Algumas vezes questionava o porquê de estar tão ligada, não tinham muito tempo juntas. O pior de tudo é que não conhecia nada da vida de Sandra. Ela sabia o que era, no entanto não estava a fim de arriscar ou ter decepções amorosas. Foi justamente por isso que resolvera ficar sozinha até aquele momento. O que lhe fez pensar em irem ver a festa no Rio foi o jeito e carinho como Sandra lhe perguntou.

Quando Sandra saiu de casa e foi morar com Thalita, não tinha renda, a não ser a que seu pai lhe dava. Thalita era engenheira mecânica e estava em Los Angeles fazendo um curso de aperfeiçoamento pela empresa. O curso durou seis meses, e foi justamente neste período que Sandra a conheceu.

Thalita já tivera outros relacionamentos, dos quais no momento não queria se lembrar. Só que neste dia começou a juntar os acontecimentos de maneira analítica; Não deixou nada de fora, não queria, não podia entrar numa roubada. Mediu os prós e contras e chegou à conclusão de que realmente estava perdida de amor por aquela menina.

Quando Thalita voltou para o Brasil, trouxe Sandra, que sequer questionou o convite. Na situação em que estava não pensou. Não tinha nada. Estava com raiva de seus pais. Simplesmente a seguiu.

Thalita não era afortunada, no entanto tinha, além de suas economias, um bom salário. Era na maioria das vezes calculista, dessa vez não foi. O que falou mais alto foi o que estava sentindo.

Thalita, logo após assistir a uma matéria sobre o mercado trabalhista na área de Sismologia, perguntou por que Sandra não fazia um doutorado para se especializar. Daí Sandra voltou a estudar.

Foi numa sexta-feira, logo após chegar do trabalho, quando falou para Sandra que iam comemorar. E comemoraram. Saíram, beberam, dançaram e fizeram amor como nunca tinham feito antes. “A noite foi mágica”, pensou Sandra quando acordou no outro dia.

Sandra estava brincando de dona de casa. Ficava por conta da limpeza do apartamento, das refeições, resolvia qualquer coisa que fosse necessária. Só ia à Universidade duas vezes por semana. Estava vivendo uma lua de mel. Para ela, foi um sonho até o acidente. Era carnaval e Sandra perguntou a Thalita se podiam ir ver de perto o carnaval do Rio de Janeiro. Thalita se 62 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Você parece que bebeu além da conta! – Disse Sandra. - Não! Hoje não! Estou simplesmente comemorando! – Respondeu Thalita, com voz vagarosa de quem bebeu. O apartamento não era do tipo de cinema, que vemos nos filmes de Hollywood, onde todos os americanos Nascimento

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moram em espaços sensacionais que parecem mais casas do que um refúgio noturno apertado que um solitário de renda baixa poderia pagar. Ficava em um dos bairros mais badalados de São Paulo, na Avenida Jamaris, em Moema. Eram 60m². Um quarto no meio da salda e misturado com a cozinha, nada os separava. Próximo do espaço do quarto, que ficava elevado, havia uma porta que dava acesso ao guarda-roupa e ao toalete. Sandra adorava ir tomar banho, pois parecia estar em outro mundo.

“Estás desconfiada do quê?” Levou a mão à maçaneta, empurrando a porta, e percebeu que as luzes estavam apagadas.

O de que mais Thalita gostava era a área de serviços, onde ficava a máquina de lavar roupas, um tanque e ainda sobrava espaço para colocar uma cadeira e olhar os arranha-céus de Moema pela janela.

- Adivinha o que é isso? – Perguntou Thalita a Sandra, que foi logo fechando a porta. – Adivinha!

A cozinha, que parecia intrusa, ficava do outro lado, logo após um espaço reservado para as poltronas, raque e seu telão de tamanho gigante. Tudo era do tamanho exato aos olhos de Thalita! Quando entrou no apartamento, Thalita falou para Sandra que tinha esquecido sua carteira no carro, pedindo em seguida que ela fosse pegar. Esse foi o tempo suficiente para que arrumasse a mesa com os petiscos e uma garrafa de vinho tinto que estavam escondidos em uma sacola de papel, daquelas que lojas de grife dão aos clientes que compram alguma coisa. Apagou as luzes e ficou esperando Sandra. Na volta, Sandra achou estranho o fato de Thalita ter esquecido a carteira. Ela não era do tipo de esquecer nada. Pensou: “Tudo tem a primeira vez”. Parou na frente da porta do apartamento e achou mais estranho ainda o silêncio, pois a primeira coisa que Thalita fazia quando chegava era ligar o som. Sorriu como quem pergunta: 64 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Thalita. Thalita. Não gosto de brincadeiras no escuro. Cadê você? – Perguntou meio preocupada. As luzes se ascenderam e lá estava Thalita balançando com a mão direita algo que parecia um carnê. Na outra mão, duas taças, e no rosto um sorriso.

- Não sei! – Respondeu inocentemente. - Lembra o que você me pediu? Esqueceu-se! Então não queria realmente – falou rindo e balançando ainda mais as passagens e reserva para o hotel. - Não acredito! Você não esqueceu! Você... – foi falando e caminhando na direção de Thalita. - Eu quero um beijo seu! – Falou Thalita, entregandolhe as taças. - Só um beijo? – Sussurrou Sandra segurando-a pela cintura, esquecendo as taças. - Por quê? Mereço mais? - Tudo que você quiser! - Tem certeza? - É só querer, que lhe dou. Por que querer mais, se já a tenho, pensou Thalita. Seus olhos brilharam. Tentou disfarçar. Olhou do lado, dirigiu-se até a mesa, pegou o vinho, apertando. Encheu as duas taças. Entregou uma a Sandra e dirigiu-se até a Nascimento

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estante, onde pegou o controle remoto do som, apertando play. A música ecoou no ar, era “Amor e Sexo”, de Rita Lee.

Parte XI

A Prisão

O som pareceu invadir o corpo de Sandra. Uma sensação misturada com tremor a fez balançar. Thalita deixou cair o controle como quem está dopada, não conseguindo segurar mais nada. Seus olhos se cruzaram. Sandra fez sinal de entrelaçarem os braços para beberem o primeiro gole de vinho. Thalita encostou-se aceitando o convite. Olharamse. Tomaram o primeiro gole. Sandra deixou escorrer pelos lábios um pouco de vinho, que Thalita fez questão de enxugar com a língua. Olhos serrados ao mesmo tempo como uma valsa ensaiada. O tempo pareceu parar. Sandra passou a mão nas nádegas de Thalita, que respondeu com um gemido. Sua língua penetrava a boca de Sandra. Saíram se ralando, esfregando, beijando até o chuveiro. Sandra foi tirando peça por peça de Thalita, que, depois de nua, fez o mesmo. Já estavam as duas nuas debaixo do chuveiro quente, que parecia incendiar ainda mais o fogo que ambas sentiam. As mãos de Sandra escorregavam entre as nádegas perfeitas de Thalita e seu monte de Vênus. Os beijos e lambidas nos seios, mordidas nas orelhas, seguidos de gemidos atiçavam mais ainda o desejo. Aquela noite foi mágica, sensual, ardente... Sandra contava os dias para irem ao Rio de Janeiro curtir o carnaval. O dia chegou e foram. Foi maravilhoso. “Foi fantástico”, falou Sandra pouco antes do acidente. 66 | Caipora - Comadre Fulozinha

O convite foi aceito. Seu pai a convenceu a terminar sua tese para o Doutorado em Sismos e seus motivos diversos para que acontecessem. Não conhecia Caruaru. Já escutara falar por conta da Maior Feira do Mundo, o melhor e maior São João do Mundo e do Mestre Vitalino com seus bonecos de barro, na mídia televisiva, jornalística e nos rádios uma vez e outra. Princesinha do Agreste, este seria o título mais apropriado para Caruaru? Quando se fala em Capital do Agreste, esquecemos a poesia que envolve uma cidade que é cheia de vida. “Caruaru, obrigado, Caruaru...”. Esta é uma das músicas que o turista escuta antes mesmo de desejar conhecer a cidade. Não por se destacar pelo seu tamanho geográfico, populacional, ou talvez por riquezas econômicas, mas sim pela cultura em volta do FORRÓ. Esse é o motivo de existir Caruaru. Ele é o principal responsável por tudo o que existe nesta cidade maravilhosa, onde até as crianças dançam o forró. Forró este que quer dizer liberdade de expressão em seus passos, isentos do respeito tradicional, pois é dançado colado com o suor, o seu maior aliado. Forró este que nem todos os músicos sabem sequer expressar, Nascimento

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pois tem de estar no sangue. Forró que é expressão de um povo alegre e disposto à vida. “A feria de Caruaru, tem tudo pra gente ver...” Seu povo trabalhador e disposto à luta no comércio. Caruaru é feita por sobreviventes que abraçaram não só o comércio, e sim a disposição para o trabalho. Lugar onde se encontra “tudo o que há no mundo”. Lugar onde pessoas trabalham com paixão. Lugar onde o dilema é criar e educar meus moleques. Este é o efeito Caruaru. Como se não bastasse, Sandra observou de maneira poética que os sismos estavam em Caruaru para chamar a atenção do mundo para sua cultura, seu povo. Quando pesquisou sobre Caruaru, imaginou a cidade querendo dançar com seus habitantes, até porque nada de ruim tinha acontecido por conta dos sismos. Quando seu pai sugeriu que terminasse sua tese em Pernambuco, pediu que ligasse no outro dia, pois iria pensar. No dia seguinte seu pai ligou novamente, não se questionou sequer um segundo, já tinha resolvido. Não queria ficar por ali, remoendo tanto o passado quanto o presente. Pensou que seria diferente, poderia terminar seu trabalho num espaço onde as coisas aconteciam diferentemente daquilo a que estava acostumada. Colheria material tanto em Caruaru quanto em Belo Jardim, até porque essas cidades de Pernambuco apresentavam sismos desde 2002. O principal motivo, na verdade, era que a família de Thalita lhe dera um ultimato para entregar o apartamento e tudo o mais que fosse dela. Não pensou que seria daquele jeito, expulsa da casa onde morava. Sabia que não tinha direito a nada, nada construíra com ela nada. 68 | Caipora - Comadre Fulozinha

Sem maldade, e sim por necessidade, se apoderou tanto das economias quanto do que era de valor substancial e tamanho pequeno. Thalita não iria ficar com raiva dela, pensou. Este foi um pensamento passageiro até começar fazer tudo errado. A intenção da família de Thalita surgiu quando uma das irmãs dela foi visitar Sandra e a encontrou com outra no apartamento, sem contar que estava totalmente embriagada. Este motivo desencadeou o processo de despejo. Recebia ligações todos os dias, sem contar as visitas. Quando olhava o celular e identificava as ligações, não as atendia. Quando olhava no olho mágico, não abria a porta. Seu pai fez tudo o que prometeu. Ligou para um amigo em Caruaru e conseguiu emprestado um dos apartamentos que estava desocupado. Comprou as passagens aéreas e o mesmo amigo que lhe emprestara o apartamento iria ao aeroporto esperá-la e deixá-la na cidade. Depositou quinze mil reais na sua conta. Seu pai lhe pediu que não alugasse nenhum carro, andasse de ônibus ou táxi. Disse-lhe também que, se precisasse de mais dinheiro, telefonasse, que ele mandaria. Tudo foi rápido que sequer deu tempo de se despedir de seus atuais amigos, se é que eram amigos. As únicas coisas que fez foi ir até a USP conversar com seu orientador e entregar as chaves do apartamento e do carro à irmã de Thalita que a pegara num dia infeliz. As coisas aconteceram de tal maneira e velocidade que, quando deu por si, já estava em Caruaru e no apartamento no bairro Maurício de Nassau. Sentiu certo alívio quando agradeceu ao amigo do pai. Fechou a porta e sentou-se no sofá. Dera sorte, imaginou, tudo foi rápido Nascimento

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e sem problemas.

em Caruaru.

Estirou-se no sofá. Respirou fundo, esticando-se. Levantou, foi até uma das janelas. Puxou a corda abrindo as persianas. Viu o céu estrelado de Caruaru que lhe presenteou com uma lua cheia. Suspirou procurando na cabeça qual teria sido a última vez que vira tantas estrelas ao mesmo tempo.

- Eu não acredito que num lugar desses tenha um reserva que ainda não foi proclamada patrimônio natural. – Sandra estava falando para si própria, sobre Serra dos Cavalos.

Agora as coisas pareciam ter se arrumado. Sandra entrou em contato com a Prefeitura Municipal de Caruaru para saber quem estava estudando os sismos. Para sua surpresa, foi bem atendida e direcionada de maneira muito gentil. No mesmo dia em que chegou à Prefeitura, conseguiu falar com um dos responsáveis pelos estudos sismológicos da cidade. Recebeu relatórios de acompanhamento de tudo o que fora registrado. Estava realmente aplicada. Não saía mais para bebedeiras, tampouco prestava atenção a quem estava ao seu lado. O que queria era terminar sua tese. Conversara por diversas vezes com seu coordenador e com outros amigos que já estavam na área e alguns que também estavam fazendo sua tese atrasada. A conexão com a internet não era das melhores, daí resolveu trabalhar até mais tarde em suas pesquisas e se levantar quase na hora do almoço. Tudo estava caminhando bem. Pesquisara não só a densidade geográfica, populacional, temperatura, mas também todo o costume do povo da cidade. Ficou deslumbrada com a temperatura fria noturna numa cidade quente. Achou até engraçado o povo vestido de roupas para o inverno quando ela própria não aguentava o calor. Numa dessas pesquisas, descobriu o que achava ser o motivo pelas notes frias e as chuvas 70 | Caipora - Comadre Fulozinha

Foi dormir pensando o que fazer para ir até aquele lugar espetacular que tinha espécies da era dos dinossauros. Já estava em Caruaru havia mais de um mês. Resolveu não ir para Pesqueira enquanto não tivesse concluído sua pesquisa por ali. Gostava do bairro onde estava morando e também da cidade. Nesse intervalo aproveitou para conhecer tanto a feira da Sulanca, a famosa maior feira do mundo, e também o Alto do Moura, onde se deliciou comendo cabrito na brasa. Sentiu vontade de conhecer a noitada da cidade, no entanto desistiu, ainda não era hora. Conversou com o coordenador das pesquisas sismológicas sobre Serra dos Cavalos e perguntou se ele achava que a variação climática provocada por aquela reserva poderia influenciar em alguma coisa os abalos na cidade. Teve a respostas que queria, de que nada era impossível, apesar de pouco provável. Ele a incentivou a conhecer o local, nem que fosse para ver a maravilha que estava plantada no agreste pernambucano. Foi batalha conseguir permissão para entrar em Serra dos Cavalos. A reserva estava fechada e, ainda por cima, com problemas com posseiros que estavam ali havia tempo e utilizavam a terra para plantar chuchu. Em conversa que teve com o Secretário de Defesa Nascimento

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Social da prefeitura, o responsável pelos estudos dos sismos, depois de muita peleja conseguiu a autorização de que precisava. Esse dia pareceu-lhe fantástico. Parecia ter ganhado até o final da tarde uma sacola de doces gigantesca no dia de Cosme e Damião após passar por cada casa. Seu semblante mostrava uma alegria que chamava a atenção daqueles que passavam por perto. A noite, sentada à mesa na cozinha, tomando uma sopa que pedira por telefone, seu único pensamento era Serra dos Cavalos e como faria para chegar até lá. Resolveu ligar para o amigo de seu pai para saber como faria para locar um carro. Não conhecia o caminho, mas não gostaria de deixar um taxista esperando por ela, que com certeza não teria pressa. Lembrou que seu pai recomendara que não dirigisse. Pensou, pensou e pensou. No final ligou. - Oi, Sandra! Tudo bom com você? Aconteceu alguma coisa? Vamos mocinha! Fale alguma coisa! – Falou Roberto do outro lado, com ares de preocupação. O telefone não chegou a tocar duas vezes. Parecia que Roberto estava de plantão só esperando que ela ligasse. Balançou a cabeça, como quem tenta tirar o pensamento no sacolejo. Respirou, fez ar de risos. - Boa noite, Sr. Roberto! Como vai? – Respondeu Sandra, tendo a impressão de que falava com seu pai. - Tudo bem comigo! E com você? - Estou ótima! Peço que me perdoe se não liguei antes, até porque sequer agradeci toda sua atenção, falou 72 | Caipora - Comadre Fulozinha

Sandra, agora se desculpando. - Não se incomode. Sabia que não estava bem, daí não poderia ficar com raiva de você. Diga-me: em que posso ajudá-la? - O senhor sabe onde consigo um carro para locação? Estou precisando ir até Serra dos Cavalos amanhã à tarde e se for de táxi vou gastar uma fortuna. Meu pai não é milionário. - Primeiro, mocinha, não me chame de senhor, não gosto e me sinto velho. Segundo, se você precisa de um veículo, eu tenho. Vou mandar deixar amanhã pela manhã aí. Se você tinha um pequeno problema, agora se livrou. Também não vai gastar nada. O carro só não é lá grande coisa, no entanto não vai lhe deixar na estrada – falou Roberto quase sem respirar. - Não precisa disso tudo, Roberto! É, de fato, só Roberto soa bem melhor. Não posso aceitar. Vou deixá-lo sem um veículo de que pode precisar. Basta que me diga onde alugo um – respondeu Sandra sem jeito. - Não tem conversa. Já lhe disse que mando o carro amanhã pela manhã – falou Roberto como quem ordena e espera que seja atendido – Vou mandar procurála na portaria, por volta da 8h, certo? Agora estamos conversados. Outra coisa, se precisar ficar mais tempo com ele, não precisa me avisar. Essa caminhoneta está mesmo parada na garagem faz tempo. E agora boa noite. - Eu não sei como agradecer... – foi falando e se calou após perceber Roberto ter desligado o telefone. A noite foi embalada pelo sono dos justos. Não sonhou, não acordou até que o celular às 7h a despertou Nascimento

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por três vezes, até que o desligasse. Se ainda não estivesse sonolenta, teria percebido que o despertador do celular nunca teria sido aquele. - Sandra, é hora de acordar! Sandra, é hora de acordar! Sandra, é hora de acor... - Já escutei! Agora se cale! – Foi tateando até o celular e interrompeu sua última frase. Como prometera Roberto, um dos seus empregados entregou a caminhoneta exatamente às 8h. Foi o que percebeu quando o interfone da cozinha tocou. Não falou muito. Sequer o rapaz perguntou seu nome. As únicas palavras foram: “O chefe mandou que deixasse esse carro para a senhorita”. Parecia com pressa. Quando segurou as chaves e foi agradecer, o rapaz entrou em outro veículo. Olhou para a caminhoneta, perguntando-se o que seria estar em bom estado. A caminhoneta era linda. Novíssima, cabine dupla e tudo o mais, sem contar que era maravilhosamente negra. Estacionou na vaga destinada ao apartamento. Antes de sair, percebeu que tudo era elétrico, com ar e som. Doce é bom quando não comemos demais. Quem nunca comeu melado quando come se lambuza. Foi justamente como se sentiu: era bom demais para estar acontecendo. Tudo estava dando certo. Sentou-se no sofá, fechou os olhos com um sorriso enorme na boca, adormeceu acordando... “Onde estou? Que lugar é este? Não lembro ter saído de casa!” – Falou Sandra em seus pensamentos. 74 | Caipora - Comadre Fulozinha

Tudo era fantástico aos seus olhos. Sandra já conhecera diversos lugares com matas naturais nas viagens que fizera com seus pais, mas não tinha visto ainda nada igual. As chaves balançando em sua mão a fizeram despertar, olhando para trás, lembrando que não estava a pé, a caminhoneta estava ali. - Acho que estou ficando doida! – falou mais uma vez pra si mesma, já defronte a portaria. - Bom-dia, senhorita! – Falou o guarda-florestal, que neste dia estava no plantão na portaria que dava acesso ao parque. - Bom-dia! – Respondeu Sandra, olhando para os lados. - Meu nome é Fred! Infelizmente hoje não estamos abertos para visitantes - respondeu meio constrangido em falar. Fred tinha uns quarenta anos. Seu corpo meio que atlético justificava sua profissão. Cabelos bem cortados e cara lisa arrochicada pela lâmina numa pele branca. Sandra conhecera já guardas-florestais nos Estados Unidos. Fred parecia ser um verdadeiro guarda americano. Seus olhos castanhos se destacavam no seu rosto afilado. Era alto e falava um português fluente. - Não se preocupe! Estou aqui para dar uma olhada e tenho autorização, pois estou fazendo uma tese sobre os sismos de Caruaru. - Ainda bem! Não gostaria de barrar você! – respondeu a olhando de baixo para cima. – A Senhorita Nascimento

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pode me mostrar sua autorização? A conversa com Fred não demorou. A única preocupação que demonstrou era de não poder acompanhá-la e que ela não saísse da trilha. Sandra olhou para trás acenando e rindo. Olhou para frente e seguiu em direção à mata. - Sandra! Posso chamá-la simplesmente de Sandra? Não saia da trilha, pois estou sozinho. Não vai ter problema nenhum em voltar e ver tudo o que quer se seguir o que lhe disse. Lembre-se só a estou deixando entrar na mata sozinha porque é uma profissional – lembrou Sandra quando acenou para Fred. Ela olhou para o relógio e riu. Naquele dia toda vez que ia conferir as horas, a hora era exata. Dessa vez eram 16h. Parou! Olhou para cima para ver o céu. Parecia uma coberta azul enorme As nuvens brancas pareciam correr em círculo. Um círculo feito redemoinho onde o destino era certo. O sol encabulado e decepcionado por não ter sido o primeiro a ser observado a olhou entristecido. Olhou novamente à sua frente. Em seus pensamentos escutou uma voz dizer-lhe:

Levantou a cabeça novamente como quem procura algo no céu. Estaria procurando algo? Quando resolveu parar a procura, viu uma nuvenzinha escura começar a crescer. A nuvem estava no centro do redemoinho, crescendo com o chegar das outras que não conseguiam sair daquele funil. Um raio saiu do centro da nuvem iluminando toda a mata. Foi aí que Sandra percebeu que andara demais, saindo da trilha, estando agora perdida. Um trovão pareceu chamar seu nome. - Sandra, cadê você? – Era rouco, medonho, e como um trovão chamou seu nome. A mata pareceu crescer. O céu escureceu numa velocidade que sequer sabia quando começou. Pingos começaram a cair sobre seu rosto. Pensou como faria para sair. Não estava mais na trilha. Por que saíra do caminho? Por quê? Por quê? - Fred... – gritou desesperada, calando-se em seguida, sabendo que ele não a escutaria. Pensou: “E se ele veio à minha procura?” - Fred. Fred. Fred. Por favor, me tire daqui! Eu não fiz por mal. Eu não queria sair da trilha. – Sua voz agora era de choro e desespero.

- Estou esperando você! Estou esperando você! Estou esperando você! – A voz era de criança cantando cantiga de ninar.

Outro raio. Outro trovão. Outro raio. Outro trovão. O céu ascendia e apagava como lâmpada que está prestes a queimar. O barulho do trovão a fez calar, pois sabia que não seria escutada.

Um calafrio a fez estremecer. Correu com os olhos ao redor repetindo agora pela terceira vez: “Estou ficando doida!”

A chuva caía sem parar. Eram pingos que ardiam quando batiam nos braços e rosto não cobertos. Tentou cobrir seus olhos com as mãos.

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Nascimento

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Olhou para os pés. Estavam atolados na lama. Não conseguia sequer ver seu tênis. A lama parecia segurar seus passos. A água penetrara tanto que sentia molhada nas partes íntimas. Lembrou-se do pai. - Pai, cadê você? Não me deixe aqui sozinha! Pai, cadê você? – Sussurrava entre um soluço e outro. O céu num breu calou o trovão, desligou os raios, só deixando a chuva cair sem cessar. Sandra levantou a cabeça e procurou desta vez não alguma coisa, mas sim um pingo de claridade que a orientasse em algum caminho. Nada! As trevas chegaram sem pedir licença. A escuridão agora é quem mandava. Encolheu-se como quem procura abrigo. - Sandra, cadê você? Sandra, cadê você? Sandra, cadê você? – A voz de menina dessa vez com sua cantiga de ninar mais forte e mais próxima. - Quem é você? Deixe de brincadeira! Não quero brincar! – Sandra agora parecia uma criança manhosa pedindo que parassem com a brincadeira de que ela já estava cansada. A chuva parou, só deixando a escuridão como sua companheira. Companheira essa que Sandra fechou os olhos para não ver. O silêncio foi quebrado por um vento que avisou que chegaria com um silvo distante que foi crescendo. Pareceu uma brisa que fez Sandra sentir o gelo nos osso. O silvo foi aumentando junto com a brisa, que agora era ventania. A ventania foi tomando forças de tal maneira 78 | Caipora - Comadre Fulozinha

que fez Sandra balançar como que atraída por um imã gigantesco. Seus cabelos molhados esvoaçavam como que secos depois de uma escovinha. Sentiu seus pés quererem sair do chão. Sentia seu corpo querendo voar como uma pluma que vai aonde o vento quer. Abaixou-se, deitando com o rosto colado na lama. Seus pensamentos nulos agora seguiam seu instinto – só queria se salvar. Não conseguia pensar e falar mais nada. Encolheu-se toda. Levou as mãos ao rosto numa tentativa vã de se defender. A voz da criança chamando o seu nome parecia estar acima de sua cabeça. Não quis ver fechando mais ainda seus olhos e os pressionando com as mãos. O chão pareceu balançar. A terra gemeu como uma mãe quando está parindo. Quatro fendas ao seu redor foram se formando. Quatro garras começaram a brotar das fendas. Sentiu algo lhe puxar a perna esquerda e em seguida, no momento exato em que abriu os olhos para ver o que era, outra garra a segurou pela perna direita. O pânico a desfigurou de tal maneira que era difícil reconhecê-la. Tentou desesperada soltar-se das garras, batendo com as pernas. Tentou se levantar apoiando o corpo com os braços quando mais duas garras seguraram seus punhos, colocando-a de bruços. Sentiu seus nervos estralarem. Parecia estar num esticador humano. Um dor enorme correu todo seu corpo, fazendo-a berrar como um animal nas garras de uma leoa. Um gato enorme, negro como a noite, saltou nas costas de Sandra cravando suas presas no pescoço e puxando algo que parecia uma luz. Ouviu-se o último grito de desespero, e Sandra parou de se movimentar. O Nascimento

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animal sacolejou o que parecia um espírito se debatendo, olhou ao lado onde mais um buraco se abrira e pulou dentro. O silêncio foi quebrado com os passos de uma garotinha que fez carreira pulando nas costas de Sandra e desaparecendo em seguida. O céu clareou na mesma velocidade em que escurecera. Sandra se levantou, olhou para os lados e sorriu feita criança levada.

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Parte XII

Conhecendo-se (Dia A Dia)

Tudo parecia bom demais. Os dias seguintes ao primeiro encontro eram como um sonho bom que se repete. Não um sonho desses que dá prazer e disposição durante o dia logo após acordar, mas um conto de fantasia onde tudo que Carlos pensava era Sandra. Antônio e Maria já estavam até acostumados com os sumiços de Carlos ás sextas-feiras. Era comum Carlos desaparecer com a desculpa de que iria a Caruaru tratar de negócios, só aparecendo no final do dia do domingo. Durante o mês de fevereiro e metade o mês de março, Carlos mais parecia uma criança que ganha um brinquedo e não quer soltá-lo. Muitas vezes, ligava ás quartas-feiras e ia almoçar com Sandra, só retornando na manhã do dia seguinte. Antônio até estava gostando, pois ver Carlos feliz lhe dava certo prazer. Desde que conhecera Carlos, não o tinha visto tão disposto e feliz. Aqueles quarenta e cinco dias pareciam prosperar. Carlos tinha fechado um bom negócio, e sua produção de hortaliças toda era entregue para o Bonanza Supermercados. Estava cumprindo com o empréstimo no banco e não atrasava mais seus pagamentos. Tudo parecia ir bem. Antônio comentou com sua esposa que achava estranho Carlos ainda não ter levado sua namorada para conhecer a fazenda. Maria, por outro lado, lembrou seu marido que Carlos tinha mudado muitas coisas no seu 82 | Caipora - Comadre Fulozinha

quarto e estava se vestindo melhor. Carlos algumas vezes fizera comentários sobre sua namorada a Antônio. Falou que a achava linda, que adorava pegar em seus cabelos, que era muito educada. Disso não passava. Comentou de ter ido a restaurantes. Falou que ela – Sandra – dançava muito bem. Quando Carlos estava com Maria, de vez em quando falava que Sandra iria adorar seu tempero e a ela, é claro. No dia 13 de março, logo após o café da manhã, Carlos falou para Antônio e sua mulher que iria chamar Sandra para passar o fim de semana com ela na fazenda. Maria olhou para Carlos, não se sentindo muito à vontade. - Mas Carlos, por que não avisou no começo da semana? Teria dado tempo de preparar alguma coisa melhor. Fazer alguns docinhos. – Mesmo desapontada com Carlos, Maria o questionou de maneira carinhosa. Maria foi falando e levantando da cadeira com aquela cara de quem não gosta muito de surpresa. Seu marido não falou nada, ficou observando sua mulher e se questionado qual o motivo de Carlos não tê-lo avisado também. - Não se preocupe, Maria! Sandra não é de fazer cerimônias, é muito simples! – Respondeu Carlos, tranquilizando-a. - Antônio, por favor, me passe esses ovos. – Carlos foi falando e estendendo a mão para pegar. A mesa era farta. Todos os dias Carlos fazia seu desjejum com Antônio e Maria por volta das seis horas da manhã. Carlos adorava os ovos de capoeira. Maria, por Nascimento

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sua vez, preparava o café da manhã variando com pão, que ela mesma fazia, inhame, macaxeira, batata doce, cuscuz, arroz branco, bolos diversos e muitas e muitas vezes com carne ou galinha cozida. Nesse dia, o que havia na mesa era pão, ovos, bolo “engorda marido”, café e suco. - Sim, senhor! – Respondeu Antônio, passando imediatamente. - Olha, Maria, Antônio vai comigo para Caruaru e lá faremos as compras. Basta que você diga o que precisa. Naquele dia, Carlos acordou com apetite de comer um leão inteirinho. Maria até riu, pensando consigo mesma que a boca de Carlos teria que ser bem maior do que era. Com certeza a refeição não seria o leão, e sim Carlos. Enquanto tomava café, Carlos fez uma retrospectiva dos últimos dias. Lembrou da ligação que recebeu quando estava prestes a ir para Caruaru. - Oi, tudo bom? – Perguntou Sandra do outro lado do telefone. - Tudo ótimo agora! – Respondeu Carlos. Era sexta-feira, 31 de janeiro. Carlos sentiu-se eufórico. Tinha adorado aquela tarde, misturada com a noite, o dia seguinte e poucas horas da tarde. Pensou... “Ela gostou!” Riu por nada. Olhou para o céu. Eram nove horas da manhã. Colocou seus pensamentos em ordem. Não gostava de falar bobagens. Sandra parecia ser inteligente, e ele não parava de pensar nela. Com certeza não podia de maneira alguma vacilar. Afastou o celular. 84 | Caipora - Comadre Fulozinha

Tossiu para poder falar alguma coisa. Temperou a goela. - Você está onde? – Perguntou Sandra de maneira curiosa. - Na fazenda! – Retrucou, de maneira que desse a entender que estava trabalhando. - Ah! Pensei que estivesse aqui! – Respondeu displicentemente. - Por quê? Gostaria que estivesse? – Perguntou timidamente. - Ia convidar você pra almoçar comigo! – Respondeu Sandra esperando um sim. Ela sabia onde ele estava. – Tudo bem! Vamos deixar pra depois! - O quê? Deixar pra depois?! Não! Você quer almoçar a que horas? - No horário! – Respondeu com ar de quem está brincando. – Brincadeira! Estou com vontade de almoçar com você! A que horas, você pode? Sei que está trabalhando! – Agora já falava como quem entende que ele tem obrigações. - Certo! Vou terminar o que tenho que fazer e, quando chegar aí, eu dou um toque pra você. Não se preocupe, vai ser antes do meio dia! - Certo! Estou esperando! Não esqueça, está marcado! – Parou por alguns segundos... – Um beijo! - Outro! – Respondeu Carlos todo feliz, tentando não demonstrar. Naquele dia as horas pareciam não terminar... Antes de chegar à loja Americana Veículos, deu Nascimento

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sinal e entrou à direita. Parou! Olhou para uma mulher vestida meio que... Pegou o celular e ligou. - Oi? - Oi! – Respondeu Sandra. - Onde você está? - Em casa! Pode vir me pegar? - É claro! Daqui a pouco chego aí! – falou e em seguida desligou o celular. Quando Carlos ia saindo, percebeu que aquela mulher que vira quando ia estacionando estava do outro lado da avenida olhando para ele. Não deu muita atenção, até porque ela estava no meio de um monte de gente que pareciam mais mendigos. Carlos não era do tipo de frequentar shopping. Quando chegou em frente ao prédio onde Sandra morava, ela já esperava. Parou a caminhoneta do outro lado da rua e buzinou. Sandra o olhou e riu, atravessando a rua em sua direção. Carlos não saiu para abrir a porta, mas pensou que deveria. Quando Sandra entrou, foi logo o beijando. Carlos se sentiu o dono do pedaço. - Pra onde vamos? – Perguntou Sandra. - Você quer fazer alguma coisa em especial ou ir para algum lugar? - Preciso comprar algumas coisas pra mim. Estive 86 | Caipora - Comadre Fulozinha

pensando em ir ao Shopping – falou rindo. - Tudo bem! Só tem uma coisa. Não tenho paciência de ficar de loja em loja. - Não, não, não! Assim não tem graça. Quem vai pagar as contas e segurar as sacolas? – Riu e o beijou novamente. O olhar inocente de Carlos foi do tipo: “Ferrei-me!” Sandra pareceu ler seus pensamentos e riu. - Estou brincando com você! Acha que vou te explorar? – Ficou tímido de vez. – Não se preocupe! Já estou crescida e pago minhas contas. - Tenho certeza de que não! Também se fosse, estaria batendo à porta errado, pois sou um liso – riu e deu partida no carro. O caminho foi de conversas bobas e alegres. Carlos não era muito de rir. Quando olhava para Sandra, sentiase menino, e isto o fazia ficar à vontade, de maneira que ele próprio estranhava. O Shopping ficava do outro lado da cidade e, como Carlos não conhecia bem, pois fora poucas vezes e por necessidades de se utilizar de uma agência bancária, ou dos serviços do DETRAN, seguiu pelo centro da cidade. A entrada para o Shopping ficava no mesmo caminho para Bezerros ou o Hospital Regional do Agreste, rota essa que ele conhecia muito bem. As horas pareciam voar. Quando chegaram ao destino, já passava das 17h. Carlos parou ao lado de uma guarita e a moça que o atendeu foi agradável até demais. Ele pensou que gostaria de vê-la de pé, sem aquela Nascimento

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parede no meio. Como sempre, Sandra parecia ler seus pensamentos, o que provocou um beliscão. Olhou para Sandra e riu com ar de quem não estava fazendo nada. Saíram em destino ao estacionamento. Nesse meio tempo, Sandra lhe deu mais alguns beliscões e disse: “Estou de olho em você!” Isso pareceu acender mais ainda o ego dele. A tarde estava calma, a não ser por uma brisa leve que refrescava o corpo do calor. Desceram do carro logo após Carlos estacionar o mais próximo da porta que dava entrada ao Shopping. - Não quero que fique com raiva de mim! Sou uma péssima companhia para compras, principalmente com mulheres. Detestava quando minha mãe me chamava para ajudá-la a escolher alguma coisa pro meu pai. – Falou Carlos, fitando-a com cara de quem quer uma resposta positiva à sua indagação. - Não se preocupe comigo! Gosto de fazer minhas compras sozinha – disse, beijando-o em seguida. Pararam diante da porta automática, esperando que abrisse. Sandra parecia meio matuta, pensou Carlos. Olhou-a. Pegou sua mão e foi em direção à porta de entrada. O movimento era pequeno. Carlos chegou rápido à conclusão de que deveria ser o horário e o dia da semana. Seu olhar brilhou em saber que estaria bem mais à vontade com pouca gente o observando. Não que tivesse problemas com multidões, mas já estava acostumado à tranquilidade da fazenda. - Vou ficar na praça de alimentação – falou ele 88 | Caipora - Comadre Fulozinha

enquanto entravam. – Se precisar de qualquer coisa, é só me ligar e falar onde está. - Certo, chefe! – Falou rindo e o beijando. – Tenha cuidado para onde olha. Estou de olho em você! Quando Sandra deu de costas, um barulho meio que abafado chamou a atenção de Carlos. O tal barulho vinha da praça de alimentação. Carlos o identificou com sendo um teste que os músicos fazem para saberem se o microfone está ligado ou funcionando bem. A distância da entrada até a praça de alimentação era pequena, o que o fez ver que havia uma movimentação no palco. Pensou logo que não iria ficar num lugar parado e silencioso olhando as poucas pessoas passarem de um lado para outro, ou mesmo observando algum casal de namorados conversando ou se beijando. O palco ficava no centro da praça de alimentação, que era cercada de mesas e cadeiras fixas e pequenas. Quatro telões ficavam expostos acima de quem fosse cantar ou apresentar seja lá o que fosse. Quatro telões apontados para os quatro cantos da praça, dando àqueles que estivessem atrás do artista a visão frontal quando quisessem. Foi em direção a uma mesa que, a seu ver, daria uma visão melhor e frontal de quem fosse cantar. Era justamente o que esperava: que alguém fosse cantar. Sentou e ficou observando a movimentação no palco. - Boa tarde, senhor! – Foi falando o garçom, ao mesmo tempo em que deixava um cardápio na mesa. – Deseja alguma coisa? - Um chope com vinho – respondeu Carlos. – Vai Nascimento

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ter música? - Sim, senhor! Caso queira mais alguma coisa, estamos à disposição – respondeu com um sorriso.

O nome dela era Renata Torres. Sim, era Renata Torres! Quando ganhou o CD, imaginou uma pessoa mais velha. Talvez fosse o desenho no CD.

Carlos voltou sua atenção para o palco. Não era bem o que estava acostumado a ver no Rio de Janeiro. O Shopping era pequeno, no entanto acolhedor. Chegou à conclusão de que não poderia ser maior, até porque a cidade não comportaria aqueles Shoppings enormes que estava acostumado a frequentar, mesmo que esporadicamente. Seus olhos estavam no palco, mas seus pensamentos pareciam distantes. Parou novamente, voltando a pisar a praça de alimentação.

Olhou ao redor e as pessoas pareciam bonecos vivos. Os sorrisos e gestos inconstantes lembravam uma casa de farinha mecânica que vira havia algum tempo quando foi para o carnaval na Bahia. Procurou lembrar o nome de como chamavam aquilo, mas não conseguiu.

Parecia uma menina, observou Carlos, olhando para a moça que preparava o palco. Deve ser ela quem vai cantar, pensou.

O que era uma menina para Carlos pareceu crescer. Não! Não era mais uma menina, era uma...

O garçom deixou sua taça de cerveja com vinho, olhando-o como quem quer saber se vai querer mais alguma coisa. Carlos fez um sinal com a cabeça, dispensando-o.

Esta era a música que ele queria escutar, e foi justamente a que ela cantou. Seus olhos a fitaram por alguns minutos. Ela estava cantando pra ele.

- Boa tarde! – Falou aquela menina. – Meu nome é Renata! Vou cantar algumas canções e espero que gostem. Se tiver alguma música em especial que queiram ouvir e, é claro, estiver no meu repertório, cantarei com enorme prazer. Quando Carlos a olhou com mais atenção, lembrouse de ter ganhado um CD de um conhecido, que não lembrou na hora quem. Do CD sempre escutava uma música de Roberto Carlos, “Quando”. Essa era a música que gostava de ouvir. Não que as outras fossem ruins, mas essa era a preferida, não sabia por quê. 90 | Caipora - Comadre Fulozinha

Já se passaram uns trinta minutos desde sua chegada e agora a claridade só existia por conta das lâmpadas. Apagaram as luzes que davam claridade ao ambiente e os refletores foram acesos.

- Quando você se separou de mim...

