CORUCHE NA OBRA DO ARQUITECTO GONÇALO RIBEIRO TELLES
Título: Coruche na Obra do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles Entrevista: Domingos Francisco Colaboração na entrevista: Ana Paiva Luis Batalha Marina Pereira Despistagem da entrevista: Catarina Fróis Design Gráfico: Carlos Janeiro Revisão: Ana Paiva Tiragem: 1000 exemplares Impressão: Its Ready Depósito Legal: ISBN: 972-99637-1-1 Agosto 2005
Exposição Temporária
O Senhor Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles é reconhecidamente uma figura incontornável da arquitectura portuguesa no século XX. A sua actividade como paisagista, associado a uma forte consciência ambiental, revelada em estudos e inúmeras intervenções públicas, transformaram-no numa figura de referência na sociedade portuguesa. Aliou à sua intervenção uma carreira universitária brilhante e onde se pode dizer, com toda a propriedade, que fez “escola”, transmitindo aos seus alunos conceitos e princípios técnicos, formando também consciências e cidadãos interventivos nas questões urbanísticas e ambientais. Teve ainda uma actividade política regular, intervindo partidariamente, tendo exercido também funções governamentais, produzindo legislação pioneira, nomeadamente a que fixou os sítios classificados dos açudes da Agolada e do Monte da Barca e a definição do Centro Histórico de Coruche. A sua ligação ao concelho radica na sua família, de quem herdou património imobiliário, que ainda hoje mantém. É visita regular da nossa terra, desde muito novo, como bem ilustra o texto que escreveu para o Jornal “Expresso” há alguns anos atrás, onde descreve as viagens de comboio entre Lisboa e Coruche que fazia na infância. Esta exposição retrospectiva da sua obra pretende evidenciar a parte dos trabalhos de Ribeiro Telles que se destinavam ao concelho de Coruche. Infelizmente nenhum trabalho foi concretizado, no entanto, não deixam de ser bem elucidativos da linha de pensamento e da obra feita. A Câmara Municipal de Coruche agradece a disponibilidade e manifesta o seu reconhecimento ao Senhor Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles e bem assim a entidades e instituições que tornaram possível esta exposição! O Presidente da Câmara
ESQUISSO BIOGRÁFICO
Gonçalo Pereira Ribeiro Telles nasceu em Lisboa, freguesia de S. José, a 19 de Maio de 1922, filho de Joaquim Ribeiro Telles, Médico Veterinário e Oficial do Exército, e de Gertrudes Guilhermina Gonçalves Pereira Ribeiro Telles. Passou a juventude entre Coruche e Lisboa. Desde muito cedo que se posiciona como católico so-
Ribeiro Telles tocando uma corneta Coruche, 1926 (Colecção Ribeiro Telles)
cial, fortemente influenciado pelas noções de liberdade, de democracia e cidadania, assim como pelas noções de justiça social tal como eram defendidas nas Encíclicas papais. Em termos de referência política, o ideário monárquico foi-lhe motivado pelas doutrinas de António Sardinha, defendendo uma monarquia enquanto regime de respeito pelas tradições históricas e culturais, pressupondo o envolvimento popular. O Rei surge como o garante da unidade nacional, apoiado pelo povo e não em forças partidárias ou económicas, situando-se acima destas. Frequentou o curso de Engenheiro Agrónomo no Instituto Superior de Agronomia, durante o qual tomou conhecimento do Curso Livre de Arquitectura Paisa
Fancisco Caldeira Cabral e Ribeiro Telles s/d (Colecção Ribeiro Telles)
gista, criado pelo Prof. Caldeira Cabral. O curso de Engenheiro Agrónomo e de Arquitectura Paisagista foi concluído em 1952, com uma tese intitulada “Um caso concreto de ordenamento paisagístico: estudo de três herdades no concelho de Coruche”, onde se pressente já a ideia que a Arquitectura Paisagista é muito mais que o trabalho de jardinagem. Surge, na referida tese, a designação “ordenamento paisagístico”, que virá a ser uma das noções base da carreira profissional de Ribeiro Telles. Em 1953 encontra o seu primeiro emprego, pós licenciatura, na Câmara Municipal de Lisboa (onde já trabalhava como tarefeiro desde 1951), como Engenheiro Agrónomo de 3.ª classe, entrando para a 3.ª Repartição de Arborização e Jardinagem, que fazia parte da Direcção de Serviços Especiais. Em 1958, na mesma Câmara, estando então no Gabinete de Estudos de Urbanização, foi promovido a Engenheiro de 2.ª classe.
Entre 1957 e 1960, por outro lado, foi assistente no Instituto Superior de Agronomia. Ainda em 1957, juntamente com Sousa Tavares, funda o Movimento dos Monárquicos Independentes. Em 1958, durante as eleições para a Presidência da República, em que participou o General Humberto Delgado, embora monárquicos, Ribeiro Telles e o seu grupo de amigos escreveram no manifesto do seu movimento: “A probabilidade de um regime autoritário, uma vez estabelecido, ser derrubado sem guerra ou intervenção externa é muito pequena. Portanto, a meta do progresso social vem a ser, para nós, o aperfeiçoamento das oportunidades económicas, sociais, políticas e educacionais, de forma a adestrar o povo para se autogovernar, e ainda um aperfeiçoamento dos métodos de selecção dos melhores, por diversos campos da vida social.” A sua intervenção política foi sempre uma constante, tendo participado, em 1959, na redacção de uma carta a Salazar que, ao ser divulgada pelos seus autores, teve enorme repercussão e causou ao regime um dos maiores embaraços, dado tratar-se de um ataque desferido não por comunistas mas por católicos. Por outro lado, perante o fraccionamento do Movimento dos Monárquicos Independentes, fundou, juntamente com João Camossa, Sousa Tavares e Nuno Vaz Pinto, o Movimento dos Monárquicos Populares. Nesse seu afã interventivo contra o estado de coisas vigente, o aproveitamento das eleições, embora condicionadas pelo regime autoritário, era uma constante, dado o leve aliviar da censura. A sua voz, em conjunto com a dos que o rodeavam, fez-se escutar nas eleições de 1961, em 1965 e em 1969. Neste último ano constitui-se a Comissão Eleitoral 1 Em comunicado de 26 de Outubro era dito, referindo-se à problemática colonial, que “o centralismo da soberania e a unificação num todo nacional único, de todo o complexo de Portugal e das Províncias Ultramarinas, não parece culturalmente uma ideia possível e não parece também uma experiência aceitável”. 2 Onde concorreu, juntamente com Sousa Tavares, integrado nas listas da CEUD, a convite de Mário Soares.
Monárquica, pretendendo não só concorrer às eleições como reunificar os diversos grupos de monárquicos progressistas, tendo Ribeiro Telles e o seu próprio Movimento aderido à Comissão. Em 1974 era esta comissão a representante dos monárquicos progressistas portugueses. Entre 1953 e 1960 realizou significativos projectos e estudos de ordenamento, quer para a Câmara Municipal de Lisboa quer para privados. Eis alguns desses trabalhos: - Em 1957 realizou o projecto de enquadramento da fábrica de fibras Finicisa, em Portalegre. Tirando partido do relevo, propôs a integração da fábrica na paisagem do vale, reafirmando a função da vegetação ripícola que acompanhava a ribeira que atravessa o local. Com essa vegetação natural criou cortinas de vegetação densa para defesa contra poeiras e fumos, perante as exigências de protecção da maquinaria sofisticada. Por outro lado, ao cortar os ventos dominantes, possibilitando áreas amenas e despoluídas, propôs a sua utilização pelas pessoas que trabalhavam na instalação fabril – demonstrando que os espaços de enquadramento podem ser usados para lazer e fruição visual. - Em 1958, com Edgar Fontes e António Campelo, participou na equipa, chefiada pelo Arq. Pedro Falcão, que realizou estudos de ornamento para o Plano de Urbanização de Mértola. Neste mesmo ano, e com os mesmos colegas, participou no Plano Regional de Ordenamento Paisagístico do Concelho de Loures. Elaborou ainda, com o Prof. Caldeira Cabral, uma proposta de “Estrutura Verde da Lapa”. - Em 1959 participa na elaboração da estrutura verde do Plano de Urbanização de Lisboa. - Em 1960 escreveu com o Prof. Caldeira Cabral “A Árvore”, obra de referência para a arquitectura paisagista. - Nesse mesmo ano, na sequência da polémica sobre a Avenida da Liberdade e perante a recusa em reformular o projecto, Ribeiro Telles acabou 3 Projecto onde propunha que se trouxessem para os jardins urbanos o arvoredo da nossa flora, como o pinheiro manso, os carvalhos, os sobreiros, os medronheiros, as aroeiras, etc.
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por ser demitido da Câmara de Lisboa. - Em 1962 realizou, com o colega António Barreto, um dos mais emblemáticos espaços verdes de Lisboa, os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1967 aparece na televisão a denunciar as causas da tragédia provocada pelas maiores cheias e inundações de que havia memória: - o péssimo estado de ordenamento do território, em especial nas cabeceiras das linhas de água. Estas possuem leitos de cheia que são cobertos pelas águas de acordo com a dimensão dos caudais de cada ocasião; - a ocupação dos leitos de cheia por habitações, o seu corte por estradas e pontes sem capacidade de vazão adequada; - as encostas que, acima de determinados declives, não devem ser ocupadas por construções, e muito menos ainda se forem situações de grande instabilidade e erodibilidade. Em 1970 passa a desempenhar funções no Fundo de Fomento da Habitação, criando equipas multidisciplinares, reunindo arquitectos, arquitectos paisagistas e engenheiros, geógrafos, sociólogos e agrónomos, etc. Em 1970, em Angola, interveio com a proposta de estrutura verde para Nova Lisboa e, já em 1971, realiza o Plano Director da mesma cidade. Em 1971, em colaboração com o Arq. Alberto Pessoa, desenvolve o Projecto de Urbanização do Vale das Abadias e do Galante, na Figueira da Foz, a que mais tarde se juntou o projecto do Parque na mesma zona. No mesmo ano, elaborou o projecto de planeamento da zona de Quarteira-Albufeira, e da ilha de Armona, no Algarve. Em 1974, com o 25 de Abril, é projectado para a primeira linha das figuras públicas do País. A convergência Monárquica torna‑se Partido Popular Monárquico e Ribeiro Telles torna-se sub‑secretário de Estado do Ambiente do 1.º, 2.º e 3.º Governos Provisórios. No 4.º Governo, em 1975, torna-se secretário de 11
Estado do Ambiente. Aí tentou credibilizar a política do Ambiente, quer perante o aparelho governativo, que ignorava ou até desconfiava do ambiente, quer perante a opinião pública. O primeiro diploma publicado foi o Decreto-Lei n.º 343/75 de 5 de Julho, cujo objectivo era pôr fim às inúmeras situações de terrenos terraplanados e expectantes, com lixo e sucatas, que se multiplicavam por todo o país. O Decreto-Lei n.º 356/75 fixa-se na defesa do solo agrícola. O Decreto-Lei n.º 357/75 visa a paisagem rural e o coberto arbóreo. O Decreto-Lei n.º 613/76, já no 6.º Governo Provisório, institui as áreas protegidas com vista à protecção da Natureza e das paisagens. Após a saída da Secretaria de Estado, em 1976, entra para a Universidade de Évora, como Professor Catedrático, tendo sido fundamental para a estruturação dos cursos do Departamento de Planeamento Biofísico. Em 1978 forma-se a Aliança Democrática (AD) e o PPM é um dos partidos intervenientes, tendo formado, depois da maioria absoluta da AD, um grupo parlamentar de cinco deputados onde figurava Ribeiro Telles. Em 1981, após o acidente de Camarate, já com Pinto Balsemão na chefia do governo, Gonçalo Ribeiro Telles é nomeado Ministro de Estado e da Qualidade de Vida. Em 1982 surgiam os Decretos-Lei n.º 208/82, que fixava o Quadro Regulamentar dos Planos Directores Municipais, o n.º 403/82, que tratava da exploração de pedreiras e saibreiras, e o n.º 451/82, que instituía a Reserva Agrícola Nacional (RAN). Em 1983 foi a vez dos Decretos-Lei n.º 321/83, que instituiu a Reserva Ecológica Nacional (REN), e o n.º 388/83, que criou a figura do Plano Regional de Ordenamento do Território (PROT). Em finais de 1983 deixa a liderança do PPM. Em 1984 começou a organizar-se, em torno de Ribeiro Telles, o Movimento Alfacinha, cujo objectivo era a eleição de independentes à Câmara de Lisboa. Em 1985 Ribeiro Telles conseguiu 5% dos votos, 12
retirando a maioria absoluta a Nuno Abecassis. Telles ficou como vereador. Em 1985, ainda, Ribeiro Telles volta ao PPM e, em coligação com o PS, são eleitos dois deputados monárquicos independentes – o próprio Ribeiro Telles e Augusto Ferreira do Amaral. Em 1992 é criado, mais uma vez em torno de Ribeiro Telles, o movimento O Partido da Terra, que, não sendo monárquico, cativava o apoio de pessoas empenhadas nas questões ambientais, ecológicas e democratas. Em 1992, ainda, chegou a hora da aposentação da Universidade de Évora. Em 1994 o Conselho Científico da Universidade de Évora aprovou a concessão do doutoramento honoris causa a Ribeiro Telles. Nos anos subsequentes, até à chegada da autarquia liderada pelo Dr. Santana Lopes, ao abrigo de um protocolo entre a Câmara de Lisboa e os Departamentos de Arquitectura Paisagista do ISA e da Universidade de Évora, desenvolve um trabalho de crucial importância para a capital: faz o estudo prévio para a estrutura verde do PDM de Lisboa, tendo sido concluído e publicado o Plano Verde de Lisboa, assim como prepara o projecto do corredor verde entre o Parque Eduardo VII e o Parque de Monsanto. Hoje é, num país onde o pensamento autêntico e o carácter íntegro são pouco ou nada potenciados e quase sempre denegridos – o seu é um caso ao chamarem-lhe utópico ou “homem das couves” –, uma voz e um exemplo incontornável, cheio de juventude nos seus 83 anos.
