A Dieta Mediterrânica em Portugal: Cultura, Alimentação e Saúde

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A “dieta mediterrânea” dos caçadores-recolectores paleolíticos e mesolíticos Por volta de há dez mil anos, viviam-se lentas, mas profundas e irreversíveis, transformações ambientais à escala planetária que marcariam o fim dos tempos glaciários, paleolíticos, e o advento das condições climáticas temperadas e amenas que conhecemos atualmente, e que permitiram a invenção da agricultura. A geografia da Europa glaciar, e logo do próprio Mediterrâneo, seria então irreconhecível aos olhos de hoje: por exemplo, a calota polar permanente estendia-se por toda a Escandinávia e ilhas britânicas, que estariam assim desabitadas, os mares da Irlanda e do Norte seriam vastos territórios emersos, e as planícies em torno do rebordo da calota polar apresentariam uma paisagem que hoje é típica das estepes frias siberianas. Os litorais do continente estariam, pois, dilatados vários quilómetros para onde hoje é mar aberto. Sabemos, tanto pelo estudo zooarqueológico das espécies caçadas, como pela análise química de restos ósseos humanos (Richards, 2002; Richards e Trinkaus, 2009), que as estratégias alimentares das sociedades de caçadoresrecolectores paleolíticos assentavam no consumo dos herbívoros selvagens de grande porte que povoavam as estepes frias europeias de então, tais como mamutes, rinocerontes lanudos, renas, cavalos ou auroques (o antepassado selvagem do boi doméstico). Para o nosso território, não há com certeza melhor postal ilustrado da megafauna desta época que as gravuras paleolíticas do Vale Côa. Pese embora a sua difícil conservação no registo arqueológico, sabemos que o consumo de vegetais espontâneos constituiria uma percentagem menor no cômputo geral da alimentação destes grupos, podendo o mesmo ser dito no que respeita ao consumo de mariscos e peixe. Pode concluir-se que esta prístina pirâmide alimentar mediterrânea, de época paleolítica, tinha apenas três grandes níveis: na base, carnes vermelhas de grandes herbívoros; no topo, plantas espontâneas e alguns alimentos de origem aquática. As condições climáticas emergentes há dez mil anos foram o catapultar de uma cadeia de consequências radicais sobre o coberto vegetal e a vida selvagem. A estepe fria da Europa central dá lugar a densas florestas temperadas, a megafauna extingue-se ou migra para latitudes mais setentrionais (acompanhando o recuo dos glaciares) e é substituída por espécies de menor porte, tais como o javali ou o veado. Portanto, os grandes herbívoros paleolíticos desaparecem dos modelos alimentares humanos, e as estratégias de caça terão de se adequar a este mundo em mudança.

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