Renata gravara o CD que Carlos ganhou na força e na coragem. Mesmo sendo de uma cidade pequena, acreditava que, mostrando seu trabalho, seria reconhecida, e foi justamente o que fez. Seu pai era uma mistura de professor e contabilista. Não era de família pobre, no entanto os pais sempre querem alguma coisa diferente – ou diríamos melhor – para seus filhos; muitas vezes que sigam o que eles fazem. Como seu colega falara, Renata deu sorte porque Nascimento

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seu pai a apoiou no seu sonho. Seu colega lhe dissera que ela era exigente, gostava de tudo do seu jeito e não admitia fracassos. Foi o que Carlos viu quando a olhou nos olhos. Olhos presos ao nada. Gostou de vê-la como se estivesse se preparando para uma guerra, essa pessoal e cheia de glórias ou derrotas. Aquela menina estava brilhando, não era mais a simples Renata, era... Pessoas circulavam de um lado para o outro, não em grande quantidade. Outras estavam em seus trabalhos esperando alguém que viesse comprar alguma coisa. Os pensamentos eram diversos, os sonhos e desejos, como as angústias pertenciam a cada um. Aquela música bateria no coração, de alguns, nas lembranças de outros, levando alegria ou tristezas. Alegrias tristes de momentos que não voltam, tristezas de momentos alegres que se foram. Lembrou quando era jovem e sonhador. Não que não gostasse de ser agrônomo, como seu pai. Adorava o que fazia agora. Seus pensamentos voaram... Seu olhar caiu no vazio.

como os pescadores são pelas sereias. Quando olhou na mesa, já havia cinco taças de chope com vinho. Olhou novamente para Sandra e riu. - Acho que me esqueci do tempo. - Estou vendo! Sandra sentou não muito alegre. Carlos parecia estar pensando em algo que ela não conseguia ver em seus olhos. Balançou a cabeça com ar de reprovação. - Com certeza você não vai dirigir! Correto? - Não! Acho que bebi demais – falou Carlos com voz meio grogue. - Garçom! Por favor, uma água tônica pra mim. Foi nesta hora que Renata começou a cantar “Doce Vampiro”, de Rita Lee. Sandra levantou a cabeça, olhou-a de cima para baixo e riu. - Venha me beijar, meu doce vampiro...

- Oi! Tá sonhando acordado? – Perguntou Sandra ao seu lado. – Não viu que estou aqui ao seu lado? - Oi! – Falou Carlos, displicente. – Já chegou? - Se já cheguei! Tá com quase duas horas que nos separamos. Já vi que você não sentiu minha falta – falou ela com ar aborrecido. O tempo passou de maneira que Carlos não se deu conta. Teria sido enfeitiçado pela cantora ou pela música, 92 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte XIII

A Primeira Visita À Fazenda

Eram exatamente 10h quando Carlos entrou no carro e foi para Caruaru. Estava de pé na frente da porta que dava acesso à saída, quando o relógio da casa tocou. Olhou para trás rapidamente e em seguida virou-se para acenar com a mão direita para os dois. Antes de sair, disse a Maria o que gostaria que ela servisse quando Sandra estivesse lá. Tentou explicar, sem convencer, que não se preocupasse, que Sandra era uma mulher simples e que com certeza iria gostar tanto dela quanto do seu marido. Disse ainda que Sandra não era do tipo esnobe. O carro saiu, e Maria sentiu certo calafrio. Naquele momento o que pensou foi: “Deus os proteja.” Seus pensamentos pareciam avisá-la de alguma coisa. Depois de acenar com a mão, virou-se e se dirigiu à cozinha. Pensou em fazer um bolo ou alguma coisa que pudesse servir para a tal Sandra. Olhou na dispensa o que tinha. Pensou... Pensou... Pensou e fez o melhor que sabia. Quando se aproximaram da porteira, Carlos foi parando quando Francisco, um de seus funcionários, saiu não se sabe de onde e a abriu. - Obrigado, Francisco! – Exclamou Carlos acenando. Francisco, do outro lado, abriu um sorriso banguelo e acenou também. 94 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Você está calado até demais hoje, Antônio! – Falou Carlos meio displicente. - Não, senhor – retrucou Antônio imediatamente. Antônio não conversava muito. Carlos sabia disso. Quando estavam a sós, ele falava pouca coisa. Naquele momento, Carlos parou e percebeu que fazia tempo que se quer falavam coisas da fazenda. Enquanto se perguntava o porquê, resolveu responder a si mesmo. Lembrou que ultimamente não tinha dado a atenção que costumava. Quando não estava trabalhando, estava pensando em Sandra. Pior ainda, sempre que sobrava tempo, estava em Caruaru. Nesse dia, não houve conversa. Antônio pensou que Carlos estaria eufórico com a visita de Sandra. Já Carlos se sentia culpado por não ter avisado antes. Daí pensou que Antônio estivesse chateado. Pouco depois das 12h Carlos encostou a caminhoneta em frente à casa. Lá dentro da cozinha, Maria trabalhava desesperada para que a namorada de Carlos não achasse que ele estivesse sendo maltratado, ou talvez achasse seu tempero ruim. Sem contar que Maria não tinha parado um só segundo arrumando a casa, deixando-a impecável. Antônio estava na cozinha, sentado, olhando para Maria quando escutaram o barulho do motor. - Você acha que ela é chata? – Perguntou Maria, arrumando a mesa. Antônio a olhou e riu. Sentado com as mãos sobre a mesa, sentiu-se imobilizado com a pergunta de sua Nascimento

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mulher. Seu olhar carinhoso imaginou como seria se Carlos fosse seu filho. - Quem sabe, Maria. Vamos saber daqui a pouco. Ela já está aqui! – Respondeu Antônio, rindo com a inocência de sua mulher. - E você, não vai lá? – Perguntou Maria, expulsando-o para as boas vindas. - Tenho de ir? – Perguntou Antônio sem muita vontade. - Vá! Vá! – Foi falando e o empurrando. Quando Sandra saiu do carro, Falcão e sua esposa estavam na varanda esperando a hora do almoço.

por sua fiel companheira. Carlos pareceu não gostar. Olhou Falcão com ar repreensivo. - Falcão? – Sua voz agora era de quem ordena. - Não se preocupe, Carlos, eles vão se acostumar comigo! – Falou Sandra fitando os dois animais. Não se fez noite, tampouco a chuva caiu. Falcão e Bete saíram ganindo e se embrenharam no meio do mato. Carlos achou estranho. Olhou para Sandra e não sabia o que falar. Aqueles dois eram como se fossem da família. - Senhor Carlos – falou Antônio de repente.

Bete, como era chamada a esposa de Falcão, se levantou fitando Sandra.

- Antônio, tudo bem? Essa é Sandra! – Apresentou Carlos antes da resposta.

Falcão olhava para o seu dono sem dar muita atenção à companhia que acabara de chegar. Pareceu sorrir quando latiu.

- Oi! Como vai a senhora? – Perguntou Antônio estendo a mão para Sandra.

Já Bete começou a latir em direção à Sandra, que a olhou, fazendo-a calar e começar a ganir, chamando a atenção tanto de Falcão quanto de Carlos, que mostrou não gostar da recepção de seus animais. - O que é isso, Bete? – Perguntou Carlos com autoridade. Falcão recuou quanto viu Sandra, acompanhando no ganido sua companheira. Soltou um rosnado e foi repreendido também por Carlos. Bete recuou, ficando do lado daquele com quem defendia a casa. Falcão rosnou mais uma vez acompanhado 96 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte XIV

A Viagem

Quando Carlos e Sandra saíram do prédio onde ela morava, estava escurecendo. Eram quase 18h do dia 19 de março de 2004. Carlos a olhou antes de entrarem no carro. Pensou por instantes que aqueles momentos não deveriam acabar. - Sandra? Podemos dar uma parada no meio do caminho para que você conheça um amigo? - Claro! Que colega é esse de que você nunca falou? – Perguntou ela – Você nunca disse que tinha amigos aqui em Caruaru! - Porque não tive oportunidade! Está tocando em Gravatá. Sei que você gosta de música regional. Aproveito para lhe apresentar ele e a turma da banda no intervalo. Tenho certeza de que você vai gostar. Por alguns momentos, Carlos teve a impressão de que estava se justificando. Não era essa a sua intenção. Não gostava disso! A princípio pensou por que Sandra o estava questionando. Não poderia ter amigos? Pensou também que era pouco tempo que se conheciam e não tinha dado tempo... Com certeza ela também teria pessoas amigas que amanhã ou depois... Seus pensamentos foram cortados. - Sendo assim... Com certeza vou adorar conhecêNascimento

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lo! – Olhou para Carlos e riu. Ambos abriram as portas do carro e entraram. Pararam como de costume, no portão, na saída do prédio. O porteiro os olhou com aquele ar de quem diz: “Esse cara tem sorte! Pense na gostosa que ele está traçando.” Toda vez que Carlos o olhava, não gostava do que via. Aquele cara parecia não ter um pingo de pudor. Quando os dois saíram do prédio, Carlos deu um sorriso para o nada, lembrando como conhecera Armandinho. Era festa de São João em Caruaru – PE, mês de junho de 2003, pátio de eventos Luiz Gonzaga. Uma das atrações daquela noite era o Flor de Mandacaru. Carlos estava numa barraca – se é que se pode chamar uma construção de alvenaria de barraca – que parecia mais um restaurante. Estava numa mesa sozinho, olhando as pessoas passando de um lado para o outro. Eram mais ou menos umas 22h quando a banda Flor de Mandacaru terminou sua apresentação. Carlos até que gostou do jeito e das músicas apresentadas por aquelas crianças. Notou que eram jovens, no entanto a distância podia tê-lo enganado. Foi justamente o que descobriu quando se virou e viu um rapaz que aparentava ter uns 17 anos falando na sua direção. Era enorme para uma criança dessa idade. - Olá? – cumprimentou aquele magricelo rindo feito menino à procura de algo.

O barulho era enorme. No palco havia outra banda tocando. Como se não bastasse o show no palco principal, podiam-se ouvir as outras bandas que estavam tocando no interior do espaço Luiz Gonzaga. - Claro! Claro que estou falando com você! – Respondeu – Podemos ficar nessa mesa? Notamos que está sozinho e eu estou bastante acompanhado. Não se preocupe. Não vamos deixar nenhuma conta pra você pagar. Muitos menos fazer bagunça. Estou trabalhando ainda. – Foi se aproximando e estendendo a mão para Carlos, que sem perceber estendeu a sua. Carlos o olhou de cima para baixo e caiu a ficha. Era músico. Estava como diria no Rio de Janeiro, fantasiado. Parecia... Não parecia! Era o vocalista da banda que acabara de se apresentar. Olhou ao seu redor e se viu rodeado de mãos que foi apertando uma por uma. Uma das cinco meninas não estendeu a mão e sim o abraçou e beijou-lhe as faces. Eram oito garotos e garotas. - Não é que ele está sozinho mesmo, Armandinho! – Falou a que o beijou e riu. - Você está mesmo a perigo, não é, Marta? – Respondeu Armandino. - Vocês são da banda que acabou de se apresentar, correto? – Perguntou Carlos se dirigindo a Armandinho. – Acertei? Foi a partir desse dia que começou a amizade entre Carlos e Armandinho.

- Tá falando comigo? – Perguntou Carlos meio que incomodado. 100 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte XV

A Cigana

- Vamos parar no posto? – perguntou Carlos olhando rapidamente para Sandra. - Vamos! Preciso ir ao banheiro – respondeu ela olhando para ele e rindo. Até o próprio Carlos estava com vontade de “dar um mijão”, como costumava falar. Estava feliz. Tinha acabado de ver um velho amigo e, aparentemente, Sandra adorou a parada. Dançaram e dançaram... Riram e comeram quase de tudo que tinha por lá. Sandra tinha bebido um pouco além da conta, no entanto o lembrou de que não podia e de que era ele quem estava dirigindo. Carlos tomou tanto drinque sem álcool que jurou para si mesmo que jamais pararia numa festa dirigindo. Perguntou-se também por que Sandra não estava ao volante. Não quis responder. Olhou para sua direita e viu uma placa que sinalizava um posto adiante com banheiro, lanchonete e tudo mais de que precisavam. Sandra o olhou novamente e perguntou. - Você viu? - Viu o quê? - A placa! Pode ir reduzindo a velocidade, pois estamos a menos de um quilômetro. - Pensei que iria fazer uma surpresa – falou Carlos e riu. Nascimento

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O posto aparentava ter tudo o de que se precisa. Carlos parou no estacionamento e saiu ao mesmo tempo em que Sandra. Ela deu a volta ao seu encontro e pegou na sua mão esquerda. Dirigiram-se à lanchonete. O lugar era grande e acolhedor. Carlos se sentiu à vontade quando perguntou à balconista onde era o banheiro. Sandra deu um beliscão e Carlos a olhou, sorrindo timidamente. - Já sabemos onde ficam os banheiros! Vá pro seu que vou pro meu – olhou Sandra com ar de quem não quer perder tempo e não gostou do jeito da menina atrás do balcão. Quando voltaram do banheiro, Carlos pegou no freezer uma água tônica. Sandra foi logo saindo, não esperando que Carlos pagasse a conta. O carro estava no mesmo lugar; “ainda bem”, pensou Sandra. Olhou ao redor como quem procura alguma coisa. Uma mulher foi em sua direção. - Oi? – falou uma mulher vestida feito cigana. - Oi! O que você quer? – respondeu de maneira questionadora. - Posso ler seu passado, presente e futuro? – Perguntou a cigana, estendendo a mão.

terminando a última frase, empurrou a cigana, que caiu e ficou lá por um bom tempo. Aquele braço frágil não a machucou, tampouco a queda. Tudo apagou e Dardane foi arremessada para um sonho profundo. Sandra a olhou com desprezo. Arrastou-a para debaixo de um caminhão que estava parado ao lado do carro de Carlos. Seu aspecto frágil não foi justificado, pois Sandra a colocou como quem brinca com uma boneca de pano. - Maldita! Vais ficar parecendo folha de papel quando o dono deste caminhão sair bêbado sem olhar sequer o que está debaixo do nariz – falou Sandra de costas, como quem fala para o nada. Carlos estava saindo quando Sandra se aproximou da caminhoneta. - Pensei que você não fosse sair mais! Estou esperando faz tempo – falou Sandra, olhando para ele com ar de repreensão. - Desculpe! Desculpe-me! Você viu que estava cheio. A menina se enrolou toda para dar o troco. Não só o meu, mas de todos que estavam na minha frente – falou Carlos se aproximando e beijando sua testa.

- Deixe-me ver! – Insistiu a cigana com a mão estendida.

- Vamos! Já está ficando tarde! Não quero chegar de madrugada. Você falou que tinha uma surpresa. – Sandra foi falando ao mesmo tempo em que acenava para que Carlos abrisse a porta do carro.

- Já lhe disse que não quero! Você entendeu? Saia de perto de mim! – Ao mesmo tempo em que Sandra foi

Carlos abriu a porta e pensou que estava tudo bem. Ela não estava com raiva. Não muita. Seus pensamentos

- Não! Já sei de tudo! – Respondeu Sandra com olhar desafiador.

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até gostaram do jeito que Sandra o olhou quando estava falando com a garçonete. Ele gostou de ela ter sentido ciúmes, ou o que fosse. Quando Carlos ia pegando a BR, teve a impressão de ter visto um vulto do outro lado da pista. Parou o carro e olhou como quem procura algo. Não era um vulto. Parecia uma cigana. Voltou a atenção para a pista, e quando olhou novamente não viu nada. - O que você olha tanto? Está procurando alguma coisa. Preste atenção. Está querendo nos matar? – Perguntou Sandra com ar aborrecido. - Não! Não! É claro que não! – Respondeu Carlos voltando a atenção para a pista. O silêncio no posto não era de causar calafrios. O barulho devido à hora talvez não fosse grande. Dardane estava debaixo de um caminhão que a qualquer momento poderia sair. Quando Sandra a colocou, teve o cuidado de deixá-la de maneira que não a vissem. A noite não era fria nem quente. O chão por ser de piche não conseguiu despertar. Tudo era contra Dardane, que adormecera e agora estava sonhando. Olhou para frente e o que viu foi uma mata sem fim. Sorriu a princípio. Gostava da natureza. Sempre estava no meio dela. Procurou algo ou alguém ao seu redor e não viu. Olhou para saber onde estava pisando. Estava num círculo. Bem no centro. Naquele espaço não havia grama. Quando levantou a cabeça, viu que a mata crescia ao seu redor. Aquelas árvores que a princípio lhe pareciam belas agora a acuavam. Sentiu medo. Tentou gritar. Não saía de sua boca sequer um grito a que a fizesse tranquilizar-se. 106 | Caipora - Comadre Fulozinha

Olhou novamente para os pés. O círculo parecia diminuir. Levantou a cabeça outra vez e não conseguiu ver mais nada. A mata a cobrira. O céu que vira sobre as árvores desaparecera. Tentou de algum modo empurrar os galhos. Não conseguiu. Tentou gritar mais uma vez. Nenhuma palavra saiu de sua boca. Escutou uma voz distante. - O que você está fazendo aí? Você tá doida? Enlouqueceu? – Era a voz de um homem que, a princípio, quando tentou abriu os olhos, parecia ter um duzentos quilos. Foi puxada pelo braço esquerdo, e sentiu as juntas reclamarem. Abriu os olhos, dessa vez pra não fechá-los. Sentiu a pele fina ficar grudada ao chão. Teve também a impressão de que pesava cem quilos e estar colada ao chão. Tentou reclamar. Não conseguiu. Tentou reclamar mais uma vez. Nada! Soltou os pulmões e saiu um berro de desespero. - Pare! Pare! Pare! – Sua voz era estridente. Seu aspecto de pavor. Não sabia nem tinha ideia do que estava acontecendo. – Pare! Pare! Pare! – E caiu em pranto. Aquele homem que a princípio lhe pareceu pesar mil quilos a soltou. - Está doida! Você deve ser doida! Estou te tirando para não passar por cima de você e ainda reclama! – Quando o caminhoneiro a soltou, já estava cercado por pessoas que nem imaginava. - O que você está fazendo? – Perguntou uma mulher franzina apontando com o dedo. - Ei cara! O que é isso? – Falou um grandão, empurrando-o com a mão direita. Nascimento

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Uma mulher de batom vermelho escarlate se aproximou de Dardane e a pegou pela mão. - Não tenha medo. Agora está tudo bem. O que aconteceu? Enquanto Dardane era atendida. As pessoas começaram a empurrar o caminhoneiro, que tentava se explicar. O vozerio era tamanho que o caminhoneiro em instantes seria morto se Dardane não gritasse. - Não! Não! Não! Não façam nada com ele. Eu estava desmaiada debaixo do caminhão. Ele estava apenas me tirando. Graças... Graças que ele me viu, senão estaria morta agora. Como quem cospe algo que, em frações de segundos, pensava ser doce a multidão que cercava o caminhoneiro se afastou indo ao encontro de Dardane. Uns perguntavam o que aconteceu, outros o que ela estava fazendo ali. O balburdio foi grande, no entanto não deu em nada, “Graça a DEUS”, pensou o caminhoneiro. Aos poucos as pessoas foram se afastando, ficando no final só Dardane e o caminhoneiro. - O que você estava fazendo debaixo do meu caminhão? – Perguntou o caminhoneiro, agora bem mais calmo. - Não sei! Só sei que acordei àquela hora em que você me chamou. Me perdoe, não sei realmente o que aconteceu. - Você deve ter se drogado. - Não! Não! Não! – Falou ela, tentando explicar alguma coisa quando aquele homem enorme a olhou com 108 | Caipora - Comadre Fulozinha

nojo. Dardane desde que acordara ainda não tinha parado um minuto para pensar, a não ser quando respondeu que não lembrava nada. Naquele momento, sabia que não podia contar realmente o que aconteceu. Não sabia o porquê! Respondeu no impulso. Tudo ficou claro, como quem espera que as moedas de um caça níquel caiam e venham à sua frente, desabando seguidas do barulho. Agora estava sozinha. Toda aquela multidão tinha ido embora, cada um para seu caminho. Pensou em caminho e riu. Qual seria o seu? Sentiu-se triste por instantes. Sua família se afastara desde que começara a ter pesadelos e a prever o futuro. Sua saída foi endossada por não fazer nada em relação à morte de Francisco. Como poderia fazer algo? Não viu o futuro. Não via o futuro de seu povo nem o seu. Sua família não queria que ela adivinhasse o futuro dos outros. Diziam que era amaldiçoada, no entanto a condenaram por não impedir a morte do pai da família. Passado o luto, a família se reuniu e a expulsaram. No começo foi medonho. Sentiase impotente e desprezada. De fato, pensou a princípio que realmente era uma das culpadas. A maldição de prever o futuro como sua prima falou. E a outra de não querer proteger a família. Se for pra ser amaldiçoada que fosse, mas longe, longe de todos. Saiu caminhando lembrando aquela mulher. Não era uma simples mulher. Não poderia ser. Sentiu uma presença não humana. Sentiu uma energia sobrenatural. Pensou já tê-la visto. Lembrou dos sonhos. Os sonhos não falavam muito. Tudo era coberto por uma nuvem, Nascimento

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que embaralhava seus pensamentos na compreensão. Teve ódio de si mesma. Porque lembrava tudo quando o mau presságio era em relação a terceiros que não conhecia. Pensou... Pensou... Decidiu descansar... Não sabia onde estava. Tinha caminhado tanto que perdera o senso de localização. Olhou para a direita da rodovia e viu um casebre. Tinha cobertura. Tudo bem, estava quase destruído. Era horrível, mas não podia reclamar. Estava precisando descansar. Foi aí que percebeu que não estava com sua sacola. Agora não iria voltar. Agora era hora de descansar. Era justamente isto que faria. A noite não foi das melhores. Quando entrou naquela casa, se é que podia chamar de casa, empurrou a porta e viu que o lugar não era dos mais limpos. Não podia rejeitar. Afastou o lixo com os pés. Olhou as paredes esburacadas, o teto cheio de buracos. Afastou novamente algumas coisas que pareciam lixo e pedra com os pés e despencou. Deitou-se como quem se aconchega na melhor cama do mundo e dormiu. Estava agora no meio da mata. Lembrou que conhecia aquele lugar. Não lembrou que sonhara. Lembrou que já estivera lá. Desta vez a mata não fechou. Sentia vontade de andar. Sentiu um cheiro que invadia a alma provocando uma sensação deliciosa. Olhou o céu. Procurou estrelas; não havia. Procurou a lua: não estava lá. Baixou a cabeça e viu um caminho. Seus olhos não conseguiam enxergar o fim. Esfregou os olhos com as duas mãos. Procurou alguma coisa. Não sabia o que era. Começou a caminhar. A mata parecia abrir para que caminhasse. Suas passadas foram aumentando gradativamente. Sentiu que 110 | Caipora - Comadre Fulozinha

acelerara o passo, no entanto não sabia por quê! Não estava com medo! Não vira nada até aquele momento. A única coisa de que não estava gostando era o silêncio. Silêncio que agora começava a incomodar. Não ouvia o cantar dos pássaros, tampouco o barulho dos grilos. Procurou sem notar a velocidade que estava caminhando, por algum animal, por mais pequenino que fosse. Agora estava apavorada. Não conseguia sequer escutar seus passos quebrando os galhos que deveriam estralar debaixo dos seus pés. Olhou para o céu. Não parecia escuro, tampouco era o céu da tarde. Agora corria. Um raio iluminou todo aquele lugar. Um barulho, como o estalar de um chicote, a despertou do desespero com tanta força que se assombrou e despencou, no seu pensar, em câmara lenta. Não imaginava como caíra tão devagar e não conseguiu se equilibrar. Estendeu-se no chão e escutou um rosnado. Não soube identificar que animal seria, no entanto não gostaria de vê-lo. Suas mãos pareciam arranhadas, mas não doíam. Sua roupa estava empoeirada. Colocou-se aos poucos de joelho. Todo aquele lugar foi sendo coberto por uma nuvem escura. Outra luz surgiu no céu e, em seguida, o estalar de outro chicote. De joelhos, olhou outra vez para o céu. Nada. Nada. Só aquela nuvem escura. Olhou ao seu redor e não viu mais nada. Quando um raio de luz aparecia é que via as árvores. Outro raio de luz. Outro estalar de chicote. Sentiu cheiro de terra molhada. Sentiu os pingos a açoitarem. Aquela nuvem agora estava se desmanchando. Sentiu o ventou empurrar seu rosto. Sentiu seu corpo molhado. Sentia frio e a pele ardia com a força da chuva em sua pele. Tentou gritar. Não conseguiu. Tentou se levantar. Foi inútil. Algo a fez deitar. A chuva se misturou com as lágrimas que escorriam Nascimento

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dos seus olhos. Rolou no chão como quem procura forças pra se levantar. Foi vencida. Encolheu-se como um feto e chorou que soluçou. Pensou em DEUS. Pensou em pedir ajuda... Quando Carlos entrou na cidade de Gravatá, tentou lembrar o nome do clube onde Armandinho estava tocando. Pensou que, quando visse a placa “Bem vindo a Gravatá”, lembraria. Sandra por sua vez quebrou o silêncio. - E aí? Estamos perto? Como é mesmo o nome do clube? – Perguntou Sandra. - Country Clube! Country Clube! – respondeu com ar de felicidade virando o rosto para ela. - Não acredito que você tinha esquecido o nome do clube! – falou Sandra, rindo e beliscando Carlos com a mão esquerda. - Não tinha esquecido. Só não lembrava. E daí eu lembrei quando você me perguntou – falou Carlos meio que envergonhado. - Quer dizer que, se não pergunto, você não lembraria? – Sorriu e bateu na cabeça de Carlos como quem bate numa porta. – Tem alguém aí? Sandra olhou para Carlos em seguida e apontou para uma placa que indicava o Country Clube a 500 metros. Abaixo da placa, havia uma faixa como os dizeres: “Antecipando o São João”. - É aqui! – Falou Carlos. - É claro que é aqui! – Respondeu Sandra rindo. Carlos, desde que fora morar em Bezerros, fizera 112 | Caipora - Comadre Fulozinha

várias viagens até Recife e não cansava de achar bonita a cidade de Gravatá. Não conseguia imaginar como um lugar daqueles tinha se transformado em um lugar de repouso e descanso para aqueles que tinham dinheiro. Falou pra si mesmo que, se casasse com Sandra, iria passar a lua de mel no melhor hotel que tivesse ali. Dobrou a esquerda e viu outra placa indicando a porta de entrada para estacionar no clube. Parou do lado de uma guarita e entregou um convite. O porteiro pediu a identidade. Anotou numa prancheta os dados de Carlos e a placa do veículo. Deu um sorriso e disse: - Seja bem-vindo, senhor. Espero que gostem e voltem sempre que quiserem. – Virou-se, apertou um botão verde, e o portão se abriu. Quando Carlos estacionou, dirigiu-se ao salão de festas e viu seu amigo e sua turma. Estavam tocando “Cidadão Comum”, de Flávio José. Carlos olhou para Sandra e foi pegando logo sua mão, como quem diz “Essa já tem dono”. Sandra o olhou e riu. Parecia ler seus pensamentos. Era o que Carlos pensava às vezes. O salão era enorme e, para entrar, tiveram que passar por um corredor. Não foram revistados. Nem precisava. Carlos percebeu que, mesmo cheio de enfeites, aquele corredor tinha detectores de metal. Sentiu-se protegido e passou como quem vence uma maratona. O corredor tinha uns dois metros. Quando chegaram ao fim, uma garota que aparentava uns vinte anos perguntou qual era a mesa deles. Carlos respondeu, e ela os acompanhou até a mesa reservada, que ficava ao lado do palco. A plateia parecia animada. O lugar transpirava Nascimento

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felicidade. Eram 20h quando Sandra olhou o relógio. Foi nesta hora que começaram a dançar o que só terminaria às 21h30min. Sandra parecia sentir cada palavra de cada poesia dos forrós que ouvia. Carlos, um momento e outro, teve a impressão de que Sandra iria chorar. Isso não aconteceu, no entanto a viu meio melancólica algumas vezes. Outros momentos, com um sorriso enorme no rosto, principalmente quando escutou: “... o que mais importa é amar, é paz...” (“Irreverência” – João Caetano). Dançaram e dançaram. Beijaram-se e se alisaram. Sandra nesse dia bebeu tudo a que tinha direito. Carlos, por vezes, teve vontade de lhe pedir que fosse com calma. Não o fez. Não queria acabar com aquele momento. Ela estava feliz e ele também. Passaram-se uns quinze minutos depois que a Banda Flor de Mandacaru terminou o show. Sandra e Carlos estavam ao lado do palco. Viram se aproximar da mesa uma turma grande. À frente vinha um rapaz que aparentava uns 18 anos. Carlos, quando viu Armandinho, se levantou e foi ao seu encontro de braços abertos. Armandinho retribuiu o gesto. Abraçaram-se demoradamente. Carlos puxou-o pela mão direita e foi ao encontro de Sandra. - É esse aqui o cara de que lhe falei. – Falou Carlos se dirigindo a Sandra, que foi logo se levantando. - Você está de parabéns! Digo, todos vocês! – Falou Sandra, estendendo a mão. Armandinho estendeu a mão, e Sandra a segurou 114 | Caipora - Comadre Fulozinha

por um espaço mínimo de tempo, mas que deixou Armandinho meio que sem jeito. Armandinho olhou para Carlos com quem fizera alguma coisa errada. Teve a impressão de que aquele aperto de mão durara mais do que o necessário. - É bondade sua! – Respondeu Armandinho sorrindo sem jeito. - Não! Não é bondade! Não sou bondosa a ponto de mentir. – Falou, agora séria. - Vamos. Sentem-se. – Falou Carlos apontando para a mesa. - Vão beber o quê? – Perguntou Sandra. - Vamos... - Já podem beber? – Perguntou Carlos antes de Armandinho responder. - E você não vai apresentar o resto da turma? – Perguntou Sandra a Armandinho. - Esse é meu irmão Pingo, que é o zabumbeiro. – Armandinho foi apresentando enquanto Sandra pegava na mão de cada membro da Banda, que iam logo se sentando. - Você não perde o jeito, não é, Armandinho? – perguntou Carlos rindo. A turma de Armandinho passou uns 20 minutos. Nessa noite, se bebiam não foi o que aparentou. Sequer Armandinho tomou um copo de refrigerante. Foram se levantando um a um e se dirigindo para mesa, quem sabe de parentes, amigos... Nascimento

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Armandinho achou Sandra linda. “Nossa, que mulher!” Repreendeu-se por estar prestando atenção demais na namorada de um amigo. O que mais lhe chamou a atenção foi o jeito. Não tinha conhecido até aquele momento mulher tão charmosa e feminina quanto Sandra. Ela parecia especial. Seu charme era diferente. Achou-a mais bela, pois estava meio embriagada. - Sou louca por música da terra. – Falou Sandra se dirigindo a Armandinho. - Não é por que toco! Acho que tenho no sangue! Aprendi com meu pai a gostar e não me arrependo. – Falou ele um momento olhando para Sandra, outro para Carlos. - Adorei seu convite, Armandinho! E deu tudo certo! Estamos indo pra Recife. – Falou Carlos ao mesmo tempo em que pegava na mão de Sandra. - Estou feliz porque vieram!

naquela noite. Talvez o que lhe chamasse a atenção fosse o chapéu de couro, o gibão, as sandálias ou até mesmo o fato de ser um artista. Artistas têm esse poder de envolver aqueles que estão ao seu lado. Quando o artista se senta à sua mesa ou pega na sua mão, é como receber uma divindade. - O Carlos falou que você é sismóloga e mora em São Paulo! O que faz tão longe de casa. – Perguntou Armandinho não com ar especulador, mas de boa vizinhança. - Acertou a primeira! Por enquanto estou morando em Caruaru. Vim fazer um estudo sobre os sismos. Essa é minha praia. – Respondeu Sandra. - Achei a história de vocês interessante. Carlos é agrônomo e morava no Rio de Janeiro. Você é sismóloga e mora morava em São Paulo. Pra quem não acredita em contos de fadas, este é um exemplo vivo.

- Onde foi que você achou essa gata? – Perguntou Armandinho, agora olhando para Carlos e rindo.

- Estou achando que você está sacaneando a gente. – Falou Carlos rindo.

- Não fui eu quem a achou. Foi ela quem me encontrou! – Respondeu Carlos rindo.

Quem estava no palco nesse momento era Flávio José, cantando “Cidadão Comum”, de Flávio Leandro.

Sandra deu um beliscão em Carlos, seguido de um sorriso.

Alguma coisa chamou a atenção de Sandra que seu aspecto mudou por frações de segundos. Armandinho olhou para Carlos. Pareceu que Carlos não prestou atenção em nada. Naquele pouco tempo que Armandinho olhou para Sandra, não gostou do que viu. Não pareceu ser aquele doce que até então conhecia. Não quis pensar e não iria se Sandra não chamasse sua atenção. Carlos fez menção que iria ao banheiro. Levantou-se, deu um beijo na testa de Sandra.

A música não estava tão alta. Nesse momento, a atração principal era o amigo Armandinho, e não a apresentação. Ele fez menção de beber. Arrependeu-se empurrando o copo. Sandra o olhava com aquele ar de fã. No entanto, não podia ser. Conhecera Armandinho e sua Banda 116 | Caipora - Comadre Fulozinha

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- O que procura tanto, Armandinho? – Perguntou Sandra, fitando-o.

de onde viera tanta força para interrogar aquela criatura. Sua voz parecia ser emitida de um túnel.

- Em relação a quê? Desculpe, não estava prestando atenção.

- Não vou lhe fazer mal. Gostei de você! Agora, se você não esquecer toda nossa conversa, vou ter que ir à sua procura. Nada vai me deter. Nada vai me deter. Você entende? – Falou no compasso que agora parecia uma melodia que ia invadindo seus pensamentos.

- O que você viu? Por que agora está querendo saber de onde sou, se já lhe disse. – Sandra fitou Armandinho com olhar interrogador. - Não estou entendendo o que você está falando, Sandra! – A voz de Armandinho saiu meio trêmula. - Você viu alguma coisa! Quero que me diga o que viu! Não minta! – agora a voz de Sandra era inquisitora. Seu olhar era desafiador. Algo dizia a Armandinho que aquilo não era uma mulher. Poderia ser qualquer coisa, menos uma mulher. Armandinho era católico. Não desses praticantes, mas era. Tinha suas crenças baseadas no catolicismo, e, como todo bom católico, cheio de superstições. Algo lhe pareceu estranho quando viu sua face debaixo da face. Agora era real. Olhou-a e sentiu um calafrio. Pensou que estava variando. Fantasmas não aparecem no meio da multidão. Sentiu certa vertigem. Pensou em DEUS. Começou a rezar o Pai Nosso... - Você está com medo de mim, Armandinho? Digame o que vê! Acho que você está se sentindo mal. Você deve estar cansado e com fome. Você não vai lembrar nada. Você me entende, Armandinho? – A voz de Sandra era gutural e compassada. - Quem é você? O que faz com meu amigo? De onde você veio? O que faz aqui? – Armandinho não sabia 118 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Não faça nada com ele. Não faça... Foi no meio da segunda frase que o pai de Armandinho chegou, batendo nas suas costas. Armandinho estava pálido. Seu pai percebeu que se não o balançasse, iria desmaiar. Segurou pelos ombros e balançou, balançou... - Armandinho? Armandinho? Fale o que você tem! Armandinho? - Nada! Nada! Nada! – Foi falando e levantando. - Meu filho, o que você tem? – Perguntou seu pai, ao mesmo tempo em que o segurou lhe dando equilíbrio. - Você está bem, Armandinho? – Perguntou desta vez Sandra. - Você está bem, cara? – Perguntou seu pai, com ar de preocupação. - Estou! Estou! – respondeu com voz de quem não está, e está em lugar nenhum. - Acho que está com fome! Sem contar que está muito quente. Não se preocupe, vou levá-lo para casa. Tudo foi tão rápido que não foi notado por ninguém. O barulho, a animação que envolvia o local também Nascimento

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contribuiu. Armandinho parecia embriagado. Seu pai o olhou com ar repreendedor, no entanto não disse nada. Olhou para os lados e saiu segurando disfarçadamente seu filho. Não disse uma palavra sequer para Sandra. Conhecia Carlos, porém não sabia que ela era a namorada dele, muito menos que se encontrava ali. Quando Armandinho e o pai foram embora, Carlos chegou. - Cadê o Armandinho? - Perguntou logo que foi chegando. - O pai dele apareceu e disse que teriam que ir embora, pois vão tocar amanhã cedo. Sem contar que ele estava muito cansado, disse o pai dele. Você também quase que não volta. – Falou Sandra, como quem pergunta onde ele estivera o tempo todo.

A chegada ao Hotel Plaza foi às 23h. Pararam na frente do hotel e foram recepcionados pelo manobrista. Dirigiram-se até a recepção e pegaram as chaves. Tudo foi mágico. Naquela sexta-feira ainda saíram. Foram a uma boate e dançaram. Desta vez, Carlos bebeu e ficou um pouco zonzo. Quando voltaram para o hotel, eram quase 5h. Carlos pensou que a melhor coisa foi ter deixado o carro. Tudo estava perfeito. Quando entraram no quarto, Sandra foi logo jogando os sapatos como quem chuta uma bola. O apartamento era lindo. Quando Carlos entrou, não acreditou no que viu. A cama ficava a uns cinco metros de distância da porta. Estava forrada...

- Tinha uma fila enorme. Quase não consigo entrar. Parece que todos inventaram de fazer a mesma coisa ao mesmo tempo.

Foi tirando a roupa aos poucos, como fazem as stripers. Carlos a olhava com olhos de desejo. Balançavase no compasso de Sandra. Sandra tirou o sutiã e arremessou, acertando sua cabeça. Ele segurou e beijou.

- Se você não tivesse demorado tanto, tinha se despedido dele. Espero que ele não fique chateado. Vamos embora! Chame o garçom e pague a conta. Sem contar que já é tarde. – foi falando e levantando ao mesmo tempo.

- Vamos! Se quiser me ver sem nada, vai ter de tirar. – Falou Sandra rindo e se balançando de um lado para o outro como quem pretende se esquivar caso ele tentasse pegá-la.

- Certo! Certo! Vou chamar o garçom. Pagaram a conta e seguiram viagem. Quando saíram, parecia que nada tinha acontecido. O nome de Armandinho nem foi citado. Sandra, por sua vez, olhou para a serra e falou para si mesma: “Ele não incomodar. Espero que não! Seria um desperdício”. Riu para o nada e pediu que Carlos colocasse Rita Lee. A primeira música foi “Doce Vampiro”. 120 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Com certeza vou tirar! – Riu e partiu para a caça. Acordaram no sábado às 10h, só porque o relógio despertou. O primeiro a se levantar foi Carlos, que tomou logo seu banho. Foi até a cama só de cueca e acordou Sandra com um beijo. - Vamos! Vamos! Acorde! A metade do sábado já está chegando. Se ficarmos no quarto, vamos perdê-lo. – Falou Carlos baixinho, alisando-a por cima do cobertor. Nascimento

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- Por quê? Não gostaria passar o sábado trancado no quarto comigo? – Falou ela ainda de olhos fechados e com voz sonolenta. - Não só um sábado, mas uma eternidade. Só que agora você vai se levantar, tomar banho, que vamos tomar café à beira mar. – Foi puxando o lençol e falando como quem ordena. Tudo foi extraordinário, foi o que Carlos pensou. A boate, a madrugada fazendo amor, o café da manhã, a praia, o almoço e novamente mais amor quando voltaram ao final da tarde.

Parte XVI

A Volta Da Viagem

Eram 18h30min quando Carlos terminou de tomar seu banho e Sandra entrou no banheiro. Estava calçando os sapatos, o celular tocou. Procurou por alguns minutos seguindo o toque. Pegou-o e olhou para ver quem era. Por alguns minutos pensou que fosse Antônio. Não! Não era Antônio! Era sua mãe! - Por que demorou tanto a atender? – Interrogou sua mãe antes que ele falasse qualquer coisa. Já passaram três meses desde que sua mãe ligara. Carlos, por sua vez, parecia ignorá-la. Da última vez, a desculpa foi o tempo, a correria. E agora, qual seria a nova desculpa? Pensou rápido no que diria. Nada veio à cabeça. - Ficou mudo? Não quer falar comigo? Está ocupado demais? Liguei pra fazenda e o Antônio disse que você estava em Recife com a namorada. Achei estranho. Por que você não falou? Ah, como vai falar alguma coisa, se tem três meses que conversamos e isso porque eu liguei? - Bênção, mãe! Tudo bem com a senhora? – Falou Carlos timidamente. - Deus o abençoe, meu filho! Por que você me esqueceu? O que fiz de tão ruim? – Sua voz agora parecia de quem está prestes a chorar.