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“O DESENCONTRO É COM O PAÍS” Entrevista
Não vamos falar aqui da sua vida pessoal, mas só por uma questão de enquadramento: quem eram os seus pais e onde é que nasceram? Os meus pais eram o Joaquim Ribeiro Telles, que era médico veterinário e oficial do exército e nasceu em Coruche. Daí a sua ligação ao concelho de Coruche... Vivia em Lisboa porque estava a trabalhar em Lisboa, ali na Escola do Exército, portanto pertencia à remonta, quer dizer, era da Comissão que andava pelo país inteiro a comprar os cavalos para a Guarda Republicana, para os regimentos de cavalaria que ainda existiam nessa altura. Mas, como adoeceu muito cedo, foi reformado em Tenente porque andava muito por fora e não aguentava mais. Também comprava mulas para o regimento de artilharia. E a sua mãe é que era de Lisboa? A minha mãe era de Lisboa e, como todas as famílias de Lisboa, tinha gente em todo o lado. Chamava-se Gertrudes.
Nessa sua ligação a Coruche, qual é, neste momento, a sua recordação mais antiga? Eu sei o que me contaram quando tinha 2 ou 3 anos: quando nasci, logo que pude sair de casa, fui direito a Coruche para ser mostrado ao meu avô e recebi como presente uma bezerra. É a primeira recordação, mas nem sou eu que me recordo (risos).
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Mas recordação sua, exclusivamente?!.
A ponte era de madeira e havia uma constante passagem de gado no rio. A ponte de madeira, se
Que me lembre, passava sempre lá as férias do Natal, as férias da Páscoa, as férias do Verão menos, e ia lá bastantes vezes. Fiz aquela descrição da minha ida a Coruche no comboio da CP. Na chegada à estação, lembro-me perfeitamente que chegava sempre de noite, tinha lá amigos, era o Chocalheiros, o Joaquim da Parada (muitos já estão no cemitério), e tinha lá os primos. E lembra-se de situações dessas férias? O que é que se fazia concretamente? Passeávamos muito, íamos muito ao campo, às vezes a cavalo (eu não era grande cavaleiro mas acompanhava sempre), outras vezes no automóvel
Ribeiro Telles na Quinta da Parada 1927, Coruche (Colecção Ribeiro Telles)
Ribeiro Telles e irmão Coruche, 1930 (Colecção Ribeiro Telles)
ruía, punha-se logo de pé em três ou quatro dias. E havia a ponte de ferro...
do meu avô e mais tarde no dos meus tios. Eu já não me lembro do meu avô, lembro-me muito vagamente, mas lembro-me do carro, do automóvel que ficou e de ir às herdades que tínhamos. E depois brincava no quintal e brincava em Coruche, entrava em tudo quanto era possível. Jogava ao futebol no terreiro. Havia uma coisa engraçada: sabe que existiam rebanhos de patos que estavam nos quintais e todas as manhãs, quando se abria o portão, iam todos pela rua fora num berreiro a correr em direcção à água, ao Sorraia; passavam lá o dia inteiro e, à tarde, voltavam pelo seu pé para os quintais (risos).
A sua infância foi feita entre Lisboa e Coruche. Que diferenças encontra entre Lisboa e Coruche na sua infância?
Ver «Do Rossio à Charneca», in O caminho de ferro em Coruche (catálogo), Câmara Municipal de Coruche, 2004.
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A diferença cidade-campo é muito recente. O campo viveu sempre da cidade e a cidade viveu sempre do campo. Não podia existir uma sem o outro porque a cidade só se mantinha se houvesse agricultura que a alimentasse. Havia uma íntima relação. Evidentemente que me lembro de ver em Lisboa a chegada de gado ao Campo Pequeno, mas não era para a tourada, era para o matadouro. E de manhã as carroças vinham com os nabos, as couves, 17
as cenouras para a Praça da Figueira; vinham pela Avenida da Liberdade, não pelo meio, mas pelas ruas laterais. Portanto havia uma relação íntima entre cidade e campo, mesmo em Lisboa. Mas hoje nota-se uma certa diferença, na medida em que a cidade é mais cosmopolita, mais aberta à diferença e ao exterior e se calhar Coruche... Coruche tem um problema muito grave que é a chegada da área metropolitana. Eu gostava de centrar a questão no tempo da sua infância, essa questão do cosmopolitismo da cidade... Não era tão patente como hoje. Porque tanto Coruche como Lisboa têm menos campo hoje em dia. Havia os celeiros, que estavam dentro da vila, para onde os carros de bois vinham trazer tudo; hoje já não. Aqui em Lisboa era a mesma coisa, era exactamente o mesmo, vinham para a Praça da Figueira, portanto não é uma questão de tamanho. Depois apareciam as lavadeiras, aparecia essa gente toda que desapareceu. O interessante é que hoje temos que voltar ao princípio porque não é possível manter já este espaço urbano sem estar integrado numa agricultura de abastecimento, é impossível. Hoje o grande drama que se está a verificar em todo o mundo é que o abastecimento essencial diário de uma cidade a grande distância é um gasto de petróleo e gasolina que não é comportável. E atingiu dimensões em que o que se está a fazer é integrar novamente, o mais possível, o campo e a produção agrícola (do que é essencial para o dia-a-dia) o mais perto possível. É o grande problema hoje das cidades e aí está a horticultura urbana defendida pelas Nações Unidas pelo programa Habitat-II. O primeiro problema das cidades e dos povoados que não são propriamente rurais do século XXI é a inexistência da agricultura urbana dentro deles. Cá, se falar nisto às pessoas, elas ficam completamente espantadas. Hoje é impossível manter-se as grandes superfícies; na América já estão a desaparecer e, 18
para o provento do abastecimento alimentar, estão a limitar-se a mercados de quarteirão, a cruzamentos de via dentro da cidade, onde o produto está muito mais perto. Portanto há uma enormidade de mercados. Um mercado central, você sabe como é o negócio deles, como é que eles ganham o dinheiro. É preciso trazer grandes volumes para o mercado, é preciso, portanto, muitos clientes. Se são muitos clientes, cada vez o cliente está mais longe do mercado e por isso é preciso concentrar os clientes. Deste modo, o primeiro negócio do supermercado é justificar uma urbanização em altura à volta. O segundo negócio é que só grandes produtores alimentares – que já não são os saloios de Loures para Lisboa, nem o pequeno nem o médio agricultor – e grandes fornecedores aguentam receber o pagamento do que entregam diariamente no mercado, ao fim de três, quatro meses. Durante esse tempo, como o dinheiro entra no mercado todos os dias, vai diariamente para o banco onde está a render. Isso é que é o grande negócio. Portanto, quando acaba a construção à volta e em altura o mercado acaba. Já começaram a acabar com o do Laranjeiro para fazerem o de Almada, e porquê? Porque o grande negócio já não é o volume de abastecimento que vem e, portanto, o rendimento do dinheiro que entra no banco até se pagar a quem produziu, mas sim o imobiliário, o mercado constitui um óptimo terreno para expansão urbana, são construções muito leves, é só deitar abaixo, ir para outro lado fazer o mesmo e ali construir. Há, assim, uma segunda fase do negócio, que é acabar com o supermercado. Retomando um bocadinho a questão da diferença entre cidade-campo, na sua infância não havia essa diferença tão grande? Não, porque inclusivamente em Coruche brincava no quintal com a miudagem, com todos eles, e aqui em Lisboa brincava também no quintal, porque, entre os prédios da Rua de São José e aqueles que estão ali na Avenida da Liberdade, havia um quintal com latadas, com pereiras, com tanques onde nós pedíamos – a rapaziada do bairro pedia 19
– aos porteiros para nos deixarem jogar à bola lá. Portanto, está a ver, a diferença não é muita, a única diferença é que Coruche tinha mais campo. Para usar uma expressão um pouco generalista: “tradição do Ribatejo”, como é que isto tem sentido, como é que entende Coruche dentro daquilo que se pode chamar o Ribatejo e a sua tradição, isto é, o arquitecto fala numa coisa que é o génio do lugar... Encontra no concelho de Coruche alguma coisa que seja identitária, ou Coruche é apenas um reflexo dessa “tradição do Ribatejo”? Há dois ribatejos. Ou antes, há três ribatejos. Há o Borda d’Água, há a Charneca e há o Alto Ribatejo. A zona dos socalcos, de Abrantes... é um Ribatejo completamente diferente. Há apenas uma unidade poética que se criou, possivelmente por causa da tauromaquia, porque é muito recente a ideia de Ribatejo, ora puxava para o Alentejo, ora puxava para o Oeste, mas criou-se de facto uma poesia do Ribatejo.
