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Zoom // Reportagem

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estrada para o Inferno; mesmo os suicídios quotidianos que não param de se acumular em estatísticas desesperadas parecem ecos de notícias que por cá também lemos. Muito na Grécia, começando pelo estado geral das suas feias cidades, faz-nos rever o Portugal de há dez anos; a enxurrada de fundos que elevou o nível de vida dos gregos não deixou sedimentos visíveis, para lá do verniz mais superficial. Para onde terá ido o dinheiro? Todos já ouvimos o mantra dos seus gastos incomportáveis, do seu elevadíssimo salário mínimo, empurrando-nos para a crença na preguiça endémica do país e a inevitável urgência de mais e mais cortes, até que eles ganhem apenas o que merecem – mesmo que os dados do Employment Outlook da OCDE relativos a 2010 nos provem que os gregos trabalharam em média mais horas que os esforçados cidadãos de países de bom nome na praça, incluindo a Áustria, a Alemanha, o Reino Unido, a Islândia... e até Portugal. Seja como for, em 2009 chegou o choque com a realidade de uma dívida tremenda, camuflada pelo governo de então, com a ajuda de técnicos da Goldman Sachs. Yorgos dá voz ao espanto consensual: “Ninguém sabia da situação grega; esconderam-nos a dívida. A troika veio sem aviso nem consulta. As pessoas querem pagar a dívida, mas não desta maneira.” As imprecações contra muitos culpados ocultos vão da vox populi, certa de que ninguém paga impostos na Grécia, ao empresário hoteleiro de Kalambaka, que nos assevera que a fórmula fiscal mais em voga no seu país é o “2+4+4”: 20% para o Estado, 40% para o próprio e 40% para os inspectores das Finanças. Mas também o “International Herald Tribune” denunciou há dias as culpas dos oligarcas: os super-ricos (começando pelos armadores, tradicionalmente isentos de impostos) que se recusam sequer a financiar as instituições de solidariedade, quanto mais a ajudar o seu governo a lidar com a crise. Sim, os gregos sabem que há milhões dos seus que não conhecem as angústias amargas da crise. Em zonas atenienses como Plaka, há ruas inteiras que se animam todas as noites com álcool a preços de extorsão e música estridente, numa recriação em grande do gosto duvidoso de uma qualquer marina algarvia. Anda por ali dinheiro e boa disposição a rodos. Junto ao bairro estudantil de Exarchia, epicentro de muitos distúrbios recentes, um silo de estacionamento guarda fileiras de Porsches e Mercedes, tesouros made in Germany que não convém deixar na rua – isto apesar de ser rara a motocicleta acautelada com a prevenção de um cadeado. O luxo desconfia e prefere o recato. A insegurança parece omnipresente; pelo menos a abundância de polícias em toda a cidade pode fazer-nos acreditar nisso: de mota, automóvel, autocarro ou a pé, as forças policiais aglutinam-se em ominosos ajuntamentos sem razão aparente. Junto à famosa Praça Syntagma, nem sinal de concentrações sediciosas;

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—2 Junho 2012

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alguns agentes em motorizadas japonesas reluzentes mantêm debaixo de olho uns poucos turistas que fotografam os passos de ganso da guarda de honra e nada mais. Muita da popularidade da Aurora Dourada ficou a dever-se aos seus serviços de “segurança”, oferecidos como solução às vizinhanças onde os imigrantes são espantalho para todos os medos e bodes expiatórios sempre à mão. De resto, esta organização neonazi recebeu votos que representam castigos para os partidos estabelecidos; literalmente, como admitiu a ateniense Iliana Bousiaki, de 28 anos, licenciada em Ciências Políticas e profissional de comunicação: “Conheço quem tenha votado neles e agora apresente as desculpas mais estúpidas, como quererem que os seus deputados vão para o parlamento bater nos outros. Bater a sério, ao estilo do que vemos acontecer na Coreia.” Exarchia. O enclave estudantil, anarquista, revolucionário. Em 1973, a revol-

05 Um sem-abrigo a dormir nas grelhas de ar do metro, na praça Omnia, uma das mais centrais de Atenas YANNIS BEHRAKIS/REUTERS

06 A sopa dos pobres à porta de uma igreja ortodoxa da capital grega JOHN KOLESIDIS/REUTERS

Muita da popularidade da Aurora Dourada ficou a dever-se aos seus serviços de “segurança” oferecidos às vizinhanças

ta do Politécnico de Atenas começou aqui. Em 2008, o assassinato do activista adolescente Alexandros Grigoropoulos levou ondas de choque destas ruas a todo o país – os dois polícias responsáveis foram entretanto condenados a pesadas penas de prisão. Hoje o bairro é vigiado 24 horas por dia; o governo decidiu mudar para perto do Museu de Arqueologia a sede do Ministério da Cultura, porque, segundo nos diz Andreas, um jovem que trabalha a poucos metros dali como recepcionista num hotel – e que até fala um excelente português, produto de um ano passado no Brasil –, queria uma desculpa para vigiar este bairro, em que os agentes policiais só entram à paisana, talvez receosos das nuvens de canabinóides que compõem 50% da atmosfera local. Os polícias couraçados a montar guarda aos acessos da Praça Exarchia são muito jovens, como a generalidade dos agentes atenienses; basta imaginar o estudante anarquista médio bem escanhoado e lavado para termos o seu negativo: o odiado chui antimotins. “ACAB” — All Cops Are Bastards, eis o mote repetido por mil paredes das redondezas. Em plena rua Boumpoulinas, um destes operacionais de choque, decorado com armas e granadas de gás lacrimogéneo como uma árvore de Natal belicosa, garantenos que não sabe por que motivo ali jaz de atalaia. Ele e os seus camaradas lá ficam, manhã, dia e noite; dir-se-iam sentinelas às portas de Tróia, aguardando hordas invasoras de bárbaros tatuados que talvez nunca apareçam. Algumas ruas acima, no Clube Da Da, todos parecem bastante mais embrenhados em jogos de gamão, copos de cerveja e conversas do que na organização do próximo motim. Os graffiti dão nas vistas como os militantes mais firmes, sempre de guarda às suas esquinas: das máscaras de gás de “Sidron” ao stencil do já famoso dentista Petros, que assina “Mapet”.


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