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- Como vai? Eu estou bem! E o papai? Não vamos brigar. A senhora sabe que a amo. – Falou Carlos, tentando apaziguar o clima. - Como é que você acha que estou? Tenho um único filho e esse filho não me dá atenção. Como eu deveria estar? Responda-me! Como se não bastasse você ter me deixado sozinha, ainda esquece que tem mãe! – Agora a voz era de choro. Não um choro de mãe que não vê o filho há tempos, mas daquelas mães que querem o filho do seu lado sempre. - Mãe! Mãe! Mãe! Não chore! Por favor, não chore! A senhora está vendo? É por isso que não ligo! Não conseguimos conversar. Toda vez que falamos a senhora me acusa de tê-la deixado sozinha. Diz que eu não a amo. Culpa-me por não querer ser o que vocês planejaram pra mim. É por isso que não ligo! Pergunte como vou! Diga que me ama! É isso que quero que me diga. Vamos, agora pare de chorar! O silêncio incomodou Carlos. Não gostava de escutá-la falando sem parar. Dessa vez, ela se calou. Será que acertou a maneira de conversar com sua mãe ou a teria magoado o suficiente para fazê-la calar? - Perdoe-me, filho! Não consigo me acostumar sem você do meu lado. – A voz de sua mãe agora era calma.

Fez-se silêncio. Uma lágrima escorreu em ambas as faces no mesmo instante. - Como vai o pai? – Perguntou Carlos com voz de choro. - Está bem! E você, como está? - Bem! E a senhora? - Bem, meu filho! - O que a fez me ligar hoje? A senhora falou que ligou pra fazenda. Aconteceu alguma coisa? – Perguntou Carlos agora com voz de preocupação. - Não aconteceu nada! Pode ficar tranquilo! Está tudo bem! Estava com saudades de você e gostaria de saber como está. O Antônio falou que você estava com a namorada. É verdade? Está namorando? A moça é de boa família? Conheceu ela onde? - Pare! Se continuar perguntando não saberei responder a nenhuma das perguntas, pois já terei esquecido a primeira – falou Carlos rindo. - Eu sou uma velha tola. - Não! Não é! É igual a todas as mães!

- Desculpe-me! Sei que estou fazendo tudo errado.

- Filho? Está tudo bem com você? – Sua pergunta agora era de quem está preocupada.

- Não se desculpe, filho. Sei que anda muito ocupado.

- Claro que está, mãe! Está tudo indo muito bem. O que foi?

- Me perdoe! Não queria magoá-la! Te amo muito. Me perdoe! – Falou Carlos com um nó na garganta. 124 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Nada! Nada! - Vamos! Fale! O que foi que aconteceu? Nascimento

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- Sonhei com você e não gostei do sonho. Ainda não tinha sonhado. Daí fiquei preocupada – sua voz agora era de quem espera que o filho lhe diga que está acontecendo algo e confirme suas suspeitas. - Não! Não está acontecendo nada. Pode ficar tranquila. Entendeu? - Ainda bem. Vou acreditar em você. - A senhora não é de acreditar em sonhos. Não comece agora – Carlos pensou: “Essa é uma desculpa. Mas tudo bem!”

- Estava falando com quem? - Com minha mãe – respondeu Carlos pegando a toalha em cima da cama e se dirigindo até o banheiro. - Vai tomar banho outra vez? – Perguntou Sandra rindo. - Não! Vou! Estou com calor – respondeu Carlos sem para para olhar pra trás. Sandra o olhou se perguntando: “ O que será que a mãe dele queria?”

- Sonhei, filho, que você estava deitado, dormindo. No sonho, fiz de tudo para que acordasse, e você não acordou. Do seu lado, tinha uma mulher e um homem rindo sem parar. As gargalhadas eram de deixar qualquer um louco. Tentei tirá-los de perto de você e não consegui. Terminei acordando suada e tremendo. Seu pai até se assustou. - Mãe. Sonhos são apenas sonhos. A senhora só está preocupada comigo. Daí o sonho. - Ainda bem que não está acontecendo nada – falou com voz de quem acredita. - Vou ter de desligar. Quando chegar em casa, ligo pra senhora. Um beijo. - Outro, meu filho. Cuidado com a estrada. Dizem que aí no Nordeste o povo dirige muito ruim. O sorriso aflorou no rosto de Carlos. “Sim! Essa era sua mãe. Agora está tudo bem.” O silêncio se fez no mesmo instante em que Sandra entrou. 126 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte XVII

Reencontrando A Cigana

- Débito! – Respondeu Carlos olhando para o bombeiro. - O senhor vai querer que coloque quanto de óleo? - Quero que complete! – Respondeu Carlos.

Saíram do apartamento às 20h. Carlos parecia um pouco preocupado. Sandra achou melhor não falar nada. Pegaram o elevador e foram recepcionados por uma ascensorista com um boa-noite sorridente. Carlos pareceu não escutar o boa-noite, muito menos ver o sorriso da moça, que esbanjava uma dentadura perfeita. Dirigiramse até a recepção e Carlos pagou a conta. O rapaz da recepção pegou o telefone, discando para a garagem e pedindo que trouxessem o carro do cliente, que estaria esperando em frente ao hotel. Perguntou se Carlos fora bem atendido. Ficou até um pouco constrangido, até que Sandra agradeceu e lhe disse que tudo fora perfeito. Quando chegaram em frente ao hotel, o carro já estava lá. Carlos agradeceu ao manobrista e lhe desejou boa noite. O manobrista fez menção de perguntar se estava tudo bem, mas não o fez. Achou melhor ficar calado. Quando iam saindo de Gravatá, Carlos deu seta e parou em um posto de gasolina, se dirigindo à bomba de óleo diesel. Olhou para o bombeiro e pediu que completasse o tanque. Virou-se, pegou a carteira no portaluvas e saiu em direção ao bombeiro, tirando o cartão de crédito. - Vai ser débito ou crédito, senhor? – Perguntou o bombeiro estendendo a mão para pegar o cartão. 128 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Infelizmente só colocamos o combustível depois que passamos o cartão. Perdoe-me, mas é norma da casa. – Respondeu o bombeiro, meio que chateado. - Não se preocupe. Se não passar, tenho dinheiro. Complete, por favor. – Falou Carlos o tranquilizando. - Pois não, senhor! – Respondeu o bombeiro no mesmo tempo em que puxava a mangueira. - Vou à loja de conveniência. Volto logo! – Foi falando Carlos e saindo. Quando Carlos entrou na lojinha, notou a presença de uma mulher. Teve a impressão de tê-la visto antes. Pareceu-lhe que ela iria à sua direção quando um homem que imaginou ser o gerente da loja perguntou o que ela queria. Como não teve a resposta que gostaria, pegou-a pelo braço e foi conduzindo-a para a porta de saída. A mulher se vestia como cigana, foi o que Carlos observou a princípio. Pensou que, se ele não a tirasse dali, ou ela iria ficar pedindo o troco dos clientes ou talvez roubasse alguma coisa. A cigana não falou nada da escolta, só jogou o braço para trás, como que diz “me solte”, e foi justamente o que o gerente fez: soltou-a. A lojinha era aconchegante, e os produtos estavam expostos em prateleiras com quatro andares. Acima dos produtos, placas identificando o que se poderia encontrar logo abaixo. Parecia ter de tudo, foi o que Carlos percebeu Nascimento

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lendo o que estava escrito nas placas. Sua procura acabou quando viu uma placa indicando: “Doces variados”. Pegou chicletes e salgadinhos. Dirigiu-se até o caixa, que ficava junto à porta de saída.

lo. O quarto, poderia ser uma ladra. Parou e disse para si mesmo que não deveria dar carona. Era como andar com estranhos ou aceitar doces. Nessa hora, lembrou os conselhos de sua mãe quando era pequeno.

- Boa-noite, senhor! – Cumprimentou a moça do caixa.

- Não! Não! Não a conheço e estou acompanhado. Minha namorada iria perguntar de onde a conheço. Se quiser, posso cooperar com sua passagem – foi colocando a mão no bolso quando sentiu que alguém estava segurando seu ombro. Olhou para trás e viu Sandra.

- Boa-noite! – Respondeu Carlos olhando para fora em direção à cigana. - Mais alguma coisa? - Não! Obrigado. - Agradecemos e esperamos que volte sempre! Quando Carlos saiu da loja, aquela cigana atravessou na sua frente. Olhou-o de cima para baixo, estendendo a mão. Carlos olhou para o outro lado procurando Sandra, que estava sentada dentro do carro. Voltou-se e foi colocando a mão no bolso, à procura de algumas moedas. - Não! Não! Não quero seu dinheiro! – Falou a cigana ao perceber que ele iria lhe dar esmolas. - Então o que você quer? Pode sair da frente? – Pediu ele, meio atrapalhado. Pensou que ela iria pedir para ler suas mãos. Seria ridículo, até porque ele não acreditava nessas coisas. - Pode me dar um carona até Caruaru? – Perguntoulhe a cigana. O primeiro pensamento foi como ela sabia que ele estava indo para Caruaru. O segundo foi porque no meio de tantos carros que passaram por ali, o dele foi justamente o escolhido. O terceiro, que Sandra iria odiá130 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Está falando sozinho? – Perguntou Sandra. - Não! Não! Estou... – e foi virando de encontro à cigana com quem estava conversando. Quando Carlos procurou aquela mulher que estava pedindo carona, não viu nada. Pareceu meio enjoado. Olhou para os lados e nada. Perseguiu com os olhos tudo ao seu redor e dentro da lojinha, e nada. Quis por alguns minutos falar alguma coisa. Não saiu nada. Pensou em perguntar ao gerente, mas não o fez. - Não! Não estou falando sozinho. Só fiz resmungar – olhou para Sandra falando e pegando na sua mão. - Você demorou bastante! Pensei que tinha se perdido – ela seguiu falando e andando como quem é puxada. Mais uma vez, o silêncio tomou conta. Carlos foi ao encontro do bombeiro, que já estava impaciente com tamanha demora. Pegou o cupom fiscal, nota e assinou no comprovante de compra. Entraram no carro e chegaram à fazenda sem sequer trocar uma palavra. Quando Carlos chegou à frente da porteira, percebeu que Sandra estava dormindo. Entrou e foi em direção ao terreiro da casa. Nascimento

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Parou o carro. Olhou ao redor e viu que Antônio estava sentado na cadeira de balanço na varanda. - Sandra! Sandra! Chegamos. Vamos, acorda! – Falou Carlos, balançando-a com todo cuidado.

Parte XVIII

Certeza Do Amor

- Maria, Maria, eles chegaram! – Falou Antônio se levantando. - Chegamos? – Perguntou Sandra, sonolenta. - Chegamos! Maria saiu e se dirigiu ao encontro de Sandra, que parecia balançar. Pegou sua mão e deu boa noite. Enquanto Sandra era levada para dentro de casa, Carlos foi estacionar. Antônio foi ao encontro de Carlos na hora em que ele ia entrando e perguntou se sua mãe tinha ligado. Ele respondeu que não balançando a cabeça. Antônio não quis estender a conversa, logo que percebeu que o aspecto de Carlos não era dos melhores. Antes de Maria apagar as luzes da cozinha, perguntou se Carlos queria alguma coisa. A essa altura Sandra já estava no quarto dormindo. Carlos sempre dava atenção até demais a Sandra, percebia Maria. Nesse dia não deu, ela também não quis comentar nada.

Foi tudo perfeito. Carlos e Sandra nunca discutiam. Mesmo sabendo o que deveria fazer, Sandra terminou esquecendo. Esqueceu o pacto que fizera com Lúcifer, o que jamais poderia esquecer. Esqueceu que o corpo que habitava não era seu. As viagens! O dia a dia com Carlos. Ele estava apaixonado por ela. Ele era perfeito. Sentia-se como humana. Mesmo sabendo que Carlos não sabia de nada, Sandra se envolveu. Jamais conhecera o amor daquele jeito. Sabia que não era igual a Carlos. DEUS lhe prometera a eternidade, desde que cumprisse seu destino. Não estava mais pensando como outrora. Agora só gostaria de ficar com seu grande amor. Lembrava o dia do pacto. Lembrava que aquele com quem fizera um acordo iria cobrá-la. Mais uma vez fez tudo errado. Estar em Bezerros ou Caruaru não era novidade. Tomava café em Caruaru, almoçava em Bezerros. Sandra já parecia ser da casa. Maria sentia-se algumas vezes incomodada com a presença de outra mulher em casa, no

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entanto gostava de ver Carlos feliz. Estava sentada assistindo a desenho animado e ria feito criança. Por vezes, sua gargalhada podia-se escutar quando o silêncio dos carros abandonava a rua. Estava feliz, disse pra si mesma. Não queria e não iria deixar que seu passado a incomodasse. Levantou-se e se dirigiu até a cozinha. Sentiu uma pontada no estômago reclamando por alguma coisa. Olhou para a barriga e riu, estava com fome. Era bom sentir fome e era saboroso comer aquilo de que gostava. Quando abriu a geladeira, sentiu-se estranha. Fechou e abriu os olhos tentando centrar a visão. Uma nuvem branca tomava conta de todo o interior da geladeira. Achou estranho. Fechou os olhos novamente e, quando os abriu, uma luz surgiu, transformando aquela nuvem no interior da geladeira num cenário de guerra. Sim, pensou! Foi ali que tudo começou. Um anjo empunhava uma espada reclamando igualdade. Ele não queria ser simplesmente um anjo. Ele não queria servir aos homens. Uma voz como a de mil trovões escoou o repreendendo. Lúcifer levantou a espada desafiando DEUS. Ela estava atrás com os outros que abraçaram a rebelião. Eles não sabiam que não haveria vitória. Lúcifer gritou e sua dor foi sentida por todos. A luz que o envolvia desapareceu e uma escuridão o tomou. Outro grito seguido de um fogo que brotava de dentro. Quando lúcifer gritou novamente, fogo saiu de sua boca. Já não era mais sua voz. 134 | Caipora - Comadre Fulozinha

O céu escureceu e todos foram arremessados em direção à Terra. Gemidos de dor se ouviam de todos os lados. A luz de cada um que despencava sumira, só deixando escuridão. Viu quando se chocou contra o chão. Lembrou que não sentiu dor, e sim um vazio enorme. Implorou pedindo perdão. Estava sozinha. Lúcifer pareceu maior do que era quando despencaram. Olhou ao redor para ver aqueles que o acompanharam. Baixou a cabeça. Apontou para o chão que se abriu e mergulhou. Muitos mergulharam junto com ele, sem saberem que iriam para o inferno, o novo reino de Lúcifer. Ela ficou, deixando seu amor ir embora. Fechou novamente os olhos e, com a mão direita, procurou a porta da geladeira e a fechou com toda força. - Não! Não! Eu estou amando novamente. Não quero ver o que se foi. Quero ficar aqui! Esse é o meu lugar! – Gritou com ódio nos olhos. Caiu de joelhos. Seus olhos se fecharam. Deitouse devagar. Agora seu aspecto era de alegria. Pareceu sorrir por alguns segundos. Sim, estava feliz. Lembrou com prazer da primeira vez que fez amor com Carlos. Ele parecia uma criança nos seus braços pedindo que o acolhesse, e foi justamente o que ela fez. Sentiu uma pontada na barriga. Abriu os olhos para ver o que era. Não havia nada furando. Outra e mais outra. Sentiu algo escorrer pela perna. Virou para olhar. Era sangue! Nascimento

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Parte XIX

Visita Indesejada

Naquele dia tudo pareceu dar errado. Seu pai tinha ligado às 6h e cobrado a tese do doutorado cuja entrega ela já prorrogara por duas vezes. Duas amigas ligaram, uma após a outra, depois da conversa que tivera com seu pai. Por volta das 8h seu orientador ligou cobrando o que já deveria ter entregado. O pior era conversar sobre a tese, pois não tinha nada feito. Como se não bastasse toda cobrança, ainda estava menstruada. Essa era uma coisa a que ainda não estava acostumada. O corpo respondia à própria natureza feminina e, mesmo se sentindo mulher, não gostava. O pior é que não conseguia dominar seus sentimentos. Naqueles dias, o conflito era enorme até para quem já fora um anjo. Aquele porteiro já a estava irritando. Toda vez que passava lhe soltava indiretas. Quando acabou de falar com seu orientador, estava na frente do portão social do prédio onde morava. Estava chegando de uma caminhada. - Bom-dia, dona Sandra! – Falou o porteiro. - Bom dia! – Respondeu Sandra. - A caminhada foi boa? Sandra não respondeu, simplesmente ignorou-o, parou esperando que ele abrisse a porta. Nascimento

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O porteiro era acostumado a ficar com algumas domésticas do prédio. Nesse dia, algo que já sentia o inspirou. Sandra o olhou como quem não está para conversas. Fitou o portão esperando que abrisse. Isso não aconteceu. - O senhor vai ou não vai abrir esta merda? - Desculpe-me, dona Sandra! – Respondeu o porteiro como quem já esperava a reação. Olhou-a de baixo para cima, moveu a mão tocando no botão. Houve um estalo e o portão se abriu. Os olhos de Sandra o metralharam quando passou na frente da porta da guarita. O sangue que subiu para cabeça foi visível nos olhos. Desistiu de passar. Parou, olhou para trás e voltou. - O senhor gosta muito de conversar, correto? – Perguntou Sandra com voz de boa vizinhança. - Às vezes me sinto só, quando tenho com quem conversar me empolgo. Desculpe-me por não ter aberto o portão logo. – Foi-se explicando o porteiro, com ar galanteador. - O que você gostaria de escutar? Os olhos do porteiro brilharam. Ele a olhou como quem diz, “E agora, otário, só eu e ela”. Procurou palavras no seu curto dicionário para impressionar. O nervosismo foi aparente na sua face, que deixava um pingo de suor frio escorrer. Respirou fundo, disfarçadamente. Virou-se, esfregou a testa e olhou novamente para Sandra. - O que a senhora vai fazer à noite? – Perguntou trêmulo. 138 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Nada! Nada! Não tenho nada em mente. Talvez, quem sabe... Talvez apareça o que fazer. Sandra o olhou com ar de sedução. Seus olhos pareciam devorá-lo. Pensou: “Nojento, hoje você me paga todas as graças e pensamentos imundos”. O porteiro a olhou novamente, desta vez com segurança do que iria falar. Pensou nas palavras. Repreendeu-se, justificando que ela já estava na sua, não precisava mais enfeitar. - Posso ir ao seu apartamento depois que sair? É claro, se a senhora quiser! - Não me chame de senhora! Basta Sandra! Certo? - Tudo bem, Sandra! Posso ir ao seu apartamento quando sair? Sua expressão agora era de vencedor. Não tremia mais. Agora estava excitado, e Sandra sentiu o cheiro em suas narinas. Olhou para um lado e outro tentando disfarçar seu repúdio pelo desejo daquele “merda”. Já ele agora a olhava como uma presa dominada, prestes a ser devorada. E o devorador era ele. Ele é quem iria ficar com aquela gostosa. - Vou esperar você! Só peço que não fale pra ninguém. É um segredo nosso, certo? Se alguém lhe perguntar alguma coisa caso o veja entrando e saindo do meu apartamento, diga que pedi que trocasse a resistência do banheiro, certo? - Claro, Sandra! A quem pode interessar? A ninguém! Tá feito! - Antes de você subir, gostaria que pegasse uma Nascimento

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garrafa de vinho tinto. Pode fazer isso? – Perguntou Sandra o fitando.

aquela companhia. A única coisa que a estava deixando preocupada era o fato de estar falando consigo mesma.

- Deixe comigo! Estarei lá às 7h30min. Tá bem pra você? – Perguntou todo sorridente.

- Estou com vontade de beijá-la! – Falou aquela mulher ao seu lado.

- Está ótimo! Estou esperando. Aquele dia parecia que não iria acabar para César. Quem o viu até estranhou. Estava sorridente e tratando todos com uma educação jamais vista. Esqueceu nesse dia até de azarar as mulheres a que estava acostumado. Quando estava saindo para o almoço, uma das domésticas do prédio o abordou; desta vez ele não deu nenhuma atenção. A pobre moça, que pensava estar namorando-o, saiu toda sem jeito e triste. Voltou do almoço e perguntou se Sandra tinha saído. O zelador respondeu que não e disse que ele tivesse cuidado, que os moradores já estavam comentando que ele era enxerido.

- Não, estou dirigindo! Foi justamente logo após Sandra responder que ela própria a abraçou e a beijou. Sem perceber, já estava sendo acolhida com os lábios da sua cópia em seu rosto. Virouse e a olhou. Foi quando escutou um grito de desespero. - Não!

- Você sabe que, quando estou dirigindo, não gosto de falar. Até porque já é noite. Não estou acostumada a dirigir no escuro. Só estou porque você falou que estava indisposta. – respondeu ela pra si mesma.

Quando Sandra olhou, viu um animal que parecia um boi bater de frente com o carro. Neste momento acordou. Eram 15h. Estava suada. Olhou de um lado para o outro e o que viu foram paredes. Não gostou, estava acostumada ao mato, à natureza. Não se lembrava de suar. Lembrava, sim, de correr e correr. Resolveu tomar um banho e voltar para cama. Foi justamente o que fez. Não sonhou mais. Quando o relógio despertou, eram 19h. Levantouse. Olhou novamente as paredes. Sentiu angústia. Teve vontade de chorar. Espantou-se consigo mesma. Não conhecia esse sentimento e vontade. Lembrou-se de ter marcado com o porteiro. Encheu-se de ódio. Ele deveria estar saindo justamente agora. Levantou-se meio desajeitada, como quem está grogue. Dirigiu-se para a janela e viu que ele se dirigia ao supermercado. Iria comprar o vinho, pensou. Deitou-se novamente numa posição fetal. Fechou os olhos e começou a falar.

A estrada parecia chamá-la à velocidade, e foi justamente o que ela fez. A noite estava iluminada. Sandra estava gostando de estar ali. Sentia-se bem com

- Eis que reclamo neste momento minha essência. Eis que reclamo nesse momento minha essência. Eis que reclamo nesse momento minha essência.

Sandra passou a manhã toda em casa, não estava se sentindo bem. Desde a hora que voltara fora dormir. Só acordou depois de ter tido um pesadelo. Sonhou na direção de um carro numa estrada escura e, do lado, a mulher que lhe sorria era ela mesma. - Por que você não ri para mim? – Perguntou a mulher que estava do seu lado.

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Abriu agora seus olhos, que mais pareciam tochas de fogo. O quarto estava escuro. O ventou tentava se esquivar da janela, no entanto entrou e soprou seus cabelos longos. - Senhor das trevas, que me deste o poder de andar entre os vivos, peço que me dê o poder para que saia desse corpo e possa voltar. Senhor das trevas, que me deste o poder de andar entre os vivos, peço que me dê o poder para que saia desse corpo e possa voltar. Senhor das trevas, que me deste o poder de andar entre os vivos, peço que me dê o poder para que saia desse corpo e possa voltar. Uma nuvem negra surgiu ao seu redor a envolvendo. Uma voz de criança surgiu no meio da fumaça. - Quero sair agora! Vou sair agora! Estou saindo agora! A cama estremeceu. A fumaça foi tomando forma de duas garras. Uma fumaça foi surgindo debaixo da cama e a suspendendo. As garras a pegaram como quem quer esticar uma massa, nesse caso humana. Seu corpo flutuou e ela deu um grito quando seu espírito foi arrancado e atirado no chão. Seu aspecto era de criança. Branca, magricela, com cabelos encaracolados e assanhados. Levantou-se rindo como criança traquina. Olhou para a janela, fez carreira e se jogou. O aspecto de criança foi desaparecendo conforme ia caindo, transformando-se numa águia. Não era uma águia comum. Parecia de fumaça. Bateu as asas e olhou para o céu, voando em direção ao porteiro. César sorria para os quatro cantos. Quando entrou 142 | Caipora - Comadre Fulozinha

no supermercado, esqueceu até de dar boa-noite aqueles que o conheciam. Parecia encantado. O único pensamento era Sandra. Ela o estava esperando. Ele deveria comprar o vinho que ela pediu. Dirigiu-se ao setor de bebidas. Pensou em tomar um bom vinho. Com certeza ela iria gostar. Postou-se diante da prateleira onde estavam os vinhos. Pegou um branco. Devolveu-o e disse pra si mesmo que o que cairia bem seria um tinto. Daí lembrou que foi justamente o que ela pedira. Seus olhos pareciam congelados. Naquele momento nada interessava, a não ser o fato de que logo estaria nos braços daquela gostosa. Pensou em comprar alguma coisa para comerem. Desistiu. Lembrou que Sandra pedira só o vinho. O que comer com certeza ela teria em casa. Se não tivesse, não era pra comer que ele estaria lá. Saiu do setor de bebidas rindo para o nada. Foi caminhando como quem está com pressa para o caixa. Olhou para ver o caixa com menos pessoas. Sabia que tinha um exclusivo para poucos volumes, e isso não o faria demorar. - Boa-noite, César! – Foi falando a moça do caixa. – Vai ter festa hoje? A garota do caixa não teve resposta. César a olhou com certo desprezo. Puxou a carteira do bolso, tirou uma nota e pagou. Esperou o troco. Quando ia atravessando a rua, viu uma criança acocorada bem no meio da rua. Parou, olhou e achou estranho. A menina estava descalça. Olhou novamente ao redor pra ver se tinha alguém com ela. Não viu ninguém. Foi caminhando em direção à criança e, logo que chegou próximo, foi perguntando o que ela fazia ali. - O que você faz no meio da rua? Cadê seus pais? Nascimento

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Você não pode ficar aí! – Falou como quem chama a atenção. - Estou brincando! – Respondeu rindo para César, sem lhe dar muita atenção. Quando César atravessou a rua, ela estava clara. Nesse momento olhou ao seu redor e percebeu que nunca tinha visto aquele lugar tão escuro. Olhou novamente para a menina. Achou estranho. Nunca tinha visto aquela garotinha por ali. - Você não pode ficar no meio da rua. Está escuro e você pode ser atropelada. - Moro naquele prédio! – Apontou a garotinha para o nada. César procurou ver com o que ela estava brincando. Não conseguiu, estava escuro. Olhou para o céu e não encontrou uma estrela. Pensou o que estaria fazendo ali. Sandra o estava esperando. Não gostaria de chegar atrasado. Olhou novamente para a menina. - Vamos! Diga-me qual é o prédio em que você mora. Vou levá-la pra casa – foi falando e estendendo a mão. A menina levantou-se e pegou na mão de César. Riu e apontou novamente para o nada. - Vou deixá-la em casa – falou ele com ar de preocupação. - Mamãe falou que não aceitasse a ajuda de estranhos. - Não sou estranho. Trabalho naquele prédio, sem contar que você não pode ficar aqui sozinha. Vamos, me 144 | Caipora - Comadre Fulozinha

mostre onde você mora. Estou com pressa. César sentiu como que um puxão. Algo o estava arrastando. Procurou ver ou sentir o que o arrastava. Não viu. Teve a impressão de que estava correndo e verdadeiramente estava. A rua pareceu-lhe mais escura e estranha. O claro das lâmpadas foi ficando para trás. Tentou, tentou em vão se soltar daquilo que o segurava, mas como se soltar se não sabia o que o puxava? O medo e o pavor tomaram de conta dele. Pediu ao nada que o soltasse. Não estava mais conhecendo o lugar onde estava. Sentiu que o asfalto já não estava debaixo dos seus pés, sentia pisar terra e pedras. Olhou para cima e sentiu um calafrio. Não estava mais no bairro Maurício de Nassau. Estava no meio da mata. As árvores cobriam metade do céu. A outra metade era coberta pelas nuvens. Tropeçou e caiu. Levantou-se imediatamente. Olhou ao redor e gritou. - Meu Deus, onde estou? Meu Deus, o que está acontecendo? Parou olhando ao seu redor. Não via nada, a não ser árvores. Procurou ver uma estrada, não viu. O que viu foi a garotinha a uns 10 metros de distância, rindo. Um assovio começou do nada, suave. Foi aumentando proporcionalmente. Começou a sentir que aquele barulho machucava seus tímpanos. Levou as mãos à cabeça, tentando abafar o assovio que sentia rasgar seu cérebro. Perdeu o equilíbrio, balançou como quem baila antes de cair. Caiu de joelhos e escutou um estalo próximo. Mesmo desesperado, tentando em vão tapar os ouvidos e se livrar do barulho ensurdecedor, escutou novamente outro estalo, seguido de uma gargalhada. O assovio Nascimento

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pareceu baixar, no entanto a gargalhada seguinte veio seguida de uma chicotada que o acertou nas costas. Deu um berro e contorceu-se, como quem está sendo chicoteado por navalhas. Outra chicotada o acertou, desta vez no rosto, fazendo-o levar as mãos à face. Tentou levantar novamente, não conseguiu, pois levou outra chicotada nas costas. Esta pareceu doer muito mais que as anteriores. Começou a chorar de joelhos. As chicotadas cessaram. As gargalhadas e os assovios pararam. A chuva começou a cair. Sentiu um breve alívio. Olhou ao seu redor procurando desesperadamente um caminho. Não achou. Resolveu correr. Tinha de sair dali de qualquer jeito. Levantou-se e começou a correr. Embrenhou-se na mata, correndo desesperadamente. Olhou para trás e via aquela criança que parecia tão inofensiva flutuando em sua direção e dando gargalhadas. Foi aí que descobriu de onde vinham e que o estava chicoteando. Aquela criança estava com coisas que pareciam cordas, só que, quando batiam em suas costas, queimavam e ardiam. Era urtiga, pensou. Sentiu mais uma chicotada. Conhecia aquele lugar. Já estivera ali fazia algum tempo. Não podia ser, pensou desesperado. Não ali. Escutou um estalo. Tentou se esquivar. Outra chicotada, que o fez despencar no chão. - O que você quer de mim? Quem é você? Deixeme em paz! – Sua voz saia rouca e chorosa. Começou a engatinhar sem saber qual direção tomar. Estava todo molhado. Suas mãos enlameadas. Parecia um cachorro tentando morder seu próprio rabo. - Socorro! Alguém me ajude! Socorro! Socorro! Alguém me ajude. Sua voz já fraca parecia abafada no meio da mata. 146 | Caipora - Comadre Fulozinha

No céu, um clarão se fez. Um raio cortou as nuvens. A mata por instantes foi iluminada. Parecia dia. Mas o dia precisa do sol. A escuridão voltou. Outra chicotada e outra e outra e outra. Agora se arrastava como um verme sem forças para andar sequer de joelhos. A lama o fazia patinar como um carro no atoleiro. - O que você quer de mim? Quem é você? Por favor, me deixe! – Pediu num sussurro. Olhou para cima e viu a menina que o observava tranquilamente. Ela o olhava como quem já cansou de brincar e está na hora de ir embora. Olhou-a nos olhos. Teve a impressão de serem verdes. Seus cabelos agora estavam molhados, no entanto dava para ver que eram encaracolados. - Por favor, me deixe! – Pediu César desesperado e quase sem fala. - Você ainda quer a cadela? – Perguntou aquela criança rindo. - O quê? - Você ainda quer a cadela? Você ainda quer a cadela? Você ainda quer a cadela? Você ainda quer a cadela? – Perguntava cantando as frases como música de roda. Seu aspecto infantil se transformou em medonho. Seus olhos, que pareciam verdes, agora eram vermelhos e brilhavam como tochas. Suas mãos pequenas transformaram-se em garras. César agora chorava desesperado. Ela foi baixando e o pegou pela perna esquerda e o saiu arrastando para dentro da mata. Parou! Olhou para cima e gritou. Nascimento

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- Venham, minhas filhas! Sua mãe as ordena. Venham! Cipós começaram a descer na direção de César, que não tinha mais forças sequer para se arrastar. Os cipós começaram a se enrolar em seu pescoço. Tentou em vão se soltar. Não tinha mais forças. Foi ficando sem ar. Tentava segurar os cipós para não se sufocar. - Subam minhas filhas! Subam! Sua mãe as ordena. Pendurem-no! Pendurem-no! – Sua voz saia em gargalhadas. Os cipós começaram a puxá-lo para cima. Segurou os cipós que estavam o sufocando. Foi sendo guinchado para cima. Agora já estava de pé, chutando e se balançando freneticamente, desesperado, tentando se soltar. Agora estava flutuando, se balançando de um lado para outro. Esperneou, esperneou, esperneou até que se fez silêncio. A chuva parou. Um raio cortou o céu mais uma vez. Agora estava sem vida, de olhos esbugalhados, enforcado, pendurado por cipós no meio da mata da reserva de Serra dos Cavalos. Olhou-o e riu! Transformou-se novamente em uma águia e voou. Quando entrou pela janela do apartamento e pousou em cima do corpo de Sandra, teve uma surpresa. Lúcifer estava sentado em sua cadeira com os pés na escrivaninha. Bateu as asas e transformou-se na sua forma original. - Olá! O que você estava fazendo? Não responda! Imagino! Você invocou meu poder – falou Lúcifer se levantando. Seu rosto era conhecido, no entanto seu aspecto não 148 | Caipora - Comadre Fulozinha

era o mesmo que ele vira da última vez. Sentiu prazer. Gostava do gosto de sangue no olhar. Como ela conseguiu permissão para mandar aquele idiota para o inferno para perto dele. Ela se dirigiu ao encontro do corpo deitado na cama. - Pare! Quero falar com você antes – falou, segurando-a pelo braço esquerdo. - Não posso demorar. Foi você quem disse que não poderia ficar muito tempo fora do corpo dela – falou empurrando o braço dele. - Mandei que parasse! – Sua voz era autoritária. - Por que não conversamos quando já estiver no meu lugar? Tenho a noite toda! – Falou e tocou no corpo que estava paralisado. Nesse momento, o telefone tocou. Talvez fosse seu pai, Carlos, seu professor ou qualquer outro idiota. Não ficou com raiva; pelo contrário, achou ótimo. - Tenho que atender ao telefone e não posso do jeito que estou – falou se soltando. - Certo! – Respondeu achando graça na inocência dela. Levantou as mãos. Balançou-as cruzando o corpo que estava à sua frente. Baixou os braços e cobriu os olhos com as mãos. Seu aspecto de mulher foi se dissolvendo, transformando-se em fumaça que pairou sobre o corpo, invadindo-o. Abriu os olhos e o corpo despencou sobre a cama. Abriu os olhos, contorcendo-se de dor. Sentia as entranhas de Sandra a sufocar. Não conseguia respirar. Parecia que o coração estava parado. Lúcifer estendeu Nascimento

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sua mão sobre ela e a dor que sentia cessou. - Levante-se, quero falar com você. Mas antes atenda a essa merda de telefone – falou fitando-a. - Certo! Vou atender! - Alô, meu amor! Desculpe-me estava tomando banho – falou Sandra ao telefone. - Não é a primeira vez que telefono! Não acredito que passou tanto tempo no banho – falou Carlos do outro lado, com voz que quem está chateado. - Vi que você tinha ligado. Fui ao mercado e esqueci o telefone. Pensei em ligar depois de tomar banho. Quando ia ligar, você ligou – respondeu Sandra, com voz de quem está se desculpando. - Não vou hoje aí, certo! Estou com um pouco de dor de cabeça e quero dormir cedo. Espero que você não fique chateada. Amanhã ligo e conversamos. - Certo, meu amor! Amanhã conversamos – respondeu Sandra, desligando quase que automático o telefone. Colocou o telefone na escrivaninha e olhou para trás. Lúcifer a estava fitando. Olhou-a e riu. - Você mente muito ruim. Ainda bem que cuidei dele antes pra você – falou, dirigindo-se ao seu encontro. - O que você quer dizer com isso? Lúcifer vez sinal de quem a manda calar, tocando seus lábios com a ponta do indicador direito. Aproximouse e a abraçou. Cheirou seus cabelos. Abraçou-a. Alisou suas nádegas com as duas mãos, que foram subindo até a cintura. Levantou a mão direita até o seu peito esquerdo. Apertou com delicadeza. 150 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Minha criança, falei que não poderia deixar o corpo! Lembra? – Sua voz era carinhosa, no entanto, repreendedora. - Não sei por que você me trata assim! Estava envolvida por ele. Não se sentia à vontade, precisava dele. Sentia ódio ainda. Não como sentira quando estava com César. Estava agora voltando ao mundo dos vivos. Parecia estranho, só que sua menstruação acabara. Sabia disso. Ficou feliz, só que ainda estava suja. Ele a envolveu um pouco mais com seus braços. Beijou sua testa, empurrando como quem espera um beijo. Ela sentiu desejo. Olhou ao redor e tudo parecia mágico. Ele soltou seus cabelos com as duas mãos. Segurou sua cabeça e a beijou. Ela sentiu um frio na barriga. Seus pelos ficaram eriçados. Suas pernas ficaram bambas. Sentiu vontade de cair. Deixar seu corpo cair ao chão e o fez. Ele a segurou nos braços, ainda colado à sua boca. Levou-a até a cama e a fez sentir um prazer que jamais sentira antes. Seus pensamentos eram medonhos. César gritava e ela gargalhava. Sentiu o ar sufocando quando Lucifer a penetrou. Sentiu dor quando ele a pegou por trás, puxando seus cabelos. Não sentia suas mãos, sentia algo a envolvendo, tomando conta não só do corpo, mas da sua alma. Tudo aconteceu de maneira que, quando ele Nascimento

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foi embora, sequer Sandra percebeu, simplesmente adormeceu num sonho profundo. Eram duas horas da madrugada quando Sandra acordou com uma voz chamando seu nome. Contorceu-se como quem sente dores, por alguém estar lhe arrancado as entranhas. Olhou ao redor, percebeu que estava sozinha. Ele já deveria ter ido embora, foi o que pensou. Sentiu ódio de si mesma. Não sabia explicar por que não gostou de ter ficado com ele, no entanto jamais conseguiria evitar aquilo. O seu poder era enorme e, agora que estava mais distante de Deus, estava vulnerável. Estava deitada na cama olhando para o teto quando escutou novamente a voz. - Vamos, caipora! Chegou a hora do começo do fim! – A voz parecia ecoar no seu cérebro, não entrava pelos tímpanos. - Quem é você? – Perguntou Sandra, olhando agora para dentro de si mesma como quem procura saber de quem era aquela voz. - Vamos, caipora! Vá ao encontro do destino daquele que a fez sofrer. Vá para a fazenda agora! – Ordenou a voz em sua cabeça. Os olhos de Sandra ficaram dilatados. Seu corpo começou a tremer. Sentiu seus membros serem esticados por algo que não via. Sentiu novamente uma dor que não era no corpo. Garras como de gaviões surgiram diante de seus olhos, saindo de baixo da cama, e seguraram seus braços e pernas, esticando-os mais ainda. Olhou desesperada para suas pernas, que sangravam. Tentou soltar seus braços e sentiu as garras entranhadas na carne. 152 | Caipora - Comadre Fulozinha

Uma besta rosnou diante de seus olhos e cuspiu fogo. A cama, suas vestes e a carne estavam ardendo no fogo. Deu um grito e sentiu desprender-se do corpo. Onde eram braços agora eram asas. Lembrou-se de sua forma original. Agora era novamente um anjo, só que um anjo negro. Flutuou. Ficou de pé. Olhou para o corpo de Sandra. Fechou os olhos. Quando abriu, estava na plantação na fazenda de Carlos. Olhou ao redor e palavras vieram de onde não sabia. - Que minha forma venha! Sou o que sou e serei agora! – Falou acima da plantação. Não tinha braços. Tinha asas negras. Bateu-as em círculo, sobrevoando a plantação. Gritou olhando para o céu negro. Mergulhou como um gavião que quer apanhar sua presa. Flutuou agora no meio da plantação de tomates. Envolveu seu corpo com as asas, que foram desaparecendo e dando forma ao corpo uma mulher alta, branca, de cabelos compridos. Pendeu sem apoio. Procurou sua perna esquerda, não tinha. Berrou olhando novamente para o céu. Lágrimas de sangue escorreram no seu rosto. Seus olhos verdes pareciam arder em brasa. Sentia ódio por terem-na mutilado. Procurou as árvores e o que viu foram plantações. Sentia o cheiro do milho, do feijão, da alface. Sentia cheiro de hortaliças. Sentiu desprezo. Olhou novamente procurando sua perna, não a achou. Saiu saltando e gritando em voz estridente. - “O que o gafanhoto cortador deixou, o gafanhoto peregrino comeu, o que o gafanhoto peregrino deixou, o gafanhoto devastador comeu, o que o gafanhoto devastador deixou, o gafanhoto devorador comeu.” (J1 Nascimento

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1, 3 e 4.) – Repetiu seis vezes com voz estridente e triste de choro. Uma fenda surgiu acima da plantação. Era um buraco no nada. Saíam aos milhares. Uma nuvem começou se formar acima de sua cabeça. Pareciam cantar: “O que o gafanhoto cortador...”. Eram milhares de milhares de gafanhotos que cobriram toda a plantação de tomates, acelga, alface, pimentão, chuchu, cebolinha, coentro, feijão, milho. As palavras que saíam daquela nuvem invadiram a plantação na mesma hora em que aquela mulher sem a perna desapareceu.