como sabe, ao contrário do que se pensa, não foi o pinhal de Leiria que deu a madeira para as naus e as caravelas, porque tinham que ser formadas de muitos tipos de madeira diferentes. As tábuas eram de uma madeira, as quilhas tinham de ser da azinheira ou de sobreiro porque era madeira mais forte. Portanto o pinhal de Leiria foi uma coisa que se fez no século XIX, para produção de pinhal, possivelmente com muito interesse para os caminhos de ferro, para as chulipas. Porque o pinhal de Leiria actual não é o pinhal do rei que vai desde Vila do Conde até Sines. O pinhal do rei foi apenas um pinhal para defender das areias, não era para produção, era para permitir o povoamento do interior, porque senão as areias
Mas dentro desta poesia do Ribatejo encontra alguma coisa que distinga Coruche dos restantes concelhos? Coruche é completamente distinto dos concelhos lá de cima do Alto Ribatejo, completamente distinto dos concelhos do Borda d’Água e muito parecido com a Chamusca, muito ligado ao Alto Alentejo. Como é que caracterizaria em termos paisagísticos, em termos sociais e mesmo em termos culturais essa identidade? Em termos de paisagem, Coruche tem aquela distinção nítida entre o campo, a charneca e o montado. Charneca, montado e campo, são duas entidades. Evidentemente a parte que primeiro se desenvolveu foi o campo porque era mais fértil, portanto os campos todos que estavam ao longo das várzeas, das circulações. Depois desenvolveu-se fundamentalmente a charneca com o carvão e a lenha. Carvão, lenha e alguma madeira. Porque, 20
Ribeiro Telles Coruche, 1940 (Colecção Ribeiro Telles)
avançavam por aí, aquele pinhal fixou as dunas e permitiu o povoamento da costa. É o pinhal do rei, quer dizer, é um pinhal do Estado com essa função, portanto não tinha charneca. A charneca tinha o interesse de cultura charnequeira que é uma cultura que vai desde a Glória do Ribatejo e Montargil e vai até Grândola, onde funciona o caçador, o bicheiro, uma pequena seara, o gado, o porco e o carvão. A cortiça só adquire valor muito recentemente. A charneca tem piada, dava um aspecto de matriarcado. As herdades tinham 300 hectares, não tinham mais (depois é que se anexaram com a revolução industrial, com a mecanização da agricultura, com 21
as mulas e os bois, as máquinas e depois o tractor). Essa gente que vivia nos montes (na Chamusca e Coruche acontecia muito) era muito numerosa: vivia uma família, uns primos, uns trabalhadores, uma cozinheira, que era uma escrava cozinheira, que geralmente tinha um filho que era do patrão. Porque é que a mulher tinha muita importância? Era ela que comandava a casa, a horta, o azeite (as oliveiras que estão junto aos montes eram para a luz, não era para alimentação), enquanto o homem andava a vender o gado pelas feiras. O homem morria muitas vezes com a febre tifóide, com a água, bebia água em vários locais, portanto quem ficava ali era a mulher que casava outra vez. Portanto há cenas de casamentos, dois e três. Ou então dava-se o contrário, que era difícil, mas desde que essa barreira fosse ultrapassada a mulher dava continuidade. O contrário era morrer a mulher no primeiro parto, então havia uma quantidade enorme de jovens viúvos que eram muito cobiçados (risos). Por isso havia esta vivência nos montes que depois desapareceu. A corrida de pessoas para viverem na vila e terem herdades é relativamente recente... 100 anos no máximo. O campo teve sempre os dois sistemas: o campo e a charneca e a interligação entre os dois, principalmente com a vinda do gado ao campo, mas havia uma distinção nítida entre os agro-sistemas dos dois casos. E isso marca a tal identidade paisagística em relação ao restante Ribatejo? Não, isto é o Ribatejo do Sorraia, que não é o Tejo. O Tejo tem uma imponência, tem uma relação muito maior, o Sorraia é uma espécie de Tejo muito mais pequeno e que começa para lá de Montargil. E há uma relação muito grande. Depois reparamos que socialmente as famílias marcham do interior, descem o rio até chegarem a uma altura onde param de descer, porque encontram outras mais importantes, que são as da Borda d’Água e dos grandes cargos, do fulano das lezírias e que não era o proprietário. Os cargos oficiais das pessoas que viviam em Coruche eram os monteiros, ou monteiros 22
“pequenos” – o monteiro-mor estava na Corte; o monteiro pequeno estava lá para saber quando é que devia haver batidas à bicharada que estava a mais – e os guardadores, que não eram guardadores de gado, todos de nomeação régia. Mas a paisagem era bastante simples e continua a sê-lo. Em termos culturais, digamos assim, de criação de algumas personagens que se ligam directamente ao Ribatejo, há muita gente que refere a figura do campino como uma construção do Estado Novo... Não, nada disso pode ser identitário da zona de Coruche. O Estado Novo foi buscar as imagens que já existiam, mas muito foi criado, mas eu não ligo o nome Ribatejo à região, estou a falar da região, não do carimbo Ribatejo. As touradas ali nasceram como formas rurais: a pega não é mais do que agarrar um touro para ser capado e para ser posto com a madrinha no carro de bois. Quando era altura de passar de bicho autêntico para trabalhador de puxar carros e de lavrar, fazia-se uma cerimónia, que era importante. Era uma cerimónia colectiva: para agarrar o touro tinham que vir seis, sete fulanos (risos). E quem eram esses fulanos? Eram os fulanos lá do sítio, que nessa altura se prestavam a fazer isso aos bois dos outros, porque como cada casa tinha dois, três moços no máximo, tinham que se juntar todos das redondezas e era uma festarola. Esta questão do Estado Novo tem a ver com uma coisa que é indissociável na sua própria vida - a oposição ao Estado Novo. O Estado Novo é um nome que se pôs a uma coisa muito esquisita. O Mussolini formou um Estado de facto. O Estado Novo copiou o Mussolini mas à sua imagem. Portanto, o que foi o Estado Novo, o que marca o Estado Novo? Foram as corporações. As corporações já existiam há muito tempo mas eram urbanas. Não havia corporações na província. As corporações eram a Casa dos 24, das 24 bandeiras. (Eu agora tenho esse encargo também. Agora aí sou de Lisboa. Finalmente vão-se fazer obras). Aquilo 23
eram 24 bandeiras que agrupavam uma quantidade de ofícios, não era uma por ofício. Havia no Porto, não sei se em Coruche alguma vez houve. Tinham como função a criação da Câmara e cada bandeira tinha um ou dois ofícios. Se o ofício era pequeno, para ter força política, juntava-se com outro na mesma bandeira. Se tinha força política, era só um ofício por bandeira. Por exemplo, os carpinteiros e os pedreiros estavam ligados à construção civil, estavam na bandeira de São José. Mas isso não era o Estado Novo. Se havia qualquer coisa parecida com as bandeiras, o Marquês de Pombal acabou com elas. Foi uma luta tremenda porque tinha aquela noção já de Estado totalitário, iluminista. E aquilo era uma malta terrível, porque era uma malta ordenada. Era a CGTP, não são nada as corporações do Salazar. Nunca uma bandeira para centrar tinha três classes: o aprendiz que fazia exame para oficial e o oficial que por votos podia ser mestre em todas. Nos carpinteiros, passar de aprendiz para oficial era fazer, diante de um júri com três pessoas - a fazer ali diante deles e num determinado intervalo de tempo -, uma cadeira. Se essa cadeira fosse bem feita no tempo devido, passava para oficial. Se queria passar para mestre era por voto, já não havia exame, era por votação dos oficiais. E isto tinha de tal forma força que o poder central, volta e meia - e como eles tinham as vereações das Câmaras na mão -, queria entrar lá dentro. E há aqui uma história: a certa altura o rei, antes do D. João V, quis meter um fulano na Casa dos 24. E a resposta foi: “Saiba meu senhor, que são 24 e não podem ser 25.” (risos). E outra coisa: como aquilo era urbano, a ruralidade organizada, os moleiros estavam proibidos de entrar. Porquê? Porque a gente não sabe se os moleiros eram urbanos ou eram rurais, estavam naquele meio termo. E então eles tinham que explicar porque é que não queriam os moleiros. Porque era gente que roubava na farinha e não os queriam meter. E havia outros que não podiam entrar também na Casa dos 24, que eram os armadores de alto mar. E porquê? Tinham ali a irmandade nas Chagas que já não pertenciam à Casa dos 24 porque eram muito poderosos e ricos. Iam estragar aquela coisa toda. 24
Portanto também nunca entraram na Casa dos 24. Não eram corporações. Eram sindicatos que tinham uma prerrogativa enorme, que era a mais importante de todas - juíz da Casa dos 24. O tal mestre de todas as Casas 24, que, por obrigação e direito, tinha de assistir ao parto da Rainha! Tinha que ver se aquilo era autêntico. (risos) E também tinha outro direito espantoso - que não se sabia qual era: tinha que se tirar à sorte e ninguém sabia nada. Os matulões com as suas varas - que ainda existem! -, saiam ali do hospital de Todos os Santos, direitos ao terreiro do Paço - isto ainda antes do terramoto! -, às 4 da madrugada. Batiam à porta e o rei tinha que vir abrir a porta. Só o D. João V é que começou a combinar com eles e a dizer-lhes: “É pá, não venham lá de qualquer maneira!” Não eram corporações à Salazar. Mas as suas posições políticas foram sempre de oposição... Não foi bem nesse ramo económico. Eu fui mais crítico foi na questão, enfim, da liberdade... Como é que estas posições, que eram conhecidas, foram aceites em Coruche? Antes do 25 de Abril? Ai isso não sei, isso tem que perguntar às pessoas. Como era a sua relação com Coruche, mesmo sabendo-se desta sua posição abertamente contra... Antes do 25 de Abril estas posições eram claramente conhecidas? Em Coruche não percebiam o que se passava. Depois do 25 de Abril é mais complicado. Antes do 25 de Abril tive um problema com o Ministro do Interior porque ele ficou muito espantado de eu estar numa lista de monárquicos independentes que foi massacrada pela polícia na Rua Alexandre Herculano. Quando o Rapazote era ministro, é que me surgiu: “Parece impossível, você andar metido nisto!”
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Na sua ida regular a Coruche nunca sentiu nenhum problema? Eu dava-me com gente da minha idade. Mas de qualquer maneira, é de uma família com determinado peso em Coruche... Não da minha parte, mas de outras partes houve assim umas coisas mais desagradáveis mas não passaram de escritos anónimos. Já depois do 25 de Abril, para além da sua participação nos governos provisórios, depois do governo da AD, se eu não estou em erro, foi classificado o Centro Histórico? Isso eu não sei, não sei se foi antes. Porque eu fui secretário de Estado do Ambiente desde o 25 de Abril, só não fui no V Governo. Eu julgo que isto foi antes da AD, aquele centro histórico foi antes da AD, assim como o Paul... Para além desta classificação de centro histórico, que é da sua responsabilidade, que outros contributos é que se lembra de ter feito? Assim directamente para Coruche foi o centro histórico e as reservas da Agolada e do Monte da Barca e, não sei, deixe cá ver se há mais alguma no concelho... não, estava para fazer a das Barrancosas mas isso já não houve tempo. E depois criei a RAN e a REN.
cultura. A cultura estava completamente dedicada aos edifícios e fez imensos disparates depois do 25 de Abril e antes e ainda hoje faz. Principalmente aqui em Lisboa foi um desastre total a visão cultural da cidade quando destruíram as quintas todas. Nós classificávamos as quintas na sua unidade de concepção: a quinta é um elemento importantíssimo na nossa cultura – a quinta de recreio é constituída por um edifício geralmente de uso de Verão, por um jardim muito limitado – o alegrete –, por uma horta, um horto ajardinado, onde estão as cebolas, as couves e a hortaliça toda, com um pomar de laranjeiras e por uma mata de onde vem o sistema hidráulico. Isto é uma unidade cultural. Quando se começaram a separar para poder construir na horta, no laranjal, nisso tudo, a casa fica sem uso e na maior parte das vezes sem o menor interesse. O que nós começámos a classificar foi as quintas como unidades e então nessa altura começámos a classificar as aldeias também como “sítios” e daí é que vem a classificação, talvez um bocadinho exagerada, do centro histórico de Coruche. Quer dizer, aquilo foi classificado por ser um sítio de raiz medieval, principalmente a estrutura das ruas, da rua direita que é torta, como em toda a parte. Sabe porque é que lhe chamam rua direita? Porque o direito aqui não quer dizer direito, quer dizer bem feito. A delimitação do próprio centro histórico poderia ter-se estendido ao castelo? Eu dava independência ao castelo, autonomia principalmente só por causa da Calçadinha.
Não acha estranho, ou pelo menos curioso, que o centro histórico tenha sido classificado por uma Secretaria de Estado ou por um Ministério que tem a ver com o Ambiente e não com o Ministério da Cultura?
Há hoje quem diga que o centro histórico devia ser requalificado...
Havia uma coisa que se chamava “sítios classificados” e os sítios classificados eram da minha responsabilidade e não da responsabilidade da
E não seria pertinente ou vantajoso se aquele sítio também tivesse classificação ao nível do ministério da cultura?
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É a mesma coisa, ou classificarem o castelo como “sítio”.
