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66 CULTURA CRÍTICA 8 sua essência mortal até o último clarão. (Cardoso, 2008, p. 508)

O pecado maior é mesmo este: a inércia que mantém as aparências sob o véu da calma e da tranquilidade. Deus, sendo ação, não está na pacata cidade de Vila Velha, no passado, nas forças regressivas. Eis a palavra do escritor contra Minas Gerais, contra a família mineira, contra os valores regionais. Eis o regionalismo que surge da exploração dos universos íntimos e da sondagem existencial das personagens. O suposto incesto vai se naturalizando na medida em que se acentua a degradação das relações entre os familiares. O horror com que se lê nas primeiras páginas os prazeres sexuais de que desfrutam mãe e filho é substituído gradativamente pela desconfiança de que a verdade dos fatos é provisória e eternamente contestável:

até a morte para manter o estoicismo dos tempos idos ainda que a Chácara não produza mais riquezas, os irmãos não saibam administrá-la, as relações estejam esgarçadas. Em lugar de os novos

va, ali aprendi a conhecer o amor e a aguardar o filho que havíamos gerado. (Cardoso, p. 80 e 81)

Valdo é uma entre as estranhas criaturas desse romance a lutar pela manutenção das artimanhas mentirosas, que sustentam a narrativa. Para conquistar Nina, dona de beleza e mistérios incomuns, ele se passa por homem rico do interior. Sua farsa é, contudo, desmontada por seu irmão, Demétrio, que o contesta no primeiro jantar em família, proferindo um agressivo discurso contra a fachada construída por Valdo. Betty, aquela que será a fiel servidora de Nina na casa dos Meneses, testemunha a cena:

O pecado m i r ... a ér ia q m n ém a p n ia s o éu da idad . c ma da tr nq

Sim, mãe – balbuciei, deixando pender a cabeça. Ela lançou-me um olhar onde brilhava ainda mais um pouco de sua velha cólera: Mãe! Você nunca me chamou de mãe... por que isto agora? E eu, atônito, sem poder impedir que o espelho tremesse em minhas mãos: Sim, Nina, voltarão os velhos tempos. (Cardoso, 2008, p. 25)

André descreve seu último encontro com Nina em um turbilhão de imagens que condensam a entrada do leitor no romance por inseri-lo, sem qualquer preâmbulo, no centro nervoso da narrativa. O relacionamento incestuoso é o mote para que se percorra a história da família Meneses, que se esforça

acontecimentos no seio da família provocarem atrito e, portanto, alguma transformação, como quer uma perspectiva utópica que se abra para a construção de relações justas e igualitárias, as experiências, duramente silenciadas, impedem que os sujeitos se reconheçam uns nos outros e que as relações mudem. A artificialidade que pauta a vida dos Meneses leva Nina a procurar o Pavilhão, ambiente desprezado e abandonado dentro da Chácara. Em oposição à casa, central, esse espaço, periférico, adquire crescente importância na narrativa. É Nina que o elege como espaço privilegiado, ao retirar-se para lá junto com Valdo. Também é aí onde Nina vive seus primeiros encontros sexuais com André e com o jardineiro, Alberto. Da paixão à morte, o Pavilhão, já completamente destruído, abrigará as tragédias que virão: a condenação de Nina ao exílio, a morte do jardineiro, a confissão de Ana ao Padre e sua solitária morte: E foi ali – lembra-se? – que passamos realmente os mais belos dias de nossa vida em comum. Ali, naquele Pavilhão abandonado e coberto de hera, com largas janelas de vidro mais ou menos intactas, e que flamejavam ao sol da tarde, e comungavam tão intimamente com o mundo vegetal que nos cerca-

(...) Dona Nina apenas ergueu as sobrancelhas e declarou com frieza: Casei-me com um homem rico. Rico? Foi isto o que ele lhe disse? – gritou o Sr. Demétrio. – Foi. Ele, que se inclinara exageradamente sobre a mesa, voltou a tombar para trás, e com tanta força que temi vê-lo cair, arrastando a cadeira. – Mas não tem nem onde cair morto! Devemos aos empregados todos, à farmácia, ao banco do povoado... Não, esta é forte demais. Só aí a patroa pareceu perder a calma. Atirando o guardanapo sobre a mesa, e com um tremor nos lábios, exclamou: Ah, Valdo, isto é uma humilhação! (CARDOSO, 2008, p. 64)

Visto por Nina como responsável pelo afastamento entre Valdo e ela e, conseqüentemente, entre ela, a Chácara e a infância do suposto filho, Demétrio nutre, segundo Ana, uma paixão incontrolável e não assumida pela cunhada, o


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