Parte XX

A Praga

Carlos acordou não muito bem. Quando entrou na cozinha, foi logo perguntando a Antônio o que acontecera no dia anterior. Seu aspecto era ruim. Antônio o olhou com um ar de quem não estava muito bem também. No dia anterior, Carlos, logo após voltar da soneca que tirara depois do almoço, não era o mesmo, parecia estar dopado. Antônio o olhara meio que de lado a princípio, mas, ao comentar com Maria sua esposa, foi logo repreendido. Eram 6h, o clima parecia não muito bom para todos. A noite pareceu não terminar para Maria. No comentário com seu marido, observou que Carlos estava estranho A mesa, como de costume, estava farta. Carlos parecia animado, ao menos para comer logo que se sentou à mesa. No entanto não foi o que aconteceu. Não conseguiu sequer engolir o café com leite que colocara na boca, deixando o resto no copo. - O senhor está melhor? – Perguntou Maria com ar de preocupação. - Meio indisposto! - Quer tomar uma gemada ou um caldo para lhe dar ânimo? - Não! Não! Obrigado, Maria! – Respondeu Carlos,

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Nascimento

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se levantando em seguida.

olhada.

Ele saiu da cozinha, cruzou a sala e foi direto para a frente da casa. Olhou o céu por alguns minutos. Perguntou para si mesmo o que estaria sentindo. Lembrou que, no dia anterior, falara com Sandra, no entanto não lembrava o quê nem que horas eram. Espreguiçou-se, respirou fundo como quem procura energia para poder falar. Virou-se, olhou a casa por alguns minutos parecendo esperar que alguém aparecesse. Talvez Antônio.

- Antônio, venha aqui, estamos com problemas! – Gritou Carlos, de costas para a casa.

Quando pensou em chamar Antônio, um dos trabalhados se aproximou.

- Oi, Fábio! O que aconteceu para você estar uma hora dessas aqui? Não dava pra esperar? Você sabe que nós iríamos no horário de sempre! – Falou Antônio com ar de quem não gostou de sua visita.

- Senhor Carlos! Senhor Carlos? – Falou Fábio, tentando chamar sua atenção. Fábio era trabalhador da fazenda desde que contratara Antônio. Era um bom homem, sempre pensara. Prestador, educado, atencioso e, o mais importante, sabia lidar com a plantação.

- Já vou, senhor! Quando Antônio saiu da casa, Carlos estava esperando já impaciente. Olhou para Antônio como quem diz “Porra, que demora foi essa?”. Antônio, no entanto, não deu muita atenção e foi ao encontro de Fábio.

- Senhor Antônio, já falei pro senhor Carlos que gostaria de não estar aqui, no entanto não quero ser responsabilizado por nada. – Respondeu fitando Antônio.

Carlos virou-se e achou estranho. Fábio nunca iria a casa a não ser que tivesse com problemas.

Enquanto Antônio falava com Fábio, Carlos foi em direção ao galpão onde ficava a caminhoneta. Abriu o portão, entrou com a velocidade de um relâmpago, ligou e se dirigiu ao encontro dos dois.

- Pois não, Fábio! – Respondeu ao mesmo tempo em que se virava.

- Vamos, entrem! – Falou Carlos sem muita paciência.

- Senhor! Não vim antes para não incomodar, no entanto toda a plantação está coberta por insetos que jamais vi na minha vida. – Falou Fábio, com ar de grande preocupação.

Fábio abriu a porta da caminhoneta, entrou e ficou esperando que Antônio também entrasse. Naquele dia, Antônio parecia andar feito uma tartaruga, ou Carlos não estava com muita paciência. Olhou para Antônio respirando fundo para não dizer nada.

- Não estou entendendo. O que quer dizer com “insetos que nunca viu na vida?” – Perguntou Carlos com ar questionador. - É melhor que o senhor mesmo venha dar uma 156 | Caipora - Comadre Fulozinha

Dirigiram-se para a plantação, que ficava a uns 2 quilômetros da casa, numa baixa perto de um açude. Mesmo preocupado, Carlos parecia aéreo e só se deu Nascimento

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conta quando sentiu a batida de vários gafanhotos no retrovisor da caminhoneta. - Meu Deus, o que é isso? – Perguntou Antônio assombrado. - Eu falei que nunca tinha visto nada igual! – respondeu Fábio, meio apavorado. O carro estancou, e Carlos ficou atônito, olhando para a nuvem de gafanhotos que sobrevoava sua plantação. Olhou dos lados, para frente e para cima. - Antônio, pelo amor de Deus, o que é isso?

Chegaram à fazenda justamente na hora em que Maria ia saindo. O para-brisa e a lataria da caminhoneta estavam esverdeados e cheios de pedaços de gafanhotos. - Meu Deus, o que foi isso? – Perguntou Maria se dirigindo a eles, que iam saindo do carro. - Você não vai acreditar, Maria! – Respondeu Antônio com voz trêmula. Não só Antônio falava com voz trêmula, mas também Fábio, que mostrava também o suor escorrendo de seu rosto.

Não era uma nuvem simplesmente, era uma nuvem de gafanhotos que tapou a visão do céu. Eles pareciam não gostar da presença de Carlos e de seus funcionários. Começaram a se atirar contra a caminhoneta com tanta força que a única ideia que Carlos teve na hora foi ligar o carro e dar ré.

Carlos não disse nada. Ficou parado olhando para o nada. Não conseguia pensar em nada. Pensou a princípio que estava sonhando, contudo foi despertado com a serra do gafanhoto enorme que entrara em sua perna.

- E os trabalhadores, Fábio? – Perguntou Carlos, ao mesmo tempo que manobrava a caminhoneta.

- O que foi, senhor? – Perguntaram os três ao mesmo tempo em que se dirigiam até Carlos.

- Senhor, todos foram embora. - Alguém se machucou? – Perguntou Antônio, com ar preocupado. - Não senhor! Quando chegamos, eles já estavam aqui. Digo, os gafanhotos nos esperavam. – Respondeu Fábio se dirigindo para Antônio. - Vamos sair daqui. Depois vejo o que vamos fazer – falou Carlos se dirigindo para a fazenda. Antes de Carlos fechar as janelas do carro, um gafanhoto entrou sem que percebessem. 158 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Que é isso! – Gritou Carlos com desespero e dor, saltando de um lado para o outro.

- Tem um aqui dentro da minha calça! – Falou Carlos com desespero, balançando a perna direita de um lado para o outro. Antônio se dirigiu até Carlos, que já estava rolando no chão tentando inutilmente se livrar daquilo que imaginava ser um gafanhoto. Antônio o pegou pela perna e sentiu o volume por debaixo da calça de Carlos. - Senhor, calma, eu o peguei. – Foi falando e apertando com firmeza e receio, quando escutou um estalo. O dia foi longo. Carlos chamou Antônio e Fábio Nascimento

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e foram a Caruaru para comprar roupas especiais e inseticida. Quando resolveram sair já sabendo o que iriam comprar, já passavam trinta minutos das 9h. Maria ficou observando da varanda da casa quando cruzaram a porteira. - Meu Deus, os proteja pelo amor de Seu filho. Esses foram os pensamentos do instante em que saíram até a hora em que chegaram de Caruaru. Quando chegaram à fazenda, todos os empregados estavam no terreiro em frente à casa esperando. Parecia um batalhão preparado para guerra. Carlos sentiu-se aliviado e feliz. Parou a caminhoneta e saiu. - Agradeço a todos vocês por estarem aqui. Sei que é de livre e espontânea vontade, pois não pedi que viessem. Agradeço por estarem aqui – falou Carlos para seus trabalhadores, com voz de quem faz um discurso e se comove. Antônio e Fábio ficaram olhando para Carlos como quem acredita que conseguiriam fazer alguma coisa. Os outros empregados o olhavam com respeito e admiração. A mulher de Antônio foi ao seu encontro. Foi chegando e pegando nas mãos de seu marido, com receio do que acontecesse. Deu-lhe um beijo no rosto e ficou do seu lado. No caminho para Caruaru, chegou à conclusão de que não teria muito que fazer. Sabia que, quando voltasse, com aquela quantidade de gafanhotos, sua plantação estaria perdida. A única certeza é que deveria fazer algo 160 | Caipora - Comadre Fulozinha

e era justamente isso que faria. Pensou não em salvar sua plantação, pois com certeza já era tarde, mas sim a plantação dos seus vizinhos. Acreditava que, fazendo algo para que alguns dos seus clientes não perdessem nada, com certeza continuaria com eles. A plantação poderia perder, no entanto ficaria ainda com os honorários como agrônomo. A passagem na loja foi rápida. O que Carlos comprou foram dez roupas especiais para poder usar produtos agrotóxicos. Antônio, a mando de Carlos, distribuiu sete das roupas com cinco bombas, enquanto Fábio foi pegar cinco conjuntos no galpão com outros cinco funcionários. Quando os homens subiram na caminhoneta, Maria lembrou-se de uma reportagem a que assistira do primeiro homem que pisou a Lua. Era um total de 12 homens sobre a caminhoneta, que pareceu aos olhos de Maria se arrastar. Todos já estavam com suas máscaras e o equipamento de dedetização. Carlos, Antônio e Fábio estavam na cabine, todos sem máscaras, já vestidos. Carlos olhou para trás e seus pensamentos o levaram a uma passagem do filme Caça-Fantasmas. Pensou: “Para que a luta fosse justa, quem falta é o Geleia”. Repreendeu-se balançando a cabeça, perguntando a si mesmo se estava louco. Como pensar em besteira num momento daqueles? Alguns dos homens que viram a nuvem de gafanhotos pela manhã se alvoroçaram quando novamente reviram aquela cena. Alguns pronunciaram o nome de Deus, como quem pede proteção. Outros se benzeram. Antônio Nascimento

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olhou para trás para ver se ainda estavam ali. Fábio estava branco feito papel e suavam tanto que parecia ter uma torneira ligada sobre a sua cabeça.

Eram 16h15min, quando todos se reuniram em círculo para escutar o que Carlos tinha para falar. Todos estavam tensos e a voz de Carlos saía quase que a pulso.

- Vamos todos colocar a proteção da cabeça! – Falou Carlos para os dois, ao mesmo tempo em que parou.

O terreno onde estava localizada a plantação era enladeirado. Ficava entre quatro serras. Era enorme, só que, para quem olhasse, parecia pequeno. Carlos soubera distribuir as culturas de maneira a extrair o melhor, tanto em quantidade quanto em qualidade dos hortifrutigranjeiros.

- Sim, senhor! – Respondeu Antônio, olhando para Fábio. Carlos não era muito de igreja, mas, naquele momento, lembrou que numa das idas à igreja com sua mãe já ouvira falar de pragas de gafanhotos. Sabia que era o gafanhoto peregrino. Além da faculdade, lembrou de uma reportagem a respeito de nuvens que partiram das costas da Mauritânia e atravessaram o oceano Atlântico e em seis dias chegaram ao continente americano. Riu pra si mesmo como quem pergunta “O que estamos fazendo aqui? Não temos a mínima chance contra esses insetos”. Perguntou-se: “Será que estou sendo castigado?” Repreendeu-se. Que besteira é essa, Carlos? Parou a caminhoneta e fez sinal para que Antônio e Fábio colocassem a proteção para a cabeça. - Vamos! – Falou Carlos, abrindo a porta e saindo do carro. - Que Deus nos ajude! – Disse Antônio, saindo. - Fábio, feche a porta bem fechada! – Falou Carlos, apontando para a porta e se dirigindo para trás da caminhoneta. - Sim, senhor! - Podem descer. – Falou Carlos com os homens que estavam atrás. 162 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Não temos muito que fazer. Estamos aqui não para salvar minha plantação, mas para tentar, de alguma forma, salvar a plantação de nossos vizinhos. Sei que parece idiotice, no entanto é a única coisa a fazer. – Falou Carlos olhando um por um. - Senhor, e como vamos fazer isso? – Perguntou um dos trabalhadores de Carlos, de voz fina e estridente. - Vamos fazer um cerco e atacar em círculo. Somos poucos e não vamos matar todos. Vai ser um briga desleal, até porque eles são muitos. Quando Carlos acabou de falar, Fábio deu um grito e apontou para o céu. Um barulho ensurdecedor tomou conta de todo o local. Os gafanhotos começaram a elevarse da plantação, ou do que restara dela. Um estrondo, como um tremor de terra, foi ouvido por todos que olharam para cima. Uma nuvem começou a se formar. Era medonho. Os homens pareciam se perguntar o que estavam fazendo ali. A nuvem foi crescendo, crescendo e se elevando. Outro estrondo, que nesse momento pareceu um trovão. O céu escureceu numa velocidade que assombrou até Carlos, que estava Nascimento

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acostumado a ver esse fenômeno da natureza no Rio de Janeiro. Os homens pareciam querer se amontoar. Um raio cruzou o céu, iluminando toda aquela região. Carlos correu em direção à plantação e viu uma nuvem negra e medonha. O céu escureceu novamente. Outro raio. Os gafanhotos mergulharam na direção de onde estavam. Os homens olharam acima quando outro raio cortou o céu, e viram, para seu desespero, os gafanhotos descendo. O dia se fez noite novamente. Outro raio, seguido de gritos de pavor. Amontoaram-se e esperaram o choque. Outro raio e nada! Estavam sozinhos esperando o que jamais cairia sobre eles. Outro raio e gritos. - Cadê os gafanhotos? Cadê os gafanhotos? Cadê os gafanhotos? – Era Fábio procurando desesperadamente os gafanhotos, ao mesmo tempo em que agradecia a Deus por não tê-los mais por perto. As nuvens que escureceram o céu desapareceram e a tarde se fez clara às 14h30min.

Parte XXI

Abatedor De Cobras

Do mesmo jeito que os gafanhotos apareceram, desapareceram, só que na frente de todos. Não foi por conta de nada que Carlos fizera. Conhecera aquela espécie de gafanhoto na faculdade, mas jamais pensara passar por uma praga – e justamente na sua plantação. Estava deitado na rede se balançando de um lado para o outro. Pensou com satisfação que, graças a Deus, tudo tinha acabado. Por que os gafanhotos só apareceram na sua fazenda? Não que quisesse que outros passassem pelo mesmo problema, pensou. Sabia que iria passar por dificuldades financeiras. Estava prestes a perder o contrato com o Bonanza, não tinha sobrado nada. Teria de começar do zero. O problema maior é que era agrônomo, e sua reputação estava abalada diante daqueles que atualmente precisavam dos seus serviços. Como se justificar? Não gostava disso. Pensou “melhor é deixar a coisa acontecer”, e foi justamente o que fez. Sandra chegou justamente na manhã seguinte à que os gafanhotos desapareceram. Carlos tinha conversado com ela contando tudo na noite anterior, até pediu que não aparecesse. Tudo parecia engraçado para Sandra, pois era justamente o que ela esperava que acontecesse. O senhor dono da Sprinter que fazia lotação Caruaru-Bezerros, Bezerros-Caruaru, apesar de ter uma

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Nascimento

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certa idade, era um tanto enxerido e fez questão de deixar Sandra dentro da fazenda. Quando Sandra saiu do carro, Carlos ainda estava deitado na rede. Ficou surpreso, pois não sabia que ela viria. Levantou-se com um sorriso estampado no rosto, indo ao encontro de Sandra, que estava parada do lado da porta do motorista pagando a passagem. - Obrigado, moça! – Falou o condutor do lotação. - Eu é que agradeço por ter me deixado aqui! – Respondeu Sandra com ares de riso. - Não precisa agradecer! Iria passar por perto de qualquer jeito – falou ao mesmo tempo em que girava a chave dando partida no veículo. Quando Carlos se aproximou de Sandra, o carro de lotação já estava a certa distância. Ela estava com uma sacola preta pendurada no ombro esquerdo e outra pequena, onde acabara de colocar a carteira, pendurada no ombro direito. Sandra abriu os braços com um sorriso largo. Carlos a abraçou, beijando-a em seguida. Maria estava parada à porta justamente para chamar Carlos para fazer o desjejum. Ficou olhando para os dois, agradecendo a visita de Sandra. Pensou que seria bom que ela estivesse ali. Carlos, sem pedir, tirou a bolsa do ombro de Sandra e colocou no seu. Pegou na sua mão esquerda e foi caminhando até a casa. - E você, como está? – Perguntou Sandra caminhando e olhando para Carlos – Não entendi muito bem o que aconteceu, por isso estou aqui. Fiquei preocupada com você. 166 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Ainda não sei realmente o que aconteceu. Parece que tive um pesadelo. Estou meio que dopado – respondeu Carlos sem saber realmente o que falar. – Mas agora está tudo bem! - Você falou que uma nuvem de gafanhotos apareceu do nada. E nas fazendas vizinhas? – Perguntou Sandra como se não soubesse de nada. – Alguém comentou alguma coisa sobre gafanhotos nas redondezas? - Não sei o que lhe falar. Tudo aconteceu tão rápido que não tive tempo sequer de medir os prejuízos. Só sei de uma coisa: toda plantação está perdida. Não sobrou um pedaço de raiz. Tudo foi devorado numa velocidade que parece sonho. - Como foi que você se livrou dos gafanhotos? - Não me livrei! Foi como falei pra você, do jeito que apareceram, desapareceram. Fui até Caruaru, comprei roupas especiais e equipamento para pulverizar com veneno, pensando não na minha plantação, mas nas dos vizinhos. Nos preparamos e fomos até lá. Falei com os trabalhadores que deveríamos fazer um cerco e tentar matar o máximo que pudéssemos. Quando resolvemos ir, eles se reuniram e partiram pra cima de todos nós. O tempo nesta hora fechou e começou a relampejar. Formouse uma nuvem que tapou o céu e foi em nossa direção. O céu escureceu de maneira que só víamos alguma coisa quando relampejava. Só lembro que estavam bem acima de nós. Quando pensamos que seríamos atacados, eles desapareceram no ar. A única certeza de que estiveram aqui é que não sobrou nada. - Bom-dia, dona Sandra! Como vai a senhora? – Nascimento

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Falou Maria quando iam subindo os degraus que davam acesso à varanda. – Chegou numa boa hora. Estou aqui justamente para chamar o senhor Carlos para tomar café. - Bom-dia Maria! Gostaria que não me chamasse de senhora. Sinto-me velha – deu uma risada no mesmo tempo que a abraçou. – Então cheguei numa hora boa, adoro tomar do seu café. - Você sempre querendo me agradar. O dia estava bonito, a casa arrumada como sempre. Quando Sandra entrou na cozinha, encheu os olhos. A mesa sempre estava cheia. Sempre que ia lá comia um bocado. Antônio estava parado do lado do fogão. Sandra olhou para um prato de papa com olhos de lobo quando vê um cordeiro saltando à sua frente. Sentou-se à mesa, estendendo a mão para o prato.

Carlos e uma pergunta veio à sua cabeça. Quem será essa menina? Uma resposta o fez tremer. Será que é Comadre Fulozinha? Foi repreendido por ele mesmo. Tá ficando doido, homem? Sandra já estava acabando quando percebeu que todos a olhavam. Levantou a cabeça e riu. - Não consigo me controlar quando vejo um prato de papa. Essa está uma delícia. Desculpe-me, não sei o que aconteceu. Talvez eu saiba! Quando estou em casa sempre faço isso – olhou para todos que estavam à mesa e riu meio sem graça. - Não se preocupe, menina, às vezes fazemos coisas de criança. Vá lavar as mãos para continuar a tomar o café – falou Maria, olhando com carinho para Sandra.

- Adoro papa! – Falou, ignorando todos ao seu redor. – E já faz um bom tempo que não como.

- Não se preocupe, Sandra, estamos em casa – disse Carlos ao mesmo tempo em que passava a mão direita sob suas costas.

- Por que não falou quando esteve aqui das outras vezes!? – Disse Maria, arrastando o prato para Sandra. – Gosto de preparar as coisas para quem gosta de comer.

Antônio ficou calado. Olhou-a novamente e a dúvida aumentou. Perguntou-se. Quem será você, Sandra? Quem será você, Sandra?

Antônio olhou para Sandra como quem procura algo. Aproximou-se da mesa e ficou observando.

Carlos e Maria continuaram a tomar o café como se nada tivesse acontecido.

Sandra olhava para o prato como uma criança que vê um monte de doces à sua frente. Sandra esqueceu que não estava só, atolando as duas mãos na papa e levando à boca como se fosse recém-nascida.

Sandra olhou para Antônio como quem não gosta do que ele poderia estar pensando.

Antônio olhou para Maria, para Carlos e voltou os olhos em Sandra. Um calafrio rasgou sua coluna. Os pelos do corpo ficaram eriçados. Olhou novamente para 168 | Caipora - Comadre Fulozinha

Carlos parecia ter esquecido tudo o que acontecera. Agora estava se alimentando bem, foi o que Maria observou. A confraternização acabou com uma voz chamando Carlos. Nascimento

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- Só um minuto! Vou ver o que é! – Disse ele se levantando. - Senhor! Senhor! Senhor! – Gritava uma voz lá do terreiro da casa. Maria aproveitou a deixa e foi em seguida se levantando, junto com Antônio, que não estava se sentindo bem naquela cadeira. Olhava para Sandra e não conseguia parar de pensar em Comadre Fulozinha. Já eram mais de 10h. Sempre faziam o desjejum cedo. Tudo bem que naquela manhã não tinham muito a fazer, até porque Carlos estava abatido e criando forças para poder tomar alguma providência. Levantou e foi ao encontro dos gritos que chamavam seu patrão. - Já acabei! Com sua licença, dona Sandra. Vou ver o que querem com o senhor Carlos – falou Antônio, virando o rosto para não olhar para ela. - Não se incomode comigo, senhor Antônio. Fique à vontade. Maria me faz companhia – falou Sandra olhando para Maria, que já estava recolhendo alguns pratos sujos. - Vá, Antônio! Vamos colocar a conversa em dia. Coisas de mulheres – olhou para Sandra e riu. Quando Antônio saiu da casa, percebeu que Carlos estava um pouco agitado na maneira de falar com Gérson. Gérson era um homem moreno, quarenta e cinco anos. Era casado e morava no centro de Bezerros com sua família. Não trabalhava por precisão, pois se aposentara há dez anos. Sofrera um acidente quando trabalhava como carreteiro, numa das viagens que fazia toda semana para a Bahia. 170 | Caipora - Comadre Fulozinha

Carlos não era de falar num tom de voz alto, no entanto Antônio até poderia entender, já que estava passando por momentos difíceis. O pior é que o acontecido no dia anterior também o deixara bastante agitado. Foi caminhando ao encontro dos dois e percebeu que Carlos balançava os braços como quem pede explicações. A distância pareceu aumentar. Antônio teve a impressão de que o caminho da porta até o meio do terreiro aumentara uns dez quilômetros. Sentiu-se mal quando viu que Gérson aparentava preocupação e estava muito suado. - O que foi, senhor? O que aconteceu dessa vez? – Perguntou Antônio atrapalhando a conversa. - Gérson acaba de falar que lá no curral não tem um animal vivo. Falou ainda que os animais que estavam pastando estão mortos – respondeu Carlos com indignação. - Antônio, você me conhece bem! Não estou brincando e ainda mais depois do que aconteceu ontem. Fiz questão de ver com meus próprios olhos. Quando cheguei, o José contou que os animais que estavam no cercado tinham morrido. Não acreditei! – Gérson esfregou a testa suada. Sua voz era partida pelo nervosismo. Seus olhos estavam inquietos. – Fui direto para o cercado. O que vi lá forem cobras em volta dos animais. Eu mesmo nunca vi uma cobra daquelas. Saí de lá correndo em direção à estrebaria. Antônio, o pior é que os cinco cavalos estavam mortos também. Não consegui entrar, fiquei apavorado, pois as cobras estão por toda parte. Fui para trás da estrebaria, dei uma olhada por uma fresta e vi o Fantasma deitado. Seu focinho estava sangrando e ele esperneava como quem quer se levantar. Nascimento

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Os olhos dele, Antônio, estavam brancos. Parecia já estar morto. Chamei-o pelo nome e nada. Tive um susto quando uma daquelas cobras se levantou. Ficou quase da minha altura. Ela rosnou feito um cachorro e cuspiu. Ela cuspiu em mim. A minha sorte é que eu estava do lado de fora. Se estivesse lá dentro, estaria morto. Antônio, elas parecem loucas. Eu falei pro seu Carlos que elas estão por toda parte. Temos de sair daqui. Não podemos ficar. Temos de chamar os bombeiros, eles sabem lidar com esses animais – a voz de Gérson estava próxima da voz daqueles que estão prestes a enlouquecer. As órbitas dos seus olhos pareciam querer pular. - Tenha calma! – falou Carlos balançando-o com as duas mãos e com voz áspera. – Tenha calma! Tenha calma! - O que ele está falando, senhor Carlos? Ele está louco? Isso é impossível! – Falou Antônio, indignado e incrédulo. – Ele só pode estar louco. Pare de falar besteiras, Gérson! Você quer enlouquecer o senhor Carlos? – Sua voz agora o repreendia como quem repreende uma criança para que ela se cale, ou conte a verdade sobre algo. - Não! Não! Não! Eu não estou louco nem mentindo! Você não escutou o que eu disse? Você está pensando o quê, Antônio? – Gérson foi gritando e partindo para cima de Antônio como quem quer lhe bater. Parecia irreal. Carlos segurou Gérson por trás, abraçando-o e imobilizando-o. Gérson não era um homem pequeno, o que fez com que Carlos empreendesse força, força essa que o faria reclamar mais tarde, pois seus braços estariam doloridos. Antônio, que a princípio pareceu querer fazê-lo calar à força, recuou. Gérson gritava com 172 | Caipora - Comadre Fulozinha

ele como quem está prestes a matar ou morrer. - Calma! Calma! Calma! – O tom de voz agora de Carlos era de quem não iria segurá-lo e sim surrá-lo para que calasse e parasse de tentar socar Antônio. O barulho foi tamanho que Sandra e Maria escutaram da cozinha. Maria falava pelos cotovelos enquanto Sandra a olhava com olhos não muito amistosos. Seus pensamentos estavam no que Lilithi iria fazer. Já sabia o que Carlos estava conversando. Com certeza seu capacho, foi o que pensou, já estava colocando-o a par da morte dos animais. Tudo estava para aqueles que ela conhecia. Pediu a Lilithi que não machucasse nenhum dos trabalhadores. Ficou surpresa com o sorriso que viu quando ela falou: Não se preocupe! Lilithi era linda! Sua beleza chegava a machucar os olhos daquelas que se achavam bonitas. Seus olhos verdes agrediam a natureza. Seu olhar colocaria tanto desejo quanto medo naqueles que ela quisesse enfeitiçar. Não tinha certeza do quanto ela era bela, pois as vezes em que esteve com ela sua beleza parecia diferente. A única coisa que não mudava era seu rosto. Invejou-a quando esteve com ela na primeira vez: era perfeita. Pensou o quanto Deus a agraciou com a perfeição. Riu para o nada. Pensou em Adão, o quanto foi imbecil em não a querer como esposa eterna. Seus pensamentos achataram-se bruscamente. - O que é isso? – Perguntou Maria a Sandra, com ar de espanto. - Não sei! Os gritos vêm lá de fora. Parece que Carlos e o senhor Antônio estão brigando. Nascimento

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- Vou ver o que é isso! – Maria foi falando e saindo da cozinha a passos apressados. - Eu vou com você! – Falou Sandra, caminhando em sua direção. Quando Maria viu Carlos segurando Gérson, suas pernas estremeceram; cambaleou na porta, que dava à saída da casa, como quem perde o chão debaixo dos pés ou está no meio de um terremoto na escala 7. Sandra a segurou, como quem pega uma criança, passando os dois braços sob os dela. Maria estava bêbada pela visão. O mundo quis fechar diante de seus olhos. Sua mente fez uma viagem, e perguntas surgiram na sua frente. Vai ter morte? O que está acontecendo? Porque Carlos está segurando Gérson? O que Antônio fez para que isso esteja acontecendo? Quando estava prestes a desmoronar, sentiu um choque. Alguma coisa, força, não sabia o que a trouxe para a realidade. Teve a impressão de ser acordada por um balde d’água gelada. Saltou, olhou para trás e não gostou do que viu. Parecia Sandra, mas não era ela. Mesmo despertando, viu seus olhos. Eles eram vermelhos. Ela parecia rir. Sentiu um calafrio. Os braços que a seguravam pareciam de fumaça negra. Estava sendo segurada por uma coisa que não era aquela moça bonita que conhecia. Deu um sobressalto, afastando-se. - Já estou boa! – Sua voz era de pavor. Seus pensamentos voltaram à realidade. A lembrança, que parecia distante, de Sérgio partindo para cima de seu Antônio aflorou. Uma energia a tomou. Esqueceu o que vira ao despertar e saiu correndo em defesa de seu marido. Enquanto corria em direção àquela tormenta, gritava palavras, num desespero, que 174 | Caipora - Comadre Fulozinha

não podiam ser entendidas. Seu único intento naquele momento era socorrer aquele que amava. Para quem olhasse a distância, não diria que Maria tinha a idade que tinha, pois parecia uma leoa partindo em defesa de seus filhotes. - Você está doido, Gérson? – Maria gritou abraçando Antônio. - Tenha calma, Maria! Ele só está um pouco nervoso – respondeu Antônio ao mesmo tempo em que a afastou. - Como “nervoso”? Ele está querendo bater em você! – Seus olhos fitavam Gérson como uma loba que está prestes a devorar sua presa. - Pare! Gérson? Pare! Pare! – Gritou desta vez Carlos. Sandra parecia bailar em direção áquela balbúrdia. Todo seu rosto sorria. Seu aspecto era de felicidade. Os olhos eram daqueles maníacos que desejam algo proibido. Uma mistura de inocência e maldade. Foi chegando como quem está apreciando. Foi para trás de Carlos sem ser percebida. - Senhores! Senhores! Senhores, o que está acontecendo? – Falou Sandra num tom que, mesmo baixo, chamou a atenção de todos, que pareceram petrificar quando a olharam. O tempo faz a diferença, principalmente quando queremos que ele pare. A voz de Sandra penetrou não nos tímpanos daqueles que faziam parte daquela cena de novela portuguesa, mas no cérebro de cada um. O sol queimava e ardia na pele até dos lagartos Nascimento

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que, naquele momento, estivessem andando por sobre os lajedos à procura do que comer. Para quem estivesse observando, diria que o inferno seria daquele jeito, quente e com pessoas tentando se devorar. - Senhores! Senhores! Senhores, o que está acontecendo? – Repetiu novamente Sandra, como quem diz “Podem acordar aqueles que estão sob hipnose”. Fez-se silêncio. Pareceu que cada um esperava que o outro falasse primeiro, para que, em seguida, a plateia atônita de pé batesse palmas para o hipnotizador. Os pensamentos eram confusos. Mesmo depois, se é que se poderia dizer daquela experiência, as coisas pareciam meio confusas. Tanto Carlos quanto os outros não sabiam falar por que estavam ali parados, debaixo daquele sol estonteante. - Carlos, o que acontece aqui? – Desta vez seu jeito acolhedor e carinhoso proferiu as palavras. - Não sei! Juro que não sei! – Respondeu Carlos, confuso. - Sandra! O Gérson estava partindo pra cima de Antônio quando cheguei. – disse Maria, não só para Sandra mas pra si mesma. - Vamos parar de arrumar um culpado. Gérson, o que veio fazer aqui? Escutamos seus gritos. Parecia querer falar alguma coisa. – Falou Sandra com voz questionadora. - As cobras, dona Sandra! As cobras! – Respondeu Gérson, despertando novamente a atenção para o que realmente fora fazer ali. 176 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Não quero mais escutar nada! Quero ver com meus próprios olhos! – Falou Carlos, fitando Gérson ainda incrédulo. – Vou com você até lá, agora! - Certo, senhor! Devemos levar pelo menos alguma coisa para nos defender, caso precisemos. Eu tenho certeza de que vamos precisar! – Disse Gérson fitando Carlos e se dirigindo para a frente da casa. O dia se tornou escuro, não porque as nuvens cobriram o céu, mas pela incerteza e escuridão que tomaram os pensamentos de todos. A inércia parecia visível, mesmo antes de verem o que realmente os esperava. Sandra acompanhou todos, com um sorriso escondido entre os lábios. Pensou em dizer algo, resolveu ficar calada, se deliciando com o desespero de todos. Seus pensamentos deslizaram no tempo, relembrando o desespero dos perdidos e açoitados no meio da mata. Aquela sensação era bem melhor. A incerteza, o desespero e insegurança de todos parecia alimentá-la. Ficou parada na frente da casa, sentindo o sol que a seu ver alimentava seu corpo. Sentia-se revigorada, forte e feliz. Quando resolveram sair de casa, Carlos parecia debilitado. Seu aspecto era daqueles de quem chega em último lugar numa maratona, cansado e sem motivos para festejar. Gérson parecia eufórico, no entanto sem saber realmente o que fazer. Antônio e Maria estavam lado a lado, atônitos da situação. Mesmo tendo participado da guerra frustrante do dia anterior, Antônio parecia, pelo olhar, não acreditar Nascimento

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no que estava acontecendo. Seus olhos pareciam perdidos, esperando que simplesmente o pesadelo acabasse e acordasse do sonho ruim.

Os homens trataram logo de subir. Antônio teve dificuldades, mas foi salvo por Gérson, que pegou sua mão.

- Já estão prontos? – Perguntou Sandra a todos.

Carlos deu partida, saindo em direção ao que parecia mais um sonho ruim.

- Estamos! – Responderam todos ao mesmo tempo. - O Antônio vai com o Gérson no galpão pegar alguns facões – falou Carlos meio displicente. Na realidade, a única coisa que Carlos pegou na casa foi um revólver calibre 38. Maria estava com uma faca enorme que usava para cortar carne. A expedição foi inútil, pois casa é casa, não um armazém de ferramentas para guerra. Antônio e Gérson se dirigiram ao galpão, voltando com quatro facões e dois porretes. Quando chegaram, foram quase que ovacionados por todos que viram naquelas ferramentas as armas necessárias. Carlos tinha saído de fininho e, no momento em que os dois chegaram com as ferramentas, encostou com a caminhonete. Sandra tentou em vão se aproximar de Maria, que se afastava ao mesmo tempo em que falava com ninguém. - Quem for entrar entre, quem não for suba! – Falou Carlos olhando para todos de dentro da caminhoneta. - Vamos, Maria. Vamos sentadas. Os homens vão atrás – sugeriu Sandra, se aproximando de Maria e pegando na sua mão. Maria se afastou para que Sandra não a segurasse, no entanto foi tarde, Sandra já estava arrastando-a em direção da caminhoneta. 178 | Caipora - Comadre Fulozinha

No caminho, os pensamentos de Antônio se voltaram para uma série a que assistira: A Casa das Sete Mulheres. Não que tivesse alguma coisa a ver com o que estavam passando, mas o desespero de estarem presas sem ter a quem recorrer. Os pensamentos dos demais eram mórbidos. Era visível nos olhares perdidos que não sabiam o que iriam fazer, tampouco enfrentar. A única que realmente estava atenta era Sandra. Seu olhar brilhava. Sentia prazer no cheiro de Maria, que estava ao seu lado exalando medo. A casa ficava a quase 2 km tanto da plantação quanto do curral e estrebaria. O que realmente dificultava a visão de ambos, o curral e estrebaria, eram árvores plantadas em grande quantidade ao redor da casa. Além da cerca de estaca de madeira, que demarcava a fazenda, Carlos teve a ideia de separar a casa com estacas dentro da própria fazenda. Quando comprou o que a princípio chamava de sítio, não existia tal separação. O que o fez cercar a casa foi o fato de querer separar o trabalho da vida particular. Adorava a ideia de Roma. Pensava como é estranho um país dentro de outro. Acreditava realmente que, se cercasse seu espaço – residência – ,teria independência do trabalho. Mesmo estando de carro, o caminho pareceu longo. Nascimento

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Carlos lembrou que sentira a mesma coisa no dia anterior, quando juntou seus funcionários e foram acabar com os gafanhotos. Tentativa frustrante e aterrorizante. Quase um quilômetro depois que passaram da porteira, Carlos e os outros puderam ver, mesmo a distância, os animais deitados como se estivessem dormindo. - Senhor Carlos? Senhor Carlos? – Gritou Gérson – Senhor Carlos? É melhor que paremos por aqui! Carlos olhou para trás, parou a caminhoneta a uns duzentos metros de distância. Olhou para Sandra e Maria, abriu a porta e saiu. - Não estou vendo nada, Gérson! – falou Carlos. Gérson e os outros foram descendo da caminhoneta e olhando para o curral. Antônio foi o último a descer, com a ajuda de Carlos. Antes de descer, ele entregou os facões e porretes para Gérson, que fez questão de segurálos. - O Senhor não acha estranho o gado todo estar deitado uma hora dessas? – Perguntou Gérson ao patrão. - Vamos! Quero ver de perto o que está acontecendo! – Respondeu Carlos se dirigindo ao curral. Maria foi a primeira a sair. Sandra só saiu quando viu que Carlos se dirigia para o curral com um dos facões na mão direita. Os outros, inclusive Maria, o seguiram. Ela pensou que seria melhor estar por perto. A uns duzentos metros de distância da porteira que dava acesso ao curral, todos pararam. Um calafrio seguido de tremedeira tomou conta de todos, menos de Sandra. Os 180 | Caipora - Comadre Fulozinha

olhos congelados e esbugalhados fitavam uma “coisa” – essa seria a palavra para identificar aquilo. Uma cobra enorme estava saindo do curral. Aquele monstro parou quando os viu. Levantou-se e deu um latido. Um latido rouco que fez com que todos dessem um passo para trás. O que fazer? Esse foi o pensamento que pairou sobre todos. O que fazer diante daquilo? A cobra ergueu-se, ergueu-se. Sua altura era a de um menino de doze anos. Deu outro latido. Ela pareceu aos olhos ir em direção a todos. Parecia desafiadora. Parecia pronta para atacar. - Meu Deus, o que é isso? Meu senhor, que animal é esse? – Falou Maria gaguejando. - Maria, cale-se! – Falou Antônio, petrificado ao lado de sua esposa. - Falei pro senhor que era um animal enorme, não falei? E agora, o que vamos fazer? Não tem só uma, são muitas! – Disse Gérson, fitando Carlos, que não tirava os olhos da cobra. - Senhor? Senhor? Temos de ir embora! Veja do outro lado! Não consigo ver direito, mas parece que tem mais, e estão vindo em nossa direção – Tocou Antônio no ombro de Carlos e apontou ao mesmo tempo. - Meu Deus! – Resmungou Carlos perplexo. Não podemos ficar aqui, senhor, esperando que elas nos matem! – Disse Gérson, colocando-se na frente de Carlos. - Vocês estão certos! – Respondeu Carlos indignado com a impotência diante do que via. A cobra, que estava próxima do curral, deu outro Nascimento

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berro em direção às outras, que atentaram em sua direção. Todos tiveram a certeza de que ela estava chamando, tentando reunir sua família para atacarem em grupo. Maria pegou Antônio pelo braço esquerdo, como quem segura uma criança e a arrasta para o caminho que acha melhor. Antônio deu um sobressalto, no entanto não se esquivou e a acompanhou na direção do carro. - Senhor! Senhor! Estão vindo em nossa direção – gritou Gérson, tomado pelo desespero. Carlos colocou a mão na cintura e puxou sua arma. Seus pensamentos eram de defesa. O que fazer diante daquilo? Pensou! Atirar! Será que conseguiria matar todas com uma única arma? E se errasse? Recuou e percebeu que a única pessoa que estava do seu lado agora era Sandra, que fez gestos para que recuasse e fosse embora. Outras três cobras se juntaram à que estava perto do curral. Olharam em direção a Carlos e partiram para o ataque. Carlos, meio que desesperado, puxou o gatilho e atirou. O projétil saiu em câmara lenta para os olhos de Carlos. As cobras já estavam a uns cinquenta metros quando Carlos viu que uma delas pareceu congelar. As outras pararam e olharam para sua companheira no ataque e pareceram não gostar do que viram. Levantaram-se numa altura de quase um metro e meio e berraram em coro.

tocou no seu ombro. - Você está doido, Carlos? Você ficou maluco? Vamos embora antes que elas nos matem – gritou Sandra por trás de Carlos, puxando-o pelo ombro. Carlos parecia drogado. Seus olhos congelados na direção das cobras expressavam a conclusão da morte. Parado feito estátua, sabia que não conseguiria sequer apertar o gatilho. Foi libertado do estado de inércia por Sandra. Olhou pra trás, meio que incrédulo. Pegou Sandra com sua mão esquerda e a saiu arrastando em direção ao carro, onde todos gritam chamando-o. A cena deixaria um crítico de cinema enojado. Quando Carlos e Sandra entram no veículo onde Maria já estava pronta pra morte e fecham as portas, as cobras se colocaram na frente. Carlos olhou pra trás e viu Antônio e Gérson gritando e balançando os braços desesperados, apontando para baixo. Pelo retrovisor, viu não só uma, mas tantas, que não conseguiria contar. Seu primeiro pensamento foi: “Vão matar Antônio, e a culpa vai ser minha”.