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Nessa altura não havia IPPAR nem Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Se for para fazer coisas boas, com certeza, se é só para dizer que pertence... Olhe o que se passou com a Bacalhoa, quer coisa mais triste do que aquela? E está tudo no tribunal ainda, mas o pomar, as laranjeiras, que era fundamental naquilo, que fazia parte daquela estrutura e que era uma coisa espantosa, desapareceu para dar uma vinha industrial. Em termos de centro histórico, que problemas é que encontra no de Coruche hoje em dia? Aqueles prédios novos, inabitáveis, são um problema muito grave. Não é um problema propriamente de Coruche, eu já estou farto de dizer que não é de agora, isto não tem nada a ver com Coruche mas com o que há aí na Amadora, no Cacém, que é o mesmo problema que há em Espanha e, claro está, em Coruche. Só há uma solução: deitá-los abaixo e manter o entulho no lugar e refazer qualquer coisa melhor, boa, em cima do entulho. Em Espanha já estão assim. Nas Baleares não há mais consumo de solo orgânico e é sobre a demolição do que não presta e que está a cair de podre que se constrói de novo. Nós temos metade da área urbana e da área suburbana de Lisboa a cair e sem possibilidade de ser recuperada. Mas acha que essa solução podia ser aplicada em Coruche, acha que é justificável? Ainda não, porque em Coruche há edifícios, não há conjuntos... Que problemas acha que afectam a vila e que são mais prementes? A construção sem... quer dizer, há aqui um problema muito grave: é construir para nada. Porque o que se repara é que os grandes blocos estão vazios. Há uma zona que neste momento está em franca 28
expansão que é a zona das Baleias, onde está neste momento o Lidl. É um dos extremos da vila, para lá da Praça de Touros, que tem sido uma zona de construção e há gente a viver ali. Mas para essa zona estar cheia é preciso estar a outra vazia. Assim não vale, assim é um cancro que vai alastrando, deixando o mal atrás e avançando sempre mais. E está a avançar num sítio péssimo, a lezíria, porque vai fazer falta, é a questão do abastecimento. Não é o caso de Coruche que tem meia dúzia de pessoas, mas a questão mais grave hoje em dia na área metropolitana de Lisboa em termos de qualidade de vida é o problema alimentar, o preço da produção. E porque já não temos aqui produção, ela vem toda de muito longe e, vindo de muito longe, é cada vez mais cara. O leite começa agora a vir de longe, os amidos, a proteína vem da Argentina e nós sabemos que hoje no mundo há só seis países com excedentes na agricultura, de amidos e de proteínas (as vitaminas ainda se conseguem fazer nos quintais). São os Estados Unidos, o Canadá, a Argentina, a África do Sul, a Nova Zelândia e a Austrália, e estão todos a produzir menos, estão afastados dos centros de consumidores mundiais globais porque têm que dar a volta ao globo. Os Estados Unidos e o Canadá estão principalmente interessados em levar a Argentina atrás e alimentar o Terceiro Mundo. Porquê? Para ver se os travam de emigrarem para os seus países, a ver se arranjam menos fome e forma de os fixar, só depois é que pode vir o auxílio ao desenvolvimento, que é mais complicado, mas pelo menos matam-lhes a fome com qualidade. Portanto isto quer dizer que, no panorama internacional do mercado alimentar, os preços essenciais cada vez estão mais altos. Quer dizer, nós não temos divisas hoje para compor a compra dos cereais, os cereais cada vez estão mais caros. Nós estamos tesos que nem um carapau, ou paga o Estado essa diferença ou então vamos ter graves problemas de abastecimento. E mesmo a carne, vem de avião dos Açores, agora já vem carne de todo o lado, do Brasil, da Argentina, evidentemente que ela não vem de borla, vem do mercado internacional, 29
que também está a mandar carne para quem tem fome e nós não somos considerados esfomeados, devíamos ser... É um problema gravíssimo que se está a levantar. E mentiram descaradamente e inventaram que isto era um país florestal e que portanto a floresta tinha possibilidade de se alimentar. Ora, nós nem somos um país florestal, é uma balela, somos um país de características mediterrânicas e, dentro dessas características, de pastores. Transformar isso em floresta à moda do norte da Europa... o resultado está à vista. Primeiro despovoou-se todo o interior com os eucaliptos e o pinheiro bravo, as pessoas ou foram para o estrangeiro e fazem cá falta porque afinal não há muita gente para trabalhar ou caem sobre o litoral com um peso desmedido. Sendo o problema do desemprego também um problema geográfico. Depois, não sabemos o que fazer à floresta se não for a celulose a comprar a madeira. Como é uma floresta completamente artificial, que não existe, não é natural de cá, é uma floresta do Capuchinho Vermelho, o resultado é que temos fogos por 30 ou 40 anos, enquanto não se modificar o sistema... Não sei se lê o Courrier Internacional, leia o número 12: os Estados Unidos já estão a trabalhar nesse sentido e nós estamos, alegremente, a plantar exactamente o que lá está. Outra vez para tornar a arder, evidentemente, quando voltar a altura de arder. Problema que poderá ser evitado desde o momento que se façam as culturas mediterrânicas para que os solos estão aptos. Acha possível alguma vez Coruche ter industrialização, ter um parque industrial forte, é sobretudo um concelho neste momento onde a ruralidade é clara mas em termos de crescimento de concelho, de desenvolvimento económico... Os grandes países industriais são os grandes países agrícolas. Isso é outra coisa que eu não percebo. A industrialização só sobe, é como a questão do turismo... a Suíça é um país agrícola por excelência, a Alemanha é um país agrícola por excelência, a França – quer uma agricultura mais forte que a francesa? –, a Espanha agora consegue... é outra 30
indústria. Porquê? Porque não se trata do negócio da industrialização, trata-se do grande cancro do país que é o loteamento; só se ganha dinheiro dividindo também em lotes, isso é que está a matar o nosso turismo. Hoje, o turismo de qualidade de que se fala tanto não quer lotes, quer é paisagem. Ainda agora estive em Óbidos, que é uma zona lindíssima, mas está tudo dividido, parece o Xavier de Lima ali na margem Sul, faz-se um campo de golfe aqui e depois outro ali e entre os dois campos de golfe é só lotes, lotes, lotes. Mas acha que em termos de exploração turística, de desenvolvimento do concelho de Coruche, o turismo poderá ser uma... Não como se está a fazer em Santo Estêvão e nessas zonas, não por loteamento. Estão a fazer-se hoje coisas muito bem feitas, por exemplo nos Estados Unidos, em que se constróem conjuntos de três, quatro casas, ou cinco, seis casas com infraestruturas afastadas doutro grupo de 5 ou 6 casas – agora saiu um livro de um colega meu americano que é uma coisa extraordinária – e entre essa separação de casas há paisagem. E isso é que se vende. Se a gente loteia tudo, não se vende. Vende-se para segunda, terceira habitação dos locais, por uma questão de prestígio, mas são enganados, vão passar umas férias agradabilíssimas numa piscina de 6 por 4 metros, que tem a estrada com os automóveis a passar à frente... E Coruche tem as condições naturais para fazer esse tipo de turismo? Se se mantiver a paisagem e manter a paisagem é... o grande problema actual. É que as cidades e as vilas, eram situações descontínuas no meio do contínuo rural. Hoje está-se a dar o contrário: o contínuo é a situação urbana ou para-urbana e o descontínuo é a situação rural. A ruralidade morreu. Como é que se inverte agora novamente esta situação? Não é exigindo que regresse uma agricultura tradicional ou antiquada ou de labregos, tem de ser uma 31
agricultura que tenha por base também a paisagem, que é como tem a Suíça, a Áustria, a Hungria, mas os nossos presidentes de Câmara querem é o loteamento, edifícios com mais de quatro andares, com quatro pisos, o que já é demais na vila e na cidade. O grande bloco é moderno e depois, lá fora, o campo, como não há agricultura, não precisamos dela para coisa nenhuma, predomina o loteamento do terreno. E o negócio é o mesmo. Estes planos todos de interesse turístico de interesse nacional... por amor de Deus! É uma loucura o que se está a pensar: pontes, aeroportos, auto-estradas, isso serve para quê? Se não há depois mais nada? Aquilo não são fins, são meios, mas para quê? Essa ideia que está a colocar da paisagem como desenvolvimento turístico poderá ser potenciada, estando Coruche a poucos quilómetros de Lisboa, de uma grande cidade como Lisboa? Se for perguntar a quem tem os terrenos se quer vender, quer vender aos quadradinhos e quem quer fazer dinheiro, quer fazer dinheiro sem lotes. A única coisa que se safa dos lotes é outra coisa tão má como os lotes que é o campo de golfe. Estando a poucos quilómetros de Lisboa, pode acontecer num futuro breve que Coruche se torne um subúrbio, até que ponto é que todos os males que tem um subúrbio podem ser transpostos?... Isso era o pior que podia acontecer a Coruche. Já está a ser transposto, Santo Estêvão já é um caso do que não se deve fazer.
Não sei, a única coisa que eu tenho visto, muito mal, são os aterros sobre a lezíria, ao lado das pontes. Não se faz aquilo, aquilo não se permite. Primeiro, é consumo de solo orgânico, segundo, trará perturbações muito graves porque aquela estrada, se se aumentam os aterros, deveria ter passagem de água e de ar. É um descalabro total para as searas que estão a 200, 300 metros para lá da estrada. Porquê? Por causa da concentração de ar frio, não tem circulação e é ilegal. É muito feio e para o turismo é muito mau porque é o acesso à vila e não pensem depois em turismo nem em gastronomia nem nada, isso é terrível! O importante era a manutenção dos pegos, que são indispensáveis e nunca aterros, aquilo é uma faixa com uma estrada no meio e uma estrada saturada porque está toda empinada, é o pior que se pode imaginar. Como entende o desencontro, ao longo dos anos, entre a vila e a sua obra, aliás patente nesta exposição? Houve um grande desencontro, entre muita gente que pensa como eu, como por exemplo o António Barreto, não sou só eu, houve um desencontro com o país mas é constante, para onde quer que a gente se volte. Mas não é com Coruche, é com o país. Especificamente, sabe que esta exposição trata em concreto de projectos que foram feitos para Coruche, que corresponderam a trabalho, a estudo, a investigação, a esforço, que depois não foram, na sua maioria, concluídos, foram em projecto mas não foram depois aplicados, a pergunta vem nesse sentido.
Não é ainda Coruche... Mas anda lá perto. E aquilo que também se está a fazer em Coruche... para depois se poder fazer turismo, é também muito mau. Esta coisa ali da Praça de Touros, aquilo é uma coisa...! Há pouco falou da RAN e da REN, como é que entende que têm estado a ser aplicadas no concelho de Coruche? 32
Agora, por exemplo, arranjei para ali para a Expo 98 todo o Cabeço das Rolas e agora foi construído... A escala é diferente. Coruche, que não tem muitas pessoas de nível nacional no seu seio, portanto a pergunta vai um pouco nesse sentido: falo em desencontro porque sendo um homem, não de Coruche, mas com fortes ligações a Coruche - e 33
com a qualidade que a sua obra tem - ninguém soube depois aproveitar o seu trabalho e a sua disponibilidade. Como é que vê esse desencontro? Mas é um desencontro que é normal, que é o país. Num segundo momento, que tem a ver com os conceitos fundamentais da sua obra e com as grandes obras que vamos apresentar na exposição, o plano da Paisagem Global do Século XXI, a Shell Banática, a Gulbenkian e a Ermida de S. Jerónimo, se tivesse de caracterizá-los, de uma forma muito clara e simples, que tipo de conceitos seriam esses? São muito simples. É o problema actual da paisagem global, cidade e campo são uma unidade, cada um dentro da sua autonomia; que o planeamento não pode mais ser feito por zonas, o planeamento é sistémico. Tive agora uma alegria enorme porque à volta do Carrilho juntaram-se uma série de arquitectos furiosos – furiosos a apoiar –, aquilo era novamente um planeamento de base desolada de manchas que já tinha sido o plano estratégico de Lisboa. Mandaram vir dois fulanos de fora, um espanhol, catalão, e outro de Roma. O de Roma, a primeira coisa que disse foi: “Meus amigos, enquanto fizerem um planeamento desordenado e não fizerem um planeamento sistémico, nada feito. Os sistemas de circulação, os sistemas de espaço natural, os sistemas ambientais de circulação do ar, isso já tudo acabou.” Ficaram todos muito aflitos. “Isso é o que fulano diz.” Mas então agora façam, ninguém os proíbe. Em termos de conceitos é a paisagem global, o planeamento sistémico, por sistemas, o que exige continuidade no desenho, um rio não se parte às fatias, é uma continuidade que tem que ser resolvida como sistema, o problema básico da paisagem global é o grande relacionamento da integração cidade-campo, mas campo não é um campo fictício, é um campo com todos os seus atributos, que vão desde a paisagem até à produção e à protecção. Mas isso está em todo o lado. Todos os concelhos do distrito de Lisboa que não os aplicam têm já planos verdes, que são mandados fazer, e que são feitos e, 34
depois, os técnicos das câmaras, os que lá estão fixos, olham para aquilo e guardam-nos dentro da gaveta. E eu não acho que seja um problema de corrupção. Eles sabem que devem mandar fazer qualquer coisa naquele género. Quando recebem aquilo, e aquilo se objectiva em determinadas operações a efectuar, “Ai, Jesus!”, vai imediatamente para a gaveta. Assim mandaram o de Lisboa para a gaveta, e mandaram o de Loures – que vai ser publicado, mas está na gaveta; quanto muito, admitem-se publicações, o que é ridículo. Por exemplo, o meu Plano Verde de Lisboa está publicado pela Universidade de Veneza. Uma coisa que eu fiz para a Caparica, foi o único trabalho europeu admitido numa exposição em Boston e não é nada de especial. É muito complicado. A questão do “homem das couves”, se eu percebo a ideia, pressupõe trazer as hortas para a cidade. Parece-me ser uma ideia muito pragmática e não utópica, no sentido em que traz o espaço verde para dentro da cidade sem custos. Posso-lhe mostrar já os corredores de milho dentro de Paris, e de couves... E que vem a ser uma forma até agradável para os autarcas agarrarem na ideia... A ideia que eles têm de jardim é o “jardim da Celeste”, que está cheio de flores, está tudo cheio de jardins da Celeste, é uma vergonha, até estão pendurados nos candeeiros... Mas isso é de facto um problema cultural muito grande, mas é do País inteiro. Aquelas plaquinhas que estão a fazer agora com relvadozinhos verdes, com árvores, por amor de Deus! Ao ponto a que chegámos. Não vale a pena dizer nada, não vale a pena... Há um texto seu sobre questões de paisagem em que diz que o homem tem um papel importante na intervenção nessa mesma paisagem, criar beleza. Isso é muito curioso porque há aí uma ideia de que tudo o que o homem possa fazer naquilo que é a natureza tem um lado criativo, ou deve ter um lado 35
