Lucíola - José de Alencar

Page 115

LUCÍOLA

— Não se esqueça de deitar um pouco de carmim! disse eu a Lúcia despedindo-me. Está horrivelmente pálida. Ela sorriu. — Não faz mal! Julgarão que passei a noite de ontem nalguma orgia! Faz seu efeito! Nesse momento a mucama lhe apresentava as luvas e o leque, o mesmo do nosso primeiro encontro, e que ela costumava trazer sempre. Lúcia recuou como se uma áspide a quisesse morder. — Esse não! Cuida que a minha raiva brutal ficou satisfeita? Entrei no baile aspirando no ar um faro de sangue. É verdade, tinha frenesi de matar essa mulher; porém matá-la devorando-lhe as carnes, sufocando-a nos meus braços, gozando-a uma última vez, deixando-a já cadáver e mutilada para que depois de mim ninguém mais a possuísse. Ela lá estava sempre bela, sempre radiante. Júbilo satânico dava a essa estranha criatura ares fantásticos e sobrenaturais entre as roupas de negro e escarlate. Junto dela descobri a Nina, que, apesar da sua graça, desaparecia completamente naquela zona que Lúcia deslumbrava com a sua reverberação. Mas eu que via com os olhos do despeito, percebi-a imediatamente. Nina sabia das nossas relações, e ignorava ainda o desenlace muito recente. As minhas pretensões deviam pois ter para ela o encanto que acha toda a mulher em afligir outra que lhe é superior pela graça e formosura: assim explicam-se os avanços de amabilidade que me fez à custa de algum crédulo e paciente admirador; deu-me uma entrevista em sua casa depois do baile. Mas esse favor, discretamente concedido, não me servia; era preciso que mais alguém o soubesse.

115


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.