Acertei uma, pensou Carlos, já não sabendo se teria sido bom ou ruim. E agora, o que fazer? Atiro de novo? Só restam três! E se eu errar? As cobras pareciam vir em marcha lenta. Já estavam a uns vinte metros, se aproximando no seu arrastar circular, quando Sandra 182 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte XXII

A Morte Faz Uma Visita À Fazenda

A noite estava acompanhada de uma chuva-criadeira. Era sábado. Quando Antônio se levantou, Maria ainda estava dormindo. A noite não estava sendo das melhores, pois não conseguira dormir. Toda vez que adormecia, um pesadelo o pegava, fazendo-o acordar agoniado. Numa dessas vezes em que despertou, lembrou-se do sonho. Maria parecia dopada ao seu lado. Lembrou que, quando não conseguira dormir. Maria perguntava o que estava acontecendo. Os seus pensamentos, quando despertou desse último pesadelo, também lhe afloraram a memória de quando eram novos. Por não conseguir dormir, aproveitava e fazia amor com sua recém-esposa. Só que dessa vez era diferente. Maria estava cansada, já não era a mesma, sem contar que os acontecimentos da semana a deixaram pra lá de exausta. Na realidade, só não ela, e sim todos da casa. Pensou em não se levantar. Olhou novamente para sua mulher e sentiu vontade de lhe pedir que levantasse e preparasse um café. Antônio deixara de fumar, mas sentiu aquele gosto de como era gostoso tomar café e fumar um cigarro. Olhou ao seu redor e viu a mobília do quarto como se estivesse querendo lhe falar algo. Fechou e abriu os olhos numa tentativa de afastar qualquer pensamento que desse vida ao guarda-roupa. Com certeza não queria vê-lo partindo para cima. Até porque o achava grande e meio assustador. Antônio não Nascimento

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era de ter medo de fantasmas, no entanto não gostava de pensar neles. Resolveu se levantar e preparar um café. Maria continuou imóvel feito pedra de lajedo na cama. O quarto de Antônio ficava no final do corredor, do lado direito. O teto da casa era coberto por telhas. A cada dez fileiras de telhas, uma era transparente, o que dava a toda a casa uma claridade suave e muitas vezes assustadora para medrosos, nas noites de lua cheia. O corredor estava claro. Olhou-o até o final como quem espera ver alguém acordado. Seguiu em frente, em direção à cozinha. Por instantes, teve a impressão de acelerar o passo para ver se chegava logo ao destino. Parou, olhou para trás, e quase não viu a porta do seu quarto. Esfregou o rosto, tentando aproximar a porta da sua visão. Na cabeça, algo lhe disse: “Você ainda está com sono!” Estou vendo coisa, vou tomar um café! Um calafrio correu-lhe o corpo. Virou-se e continuou andando. As paredes pareciam olhá-lo, o que o deixou desconfiado, mirando os quadros que se estendiam dos dois lados. “Vou apressar o passo, quando chegar à cozinha acendo logo a lâmpada”, pensou tranquilizandose. Foi entrando e apertando o interruptor. A lâmpada não acendeu. Apertou novamente para cima e em seguida para baixo. Nada! Dona lâmpada deveria estar dormindo e pediu ao senhor interruptor que não a acordasse. O que sonhara aflorou na sua mente de repente. Pensou que deveria estar ficando louco ou velho gagá. Olhou para os lados e teve a nítida sensação de que já estivera ali. Agora pensou: “Só falta escutar alguém me chamando”. - Antônio? Antônio? Antônio, cadê você? – A voz 186 | Caipora - Comadre Fulozinha

era rouca e quase imperceptível. Olhou para trás bruscamente. Seus olhos fitaram a janela. Percebeu que estava fechada. Maria jamais a esqueceria aberta durante a noite. Detestava intrusos da madrugada. Virou-se olhando novamente ao seu redor, procurando seja lá o que fosse. Preferiu não perguntar quem o estava chamando. “Estou ficando louco e não velho”, repetiu novamente, agora falando com ninguém. - Velho gagááááááááááá... Velho gagááááááááááá... – Olhou para os lados assombrado com aquela voz rouca, gutural e arrastada. - Carlos? Carlos? Deixe de brincadeira – falou e esperou que fosse realmente alguém brincando. - Velho gagááááááááááá... – a voz desta vez parecia próxima. - Carlos? Carlos? Deixe de brincadeiras – falou novamente, só que desta vez gaguejando. Um cansaço tomou conta de Antônio. Sentiu-se grudado ao chão. Tentou andar, não conseguiu. Olhou para os pés para ver se estavam enganchados em alguma coisa. Seu desespero aumentou quando viu que estava livre. Tentou novamente levantar os pés, não conseguiu. Uma sombra passou ao seu lado direito. Um frio correulhe os ossos. O pavor aumentou quando ficou paralisado. - Antôôôônioooooo? Vamos Brincarrrrrrr, Antônio? – A voz gutural estava falando ao seu ouvido. - Me deixe! Me deixe em paz! Quem é você, maldito? Meu Deus! Meu Deus! – As palavras saíam como um sussurro da boca de Antônio, que tentou gritar, Nascimento

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correr, e não conseguiu.

acontecendo na fazenda.

- Vamos brincar! Vamos brincar! Vamos brincar, Antônio? – Um grunhido rouco falou novamente aos seus ouvidos.

Olhou para cima, para o peito, imaginou o que o arrastara até ali. Eram teias de aranha. Aquilo que o pegou era uma aranha, e enorme.

- Não! Não! Socoooooorrooo... Socooooooorrooo... – tentou gritar inutilmente, desesperado.

Estava jogado num canto, imóvel. Tentou, tentou e nada. Não sabia mais o que fazer. Sentiu-se molhado. Olhou novamente para o peito e algo escorria. Era sangue! Era seu sangue.

Sentiu-se suspenso no ar. Algo ou alguma coisa o suspendeu, segurando-o sobre os braços. Estaria morrendo e Carlos o estava arrastando como arrastam os mortos em guerra. “Não!”, pensou. “Devo estar tendo algum pesadelo; daqui a pouco acordo”. - Meu Deus, faça com que eu acorde! – Sussurrou Antônio, delirando de medo.

Por alguns segundos se fez um silêncio que incomodaria até aqueles que residem em cemitério. Porque estava pensando em cemitério. Pensou em seu amigo, o padre... - Antônio, coitado...

- Vamos brincar, velho gagá! Vamos brincarrrrr! Viu apavorado, quando atravessou a porta da cozinha, o corredor que dava para seu quarto. Tentou desesperadamente soltar-se quando atravessou a sala. A porta que dava acesso para fora da casa abriu sozinha. Já estava no terreiro em frente da casa quando olhou o céu e o viu repleto de estrelas. Estrelas que pareciam gritar. Seu corpo estava dormente. Não conseguia se mexer, e sua língua o abandonara. Não conseguia agora sequer sussurrar. O medo aumentou quando viu a porta do depósito, que ficava a uns quinhentos metros, se abrir. Tentou novamente em vão soltar-se. Sentiu uma dor imensa quando sua perna enganchou-se em num toco na entrada, rasgando a calça e a perna. Agora estava certo de que iria morrer. Como poderia sentir dor se estivesse dormindo, pensou. Chegou à conclusão de que chegara sua hora. Ele seria o próximo daquilo que vinha 188 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte XXIII

A Visita Da Cigana

O dia estava bonito, o sol parecia fortificado. Para aqueles que o olhassem, diriam que teria tomado uma gemada de ovo de codorna, pois sua força era tamanha que até a sombra ardia. O domingo, no entanto, não era de felicidades. As pessoas chegavam com ares de condolências. Alguns na obrigação de prestar solidariedade. Na realidade, um e outro não gostariam de estar ali! Não porque Antônio estava estendido dentro da sua nova casa de madeira, mas sim porque naquele momento poderiam estar em algum lugar se divertindo. Outros realmente sentiam a ida de uma pessoa querida. Na sua maioria pessoas da família ou amigos antigos que já começaram a pensar na morte. Maria parecia uma velha de noventa anos. Não uma velha bem tratada, mas doente e acabada pelo tempo. Para quem a olhasse, veria não só lágrimas e angústia, mas também um rio de sulcos onde as lágrimas deslizavam escorrendo pelo rosto, que aparentava o solo rachado pelo calor. Seu olhar estava perdido. Estava do lado do caixão de seu marido, companheiro, amigo, aquele a quem dedicara sua vida. Esses eram seus pensamentos. As pessoas chegavam e se entristeciam só em vê-la. Davam os pêsames e não tinham respostas. Alguns que estavam na obrigação de estar ali se ofendiam, outros 190 | Caipora - Comadre Fulozinha

sentiam a dor na própria pele. Aqui em Pernambuco é comum as pessoas fazerem o auxílio funeral. Pode até parecer meio macabro, mas serve para que o enterro seja organizado sem custos de última hora. Antônio pagava não só o dele e sua esposa, mas também o de Carlos, foi o que este descobriu quando Maria disse que não se preocupasse com as despesas. Quando ligou para a funerária, ficou sabendo que era um dos dependentes do plano macabro de Antônio. A princípio, tentou justificar que ele o tinha como filho. Queria lhe oferecer alguma coisa, depois perguntou o porquê de ele ter feito isso. As perguntas e respostas desapareceram no meio de tudo o que acontecia. Alguns olhavam admirados diante da organização do enterro. Outros até acharam bonita a decoração. O pensamento do ser humano é interessante: como podemos achar belo um momento em que todos deveriam estar tristes? - A organização e a decoração estão lindas! – Foi o que muitos falaram antes mesmo de dar os pêsames à viúva. Carlos não sabia o que fazer, nem o que dizer. No dia anterior, assim que acharam Antônio sem vida, tratou logo de ligar para a polícia. Depois de dar depoimento na delegacia, foi um Deus-nos-acuda para liberar o corpo. Aquela manhã também não tinha sido das melhores, até porque um investigador apareceu por lá e fizera algumas perguntas. - Bom dia senhor, Carlos! Meu nome é Washington. Sou investigador na área de homicídios – foi falando e Nascimento

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mostrando sua identificação. Washington aparentava uns vinte e oito anos. Seu porte físico atlético, altura e voz firme intimidavam, de maneira natural, ainda mais pela sua função. Seus olhos pequenos e claros davam sagacidade aos seus questionamentos. Para aqueles que não o conheciam, era fácil descobrir o que fazia. Washington gostava disso, pois adorava investigar e descobrir coisas. Estava na polícia civil porque queria, tinha talento. Sua satisfação pessoal se misturava com a obrigação que era descobrir o culpado. Entre os colegas de trabalho, era admirado por uns e odiado por outros por sua postura e inteligência. Apesar de pouco tempo na corporação, já fora promovido por solucionar casos considerados difíceis. Quando chegou à fazenda, estava em uma moto 600 cilindradas, preta, que combinava até com seu jeito de andar. Neste dia, estava de calça jeans e jaqueta de couro preta e botas na mesma cor. - O senhor não é daqui, correto? - Não! Eu sou daqui! O senhor está na minha propriedade! – Falou Carlos áspero diante da pergunta que achou imbecil. - O senhor Antônio e sua esposa são registrados? – Perguntou o investigador deixando sem resposta a resposta de Carlos. - Sim, Senhor! - O senhor fez algum seguro para seus funcionários? 192 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Não, senhor! O que o senhor quer insinuar com isso? – Perguntou Carlos desafiador. - Senhor, atente só às minhas perguntas. Se o senhor preferir que as faça na delegacia, poderei providenciar! – Disse o investigador sem muita atenção ao que Carlos sentia. - O senhor esteve ontem e viu como foi que Antônio morreu. Eu não entendo por que me faz essas perguntas. - Senhor, estou fazendo meu trabalho. Deveria agradecer por eu estar aqui. O problema é que algumas coisas estranhas estão acontecendo nas redondezas. Encontramos um homem pendurado em uma árvore por cipós pelo pescoço e cheio de marcas de acoite, numa árvore tão alta que seria impossível ter praticado o suicídio. Fiquei sabendo por terceiros que há alguns dias sua fazenda foi atacada, se é que se pode dizer atacada, na primeira vez por gafanhotos e em seguida por cobras. Coisas que não são comuns nesta região. Perdoe-me mais uma vez! Estou fazendo meu trabalho! Não quero ter de lhe fazer perguntas na delegacia. O senhor tem sido um homem educado, sem contar que tenho ótimas informações a seu respeito. Diante de tamanha educação, Carlos ficou calado, esperando mais algumas perguntas. - Me desculpe! – respondeu Carlos amistosamente. - Não se preocupe! Sei que o senhor tem passado por situações ruins. Só gostaria de saber, se é que pode me responder, qual é a sua religião. - Minha religião? O senhor veio até aqui perguntar qual é a minha religião? Não acredito! – Respondeu Nascimento

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Carlos transtornado. - Não! Essa é só mais uma pergunta a que o senhor pode ou não responder. - Sou batizado na Igreja Católica, no entanto não participo. Ia sempre com minha mãe quando era criança e ultimamente poucas vezes com Antônio – sua voz saiu quase forçada quando falou o nome de Antônio. - Muito obrigado por sua atenção. Qualquer coisa que precisar é só entrar em contato. Peço desculpas por incomodá-lo num momento tão triste – falou e se levantou. Estendeu a mão para Carlos, que aceitou segurando-a com força. Entravam e saíam pessoas que Carlos não conhecia. Pensou como é que Antônio e Maria conheciam tanta gente que ele jamais vira por ali. Seus pensamentos não saíam da visão quando encontrou Antônio. Parecia um pesadelo. Não queria comentar sequer mais uma vez quando lhe perguntavam o que foi que aconteceu e como. Para muitos que o olhavam e o questionavam parecia arrogante no seu jeito de tratá-los, para outros era visível sua tristeza. Sandra parecia uma promoter. A única coisa que Carlos fez foi ligar para a funerária. Quando o pessoal chegou, Sandra tomou a frente e organizou todo o espetáculo macabro. Seu aspecto era tranquilo. Muitos, tanto da família quanto amigos de Antônio, a princípio pensaram que ela era funcionária da funerária. Para aqueles que se chegaram tentando em vão conseguir seu telefone, descobriram frustrados que ela era a namorada 194 | Caipora - Comadre Fulozinha

de Carlos. Uma das cantadas absurdas que Sandra escutou foi: - Qual é o próximo enterro a que você vai? Faço questão de não perder, só assim talvez consiga seu telefone – disse um homem que, aos olhos de Sandra, era um anão de jardim. - Não se preocupe. Se você conhece meu namorado, Carlos, farei questão de ir ao seu enterro! Isso, é claro, se ele for convidado e eu não tiver coisa melhor para fazer! A saída do enterro foi às 16h, tempo que, para Maria, foi o equivalente a uma eternidade. Quando Carlos chegou ao seu lado e disse que já era hora, não teve resposta; ela simplesmente cobriu o rosto com um véu preto e se afastou do caixão. Carlos sentiu uma agonia ao olhar aquela mulher que o acompanhava havia tanto tempo, que não teve sequer uma palavra para consolá-la. A eternidade pareceu acabar quando o Padre José, conhecido da família, começou a pregar para em seguida entregar a alma do paroquiano amigo a Deus. Padre José tinha 68 anos e, pelo jeito iria se aposentar na paróquia. Era um homem de aspecto frágil, estatura mediana, calvo e pele escura. Não era negro! Alguns paroquianos achavam que já estava velho para dirigir a igreja, no entanto seu olhar e maneira de tratar a juventude o fizeram um padre adorado por toda a congregação, principalmente os jovens. - E formou o senhor Deus o homem do pó da Terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida; e o homem tornou-se alma vivente. – Falou o padre José para uma multidão à sua volta. Nascimento

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Sua voz era miúda, porém nesse momento parecia um vozeirão, pois ecoou não só nas mentes daqueles que estavam ali e fizeram silêncio quando começou a falar, mas nos corações da maioria. - Filhos! Não gostaria de estar aqui enterrando um membro da nossa igreja e principalmente um amigo, que é Antônio. Muitos de vocês não tiveram a satisfação de conviver com uma pessoa como ele. – Falou e esfregou a testa coberta de suor. – É com muita tristeza que falo a vocês que o homem veio do pó e ao pó voltará. Nossa vida não nos pertence, é dádiva de Deus. Quando recitei um versículo de Gêneses é para que vocês entendam que não nos entristeçamos diante do que aconteceu ao nosso querido Antônio, mas que tenhamos alegria em Deus, que nos deu a vida. Repito: nossa existência é dádiva e bondade do nosso Criador. O padre José, por um momento, sentiu vontade de chorar. Pensou: “Senhor, por que Antônio teve que morrer dessa maneira? Isso não é digno de um homem com um coração como o dele. E sua esposa, Maria? O Senhor não os agraciou com filhos! O que será dela agora?” O sacerdote sentiu-se cansado e, no seu cansaço, repreendese: “Senhor, perdão! Não me escute num momento de fraqueza. Dê-me palavras para que console a mim a aos que estão presentes. Perdoe-me, ó Deus! Perdoeme”. Levantou sua cabeça, olhando ao redor, suspirou e continuou: - Quem encontra uma esposa acha uma coisa boa; e alcança o favor do Senhor. – Falou novamente, agora forte. – Falo não só do amigo, falo também do marido. Antônio foi agraciado com sua esposa. Sua vida pode ter 196 | Caipora - Comadre Fulozinha

sido curta, no entanto nosso Deus o agraciou com uma mulher, companheira essa que está aqui e sente o que nenhum de nós pode sentir agora. Peço, Senhor, que, do mesmo jeito que presenteou este homem, dê forças à sua mulher para que continue agora sua caminhada sozinha. Um nó de garganta foi sentido por todos aqueles que estavam escutando o padre José. Os casados procuram, sem tirar a atenção do padre, a mão do cônjuge. Alguns deixaram as lágrimas escorrerem. - Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes a terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás. – Falou o velho padre, tomando de surpresa a todos que se perguntavam o porquê da vida. – Filhos! Viemos do pó, e nos foi dado o direito a viver de maneira decente na terra do nosso Deus. Antônio sempre foi um homem do trabalho, de onde tirou, junto com sua esposa, o necessário para suas vidas. Falo, falo, falo! Não sou de jurar por ninguém que não seja decente. Eu dou o testemunho que Antônio sempre foi digno, justo nos seus deveres e obrigações, não só para com a justiça, mas também para com Deus. E eu, como seu confessionário, acompanhei-o, sabendo todas as aflições que o perseguiam como persegue a nós todos. Padre José pensou: “Senhor, me segure, não me deixe cair em tentação, tampouco blasfeme”. O sol parecia castigar o pobre padre. Já passava das 17h e o calor parecia o do inferno. - E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno. Filhos! Filhos! Viemos Nascimento

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do pó e ao pó voltaríamos se não fosse Nosso Senhor Jesus Cristo. Eis que espero em Cristo Jesus que Antônio esteja nesse momento nos braços do Nosso Senhor. Peço a todos que reflitam estas palavras, que temos direito a ressuscitar do pó e habitar na casa do Senhor. – Baixou a cabeça, enxugando desta vez não o suor só, mas também lágrimas que escorriam no seu rosto velho e cansado. – Perdoem-me! Perdoem-me! Que Antônio esteja nos braços de Deus. – Falou. Fez o sinal da cruz e retirou-se, acompanhado por um padre mais jovem que estava a seu lado. O sol meio encabulado olhou para Carlos no mesmo instante em que ele o olhou. Sentiu certo calafrio ao perceber o fim do dia. As nuvens começaram no seu balé circulando debaixo do céu que pedia descanso de mais um dia enfadonho e quente. Uma brisa fria começou a circular dentro do cemitério, causando arrepios de frio em alguns, e em outros de medo, pois a noite estava chegando, e cemitério não era o melhor lugar para ficar. As pessoas começaram a se dirigir a Maria para mais uma condolência. Quando a última beata abraçou Maria e foi embora, Carlos se aproximou. - Vamos para casa, Maria – falou quase sussurrando. - Me deixe, por favor, só mais alguns minutos a sós com ele – falou Maria, com voz cansada e entristecida. - Certo! Estou lá fora esperando. Fique o tempo que 198 | Caipora - Comadre Fulozinha

quiser. Quando Carlos saiu do cemitério, foi em direção à caminhoneta, que estava estacionada na frente. Entrou e sentou-se. Apoiou a cabeça sobre as mãos no volante. Pensou: “E agora, o que faço? Meu Deus, meu Deus, o que está acontecendo?” - Senhor! Senhor! – Falou a cigana. Carlos levantou a cabeça e procurou ver quem o estava chamando no lado da porta do passageiro. Uma mão bateu no seu ombro. - Senhor, gostaria de falar – repetiu a cigana, dessa vez sendo notada por Carlos, que teve um sobressalto. - Me perdoe, mas hoje não é um dia bom para adivinhações. Se você não incomodar-se, peço que vá embora – falou Carlos se esquivando e com aspecto não muito acolhedor. - Peço que me dê um momento da sua atenção. Vocês estão correndo perigo. O senhor tem que me escutar – disse a cigana, agora segurando com as duas mãos a porta do carro. - Já lhe disse para ir embora. Você não tem respeito pelo sofrimento dos outros? Sem contar que não a conheço. Se você não desaparecer agora, vou ter de partir para a ignorância – falou Carlos, fazendo menção que sairia e a colocaria para correr dali. - O senhor não tem muito tempo. Precisa saber com quem está lidando. Ele não vai parar enquanto não o destruir. Precisa me escutar – insistiu a cigana em tom de desespero. Nascimento

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- Já lhe disse para sumir daqui! – disse Carlos no mesmo instante em que abria a porta do carro com força, fazendo com que a cigana caísse. Maria saíra do cemitério e já estava do lado da porta do passageiro e não tinha notado nada. - Carlos? – Chamou Maria. - Sim! – Virou-se Carlos, ainda sem saber quem o estava chamando. – Podemos ir? – Foi falando e abrindo a porta. - Podemos! – Respondeu Maria entrando. Carlos ligou o carro e olhou para fora, procurando a cigana, que já não estava mais no chão. - Está procurando alguma coisa? – Perguntou Maria. - Não! Não! Vamos embora.

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Parte XXIV

Desespero

Sandra fora para Caruaru pegar roupas e algumas coisas que não podem faltar do lado de uma mulher, pois resolvera ficar na fazenda naquela noite. Quando o cortejo ia saindo com destino à nova morada de Antônio, Sandra falou para Carlos que não gostava de cemitérios, desculpando-se. Carlos achou estranho, no entanto não quis comentar, até porque não tinha mais cabeça para nada. A fazenda ficou totalmente vazia. Até os animais pareciam ter ido embora. O silêncio faria alguém ouvir até um alfinete que caísse no chão do terreiro, que era de terra. A brisa fria nesse dia chegou mais cedo. A noite arrumara serviçais, nuvens negras, que a fariam companhia em mais uma jornada. Os galos e animais domésticos foram dormir, ou se recolheram mais cedo; pareciam saber que alguém da casa se fora para sempre. Sandra estava na cozinha procurando algo doce para comer. Seu aspecto era de impaciência. Abria as portas do armário como quem procura a arma que usara para matar alguém. Olhou ao seu redor logo após bater uma das portas do armário. Sentia-se odiosa. Seus olhos 202 | Caipora - Comadre Fulozinha

refletiam o vazio dos seus pensamentos em relação a tudo. Olhou para a geladeira. Pensou visivelmente feliz que ali deveria haver algo para comer. Abriu a geladeira e viu uma travessa cheia de gelatina avermelhada. - Pensei que você não tivesse feito nada pra mim, sua velha rabugenta – falou com voz que não se identificaria o sexo. Sorriu. Pegou a travessa e levou à mesa. Atolou as duas mãos levando em seguida até a boca. Seu rosto e tudo o que tinha nele mostraram prazer. Atolou mais uma vez as duas mãos, enchendo-as, deixando praticamente vazia toda travessa. Sorriu pegando ao mesmo tempo a travessa, levando à boca. Sua língua passeava em cada pedaço. Quando percebeu que não tinha mais nada, começou a lamber os dedos, com tanta vontade que lembraria um esfomeado. Foi tirada de sua sessão de prazer com o quebrar do silêncio. Escutou pegadas na casa. Tentou imaginar quem seria. Seu estado agora era de alerta. Dirigiuse até a pia para lavar as mãos e o rosto, que estavam lambuzados, feito criança que acaba de comer papa com colher. Esfregou as mãos molhadas nos braços, levando em seguida ao rosto e retornando novamente aos braços para que enxugassem. Olhou para trás em direção à porta. Sentiu que as passadas aumentavam. Pensou novamente quem seria. Perguntou-se se teria dado tempo enterrar aquele velho gagá e voltarem. Poderia ser algum empregado que ficara encarregado de olhar a casa. - Não! Não é nenhuma passada de gente. Não sinto o cheiro de coisa humana – respondeu para si à meia voz.

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- Quem está aí? Quer falar comigo? Apareça logo! Não gosto de joguinhos – falou agora em tom alto, dirigindo-se até a porta. - Estou aqui! Logo atrás de você! – A voz era rouca e parecia sair da boca de centenas. Sandra parou, virando-se sem muita pressa. Não tinha forma. Era uma sombra em movimento. A cozinha pareceu escurecer ainda mais. - O mestre pediu que a olhasse. É do interesse dele – repetiram aquelas vozes que pareciam sair de um buraco distante. Do meio da fumaça, surgiu um clarão avermelhado como de fogueira. A fumaça negra foi aumentando à mesma proporção que o clarão foi crescendo. - Veja quem está atrás do seu novo amor! – A voz agora parecia rir, desdenhando de Sandra. A cozinha foi totalmente tomada pela fumaça negra que escorregava pelas paredes. Sandra olhou para o teto, seguindo aquilo que se formava no meio da fumaça. O clarão da fogueira no centro mostrava uma mulher. Sandra olhou-a para ver melhor quem era. Parecia familiar. Parecia que já vira. - É a cigana? – Perguntou Sandra, não gostando do que estava vendo. - Sim! É ela! Ela vai falar com Carlos sobre você. Ela vai falar com Carlos sobre você. – Foram falando aquelas vozes em coro não agradável e dissipando aquela fumaça. - Maldita! Maldita! O que é que você quer com 204 | Caipora - Comadre Fulozinha

ele? O que é que você quer comigo? – Perguntou Sandra gritando, como quem espera resposta. - Vou matar você, sua infeliz! Você não sabe quem sou eu! Vou matar você! Vou matar você! Sandra pensou em sair naquele exato momento à procura da cigana. Parou no meio do terraço e desistiu. Não poderia sair, pois com certeza o enterro terminara e Carlos com aquela velha já deveriam estar no meio do caminho. - Será que aquela cadela conseguiu falar com ele? – Perguntou-se! – O que será que ela sabe sobre mim? Não posso sair agora, vou ter que esperar e ver o que aconteceu. Muitas perguntas assolavam sua mente. Sandra resolveu sentar em uma das duas cadeiras de balanço que ficavam na varanda da casa e esperar. Quando se sentou, escutou de longe o barulho do motor do carro de Carlos. Ficou apreensiva. Seus olhos atentos como os de um cão que se vê encurralado olhavam para os lados impacientes. Chegou à conclusão de que o melhor era esperar. Falou pra si mesma que não teria dado tempo e, com certeza, Carlos não lhe teria dado atenção. Aquele momento não era dos melhores, sem contar que já estavam ali. Mesmo àquela distância, Sandra conseguiu ver Carlos abrindo a porteira. Maria estava lá, sentada, inerte em seus pensamentos não muito bons. O carro parou no meio do terreiro, Maria saiu Nascimento

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seguida por Carlos. Sandra se levantou e foi ao seu encontro, abraçando-o em seguida. - Tudo bem? – Perguntou ela esperando qualquer resposta. - Tudo – respondeu Carlos, abraçando-a forte. “Não! Não, ele não sabe de nada” – falou Sandra consigo mesma. Maria passou sem dar uma palavra. Entrou se dirigindo ao seu quarto no final do corredor. Olhou para a porta que pareceu estar a quilômetros de distância. Olhou ao seu redor e pediu a Deus que Antônio estivesse atrás dela e dissesse que tudo tinha passado de uma brincadeira de mau gosto. Acelerou o passo como quem acredita nas mentiras que inventamos para nós mesmos, procurando escapar das angústias da alma. Sentiu-se fraca na metade do caminho. Fechou os olhos e esfregou-os com força. Quando os abriu novamente, estava frente à porta. Levou a mão direita trêmula até a maçaneta segurando-a. As lágrimas escorreram do seu rosto agora marcado pela tristeza. Pensou em girar e parou. Pensou novamente em girar aquela maldita maçaneta e entrar naquilo que agora seria seu túmulo. Um soluço ficou parado na garganta. O desespero invadiu seus pensamentos. Soltou o soluço e berrou no mesmo tempo em que girou a maçaneta abrindo a porta. Olhou a cama e berrou novamente como um animal que perde sua cria. Berrou desesperadamente e atirou-se na cama em prantos. Carlos apertou mais e mais Sandra e procurou sua boa com a língua. A noite brindava o término do dia. A lua aparecia no 206 | Caipora - Comadre Fulozinha

horizonte iluminando o céu e a terra, sua amante eterna. Sandra aceitou o beijo abrindo a boca e lambendo os lábios de Carlos. Os pensamentos davam-lhe um prazer, daqueles causados pelo sangue escorrendo na faca como uma seringa cravada no ventre de uma virgem sendo estuprada e assassinada no meio da mata na terra. Carlos parou por instantes para se perguntar por que estava fazendo aquilo no momento em que perdera seu melhor amigo, ao qual tinha como um pai. Parou afastando Sandra devagar. Sandra recuou, não falando nada, só pegando em sua mão e o levando para casa. - Você está muito abatido. Acho melhor descansar um pouco – falou ela olhando para Carlos com ar carinhoso. - E você? - Não se preocupe. Faço companhia a você. - Certo! Sandra saiu puxando Carlos até o quarto. Puxou-o até a cama e o colocou para dormir, como quem coloca uma criança. Ajoelhou-se e tirou os sapatos e meia de Carlos, que adormeceu antes mesmo de Sandra lhe tirar a camisa. Ela o olhou. Sentou-se na cabeceira da cama e aguardou até que ele dormisse profundamente. Quando percebeu que ele estava realmente dormindo, cruzou seu rosto como quem benze alguém que está com olhado. - Carlos? Carlos? Carlos? Adormeça e só acorde quando eu mandar. Já de pé, olhou-o novamente e sorriu. Nascimento

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- Agora vou acertar as contas com você, cigana maldita. Agora é com você! Deitou-se do lado de Carlos. Fechou os olhos. Colocou-se em posição fetal. - Que minha forma original venha. Que minha forma original venha. Que minha forma original venha agora – falou nos seus pensamentos. O quarto estremeceu por segundos. Uma nuvem negra cobriu a cama e ela se desprendeu do corpo de Sandra como se estivesse saindo de uma banheira de água. Colocou-se de pé e flutuou na altura da cama. Dirigiu-se à porta do quarto, que se abriu; saiu e a porta foi fechando devagar. Olhou para o corredor que dava acesso ao quarto de Maria com um sorriso macabro na boca. Ela deveria estar dormindo também, pensou. Um sorriso medonho cobriu seu rosto. Sentia-se mais forte. Sentia-se poderosa. Poderia fazer agora o que bem quisesse. A cigana iria morrer. Atravessou a sala flutuando em direção à porta que dava acesso à saída da casa. A chave girou e a porta se abriu devagar. Olhou para o céu já no meio do terreiro. A lua estava lá, como um farol iluminando a terra. Abriu os braços como quem vai voar. Seu corpo de criança começou a tomar forma de um carcará. Bateu as asas e voou na imensidão do céu. Agora estava caçando Dardane, a maldita cigana. 208 | Caipora - Comadre Fulozinha

Quando Dardane percebeu que alguém chegara perto do carro, mesmo estando caída no chão deu um jeito de sair sem ser notada. Não foi a força que Carlos empreendeu na porta empurrando-a, e sim uma pedra que tirou seu equilíbrio. Quando conseguiu ficar de pé, do lado da Igreja Católica que ficava junto ao cemitério, resolveu que procuraria Carlos na fazenda. Lá ele teria de escutá-la, querendo ou não. A caminhada até a fazenda foi tranquila. Teve a impressão de que tudo daria certo. Até a noite estava clara, sem contar que não viu Sandra. Melhor ainda, pensou. Ela deveria estar em Caruaru. Sabia que ela não gostava de cemitérios. Não que não gostasse, sabia que ela não podia entrar. O lugar é sagrado. Procurava na sua cabeça a melhor maneira de abordar Carlos dessa vez para lhe contar tudo o que sabia sobre Sandra. Não! Não, não era Sandra, era ele. Dardane começou a acreditar que tudo daria certo. O caminho parecia livre. Suas visões até agora não tinham dito nada. Sim, pensou, vai dar tudo certo. Quando chegou à fazenda, eram por volta de 19h30min. O motivo de ter demorado tanto era que seu tornozelo estava incomodando, retardando suas passadas. Sabia que aquela era a fazenda. Viu que tinha uma porteira que preferiu não abrir, passando por cima. Um pensamento a perturbou por instantes. E se lá tivesse cachorro? Não teria! Ele os espantaria de um jeito ou de outro. Enquanto estivesse por ali, os cachorros não voltariam para a fazenda. Sorriu sozinha, agradecendo por isso. Nascimento

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Conseguiu ver a outra porteira e seguiu em frente mancando. Escutou um bater de asas, levantou a cabeça procurando no céu. O que seria aquilo. Viu uma ave parecida com um gavião voando em círculos. Não deu muita atenção, voltando a caminhar. A ave fez um barulho chamando novamente sua atenção. Olhou para cima e, dessa vez, para sua tristeza, a ave mergulhara como um raio em sua direção. Tentou imaginar qual o motivo, não conseguiu. Esquivou-se, se livrando por frações de segundo das garras daquilo que a estava atacando. O carcará planou e levantou voo novamente. Circulou o céu como quem planeja o próximo ataque. Dardane olhou ao seu redor, saindo correndo em direção às árvores que ficavam em sentido oposto à casa de Carlos. Poderia ficar por ali até aquela ave enfurecida desistir. Com certeza ela iria desistir. Quando Dardane chegou até as árvores, logo descobriu que se tratava de mangueiras. Sentiu uma furada no tornozelo que a fez balançar até cair de dor. Apoiou-se na árvore para sentar em seguida. Lá no céu, o carcará continuava voando em círculos. Dardane podia ver e escutar o barulho que fazia. Baixou a cabeça para olhar para o pé. A dor era intensa. Teria quebrado alguma coisa? “Não!”, pensou. Aquilo era só uma torção e logo ficaria bem, era só descansar um pouco e movimentar o pé. Olhou novamente para o céu, procurando aquela ave maldita que a estava perseguindo. Cadê você? Cadê você? Resolveu ir embora? Pensei 210 | Caipora - Comadre Fulozinha

que fosse passar a noite toda me vigiando! Não quero nada seu, nem sei onde é seu ninho – falou a cigana para si mesma. A Lua pareceu clarear mais ainda aquela noite. Seu rosto pareceu iluminar. Não tinha medo do escuro, no entanto ali era melhor que fosse claro. Sorriu e agradeceu à Lua. Segurou-se na árvore para se levantar. Gemeu com a dor. Resolveu se sentar novamente quando escutou o bater de asas do carcará. Procurou no céu o barulho e seu semblante escureceu. - Não! Não! Não! – Gritou aterrorizada. O carcará parecia ter crescido mil vezes. E o que saía agora do que parecia um bico já não era o barulho de uma ave e, sim, o zumbido de milhares de abelhas. A ave era uma mistura de amarelo e vermelho. Sua forma de pássaro foi se desfazendo. Uma nuvem colorida foi crescendo conforme o pássaro ia se desfazendo. - Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus, o que é isso? – Gritou desesperada. O barulho era ensurdecedor. O clarão provocado pela lua foi desaparecendo. Aquela nuvem de abelhas foi tomando de conta do céu. “Tenho de sair daqui! Ele vai me pegar!” Começou a rastejar devagar. Sentiu uma dor enorme e gemeu trincando os dentes, tentando sufocar qualquer barulho. A nuvem parou e pareceu olhar para baixo da árvore. Uma abelha saiu e foi em direção à cigana. Parecia Nascimento

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querer ver onde ela estava. Quando a cigana rastejou por uns cinco metros tentando não fazer barulho, ouviu um zumbido à sua frente. Era minúscula, pensou. Seus cinco olhos pareciam a observar. Era amarelo-avermelhada e amarela. Suas antenas pareceram balançar na tentativa de entrar em comunicação com as outras, pensou Dardane. Olhou-a e fechou os olhos, em seguida os abrindo e esperando que ela não estivesse mais ali. Aquela africanazinha pareceu sorrir. Parada a olhou. Foi voando bem devagar e pousou no seu nariz. O desespero tomou de conta de Dardane, que cortou a respiração na tentativa de não a espantar. O suor escorreu de sua testa entre os olhos e foi parar bem nas patinhas da abelha, que a olhou triste por estar molhada e voou. Dardane começou a rastejar com mais velocidade. A abelhinha foi em direção à nuvem, como quem vai atrás de reforço. Subiu, subiu, subiu e parou em frente às amiguinhas, que pareceram chamá-la para se misturar. E foi o que ela fez. A nuvem soltou um berro com vozes de zumbidos que Dardane, no seu desespero, entendeu. - Você vai morrer, sua vagabunda! Você vai morrer! Mergulharam na escuridão da noite atrás de Dardane, que olhou para trás por sobre seu ombro esquerdo vendo uma nuvem negra em sua direção. Tentou levantar, não conseguiu; sua perna estalou, provocando uma dor enorme. Rastejou o mais rápido que pôde. 212 | Caipora - Comadre Fulozinha

Pensou que o melhor era ficar quieta. Parou. Baixou a cabeça cobrindo o rosto com as mãos. Iria brincar de estátua. Seus pensamentos de criança a lembraram da brincadeira. Se conseguir não se mexer, o urso não te pega, as abelhas não vão te ferroar. Enquanto pensava, a nuvem a cobriu. As abelhas foram pousando uma a uma sem pressa, como aqueles maníacos que se excitam com o desespero da vítima. O zumbido era aterrorizante, medonho. Dardane pensou em Carlos. Não conseguiria ajudá-lo. Era ela quem precisava de ajuda. Seu corpo estremeceu ao lembrar que não adiantaria ficar parada, pois aquelas abelhas não eram abelhas normais. Estavam ali para matá-la e era justamente o que iriam fazer. O zumbido pareceu falar algo que não entendeu a princípio. - Mandei você cair fora. Dei uma chance. Você não me ouviu. Pensei que já estivesse morta. Dessa vez você vai morrer. Morrer. Morrer. Morrer... – era com milhares de vozes zumbindo ao seu ouvido. O terror tomou conta não só do corpo, que não parava mais de tremer, mais também da razão. Levantouse de repente como quem está na frente da batalha cravado de balas, dá o grito de desespero e sai atirando para todos os lados, tentando levar alguém para o mundo dos mortos consigo. - Maldito! Maldito! Maldito! Você não vai conseguir! – Gritou Dardane desesperada, balançando os braços sem parar e correndo. A primeira ferroada a fez estremecer. Levou as mãos ao rosto. Seus olhos pareceram explodir. O que Nascimento

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se seguiu; foram ferroadas e mais ferroadas. Dardane balançava em vão, tentando afastar as abelhas que já estavam entrando em seus ouvidos. Ferroadas e mais ferroadas. Seu vestido parecia ter sido confeccionado de abelhas. Saltava puxando-o, pois as abelhas já estavam por baixo ferroando uma após a outra. Puxou com tanta força que rasgou o vestido, ficando simplesmente com a calcinha da cor roxa toda rendada. Sentiu uma dormência no corpo. Gritava e corria em desespero, sem ver aonde ia. As abelhas grudadas em todo seu corpo como uma malha cobriam toda sua nudez. Não via nada. Saiu no meio da mata desesperada, tentando em vão escapar, até que bateu numa árvore e despencou no chão já sem sentidos.