criativo; onde a harmonia e o jogo, digamos, dos elementos a trabalhar levam... É porque a natureza não é horizontal, é vertical. É vertical porquê? Porque para haver natureza no sentido de libertação do homem, ela tem que desaparecer continuamente, que é a função do relâmpago, que é natural. Ora, o processo para ela voltar à estaca zero, em que não há árvores nenhumas, ardeu tudo, e nascerem novamente as herbáceas, os arbustos, o matagal, o mato, a árvore final, que é natural, desapareceu. Quem as faz novamente surgir é o relâmpago, para que novamente se restaure a sucessão. Qual é a obra do homem? É, em lugar de ser o relâmpago, aplica em áreas geográficas diferentes toda a sucessão, por isso aparece o prado e aparece a mata. Ora o prado é o início da mata. O homem tem aí uma possibilidade que é de combinar harmoniosamente... Não, é sempre harmonioso. Desde que os problemas da auto-regeneração e da continuidade sejam mantidos, aquilo sai sempre. O homem intervém nela criando a harmonia da natureza, pondo a natureza a funcionar para ela própria. O problema da orla, as zonas mais ricas em termos naturais, são as interfaces, entre os encontros do que é uma coisa e do que é outra. A natureza acaba sempre com as interfaces porque há uma zona que domina. Acabando com o interface acaba com as espécies, acaba com os animais selvagens, acaba com uma data de coisas. Foi o que se deu em África com os elefantes: protegeram tanto os elefantes e, como eles se alimentavam da mata, eles comeram a mata e depois? Depois morreram de fome, tiveram que transportar de avião os mais pequenos para o Jardim Zoológico e matar à metralhadora os que lá estavam porque o desequilíbrio foi total. De resto, é uma coisa muito antiga, o Cícero já dizia, ao tempo dos romanos, que o homem o que fez de belo foi a segunda natureza, a primeira foi apenas o suporte para haver a segunda natureza, que é criativa em 36
termos humanos. A outra, como nós não somos importantes nas coisas que vivem nessa primeira natureza, podemos vir de lá mas lá sermos não somos, temos que criar o nosso meio, a nossa casa. Ao criar o nosso meio nós somos artistas ou devíamos ser... Nós, ao fazermos a nossa própria ferramenta, ao fazermos o punho de um machado, somos artistas. Retomando a questão dos conceitos da paisagem global, a questão do inter-relacionamento cidade-campo, como é que integra esses conceitos naquilo que são os projectos que vão estar presentes nesta exposição? Evidentemente que na vida humana há sempre vários actos e não há nada pior para desaparecer um homem do que torná-lo monolítico, quer dizer, naturalmente nós estávamos bem arranjados se durante o dia tivéssemos sempre a mesma temperatura e se depois de almoçar tivéssemos a mesma temperatura de quando acordamos ou depois de uma corrida continuássemos a ter a mesma temperatura; estávamos muito doentes. Portanto, o bem-estar ou a vida realiza-se entre limites que não podem ser ultrapassados. Se nós tivermos mais de 43 ou 44 graus de febre, morremos. Se tivermos menos que 20, morremos, naturalmente que são variáveis consoante as pessoas. Mas se tivermos de temperatura 36,5 mesmo depois de correr, de comer bem, de estar no Verão ou no Inverno, também estamos doentes. Portanto a vida é uma variação constante. Ora, essa variação constante obriga-nos ao movimento: estamos em permanente movimento e tudo à nossa volta tem de estar em movimento, nada é estático. Portanto a paisagem é movimento. É o movimento do correr das estações, é o movimento do crescer das árvores ou de qualquer coisa, do nascer, do crescer, do reproduzir-se e morrer. Ora o planeamento tem que aceitar isto. As novas tecnologias vieram dar um grande vigor a este facto. Por exemplo, a cidade-campo. A nova tecnologia, a 37
diminuição do tempo-distância, a distância que se percorre em muito menos tempo, possibilitou que 33 por cento das pessoas que praticam agricultura em França e na Alemanha não são só agricultores. Quer dizer, um terço dos agricultores também são outra coisa, já são do futuro. Porquê? Porque percorrem 100 km e têm um trabalho aqui, percorrem 80 km e têm outro trabalho num outro sítio. Mas isto não chega. Agora aparece outro instrumento extraordinário que todos nós temos: o telefonezinho de bolso. Comunicamos também facilmente com todos. Portanto, se houver um trabalho de certo modo não individual mas colectivo, há sempre uma comunicação fácil. Não calcula o importante que isso foi para as questões do planeamento. Isso acabou com determinadas zonas para escritórios para isto e para aquilo: a comunicação agora é tão simples que não há que seleccionar zonas, há que ter de facto uma paisagem global até neste aspecto. E há outra tecnologia importante: a da informação de tudo, a Internet, tudo se informa. Nós tínhamos que ir comprar um livro para saber um mínimo de coisas, portanto este movimento, que é sempre a nossa vida, a vida do que está à nossa volta, etc., tem agora possibilidades de entrarmos nele com outro vigor. Portanto, de há 10 anos para cá, 15 anos para cá, 33 por cento de franceses e de alemães fazem agricultura activamente. Isso cá ainda não chegou, aqui estes senhores compram um monte no Alentejo com 4 hectares e não se integram no meio. Estes integram-se no meio, são tipos urbanos que vão dar significado àquela própria vida e vice-versa. O que é o urbano, o que é o rural e o que é a ansiedade das vilas se tornarem cidade, o que é que Coruche vai ser? Mas está a ver, o que aqueles tipos levam acima do Estoril é o relvado de Cascais e estão-se marimbando para quem está à volta. Lá é ao contrário: aqueles tipos vão para um sítio, integram-se na aldeia e não levam a piscina nem nada, porque isso têm eles, disso estão eles fartos.
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Quando estava a falar das hortas, se as pessoas não estiverem bem assentes, nos quarteirões... O mal é que isso está tudo a ser destruído. O presidente da câmara da Amadora mandou destruir as hortas que estavam junto à auto-estrada. É demais, este atraso é demais. Como é que relaciona o conceito de paisagem global com ditos projectos, que são cruciais na sua obra, qual é a ligação que faz, duma forma geral? Antes de entrar nisso, há na Catedral de Siena, em Praga, uns frescos, de 1500, que nem são de um grande artista, de uma cidade murada, com as portas todas fechadas, com o campo todo destruído, uns piratas lá ao longe... do outro lado da catedral há outro fresco, que é a mesma cidade com as portas abertas, entram mulas, saem mulas, entram pessoas, saem pessoas; há gente a trabalhar no campo, há hortas, há compartimentos. Por baixo do primeiro fresco está o mau governo, por baixo do outro fresco está o bom governo. Isto é de uma actualidade espantosa, isto diz tudo. É este conceito que leva a um respeito enorme pela ecologia, uma vez que são sistemas contínuos e inter-relacionados, por isso é que se chama também uma visão ecológica do planeamento. Eu gosto mais de lhe chamar uma visão sistémica porque, se lhe chamo ambientalista, caem os fulanos das poeiras e do ruído e não saem daí; se digo que é uma visão ecológica, dizem que “este é o dos passarinhos a cantar e acabou”, por isso digo uma visão sistémica que vai encontrar a mesma situação. Este é um conceito fundamental. Outro conceito fundamental é que os recursos têm que se gerir de tal maneira que há recursos fundamentais de que o homem não pode abdicar. E o conceito fundamental de que o homem não pode abdicar, para além daqueles que se desaparecerem morre, se nós não respirarmos morremos, se não bebermos água morremos, se vier uma temperatura alta ou baixa morremos, mas há outros de que também não podemos abdicar mas que não damos por isso, que é o problema 39
do solo orgânico, quer dizer, sem o solo orgânico não há vida e, não havendo vida, não há homem. Há outro tipo de conceito que é o da necessidade de manter a agricultura, o sistema natural. Por isso entram a funcionar os sistemas, quer dizer, um rio pode percorrer uma paisagem urbana, semiurbana, rural mas tem que ser contínuo, tem que ser um sistema natural a funcionar, a repetir a presença que teria, mesmo se não houvesse construção nenhuma. Isto leva a outra coisa também importante: é que o sistema da continuidade existe. Como temos que dar espaços para sistemas sem possibilidade de regeneração, temos que intensificar o espaço que resta. Portanto temos também um problema de intensificação e agora aí é que nasce o desenho, que tem como principal elemento intensificar a vida nos espaços que são reservados à vida, porque se não intensificarmos aí a vida, então falta-nos vida. Por isso é que eu digo, isso é um princípio para aquilo que eu disse também da paisagem: é preciso uma paisagem viva na paisagem global para justificar a vida e, para isso, é preciso intensificar. Daí o princípio da compartimentação dos espaços. Como sabemos que as zonas mais intensas de vida são as relações, por exemplo, com um sistema de mata e um sistema de clareira, então vamos multiplicar a relação mata-clareira e daí nasce a Europa. Porque, se vir a Europa de avião, é todo um sistema de orlas de mata-clareira, mata-clareira. Porquê? Porque se fosse tudo mata estávamos arrumados, não podíamos ter esta população na Europa, tínhamos uma coisa diminuta, éramos nós a caçar passarinhos e texugos. A clareira é que nos permite instalar a população. Portanto, outro princípio, que é o da intensificação da vida. Nós estamos a intensificar a vida até quando duramos mais tempo em média, mas aquilo produz x e tem que passar a produzir 2x. Mas tem que ser um aumento de produção que não destrua o futuro. Lá vem o combate à agro-química. E aí resulta grande parte do solo orgânico e da matéria orgânica como outro elemento. Água, solo, matéria orgânica, são os três elementos fundamentais. Todo o planeamento tem que respeitar isso. A nossa agricultura está a desprezar esse facto, tratamos a 40
circulação da água, tratamos a circulação do ar e temos que tratar também da matéria da circulação orgânica. São três circulações fundamentais à vida e o desenho tem que se fazer com isto. Isto quer dizer, quando diz que o desenho é potenciador de vida, por exemplo, um jardim como o da Gulbenkian, no centro, naquele espaço da cidade, pode-se dizer que potenciou aí a vida? Potenciou! Pelo menos é um semeadouro de anidrido carbónico, uma distribuição de oxigénio. Deu um contraste a quem vem esbaforido lá de fora, a cheirar a gasolina por todo o lado, chega ali e não cheira a gasolina e, ao mesmo tempo, também potencia a vida noutro aspecto, que é o espiritual. Lá está, podese considerar o jardim da Gulbenkian ou qualquer coisa na cidade como uma orla, mesmo que depois aquela zona não tenha a parte de produção. A mesma ideia está subjacente quando insere uma situação industrial do tipo Shell Banática naquilo que é... Exactamente. Eu ali pus aquilo tudo porque acho que por trás daquela mata da Shell Banática há um planalto que é óptimo para horticultura quando tem água a passar; mas para isso é preciso estar ali a mata. Portanto já viu continuidade, já viu intensificação: continuidade dos sistemas, intensificação da vida e agora variação. A variação é fundamental, que é aquilo a que se chama homeostasis, quer dizer, tudo tem de estar em equilíbrio. Um miúdo que nasceu ou com 2 ou 3 anos está em equilíbrio de saúde, eu estou em equilíbrio de saúde, mas não é o mesmo equilíbrio que tem um miúdo, daí o problema da variação, é uma coisa que vai variando constantemente. Continuidade, intensificação, perenidade e pronto, vamos por aí fora. Isto é que é o problema da paisagem global: é integrar todos estes vectores no planeamento, podemos fazer coisas artificiais desde que façamos o equilíbrio com as naturais. Porque esse equilíbrio é que nos dá depois o problema da relação contínuo-descontínuo; o descontínuo o artificial, o contínuo o 41
natural, para inverter esta posição é passar do descontínuo natural para o contínuo natural também. Se eu bem percebi, a artificialidade exige sempre uma naturalidade subjacente. Sempre. Nem como homens podemos viver numa extrema artificialidade – o problema dos mineiros, o problema da instalação de populações que vivem de um recurso, as cidades do ouro, que desapareceram porque acabou o ouro; as cidades do petróleo, o esforço que estão a fazer os fulanos da Arábia Saudita para que as cidades não desapareçam quando desaparecer o petróleo. Eles estão a fazer estações de dessanilização da água do mar, estão a fazer regadios circulares, estão a aproveitar a matéria orgânica, a importar para as cidades lixo para despejar nessas zonas e agora faltava-lhes uma coisa: era o homem. Portanto a sustentabilidade do futuro da cidade de Riade, que foi a que eu conheci melhor, é água dessalinizada do mar, é lixo de uma cidade que recebe muito lixo porque tem muito dinheiro. O autor do sistema verde é da Coreia e eles pagam tudo isto a peso de ouro. Nós aqui também estamos com problemas na área metropolitana: está a ver o que são estes quilómetros todos, tudo construído, tudo pisado. Esses são conceitos que enformam a sua obra. Há no entanto uma parte da sua vida que também é muito importante: as suas crenças monárquicas. Haverá alguma relação entre os conceitos que têm a ver com a sua obra e uma ideia monárquica? Nem é necessário separar, não vejo pejo nenhum. Encontro uma ligação, principalmente no problema da continuidade, mas não se traduz na continuidade da pessoa, do filho para o pai, do pai para o filho, dessa coisa toda. É na continuidade do sistema. O problema é este: que sistema? É um sistema que deve garantir maior dignidade e maior possibilidade de desenvolvimento a uma sociedade. Mas isto é tudo igual, todos têm esse objectivo. Mas então vamos ver qual na prática é que dá melhor resultado. Quer 42
dizer, em teoria eu estou convencido que é igual, se a gente racionalizar o processo. Agora na prática, o que a gente vê em vários países da Europa que se desenvolveram, são todos monarquias. Então alto lá, há aqui qualquer coisa que faz funcionar diferentemente. Porquê? Talvez sejam agora estas preocupações para arranjar um Presidente da República quando o Jorge Sampaio se for embora, se é de direita ou de esquerda - tem de ser de um lado para ser eleito. Aí já seria um problema que os ingleses não saberiam resolver. Mas se não tem sentido pensar num rei com as mesmas funções de um presidente da República, como é que entende a função do rei? É mais simbólica, é mais para marcar a continuidade e marcar principalmente a existência da comunidade, é mais isso. É uma referência viva, qualquer referência se podia fazer, mas é uma referência viva, portanto também vive de limites e, quando ultrapassar os limites, também não presta e vai-se embora. Também tem a ideia da possibilidade do rei poder ser substituído? Para isso é que há tribunais, para isso é que há julgamentos, para isso é que há consensos, para isso é que há tudo. Mas isso é algo que aconteceu nalgumas situações da nossa história? Os presidentes da República não estão imunes a essa situação, até é pior. Olhe, quantos é que na 1.ª República chegaram ao fim do mandato? Na 1.ª foi o José de Almeida. Um foi-se embora porque era maricas, outro foi-se embora porque não sei quê, portanto só um consenso é que pode levar uma pessoa a uma situação daquelas, se não houver esse consenso não funciona com certeza. A sua ideia de monarquia é o rei como esse garante de identidade nacional, como símbolo? 43
Não, não. A posição da instituição real, como se tem verificado em todo o mundo, é aquela que permite todas as liberdades, porque a outra não permite. Porque quem garante todas essas liberdades não foi escolhido, ao passo que o outro foi escolhido. Se temos um presidente da República escolhido, como o Sampaio, eu acho muito bem que ele tivesse demitido o Santana Lopes, mas devia antes ter demitido o Durão quando saiu, aí enganou-se perfeitamente. Deixe-me ver se eu faço uma relação entre aquilo que acabou de dizer sobre o “rei como garante de todas as liberdades” e a instituição real como garante de todas as liberdades e a natureza como o artificialismo, a ideia de que o artificial precisa sempre de alguma coisa perene; podemos fazer uma relação? Pode fazer uma relação e entra aí uma coisa que as pessoas empregam muito e não sabem o que é: a biodiversidade. Só um sistema com um determinado objectivo, com um determinado caminho, é que tem que ter biodiversidade. Ou seja, o diferente exige sempre o perene? Exactamente. Isso é que é importante. O rei é feito para garantir a diversidade e a perenidade. Diria então que a República é a total diversidade? A constante mutação? É aos soluços. Cada um soluça de uma maneira e estamos sempre a soluçar por aqui fora. Eu conheço muito bem o Jorge Sampaio, já há muito tempo... até chora e diz parvoíces. Porquê? Porque não estava preparado para aquela noção de continuidade, que tinha que dizer que os que votaram nos outros eram maus. Como é que vê a nova geração de políticos? Não existe. Isso é que é grave, é que não há uma geração de políticos, não há uma geração de 44
pensamento político. Há uma geração de receitas políticas, que devolveram a cartilha do partido, e que geralmente está desactualizada, está sempre desactualizada. O Bloco de Esquerda ficou-se pelo Trotsky, está desactualizado; o PSD pelo capitalismo liberal, está desactualizado; o CDS nem sei, o PS nem sabemos o que é que pensa (risos). Em termos daquilo que é a sua relação com o País, não o preocupa como pessoa que tem uma biografia... Esta cena, que veio ontem na televisão, de que para tirar um curso, uma licenciatura, é mais fácil tirá-la em Espanha e, para isso, estão as escolas portuguesas a ensinar castelhano. Em Matosinhos estavam a ensinar castelhano aos miúdos e houve um que disse: “talvez eu arranje lá mais possibilidades de emprego”, é uma emigração, agora de outro tipo. E tornamos a fazer aqui uma economia completamente disparatada, de pontes, de arranhacéus, disto, daquilo, e daqueloutro. Então esta coisa toda do Parque Mayer e do Campo Pequeno? Aquilo é uma coisa... O negócio, para aquele labrego de Braga, para o senhor Domingos, que é o dono do BragaParques, que os leva à certa, é uma coisa que não tem explicação, como é que é possível? Portanto não há políticos. É preocupante. Leia aquilo que o José Sá Fernandes diz, em 16 alíneas no Público, sobre como foi o negócio do Parque Mayer, e querem dar 380 milhões de contos para fabricar lá um edifício de lata e nem sabem quanto é que ele leva por fazer esse edifício. Não chegou a estação onde ninguém pode parar, ali da Expo, que é muito bonita como escultura mas no Inverno não pode ser e de Verão... para isso temos o Cutileiro! (risos) Num poema de um poeta chamado João Miguel Fernandes Jorge, que considero um dos maiores poetas portugueses vivos, diz-se o seguinte: “a monarquia há-de chegar nem que seja à bofetada”. Concorda com isso? Uma pessoa desmaiada não se acorda à bofetada? 45
A ideia desta exposição contempla como fundamental os projectos realizados para Coruche. Gostaria de analisá-los um a um e falar um bocadinho sobre eles. Como é que iniciou o processo que levou à realização deste projecto [Projecto de Arranjo do Castelo de Coruche], quais são os seus objectivos, quais são as entidades que estiveram envolvidas, como é que o apresenta nas suas linhas gerais, são questões que eu gostaria que respondesse. Este é o do Castelo. Aparecem aqui umas minas, que são drenagens e, a certa altura, isto começou a cair. Julgo que foi alguém da Irmandade que me disse para fazer um desenho. E eu fiz este desenho. Era interessante porque era mexer em tudo quanto estava e simplificar. A simplicidade é a lei de todas as coisas. Portanto, isto aqui que aparece são valas de sustentabilidade. Eram a ligação à vila pela Calçadinha, que eu acho importante continuar e fazer a reposição do desenho antigo, que havia de ficar para uma segunda fase; o que se fez foi a zona
castelo acabou há 700 anos. Há a ideia de que ele foi destruído. Ele foi fundado por Afonso Henriques e era um castelinho, era um ponto de vigia. Teve um lugar estratégico na defesa, que é o nome de Coruche, que não é nada de coruja. Coruche é “ponto alto”, é um ponto mirante, esta vigia, que era um castelo. Mas coruja é muito engraçado. Ainda existia no século XIX, há fotografias com as guaritas. O que é curioso, porque há uma teoria que defende que o castelo era de taipa... Ai isso era com certeza, mas as guaritas não são do tempo do castelo, são da guerra da Restauração. Continuava a ser um ponto de observação guardado por três ou quatro soldados, não tinha lá mais, e portanto tinha aqui as guaritas, que são já Renascimento. Isto já são os alicerces do que foi feito em 1700. A intenção do projecto foi segurar as barreiras... Esse deve ser um objectivo permanente ali, se não é um desastre, não só pela descarga de material que aquilo traz para a parte baixa da vila, já reparou nisso? O perigo que aquilo é para o trânsito automóvel quando chove... Quando começam a abrir barrocas de erosão, não há quem as pare, é um grande trabalho, portanto isso foi feito, julgo, ainda hei-de ir ver como é que está, mas aquilo está seguro.
de plantação que segurou aquilo.
E essa sustentação das barreiras foi feita de que forma no seu projecto?
Temos uma outra planta em que não aparece o plano de plantação...
Foi plantando essas plantas, e criando umas pequenas plataformas de madeira, um pouco ao
Isto era muito bonito assim. E estavam lá duas guaritas, que desapareceram. Esta forma é muito mais bonita do que aquela que lá estava. Tinha um muro muito simples e estas duas guaritas onde cabia uma pessoa em pé. Estavam em fotografia, tirei isto de fotografias. Isto é a parte anterior, era uma recuperação do que tinha sido o castelo. O 46
jeito daquele projecto da Shell Banática. E essa relação que faz, por exemplo, entre o castelo e a Banática, passa por aí? Exactamente, pela sustentação, é exactamente o mesmo processo. Mas por uma coisa que seja 47
intensa, esta vegetação é toda natural, lá do sítio: abrunheiros, sanguinhos, azambujeiros...
e me pediu. Aqui fiz outro [Igreja Matriz – jardim da catequese] para a igreja, uma coisinha à volta, também foi um pedido do padre.
E é o único projecto realizado? Realizaram esta parte, da vegetação. Agora este [Bairro Alegre – parque infantil] tem umas histórias... Partes do projecto foram completamente abandonadas, como sabe. Esta ideia de parque infantil... Quem me pediu o projecto foi alguém da parte da Câmara nessa altura. De todos os projectos que nós apresentamos nesta exposição, o mais antigo é aquele que falou há pouco dos arranjos do castelo, que é de 1958. A praça é de 1974. Segundo o que está nos microfilmes. Mas este projecto [Bairro Alegre – parque infantil] não tem data nos microfilmes. Sabe... Eu nem sei se foi antes ou depois do 25 de Abril... é capaz de ter sido antes. Se foi antes, foi relativamente pouco antes. Portanto, este projecto surgiu porque queriam um parque infantil. A preocupação foi criar estes escombros para o separar da rua. No Bairro Alegre ainda lá deve estar esse parque, não sei se foi construído. Ainda hei-de ver.
E isto nunca chegou a ser construído? Não, não. Tem ideia das razões que levaram a isso? Talvez se tenham desinteressado. Que pressupostos o levaram a querer construir o parque [Bairro Alegre – parque infantil] assim desta forma? Separar da rua, ligar ao rio e depois fazer uma coisa convencional de parque infantil. Havia uma espécie de anfiteatro tosco – uma qualquer representação... Isto apenas eram coisas a pôr, não era um desenho propriamente dito. Esse [projecto de arranjo do terreiro da feira e parque municipal] não tem nenhuma ligação com outros projectos que tenha feito, é uma coisa pontual? É um dos mais interessantes que aí aparecem... Ah, pois, isto aqui é o estudo... Tem programa: piscina, praia fluvial... Mas isso também foi... Isto parece ser um projecto camarário. Pois, pode ser, mas não foi a Câmara directamente, foi alguém que pensou naquilo e que pensou: “olha que engraçado que era se isto aqui estivesse...”. Não sei com que intenções, isso não faço ideia. Este projecto é de 1963. O que pretendia aí fazer?
Portanto isso é um projecto encomendado pela Câmara... Não foi encomendado, foi pedido; não foi bem uma encomenda, foi uma ideia que alguém teve 48
É pá, 40 anos... Isto era... talvez hoje não fizesse assim, é preciso cuidado. Primeiro tinha uma coisa que eu queria: era a margem do rio com todas as características que estão aqui. A parte mais engraçada disto é que: isto é o que se deve fazer, não aquilo que lá está. O que se deve fazer é a margem elástica, a margem arbustiva. A margem 49
do rio não é para fazer assim. Porque, primeiro, aumenta a velocidade da água, segundo, não há elasticidade e não há peixe ali, terceiro, a porcaria acumula-se toda em determinados pontos, enquanto aqui [no meu projecto], primeiro, grande parte [da porcaria] é reabsorvida pelo sistema verde, segundo, garante diferentes alturas de caudal e, depois, é um passeio ou qualquer coisa... tem a margem elástica dos salgueiros e a galeria. Foi aquilo que se tentou fazer - julgo que quando o meu irmão era vereador da Câmara - do lado de lá, que ainda lá estão os sulcos. Aquela margem devia ter sido toda uma margem elástica, de caniços... depois uma faixa
Sempre. E era fácil, mesmo para problemas de poluição, porque era uma água que era muito artificial, isso garantia a naturalidade da vegetação, que ficava totalmente na nossa mão, porque se controlava perfeitamente desde lá de cima até cá abaixo, portanto era fácil... sem grandes problemas,
ter uma água completamente limpa. E essa ideia de construir uma piscina para adultos e depois uma piscina para crianças mais afastada... de salgueiros e depois as árvores. As árvores não se podem pôr em baixo, têm de se pôr aí a 1,20m do nível máximo da água. Toda a frente devia estar assim, não do lado de cá, mas do lado de lá. Há aí nesse projecto uma situação interessante que é a construção de uma praia fluvial no tal boqueirão que hoje está geralmente seco. Nessa altura, em 63, não era assim? Não, mas fazia-se também uma barragenzinha e, primeiro, aguentava-se a água que vinha, porque aquilo despeja-se tudo, e depois podia-se canalizar água para lá quando não houvesse água da chuva.
Hoje em dia já não havia razão nenhuma para a ter ali, mas naquela altura ainda não havia piscina... Portanto o objectivo foi intervir nesta zona... Não percebi bem qual foi a intenção. Mas o campo da feira não é camarário? Aquilo era função do direito público marítimo... Mas este projecto intervém também no campo da feira... Está bem, mas isso era a continuação.
Isso levaria a que esse boqueirão tivesse água sempre durante todo o ano. 50
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Seria um projecto conjunto entre a Câmara... Não, não. Não sei quem é que pediu isto... mas não foi oficialmente a Câmara, só se foi assim de boca... bem, isto é completamente diferente, eu hoje não faria assim, naturalmente... a preocupação aqui era meter o Sorraia dentro disto. Eu continuava a ter um terreiro de feira. No projecto não se afasta o terreiro da feira mas, ao intervir aí, necessariamente, estaria a intervir em terrenos que não eram da Câmara .
E a ideia era que a piscina para os miúdos fosse ao ar livre e a outra piscina fosse... A piscina não tinha mais água que isto [50cm] – só no meio – e era com uma descida, que os miúdos gostam muito de molhar o tornozelo, e não há aquele perigo; para se afogarem tinham que meter a cabeça debaixo de água, de estar sozinhos. Ali não há aquele perigo de pôr o pé em falso e cair, como caem nas piscinas. E portanto, como caem nas piscinas, eu afastava-as. Mas por outro lado está perto da praia fluvial.