Parte XXV

Quando Carlos acordou no outro dia, por volta das cinco horas, percebeu que estava de calça. Sandra estava do seu lado dormindo. Balançou a cabeça para clarear seus pensamentos. Não acreditava que tinha dormido aquele tempo todo. Justificou seu sono de bela adormecida com os últimos acontecimentos. De fato, estava muito cansado.

Caída, contorcendo-se no chão, Dardane agora era uma almofada de costureira para aquelas africanazinhas. Quando parou de se mexer, fez-se silêncio. As abelhas foram saindo uma por uma.

Tirou a calça, dirigindo-se para o banheiro. Parou. Lembrou, já sem cueca, que teria de pegar uma toalha. Voltou, abriu a gaveta do guarda-roupa e tirou uma azul rendada.

Uma nuvem foi se formando acima de Dardane e tomando forma de um carcará novamente, que bateu em seguida as asas e voou em direção à fazenda.

Quando a água fria bateu no seu peito, sentiu o alívio de quem precisa acordar e resolver o que tem de ser resolvido. Deixou que a água batesse na sua cabeça por longo tempo, como quem quer limpar os pensamentos.

A Verdade

E Sandra? Como ela estaria diante de tudo o que ultimamente vinha acontecendo? Um pensamento lhe veio à tona. Estava agora no apartamento de Sandra no dia em que a conhecera. - Pode entrar. - Você mora sozinha ou com seus pais? – Perguntou Carlos, curioso em saber como deveria se comportar. - Só! Por que pergunta se moro só? Está com más 214 | Caipora - Comadre Fulozinha

Nascimento

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intenções?

“Ignoratus tuunz vos assignaturum meo”.

- Me desculpe. É que... E se você for casada e seu marido entrar por aquela porta querendo me matar? – Respondeu Carlos tentando fazer piada.

Quando ela parou, Carlos esperou um pouco mais e saiu do banheiro. Foi quando olhou para a estante e viu o pote.

- É isso que você pensa de mim? É isso que dá... Não gostei do que você falou – repreendeu Carlos com ironia.

- O que é que tem aqui dentro desse pote? – Perguntou Carlos o segurando.

- Perdoe-me! Estou brincando. - Vou perdoá-lo só dessa vez! Quer beber alguma coisa? Uma cerveja? - Aceito o que você me der. Carlos não tinha lembranças nítidas quando entrou no apartamento de Sandra pela primeira vez. Lembrava de um e outro detalhe, mas não tudo. Era como se tivesse apagado aquele primeiro momento. Lembrou que abaixo do quadro, cuja figura parecia se movimentar, havia um pote azul claro, que Sandra tinha dado a ele para cheirar. Não lembrava qual era o cheiro. Depois da terceira cerveja, Sandra perguntou se ele queria tomar um banho. Ele até perguntou a ela se estava fedendo, e ela respondeu que só um pouco e riu. Quando Carlos foi saindo do banho, escutou Sandra declamando alguma coisa que agora lembrava com nitidez. Parou dentro do banheiro com a porta entreaberta e ficou prestando atenção. - “Vidro sagrado, que pela minha própria mão foi preparado, o meu sangue está preso no seu interior. Toda a pessoa que o cheirar há de ficar por mim encantado. 216 | Caipora - Comadre Fulozinha

- É uma essência mágica – responde Sandra rindo. - Você é uma bruxa? Se for, é a mais bela que já vi. Quando saiu do banho, não estava com sono. Daí tudo o que acontecera até acordar pela manhã não lembrava. Uma voz ecoou na cabeça. Era a cigana falando para ele ter cuidado com ele. Seus pensamentos voltaram para frente do cemitério no dia anterior. - Senhor, gostaria de falar – repetiu a cigana, dessa vez sendo notada por Carlos, que teve um sobressalto. - Me perdoe, mas hoje não é um dia bom para adivinhações. Se você não incomodar-se, peço que vá embora – falou Carlos se esquivando e com aspecto não muito acolhedor. - Peço que me dê um momento da sua atenção. Vocês estão correndo perigo. O senhor tem de me escutar – respondeu a cigana, agora segurando com as duas mãos a porta do carro. - Já lhe disse para ir embora. Você não tem respeito pelo sofrimento dos outros? Sem contar que não a conheço. Se você não desaparecer agora, vou ter que partir para a ignorância – falou Carlos, fazendo menção que sairia e a colocaria para correr dali. Nascimento

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- O senhor não tem muito tempo. Precisa saber com quem está lidando. Ele não vai parar enquanto não o destruir. Precisa me escutar – insistiu a cigana em tom de desespero. - Já lhe disse para sumir daqui! – Respondeu Carlos, no mesmo instante em que abria a porta do carro com força, fazendo com que a cigana caísse. A cigana disse que era ele e não ela. Daí não poder ser Sandra. Olhou através do boxe e viu uma sombra que parecia uma mulher. Tentou fitar e nada, não tinha ninguém. “Meu Deus! Será que estou ficando louco. Agora estou vendo fantasmas” – falou Carlos em pensamento - Lembra-se do porteiro, Carlos? – Uma voz feminina parecida com a voz da cigana, no entanto muito distante. Teve a impressão de já ter escutado aquela voz. - Agora estou escutando vozes. Meu Deus, o que está acontecendo comigo? – Clamou Carlos agora em voz alta. – Meu Deus, o que está acontecendo? A visita do investigador veio à tona na lembrança de Carlos. - Senhor! Estou fazendo meu trabalho. Deveria agradecer por eu estar aqui. O problema é que algumas coisas estranhas estão acontecendo nas redondezas. Encontramos um homem pendurado em uma árvore por cipós pelo pescoço e cheio de marcas de acoite, numa árvore tão alta que seria impossível ter praticado o suicídio. Fiquei sabendo por terceiros que há alguns dias sua fazenda foi atacada, se é que se pode dizer atacada, 218 | Caipora - Comadre Fulozinha

na primeira vez por gafanhotos e em seguida por cobras. Coisas que não são comuns nesta região. Perdoe-me mais uma vez! Estou fazendo meu trabalho! Não quero ter que lhe fazer perguntas na delegacia. O senhor tem sido um homem educado, sem contar que tenho ótimas informações a seu respeito. - O que teria a ver um homem enforcado, com cobras e gafanhotos e aranhas? Antônio morreu com picadas de aranhas! O homem era de Caruaru! Por que o investigador saiu de Caruaru para ver uma morte em Bezerros? O homem pendurado na árvore era porteiro do prédio onde Sandra mora. A lembrança da cigana surgiu novamente. Carlos deu um sobressalto, olhando novamente através do boxe. Era ela quem estava ali. A água escorrendo no seu rosto deixava sua visão reduzida. Pensou por que não acendera a luz do banheiro. Ou teria acendido? Não! Pensou. Não acendi porra de lâmpada nenhuma. Um frio rasgou-lhe a espinha. Estava de volta, sim agora estava no banho. A água não estava fria. O frio que sentiu foi causado pela voz de Cigana. Parou! Pensou! Repreendeu-se por estar pensando tais coisas. Resolveu sair do banho. Olhou ao seu redor como quem procura algo, talvez alguma coisa. Esfregou o vidro do Box cinza escuro olhando em seguida para ver se via alguma coisa antes de abrir a porta. Abriu a porta e saiu, como quem está correndo para não ver o que não existe. O tapete debaixo dos seus pés ficou molhado. Procurou a toalha que deveria estar pendurada, não a achou. Quando pensou em pegar outra toalha, sentiu que Nascimento

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pisara em alguma coisa. Era a maldita toalha, reclamou. Enxugou os cabelos e o corpo quase que em câmara lenta. Enrolou a toalha na cintura e dirigiu-se até o quarto.

sussurrando e tremendo, procurando não fazer barulho.

Carlos sentia certa tranquilidade. Tudo parecia estar perfeito. Não lembrava sequer do que vira ou pensara que vira quando estava tomando banho.

O silêncio em seguida foi tão grande que Carlos preferiu escutar qualquer coisa.

Seus passos, como em câmara lenta, pareciam guiálo por um caminho que ele mesmo não sabia qual era, mesmo estando dentro de sua própria casa. A porta se aproximava e Carlos não percebeu que até o trinco lhe pedia para que girasse a maçaneta, que, àquela altura, deveria estar dormindo. O ar pareceu parar quando Carlos tocou a maçaneta, que por alguns segundos pareceu reclamar por ele tê-la acordado pela segunda vez uma hora daquelas. Sentiu a mão congelar quando a segurou. A porta deveria ter rangido, no entanto não o fez. Seus pensamentos pareceram aflorar novamente. Sentiase como se estivesse saindo de um transe de hipnose ou até mesmo de uma anestesia geral. As visões que tivera no banheiro voltaram como a velocidade de uma rajada de metralhadora. Parou no meio da porta e olhou para a cama onde Sandra deveria estar dormindo. Ela estava lá? O que pareceu ser Sandra estava coberto por uma nuvem negra que a invadia pelas narinas e boca. Deu um passo para trás, voltando para o banheiro, e viu Sandra virar a cabeça enquanto se sacolejava, como quem está tendo um ataque. - Não! Não! Ela não me viu! – Falou Carlos 220 | Caipora - Comadre Fulozinha

Viu a cama tremer e Sandra soltava um gemido que lembrava uma gata no cio.

“O que vou fazer? O que faço, meu Deus? O que é aquilo que está na minha cama? Quem é Sandra? Por que as lembranças vão e vem ao mesmo tempo? Estou louco? O que fizeram comigo? O que ela fez comigo?” – perguntava-se Carlos pra si mesmo em silêncio. Teria de voltar. Ela com certeza não o vira. O que fazer? A morte parecia beliscá-lo. Um pavor enorme aflorou na sua mente. Tudo estava emaranhado na sua cabeça. Não podia ficar ali, teria de voltar seja lá para o que fosse acontecer. O silêncio pareceu eterno. As paredes o olhavam e o mandavam calar-se. Suas pernas começaram a tremer. O pânico foi tomando de conta da razão. Sentia que iria ficar louco se não saísse dali. - Carlos? Carlos? Você está no banho? – Era Sandra o chamando. Foi tomado por um choque que o fez balançar. “E agora?” – pensou sem saber se deveria ficar feliz ou mais apavorado. - Carlos, responda! – Falou Sandra como quem espera uma resposta rápida. - Estou terminando de me enxugar – respondeu Carlos, parado no banheiro como estátua. Nascimento

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Disse olhando no espelho em voz baixa. - Ela não vai matá-lo agora! Ela não vai lhe fazer mal algum agora! Vá! Vá! Não fique aqui parado. “Seria ainda noite?” Pensou, esperando que já tivesse amanhecido. Lembrou os filmes de vampiro e lobisomem a que já assistira. Eles não faziam mal algum durante o dia. Chegou à conclusão de que, se ela fosse fazer alguma coisa, já teria feito, até porque ele estava dormindo quando ela saiu. Olhou ao seu redor. Olhou-se novamente no espelho e deu um sorriso. “Sim! Ela não vai me fazer nenhuma coisa agora. Talvez depois. Tenho que sair.” - Carlos. Preciso ir ao banheiro. Você vai ou não vai sair? – Perguntou Sandra com voz de quem não aguenta mais esperar. Foi automático! Segurou a maçaneta empurrando a porta e saiu de sua muralha protetora. - Bom dia! Tudo bem? – Falou Carlos, tentando esquivar seus olhos de Sandra. - Agora está! Quer me matar? Não consigo prender o xixi – foi falando e entrando no banheiro. “O que faço agora?” Afastou as persianas com a mão e viu que ainda era noite. O céu estava escuro, de maneira que sequer viu uma nuvem. As estrelas e a Lua também não estavam lá. Como poderia ser noite se levantou quase às 5h. Virou e olhou para o relógio. Agora tudo estava mais confuso. Ainda não eram 5h. 222 | Caipora - Comadre Fulozinha

Dirigiu-se até o guarda-roupa. Tirou uma calça e uma camisa, que jogou na cama. Abriu a gaveta, pegou uma cueca e tratou logo em vestir. Abriu a gaveta de baixo e pegou um par de meias. Vestiu-se tão rápido que, quando Sandra abriu a porta do banheiro, Carlos já estava totalmente vestido e calçado. - Vai aonde uma hora dessas? – Perguntou Sandra. - Tenho algumas coisas para tratar – falou Carlos se dirigindo à porta do quarto. - Não vai me dar sequer um beijo? Carlos parou e olhou para a maçaneta. “O que faço?”, pensou. Virou-se, caminhou até Sandra e a beijou sem sequer olhar. Virou-se novamente e saiu rapidamente. - Tchau! – Falou Sandra, seguindo-o com os olhos sem entender nada. Quando Carlos encostou a porta, sentiu alívio e deu um sorriso. Seu único desejo era sair dali. Teria de pegar as chaves do carro. Onde deixara? Sentiu-se meio tonto. Pensou novamente que poderia estar drogado. Não! Não estava drogado. Estava enfeitiçado. Riu quando olhou para o raque e também do pensamento. As chaves estavam lá. Não acreditava em bruxaria, no entanto também nunca vira fumaça entrando pelas narinas de alguém. Tampouco, olhos que iluminam. Pegou as chaves, olhou para a porta sentindo-se a dois passos da liberdade. Não quis olhar para trás. Caminhou com vontade de correr até aquilo que lhe parecia a saída de tudo o que estava acontecendo. Abriu a porta com tanta vontade que sequer lembrou que estava deixando Maria na companhia daquela que provavelmente matara Nascimento

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Antônio, seu marido. “Vou para Caruaru procurar o investigador” – falou Carlos para si mesmo, enquanto atravessava a porta de saída da casa. Ele só deu conta de que estava em Caruaru quando parou, olhou para a placa para dar preferência aos veículos que vinham da direção do HRA (Hospital Regional do Agreste). Por alguns segundos, perguntou-se o que iria fazer ali. Seus olhos, direcionados para o nada, procuravam alguma resposta. - Sim, agora lembro! – Falou sozinho. Sabia que a primeira delegacia ficava aos pés do monte. Ponto turístico não mais frequentado, pois era lugar constante de assaltos. O tempo parecia irreal. Olhou ao redor, já estava de pé olhando para a delegacia. Parou, olhou e resolveu entrar. Um calafrio percorreu seu corpo quando viu um rapazola encostado no balcão. Não podia ser! Pensou. Sim, era ele! Olhou ao seu redor. As paredes, comprimiramse. Um suor pegajoso grudou seus dedos. Perguntou-se o que Bento estaria fazendo ali. Pensou ainda em voltar depois. Era tarde! - Senhor! Senhor, Carlos? – Falou Bento indo em sua direção e estendendo a mão. Carlos a segurou sem saber o que falar. - O que faz aqui? – Foi perguntando Carlos. - Não espero que se lembre. Só me viu uma vez – foi falando antes mesmos de Carlos terminar. 224 | Caipora - Comadre Fulozinha

- O que faz aqui, Bento? – Perguntou Carlos novamente? - Estou esperando o investigador que está tratando do caso que envolve sua namorada. Não! Não poderia ser. O que estava acontecendo. Um fio de lembrança veio. O dia em que conheceu Bento aflorou como um banho frio que desperta os cabelos do corpo. “Minha namorada?”, pensou Carlos ainda segurando a mão de Bento. - Não estou entendendo o que você está falando, Bento! - Me desculpe! Não quero assombrá-lo. Tentei lhe avisar. O senhor não quis saber de nada, no entanto agora está aqui. - Vim... - Eu sei o que o senhor veio fazer aqui! Onde ela está? – Foi falando e soltando a mão de Carlos. - Ela quem? – Perguntou Carlos sem saber o que dizer. - Ela! Sua namorada! – Respondeu Bento fixando os olhos em Carlos. – O senhor sabe do que estou falando. - Eu não sei do que você está falando! Vim aqui por conta da morte de um funcionário meu – respondeu Carlos fitando Bento – O investigador falou que gostaria de conversar comigo. É por isso que vim! Tem outra coisa. Não sei por que estou lhe dando satisfação. Muito pouco o conheço – respondeu Carlos se esquivando. Nascimento

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- Às 6h! Senhor! Senhor... Bento olhou para a entrada e viu que o investigador acabara de chegar. Suas palavras foram cortadas e sua atenção foi seguida por suas passadas na direção dele. - O que faz aqui uma hora dessas, Bento? – Perguntou o investigador Washington. - Preciso falar com o senhor – respondeu Bento num tom de que o investigador Washington não gostou.

- Bom-dia, Carlos! O que faz por aqui? – Perguntou com ar interrogador – Você veio com ele? Vocês estão querendo brincar comigo uma hora dessas? - O senhor falou que estaria à disposição. Quando cheguei aqui ele já estava. Preciso falar com o senhor. Estou com sérios problemas – falou Carlos com ares de quem está desesperado. - Não posso falar com nenhum dos dois agora.

- Doutor Washington... Preciso lhe contar uma coisa – falou Bento o segurando pelo braço.

Washington, enquanto falava com Carlos, segurava o braço de Bento. Chegou à conclusão de que não deveria deixá-los ali. Era melhor que estivessem por perto. Iria até o HRA com os dois e depois perguntaria o que eles queriam. Sem contar que gostaria de escutar algumas explicações.

- Já lhe disse que não tenho tempo agora! – Falou afastando Bento.

- Quero que venham comigo, no entanto vão ficar de boca fechada e dentro do carro até que eu veja a mulher.

- Veja como você fala comigo, Bento! Não estou aqui para brincadeiras. Sem contar que estou indo até o HRA. Não posso e não quero falar com você agora.

- Ela matou a cigana! Washington pareceu paralisado por alguns segundos. Como ele sabia da morte da cigana, se ela acabara de chegar no hospital? Olhou para Bento sem acreditar naquilo que acabara de ouvir. A lógica parecia ter abandonado aquele caso. Não que tudo não pudesse ser explicado. Segurou Bento pelo braço esquerdo, puxando-o para dentro, quando viu Carlos. O que Carlos estava fazendo uma hora daquelas com Bento na delegacia? Não, Não, não queria adivinhar. - Bom-dia, doutor! – Cumprimentou Carlos meio tímido. 226 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Que mulher? – Perguntou Carlos. - A cigana! Aquela que queria falar com você – respondeu Bento de cabeça baixa. Carlos se segurou no balcão para não cair. Os olhos escureceram e um frio correu sua espinha. - O que foi, Carlos? Esta se sentindo mal? – Washington foi falando ao mesmo tempo em que soltava o braço de Bento, que já reclamava. - Estou bem! – Falou Carlos se recuperando. – Vamos! - Doutor Washington, vamos! – Chamou um policial militar da porta da delegacia. Nascimento

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No caminho até o HRA, não se escutou uma palavra de Bento e de Carlos. O que se ouviu foram duas ligações que Washington recebeu e algumas palavras que ela dera com o policial militar que estava dirigindo. A coisa parecia irreal. A sirene da viatura fora acionada desde a saída da delegacia. Carlos estava atônito. Não conseguia pensar em nada. Bento, ao seu lado, parecia um ventríloquo. - Fiquem aí! Não saiam! Quando terminar conversamos – falou Washington enquanto saía. Nenhum dos dois saberia falar depois por que não trocaram uma palavra enquanto o investigador estava ausente. Quando Washington entrou no HRA, foi ao encontro de um policial militar que registrava as ocorrências. O policial Fred era um homem atarracado e com ar enfadonho. Estava atrás de um balcão, sentado num banco, com cara não muito amigável. - Bom-dia, Fred! - Bom-dia, investigador! – Respondeu Fred não muito feliz com o cansaço da noite. – O que você faz aqui uma hora dessas? Não temos nada pra você! - Gostaria de saber quem foi que trouxe uma mulher aparentando trinta anos e vestida como cigana – falou Washington sem dar muita atenção ao estado do colega. - Segundo as enfermeiras, ela apareceu do nada 228 | Caipora - Comadre Fulozinha

na recepção. Quem chamou a enfermeira chefe foi o recepcionista. Quando chegaram perto dela, descobriram que estava todo picada por abelhas – falou Fred tentando se esquivar da responsabilidade de não a ter visto entrando. - Fred, me responda: onde você estava quando esta tal cigana apareceu do nada? – Perguntou Washington, interrogador. - Estava no banheiro! Não me venha dar sermões. Quem passou a noite toda aqui fui eu, sem contar que ninguém viu essa mulher entrando. Não fui apenas eu – respondeu encarando-o. - Certo! Certo! Onde ela está? - No apartamento doze! Estão pensando em transferir a moça pra Recife. - Obrigado, Fred! Vou dar uma olhada nela. - O que essa cigana tem de tão importante, Washington? Ela só teve o azar de encontrar um monte de abelhas africanas em sua frente. - Você falou abelhas africanas? - Sim! Foi o que disse a enfermeira quando perguntei o que aconteceu com ela. - Obrigado, Fred! Vou vê-la! Obrigado! “O que está acontecendo naquela fazenda?”, pensou Washington enquanto se dirigia ao quarto onde Dardane se encontrava. Não gostava do rumo que as coisas estavam tomando. Primeiro foram os gafanhotos. Depois as Nascimento

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cobras. Em seguida as aranhas que mataram Antônio. Sem contar o porteiro pendurado no meio da mata. Enquanto caminhava, lembrou que, dentro da viatura, estava aquele moleque que dizia saber quem estava naquele quarto de hospital todo intoxicada. Sem contar o dono da fazenda, que apareceu dessa vez com cara de doido. Quando chegou à frente do quarto onde Dardane estava, uma enfermeira estava saindo com um tubo de soro vazio em uma das mãos. Olhou-a e parou à sua frente. - Com licença, senhor! – Pediu a enfermeira a Washington. - É neste quarto que se encontra a cigana? – Perguntou Washington mostrando sua identificação. Estava escrito no crachá de Rose “Enfermeira Chefe”, percebeu Washington. Era uma mulher aparentando uns trinta anos. Estatura mediana, branca. Seu sorriso metálico lhe dava um certo charme. Washinton se perguntou qual seria a cor de seus cabelos, pois estavam cobertos por uma espécie de touca. - Sim! Por quê? O senhor está agora no controle de vetores? – Perguntou a enfermeira com ar de desdenho. - Não, senhora! Não estou no controle de vetores, e só lhe peço que responda a minhas perguntas sem gracejos. - Acho que não começamos bem! Correto, detetive? Meu nome é Rose. E o seu, detetive? Não deu pra ler! 230 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Perdoe-me! Meu nome é Washington! Poderia me responder a algumas perguntas em relação a essa cigana que está no quarto? – Perguntou com ares de boa vizinhança. - Agora sim, detetive Washington, podemos conversar. O senhor pode me aguardar alguns minutos enquanto jogo isso? – Levantou as mãos mostrando – Garanto que não demoro. Se o senhor quiser entrar e ver a situação em que ela se encontra, pode! Volto já! - Tubo bem! Aguardo aqui! – Respondeu enquanto olhava para os lados. O corredor era todo branco, com seus azulejos de segunda. As lâmpadas fluorescentes iluminavam as paredes com certa preguiça. A claridade só se fazia, pensou, por conta da cor branco neve da paredes e do teto. Mesmo sendo policial, não gostava daquele ambiente. Não ficava impressionado, já estava acostumado a ver gente morta de todas as maneiras possíveis. Só não gostava. Quando Washington menos espera, recebe um tapinha nas costas. - Vamos, detetive Washington? – Falou Rose. - Vamos! Por favor pode me chamar simplesmente de Washington. Se não vou ter que lhe chamar de “Enfermeira Chefe Rose”. - Tudo bem pra mim! – Foi falando e abrindo a porta do quarto. Aquela

manhã

parecia

tranquila,

pensou

Nascimento

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Washington, até porque o movimento de pessoas no corredor onde estava foi nenhum.

- Não entendi! Não falo inglês! – Falou Washington tirando a atenção de Dardane e olhando para Rose.

- Qual o estado dela? Segundo o pessoal da ocorrência, ela foi picada por abelhas africanas – perguntou Washington enquanto seguia Rose.

- Killer-bee é um termo utilizado nos EUA que significa abelhas-assassinas.

- O senhor diz quadro clínico, correto? O estado físico dela o senhor vai ver com os próprios olhos.

- Como falei, não sou conhecedora, só que, quando ela chegou aqui, tive que tirar os ferrões que estavam no seu corpo. Para que o doutor fizesse um diagnóstico preciso, dei uma olhada na internet e comparei os ferrões. Fiz algumas perguntas aqui ao pessoal e cheguei à conclusão que, por aqui, não há apiários que criem essa africana. Isso foi o que me deixou mais perturbada.

- Por favor, só Washington! Sem formalidade, certo, Rose? Se houve resposta, Washington não ouviu. Seus olhos agora estavam fixos na cigana deitada sobre a cama. Um silêncio se fez. O aspecto não era de uma mulher nem de homem. Rose foi para o outro lado da cama, onde pegou uma prancheta. - Você está bem, Washington? - Estou! Nunca tinha visto uma coisa dessas! Ela vai morrer? – Perguntou Washington com ares de espanto. - Peço que não fale essa palavra aqui dentro do hospital, muito menos ao lado de um paciente – repreendeu Rose. - Desculpe-me! – Respondeu constrangido. - Só não entendi uma coisa! Estou aqui há mais de cinco anos e nunca vi um caso como esse. Não conheço muito de abelhas, no entanto já li muito. O que mais me deixou intrigada é que são ferroadas de abelhas africanas e, pela gravidade das ferroadas, puras, mais conhecidas como killer-bee. 232 | Caipora - Comadre Fulozinha

- E como sabe que são africanas puras?

- Também desconheço algum apiário que crie. - Ela deve ter sido ferroada por umas oitocentas abelhas aproximadamente. A quantidade de caule injetado no corpo é enorme. Sem contar o trabalho que deu para tirar os ferrões. Enquanto conversava, Washington observava Dardane, desfigurada sobre a cama. Estava ligada ao balão de oxigênio e no soro. Seu aspecto era de quem já morrera, se não se observasse sua respiração minguada empurrada artificialmente. Seu rosto e corpo todo inchados. Washington tinha a impressão de que a única parte que não fora ferroada teria sido o ventre. Dardane estava completamente nua. Parecia ser uma mulher bonita. Seus mamilos, cintura e pernas, apesar das ferroadas, pareciam perfeitas. Sem contar a pele morena bronzeada pelo sol. Seus comentários pessoais foram repreendidos Nascimento

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por sua dignidade. “O que olha tanto, Washington?”, perguntou-se. - Rose? Fiquei sabendo pelo policial de plantão que ela será transferida para Recife. É tão grave assim? - Se você parar de perguntar e deixar que leia seu prontuário, talvez... - Perdoe-me! Pode ler! – Falou Washington cortando o final da frase. - Ela está com insuficiência renal aguda. Seus rins estão quase falindo. O pior de tudo é que, na maioria das vezes, para se chegar a esse quadro, vão-se horas ou dias, que não é o caso aqui – parou por um instante e olhou para Washington. – Não é o que está escrito aqui! Estou colocando palavras para que entenda a gravidade. - Agradeço! Pode continuar. - Na realidade, as picadas das africaninhas desenvolveram ira grave e dialítica secundária, a rabdomiólise, e sua evolução pode ser fatal. Se não for tratada logo, poderá... - Ele vai matá-lo! – Falou Dardane por entre o tubo. - O que foi que ela disse? – Perguntou Washington, aproximando-se. - Ela está delirando! Está com mais de quarenta graus. Nessas horas, não falamos coisa com coisa. - Ela vai matá-lo! – Falou Dardane novamente se contorcendo. – Ela vai matá-lo! - Quem vai matar quem? – Perguntou Washington aproximando a cabeça próxima da boca de Dardane. – 234 | Caipora - Comadre Fulozinha

Quem vai matar quem? – Sussurou novamente. - O caipora. O caipora. Carlos vai morrer! Carlos vai morrer! – Respondeu agora com um pouco mais de vigor na voz cansada e abafada pelo tubo inserido em sua boca. - Quem é o caipora? Quem é o caipora? – Perguntou Washington. Uma lágrima escorreu do rosto de Dardane. O suor começou a brotar em seu rosto como cachoeira. Começou a se debater. - O que está acontecendo com ela? – Perguntou Washington apavorado. – O que está acontecendo com ela? - Pare de fazer perguntas e segure o braço dela antes que se machuque. – Respondeu Rose segurando o braço esquerdo. Rose apoiou-se no braço de Dardane e apertou um botão vermelho que chamaria mais enfermeiras e o médico de plantão. Foi tão rápido que pareciam estar esperando atrás da porta, pensou Washington. - Saia, senhor! Saia! Tomamos conta agora – falou um enfermeiro segurando o braço da paciente. Washington ainda estava no corredor quando chegou um homem apressado empurrando um maca e entrou. Em poucos segundos, Dardane saía do quarto na mesma maca e todo amarrada. - Estão levando ela pra Recife. Não sei se vai sobreviver – falou Rose enquanto fechava a porta do Nascimento

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quarto. – Aqui não podemos fazer nada. Está tendo crise renal. Mesmo que escape, ficará com sequelas.

- Nada! Por quê? Você conhece alguém com o nome de caipora, Bento? – Interrogou Washington.

- Obrigado, Rose, e me perdoe se causei algum transtorno – falou Washington lamentado-se.

- Conheço! Só que antes de falar alguma coisa, gostaria de ficar a sós com o senhor. Posso?

- Não! Não foi você! Posso ajudá-lo em mais alguma coisa? – Perguntou enquanto se afastava.

- Vamos! Vamos, só que na delegacia. Preciso entender algumas coisas. – falou Washington afastando a mão de bento que pousara em seu ombro.

- Não! Obrigado! – Respondeu pensativo. Quando Washington chegou ao estacionamento do HRA, Carlos e Bento pareciam duas estátuas sentadas no banco de trás. O policial que viera dirigindo a viatura estava do lado de fora fumando. - Vamos? – Falou Washington entrando na viatura. - E a moça, como está? – Perguntou o motorista. - Está sendo levada para Recife. Não está nada boa. Talvez não escape. - Ela falou alguma coisa? - Falou de um tal caipora – respondeu Washington, lembrando-se do que ela falara antes de começar a ter convulsões. - Carlos, você conhece algum homem chamado caipora? – Perguntou Washington, olhando pelo retrovisor interno, tentando achá-lo no banco de trás. - Não! Não conheço! – Respondeu Carlos, aéreo. - O que foi que ela falou para o senhor? O que foi que ela falou a respeito do caipora? – Perguntou Bento, como quem acorda de um transe. 236 | Caipora - Comadre Fulozinha

O tempo fechou de um jeito que, quando saíram do HRA, o dia transformou-se em noite e a chuva despencou do céu com tanto gosto que ficava difícil ver um palmo à frente do nariz. A ambulância estava atravessando a ponte do Rio Bitonho antes de Encruzilhada de Bezerros, quando Dardane abriu os olhos e disse olhando para a enfermeira que a acompanhava: “Ele vai nos matar!” Sentada ao lado de Dardane, o único pensamento da enfermeira foi: “Ela deve estar delirando”. Olhou-a e voltou a sua leitura. - O que é aquilo ali? – Perguntou o motorista para si mesmo. Foi tudo rápido! A pista coberta por uma camada grossa de chuva fazia com que a aguaplanagem exigisse muito mais da habilidade de quem já estava acostumado a correr para salvar vidas. O céu escurecido pelas nuvens carregadas dava à chuva um aspecto medonho, no entanto não foi isso que amedrontou o motorista, que ria olhando para aquela façanha da natureza. Nascimento

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Foi irreal, pensou o motorista quando um raio iluminou a pista. Foi rápido. Não pode ver o que era debaixo daquela tormenta, quando o que pareceu, a princípio, foi um vulto em sua direção. Juntou-se a sirene desesperada da ambulância aos gritos do motorista, quando viu o que parecia uma criança com os braços abertos flutuando em sua direção como um raio. Um raio cortou o céu iluminando toda a pista. Ele pensou ainda em frear, no entanto não fez. Foi pra cima. Imaginou que poderia estar vendo coisas, até que aquela criança atravessou o para-brisa como um fantasma e cortou-lhe o pescoço. Seus olhos incrédulos esbugalharam-se. Sua cabeça se soltou do corpo devagar, como quem não quer se desprender A ambulância pendeu para a esquerda e começou a capotar. Os berros da enfermeira não foram ouvidos. Depois de capotar por diversas vezes, a ambulância parou. Silêncio e sangue se misturaram tanto na cabine quanto lá onde estava ela e Dardane. Um fio de gasolina começou a escorrer sobre o motor exposto. A chuva pareceu querer ajudar, não conseguiu. Uma fagulha fez o fogo começar e, como num passe de mágica, uma explosão fez com que pedaços da ambulância, misturado com pedaços humanos, voassem para todos os lados. “Era uma criança! Como poderia uma criança voar?” foram os últimos pensamentos do motorista.

Parte XXVI

A Hora De Pagar

Sandra escutou o barulho do motor do carro de Carlos, ainda pensou em correr e lhe pedir que a deixasse em casa. Parou enquanto vestia a calcinha, desistindo e a tirando logo em seguida. Chegou à conclusão de que a melhor coisa a fazer naquele momento era tomar um banho. Seus pensamentos voltaram por instantes em direção à cigana Dardane. Balançou a cabeça na tentativa de tirar o pensamento. Saiu sem pressa do banheiro e foi pegar uma toalha, peças íntimas e roupas para vestir. Sua sacola, com a qual fazia questão de andar, teria o que precisasse, sem contar as roupas que já faziam parte do guarda-roupa de Carlos. O banho foi demorado. A sua pele refletia com a luz do banheiro, enquanto suas mãos deslizavam pelo corpo se ensaboando. A princípio, pensou que seria melhor não usar aquele sabonete, só que estava aprendendo a gostar do perfume. Saiu do quarto com o celular na mão, já pensando em ir até a cozinha ver se Maria teria preparado alguma coisa para comer. Olhou o relógio e viu, para seu espanto, que ainda eram 5h2min. Maria deveria, depois do que acontecera no dia anterior, ainda estar dormindo. - Oi! Tudo bem? Desculpe-me se te acordei! – Falou

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Nascimento

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Sandra ao celular.

estava como deveria estar, apesar da escuridão

- Não! Não, dona Sandra! Já estou trabalhando desde as 5h. Em que posso ajudar? – Respondeu prontamente Sílvio.

- Maria? Maria? Maria, você está aí? – Perguntou Sandra na frente da porta.

- Pode vir me pegar aqui na fazenda? Carlos teve de sair às pressas para resolver algumas coisas em Caruaru – respondeu Sandra esperando um sim. - Claro, dona Sandra! Daqui a pouco estou aí! - Ele vai demorar um pouco – falou Sandra sozinha. Um barulho surgiu do estômago de Sandra, o que a fez pensar em ir até a cozinha. Talvez Maria estivesse lá. Se não estivesse, acharia alguma coisa para comer. Estava na sala e dirigiu-se até a cozinha. Quando passou no corredor que dava acesso ao quarto onde Maria deveria estar dormindo, a porta entreaberta lhe chamou a atenção. “Ela deve estar na cozinha” – pensou. - Maria. Maria. Bom dia! – Falou Sandra se dirigindo até a cozinha, com voz de quem espera resposta. A cozinha estava escura. Virou-se e olhou novamente para o corredor, esperando que Maria aparecesse e lhe perguntasse o que queria. Não aconteceu. Olhou novamente para o corredor e resolveu ir dar uma olhada. “A velha deve estar horrível. Ela já não é bonita!” – Riu sozinha em silêncio. “Vou perguntar se precisa de alguma coisa”. Diferente do que Maria vira, Sandra caminhou pelo corredor sem parar um segundo. Não viu nada. Tudo 240 | Caipora - Comadre Fulozinha

Sandra olhou para trás, respondendo para si mesma que estavam só elas duas, daí porque não dar uma olhada. Empurrou a porta com delicadeza, seguindo com os olhos o interior do quarto. Lá estava Maria. Estava deitada de bruços. Achou estranho, pois Maria estava de sapatos e com as roupas do dia anterior. “Será que ela dormiu quando chegou e ainda não acordou?” – perguntou-se em silêncio. Os olhos de Sandra não desgrudavam de Maria, que, inerte, repousava seu sono profundo. O olhar de Antônio veio à tona em sua lembrança quando recebeu o golpe de misericórdia. Teria ele falado o nome de Maria quando sentiu suas garras atravessando seu coração. Sentiu-se estranha. Alguma coisa doía no peito. Pensou por que fizera aquilo com quem não tinha nada a ver com sua tristeza. Vingança. “Por que estava pensando no que fizera?”, repreendeu-se balançando a cabeça. “ Fiz o que deveria ter feito, ele ia me atrapalhar” – explicou para si mesma. Enquanto olhava Maria deitada na cama, sem sequer demonstrar que respirava, foi entrando. - Maria? Maria, você está bem? – Perguntou Sandra quase sussurrando. Nascimento

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Nada! Nada! Nenhuma resposta. Seus pensamentos começaram a perguntar o porquê de estar ali chamando aquela de quem tirara o marido. Aproximou-se da cama. Chamou Maria umas três vezes antes de tocá-la na batata da perna e sentir o gelo da morte.

da casa sem fechar a porta, se dirigindo e subindo em seguida na garupa da moto, pedindo a Sílvio que lhe desse o capacete.

Deu um salto pra trás, como quem leva um choque. Chamou seu nome em voz alta. Nada! Nenhuma resposta de Maria. Parou, olhou para os lados.

- Me deixe no centro, por favor – falou Sandra com pressa.

- Ela está morta! Não acredito que essa miserável morreu! Por que você morreu, sua desgraçada? Eu não ia matar você! Por que você morreu? – Gritou Sandra balançando os braços, apontando para quem jamais lhe responderia alguma coisa. Parou. Agora sabia que não poderia ficar ali. As mortes que causara vieram à tona em sua mente. Uma tristeza invadiu seu corpo de maneira que começou a tremer. “O que estou fazendo? O que vou fazer? E agora?” – pensou inerte aos pés da cama. Seus devaneios foram metralhados pelo som da buzina da moto. Não conseguiu processar o som que ouviu. O susto foi tão grande que a fez saltar como quem é atropelada, caindo por cima de Maria. Saltou em seguida, saindo de cima de Maria, se batendo como quem quer se limpar. Sim, era a moto. Lembrou quando já estava de pé. - Tenho de sair daqui! Deixar tudo do mesmo jeito que estava. Não posso ser... A buzina da moto tocou novamente. Sandra saiu do quarto sem sequer olhar para trás. Seus passos acelerados, seu semblante causaram motivo de espanto quando saiu 242 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Pra onde vamos, dona Sandra? – Perguntou Sílvio passando o capacete.

O tempo não era dos melhores. O chão de barro, encharcado pelas águas das chuvas, deixava a estrada escorregadia e perigosa. Silvio se esquivava tanto as pedras quanto dos buracos. A neblina tinha passado, no entanto um vento forte e frio gelava os ossos até dos mais cobertos. Quando chegaram à primeira porteira, antes mesmo de Sílvio parar, Sandra saltou e a abriu. Quando ele se aproximou da segunda porteira, que era a saída da fazenda, olhou para trás sorrindo com os olhos para Sandra, que já levantara a perna para sair de cima da moto. - Onde é que você vai com essa pressa toda? – Perguntou Sílvio, enquanto tirava o capacete. - Não é da sua conta, Sílvio. – respondeu Sandra aborrecida com a curiosidade dele. - Não está me reconhecendo, minha princesa? – Falou sorrindo para Sandra. Sandra parou com a perna no ar. Olhou para Sílvio e um frio maior do que aquele que estava sentindo a invadiu. Seu braço congelou quando Sílvio a segurou pela mão direita. - Por que esta com tanta pressa? – Perguntou ele Nascimento

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com uma voz de milhões de homens.

abaixo de sua cabeça.