Sim, sim, mas era só para lá da vala ou qualquer coisa. Tinha estacionamento, esplanada, bar, instalações, piscina, mercados, zona para edifícios, isto era muito completo. A piscina tinha piada... O curioso, do meu ponto de vista, é que a distância que vai da piscina das crianças e a piscina para adultos é significativa, portanto está separada ainda uns bons metros. Mas sabe porquê? Porque as piscinas para miúdos só devem ter água até aos joelhos, como eu fiz ali no alto do parque [Lisboa], que é um sucesso. Que é uma piscina aí com 50 ou 60 cm, e é um cone invertido, isso é que é fundamental. É um grande cone, redondo, em que a pessoa vai descendo gradualmente e não tem margem. O que é que isto tem de bom para as crianças? As crianças não se afogam, não há desastres. Porque para se afogarem têm que lá chegar ao fim, ao meio, e meter a cabeça debaixo de água, o que nenhuma criança faz. As crianças afogam-se porque, a certa altura, encontram uma margem que tem um degrau enorme, dão um passo e caem. Nestas não há essa coisa. Esta aqui no Verão está cheia de miudagem com água até ao tornozelo mas é uma coisa muito suave. E quando não se quer ter água funciona como anfiteatro e esta foi o começo duma coisa desse tipo, por isso é que está separada, está mais ligada ao relvado do que propriamente à piscina.
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Pois, é um bocadinho da praia fluvial para os mais novos, para os pais estarem mais descansados. O que se nota muito nas praias, a não ser quando há as marés vivas, é que a miudagem gosta das poçazinhas que ficam nas areias. As praias têm peixe aranha, têm a onda, não se sabe se depois dão um passo mais e caem para o fundo... Aqui não, aqui podem fazer o que querem, molhar-se como quiserem, podem-se levantar sempre. Talvez aqui o erro seja que a piscina devia ser maior. Este projecto contempla estacionamento, contempla também uma zona de bar. Que é fundamental nisso. Um pouco à semelhança do projecto que está a construir-se neste sítio. É uma zona para estacionamento, é uma zona que contempla bar. O programa não é muito diferente. Não, o programa não é muito diferente, o que é diferente é o desenho. O desenho é que é muito mau, pelo que eu vi, que não é profissional, o que é uma pena, esse bocadito não funciona porque o verde não é verde, não vai crescer, são uns canteirinhos relvados como estão na avenida, uns malmequeres, uns choupos...
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Neste projecto [projecto de arranjo do terreiro da feira e parque municipal] houve a preocupação de agarrar em plantas da zona... Não, aqui há um problema, em que o meu projecto é uma concepção naturalista e o outro é uma concepção convencional de árvores alinhadas, é uma concepção convencional do neoclássico. Está fora da matéria. Eu estou a dizer mal porque sei que foi feito por um pessoal que não é do métier.
estas árvores de alinhamento. Possivelmente aqui era estacionamento, tinha três ou quatro relvados, que também é muito bom. Este tenho pena porque estava mais adiantado e era pedido da Câmara, foi pedido ao Bruno Soares, mas entregámos em conjunto, foi assinado por mim e pelo Chico Caldeira Cabral. Estes projectos que temos estado a falar derivaram sempre de um pedido directo ao arquitecto?
Tem ideia das razões pelas quais o seu projecto para aquele lugar não foi feito,? Não sei, talvez o Jorge Eugénio saiba, ele é que estava muito interessado nisso. Em relação à Quinta do Lago [jardim da encosta], é um projecto diferente. Quem é que lhe propôs fazer... Isto foi o Bruno Soares, que era meu colega... estávamos a trabalhar nessa altura no mesmo gabinete de planeamento de Lisboa, ali na Rua do Século se não me engano. Este é o projecto mais recente, pelo menos daqueles que estão referenciados, é um projecto de 1982. Este é pena, porque também tinha uma certa piada. Isto era um jardim público, é um espaço público de estrutura verde... para ser bastante utilizado. É uma zona concreta, que liga com a tal urbanização que não foi feita ou que foi alterada. Tem aqui um jardim público, com um campo de jogos, que agora está na moda o footsal, joga-se tudo e mais alguma coisa em pequenino: râguebi, futebol... Tinha uma matazinha, tinha um caminho na encosta, tinha aqui depois latadas para se passear e para se estar, tinha um anfiteatro... Tinha uma ligação com o Sorraia e com a lezíria... Sim, sim, estava de meia encosta. Era na Quinta do Lago e tinha também a preocupação de introduzir 54
Foi conversa de café. Oficialmente só houve este e foi através do Bruno Soares. Nunca mais houve nada. Nunca houve nada sequer. Normalmente, quanto tempo é que se demora a fazer um projecto destes? Ai, isso varia muito... Foram projectos feitos graciosamente. Não sabe portanto a razão pela qual foram abandonados? Não, não faço ideia. No entanto, se tivessem sido feitos Coruche necessariamente tinha uma outra... Era uma coisa muito ínfima. O que Coruche precisava era de um grande projecto, não só da Avenida, precisava portanto um tratamento da margem e da encosta. Não podemos pensar que são as caleiras e os canteirinhos nos passeios que resolvem o 55
assunto. Devia haver duas continuidades: uma com o centro no castelo e as barreiras, longitudinal, acompanhando o máximo possível do rio. E outra, aqui dentro, onde houvesse um espaço de convívio normal, convencional. O que eu fiz com a praia fluvial fazia parte do sistema marginal, assim como o terreiro da feira. E qual é o espaço mais propício para que a vila possa crescer? Neste momento está a crescer para o lado das Baleias, na zona da praia fluvial que falámos há pouco... Acho que a vila devia crescer em direcção a Santo Antonino. Crescendo para o lado das Baleias depende de outra coisa grave: é um problemas de águas, como está a acontecer em Alverca, é que depois não têm para onde escoar a água nem as canalizações. Dificilmente ficarão a subir o nível máximo, e portanto vai entrar toda a água por essas canalizações. Vai haver, evidentemente, outra coisa muito grave nas construções: a necessidade de energia para aquecer, de energia exterior ao sistema, como se diz, e nós já temos uma factura energética no país de 6 mil milhões de euros. Só porque entrámos na guerra do conforto, do ar condicionado, isso paga-se, e quem está a pagar é o país todo, 6 mil milhões de euros, com mais os 85% que a gente importa para comer – importamos 85% do que comemos –, está o António Barreto a calcular quanto é que isso representa em euros, estamos falidos, não temos o que comer para alimentar esta gente toda.
projecto Parque do Sorraia], podiam gastar dinheiro num elevador, ou qualquer coisa assim. Agora expandir para as Baleias... vai rebentar devido ao projecto de via de circulação para Portalegre, o que de certo modo julgo que seja o melhor sítio [para a passagem da via]. Tem que ter um desvio, que tem que ser pelo rio, pela várzea, porque se não constrói-se de um lado e de outro e é um sarilho. Portanto a possibilidade é só deixar construir do lado da barreira, com os devidos cuidados que a barreira exige, e deixar sempre descoberto o lado daquela quintarola do José de Matos; aí eles sabem que não podem fazer alicerces, deve estar tudo dentro de água, de certeza. Humidades na casa é um sarilho, é um sarilho porque vão até ao 2.º andar. Outro sarilho é a descarga das canalizações, dos sanitários, lá em cima era mais fácil. Porque nas Baleias não há ainda canos selectivos para a porcaria e para a água pluvial, é só um cano. Se, quando chover, o cano estiver cheio com água do rio, a chuva não sai, é uma rolha. É o que se fez aqui em Alcântara e em grande parte dos sítios onde há inundações. Em Coruche podem fazer as barreiras altíssimas que as águas entram por baixo. O emissário pretende resolver esta situação. Paralelo à vila pela margem do rio? Pode resolver se não for como o da 24 de Julho. Que é um buraco. Ou então têm uma estação de tratamento no fim do emissário. O que está planeado é que o emissário vá desembocar
Acha mais lógico, portanto, a expansão no sentido de Santo Antonino...
numa estação de tratamento. Penso que há neste momento já apoio comunitário para avançar com esta obra...
Se tentaram já para aí, talvez, desde o momento em que arranjassem depois uma comunicação simples e interesses cá em baixo, que não são aqueles que fizeram, eu punha cá em baixo o mais possível de comércio, de serviços e de escritórios, porque depois é relativamente fácil estabelecer as continuidades. Porque se gastam tanto dinheiro nestas parvoíces [o 56
Faz-me lembrar sabe o quê? O metropolitano do Terreiro do Paço. Mas tem que se fazer o emissário primeiro e depois as construções. Porque se depois não há emissário, tudo aquilo que foi feito vai ligar ao rio, se há um falhanço no emissário ou se o emissário não funciona, é como aqui em Lisboa... 57
O que me parece é que tudo o que diga respeito a saneamento irá depois descarregar no emissário. Exactamente, isso está certo. Aqui em Lisboa não deu, sabe porquê? Porque se o emissário está num sítio onde não é possível um grande declive, é mais horizontal, se acompanha o nível das águas do rio, ele entope. Entope porque as águas vêm carregadas, com certeza, de muita areia, porque não são separadas as pluviais das outras, e foi o que se deu na 24 de Julho. Portanto, para não entupir, tem que ter um declive bastante acentuado, para cima de 4%. Ora se em Coruche tem mais de 100 metros, a frente do rio tem com certeza, quer dizer que tem que descer, em cada 100, 4 metros. Em 200, 8 metros. Em 400, que já entra na realidade, 16 metros, entra o problema das bombagens. Mas isto é fácil. Não posso argumentar porque não tenho aqui o projecto. Pois eu também não posso dizer que é assim, mas naturalmente mete bombagens, com certeza, porque está a ver, uma linha com muito pouco declive, com o carreiro de águas pluviais cheias de areia e de coisas, ao fim de 4 ou 5 anos está entupido. Foi o que se deu aqui na 24 de Julho; ainda me lembro de há 10 anos fazerem obras, e ainda só está a funcionar 80%. Está a ver os americanos a dizer como é que se faz. E sabe como é que eles disseram como é que se fazia? Separar as aguas pluviais das águas sujas e fazer as águas da cidade a céu aberto. Que é como se está a fazer em todo o lado. Portanto, em Coruche, a primeira ideia é separar as águas sujas, porque metendo as águas pluviais no mesmo cano é caríssimo, é um grande negócio para quem vende canos. Para ter... uma coisa que podia estar numa secção de 50cm, para as águas pluviais deverá ter para aí 1,20m... Eu não sei, pode estar tudo certo, mas veja lá qual é a inclinação desse emissário, que não pode ser menos que 4%. Porque 4% ainda é considerado plano. O problema aqui do Terreiro do Paço em grande parte é esse. É o problema dos 58
lodos e depois é o problema do túnel do Marquês, que está entupido, porque puseram uma inclinação ao contrário. A inclinação a mais de 9% não é permitida, não há companhia de seguros nenhuma que pague um choque lá em baixo, basta dizer que está a mais de 9% e internacionalmente não pode. Olhe, então aqueles meninos das companhias de seguros, que fazem isto, escrevem, em letra miudinha, que ninguém lê!..., que não pagam a mais de 9% de inclinação. Ali no Marquês está com 10,1!, está um desastre, vai ser bonito... Esse projecto [Praça – sugestão de arranjo] é de um ano complicado: é de 1974, provavelmente terá sido antes do 25 de Abril. Quais seriam os pressupostos do projecto? Eu julgo que isto era um pedido para alargar esta rua cá de baixo, alargando esta rua, acabava-se com aquele muro que lá está, acabando com aquele muro eu passava este muro para trás; aqui era uma antiga pimenteira, que era histórica. Foi deitada abaixo e deu um sururu muito grande. E depois era disciplinar, harmonizar com uma espécie de praça de manifestações a frente da Câmara, por isso nasceu este desenho aqui com o pinheiro e a coruja...
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Se eu bem entendo, o pelourinho não está no sitio onde se encontra hoje? Nem o pelourinho era neste sítio nem era onde está hoje. Aí ele está mais para cima, está alinhado com... Aqui era a antiga igreja, a igreja matriz, quando se escava ali só aparecem ossos. Não sei se hoje funcionava, mas se não há um parque de estacionamento aqui, onde é que é? Era melhor que não fosse, mas então onde é que nós colocamos os carros?
E terá sido pedido pela mesma pessoa? É capaz de ter sido. Ou então, eu fiquei tão chateado em fazer o outro que resolvi fazer este. Porque eu acho mais piada a este, pela sua simplicidade e, mais a mais, agora há tantas piscinas lá em cima... ainda tem aqui a mesma praia. A ideia de praia por trás da Praça de Touros. É, no fundo, o tratamento da margem, com uns sítios para se merendar. Quer dizer, isto é um passeio campestre. É um estudo de
Este projecto, no entanto, contempla um parque de estacionamento. Pois, era para isso, era para não haver estacionamento aqui... mas naturalmente também havia menos automóveis nessa altura. Isto foi apresentado no café (para a Câmara), onde estava possivelmente o presidente. Não teve acto simbólico nenhum, nem era para ter respostas. Estou convencido que sou capaz de ter feito isto, isto foi em 74 e em 74 fazia-se tudo.
paisagem, que tem tanta actualidade que parece de hoje e o anterior de ontem, parece o POLIS – que eu acho que foi um fiasco, uma maneira de construir com verde sem dizer que era construir. Portanto este está mais simples, era o tratamento da paisagem, que dava para as pessoas poderem vir aqui passear, com umas plantarecas e com dois pontos de interesse.
O parque ecológico de Coruche. Este também foi um projecto da Câmara ou um projecto que alguém...
Essa ideia que esse boqueirão tivesse água todo o ano com um sistema se barragens...
Isto é agora o desenvolvimento daquele que tem aqui a praça de toiros. E que, não tendo a praia fluvial... Este é posterior. Aquilo tudo era magnífico para se fazer, com a piscina, o relvado, aquilo era uma coisa que não se fazia. Então resolveu-se fazer uma coisa mais simplória: passar de um estudo de espaço verde urbano, para um estudo de paisagem. Por isso é que eu lhe chamei parque ecológico e passei isto para um estudo de paisagem, repare que isto é garantir, no fundo, o uso lúdico. Este é o mesmo boqueirão, deve ser posterior ao outro, é com certeza. O outro era muito complicado, era urbano. Este é um estudo de paisagem.
Mas também se podia arranjar um sistema que funcionasse com a água que houvesse; num ano de seca não funcionava; agora o que não podia ser era um depósito de lixo, porque se fosse um depósito de lixo como aquilo é, não há nada que resista. Isto é mais natural nos conceitos de integração cidade-campo, de estudos de paisagem, não propriamente de área circunscrita ao jardim, que tenham aspectos de continuidade, aspectos de economia, porque isto custa dinheiro. Este é mais actual do que o outro, este ainda gostava de o fazer. Esse no entanto é um projecto que tem um cunho muito mais camarário do que o outro. O outro pressupõe espaços de exploração comercial, isso
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poderá interessar a particulares. Mas neste caso não há essa situação. Neste caso não há, pode-se fazer um estaminé aqui e outro ali... Isto é uma coisa que tem mais a ver com um interesse camarário do que de exploração comercial? Exactamente, é um estudo de paisagem, o tratamento do boqueirão com vegetação... e possivelmente andaria para aqui o caminho de bicicletas e de peões, um sítio de se estar, com mesas para se jogar a bisca ou para merendar, os passarinhos e pouco mais. Este é o mais actual. De todos os projectos que aqui falámos qual é aquele que mais se liga com os grandes projectos da sua obra, aquele que à partida lhe lembra alguma coisa? São as barreiras do castelo e este [arranjo paisagístico – parque ecológico]. Porque um é o tratamento de uma ocorrência marginal que é um encontro de duas faces, a face terrestre e a face fluvial, é uma orla. E o tratamento das orlas é fundamental. E o outro porque é uma barreira que faz parte de toda a paisagem de Coruche. Se aquela barreira desaparece ou se transforma em barrocas de erosão ou em construções idiotas ou isso, Coruche morreu. Coruche deve ter aquele suporte do castelo limpo, as construções que houver devem ser para trás do castelo e não virem cheirar para a banda; deixar a banda para um caminho panorâmico onde se possa passear. Coruche, portanto, teria dois caminhos panorâmicos: um marginal ao rio, portanto num aterro sobre o rio entre a avenida e a água, para que se possa estar à vontade, separado das camionetas que fazem barulho e essa coisa toda, que era a via marginal. Outra via, superior, que era a do castelo, por ali fora até... Essa via do castelo que está a referir está contemplada num outro projecto que não está aqui, aquele de que falámos inicialmente [Projecto dos percursos 62
culturais], esse projecto... Exactamente, é isso mesmo. Há aqui duas vias. Coruche fica entalada. Uma via panorâmica, que é linda, tem a vista do castelo e podia ter mais vistas ao longo desta via, e outra panorâmica, cá em baixo, que é a que está junto ao rio a cheirar a água, a ver a humidade, a pescar... Esta via já está cortada por urbanizações e por construções. Pois é, isto era fundamental, a defesa disto. Agora onde é que essas construções acabam? Acabam em cima da barreira. Tem que se fazer uma separação da barreira. É uma via panorâmica. Isso faz parte da margem, eu aqui apontei esta importância toda. E depois, o que se devia fazer eram relações transversais, mesmo atravessando a vila entre as duas vias. Haver umas aqui, outra que era aquela que saía do castelo e da Calçadinha e que vinha cá ter a baixo ao rio. Quer dizer, o sistema é uma via panorâmica com 40 metros de altura do castelo. Outra cá em baixo junto ao rio, com as vias transversais, com as escadas e meter dentro da vila histórica, ligando uma coisa a outra. Isso era o grande espectáculo de Coruche. Isto está arrumado. Esta planta tem piada como básica, precisava era de ser trabalhada com este sentido. Eu sou capaz de fazer isto só para dar a entender o que é. O que é que pensa que poderá vir a ser Coruche? A pessoa está na moradia, vai para Lisboa, volta para a moradia e nem se sabe quem lá está, nem há qualquer contacto, porque a proximidade é muito grande. O que se devia estabelecer, a ver se isso era possível, é o que se está a fazer em Bragança. Há muita gente a trabalhar em Bragança, que ao fimde-semana não está lá, está nas aldeias, a 8 ou 9 km. Muita gente nova. E o que é que eles lá estão a fazer? Não estão a passar o fim-de-semana como se julga, nem a beber uns copos com os amigos na aldeia, a aldeia está vazia. Estão a transformar 63
a paisagem, estão a acabar as searas de centeio e estão a pôr castanheiros. Porque quando põem castanheiros eles não necessitam de lá estar, basta ir lá uma vez por semana ver como é que aquilo está. E portanto aquela paisagem, dentro de pouco tempo, passa a ser soutos, em lugar daquelas searas amarelas. Isso é infalível, nem feio nem bonito, é uma realidade. Com isso estão-se a revigorar as aldeias, sabe porquê? Eu estou aqui no meio de Bragança, só lá vou ao fim-de-semana, por causa do telefonezinho. Porque, entretanto, é direito consuetudinário naquela zona que os soutos podem ser pastados por qualquer pessoa que tenha um rebanho, não é preciso pedir licença ao dono. Apenas têm a obrigação de não fazer disparates lá dentro. Está tudo bastante entusiasmado porque apareceram pastores com um certo nível. Porquê? Porque têm pastos que não tinham, porque terras abandonadas não são pastos. E sabiam quem era o dono da pastagem, ou antes, quem era dono do souto, porque o dono das pastagens não era ninguém, era direito consuetudinário e aí, com o telefonezinho de bolso, estão em contacto com o dono dos castanheiros e o castanheiro está em relação com o pastor. O pastor vive na aldeia, tem a vida inversa: vai a Bragança ao fim-de-semana. O outro está em Bragança e vai à aldeia ao fim-desemana. É possível essa situação ter semelhanças com alguma coisa que se passa em Coruche? De facto, no plano de ordenamento municipal, primeiro estabeleça-se a estrutura ecológica, depois estabeleçam-se claramente zonas de... como é que hei-de dizer? Em Coruche há que estabelecer duas coisas: uma que está organizada mas que está certa são os foros. Se nós agora pegarmos na ideia dos foros, em lugar de ter cada foro a sua casa, juntar meia dúzia de foros para simplificar as infraestruturas de abastecimento e se fizermos depois, nos núcleos da casa, sair uma compartimentação para a parte de agricultura temporária, é melhor do que ter uma casinha em cada. Mas para isso tem que 64
se fazer o projecto. Porque isto é uma organização do campo aberto, que é hoje normal em França e na Alemanha. Cá aparece em sítios residuais, mas há condições económicas para o fazer. Quer dizer, aquilo de que cada um compra um lote e faz uma casa, se o planeamento disser “Você tem que fazer aqui e tem o lote nesta extensão” e portanto faz grupos de quatro, cinco, seis, sete casas, de onde irradiam os lotes, faz um núcleo. Irradia os lotes em zonas radiais em relação ao ponto, e consegue ter uma série de lugares de cinco, seis casas, com determinado equipamento próprio e uma ligação à estrutura, consegue ter paisagem. Está claro que depois o ideal é em muitos sítios essa paisagem ser comum, ser terreno comum. Em Trás-os-Montes isto dá porque não é comum a terra mas é comum o direito de pastar. E é uma coisa que não acontece em Coruche. Portanto, o que eu vejo aqui é transformar Coruche numa grande aldeia que funcione como um interland mas, para ter um interland agrícola, não é preciso dividir em quadradinhos e expandir a construção. Para isso é preciso evidentemente chamar a atenção, é preciso uma coisa que não se faz cá que é ter referências para a pessoa saber o que é, porque as pessoas não podem chegar aqui porque não lêem nada. Levar um Plano Director a pessoas sem preparação, sem explicar coisa nenhuma, toda a gente vai ver onde é que é a casa do tio e do primo e nem olha para o resto, vai logo procurar os seus interesses e, enquanto isso se fizer, é impossível. Mas se começarem a estudar... Há uma parte do Norte que está toda estudada assim e foi toda metida na gaveta, mas isso vai acabar por vir. Vão é fazer-se muitos disparates até lá. Primeiro há que chamar a atenção, procurar aquilo que podem ser lugares que já tenham um mínimo de raiz: três, quatro casas, com um cruzamento de estradas, que possam ter aí um lugar. Fomentar aí a construção. A outra coisa é totalmente diferente: tem que ver com a comunicação local – transformar, criar uma rede com os locais, independente do sistema estrada municipal/estrada nacional mas que permita a circulação. São as duas coisas: juntar infra-estruturas em pequenos grupos, em pequenos lugares, não serem grandes expansões 65
urbanas. Um prédio que se faz hoje tem seis, sete fogos. Se pegar nos sete fogos e os puser numa pequena aldeia afastada, mas se tiver o problema de circulação resolvido – depois a comunicação é facílima, com os telefones –, não há o isolamento total, a chegada de uma ambulância é mais fácil. Mas para isso é preciso ter a circulação local, e não estarmos sujeitos totalmente às grandes vias, são dois problemas a resolver. Organizar lugares a partir de coisas já existentes e criar uma rede de circulação, fazer um centro e irradiar. Outro aspecto que é negativo, é dividir tudo isto em lotezinhos, cada um com a sua casinha. E isso não choca em nada com as grandes propriedades? Isso eram os foros. Os foros nasceram de grandes propriedades e as grandes propriedades nasceram de estalagens. Aquilo era tão despovoado no tempo do Afonso III que quem teve direito à terra ali não foram nobres nem nada disso. As concessões de 400, 500 hectares eram para os estalajadeiros, que estavam no sítio onde passavam as diligências. Porque o que interessava naquela altura era a comunicação. Isso está naquela monografia do Couço do Alberto Garcia. E agora é preciso fazer qualquer coisa desse género. Não com estalagens, mas com organizações de terra sugestivas, bem desenhadas e contemplando aspectos irradiais. Pode-se fazer uma não ligada à outra, fazer uma aqui e outro núcleo ali e parecer uma paisagem de grande propriedade, chamemos-lhe assim ou de montado, com a paisagem a dar interesse depois às pessoas que vêm. Isso até pode dar turismo de qualidade, isso assim com caminhos desses até pode trazer interesse por andar a cavalo, interesse pelo turismo de qualidade. O que é turismo de qualidade? É um tipo comprar um lote no Alentejo sobre a falésia? Então o que é? Não sei o que é. Se não for isto não sei o que é. É um golfe?! Com um rosário de casinhas à volta, e depois? Os das casinhas não jogam golfe! Há que espevitar e há coisas muito interessantes com um interesse enorme. Está a ver o que é dar infra-estruturas a lotes extensivos de 66
2, 3 hectares? Ao passo que assim, aglomerados, se simplifica a estruturação, se simplifica a própria comunicação e ao mesmo tempo dá permissão para haver um ambiente de paisagem global. Quando era novo os meus tios contavam que, quando se ia passear, era até à estação de caminhosde-ferro, andar para apanhar o fresco. Lembro-me eu, ainda rapazinho, de ir passear com os meus tios nas pontes. Não chegava normalmente ao Monte da Barca depois voltava para trás. Hoje é impossível fazer isso. No trajecto todo, meia hora a pé até ao Monte da Barca, passavam três carros para lá, três carros para cá. Hoje é impossível, hoje temos que criar outras situações. A Alemanha é toda assim. Tem um caminho lúdico de nível, corre a Alemanha [de um lado ao outro]... o tipo da mochila sabe para onde vai e o que pode encontrar. Isso cria motivos de interesse e possibilidades de surgirem pequenos lugares para a pessoa se sentir segura. A gente não pode pedir para se fazer quatro casas no meio da charneca e depois não vai lá mais, só quando houver um grande incêndio é que aparecem os bombeiros, assim não funciona, não é isso. E por isso é que eu falo das orlas, das zonas e da barreira cá de cima, que é também uma orla.
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