Sandra o olhou como quem pergunta: “O que você está fazendo aqui?” Tudo pareceu irreal, mas tudo era real.

- Não estava em mim! Ainda não me acostumei a esse corpo.

- O que você acha que estou fazendo aqui? – Respondeu Sandra, já de pé do lado da moto. Os olhos de Sílvio a fitaram. Os olhos eram de Sílvio, no entanto o olhar não era! Sandra se esquivou baixando a cabeça. Não queria estar ali. Estava confusa. Seu pensamento era de ir embora. Deixaria o corpo de Sandra no apartamento e voltaria para as matas. Tentou falar alguma coisa, não conseguiu. - Não sei! Também não me importa o que você faz aqui! Estou lhe perguntando para onde você vai. Só isso me interessa! – Falou agora com ódio no rosto. Sua voz pareceu estremecer a terra onde estavam. Sandra não quis olhar para os lados, mais sentiu o oxigênio lhe faltar nas narinas. - Ele não está aqui! Foi para Caruaru. Sem contar que a velha está morta. Você tem alguma coisa a ver com isso? Não estou gostando do rumo que as coisas estão tomando. As pessoas que estão morrendo não têm nada a ver. - Você quer dizer que aquele otário que você pendurou na árvore tinha alguma coisa a ver? O sorriso espalhou-se no rosto de Sílvio com tal satisfação que Sandra teve medo de responder. O tempo pareceu inerte. Sandra não queria olhar para nada que não estivesse 244 | Caipora - Comadre Fulozinha

Sua voz gaguejava e Sandra sentiu um frio só em pensar na resposta. - Não tenho nada a ver com a velha! Ela é quem quis morrer. Você parece que não quer terminar o que começou, estou certo? - Fiz alguma coisa de que você não gostou? É só falar, que conserto tudo. Tudo não está saindo conforme o combinado? - Você teve a chance de terminar tudo. Não entendo por que não terminou. Só espero que... Fez-se silêncio. Sandra não quis pensar qual seria o término da frase. Ele a olhou com ar de desprezo e alegria. A única coisa que se mexeu naquele momento foram os lábios de ambos e o olhar dele. - Você quer dizer o quê? – Perguntou Sandra trêmula. - Espero que não esteja apaixonada por aquele idiota. Você está me escutando? Espero que não esteja apaixonada por aquele idiota. Se você não terminar o que começou, vai se arrepender. Está escutando? Os pensamentos de Sandra pararam. Estava, sim, novamente apaixonada. Respondeu, sim! Não podia, mas estava. Uma tranquilidade a tomou. Pareceu que realmente sabia agora o que sentia. - A cigana está viva! Alguém a levou para o hospital Nascimento

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e agora a estão levando pra outro lugar. Se você não terminar o que começou tudo vai dar errado. Não quero saber de suas desculpas! Vá e acabe com ela agora, que fico aqui esperando no corpo desse idiota. - Ela não teria como estar viva! – Respondeu Sandra sem saber o que dizer. - Vá e acabe com ela agora! Está me escutando? Sílvio levantou o braço direito e bateu no peito de Sandra, arremessando-a uns cinco metros.

- O que estamos fazendo parado aqui, dona Sandra? Vamos? - Vamos, Sílvio! Vamos! Ele já não estava mais lá. Agora o que iria fazer? Pensou e chegou à conclusão: Teria de acabar com toda aquela história. Subiu na moto. Agora estava pronta para qualquer coisa.

Sandra tentou se levantar, mas a dor era imensa, não conseguiu sequer se mexer. Sílvio aproximou-se a passos lentos. Apontou para Sandra e gritou: - Vá, criatura das matas, ao encontro do seu destino! Sua mão apontada na direção de Sandra parecia puxar algo. A dor a fez estremecer e, num grito de desespero, sua essência foi retirada do corpo por garras negras. Sílvio a olhou com ódio e a arremessou para cima. - Mate a cigana! Mate a cigana! – Gritou Sílvio olhando para cima. Ele estava fumando quando algo pareceu desabar no corpo de Sandra. O corpo estremeceu e uma golfada de sangue foi lançada no chão de terra. Ela levantou se batendo para tirar a poeira da roupa e foi na direção dele cambaleando. Silvio olhou-a, sem entender nada. Pareceu meio aturdido, aéreo. Observou ao seu redor, como quem procura algo fora do lugar. Virou-se fitando Sandra. 246 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte XXVII

Minha Verdadeira Cara

Quando a viatura parou em frente à primeira delegacia, Washington olhou para o banco de trás e não sabia o que dizer. Não acreditava em fantasmas, no entanto aquilo que vinha acontecendo nos últimos dias não era normal. Sua mente procurou algo lógico. Toda aquela história seria esclarecida no final e ele acharia os culpados, custasse o que custasse. - Vamos! Preciso falar com os dois, só que um de cada vez – olhou para Carlos – Você fica aqui esperando sua vez. Não fale com mais ninguém. Vou deixar o Marcos com você. – Por favor, Marcos, dê uma olhada nele enquanto falo com Bento. - Tudo bem, Washington! – Respondeu olhando para trás – Tenho certeza que ele vai se comportar. A sala de Washington não era lá essas coisa, observou Bento. Olhou ao redor e percebeu que os filmes brasileiros descreviam realmente como a polícia no Brasil é tratada. A mesa e as duas únicas cadeiras que havia na sala eram de madeira envernizada. Sem contar as paredes, que aparentavam anos sem pintura, e um piso no qual poderia tropeçar pelos altos e baixos. - Feche a porta, Bento – falou Washington após 248 | Caipora - Comadre Fulozinha

bento entrar – Por favor, sente-se. Os pensamentos de Bento começaram a procurar cada lembrança. Seu senso crítico o proibiu de falar besteiras ou coisas desnecessárias. Como não falar? Tudo era irreal! Ele teria de escutar e entender aquilo que não conhece e sequer acredita. Pensou novamente, escolheria a melhor maneira. - Você disse que conhece o tal caipora! Quem é ele? – Perguntou Washington antes mesmo de Bento sentarse. - O caipora, senhor, é Cumadre Fulozinha! – Respondeu Bento desconfiado. - Você quer dizer que tudo o que está acontecendo é culpa de Cumadre Fulozinha? – Perguntou com desdenho. - Sim! - Vamos começar de outra maneira. Você conhece o senhor Carlos de onde? – Perguntou agora se apoiando com os cotovelos na mesa. O tempo pareceu voltar diante dos olhos de Bento. Como não lembrar aquele dia? Fora naquele mesmo dia que perdera sua mãe. Fora naquele mesmo dia que perdera tudo. Como esquecer aquele dia? Fora naquele dia que viu a besta. - Já lhe falei como conheci o senhor Carlos! O que devemos fazer é ir atrás da namorada dele, antes que faça mais alguma coisa – respondeu Bento impaciente. - Não quero saber o que me disse antes! Responda simplesmente o que lhe perguntei e vou perguntar. Depois vejo o que faço com a namorada dele. Nascimento

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- Sim, senhor! - Vamos! Me diga como conheceu o senhor Carlos. - Como o senhor sabe, trabalho... Era extraordinário escutar Bento contanto aquilo. Por alguns segundos, Washington acreditou em algumas coisas fantásticas que ouvia. Sua racionalidade, no entanto, o despertava fazendo-o voltar à realidade. Com certeza Bento era louco. Tudo o que falava era de uma entidade matando gente. E Deus, onde ficaria nesta história?, perguntou-se. Quando os fatos o tentavam a acreditar, uma voz lá dentro o repreendia. O mais interessante, pensou, foi o fato de tudo se encaixar. Como justificar uma falha na lógica de Bento? A única explicação era a loucura. Bento perdera sua mãe no dia em que conhecera Carlos e, de alguma maneira, deveria ter escutado o que vinha acontecendo. Estava procurando um culpado, essa era a resposta. Outro pensamento o deixou cismado: Bento poderia não ser aquilo que aparentava. - ... eu não sei como explicar. Só sei que ela é a causa de tudo o que está acontecendo. Quando Bento parou de falar, Washington percebeu que a menina dos seu olhos não estavam lá onde deveriam. Sua cor passara do branco pálido para o branco gélido dos mortos. Suas mãos, sobre a mesa, estremeceram, e uma voz gutural fez Washington arrepiar.

- O quê, doutor? O quê? – Perguntou displicente. - Nada! Nada! Vá para casa, que o chamarei depois – respondeu Washington se levantando. Um toque no celular lhe chamou a atenção quando ia atravessando a porta de saída da sala. Olhou o nome e reconheceu. - Fala Paula! O que foi? É importante? Se não for, não posso atender agora – respondeu para a jornalista. - Fiquei sabendo que o senhor visitou uma cigana agora pela manhã, é verdade? Se for, vai ter de me dizer o que queria com ela. - Porque terei de lhe falar o que queria com ela? – Respondeu com raiva. - É que ela, a enfermeira e o motorista estão mortos. A ambulância que estava levando a tal cigana capotou e explodiu antes de Encruzilhada de Bezerros, sem contar que acharam a cabeça do motorista na pista. Parece que ele foi degolado antes da explosão. Washington olhou para cima e não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Àquela altura a ambulância já deveria estar pra lá de Gravatá. As palavras de Bento vieram à sua cabeça. “Ela matou a cigana e todos que estavam com ela e agora vai matar Carlos!”

- Ela matou a cigana e todos que estavam com ela e agora vai matar Carlos!

- Certo! Certo! Depois falo com você, estou muito ocupado! – Respondeu e terminou a ligação.

- O que você falou, Bento? O que falou? – Perguntou Washington quase sussurrando.

- Espere! Esp... – foram as últimas palavras que escutou da jornalista.

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Paula se formara na mesma época que Washington. Os dois tinham namorado na faculdade, só que Washington fizera Direito, ela Jornalismo. Essas escolhas teriam sido o principal motivo para que o relacionamento não desse certo. Apesar de ainda gostar de Paula, vivia chateado, pois ela pegava no seu pé e esquecera que ele era agora um policial e que não estava brincando de mocinho e bandido. Paula fizera a escolha de jornalista policial. Ele era o investigador que ela vivia perseguindo para suas reportagens, muitas vezes o incomodando. “E agora?”, pensou Washington. A resposta veio à tona. Vou atrás da namorada de Carlos! Olhou para Bento parado à porta da saída. Pensou! Pensou! Não vou falar nada do que aconteceu. Deixarei que vá embora. - O que está fazendo aí parado, Bento? Já não lhe disse que depois falo com você? Quando Washington saiu, foi direto para o estacionamento da delegacia. Pegou sua moto. Dirigiu-se até a lateral da viatura. Dispensou Marcos da tarefa de motorista. Em seguida, pediu que Carlos saísse e subisse na garupa. O olhar de Carlos era distante. Parecia estar dormindo, pensou Washington. - Suba! – Falou Washington antes mesmo de Carlos abrir a boca. – Vamos ao apartamento de sua namorada. O dia nasceu novamente a partir das 8h. O sol tomou seu espaço no céu. Pareceu reclamar, 252 | Caipora - Comadre Fulozinha

pois o calor era enorme. As nuvens não estavam no seu lugar de costume. Com certeza teriam se desmanchado na chuva repentina naquela manhã, coisa que agradou o Sol ainda mais. Estava imponente e só na vastidão do céu. Washington não era de correr. Mesmo com pressa, decidiu ir devagar. O motivo maior de não querer apressar as coisas é que não gostaria de participar dos últimos acontecimentos. Enquanto guiava, pensava no que iria perguntar a Sandra, isso se a encontrasse. Seus pensamentos por alguns segundos voltaram à fazenda no dia em que Antônio morrera de maneira tão estranha. Freou seus pensamento quando um motorista não contente com sua displicência buzinou, reclamando de sua morbidez no trânsito. Washington teve a impressão de estar carregando um morto-vivo. As lembranças naquela manhã o levaram novamente ao quarto no hospital. As palavras da cigana Dardane o tiraram a atenção novamente. Dessa vez o repreendeu, se concentrando no trânsito. ... Continuação ... Parte XXVI - A HORA DE PAGAR Quando o mototaxista parou em frente ao prédio onde Sandra morava, perguntou se ela iria precisar dele. Ela disse que não! Pagou com uma nota de cinquenta reais e disse que ficasse com tudo. O sorriso foi de satisfação. Nascimento

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Daqueles que começam o dia bem. Roberto, o amigo do seu pai, estava conversando com o porteiro. Não podia ser pensou! O que ele está fazendo aqui? Àquela altura a única opção era falar com ele. - Oi Roberto, o que faz por aqui? – Perguntou, batendo em suas costas para chamar a atenção. - Sandra! Que bom encontrá-la! Vou viajar e vim ver se precisa de alguma coisa. Aproveitei e trouxe aquela caminhoneta para deixar com você caso precise, pois não estarei por perto – começou a falar no mesmo instante em que se virou. Sandra o abraçou como quem pede socorro. Seus pensamentos foram rápidos, sabia que não poderia falar nada, nem tampouco contar com sua ajuda. O abraço foi um pouco demorado. Roberto aceitou sem reclamar. Quando Sandra o soltou, olhou-o achando algo estranho. - Não precisa ter esse trabalho todo! Você vai pra onde?

direto de Caruaru. Tenho de ir até Recife. Se precisar de qualquer coisa, me ligue. Gosto muito do seu pai para deixá-la sozinha. - Obrigada! Não sei se quer o que dizer – foi falando e pegando as chaves. Você parece que acertou. Estou precisando ir a Serra dos Cavalos. Roberto foi tão rápido que Sandra sequer deu conta de que ele já estava do outro lado da rua entrando no carro no lado do passageiro. “Não vou entrar!”, pensou Sandra olhando para a caminhoneta preta. “Vou até Serra dos Cavalos! O guarda-florestal já me conhece. Lá conseguirei reunir forças necessárias.” Quando Sandra entrou na caminhoneta e ligou, olhou para a frente do prédio e viu Carlos tirando um capacete. Ele estava à sua procura, ela imaginou. O pior é que estava acompanhado do detetive. Sentiu que agora não poderia parar. Iria terminar tudo o que começou. Acelerou e partiu.

- Está tendo uma feira em São Paulo e quero participar. Não posso ficar desatualizado – falou sorrindo com ar acolhedor. Sandra escutou uma voz que percebeu vir do outro lado da rua chamando Roberto. Olhou rapidamente, devolvendo a atenção em seguida. Roberto estirou a mão e lhe entregou as chaves do carro. - Fique com ela! Quando voltar, reclamo a posse. Infelizmente não posso demorar até porque não tem voo 254 | Caipora - Comadre Fulozinha

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Parte XXVIII

Minha Descendência

sua identidade policial. - Me desculpe! Meu nome é Washington e sou investigador – foi mostrando e falando ao mesmo tempo. - Ok! Infelizmente, dona Sandra não se encontra. Acabou de sair. Ela estava naquele carro do outro lado quando o senhor chegou.

As perguntas sem respostas eram tantas na cabeça de Washington que sequer percebeu a caminhoneta do outro lado da rua. Carlos parecia dopado. Seu semblante denunciava a morbidez de seu estado, não só mental naquele momento, mas também físico. Sentia-se cansado e sem ânimo. Washington deixou a moto parada em frente à entrada da garagem do prédio e dirigiu-se imediatamente até a portaria. - Bom dia! – Falou Washington para o novo porteiro. - Bom dia! Em que posso ajudá-lo? – Perguntou o porteiro. - Gostaria de falar com uma moradora! O senhor pode me anunciar? - Com certeza! - Senhorita Sandra! - O senhor ainda não disse quem é! Washington não gostou da interrogativa do porteiro. Em outras situações já teria mostrado sua identidade. Parou! Respirou fundo e chegou à conclusão de que estava agindo de maneira errada. Olhou para o porteiro, como quem se desculpa. Colocou a mão no bolso e tirou 256 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Que carro? – Perguntou decepcionado. - Aquela caminhoneta preta que estava estacionada do outro lado da rua. Uma frustração tomou conta de Washington, que o levou a chutar a parede. Não era de agir com emoção. Estava agindo desde que começara a investigar aquilo que vinha acontecendo. Olhou para trás e viu Carlos como um bobo alegre. Não devia tê-lo arrastado. Carlos deveria estar na delegacia ou em outro lugar qualquer que não fosse ali. Virou-se fitando o porteiro novamente. - Ela fez alguma coisa doutor? – Perguntou o porteiro. - Não! Só precisamos fazer algumas perguntas. - Antes de o senhor chegar, esteve aqui um tal de Paulo. Foi quem trouxe o carro em que ela saiu. - O senhor conhece esse tal de Paulo? - Escutei ele falar que era amigo do pai dela e que iria viajar. Foi por isso que trouxe a caminhoneta. Caso ela precisasse e ele não estivesse aqui, pois iria viajar. - Viajar? - Sim! Disse que iria a negócios. Se eu não me engano, foi São Paulo. Nascimento

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- Ela não comentou para onde iria? - Serra dos Cavalos! É! Ela disse que ia para Serra dos Cavalos. - Obrigado! - Não há de quê, senhor! Qualquer coisa é só... Washington se virou e foi em direção a Carlos. Puxou enquanto caminhava o celular do bolso da camisa e ligou para a delegacia. - Primeira Delegacia, bom-dia! – Respondeu uma voz masculina do outro lado. - Aqui é o detetive Washington! Marcos está por aí? - Só um minuto, detetive! – Fez-se silêncio e em seguida um grito. – Marcos, seu parceiro quer falar com você – mais silêncio. - Fala, Washington! – Respondeu Marcos. - Preciso que venha até o Maurício de Nassau, em frente ao Bonanza Supermercados. Quero que deixe o Carlos em casa, lá em Bezerros. Pode fazer isso agora? - Claro! Daqui a pouco chego aí!

- Sim! - Estou com um problema familiar. Não posso ficar com você agora. Depois conversamos. Pedi para que Marcos o deixe em casa. Antes do meio-dia, estarei lá para falar com você, certo? - Certo! – Respondeu Carlos sem questionar. - Ele deve estar chegando! – Disse Washington sem dar muita atenção. Foi tão rápida a chegada de Marcos, que sequer deu tempo de Washington se dirigir para o local marcado. O celular tocou, tocou e, quando Washington foi atender, viu que era Marcos. - Oi! Estou chegando! Continua ... Para Washington, até aquele momento estava tudo dando certo, não do jeito que gostaria, no entanto já sabia para onde Sandra fora.

Carlos estava tão aéreo que sequer prestou atenção na conversa de Washington.

Com Sandra em lado oposto, Carlos estaria protegido na fazenda, foi o que pensou.

Washington olhou para ele e sentiu uma certa compaixão. Com certeza, teria sido criado em berço de ouro e não estaria acostumado a passar o que vinha passando. Foi se aproximando e falou de maneira a chamar sua atenção. Queria que ele despertasse daquele estado.

O seu maior desafia era que não conhecia Sandra. Como ir à procura de alguém que se que vira em foto?

- Carlos! Carlos! 258 | Caipora - Comadre Fulozinha

Washington sabia que o parque não estava aberto ao público naqueles dias. Se Sandra escondera alguma coisa lá, ele iria estar por perto para ver. Sua preocupação foi aliviada pelo fato de ela, com certeza, ter de passar pela portaria. Nascimento

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“Sim! Por que não pensei nisso antes? Renata disse que tinha tirado uma foto com ela e Carlos no Shopping!”

só mande. Depois explico tudo a você. Agora não tenho tempo.

Carlos olhou para o relógio como quem espera que o tempo não tenha passado. Olhou para o céu e achou que havia algo estranho. Será que iria chover? Perguntou-se, esperando um não!

- Você me liga e pede que eu mande uma foto que tirei com um amigo. Não sabia que você conhecia o Carlos! E ainda me diz que explica tudo depois... Você deve estar brincando comigo, ou é uma pegadinha de mau gosto – respondeu com voz áspera e de quem não está gostando da conversa.

Olhou para o celular no bolso da camisa e um sorriso cruzou seu rosto. Esperava que Renata estivesse em Caruaru, e com a foto. Balançou a cabeça como quem reprova o tempo perdido e a falta de ação. Por que ainda não ligara? Procurou eufórico o número de Renata na agenda e apertou o botão que seria sua salvação. Um toque de chamada. Dois toques de chamada. Três toques de chamada. Quatro toques de chamada. - Porra! Ela vai ou não vai atender? – Falou sozinho com ar de decepção. - Oi, Washington! Que novidade é essa? Tudo bem? – Respondeu Renata do outro lado. - Oi, Renatinha! Tudo bem? Preciso que me faça um favor. - Não trabalho como dedo duro! A área de investigações é sua, sou cantora – falou rindo. - E por sinal canta muito bem! – Respondeu Washington querendo apressar a conversa. - Detesto puxa-saco! – Falou sorrindo. - Preciso que me mande aquela foto que você tirou com Carlos e a namorada dele. Não me pergunte nada, 260 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Pedi um favor. Depois converso com você e explico tudo o que quiser saber. Agora me mande está foto! – Falou com voz áspera. - E se lhe disser que não tenho mais a foto? - Sei que você tem! Por favor, Renata, mande a foto! Renata não gostava de brincadeiras de mau gosto e muito menos de receber ordens. Pensou em dizer não. Ponderou. Se Washington lhe desse um bom motivo talvez... - Renata? Infelizmente não tenho muito tempo. Preciso que me mande a foto. Não estaria pedindo se não fosse por uma justa causa. Infelizmente não tenho tempo agora de explicar tudo. – Parou, respirou. – Estou esperando uma resposta sua. - Não sei onde estou com a cabeça. Não estou entendendo nada, no entanto vou mandar. Agora, não esqueça que vai ter de me explicar tudo. Não vou perdoálo nunca se... - Não tenho muito tempo. Por favor... – falou Washington antes de Renata terminar. - Ok! Tudo bem! Vou passar agora! – Respondeu e Nascimento

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desligou o telefone. O tempo que Renata levou para mandar a foto foi mínimo, só que para Washington levou uma eternidade. Quando colocou a mão no bolso para pegar o celular já pensando em ligar novamente, ele tocou e Washington aceitou o arquivo.

- Já falei pra você que estou muito ocupado hoje e você não para de me ligar. Você ainda não percebeu que não estou brincando. Que estou trabalhando – sua voz saiu... - Calma! Calma! Não quero brigar com você – sua voz era apaziguadora. – Tudo bem com você?

A curiosidade e expectativa de ver o rosto de Sandra, o deixou sem saber, por alguns minutos, o caminho onde estava o arquivo. Quando conseguiu, parou com receio. Seus pensamentos o repreenderam. Não acreditava que estava com medo. Ter medo do quê? Com certeza aquele moça era mais uma louca e assassina. Olhou para o arquivo. Pensou e apertou o botão para ver a imagem. Quando viu a imagem de Sandra ficou deslumbrado. De fato, ela era linda. Sem contar que alguma coisa nos olhos a deixava com um ar melancólico e sinistro. Repreendeuse novamente pelo pensamento de ter alguma coisa com aquela boneca, de sobrenatural.

- Claro que está! Só estou ocupado e, muito! – Parou e pensou por que estava falando daquele jeito com Paula. Não era de seu feitio dar explicações para ela. Sem contar que ela tinha um jeito especial de lhe passar a perna, chegando ao seu objetivo principal que eram suas reportagens. – Não sei por que estou lhe dando explicações! O que você quer comigo?

A lembrança de Paula veio em sua mente. Tentou afastar e não conseguiu. Uma voz o mandou ligar para ela. Para que ligar para Paula? No mínimo ela iria dizer que ele estava precisando tirar férias e riria um bocado. Sem contar que não havia motivo para tê-la por perto.

- Conversei com um dos paramédicos do Samu e ele me disse que em um acidente desses nunca tinha visto um cabeça ser decepada daquela maneira. Quando estava voltando para o carro, onde o motorista me esperava logo após a filmagem, uma menina me disse para ligar pra você.

Quando subiu na moto, ainda olhando para a imagem de Sandra, percebeu que Paula estava ligando para ele. Um dos pensamentos foi o de não atender, no entanto atendeu. - Oi! O que você quer agora? – Falou como quem não gostou de ela ter ligado. - Alô, né! – Respondeu Paula o repreendendo. 262 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Falei pra você do acidente aqui antes de Encruzilhada de Bezerros, nas proximidades do rio Bitonho, correto? - Sim, falou. E daí?

- Uma cigana? – Um calafrio percorreu o corpo de Washington e sua voz saiu trêmula. – Como era essa menina? - Não consigo me lembrar, pois na hora em que falava com ela o Pedro, o motorista, me chamou. Quando olhei para trás e dei com a mão para que me esperasse, a menina ela desapareceu. Senti um medo terrível. Daí Nascimento

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resolvi ligar pra você. - Você ainda está no lugar do acidente? - Sim! Por quê? - Nada! - Washington, o que está acontecendo? Me diga, pelo amor de Deus. - Não está acontecendo nada! Os pensamentos de Washington e Paula pareceram se cruzar. Para Paula, a coisa não estava bem, e ele não iria lhe falar nada, com certeza! Já para ele tudo estava ficando cada vez mais complicado. Um silêncio se fez. Cada um esperava que o outro começasse a falar. - Você pode até achar que quero mais uma reportagem. Sempre quis! Washington, me faz um favor? Se você estiver em alguma coisa muito grande, não vá sozinho. Só, você não vai conseguir resolver nada e ainda... - Não estou entendendo você! Desculpe-me, tenho o que fazer. - Me diga para onde você está indo e não desligue o celular – sua voz agora era de preocupação extrema. - Estou indo para Serra dos Cavalos – suas palavras saíram antes do seu pensamento. Só que agora era tarde, pensou. – Não se preocupe, está tudo bem – falou e desligou. 264 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Washington? Washington? – Chamou e nada escutou. Sua vontade era de atirar o celular no chão e pisá-lo até não sobrar vestígios. Respirou fundo. Já sabia o que iria fazer. Jogou o celular na bolsa e partiu em direção ao carro. Adorava Washington. Ele parecia não entender isso. Por que escolhera justamente a profissão de policial? Perguntou-se também por que escolhera a profissão de jornalista policial. Sorriu enquanto caminhava e respondeu! Queria ficar ao seu lado mesmo que ele não quisesse. Outra afirmativa veio: ele gostava dela. Sim, ela tinha certeza disso. Estava com a sensação de que alguma coisa ruim estava acontecendo, e Washington estava envolvido nisso. Parou do lado do passageiro do carro da reportagem, e se fez uma pergunta. O que iria fazer? Não era policial e muito menos saberia o que fazer caso Washington estivesse metido em alguma investigação perigosa. Seus pensamentos voltaram e lembraram daquele homem degolado. Nunca tinha visto nada parecido. Riu ao comparar as coisas a filmes norte-americanos ou qualquer outro importado. Estaria ficando louca por imaginar ou fantasiar algo que não existisse? - Você vai entrar ou não? – Perguntou Pedro impaciente. - Você está com pressa? Eu não estou nem um pouco! – Respondeu Paula batendo no teto da saveiro. - Calma, Paula! Amigo! Eu sou amigo, não esqueça! – Respondeu com ares de deboche. Nascimento

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- Não gostei do jeito que você falou comigo! Não esqueça que quem resolve para onde vai ou não sou eu. - Não sei o que está acontecendo com você. Só que eu não tenho nada a ver, certo? – Parou, respirou fundo. – Desculpe, não deveria ter falado com você assim. - Perdão, Pedro! Estou nervosa! – Falou num tom de boa vizinhança. - Beleza! Acho que precisamos de férias – falou rindo, enquanto abria a porta com a mão esquerda. – Vamos, entre e me diga para onde vamos. - Para Serra dos Cavalos! É pra lá que vamos! – Foi falando e entrando. - Posso saber o que vamos fazer lá? - Quando chegarmos lá, lhe falo! ... Continuação ... Parte XXVIII - MINHA DESCENDÊNCIA

Respondeu Marcos sem tirar a atenção da via. - Não preciso que o senhor me deixe em casa. Basta me levar até a delegacia, que meu carro está lá! – Respondeu Carlos agoniado. - E agora, o que faço? Não acho que o senhor está em condições de dirigir. É melhor que o senhor pegue o carro depois. - Não! Não! Eu estou bem! Só um pouco indisposto. Pode me deixar lá na delegacia? Por favor! - Certo! Só tem um problema! Vou ter que acompanhá-lo até sua fazenda. Prometi para o detetive Washington. - Tudo bem! – Respondeu Carlos, tendo de concordar. - Vou fazer o retorno depois da ponte – respondeu Marcos. - Ok!

Quando Carlos chegou à praça do Rosário, algo o fez despertar do transe em que se encontrava desde que saíra da delegacia. Olhou para a Igreja do Rosário e se perguntou o que estava fazendo dentro de uma viatura da polícia. Tudo o que passara nas últimas horas aflorou em sua mente.

Quando Carlos parou em frente à delegacia, Bento foi em sua direção. Seu aspecto não era dos melhores, no entanto Carlos também não se sentia muito bem. Pensou que todo seu mal estar se devia ao fato de estar num lugar e com pessoas com quem não estava acostumado, sem contar que terminara não resolvendo nada. Carlos tentou se esquivar abrindo a porta da caminhoneta e entrando, só que Bento se encostou na porta do motorista, encarando-o.

- Detetive, para onde estamos indo? – Perguntou Carlos fitando o motorista.

- Cadê o detetive Washington? – Perguntou Bento interrogando-o.

- O senhor não está nada bem! Esqueceu que o detetive Washington me pediu que o deixasse em casa? –

- Não sei! Ele disse que estava com problemas familiares e depois conversaria comigo.

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- Preciso conversar com você! - Agora não dá! Vou para casa escoltado pelo detetive Marcos. Não posso parar – respondeu Carlos, colocando a chave na ignição. - Vou com você! Lá conversamos! - Vou fazer o quê? – Perguntou Carlos. – Entre, que o Marcos está com cara de quem não está gostando muito dessa nossa conversa.

Olhou pelo retrovisor e viu a viatura o acompanhando. Disso ele não estava gostando. Falou pra si mesmo que logo que chegassem a casa estaria entregue e o detetive iria embora. - Bento, você pode abrir a porteira? – Perguntou Carlos. - Claro! – respondeu e foi saindo. - Obrigado!

Bento até que teve vontade de comentar alguma coisa, no entanto Carlos parecia aéreo, daí achou melhor não tirar sua atenção do volante.

Quando Bento segurou a porteira, levou um choque e seus pensamentos foram arremessados ao passado. Seus olhos congelaram no tempo e lhe foi revelado em frações de segundos tudo o que acontecera para que estivesse ali. Empurrou a porteira tentando se afastar daquilo que não entendia.

Quando se aproximaram de Encruzilhada de Bezerros, os dois perceberam uma certa movimentação nas proximidades da ponte do rio Bitonho.

Carlos buzinou, achando estranho por que Bento soltara a porteira e ficara olhando para o nada. Buzinou novamente tentando lhe chamar a atenção.

Bento já sabia o que tinha acontecido, só que naquele momento achou melhor não comentar nada. Quando chegassem à fazenda, ele contaria tudo, isso é se desse tempo. Um frio correu-lhe a espinha quando se lembrou de sua mãe. Um nó apertou-lhe a garganta. Não tinha certeza de sair vivo da fazenda, só que iria tentar. Naquele dia em que conhecera Carlos, deveria ter dito tudo a ele ou ao menos tentado. Sua omissão custou a vida de quem mais amava. Agora iria até o final, custasse o que custasse. Mesmo que o preço fosse sua vida.

Bento trincou os dentes. Segurou a porteira com força e empurrou até que disse para passar um carro. Quando Carlos e a viatura passaram, Bento segurou novamente com toda força e a fechou. Caminhou até a caminhoneta e nada disse.

Carlos fez manobra e partiu para Bezerros. Nem Bento nem Carlos tomaram a iniciativo para qualquer diálogo.

Carlos se sentiu melhor quando viu a porteira da fazenda a distância. Pensou como era bom estar em casa. 268 | Caipora - Comadre Fulozinha

Tudo o que Bento decidira até pouco antes quis abandoná-lo. A covardia tentou se alojar dentro dele. O medo de morrer se tornou mais forte quando viu a próxima porteira. Pensou em sair correndo. Não queria saber o que iria acontecer. Não tinha nada a ver com aquela história. Sabia que, quando o Caipora matasse Carlos, tudo estaria acabado, e, se não estivesse ali, ficaria vivo. O que poderia fazer? A lembrança de sua mãe o repreendeu. Nascimento

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- Covarde! Você é um covarde! – Disse sua mãe antes de as águas do rio Ipojuca a carregarem.

vira o motivo de tudo. Sim, já sabia com quem estava lidando.

Ela não tinha medo de nada! Sim, ela morrera tentando salvar as coisas de casa. Ele a deixara sozinha. Ele estava com medo do que não via e que poderia estar naquelas águas. Sim! Ele era um covarde! Foi o que sua mãe dissera antes de morrer.

- Bento! Bento! Que demora é essa? Não temos o dia todo! – Gritou Carlos com a cabeça do lado de fora do carro.

- Você vai ter de abrir essa também – falou Carlos. - Tudo bem! – Respondeu Bento.

- E agora, o que fazer? - Perguntou-se Bento. Os olhos de Bento fitaram Carlos dentro do carro e mais atrás o detetive Marcos, sentando atrás do volante, inquieto.

“O que vou ver agora?”, perguntou-se! “Não, mãe, não serei mais covarde! Não, mãe!”, pensou Bento. Sim, agora ele iria até o fim.

Virou-se e empurrou a porteira até dar passagem. Quando o detetive Marcos passou, olhou-o com cara de quem não gostou da demora.

Marcos olhou pela janela do carro Bento abrindo a segunda porteira. Não gostou de imaginar que talvez voltasse sozinho e teria de abrir e fechar aquelas malditas montanhas de madeira, principalmente debaixo daquele sol.

- Pode deixar aberta, que fecho na volta – falou Marcos com cara de pouca vizinhança.

Seus pensamentos se voltaram para Washington. O que ele estaria fazendo? Chegou à conclusão de que não deveria tê-lo deixado sozinho, Eles eram parceiros! Sim! Já sabia o que iria fazer! Quando entregasse a encomenda, ligaria para ele e perguntaria onde estava, daí iria ao seu encontro, mesmo que não quisesse.

Mais uma vez, o silêncio se fez. Os pensamentos de Bento o interrogam. Perguntas sem respostas eram feitas. Não! Não saberia como começar a contar tudo o que sabia a Carlos. Balançou a cabeça como quem procura a sorte nas pedras do dominó. Parou e disse a si mesmo que, quando chegasse a hora, saberia o que falar.

Olhou novamente para Bento e teve a impressão de que ele levara um choque na porteira. Mas como levar um choque numa porteira?, repreendeu-se. Não estava gostando da demora.

A chegada pareceu tranquila. O detetive Marcos não saiu da viatura. Quando Carlos saiu do carro, foi agradecer a escolta a Marcos, mesmo sem saber o porquê. Marcos perguntou se estava tudo bem e se poderia ir embora. Carlos deu um sim, balançando a cabeça.

Bento olhou para trás e a órbita dos olhos estavam totalmente brancas, percebeu Carlos mesmo estando por trás do para brisa. Sentiu-se como quem flutua. Agora 270 | Caipora - Comadre Fulozinha

Não houve resposta de Bento, que se dirigiu até onde Carlos estava e entrou.

Tudo parecia perfeito. Um silêncio medonho tomava conta tanto do terreiro quanto da casa. Nascimento

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Bento olhou ao redor procurando uma alma vivente. Não achou. Percebeu que conhecia aquele lugar, no entanto não se lembrava de onde, pois jamais fora ali. Um calafrio percorreu sua espinha. Alguma coisa não estava certa. Não sabia o quê, por isso preferiu ficar calado. Olhou e viu quando Carlos apertou a mão do detetive. Pensou. “Ele vai embora.” Pensou e chegou à conclusão de que nada adiantaria a presença dele. No mínimo seria mais um cadáver espalhado na fazenda quando o caipora chegasse. Virou-se e olhou a casa, admirando-a. - Você pensa demais, já pude perceber – falou Carlos batendo nas costas de Bento. – Vamos entrar. Bento virou-se procurando a viatura. - Ele não poderia ter ido embora! – Falou Bento olhando para Carlos. - Ele não veio para me fazer companhia. Eu nem sei por que ele nos acompanhou. Também não sei o que você está fazendo aqui – respondeu Carlos se dirigindo à casa. - Espere! Preciso falar com você! - Estou cansado e não sei se quero conversar. Preciso tomar um café. - Pare! – Falou Bento como quem ordena. - Você está ficando louco ou já é louco por natureza? – Perguntou sem paciência. - Ela está morta! – Falou Bento gritando em direção a Carlos. - Quem está morta? Você quer me enlouquecer? Não basta o que venho passando? – Gritou Carlos se dirigindo até Bento. 272 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Ela! Ela! Ela! A mulher que ficou viúva. Carlos parou. Olhou Bento dos pés à cabeça. Não! Ele era maluco! Pensou. Riu um riso louco. O que estava acontecendo? Sua razão justificou. Estava sonhando! Só poderia estar. Algo o fez estremecer. E se ele estiver falando a verdade? Nada ultimamente estava de acordo com a razão. Esse foi o pensamento que Carlos não gostou e que o fez sair correndo em direção a casa. - Maria! Maria! Maria! Fale pelo amor de Deus! Maria! Maria! Maria! Fale pelo amor de Deus! Maria! Maria! Maria! Fale, pelo amor de Deus! – Repetiu Carlos até entrar na casa. - Carlos! Carlos! Pare e me escute! – Gritou Bento correndo atrás de Carlos. - Maria, cadê você? Maria, onde você está? – Berrou Carlos parado na sala. Quando Bento entrou na casa, Carlos estava imóvel, como quem espera uma resposta ou até mesmo que Maria aparecesse. Até aquele momento, ele não tinha parado realmente para analisar o que estava acontecendo ao seu redor. Olhou para cima procurando sentir algo. Seu semblante pareceu de um velho cansado da vida. O cheiro que invadiu suas narinas não foi agradável. Era cheiro de morte. A casa estava cheirando à morte, pensou. Por que ainda não tinha sentido aquele aquela fetidez? Agora sentia que muitas coisas estavam erradas e ele não tinha se apercebido. Bento continuava o olhando imóvel, como quem sabe o que se passava pela sua cabeça. Não poderia falar, pensou. Deveria deixá-lo ali até que ele realmente Nascimento

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- Maria? Maria? – Perguntou Carlos quase sussurrando.

Balançou a cabeça e respondeu para sua idiotice que nunca faria um corredor daquele tamanho. Levou as mãos até o rosto, esfregando os olhos com força. Abriuos novamente e correu até a porta do quarto e parou.

Não houve respostas. Um nó brotou de sua garganta. Uma tristeza invadiu seu peito. Quis perguntar o que estava acontecendo, não conseguiu.

- Maria, você está aí? Maria, responda pelo amor de Deus! Você está aí? Se você não responder, vou entrar! Vamos, fale logo!

“Sim! É! Ela deve estar no quarto!” – Falou consigo mesmo.

Não teve resposta. Levantou a mão e segurou na maçaneta. Ela estava tremendamente fria. Sua gelidez o fez arrepiar-se. Apertou com força girando até o canto. Agora era só empurrar a porta e ela estaria deitada dormindo. Empurrou lentamente.

acordasse, no entanto não poderia, pois o tempo estava se esgotando.

- É! Ela está no quanto! – Falou Bento timidamente. Não houve pergunta nem resposta de Carlos. Bento o olhou com piedade. Baixou a cabeça querendo imaginar qual seria a reação. Carlos baixou a cabeça. Olhou para os lados. Estava tudo perfeito, não havia manchas de sangue pelas paredes e nada estava quebrado. Sorriu inocentemente. Ela deveria estar dormindo. Com certeza estava cansado de tudo o que vinha acontecendo, chegou à conclusão. - Vou até o quarto. Ela deve estar descansando! – Sua voz era tranquilamente mórbida. A casa pareceu aos olhos de Carlos crescer. Olhou novamente ao seu redor e teve a impressão de que a mobília era maior do que ele. Olhou para cima e o teto se distanciara muito. A luminária estava distante, quase imperceptível. Juntou todas as energias que tinha e saiu correndo em direção ao quarto de Antônio. Parou em frente ao corredor para ver a porta do quarto. Esfregou os olhos e se perguntou por que fizera um corredor tão grande. 274 | Caipora - Comadre Fulozinha

A claridade vinda da janela ofuscou a cama, onde Carlos viu somente um vulto. Fechou os olhos por segundos e se dirigiu até a janela para fechá-la. Um medo súbito bateu em Carlos quando a claridade pareceu correr de dentro do quarto depois da janela fechada. O receio de se virar e olhar para trás o fez parar. Lembrava-se de ter entrado ali antes de Antônio e Maria irem trabalhar com ele. Essa foi a última vez que atravessara a porta. Dalí em diante o quarto se tornou algo proibido. Levantou a cabeça e viu que a janela tinha cortina, mesmo sendo de madeira. Pensou que talvez Maria não gostasse do marrom. Por que ela ainda não falara uma palavra sequer, perguntou-se. Teria de olhar para trás, sabia disso. Não poderia passar o resto da vida ali de costas. Foi virando devagar. Olhou para o espelho da cama e desceu até os travesseiros. Não tinha uma cabeça adornada nos travesseiros. Que bom!, pensou, enquanto ganhava mais coragem para continuar sua Nascimento

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expedição. Tinha visto algo na cama. Talvez não fosse nada. A claridade o enganara, pensou. Bento estava parado o observando. Uma lágrima escorreu do seu rosto. Naquele momento, sentiu uma tristeza enorme. O desespero bateu em sua cabeça e ele fez esforço para não berrar e falar: “Você não está vendo que ela está morta?” Uma certa alegria de ainda não ter visto nada em cima da cama fez com que Carlos acelerasse sua expedição macabra. - Não! Não! Não, Maria, não, meu Deus! – Gritou Carlos desesperado, quando viu Maria esparramada na cama com o queixo grudado no colchão e os olhos abertos olhando para o espelho da cama. Bento estava petrificado. Transformara-se em estátua? Perdera todos os sentidos? Quis gritar junto com Carlos, mas não conseguiu. Tentou se mexer e segurar aquele que àquela altura saíra do senso normal. Não conseguiu tirar o pé do chão. Ficaria ali toda a eternidade, olhando Carlos ser penalizado por algo que não fizera? Não! Não! Não iria ficar parado sem tentar, pensou. Carlos correu para perto de Maria, pegando-a pelos ombros e a sacolejando desesperado, sem saber o que fazia. - Não! Não, Maria, não! – Falou agora sussurrando e chorando de joelhos ao lado da cama. - Calma, Carlos! – Sussurrou Bento. - Como ter calma? Você ainda quer que eu tenha calma, seu miserável? Ela está morta, não está vendo? – 276 | Caipora - Comadre Fulozinha

Gritou Carlos se virando para Bento. - Ela está chegando! Ela vai nos matar! Temos de sair daqui! – Falou Bento olhando para Carlos com ares de compaixão. – Ela está chegando. - Quem está chegando? Quem está chegando? Você está louco! Você quer me enlouquecer! Maldito, a culpa é sua! - Não, Carlos! A culpa não é minha! É por sua culpa que estou nessa também! – Gritou Bento apontando o dedo para Carlos. - Minha culpa? – Esbravejou Carlos. - Sim! Sua culpa! Até agora estou tentando falar com você e explicar o que está acontecendo e você não me dá ouvidos. Você se fechou no seu mundinho e pensa que vai conseguir resolver sem fazer nada. É por sua culpa que tudo está acontecendo! Você não se deu conta das coisas e agora veja tudo o que aconteceu. Você é o culpado, sim, seu filho de uma puta. Você deixou as coisas chegarem aonde chegaram e agora vem jogar toda a culpa em mim, que não tenho nada a ver com isso! Eu avisei pra você, mas você não escutou. Você... - O que foi que eu fiz? – Perguntou Carlos tentando entender alguma coisa. - Você não fez nada! Seu avô levou uma índia que tinha sido escolhida pelo caipora – falou Bento tentando se acalmar. - Que índia? - Sua avó! Sim! Sua avó, que morreu logo após ter dado à luz seu pai. Nascimento

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- Você está louco! - Você não conheceu sua avó, a mãe do seu pai. Ele também não conheceu a mãe. Seu avô achou melhor não falar nada. Ele veio pra Pernambuco fazer uma pesquisa de campo patrocinada pela Universidade. Daí ele viu sua avó e se apaixonou por ela. Todos os dias ele ficava espiando-a. Quando chegou o dia de ir embora, ele se escondeu na mata com um saco e éter. A indiazinha tinha percebido que ele a estava olhando, até tomar banho. Ela gostava! No dia em que ele resolveu levá-la, pegou um espelho grande e doces, até que ela chegou bem próximo dele. Daí ele a agarrou e a fez desmaiar. Vestiu-a com o saco e amordaçou-a. Colocou-a em um carro e a levou embora. Ela pareceu aceitar o seu destino e o convenceu que não iria gritar ou correr. Foi um escândalo quando seu avô chegou no Rio de Janeiro, sem contar que o carro ele levou sem pedir. Como não podiam mais fazer nada, seu bisavô os colocou em um sítio para que ficassem lá. Passaram-se dois anos e ela ficou grávida. - Bento, pelo amor de Deus, você quer que eu acredite nessa história? – Falou Carlos o empurrando. - Nem eu mesmo acredito que isto está acontecendo – falou Bento afastando a mão de Carlos. - E por que você não me procurou para falar isso antes? - Vim saber quando toquei na segunda porteira. Não sei como explicar nada. Só sei que vi tudo o que acabo de lhe falar. - Quer dizer que você teve uma visão? Que viu meu avô, minha avó, o caipora, meu bisavô e tudo mais. Você 278 | Caipora - Comadre Fulozinha

está variando e eu aqui parado do lado de uma pessoa morta escutando você. - É! É! É! Eu estou variando por estar aqui com você, seu idiota. - O que eu tenho a ver com isso? Me diga! Não fui eu quem roubou a namoradinha do caipora, sem contar que Sandra não é homem! O Caipora é bicha? - Porra, Carlos! Porra! Cale sua boca pelo amor de Deus! O olhar de Bento fez com que Carlos parasse. Sua lembrança aflorou para as coisas que vinham acontecendo ultimamente. Sentiu-se como um idiota pasmado diante do que parecia loucura. Mas como explicar o que vinha acontecendo? Nada tinha sentido ali. Maria estava morta. Antônio estava morto e enterrado. Tinha perdido sua plantação, sem contar os animais. Lembrou por que fora procurar o detetive. Sim! Não tinha gostado do que vira pela manhã. “Vou ter que escutar o que ele tem a dizer”, pensou. - Certo! Acredito em você! Agora me diga o que eu tenho que fazer. Antes me diga com quem estamos lidando. Depois vou ligar para o detetive Washington. - Quando toquei na primeira porteira, vi uma coisa que parecia o céu. Não sei por que se parecia com o céu, não sei! Houve uma guerra e ele ou ela, o Caipora, estava ao lado de Lúcifer. A guerra foi perdida. Um buraco se abriu no céu e um terço dos anjos da rebelião caíram sem sequer saber como. A porta foi fechada e lacrada. Aqueles que estavam acostumados a ir e vir não conseguiram mais voltar. Lúcifer prometeu um novo reino e boa parte o acompanhou para o centro da Terra. O caipora foi um dos que não o Nascimento

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acompanharam. Outros anjos que não acompanharam Lúcifer transformaram-se em animais, homens, bestas ou ficaram na forma original. O tempo foi passando, e o Caipora sempre olhava para o céu clamando que Deus lhe perdoasse. Quando Jesus nasceu, o Caipora escutou uma voz que lhe disse para tomar conta das matas e dos animais para o bem dos homens. Disse-lhe que, se cumprisse sua tarefa, voltaria para casa. Deus lhe jogou uma maldição, sua presença traria má sorte, só assim o afastaria da presença e convívio do homem. Ele aceitou e jurou! - Certo! Só me diga uma coisa: o que eu tenho a ver com isso? - Como ele não pôde se vingar, na época, do seu avô, está se vingando da geração dele. O maior problema é que ela fez um pacto com Lúcifer. Foi ele que a fez odiar você. Ela só conseguiu fazer o que fez e está fazendo por conta dele. Agora não me pergunte mais nada! Eu nem sei como a deter. Só sei de uma coisa: ela esta vindo matar você! - Não dá pra acreditar que você viu isso tudo em tão pouco tempo! E agora? - Vamos sair daqui! Você vai ter de ir embora. - Não posso sair assim! E a Maria? E a fazenda?

Parte XXIX

De Volta Pra Casa

Quando Sandra chegou a Serra dos Cavalos, a distância percebeu que era o mesmo guarda florestal que conhecia. O que deveria fazer iria fazer ali. Esperava que, depois do que fizera à ambulância, Lúcifer a tivesse deixado sozinha, sem a companhia de seus capachos. Sentia que não estava sendo acompanhada. Talvez ele a esquecera por algumas horas. Não dera motivos para que ele desconfiasse de alguma coisa. Ela, no meio da mata e principalmente aquela teria forças para parar com aquilo tudo. Estacionou e se dirigiu até a guarita. - Bom-dia, Fred! – Falou Sandra rindo. - Bom-dia! – Respondeu – O que você faz por aqui uma hora dessas? Ainda não se convenceu de que Serra dos Cavalos não tem nada a ver com os sismos? – Perguntou rindo e com ares de quem zomba.

- Você não pode ficar aqui! Vai ter de ir embora! Ela sabe que você está aqui. Ela vai terminar o que começou.

- Sou difícil de convencer! – Respondeu rindo e estendendo a mão. – Como vai você?

- Bento, vão pensar que tenho alguma coisa com isso. Meu Deus... Vou ligar para o detetive.

- Bem, e a senhora? – Falou enquanto apertava a mão de Sandra.

- Carlos, ele não vai poder ajudar. - Por quê? Onde ele... 280 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Vamos deixar de lado as formalidades, Fred, senão vou ter que lhe chamar de senhor. Nascimento

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- Certo! Feito! Vai olhar novamente a mata? Da última vez levou um banho e tanto. Até pensei que tivesse se perdido.

sensação de poder tomou-lhe o corpo. Seus cabelos pareciam ter vida própria, seguindo a direção do vento que a arrodeava.

- Pode ficar sem medo. Nunca me perdi na mata – falou e riu estranhamente.

Olhou para os lados, girando sobre si seu próprio corpo. Deu uma gargalhada levantando os braços.

- Você tem autorização? – Perguntou encabulado. – Não..

- Sua rainha está de volta! Terra, ar, água, fogo, me obedeçam!

- Você já me conhece e sabe que não vou depredar nada, nem levar o que pertence à mata. – Foi falando e entrando sem dar muita atenção à pergunta.

O céu se tronou totalmente escuro. Nada poderia ser visto a não ser o breu. O tempo parou. O vento congelou para escutar. A mata brincou de estátua. Um raio desceu do céu, parecendo estar em câmara lenta e acertou Sandra, que gritou!

- Certo! – respondeu quase só, pois Sandra já se distanciara um pouco. Nesse dia, Sandra não olhou para trás nem prestou atenção ao que Fred lhe recomendava. Seu único pensamento era juntar forças e terminar o que começara. A cada passo que dava se sentia mais forte. Respirar na mata era como tomar um tônico mágico. Seus passos foram acelerando aos poucos. Sentiu que flutuava. Um sorriso medonho surgiu no seu rosto. A mata se mexia como quem a saúda. Corria agora no ar. Suas passadas aumentavam. O sorriso, estampado no seu rosto, pareceu medonho. Iria agora para o centro da mata. Lá seria o lugar perfeito. As nuvens começaram a fechar o céu, uma a uma foram crescendo e escurecendo, tapando o sol que até aquele momento reinava. Um rosnar fez com que a terra tremesse. O trovão gritou sorridente, saudando sua rainha. Sentia o sangue correndo dentro das veias. Uma 282 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Estou livre! Agora estou livre! Estou finalmente livre! O corpo de Sandra foi arremessado do centro da mata onde só ficara o Caipora. O que deveria ser Sandra rolou na terra, como quem faz cambalhotas, até bater de cabeça numa árvore. Inerte e com sangue escorrendo em sua boca, pareceu morta. Um barulho foi surgindo como vindo do infinito. Tornou-se ensurdecedor, rasgando a terra e abrindo uma fresta que foi seguida de fogo negro. Um grito de dor aterrorizante surgiu das profundezas, seguido por uma luz que foi arremessada até o corpo de Sandra. Seu olhos se abriram e viram aquele que a jogara no inferno. Um sorriso de quem é resgatada do seu maior pesadelo surgiu em seu rosto. Seus olhos se fecharam. - Estou de volta! - Gritou o Caipora. – Estou de volta! Um, dois, três estampidos seguidos de seus clarões Nascimento

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surgiram das mãos de Washington, que, apavorado diante da cena, alvejou o Caipora. Os projéteis atravessaram aquilo que parecia uma menina com cabelos esvoaçados. “Ela parece morta!”, pensou Washington, feliz por ter, a seu ver, acertado aquilo que não sabia bem o que era. Não! Não! Não era Sandra! Era essa coisa! Concluiu sem provas, só pelo fato dela estar caída e parecendo morta. Seus olhos se esbugalharam ao ver a coisa parar e olhar em sua direção. - Não! Não pode ser o Caipora, meu Deus! – Gritou Washington desesperado. Uma risada medonha saiu da boca daquilo que parecia uma menina. Seus olhos pareciam tochas iluminando a mata como faróis, que agora estavam direcionados para Washington. Washington empunhou novamente sua magnun 44 e apertou o gatilho, que fez sair uma rajada de projéteis. Todos acertaram o alvo, transpassando-o. Outra gargalhada. - Não! Não! Meu Deus, não! – Gritou em pé, perplexo. – Ela continua lá. Não aconteceu nada. - Por que você fez isso? O que fiz com você? – Sua voz era de criança. Seu jeito meigo era de menina quando pergunta algo a seu pai ou mãe. – Por que você não escutou o que sua namoradinha pediu? O ventou começou a circular ao redor de Washington, arrastando as folhas. Washington pensou em correr. O medo travou todos os nervos responsáveis pelas pernas. Como ela conhecia Paula? Sim, Paula falou alguma coisa 284 | Caipora - Comadre Fulozinha

sobre uma menina! Lembrou! O vento foi acelerando, se tornando um redemoinho, e ele estava agora no centro. - Por que você quer me machucar? O que fiz com você? O caipora baixou os braços e o corpo foi baixando até seus pés pequeninos tocarem o chão. A distância até Washington foi diminuindo, apesar das passadas pequeninas daquela menininha que sorria para ele. - Você matou muita gente! Não tenho nada contra você! Estava atrás do responsável pelas mortes! – Gritou Washington no meio da tormenta. - Você é para os mortais! Não para mim! Agora não posso deixá-lo vivo. O caipora levantou os braços e a mata estremeceu. Aquilo que parecia um redemoinho parou, congelando as folhas, galhos e terra em volta de Washington. - Sua rainha ordena! Me obedeçam! – Sua voz era de menina, no entanto sua voz saiu com autoridade. Cipós brotaram da terra e começaram a rastejar como cobras diante dos olhos de Washington, que não conseguia mais respirar, como se estivesse dentro de uma redoma de vidro. - Foi você quem matou o porteiro! – Gritou Washington. – Sim, foi você! Eu não vou morrer do mesmo jeito. - Veremos! – Falou baixinho o caipora rindo. - Por que você está fazendo isso? Quem é você? Me diga pelo amor de Deus! – Falou Washington quase sussurrando já sem fôlego. Nascimento

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Ele estava caminhando a passos lentos, já os cipós não. Washington olhou para baixo e sentiu que suas pernas já estavam entrançadas na altura das rótulas. Tentou se mexer, não conseguiu. O medo de cair foi mais forte do que o desejo de se soltar. E se não conseguisse se libertar? Cairia com certeza. Não iria morrer deitado, pensou! Não! Não vou morrer! Repreendeu-se.

não queria acreditar no que os olhos estavam vendo. Do que adiantara ter entrado à força no parque e corrido tanto? Não conseguira salvar quem tanto amava. Seus olhos encheram-se de água quando, de joelhos, tentou arrancar aqueles malditos cipós entrançados no pescoço.

Ele agora estava na sua frente. O cipós já estavam na cintura, e continuavam subindo. Dois cipós saltaram em seus punhos, grudando feito laço e puxando de encontro ao corpo. Imóvel e suando, Washington sentiu os cipós envolverem seu pescoço e começarem a apertar.

A claridade dos olhos do Caipora desapareceu como lâmpada que queima. Parou, olhando-a desesperada livrar aquele homem da morte.

- E, agora? Vais morrer ou não? - Parou e o olhou sorridente. - Não! – Respondeu por entre os dentes e sem forças. - Sim, você vai! Sim, chegou o fim. Washington sentiu sua visão se fechando sem poder fazer nada. A mata ao redor pareceu parar para ver o que iria acontecer. “É assim que é morrer”, pensou Washington desfalecendo e desmoronando sobre a terra. Seu corpo cortou o ar, as folhas, o pó da terra ao seu redor. - Não! Não! – Sussurrou vendo a terra aproximar-se de seus olhos, em câmera lenta, enquanto despencava. - Não! Não! Não faça isso! Ele é meu! – Gritou Paula, desesperada, enquanto corria em direção a Washington. Não deu tempo, pensou Paula quando viu Washington despencar no chão feito morto. Sua mente 286 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Maldita! Maldita! – Gritou Paula de cabeça baixa em sua peleja.

Paula virou a cabeça, e a fitou desafiadora. Seus olhos e rosto transbordavam em ódio. - Maldita! Maldita! Se ele morrer, vou até o inferno atrás de você. Ela o ama realmente!, pensou o caipora. Seus olhos se voltaram para o nada procurando alguma resposta do que seria aquele sentimento, vindo de quem não conhecia o verdadeiro amor. Como ela o ama e não o tem? Por que ela chora desesperada? Um sentimento de tristeza aflorou. A tristeza foi sendo devorada pelo desprezo. Não queria estar ali, no entanto estava. Sentiu-se só. Sim, teria de terminar o que começou. Olhou-a novamente. Levantou a cabeça olhando para o céu, como quem procura algo. Um grito estridente saiu de sua boca. Um raio surgiu no céu e foi ao seu encontro. Outro grito e já não estava mais lá. Um suspiro de Washington fez Paula o abraçar chorando desesperada de alegria.

Nascimento

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Parte XXX

O Retorno

Um rosnar cortou a frase de Carlos. Era um barulho grave que foi aumentando. Seria um trovão, pensaram os dois dentro do quarto. Um som feito estalo de chicote, tamanho gigante, interrompeu o rosnar e iluminou o céu. O clarão foi tamanho que pareceu atravessar as paredes do quarto. Outro rosnar seguido de outro açoite de chicote. Uma chuva bateu no teto, e a casa pareceu reclamar o volume de água sobre si. - Não pode estar chovendo! Estava fazendo sol! Nunca vi se quer um trovão ou relâmpago fazer tanto barulho – falou Carlos incrédulo olhando para Bento. - Ela chegou! Temos de sair daqui! Vamos! – Falou Bento se dirigindo até a porta. – Vamos, Carlos. Ela chegou. Bento pegou Carlos pelo braço esquerdo como quem puxa uma criança. Sua força foi tamanha que Carlos sentiu os ossos de seus dedos apertarem sua carne, como se fossem de madeira. Outro estalo cortou o céu e dessa vez foi seguido por um rosnar medonho, que parecia brotar de toda a terra. Carlos e Bento balançaram no corredor como marionetes jogadas de um lado para o outro. Carlos tropeçou nas próprias pernas e caiu. Bento o levantou Nascimento

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sem olhar para trás. - Não olhe para o final nem para as paredes! Siga em frente! Não olhe para trás. – gritou bento arrastando Carlos. - Meu Deus, o que está acontecendo? Outro estalo seguido de um clarão que rasgou o teto da sala no momento em que Carlos e Bento chegaram. Uma gargalhada estridente rasgou o barulho da chuva, que pareceu se calar diante de tal volume. Carlos puxou o braço e tapou os ouvidos se contorcendo de dor. Bento caiu no chão da sala e levou as duas mãos à cabeça para amenizar a dor provocada pelo som da gargalhada. O buraco no teto da sala deu passagem para a água que caía feito cachoeira. Onde o raio caiu abriu um buraco que parecia cuspir fogo. Outra gargalhada. Outro estalo. Outro clarão e a chuva cessou. - Vamos sair! – Gritou Bento, procurando Carlos e se levantando.

Era minúscula, pensou Carlos pasmado. O silêncio pareceu ordenar que não falassem, nem gritassem. O vento estava calado. Não tinha barulho do teto se afastando para dar passagem àquela menina. Ela sorria meigamente o sorriso das crianças. - O caipora quer brincar. Você não vai escapar! No meio da mata escura, o caipora vai pegar – cantou a menina. - Vamos, antes que ela entre – gritou Bento se dirigindo até a porta. Carlos se arrastou pelo meio da sala até que Bento o puxou novamente pelo braço, fazendo-o se levantar. - O que você quer de mim? – Gritou Carlos em direção ao Caipora. – O que você quer de mim? O que você fez com Sandra? As telhas espalhadas pelo chão se levantaram uma a uma e foram formando degraus. De dentro do buraco, surgiram cipós que iam apoiando as telhas enquanto outros desenhavam um corrimão. O vento parou. A passagem do teto estava pronta.

- Veja! – Gritou Carlos ainda no chão, apontando para o teto.

Os degraus chegaram até os pés do Caipora, que até ali flutuava.

Os olhos de Bento petrificaram quando olhou para onde Carlos apontava.

O Caipora olhou para baixo e riu novamente, procurando o último degrau. Apoiou o pezinho direito descalço sobre a telha e levou a mão até o corrimão que acabara de se formar. Deu o segundo passo e riu suavemente.

Uma menina com cabelos esvoaçados surgiu acima do buraco no teto. Seu sorriso era desafiador. Um vento forte alargava o buraco para que ela passasse. Era minúscula 290 | Caipora - Comadre Fulozinha

- A Sandra que você conheceu sou eu! Não me reconhece? Já esqueceu de mim? – Falou o Caipora com Nascimento

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voz de menina. - Não! Não! Você não é a Sandra! – Gritou Carlos, encarando-a. - A verdadeira Sandra jamais o olharia. Você não faz o tipo dela – falou o Caipora com a voz de Sandra e rindo. - Onde ela está? O que você fez com ela? - Ela está morta! Foi um acidente! - Maldita, você a matou! - Já falei que foi um acidente! - Você matou o Antônio e a Maria, sua miserável! O que é que você quer de mim, maldita? - É só um acerto de contas!

com a seriedade de uma adulta, enquanto as passadas por sobre as telhas aumentaram de velocidade. Bento puxou Carlos para fora de casa com tanta força que os dois caíram na varanda. - Você tá louco? – Gritou Bento se levantando, ainda segurando o braço de Carlos. – Vamos logo! Um grito estridente surgiu de dentro da casa, espalhando e jogando tudo o que tinha na sala para os quatro cantos. As vidraças explodiram para dentro e em seguida foram atiradas para fora. Novamente o silêncio se fez. Bento e Carlos cobriram o rosto com as mãos enquanto eram arremessados para o terreiro. A dor...

- Eu amei você, e você matou as pessoas que eu amo! Por quê? Por quê?

- Maldita, você quebrou meu braço! – Gritou Bento desesperado e se contorcendo de dor.

- Até pouco, você amava Sandra. Agora você diz que me amava. Você está um pouco confuso.

Carlos olhou para Bento e viu o osso do úmero, que parecia gritar junto ao desespero de Bento. Um jato negro pareceu jorrar escurecendo a camisa branca que ele vestia. Bento tentou apoiar o braço esquerdo com a mão. A dor foi tão grande que ele desfaleceu por cima do braço quebrado. Carlos se arrastou até ele e o virou. Pensou em arrumar o braço, mas suas mãos não obedeceram.

- Não! Não estou confuso. Se não era a verdadeira Sandra, então eu amava você, sua maldita. Os olhos de Carlos se encheram de lágrimas. Uma dormência tomou conta de suas pernas. Uma fraqueza tomou de conta do corpo. Carlos lembrou de Antônio e Maria. - Você não vai me matar! Você me ama! – Falou Carlos com voz branda e segura. - Eu amar você? Quem você pensa que é? O sorriso se desfez, deixando um rosto de menina 292 | Caipora - Comadre Fulozinha

Um grito surgiu na porta da frente da casa. Carlos se virou e a viu saindo caminhando no ar. Seu sorriso de menina desaparecera. Sua seriedade sumira, dando espaço a um rosto medonho. Seus olhos clareavam de vermelho a escuridão. Sua boca pareceu ter crescido. Suas mãos pequenas agora eram adornadas por garras. Nascimento

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- Agora você vai... - Não! Não! Você não vai fazer nada com ele! – Falou uma voz feminina, tranquilamente.

O Caipora parou olhando para o vagalume, que foi crescendo sua claridade perdendo o formato de inseto, dando espaço a ela.

Calou-se e olhou para os lados. Quem teria dito aquilo, pensou o Caipora. Olhou para Carlos e para Bento na velocidade do pensamento. Olhou para cima e não viu nada. Olhou para o chão e começou a caminhar na direção dos dois. Enquanto caminhava, seus pés procuravam o chão. Passou por sobre os degraus ainda flutuando. Quando chegou ao terreiro enlameado, já estava com os pés no solo.

- É você mesma? – Perguntou o Caipora com um sorriso no rosto.

Carlos olhou ao seu redor e para cima, como quem procura seu salvador. Uma tranquilidade tomou conta de seus pensamentos. Olhou para Bento, que abriu os olhos no mesmo instante.

- O que você está fazendo com meu neto? Por que você fez isso? – Perguntou Jasmim.

- Conheço essa voz! – Falou o Caipora com voz branda. - Pensei que tivesse esquecido! – Respondeu pausadamente. - É você? – Perguntou olhando para cima, como quem procura algo sem saber de onde sai o som da voz. Uma luz minúscula, feito um vagalume, surgiu na distância e foi se aproximando rapidamente. Era um vagalume, percebeu o Caipora quando a luz parou na sua frente. O olhar do caipora perdeu o brilho vermelho. Sua boca diminuiu. Suas garras foram se enterrando naqueles minúsculos dedos. Seu rosto tomou novamente o aspecto de menina. 294 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Sim! Sou eu, Jasmim! – Respondeu a luz. Carlos não tirou seus olhos da luz, que, conforme crescia, ia tomando o aspecto de uma mulher. A claridade foi diminuindo, até que uma índia apareceu e riu para o Caipora.

- Levaram você de mim! – Reclamou o Caipora - Eu nunca fui sua. Cumpri o meu destino. Você sabe que jamais me teria. - Você era minha! - Não! Não! Nunca fui sua e você sabe disso. - Ele levou você! Não podia ter feito isso! - Ele é meu neto! Eu fui com o avô dele porque eu quis. Você não tem direito de reclamar nada, sabe disso! Você foi enganado por aquele que quer sua perdição. Mais uma vez você agiu errado. Ele não tem nada a ver com isso! Quem quis fui eu! - Ele a enganou novamente. Tudo o que fez não foi pensando em você. Ele simplesmente quer você ao lado. Não se conforma em você ter uma chance. Na hora da morte, Talita pediu a ela que levasse Sandra com ela. Sandra, mesmo inconsciente, concordou, pois a amava Nascimento

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muito. Sem saber, Sandra aceitou o pacto, no entanto ela não tinha ciência do que iria acontecer, até porque estava desesperada. Quando você tomou o corpo dela, ela se arrependeu, só que era tarde, não tinha como voltar atrás. Ele usou a todos para que você fosse para perto dele. Não é porque a ama, mas porque não se conforma em perde-la. Sem contar que ele sabe que está perdido. Ele não vai descansar enquanto não estiver com todos que participaram da rebelião.

Caipora apontando para Carlos.

- Você está mentindo pra mim! Só pode estar! – Falou o Caipora balançando a cabeça.

- Sua rainha ordena. Mate-o! – Berrou o Caipora, apontando para Carlos.

- Não estou, e você sabe disso! – Repreendeu-a suavemente.

A terra estremeceu. Um raio cruzou os céus. A chuva despencou forte, queimando a pele de Carlos e Bento. Cipós começaram a brotar da terra.

- Ele não podia ter feito isso comigo! – Gritou o Caipora.

- Você não vai! A mata está mais viva do que você jamais a conheceu. Ela me pediu para detê-la. Perto de mim você não pode fazer nada. Os olhos do Caipora cresceram como uma bolha e se tornaram vermelhos por completo. As unhas cresceram e se tornaram garras grandes e afiadas. Seu corpo levitou até a altura de Jasmim, que a olhava com carinho.

O Caipora olhou para Jasmim e riu.

- Não faça nada! Volte para as matas! – Falou ordenando Jasmim.

- Sua rainha ordena. Mate-o! – Berrou novamente o Caipora, com ares de risos, apontando para Carlos.

- Não! Não! Não! Não vou! – Gritou o Caipora com

- Eu sempre a amei como a uma irmã que nunca tive. Ele é minha descendência e o amo muito. Não faça isso! – Falou com carinho olhando o Caipora.

ódio. - Quando ele a levou ao inferno, a enfeitiçou. Não sei como! Só sei que se você voltar para as matas, tudo será esquecido e você voltará à sua essência natural. As matas e os animais reclamam sua presença. Você é deles. Eles a ajudaram a se curar.

O semblante medonho do Caipora olhou com ternura para Jasmim por alguns segundos. - Ele não pode ter me enganado! – Reclamou sozinho o Caipora.

- Eu não estou enfeitiçada! Tudo que fiz foi porque eu quis. Você está querendo me enganar para salvar o seu maldito neto!

Jasmim levantou as mãos em direção ao Caipora e a chuva parou. Olhou sorrindo para os cipós e eles foram se recolhendo. Olhou para o céu.

- Não! Não estou! – Respondeu suavemente.

O Caipora olhou incrédulo. Será que estava sozinha?, pensou.

- Eu vou matar esse maldito agora! – Gritou o 296 | Caipora - Comadre Fulozinha

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- Eu, Jasmim, vim ao seu pedido. Reclamo o poder prometido. Um estrondo surgiu das profundezas da terra. Um clarão se fez no céu. Um raio rasgou as nuvens indo em direção ao Caipora, acertando-o. A clarão desapareceu junto com o Caipora. - Eu vou me vingar! As nuvens foram sumindo. Jasmim olhou para Carlos e sorriu. Seu corpo foi desaparecendo na mesma velocidade que o sol começou raiar por trás das nuvens. - Você está bem? – Perguntou Carlos a Bento. - Não! – Falou chorando, apontando com os olhos o braço quebrado. - Você viu? - Tudo! O sol tomou seu lugar de direito no céu iluminando. A terra encharcada e lamacenta fez com que Carlos se levantasse com cuidado e ajudasse Bento a se levantar. Seus aspectos eram de quem acabara de sair do inferno. Carlos saiu andando, apoiando Bento em direção ao carro. O celular tocou. Carlos pensou em não atender. Pensou novamente e chegou à conclusão. Iria ver quem era. Era Washington. - Carlos? Carlos, você está bem?

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Parte XXXI

Socorrendo A Rainha

Um clarão se fez distante. “Esse é o sinal, ela deve estar lá!”, pensou o enorme carcará, voltando de suas lembranças. Seus olhos brilharam, colocando-se em direção ao clarão. “Estou chegando. Aguente mais um pouco”, falou consigo mesmo. Bateu suas enormes asas e subiu, subiu mergulhando no céu escuro. “O que farei quando chegar lá?”, se questionou. “Devo minha vida a ela, farei o que tiver de fazer!”. O clarão que surgiu no horizonte se fez no momento em que o Caipora e seu carrasco surgiram do nada. A mata era fechada, e por alguns instantes o Caipora parecia adormecido, talvez pelo cansaço da fuga, antes de o raio o acertar. Levantou a cabeça e viu um vulto. Sabia que não tinha saído de lá por conta própria. A visão que tinha de onde estava não lhe dava certeza nenhuma. - Você não está nada bem! – Falou rindo Lúcifer, olhando-a com desdenho. Já não era uma criança, e sim uma mulher. Estava toda envolvida por cipós dos pés até o pescoço. Seus cabelos esvoaçados cobriam parte do seu rosto moreno. Nascimento

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Seus olhos vermelhos feito tochas pareciam petrificados, agora em Lúcifer.

Seus cabelos compridos pareciam mortos, sequer mexiam quando se movimentava.

Lúcifer se aproximou e alisou seu rosto, beijando-o em seguida.

Seu rosto, agora afilado e branco, não transmitia emoções. “Algo está errado com ele”, pensou o Caipora.

O ódio que ela sentia estava entranhado não só nos olhos, como também em cada curva da pele que os arrodeava.

Estava vestido de preto. A calça parecia grudada à pele. Uma blusa de mangas compridas deixava apenas as mãos brancas com suas garras expostas.

- Você estragou tudo, sabe disso, não é? – Perguntou Lúcifer.

Ela olhou para baixo, procurando ver os pés de Lúcifer. O que viu foram sombras.

- Você me traiu! – Falou sussurrando. - Traí você? Você é que tem o mau costume de me trair. O que faço com você? Me responda! Parecia noite, e estava demasiadamente silenciosa. Não se escutava o som sequer dos animais rastejantes. As árvores silenciadas pela falta do vento, imóveis eram as únicas testemunhas. - Sim, você mentiu mais uma vez. Você me usou. Você não quis me ajudar, e sim... - Cale sua boca, nojenta! – Gritou Lúcifer. Um estalo seco da mão de Lúcifer fez a cabeça dela balançar, calando-a. Os olhos do Caipora ascenderam feito lanterna em direção a Lúcifer. Ele balançou a cabeça. - Não adianta fazer força ou tentar escapar. Você agora é minha, e vai comigo. “Ele estava diferente”, pensou. Tinha alguma coisa errada. 302 | Caipora - Comadre Fulozinha

- Eu não vou para lugar nenhum com você! - Vai sim! Olhou ao redor para saber onde estava. A certeza de que não estava em um dos domínios dele a fez rir. “Ele não conseguiu me levar. Alguma coisa aconteceu, e tenho de sair antes que ele consiga ”, pensou. O que tinha vivido ultimamente estava começando a se tornar real. Sentiu-se como quem começa a despertar de um longo sonho. “Jasmim estava falando a verdade. Ele fizera alguma coisa. Venha me socorrer, Jasmim!”, pediu o Caipora calado. A terra pareceu esfriar a sola de seus pés. Uma força começou a brotar e foi penetrando no seu corpo. Sentiuse como uma planta que rasga a terra. Baixou a cabeça. “Eu sou sua rainha. Não me abandonem! Eu peço, não me abandonem!”. - Você está pedindo socorro? Não vai adiantar! Não era mais a mesma, alguma coisa tinha mudado. Sentiu-se entendedora. “Perdoe-me, Pai, perdoe-me! E Nascimento

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agora o que faço?”

Outro grito de dor rasgou o vento.

- Não acredito que você está tentando falar com Ele! – falou Lúcifer debochadamente.

- Não! Não, socorram-me! – Gritou desesperada.

Seus olhos começaram clareando, tomando uma cor esverdeada. Seus cabelos cresceram até a cintura. Um sorriso tomou conta de sua boca. Sim! Sim, agora se sentia melhor. Uma força começou tomando de conta de todo o corpo, fazendo-a brilhar debaixo dos cipós, que começaram perdendo a pressão sobre seu corpo.

Flutuou sendo arrastada pelas sombras, debatendose, tentando se soltar. - Você vai comigo! – Gritou Lúcifer, às gargalhadas. - Não! Não, socorram-me! – Gritou novamente. “Ele veio! Ele quer levá-la! Não deixarei, não!” Pensou o carcará, mergulhando em direção à sua rainha, que se debatia enquanto era arrastada. Uma voz chamou a atenção de Lúcifer. “Não pode ser você!”, pensou quando viu Jasmim.

Olhou para o céu e viu uma ave enorme vindo em sua direção. “Você veio!”, falou consigo mesma.

Ela estava envolvida por uma luz tão forte que Lúcifer baixou a cabeça, esquivando-se da claridade.

- Temos visita? – Falou enquanto se virava para olhar o céu, procurando o que lhe chamou a atenção.

Jasmim olhou para o Caipora, que tentava se soltar desesperada, e soprou um raio de luz em sua direção.

- É tarde! Olhou para o chão, e um barulho de milhões de vozes rasgou a terra. O vento começou soprando e cresceu, transformandose em vendaval. Da fresta começaram a sair sombras gritantes, indo em direção ao Caipora. Lúcifer a olhou, apontando para que a pegassem.

- Você não pode fazer isso, não pode! – Esbravejou Lúcifer. O carcará cravou as garras nos ombros de Lúcifer, no momento em que ele levantou a mão e o fez flutuar. Lúcifer virou o rosto, e nesse momento o carcará bicou seus olhos velozmente, arrancando-os. - Maldito! Maldito, o que você fez? – Gritou Lúcifer com voz feminina.

Um grito do Caipora fez com que os cipós despencassem, como se estivessem colados no vento.

Jasmim virou-se na direção de Lúcifer e arremessou uma raio de luz, acertando-o no peito.

Uma legião de sombras cobriu o Caipora, cravando sua garras em todo seu corpo.

Era irreal! As vestes negras de Lúcifer sumiram. Tudo o que o cobria caiu diante dos olhos do Caipora e

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Jasmim.

de vozes saíram das sombras. Uma luz vermelha floresceu o Caipora.

Um gemido gutural e medonho, acompanhado de gargalhadas, saiu da boca não de Lúcifer, e sim de uma mulher. ... Seus braços giraram para trás. Olhos brotaram como mágica do nada, do buraco da caixa dos olhos.

As sombras começaram a soltá-la. Levantou-se. Olhou para Jasmim com carinho, e em seguida para Lilith, que se aproximava de Jasmim.

Suas mãos agarraram o carcará, que se incendiou e foi arremessado como uma tocha.

Um estrondo enorme balançou a terra, seguido de trevas.

O vento parou. Ela olhou para o caipora se debatendo com as sombras. Seus braços e pescoço giraram, voltando ao normal. “Não era ele”, pensou o Caipora quando a viu. “Não era ele, era Lilith!” “Ela era linda”, pensou o Caipora. “O que você fez comigo, e por quê?”, perguntou-se olhando agora seu rosto branco e olhos claros. Lilith estava coberta por algo que envolvia seu corpo dos pés até o pescoço. Tudo parecia preto, no entanto era uma mistura de cores em que o verde se destacava. O sorriso entranhado no rosto deixou o Caipora por segundos sem saber o que fazer. “Por que você está aqui?”, perguntou-se novamente o Caipora. - E agora, indiazinha nojenta? – Perguntou Lilith, enquanto flutuava na direção de Jasmim. Jasmim virou-se para ver Lilith, que vinha em sua direção com a mão esquerda levantada. Seus pensamentos eram tranquilos, não temia nada naquele momento.

Uma voz rouca surgiu do nada. - Lilith? Lilith, o que você pensa que está fazendo? Não lhe dei permissão para tomar o meu lugar, tampouco recrutar meu exercito. As sombras voaram e cobriram Lilith. O que parecia verde tomou vida, se transformando em serpentes. O desespero a tomou. As serpentes começaram a se enrolar no seu corpo. Uma serpente, que estava no seu pescoço. tomou proporções maiores. Lilith caiu, e a serpente começou a arrastá-la para a fresta negra cravada na terra. Seu corpo se debatia inutilmente. - Não! Não! – Gritou Lilith. - Você veio me socorrer! Como? – Perguntou o Caipora olhando para Jasmim. - Não fui eu! – Falou enquanto desaparecia. O caipora apontou a mão para o carcará que ainda queimava, soltando um facho de luz. - Sua rainha está de volta! – Gritou estendendo a mão.

Levantou a mão, olhou para o Caipora e arremessou outro facho de luz em sua direção. Gemidos de centenas 306 | Caipora - Comadre Fulozinha

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